ACP sobre a clínica de Restauração em Vargem Grande do

Propaganda
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA
DISTRITAL DE VARGEM GRANDE PAULISTA
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO
DE SÃO PAULO, por sua representante, a Promotora de Justiça de
Vargem Grande Paulista com atribuições atinentes à defesa dos Direitos
Humanos e dos Direitos Individuais e Sociais Indisponíveis e a
DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO,
através de seu Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos,
por
sua
representante
e
Coordenadora
Auxiliar,
vêm
mui
respeitosamente à presença de Vossa Excelência, com fundamento no
artigo 129, inciso III, da Constituição Federal; artigos 1.º e 5.º da Lei n.º
7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública); artigo 91 e seguintes da
Constituição do Estado de São Paulo; artigo 103, inciso VIII, da Lei
Complementar n.º 734/93 (Lei Orgânica Estadual do Ministério Público
de São Paulo); disposições da Lei n.º 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional
do Ministério Público); nas disposições da Lei n.º 8.078/90 (Código do
Consumidor), bem como com supedâneo nas peças de informações
inseridas no inquérito civil n.º 132/11, vem propor
AÇÃO CIVIL
PÚBLICA com pedido de antecipação dos efeitos da
tutela
contra CLÍNICA CENTRO TERAPEUTICO RESTAURAÇÃO,
CNPJ 14.072.503/0001-87, situada na Estrada do Posto, nº 627,
Capitão Jerônimo, Vargem Grande Paulista, representanda por Osmar
Emanoel da Silva e Vilma Ekstein da Silva, OSMAR EMANOEL DA
SILVA, brasileiro, casado, RG nº 15.475.477, SSP/SP, nascido em 23
de março de 21961, CPF 011.198.538-26, residente na Rua Mendonça
Furtado, nº 607, Condomínio São Paulo II, Município de Cotia, CEP
06706-135 e VILMA EKSTEIN DA SILVA, brasileira, casada, nascida
em 19 de julho de 1960, RG nº 8.891.075-1 SSP/SP, CPF 011.198.59867, que igualmente pode ser localizada no endereço acima, e BRUNO
EKSTEIN
DA
SILVA,
brasileiro, estado civil ignorado, CPF nº
328.259.748-70, nascido em 29 de abril de 1985, filho de Vilma Ekstein
da Silva e Osmar Emanoel da Silva, residente e domiciliado na Rua Rino
Piena Line, nº 175, apartamento 81 A, Vila Mariana, São Paulo/SP, CEP
4017010, pelos motivos de fato e de direito a seguir aduzidos.
I.
INTRÓITO
Inicialmente impende anotar que, em que pese
a primeira requerida ser denominada “clínica”, na verdade se trata de
Comunidade Terapêutica, regulamentada pela RDC nº 29/2011, da
ANVISA, conforme documentação que instrui esta inicial.
Referida resolução estabelece o Regulamento
Técnico e disciplina as exigências mínimas para o funcionamento de
serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso ou
abuso de substâncias psicoativas, segundo modelo psicossocial. Tais
instituições são também conhecidos como Comunidades Terapêuticas.
É clara a finalidade social e assistencial de tais
institutos.
Serviços de atenção a pessoas com transtornos
decorrentes do uso ou abuso de substâncias psicoativas (SPA), em
regime de residência ou outros vínculos de um ou dois turnos, segundo
modelo psicossocial, são unidades que têm por função a oferta de um
ambiente protegido, técnica e eticamente orientados, que forneça
suporte e tratamento aos usuários abusivos e/ou dependentes de
substâncias psicoativas, durante período estabelecido de acordo com
programa terapêutico adaptado às necessidades de cada caso.
As comunidades terapêuticas são lugares cujo
principal instrumento terapêutico é a convivência entre os pares.
Oferece uma rede de ajuda no processo de recuperação das pessoas,
resgatando a cidadania, buscando encontrar novas possibilidades de
reabilitação física e psicológica, e de reinserção social.
Os estabelecimentos assistenciais de saúde,
que possuem procedimentos de desintoxicação e tratamento de
residentes com transtornos decorrentes do uso ou abuso de SPA,
que fazem uso de medicamentos a base de substâncias entorpecentes
e/ou psicotrópicos e outras sujeitas ao controle especial, as chamadas
Clínicas de Recuperação, estão submetidos à Portaria SVS/MS n.°
344/98 - Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos
sujeitos a controle especial e suas atualizações ou outro instrumento
legal que vier substituí-la.
Nas
comunidades
terapêuticas,
a
responsabilidade técnica pelo serviço junto ao órgão de Vigilância
Sanitária dos Estados, Municípios e do Distrito Federal deve ser de
técnico com formação superior na área da saúde e serviço social. Em
tais estabelecimentos, em que não há a prescrição de medicamentos,
podem ser admitidas pessoas usuárias de remédios controlados, porém
os pacientes deverão trazer as prescrições de seus médicos particulares
e a entidade assumirá a responsabilidade pela administração e guarda
do medicamento, nos termos do receitado.
Para os Serviços que atendem dentro do modelo
psicossocial,
respeitado
o
critério
de
voluntariedade
e
não
discriminação por nenhum tipo de doença associada, não haverá
restrições quanto ao grau de comprometimento para adesão e
manutenção do tratamento. A admissão será feita mediante prévia
avaliação diagnóstica, clínica e psiquiátrica, cujos dados deverão
constar na Ficha de Admissão.
As pessoas em avaliação que apresentarem
grau de comprometimento grave no âmbito orgânico e/ou psicológico
não são elegíveis para tratamento nestes serviços, devendo ser
encaminhados a outras modalidades de atenção, no caso, para clínicas
especializadas. Recomenda-se a Comunidade Terapêutica para paciente
com comprometimento leve ou moderado.
II.
DOS FATOS
A requerida Clínica Restauração era objeto de
investigação do Inquérito Civil nº 132/2011.
Em meados do ano passado (2012), chegou a
informação à esta Promotoria de Justiça de que referida clínica
realizava internações involuntárias, embora nenhuma delas fosse
comunicada ao Ministério Público e não tenha ela autorização legal,
como acima apontado, para prestar este serviço.
Entretanto, conforme imagem que ora se junta,
havia inclusive propaganda no site a respeito das internações e dos
chamados “resgates” dos paciente que se recusavam a se submeter a
tratamento.
Em visita realizada no local, juntamente com
uma fiscal do CRM e com a Vigilância Sanitária, os requeridos Osmar e
Vilma informaram que não havia qualquer interno involuntário, pois
todos “assinavam um documento de voluntariedade” quando se
internavam.
Outrossim, no local não havia, nos termos da
Lei nº 10.216/01, laudo médico circunstanciado prévio à internação,
recomendando-a pois esgotados os meios extra-hospitalares para a
solução da drogadição.
Em
conversa
com
internos,
alguns
deles
informaram que haviam ido para o local a força, por meio de “resgate”,
que consistia em ser “sequestrado” por terceiros, por ordem da clínica,
onde quer que estivessem, serem sedados, jogados no interior de um
veículo, e levados para o interior do estabelecimento, onde eram
submetidos ao “tratamento”.
Narraram tais pacientes que eram humilhados
diariamente, ofendidos, sofriam violência física, eram medicados ao bel
prazer de Osmar e Vilma, medicação essa que era distribuída por outro
paciente, que tinha acesso à “farmácia”. Afirmaram ainda que ficavam
trancados em quartos, eram obrigados a trabalhar na casa de Vilma e
Osmar, tinham seus tratamentos estendidos como forma de “punição” e
tinham pouco ou nenhum contato com o médico psiquiatra.
Referidos pacientes, ante a inexistência de
ordem médica para internação (que é ato médico e não da família ou do
responsável pela clínica) e da inexistência de comunicação da
internação involuntária, foram retirados da clínica e trazidos para a
Promotoria de Justiça, que providenciou a análise dos paciente por
médico psiquiátrica e o devido encaminhamento à família ou outra
clínica.
No interior da clínica (comunidade terapêuticaré) foram constatadas ainda diversas irregularidades, haja vista que,
por se tratar na verdade de uma comunidade terapêutica, não poderia
receber internações involuntárias, nem ter a estrutura física que
possuía. A “clínica”, então, foi totalmente interditada pela Vigilância
Sanitária.
A Vigilância Sanitária responsabilizou-se pela
fiscalização que lhe incumbia a fim de determinar as adequações
necessárias. Outrossim, foram instaurados inquéritos policiais para
apurar os “resgates” e os maus tratos relatados pelos pacientes.
Pois bem.
Em
22/10/2013,
chegou
ao
conhecimento
desta Promotoria de Justiça, por meio da família, que havia um
paciente
no
interior
da
clínica,
SEM
RECOMENDAÇÃO
DE
INTERNAÇÃO e que havia sido “RESGATADO” no Estado do Acre por
uma “equipe” de “socorristas” contratada pela clínica. Outrossim,
informou-se que o interno somente não foi “sedado” para viajar até São
Paulo porque não ofereceu resistência à ação dos “socorristas” (dois
contra um).
Não obstante, a família solicitou a “alta” do
interno, mas os responsáveis pela clínica, Osmar e Vilma, recusaram-se
a “dar a alta” e “liberar” o paciente sem o pagamento de despesas
“extras” que teve com ele.
Nesta
Promotoria
de
Justiça,
então,
foi
preenchido um cheque pela genitora do paciente para que ele pudesse
ser liberado. Para mais, acionou-se a Polícia Militar para que fossem
adotadas as providências cabíveis.
Trazido o paciente, ele foi ouvido e narrou que é
médico e costumava usar cocaína, motivo pelo qual sua família, sem
qualquer intervenção ou ordem médica, contratou a clínica e pagou o
“resgate” para que ele fosse trazido para “tratamento”. Ficou no local
por aproximadamente dois meses, oportunidade em que relatou,
conforme mídia que instrui a ação cautelar preparatória nº 000313377.2013.8.26.0654, as diversas irregularidades existentes no local.
Em razão disso, este Órgão propôs a citada
ação cautelar para que fosse autorizada a entrada de uma verdadeira
“Força Tarefa” a fim de constatar a veracidade das informações
recebidas e outrora já constatadas em 2012. A Defensoria Pública do
Estado de São Paulo também acompanhou a diligência.
Chegando no local, no dia 22/11/2013, por
volta de 08h30, não havia qualquer pessoa que viesse atender o senhor
Oficial de Justiça que comunicaria a ordem do juízo. Depois de muita
insistência foi necessário “arrombar”/pular o portão e muros para que
fosse possível ter acesso às dependências da comunidade terapêutica
ré.
No
lugar
não
havia
um
responsável.
As
informações obtidas com os internos e um “terapeuta” que lá se
encontrava é que os requeridos Osmar e Vilma haviam viajado para
outro Estado e não havia informação sobre a data prevista para retorno.
Os
internos
estavam
todos
trancados
no
interior de um imóvel, conforme demonstram as fotografias que ora se
junta, e não tinham acesso à grande parte da área da clínica, pois todo
o imóvel onde ficavam os quartos, e que eles eram obrigados a ficar, era
cercado por telas e cercas, até o teto, que mais parecia uma espécie de
“galinheiro”, visando a impedir que os pacientes deixassem, quando
assim
desejassem,
as
dependências
que
haviam
sido
a
eles
“reservadas”.
Passa-se, pois, a pormenorizar as violações da
dignidade e dos direitos humanos encontradas e praticadas no
local.
1. AUSÊNCIA DE LAUDO MÉDICO RECOMENDANDO A
INTERNAÇÃO
Preceitua a Lei nº 10.216/01, em seu artigo 6º,
que, para que haja a internação, é indispensável a existência de laudo
médico
prévio,
circunstanciado,
que
indique
os
motivos
da
internação.
Tal documento médico é exigido, uma vez que a
política atual de tratamento de pessoas que apresentam diagnóstico
relacionado a saúde mental diferenciada é inclusiva, diferente da
outrora adotada de segregação e internação asilar.
Toda e qualquer pessoa que apresente um
diagnóstico que requeiro cuidados especiais deve ser tratada dentro do
corpo social e familiar. De há muito já se afastou a ideia de segregação
do “diferente”. A sociedade deve conviver com as diferenças e não
afastá-las para ignorá-las.
Não é por outro motivo que o artigo 4º, do
mesmo diploma legal, determina que a internação, em qualquer de
suas modalidades, só será indicada quando os recursos extrahospitalares se mostrarem insuficientes.
Aliás, é neste sentido também a Portaria n.º
2391/GM, de 2002, em seu artigo 2º, impõe que a internação
psiquiátrica somente deverá ocorrer após todas as tentativas de
utilização das demais possibilidades terapêuticas e esgotados todos os
recursos extra-hospitalares disponíveis na rede assistencial, com a
menor duração temporal possível.
De se consignar que a internação é ato médico e
não mera liberalidade do paciente, de seus familiares ou de eventuais
responsáveis por clínicas ou comunidades terapêuticas.
Ora,
ainda
que
haja
voluntariedade,
é
indispensável, como se verifica pelas normas regem a matéria, que haja
um laudo médico que recomende a internação, afinal, trata-se de
medida extrema e segregacionista. Não pode uma pessoa, ainda que
no livre e desembaraçado exercício de suas faculdades mentais,
resolver, sem qualquer ordem médica, entrar em um nosocômio e
solicitar na recepção que seja internado.
A internação, seja em qual modalidade for, mas
principalmente as internações psiquiátricas e para tratamento de
síndromes derivadas do uso e abuso de substâncias psicoativas,
depende não só do esgotamento das vias extra-hospitalares, mas
também da ordem de um médico, que, tendo acompanhado as
tentativas de solução da dependência e sendo tecnicamente capacitado
para avaliar a necessidade ou não de intensificação do tratamento,
decida se é o caso de recomendar, por meio de laudo médico
circunstanciado, a internação.
Recomendada a internação, como determina o
caput, do artigo 6º, da Lei nº 10.216/01, aí sim devera se indagar qual a
modalidade de internação poderá ser feita, tomando-se por base a
aderência do paciente ao tratamento.
Não
é
por
outro
motivo,
frise-se,
que
o
legislador explicitou as modalidades de internação em incisos do artigo
6º, que exige o laudo para TODAS as internações.
Some-se a isso que não basta mera análise, a
posteriori, por psiquiatra da clínica/comunidade terapêutica, vez que o
laudo que recomenda a internação deve tomar por base todo o
tratamento que o paciente já vinha ou deveria vir se submetendo.
No caso da comunidade terapêutica ora ré,
verifica-se que não havia recomendação médica para internação,
apenas vontade própria do paciente ou de terceiros (familiares ou os
requeridos).
Pise-se que no interior da clínica sequer havia
uma pessoa que pudesse apresentar os prontuários médicos dos
pacientes. Os representantes da clínica, segundo informado, haviam
“viajado para o Paraná”, sem previsão de retorno. Foi necessária muita
paciência e cuidado para tentar localizar os prontuários médicos, que
estavam bagunçados e misturados aos de pacientes antigos.
2. ACEITAÇÃO
DE
PACIENTES
PARA
INTERNAÇÃO
comunidades
terapêuticas,
INVOLUNTÁRIA
As
definidas,
não
tem
autorização
legal
para
receber
conforme
internações
involuntárias. Ainda que o paciente, com laudo médico, se apresente
espontaneamente para tratamento, se, após determinado período, não
mais demonstrar interesse em lá permanecer, deve ser desligado do
tratamento, já que a continuidade deste implicaria em imposição
(involuntariedade).
Com a reorganização da atenção psicossocial no
âmbito do Sistema Único de Saúde, disciplinada pela Portaria GM/MS
n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011, as comunidades terapêuticas
foram reconhecidas como componentes da rede de atenção, na
qualidade
de
“serviços
de
saúde
de
atenção
residencial”,
cuja
importância não se questiona à vista dos relevantes serviços que
prestam
em
saúde
mental,
especialmente
para
portadores
de
dependência química em decorrência de uso de substâncias psicoativas.
Não obstante, não podem oferecer leitos de
internação e seus serviços não devem substituir a assistência
hospitalar, quando esta for necessária1.
Esta problemática, aliás, já fora antevista pela
Resolução da Diretoria Colegiada/ANVISA nº 29/2011, preconizando
que a permanência de qualquer usuário (ou residente) somente pode ser
feita com o seu consentimento expresso:
Art. 15. Todas as portas dos ambientes de
uso dos residentes devem ser instaladas com travamento simples,
sem o uso de trancas ou chaves.
(...)
Art. 19. No processo de admissão do residente, as
instituições devem garantir:
(...)
III - a permanência VOLUNTÁRIA;
IV-a
possibilidade
de
interromper
o
tratamento a qualquer momento, resguardadas as exceções de risco
imediato de vida para si e ou para terceiros ou de intoxicação por substâncias
psicoativas, avaliadas e documentadas por profissional médico;”
Na
obra
“Direito
Sanitário”,
os
autores
Reynaldo Mapelli Júnior, Mário Coimbra e Yolanda Alves Pinto Serrano
de Matos bem sintetizam a essência dos trabalhos das comunidades
terapêuticas:
Of. Circular nº 17/12-CAO/Saúde-i. Ministério Público do Estado do Paraná - Centro de Apoio
Operacional das Promotorias de Proteção à Saúde Pública.
1
_______________________________________________
Há
que
se
comunidade
observar,
no
terapêutica
entanto,
tem
que
como
se
a
política
reitora a voluntariedade do tratamento, que pode
ser
interrompido
residente,
não
a
qualquer
pode
ela
momento
manter
o
pelo
residente,
involuntariamente. A própria resolução determina
que
as
portas
do
edifício
que
abriga
a
comunidade sejam equipadas com travamento
simples,
o
que
torna
incompatível
com
o
albergamento de residentes involuntariamente. A
internação involuntária, assim como a compulsória
deve ser direcionada a estabelecimentos especiais
dotados de equipes técnicas especializadas para o
tratamento
de
pacientes,
comprometimento,
ou
que
seja,
apresentam
risco
tal
imediato
a
intoxicação por drogas psicoativas, bem como à vida
do paciente ou de terceiros.
_______________________________________________
Os
requeridos,
no
entanto,
oferecem
“tratamento involuntário” e, para tanto, inclusive, oferecem serviço de
“resgate”, que nada mais é do que “sequestrar” o paciente e obrigá-lo,
sob
as
mais
diversas
formas
espoliativas,
a
se
submeter
ao
“tratamento”.
No
entanto,
para
justificar
a
não
comunicação do fato ao Ministério Público, o que ensejaria controle
das internações e das irregularidades perpetradas no interior da
comunidade, os pacientes são obrigados a assinar uma “declaração
de voluntariedade”.
Quando este Órgão esteve in loco, na clínica, em
duas oportunidades, foi constatada a existência de diversos pacientes
involuntários e resgatados. Outros, apesar de involuntariamente
trazidos,
haviam
aderido
o
“tratamento”;
outros
chegaram
voluntariamente, mas não tencionavam continuar no local, mas eram
obrigados.
3. SEQUESTRO E CÁRCERE PRIVADO
Os requeridos seguem odioso modus operandi
para obrigar pacientes a se submeterem ao tratamento. Seguem alguns
dos relatos que demonstram a reiteração na prática de referido crime:
“foi
internado
involuntariamente.
O
declarante não queria ir. Quem levou o declarante foi o resgate – o
pessoal da clínica foi buscar o declarante em Brasília. Veio de lá
aqui no carro do Pastor (Osmar). O filho do Pastor – BRUNO – Leandro
(interno) e a mulher do Bruno. O declarante estava em casa quando foi
surpreendido
por
eles.
Não
tinha
nenhum
documento
médico
recomendando sua internação. O declarante foi amarrado e trazido
até aqui. Bruno e Leandro deram remédio ao declarante. Chegando
aqui ficou três dias de “boi”, dormindo direto (...)”.
“foi
internado
involuntariamente
no dia
31/05/2012, o declarante não queria ir. Quem levou o declarante foi o
resgate – o pessoal da clínica foi buscar o declarante em Porto
Alegre. Veio de lá até aqui no carro do Pastor. O FILHO DO PASTOR –
BRUNO – e o Akira – Policial Civil, estavam no carro (...)”.
“Fui internado na clínica em 03/06/2012.
Minha internação foi involuntária. Eu fumava maconha dentro de
casa. A internação foi uma das alternativas que meu pai encontrou para
tratamento. Fui pelo “resgate”. Quatro homens invadiram o meu
quarto, entre eles BRUNO e Reinaldo, o outro era uma Policial Civil,
segundo Bruno, de nome “Grum”. Os Policiais Civis fazem bicos de
“resgate”. (...) Eles abriram a porta do meu quarto e disseram para eu
sair. Eu fiquei assustado e liguei para a polícia, pedindo ajuda, mas
não consegui. Quando eu me recusei a ir, eles pediram para minha irmã
sair de dentro de casa. Neste momento percebi que poderia ser agredido,
já que meus pais também já tinham sido informados para não ficar em
casa no dia do resgate, pelo que me disseram.”
“Fui internado no dia 17/06/2012. Minha
internação foi consentida inicialmente, mas em caráter involuntário,
porque era a vontade de minha, para proteger minha integridade. Eu não
tinha laudo médico prévio a internação recomendando-a”.
“Afirma ser usuária de “crack” e “cocaína” há
sete anos, estando há quatro meses internada na clínica em questão,
tendo sido a internação uma escolha de seus familiares”.
“Afirma ser usuário de “crack” e permaneceu no
vício durante oito meses, sendo que por iniciativa de seus familiares
acabou sendo internado na clínica em questão, isso há exatos cinco
meses e doze dias.”
Um dos “socorristas” contratados para resgatar
um dos internos, que residia no Estado do Acre, conforme se verifica
pelas tratativas feitas por email que instruem essas inicial, ainda
postou foto em seu perfil na rede social denominada “Facebook”,
vangloriando-se pelo que chamou de “resgatar mais uma vida”.
Figura 1: Um dos "socorristas" anunciando no Facebook a realização de um "resgate"
Os trechos dos depoimentos acima descritos
demonstram que os requeridos, ao arrepio das normas legais que
regulamentam as internações, e em total descaso com os direitos da
pessoa humana, praticavam mercenariamente o sequestro de pessoas
para submetê-las às formas mais espoliativas de humilhação, agressão
e tortura.
Não bastasse tais hediondas irregularidades e
ilicitudes, havia ainda a proibição dos internos de deixarem o local
quando assim desejassem e, para tanto, eles eram trancados no interior
de um imóvel e não podiam sequer ter acesso à outras áreas da clínica.
Ainda aqueles que chegavam voluntariamente
ao local não poderia deixar o “tratamento” se quisessem.
A par disso, durante o dia, após o almoço, eram
trancados em seus quartos, alguns com cadeados e correntes nas
portas, e obrigados a ali permanecer por horas, como forma de
“realizarem uma introspecção espiritual”.
Figura 2: Quarto de interno em 2012
Não se trata de conjecturar acerca de violações
de direitos humanos e fundamentais. As irregularidades e ilicitudes
são flagrantes.
Figura 3: Quarto de dois internos em 2013
À
noite,
no
horário
determinado,
eram
novamente trancados no interior dos quartos, de onde só poderiam sair
pela manhã, quando “tocasse o sino” e os quartos fossem destrancados.
Para
mais,
ainda
poderiam
receber
como
punição o castigo do banco, que consistia em ficar por um período de
horas determinado por Osmar, Vilma e Bruno sentado em um banco.
Algumas pessoas ficavam até dias sendo “punidas”. Tais punições
poderiam derivar até mesmo de uma toalha molhada deixada em cima
da cama.
Bruno, pelo que se verifica, e ainda será tratado
de forma pormenorizada, era responsável por “resgatar” alguns dos
pacientes, aplicar medicação neles, bem como agredi-los a fim de
mantê-los sempre em constante terror. Por assim dizer, Bruno era o
responsável, juntamente com seus pais, por manter os internos em
temendo por suas vidas.
Tudo ao bel prazer e a depender do humor dos
requeridos.
Figura 4: Pacientes presos dentro do imóvel
A
liberdade
é
um
direito
fundamental
assegurado expressamente pela Constituição da República, assim
como a possibilidade de cada ser humano se autodeterminar: “Ninguém
será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude
de lei” (art. 5º, inciso II, da CRFB). É justamente em razão da liberdade
constituir-se em núcleo fundamental do exercício de direitos que ela,
inclusive, é tutelada, em sede infraconstitucional, pelo diploma
repressor.
Grande
parte
dos
pacientes
que
ali
se
encontravam, como os que já se citou, não só foram obrigados a sair de
suas casas e do seio de sua família, de forma violenta, como também
não podiam sequer circular pelo interior da clínica ou deixá-la quando
quisessem.
Familiares
relataram
na
Promotoria
(IC
132/2011) a forma pela qual seus parentes eram “resgatados” e levados
para a clínica.
Neste momento, oportuno citar o relato do
autor David Rousset, ex-prisioneiro de Buchenwald, que descreveu no
livro Les Jours de notre morte – 1947: “O triunfo da SS exige que a vítima
torturada permita ser levada à ratoeira sem protestar, que ela renuncie e
se abandone a ponte de deixar de afirmar sua identidade. (...) eles sabem
que o sistema que consegue destruir suas vítimas antes que elas subam
ao cadafalso, é incomparavelmente melhor para manter todo um povo em
escravidão. Em submissão”.
Mutatis mutandis, e com as devidas proporções,
o que se verificou existir dentro da instituição ré é deplorável. Os
próprios internos, diante de tão degradante tratamento diário e perene,
acabavam por sucumbir e submeter-se, sem possibilidade de salvação,
à tamanha desumanidade.
4. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA DE ESCRAVO
Não bastasse a conduta hedionda de sequestrar
mercenariamente pessoas, todas eram obrigadas a trabalhar no interior
da clínica sem receber qualquer remuneração para tanto.
A
título
de
realizar
“laborterapia”,
os
requeridos obrigavam diariamente todos os internos a realizar os
serviços necessários dentro da clínica.
Ora, ainda que se possa sugerir a dignificação
da pessoa humana pelo trabalho, não poderiam os internos ser
obrigados a trabalhar. Aliás, a própria Carta Magna veda a pena de
“trabalhos forçados”.
Em que pese haver publicidade no site, não
havia no interior da clínica uma cozinheira, uma faxineira, um monitor,
nada. Todos os internos é que realizavam os serviços (lavar roupa – o
que era cobrado da família – limpar a varanda, lavar banheiro, cozinhar,
“pegar detritos”, rastelar área geral do escritório e laterais, limpar a
piscina, servir as refeições, etc.).
Vejamos as “ordens” deixadas em um quadro
que havia no local, que incluem até limpar os escritórios dos
representantes e tomar conta dos diversos cachorros que moram no
interior da comunidade.
Figura 5: "Determinações" para todos os pacieintes
Frise-se que, de fato, se tratava de uma
“ordem”, como se pode verificar pela “determinação” contida na parte
final do documento:
Figura 6: "Ordem" - "CUMPRA-SE"
Não bastasse os internos serem obrigados a
trabalhar, evitando que os requeridos tivessem qualquer custo com
manutenção e mão de obra, alguns dos pacientes ainda eram
obrigados a TRABALHAR NA CASA DO REQUERIDOS. Veja-se alguns
trechos das declarações colhidas no ano passado e neste ano de 2013:
“lavava os carros do pastor e trabalhou
como pedreiro em uma casa que ele comprou em Cotia”.
“Durante
o
período
que
esteve
na
clínica
trabalhou no Condomínio São Paulo II, na casa do pastor como
empregado doméstico. Lavava tudo por fora, organizava por dentro, a
pastora tem mais de 200 sapatos, lavou todos e os organizou por cor. O
pastor tem mais de 100. Lavou-os e os organizou. Não recebeu nenhum
dinheiro por isso”.
“passava aproximadamente metade do dia
trabalhando na cozinha, minhas mãos estava doendo. Eu fazia as
sobremesas e as saladas”.
“Eu nunca trabalhei para o pastor fora da
clínica, mas dentro dela tinha que lavar um banheiro e um quarto todos
os dias. Não eram os que eu usava. Eles chamam de laborterapia. Eu
era obrigado a limpar estes cômodos. Caso não limpasse, era
punido. A punição era a critério de Reinaldo.”
“Nunca trabalhei fora da clínica, mas o Igor
(Rondônia), o Lucas, o Wilson e outras pessoas foram obrigadas a
trabalhar fora da clínica”.
Neste cenário, o que se verifica é que os
internos eram usados como verdadeiros escravos, que ficavam
presos no interior do local e era obrigados, sob pena de punição, a
trabalhar no que quer que os requeridos desejassem que fosse feito.
Poucos dias antes de cumprida a ordem para
entrada na clínica os internos foram obrigados a LIMPAR A FOSSA
DO LOCAL, carregando BALDES DE FEZES PARA DESCARTE.
A exploração dos internos e a certeza de
impunidade são flagrantes e qualquer interno que contestasse as
“ordens” (rectius – abusos), dizendo que as relataria à autoridades e
familiares, recebia como resposta: “pode falar. Em quem vocês
acham que vão acreditar? Em nós, que somos pastores, ou em
vocês, que são uns drogados?”
O CRP-06 (Conselho Regional de Psicologia)
constatou, in loco, conforme consta da imagem abaixo, e do relatório
que documenta essa ação, que não havia qualquer funcionário no local
e os internos eram obrigados a trabalhar.
Figura 7: Relatório do Conselho Regional de Psicologia
Figura 8: Relatório do Conselho Regional de Psicologia
5. AGRESSÕES FÍSICAS E VERBAIS
Durante todo o período em que os pacientes
eram submetidos ao “tratamento” ofertado pelos requeridos, eram eles
submetidos à agressões físicas e verbais, bem como toda a espécie de
tortura psicológica, a fim de que se anulassem ao ponto de nada
mais fazer, apenas cumprir.
Seguem trechos de alguns dos relatos:
“foi amarrado e trazido até a clínica. O
BRUNO e o Leandro deram remédio ao declarante. Chegou e ficou
três dias de “boi”, dormindo direto e no quinto dia encontrou uma
barra de ferro embaixo de sua cama. Achou estranho. Quando foi falar
para os GAP (internos que já estavam a mais tempo no local e recebiam
incumbência de “monitora” os demais), eles acharam estranho e
questionaram. O levaram para dentro do quarto, deram tapas,
cabeçadas e murro no estômago. Ficou dois dias urinando sangue.
Não contou para ninguém porque ficou com medo. Ainda ficou mais dois
dias de banco – ficava dois dias direto no banco. Tinhas internos que
chegavam a ficar semanas no banco. (...) Via muitas humilhações
feitas pelo pastor. (...) As humilhações com todos os internos eram
constantes, principalmente com os que pediam para ir embora. (...) Tinha
muito medo de ficar lá por causa das represálias.”
“Viu o rapaz de nome Márcio sendo agredido
pelo Sr. Reinaldo, chefe da casa e irmão da pastora Vilma. Foi
agredido pelo Sr. Reinaldo que o pegou pelo pescoço e o jogou no sofá.
(...). O castigo era o banco. Ficou de castigo diversas vezes, fincando
sentando no banco o dia todo. Ao chegar no local tiraram sua roupas de
marca porque um rapaz fugiu e colocaram o declarante como culpado.
Outro castigo foi a determinação para ficar na clínica por mais
quatro meses. (...) Quem dava as punições era o pastor. Quase todos
os dias tinha palestra de religião. Era obrigatório. Quem não ia recebia
punição: banco.”
“o
senhor
Osmar
costuma
repreender
rispidamente os paciente quando tentam passar alguma informação a
seus familiares sobre a clínica e vice-versa. Ele costuma fazer isso na
frente de todos, para constranger, para humilhar. Certa vez ele me
ofendeu, dizendo que eu não era homem, entre outros, porque minha
esposa foi me visitar. Ele me fez pedir perdão duas vezes em público
para ele. Tinha medo do senhor Osmar. O senhor Osmar me fez
assinar um papel dizendo que eu queria continuar o tratamento.
(...). Existe um castigo aplicado pelo senhor Osmar que consiste em ficar
sentado em um branco, dentro da academia, durante todo o dia (...). No
dia em que o Oficial de Justiça foi à Clínica (01/08/2012) afirmei
que estava lá voluntariamente e queria ficar lá porque estava com
medo do senhor Osmar. Na verdade eu queria ir embora. Ele humilha
todo mundo dentro da Clínica. Esta semana uma pessoa estava
passando mal do estomago, oportunidade em que pediu por um médico,
sendo informado de que não era necessário chamar médico, bastava
tomar um medicamento que lhe dariam. Eu tinha que ficar como um
“carneirinho” lá dentro. Era obrigado a fazer o que eles queriam. Acho
que o Oficial de Justiça Bruno deve ter percebido que eu não
queria ficar lá. Antes do Oficial de Justiça ir embora eu ainda
pensei em tentar fazer um sinal para Bruno (Oficial). Em seguida,
Bruno (Oficial de Justiça) disse que talvez o juiz precisasse me
chamar. Eu fiquei com esperança que o juiz me chamasse, para
poder sair de lá. Eu tenho medo do filho do senhor Osmar, porque ele
fala com um tom de voz e diz “coisas” que geram temor. Ele diz que é
amigo de policial”.
“Uma
vez
falei
para
minha
filha
que
gostaria de estar em outra clínica. Em razão disso, no dia
seguinte, o pastor fez um reunião, chamando todos os internos e
passou a me humilhar, falar palavrões em relação a mim. (...). Não
podia portar nem canetas para escrever e estudar. (...) Sei que tive uma
crise de abstinência, mas não me lembro. Contaram-me que eu levei
tapas no rosto e chutes no peito. Um pessoa de nome “Fran” e
Reinaldo que me agrediram. (...) Moralmente eu fui agredida, houve mais
de uma reunião sobre mim, em que eu era agredida moralmente,
ofendida. Ele me chamava de vadia, bêbeda, alcóolatra. Certa vez
fiquei de castigo no banco por aproximadamente um dia e meio. Durante
a noite fui para cama e no dia seguinte voltei para o banco, porque eu
tinha falado ao telefone com meu marido dizendo que não tinha nada
para falar para ele. Não sei o que irritou o pastor, eu estava justamente
tentando evitar um castigo. Vi a Carla tomar tapas no rosto desferidos
pelo pastor. Teve um rapaz de nome Igor, conhecido como Igor “São
Paulo”, que quebrou todo o quarto. Como punição ele ficou três dias
trancado no quarto, vestindo uma fralda e recebia comida por
baixo da porta. (...) O Bruno é muito agressivo e fala muitos palavrões,
fica dizendo que ele machuca pessoas. (...) As reuniões com o pastor e
o filho dele eram somente para humilhação de algum paciente.”
“Eu vi uma arma em um dos carros da
clínica, um dos GAP´S tirou uma “submetralhadora” do carro do Bruno.
Nunca fui agredido fisicamente no local, mas já sofri uma ameaça de
agressão. (...). Por volta do dia 16/06 chegou à clínica um paciente de
nome Wilson. Não vi ele sendo agredido, mas pude ouvir seus
gritos, pedindo para parar de ser agredido. (...) O pastor costumava
xingar muito os pacientes, assim como o Reinaldo. Eu tenho muito
medo de relatar todos esses fatos. Tenho conhecimento de que há
policiais civis, em tese, envolvidos. Eu temo por minha vida e por minha
integridade física. Na clínica o Bruno era o que mais falava, não sei se
para nos colocar medo, de coisas que ele fez ou fazia, agressões que
praticava. (...) Não tenho certeza, mas no primeiro dia ou segundo fui
medicado com Aldol ou Rivotril, que eu “apaguei” em seguida e só
acordei no dia seguinte, com a pressão muito baixa. (...) Não fui atendido
por médico, fiquei apenas deitado algumas horas. Uma vez vi
aplicarem uma medicação injetável no Vitor, que teve uma espécie
de crise de “raiva”. Não sei a medicação aplicada, mas Vitor ficou
sedado. Quem aplicou a injeção foi Marcelo, que é veterinário e paciente
da clínica. (...) Eram aplicados vários castigos na clínica. Um deles
consistia na convocação de uma espécie de reunião com todos os
internos em que o pastor humilhava o castigado. Ele chamava a
pessoa de “filho da puta”, mandava “tomar no cu” (...). Soube por uma
pessoa de nome David, que ele foi amarrado, agredido a tapas na
cara, tanto pelo pastor, quanto pelo Bruno, depois jogaram
álcool nele e brincavam com o isqueiro perto dele, para
aterrorizá-lo.”
Quando do cumprimento da ordem liminar
concedida na ação cautelar já mencionada, outras violações e condutas
odiosas foram narradas. A título de exemplo:
“Em uma certa oportunidade uma ex interna
comentou que possuía um celular e perguntou se queria utilizá-lo, tendo
dito que sim e telefonado para um amigo e também para o genitor. Porém
este acabou contando para o pastor sobre a ligação. Então, a declarante
além de ser ofendida, foi agredida com um tapa na face, bem como
foi jogada no chão, tendo se levantado e então sido jogada contra
um banco, no que começou a chorar, oportunidade em que o pastor
mandou que “parasse de frescura”, caso contrário ele chutaria o seu
braço até quebra-lo, uma vez que já havia machucado-o com a queda. O
pastor ainda dizia que ela “sustentava o vício levando droga na cadeia
para vagabundo”, lhe desrespeitando e lhe humilhando. Afirma que
antes da agressão, foi levada para o quarto, onde foi obrigada a se
despir, tendo Vilma afastado suas pernas e olhado o interior de
sua vagina, dizendo posteriormente ao pastor que não havia encontrado
o celular”.
Consta do relatório da médica psiquiátrica que
acompanhou a diligência as agressões que foram relatadas à ela pelos
internos, consultas esporádicas com o médico psiquiatra, os “resgates”,
a permanência involuntária no interior da clínica, os trabalhos
forçados. Este relatório instrui essa inicial.
Bruno tinha sempre a função de intimidar os
internos, mantendo-os sob domínio do medo, vez que não só era o algoz
dos “resgates”, como também usava a força física sempre que
entendesse necessário para se estabelecer ainda mais no “comando” da
barbárie.
O Conselho Regional de Psicologia (CRP- 06)
recebeu inúmeras “denúncias” de violação dos direitos humanos
ocorridas no interior da clínica. Basicamente o que está ali relatado é
também o que foi constatado na visita realizada no local.
Este cenário, em conjunto com os demais
documentos colhidos, demonstra que os internos recebiam tratamento
humilhante e desumano, em total afronta aos seus direitos e garantias
individuais e a sua dignidade.
As
agressões,
ou
ameaças
delas,
eram
constantes e tinham por desiderato tolher qualquer esboço de reação às
evidentes ilicitudes praticadas.
6. CASTIGOS E PUNIÇÕES
A par das torturas e humilhações já narradas,
das agressões e ofensas sofridas, os internos ainda eram obrigados a se
submeter a castigos como ficar horas sentados em um banco, por
quantos dias os requeridos achassem necessários, sem a menor
proporcionalidade objetiva entre o fato praticado e a punição recebida.
Figura 9: O BANCO onde os internos eram obrigados a ficar sentados em 2012
Eram ainda convocadas reuniões com todos os
internos
para
a
prática
de
humilhações
públicas,
ofensas
e
ridicularização do “castigado”.
Outra forma de punição, e porque não de
aumento dos lucros, era a ampliação desmotivada do prazo de
internação.
Assim,
sem
qualquer
ordem
ou
recomendação médica, os requeridos impunham aos pacientes, como
forma de punição, o aumento do tratamento por meses, informando aos
familiares que era necessário para que o bem de seu ente querido.
Cabe ressaltar que o próprio texto Magno
garante a todos que ninguém será submetido a tratamento desumano
ou degradante. Trata-se de garantia constitucional explícita que, à
evidência, está sendo explicitamente violada.
7. APLICAÇÃO DE MEDICAÇÃO
O que se constatou de todas as provas que
foram colhidas no bojo do Inquérito Civil que instrui essa inicial, há
anos não há um funcionário tecnicamente capacitado e contratado para
ministrar medicação.
Quem aplica as medicações são pacientes da
própria clínica. Tanto em 2012, como em 2013, havia internos formados
em veterinária que aplicavam medicação. Entretanto, não havia
qualquer óbice que outros pacientes aplicassem e distribuissem a
medicação.
Aliás, outra temerária conduta praticada pelos
requeridos é permitir que pacientes que apresentam dependnência em
substâncias químicas tenham acesso à medicação controlada e as
separe e entregue aos outros internos.
Figura 10: Controle de medicação
Não
há
qualquer
controle
minimamente
inteligível ou formal para da medicação dispensada. O que se verificou é
que a medicação é entregue ou forçadamente dada aos pacientes. O
único controle que existe é para fins de cobrança do valor dos
medicamentos aos responsáveis pelo pagamento do tratamento.
Outrossim, a depender do comportamento do
paciente, são eles obrigados a tomar medicação, sem qualquer
prescrição médica. Para tanto, são agredidos violentamente, ofendidos e
até mesmo amarrados.
Figura 11: Amarras usadas para ministrar medicação
Um dos pacientes que estava no local quando
da inspeção feita pela força tarefa montada em 2013, mostrou as faixas
(figura acima) que eram utilizadas para amarrar aqueles que se
recusavam a tomar medicação.
O próprio CRM constatou in loco que os
pacientes não sabiam sequer quais medicações tomavam, que não havia
prescrição para toda a medicação e ouviu os relatos de internos que
eram medicados à força.
A medicação era distribuída em copinhos,
dentro dos quais era adicionada água e os comprimidos eram triturados
e distribuídos desta forma.
Figura 12: Recipientes de distribuição de medicação
Havia ainda a injeção de medicação, que era
feita por quem se predispusesse a aplicar um medicamento em outro
ser humano, mesmo sem habilitação técnica.
Ao que consta os médicos responsáveis pelo
local examinavam esporadicamente os pacientes e com base nas
informações prestadas pelos requeridos receitavam medicação.
Todos os pacientes relatavam que as consultas
eram raras, apenas dias depois da “internação” e por poucos minutos.
Não há informação de que os médicos tinham
acesso ao histórico do paciente. Aliás, o procedimento dos requeridos
era tão temerário que mesmo sem saber se os pacientes podiam
tomar uma medicação (por alergia ou por ainda estar sob o efeito
de drogas quando do “resgate”) eram injetados e ministrados
remédios. Ora, qualquer dos pacientes poderia ter uma reação e vir a
óbito.
No entanto, como se verifica de todo o narrado,
a vida dos internos pouco importava para os requeridos.
8. AUSÊNCIA DE FUNCIONÁRIOS
Durante as duas visitas à clínica, não havia
funcionários no local. Da última vez (22/11/2013) havia uma pessoa
que
se
identificou
como
terapeuta,
mas
não
se
apresentou
funcionalmente. Outra hora identificou-se como fisioterapeuta.
Não havia qualquer contrato de trabalho.
Em 2012, no bojo do Inquérito Civil, foram
juntados “contratos de trabalho” com o réu Bruno, com a esposa dele
Rafaela, com o tio dele “Reinaldo”. Ora, nenhuma dessas pessoas
possui qualificação técnica para prestar a devida assistência aos
pacientes.
Flagrante
tentativa
de
burlar
as
normas
legais
e
regulamentares referentes ao tratamento adequado para casos como o
ora em apreço.
Os internos, como já narrado, eram obrigados a
trabalhar nas mais diversas funções – carpir, limpar piscina, lavar
banheiro, limpar fossa, cozinhar, servir, lavar roupa. Dessa forma, os
próprios
pacientes,
além
de
pagarem
pelo
tratamento,
ainda
mantinham a clínica minimamente hígida, trabalhando como escravos
dos requeridos.
Não
terapêutico
especializado,
tinham
elaborado
qualquer
e
acompanhamento
mantido
por
profissional
habilitado.
9. VIOLAÇÃO
DO
SIGILO
DAS
COMUNIÇÕES
TELEFONICAS, DA CORRESPONDÊNCIA E PROIBIÇÃO
DE CONTATO COM O MUNDO EXTERNO
A fim de evitar que os internos relatassem a
terceiros os maus tratos e a exploração que eram vítimas, nas escassas
oportunidade que podiam manter contato com o mundo extracomunidade,
conversações
eram
eles
telefônicas
impedidos
privadas
pelos
requeridos
e/ou
de
enviar
de
manter
e
receber
correspondências de forma sigilosa.
TODOS,
absolutamente
todos
os
internos
ouvidos relataram que as conversações telefônicas eram feitas por
tempo limitado e no viva-voz, acompanhados pelos requeridos ou por
terceiros a seu mando, e interrompida quando algo “proibido” fosse dito.
Antes das ligações eram os pacientes orientados
sobre o que poderiam falar e o que não poderiam. Qualquer “violação”
sujeitava o “infrator” as mais diversas e desumanas punições, dentre as
quais as já suficientemente descritas acima.
O mesmo era feito com as correspondências,
que ou eram lidas, antes de ser enviadas, ou já vinham abertas para ser
entregues aos internos.
O Conselho Regional de Psicologia recebeu
diversas denúncias acerca de violação de direitos humanos no interior
da clínica. Em uma primeira visita foram impedidos de entrar. Em uma
segunda visita somente pôde ter contato com os pacientes na
presença de Osmar, de modo que ficaram todos constrangidos em dizer
o que realmente acontecia na clínica.
Apesar das “internações” serem alegadamente
voluntárias, vez que os internos eram obrigados a assinar declaração de
voluntariedade, eles não podiam ter qualquer contato com o mundo
exterior, salvo à título de regalia e para alguns.
10. AUSÊNCIA
DE
INDIVIDUALIZADO
PLANO
TERAPÊUTICO
Nos termos do preceituado pelo artigo 22, da
Lei Federal nº 11.343/06, as atividades de atenção e as de reinserção
social do usuário e do dependente de drogas e respectivos familiares
devem observar os seguintes princípios e diretrizes, entre outros:
I - respeito ao usuário e ao dependente de drogas,
independentemente
de
quaisquer
condições,
observados
os
direitos
fundamentais da pessoa humana, os princípios e diretrizes do Sistema Único de
Saúde e da Política Nacional de Assistência Social;
II - a adoção de estratégias diferenciadas de atenção
e reinserção social do usuário e do dependente de drogas e respectivos
familiares que considerem as suas peculiaridades socioculturais;
III
-
definição
de
projeto
terapêutico
individualizado, orientado para a inclusão social e para a redução de
riscos e de danos sociais e à saúde;
IV - atenção ao usuário ou dependente de drogas e
aos respectivos familiares, sempre que possível, de forma multidisciplinar e por
equipes multiprofissionais;
Entretanto, todos os pacientes eram tratados de
forma aleatória, não havia um plano individualizado e voltado para as
peculiaridades de cada um. Não havia atendimento especial àqueles que
necessitavam.
Cada ser humano é um todo em si mesmo e
tem
suas
próprias
especialidades
que
demandam
meio
de
atenção
particularizada.
Os
réus,
por
suas
condutas
transgressivas e do “tratamento” que ofereciam, fechavam os olhos às
mais diversas necessidades dos internos e, novamente, violavam toda a
sorte de normas regradoras do tratamento de pessoas.
11.
CONTATO
ESPORÁDICO
COM
PSIQUIATRA E POR TEMPO INSUFICIENTE
MÉDICO
Os internos não recebiam o devido cuidado do
médico
responsável.
depoimentos
colhidos,
Alguns,
somente
conforme
se
se
pode
consultavam
verificar
com
o
dos
médico
psiquiatra dias após a internação e mesmo assim eram medicados neste
ínterim.
Mesmo após a consulta, que muitos relatam
não durar mais de 10 minutos, quando muito, recebiam medicação sem
qualquer orientação e sem tomar conhecimento do desiderato daquela
droga que lhe era entregue.
Permaneciam, por vezes, sedados por dias, e
passavam meses sem se consultar com o médico.
12.
PUBLICIDADE ENGANOSA
Conforme se constata da documentação que
instrui essa inicial, os requeridos anunciavam no site da clínica a
realização de internação involuntária e até mesmo os denominados
“resgates”, que se alegava poderem ser realizados até por meios aéreos.
Mesmo sem autorização legal, regulamentar e
sem estrutura física e adaptada, referido serviço era “prestado”.
Figura 13: Publicidade de Tratamento Involuntário em 2012
Saliente-se, novamente, que este serviço não só
não pode ser prestado pela referida “clínica” (Comunidade Terapêutica),
como não tem ela os equipamentos e a estrutura necessária para
receber esse tipo de internação.
Assim, os requeridos ofereciam um serviço
que não poderiam prestar e que, de fato, ante todo o narrado, não
prestavam, enganando, induzindo a erro e assim mantendo não só
os pacientes, como também os familiares que custeavam o
tratamento.
Após
a
primeira
inspeção
e
interdição
administrativa da clínica, tal informação foi retirada do site. Entretanto,
o tratamento continuou a ser oferecido, tanto por informações no site,
como quando do contato de familiares para saber informações sobre o
tratamento. E-mails trocados ente o réu Osmar e familiares de um
interno instruem essa inicial.
Figura 14: Informação acerca de "autorização da família" para manter o interno
involuntariamente sob tratamento em 29/11/2013
Outrossim, o site de referida clínica anuncia a
existência de serviços que ela não possui e/ou possui porque obriga os
próprios internos a prestarem.
Quando
da
inspeção
realizada
em
2013
constatou-se que havia uma paciente que era a “cozinheira” e que
estava alegadamente de alta. Outrossim, mesmo antes da “alta” era
quem cozinhava. Outra interna era obrigada a prestar serviços como
“auxiliar de cozinha”. Caso assim não fizesse, recebia punições e o
pouco de autodeterminação que tinha, como fumar um cigarro, lhe era
tolhido como forma de coação para trabalhar.
Os “monitores” eram outros pacientes que já
estavam há mais tempo na clínica e recebiam a denominação de
“GAP´S” (Grupo de Apoio ao Paciente).
Figura 15: Publicidade de serviços como cozinheira e auxiliares, conselheiros, personal
trainer
13.
VIOLAÇÃO DA LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E
CRENÇA RELIGIOSA
Outra
intolerável
violação
está
na
obrigatoriedade de os internos comungarem da crença dos requeridos,
que se auto-denominam “pastores” e impõem aos pacientes deveres
como a participação em reuniões religiosas e leitura de textos
relacionadas à crenças e suas liturgias.
Dentre os direitos e garantias individuais está
arrolada a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença.
Não se está a tentar impedir a propagação de
uma religião específica ou de crenças em Deus. O que não se pode
tolerar é a imposição, a compulsoriedade de participação em liturgias
religiosas.
A documentação encartada é robusta para
demonstrar essa violação. Não só havia obrigação de ouvir exortações
religiosas, como não se podia contrariar ou questionar as questões
postas. Tudo, sempre, sob pena de punições.
14.
VIOLAÇÃO DE NORMAS SANITÁRIAS
Outrossim, no local, cuja situação da cozinha
era precária, havia ainda alimentos com a data de validade vencida.
Não bastasse, alguns internos tomavam água
em copos de plástico, que deveriam ser descartáveis, mas que eram
reaproveitados
e
inclusive
identificar a quem pertenciam.
ganhavam
uma
“etiqueta”
para
Havia “copos” feitos com latas de refrigerante e
sucos. Os objetos ficavam expostos ao tempo, eram utilizados pelos
internos e sequer eram lavados.
Figura 16: Copo descartável reutilizado e identificado com o nome de seu usuário
Não havia condições minimamente higiênicas
para o acondicionamento dos “copos”.
Figura 17: "Copos" feitos de lata de refrigerante e suco reutilizadas
Ainda, conforme se verifica dos relatórios da
Vigilância Sanitária que instruem esta ação, havia um número
excessivo de leitos por quarto e medicação restrita sem prescrição
médica estocada no local.
Outro
absurdo
constatado:
os
requeridos
trouxeram de um Mc Donald´s um copo de refrigerante cheio de
catchup para que os internos utilizassem em suas refeições, de modo
a evitar o custo da compra de um pote de catchup em condições
próprias para consumo.
Figura 18: Copo do Mc Donald´s cheio de catchup recolhido da loja e guardado na geladeira
para utilização pelos internos nas refeições
Os internos ainda relataram que os banhos
duravam apenas cinco minutos, independentemente da necessidade dos
internos. Ainda, havia a possibilidade de se tomar apenas um banho
por dia.
No local, durante a inspeção, foi constatado que
nos relógios de água e luz eram dispostos imãs que tinha por
função segurar os ponteiros dos medidores, impedindo que eles
girassem e apontassem o consumo de água e energia.
Foi instaurado inquérito policial para investigar
a prática de furto.
EM SUMA, as violações, os maus tratos, as
torturas físicas e psicológicas, as ilicitudes e as irregularidades
encontradas e praticadas pelos requeridos apenas denotam que não
possuem eles condições de continuar a prestar serviço de atenção a
pessoas dependentes de substâncias psicoativas ou que precisem de
tratamento para saúde mental.
São
desnecessárias
palavras,
até
mesmo
porque difícil encontrá-las, para descrever tamanha falta de
respeito e de humanidade.
Atitudes como as acima descritas atentam
contra os próprios princípios constitucionais que servem de base para o
Estado Democrático de Direito, nos quais se fundamentam a nossa
República, dentre eles, o maior de todos: a Dignidade da Pessoa
Humana, núcleo essencial da Constituição da República e norteador do
qualquer comportamento humano.
III.
DO DIREITO
Ao refundar a República do Brasil em 1988 os
Constituintes elencaram a cidadania e a dignidade da pessoa humana
como fundamentos da democracia a ser instalada (CR, art. 1º).
Arrolaram
como
objetivos
fundamentais
da
nova
República:
a
construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do
desenvolvimento
nacional;
a
erradicação
da
pobreza
e
da
marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais; e,
ainda, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,
sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CR, art.
3º).
O artigo 5º, caput, da Constituição da República
estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se ao brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade,
à segurança e à propriedade, nos termos do seus 78 incisos.
Trata-se de um rol meramente exemplificativo,
na medida em que os direitos e garantias expressos na Constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados,
ou dos tratados internacionais.
Os direitos fundamentais possuem eficácia
irradiante2, seja para o Legislativo ao elaborar a lei, sea para a
Administração Pública ao “governar”, seja par ao Judiciário ao resolver
eventuais conflitos.
De há muito já se sedimentou que os direitos
fundamentais podem e devem ser aplicados de forma horizontal, é
dizer, no âmbito das relações privadas, especialmente diante de
atividades privadas que tenham um certo “caráter público”3.
Conforme leciona a mais abalisada doutrina4,
além
dos
direitos
fundamentais,
é
necessário
se
observar
os
denominados deveres fundamentais. Isto porque, muita vez, o direito
Daniel Sarmento.
Lenza, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 2012.
4 D. Dimoulis, L. Martins. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais.
2
3
de um certo indivíduo depende do dever de outro de não violar ou de
não impedir a concretização do referido direito.
Assim, coroando a necessária intervenção do
Ministério Público e da Defensoria Pública neste caso concreto, vale
repisar que é cediça a possibilidade de particulares lesarem direitos
humanos alheios. A constatação deste terrível predicado advém de
construções doutrinárias que culminaram na teoria da eficácia
horizontal dos Direitos Humanos. Confira-se, a propósito, a lição de
Gilmar Mendes:
___________________________________________________
Ganhou
alento
a
percepção
de
que
os
direitos
fundamentais possuem uma feição objetiva, que não
somente obriga o Estado a respeitar os direitos
fundamentais, mas que também o força a fazê-los
respeitados
pelos
próprios
indivíduos,
nas
suas
relações entre si. Ao se desvendar o aspecto objetivo dos
direitos
fundamentais,
abriu-se
à
inteligência
predominante a noção de que esses direitos, na verdade,
exprimem os valores básicos da ordem jurídica e social,
que devem ser prestigiados em todos os setores da vida
civil, que devem ser preservados e promovidos pelo
Estado como princípios estruturantes da sociedade. O
discurso majoritário adere, então, ao postulado de que
"as normas sobre direitos fundamentais apresentam,
ínsitas a elas mesmas, um comando de proteção, que
obriga o Estado a impedir que tais direitos sejam
vulnerados também nas relações privadas".
Tudo isso contribuiu para que se assentasse a doutrina
de que também as pessoas privadas podem estar
submetidas aos direitos fundamentais. A incidência
das normas de direitos fundamentais no âmbito das
relações privadas passou a ser conhecida, sobretudo a
partir dos anos cinquenta, como o efeito externo, ou a
eficácia
horizontal,
dos
direitos
fundamentais
(a
drittwirkung do Direito alemão)1 4 8 . Desse efeito vem-se
extraindo desdobramentos práticos não negligenciáveis,
que traçam novas perspectivas para o enfrentamento de
questões quotidianas.
O tema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais
veio a empolgar estudos e decisões judiciais em todos os
países em que o nosso modelo constitucional se abebera,
valendo notar que a Constituição portuguesa, por
exemplo, chega a proclamar que os direitos fundamentais
vinculam também as entidades privadas. (MENDES,
Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martires; BRANCO,
Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional.
Saraiva. 4 ed. p. 310) (grifei).
________________________________________________________
Sucintamente, a mencionada teoria foi elaborada a
partir da constatação de que, ainda que a própria pessoa consinta com
alguma restrição em relação aos seus direitos fundamentais, tais
violações não serão legitimadas. A autonomia da vontade, dessa forma,
é limitada pela prevalência dos direitos humanos. O caso paradigmático
da teoria é o do “arremesso de anões” na França: mesmo que anões
consintam em ser arremessados, por meio de um canhão, em um
espetáculo circense, tal evento deverá ser proibido, por atentar à
dignidade humana.
O dever de efetivação dos direitos fundamentais
se relaciona, sobretudo, com os direitos sociais e garantias das
instituições públicas e privadas. Estamos diante
da necessidade de
atuação positiva do Estado, passando-se a falar em um estado que tem
o dever de realizar os direitos, aquela ideia de Estado prestacionista.
Nos termos do art. 5º, inciso III, da CRFB,
ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou
degradante, sendo que a lei considerará crime inafinaçável a prática de
tortura (Lei nº 9.455/97).
A dignidade humana5 proclama o valor distinto
da pessoa humana e tem, como consequência lógica, a afirmação de
direitos específicos de cada ser humano, sem distinções de gênero, raça,
cor, credo, sexo e outras. Objetivo e fundamento dos direitos humanos
que dá unidade ao sistema constitucional brasileiro.
Inicialmente, sua justificação constitucional
foi
atribuída
constitucionais
ao
jusnaturalismo.
como
paradigmas
Com
da
a
evolução
organização
dos
dos
textos
Estados
Democráticos de Direito, sua positivação foi considerada necessária
para permitir uma interpretação do texto constitucional consentânea
com os respectivos momentos históricos, buscando-se, ao mesmo
tempo, preservar as conquistas dos direitos fundamentais e promover
sua plena realização.
As
concepções
em
voga
destacam
suas
dimensões individual, coletiva e personalista. A individual pressupõe
que cada ser humano, cuidando dos seus interesses, protege e realiza
os interesses da coletividade; perspectiva característica do liberalismo
burguês presente na Revolução Francesa e que impõe limites à ação do
Estado sobre a esfera do indivíduo. Esta concepção coloca o
ordenamento jurídico sob uma interpretação
que
privilegia
o
indivíduo em detrimento do coletivo.
A dimensão coletiva prioriza o bem coletivo e
global, apesar de salvaguardar os interesses individuais; os interesses
da coletividade devem prevalecer sobre os individuais quando houver
conflito entre eles; os direitos da pessoa humana não são absolutos,
5
D. Dimoulis. Dicionário de Direito Constitucional. 2012.
mas sempre passíveis de interpretação no âmbito das finalidades do
coletivo.
Por fim, a corrente personalista caracteriza-se
por buscar a harmonia, por meio da interpretação das normas
jurídicas, entre os valores individuais e os coletivos.
A CRFB prevê, em seu art. 1º, III, a dignidade
da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de
Direito brasileiro. Trata-se de norma constitucional que deve balizar
toda e qualquer ação do ente estatal e de seus agentes, determinando
seus parâmetros em face dos objetivos traçados para os poderes
constituídos da República. A CRFB consagra, também, a inviolabilidade
da intimidade, do domicílio dos indivíduos, da vida privada, da honra e
da imagem das pessoas no art. 5º, X, XI e XII. As disposições
constitucionais citadas revelam que, no caso brasileiro, o legislador
constituinte buscou dispensar tratamento unitário a essa categoria de
direitos fundamentais, inclusive para poder dispor sobre seus limites no
meio coletivo e de modo a torná-los factíveis de realização pelos
poderes constituídos da República, a saber, Judiciário, Legislativo e
Executivo.
Apesar de a dignidade da pessoa humana ser
conceito sujeito a múltiplas interpretações, há certo consenso, na
doutrina, acerca de tratar-se de princípio de direito fundamental, o qual
determina interpretação sobre os direitos da pessoa, revelando um
minimun jurídico invulnerável que todo estatuto político deve
assegurar. O texto constitucional busca assegurar a possibilidade de o
indivíduo encontrar meios para promover o pleno desenvolvimento de
sua personalidade. Para tanto, o indivíduo deve ter assegurada, para si,
a possibilidade de autodeterminar seu destino, o que tem levado a
doutrina a afirmar acerca da autodisponibilidade de exercício e fruição
da dignidade da pessoa humana.
Perez Luño destaca que a dignidade da
pessoa humana possui duas dimensões constitutivas: uma negativa
e outra positiva. Aquela significa que a pessoa não venha a ser objeto
de ofensas ou humilhações. Daí o nosso texto constitucional dispor,
coerentemente, que “ninguém será submetido a tortura nem a
tratamento desumano ou degradante” (art. 5º, III). Com efeito, “a
dignidade – ensina Jorge Miranda – pressupõe a autonomia vital da
pessoa, a sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais
entidades públicas e às outras pessoas”.
O
princípio
da
dignidade
humana6
é
o
fundamento filosófico e jurídico dos direitos humanos e se expressa
nestes direitos, funciona também como metanorma, indicando como
devem ser interpretadas e aplicadas as outras normas e princípios, em
especial as normas definidoras de direitos fundamentais, ampliando o
seu sentido, reduzindo-os ou auxiliando em conflitos entre direitos
fundamentais. A dignidade da pessoa humana é a
chave
de
interpretação material das demais normas jurídicas.
Com o estudo da antropologia filosófica e da
filosofia do direito, pode-se estabelecer, com maior precisão, os
contornos do princípio da dignidade da pessoa humana, que é uma
unidade formada de corpo e alma. O Tribunal Constitucional alemão
adotou essa posição em decisão tomada no ano de 1981. Antonio
Junqueira Azevedo estabelece que a dignidade traduz-se em respeito
absoluto à vida humana.
Desde os horrores da Segunda Guerra Mundial,
a comunidade internacional traçou, em 1945, a meta de “preservar as
gerações vindouras dos flagelos da guerra”, que deveria ser alcançada
por meio de um sistema de segurança coletiva, através da ONU.
Concluiu-se
6
que
todos
os
Estados-Membros
deveriam
cooperar
MAGALHÃES, Leslei Lester dos Anjos. A Dignidade da Pessoa Humana e o Direito à Vida. 2012.
estreitamente em todas as áreas da vida internacional. Por meio da
cooperação, graves violações dos direitos humanos deveriam ser
evitadas
e
boas
experiências,
trocadas.
Essa
abordagem
está
consubstanciada no art. 55 da Carta das Nações Unidas.
A
Declaração
Universal
dos
Direitos
do
Homem, já no seu preâmbulo reconhece a dignidade inerente e os
direitos inalienáveis de todos os membros da sociedade como condição
para liberdade, justiça e paz no mundo. Em seus trinta artigos, são
listados direitos políticos e liberdades civis (arts. 1–22), bem como
direitos econômicos, sociais e culturais (arts. 23–27).
À primeira categoria pertencem, entre outros, o
direito à vida e à integridade física, a proibição da tortura, da
escravatura e de discriminação (racial), o direito de propriedade, o
direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, o direito à
liberdade de opinião e de expressão e à liberdade de reunião.
Preleciona
o
abalisado
doutrinador
constitucionalista André de Carvalho Ramos7 que a Declaração e
Programa de Ação da Conferência Mundial de Viena (1993) implantou,
em definitivo, o dever dos Estados de punir criminalmente os
autores de graves violações de direitos humanos para que seja
consolidado o Estado de Direito, tendo sido estabelecido que os
“Estados devem ab-rogar leis conducentes à impunidade de pessoas
responsáveis por graves violações de direitos humanos, como a tortura, e
punir criminalmente essas violações, proporcionando, assim, uma base
sólida para o Estado de Direito”.
Assim, ficou consagrada uma nova forma de
relacionamento entre a proteção dos direitos humanos e o direito penal,
com foco, em especial, no revigorado desejo do direito internacional dos
7
Ramos, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. 2012.
direitos humanos pela repressão penal aos violadores de direitos
humanos.
No plano infraconstitucional, conforme dispõe a
Lei Federal nº 10.216/01, as internações psiquiátricas de qualquer
natureza
(inclusive
as
involuntárias
ou
compulsórias)
somente
poderão ser realizadas mediante laudo médico circunstanciado que
caracterize os seus motivos e em estabelecimentos de saúde que
ofereçam leitos e serviços médicos ininterruptos.
O mesmo diploma estabelece que a pessoa
portadora desses transtornos tem direito a ser tratada com humanidade
e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando
alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na
comunidade (art. 2º, II); sendo protegida contra qualquer forma de
abuso e exploração (art. 2º, III); devendo o tratamento ser estruturado
de forma a oferecer assistência integral à pessoa, incluindo serviços
médicos, de assistência social, psicólogos, ocupacionais, de lazer, e
outros.
Ainda
que
fosse
possível
às
comunidades
receber pacientes involuntários, lhes é exigida a comunicação
individual de cada qual, no prazo de 72 horas, ao Ministério Público
estadual, conforme o disposto no art. 7º, parágrafo 1º, da referida Lei.
No entanto, a referida comunidade terapêutica
está promovendo internações involuntárias, à revelia das normas acima
mencionadas e dos regulamentos do Ministério da Saúde.
Com a reorganização da atenção psicossocial no
âmbito do Sistema Único de Saúde, disciplinada pela Portaria GM/MS
n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011, as comunidades terapêuticas
foram reconhecidas como componentes da rede de atenção, na
qualidade
de
“serviços
de
saúde
de
atenção
residencial”,
cuja
importância não se questiona à vista dos relevantes serviços que
prestam
em
saúde
mental,
especialmente
para
portadores
de
dependência química em decorrência de uso de substâncias psicoativas.
Não obstante, não podem oferecer leitos de
internação e seus serviços não devem substituir a assistência
hospitalar, quando esta for necessária8.
Esta problemática, aliás, já fora antevista pela
Resolução da Diretoria Colegiada/ANVISA nº 29/2011, preconizando
que a permanência de qualquer usuário (ou residente) somente pode ser
feita com o seu consentimento expresso:
Art. 15. Todas as portas dos ambientes de uso
dos residentes devem ser instaladas com travamento simples, sem o uso
de trancas ou chaves.
(...)
Art. 19. No processo de admissão do residente, as
instituições devem garantir:
(...)
III - a permanência VOLUNTÁRIA;
IV-a possibilidade de interromper o tratamento
a qualquer momento, resguardadas as exceções de risco imediato de vida
para si e ou para terceiros ou de intoxicação por substâncias psicoativas,
avaliadas e documentadas por profissional médico;”
Tais serviços têm por função a oferta de um
ambiente protegido, técnica e eticamente orientados, que forneça
suporte e tratamento aos usuários abusivos e/ou dependentes de
substâncias psicoativas, durante período estabelecido de acordo com
programa terapêutico adaptado às necessidades de cada caso. É um
Of. Circular nº 17/12-CAO/Saúde-i. Ministério Público do Estado do Paraná - Centro de Apoio
Operacional das Promotorias de Proteção à Saúde Pública.
8
lugar cujo principal instrumento terapêutico é a convivência entre os
pares. Oferece uma rede de ajuda no processo de recuperação das
pessoas,
resgatando
a
cidadania,
buscando
encontrar
novas
possibilidades de reabilitação física e psicológica, e de reinserção social.
A regra vale mesmo para aquelas comunidades
terapêuticas que não sejam contratadas/conveniadas com o SUS, pois
ao exercerem reconhecidamente ações de atenção à saúde mental
precisam observar as normas sanitárias específicas de funcionamento,
nos termos do art. 22, da Lei n. 8080/90.
Ora,
no
caso
presente,
pelas
provas
documentais e testemunhais produzidas, a entidade em questão está
muito distante de ser considerada COMUNIDADE TERAPÊUTICA, já
que o tratamento dispensado aos seus residentes não leva em
consideração o respeito à cidadania e à dignidade de cada uma dessas
pessoas que se encontram numa situação extremamente delicada e
frágil, amarradas que estão ao vício do álcool e das drogas.
Com
efeito,
no
momento
em
que
esses
dependentes mais precisam de um tratamento que lhes possibilite uma
recuperação, a fim de resgatar-lhes auto estima, proporcionando-lhes
uma reabilitação física e psicológica, OSMAR, VILMA e BRUNO
oferecem-lhes castigos físicos, psíquicos e morais, desrespeitando a
dignidade e a integridade de cada um. Sua entidade não oferece sequer
programa terapêutico para os seus residentes, privando-os da liberdade
mais elementar.
Para mais, para ministração de medicamentos,
é
necessário
contratar
farmacêutico
para
o
dispensário
de
medicamentos, bem como abrir livro de controle dos medicamentos
controlados.
Outras considerações devem ser feitas e aqui
residem os principais abusos. Existe uma grande diferença entre
COMUNIDADE TERAPÊUTICA e CLÍNICA DE INTERNAÇÃO PARA
TRATAMENTO DE DEPENDENTES QUÍMICOS. Como visto a entidade
não pode ser considerada uma comunidade terapêutica por violação a
todas as exigências elencadas acima, quanto mais praticar atos de
clínica de internação, que é o que estamos vendo na prática,
principalmente
após
os
últimos
acontecimentos
envolvendo
o
estabelecimento e seus representantes legais e fáticos.
A diferença marcante entre tais entidades é a
voluntariedade da submissão ao tratamento, aliás, o sucesso de
qualquer tratamento fica totalmente comprometido quando não há
aceitação por parte do internado.
Como COMUNIDADE TERAPÊUTICA, na qual
vigora o princípio da voluntariedade na submissão ou aderência ao
tratamento, a CLÍNICA RESTAURAÇÃO jamais poderia conduzir
qualquer pessoa às suas dependências, sem consentimento, mesmo
que houvesse termo assinado por parente ou responsável, pois tal
atividade é privativa de CLÍNICAS DE RECUPERAÇÃO. Aqui está o
grande abuso praticado pela requerida que tem gerado repercussão,
inclusive criminal, para seus responsáveis.
A matéria, como já pontado, vem disciplinada
pela Portaria RDC n.º 29/11, da ANVISA (Agência Nacional de
Vigilância Sanitária), que estabelece Regulamento Técnico disciplinando
as exigências mínimas para o funcionamento de serviços de atenção a
pessoas com transtornos decorrentes do uso ou abuso de substâncias
psicoativas, segundo modelo psicossocial, também conhecidos como
Comunidades Terapêuticas.
As pessoas em avaliação que apresentarem
grau de comprometimento grave no âmbito orgânico e/ou psicológico
não são elegíveis para tratamento nestes serviços, devendo ser
encaminhados a outras modalidades de atenção, no caso, para clínicas
especializadas. Recomenda-se a Comunidade Terapêutica para paciente
com comprometimento leve ou moderado.
Em síntese, o que se defende é que não se está
diante de problemas pontuais, relativos à falta de um ou outro
profissional, à condição de um ou outro aposento, etc. Tem-se, na
verdade, um problema até mesmo de método/essência, já que se
trabalha mediante a restrição de liberdade, fora das hipóteses
legais, e já que se trabalha mediante técnicas que aniquilam a
dignidade e o senso de valor do dependente químico, quais sejam: a
sedação por períodos longos, a restrição às visitas familiares, a
aplicação de castigos corporais e de contenção física, e a ministração
indiscriminada de remédios por pessoas sem habilitação para tanto. E
não é preciso falar que tais técnicas, além de ilegais, tem índice de
sucesso muito baixo.
Relevante, também, a transcrição do artigo 33,
inciso III da Lei Complementar Estadual 791/95, que estabeleceu o
Código de Saúde no Estado de São Paulo:
“Artigo 33 - No tocante à saúde mental, o SUS,
estadual e municipal, empreenderá a substituição gradativa do procedimento de
internação
hospitalar
pela
adoção
e
o
desenvolvimento
de
ações
predominantemente extra-hospitalares, na forma de programas de apoio à
desospitalização que darão ênfase à organização e manutenção de redes de
serviços e cuidados assistenciais destinada a acolher os pacientes em seu
retorno ao convívio social, observados, ainda, os seguintes princípios:
[...]
III - Toda pessoa acometida de transtorno mental terá
direito a tratamento em ambiente o menos restritivo possível, o qual só será
administrado depois de o paciente estar informado sobre o diagnóstico e os
procedimentos terapêuticos, e expressar seu consentimento;
IV - A internação psiquiátrica será utilizada
como último recurso terapêutico, e objetivará a mais breve recuperação do
paciente;
V - Quando necessária a internação de pessoa
acometida de transtorno mental, esta se dará, preferentemente, em hospitais
gerais; e
VI - A vigilância dos direitos indisponíveis dos
indivíduos
assistidos
será
realizada
de
forma
articulada
pela
autoridade sanitária local e pelo Ministério Público, especialmente na
vigência de internação psiquiátrica involuntária”.
Além
disso,
constituindo-se
a
requerida
CLÍNICA RESTAURAÇÃO como pessoa jurídica de direito privado, há
que se observar também a ótica do Código de Defesa do Consumidor
(Lei Federal nº 8.078/90), sendo considerado fornecedor, nos moldes do
seu art. 3º, pois desenvolve atividade de prestação de serviços, e seus
clientes, na qualidade de consumidores, utilizam os serviços como
destinatários finais (art. 2º). No que tange à proteção da saúde do
consumidor, necessário transcrever do mesmo diploma legal:
“Art. 4º. A Política Nacional das Relações de
Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o
respeito à dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses
econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e
harmonia das relações de consumo (...)”.
“Art. 8º. Os produtos e serviços colocados no mercado
de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores
(...)”.
“Art.10. O fornecedor não poderá colocar no mercado
de consumo produto ou serviço que sabe ou que deveria saber apresentar alto
grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança”.
Oportuno citar, a título meramente ilustrativo,
o teor de duas resoluções (Resolução CFM nº 1.408/94 e Resolução
CFM
nº
1.598/2000),
que
especificam,
de
forma
taxativa,
os
procedimentos a serem desenvolvidos, visando, precipuamente, evitar
atuações irregulares, de forma a causar violações aos direitos
fundamentais.
A
primeira,
em
síntese,
regulamenta
sobre
as
necessidades de “consentimento esclarecido do paciente” (art. 4º e
parágrafo
único);
a
“proibição
de
“procedimentos
lesivos
à
personalidade e à saúde física e psíquica dos pacientes” (art. 5º,
parágrafo II), além de outras. A segunda determina que “um paciente
em tratamento psiquiátrico somente deve ser submetido à contenção
física por prescrição médica, devendo ser diretamente acompanhado,
por um auxiliar do corpo de enfermagem durante todo o tempo que
estiver contido” (art. 11);
Como se vê, basta uma simples análise da
legislação para se constatar as graves irregularidades da comunidade
terapêutica.
Não é por outra razão que a comunidade
terapêutica se reveste das seguintes características de abordagem:
_______________________________________________
Deve ser aceita voluntariamente. Não se destina a
todo tipo de dependente. Isso ressalta a importância
fundamental da triagem, como início do processo
terapêutico. Muitas vezes, algumas CTs, por meio de
suas equipes, se sentem onipotentes e ‘adoecem’
acreditando que, se o residente não quer ficar, é
porque não quer recuperação. Não consideram que
o residente tem o direito de escolher como e onde
quer se tratar. Deve reproduzir, o melhor possível, a
realidade exterior para facilitar a reinserção. Deve
fornecer um modelo de tratamento residencial
altamente estruturado. Atua por um sistema de
pressões provocadas de modo artificial. Estimula a
explicação da patologia do residente, diante dos
partes.
Os
pares
servem
de
espelho
da
consequência social de atos do residente. Há um
clima de tensão afetiva. O residente é o principal
ator do próprio tratamento. A equipe oferece apenas
apoio e ajuda. (DIEH, Alessandra; CORDEIRO,
Daniel
Cruz;
Comunidade
Laranjeira,
Terapêuticas.
Ronaldo
In:
(Orgs.).
Dependência
química, prevenção, tratamento e políticas públicas.
Porto Alegre: Artmed, 2011, Cd Rom, p.63).
_______________________________________________
Nesse sentido, lamentavelmente observa-se
que TODOS estes preceitos fundamentais foram desrespeitados
pela Comunidade-ré e por seus representantes e prepostos que, de
forma
inescrupulosa,
submeteram
os
internos
a
condições
desumanas e inacreditáveis, justificando a propositura desta ação
como busca de tutelas urgentes e severas.
Diante
destas
irregularidades,
torna-se
imprescindível a intervenção judicial para que tal entidade de direito
privado, prestadora de serviços de saúde e, portanto, de relevância
pública, e os seus representantes e prepostos deixem de colocar em
risco a saúde e a vida das pessoas que recorrem aos seus préstimos.
A suspensão das atividades pela comunidade-ré
é imperativa, sendo ABOLUTAMENTE EVIDENTE que não pode
continuar a funcionar, ainda que parcialmente, devendo, pois, ser
INTEGRALMENTE
INTERDITADA,
com a retirada de todos os
pacientes ali internados, caso ainda haja alguém no local, já que não
houve interdição administrativa pela Viglância Sanitária, em que pese
as inúmeras irregularidades constatadas in loco, em razão de seu
COMPLETO desrespeito a todos os preceitos legais cristalizados em todo
nosso ordenamento jurídico.
IV.
DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO E
DA DEFENSORIA PÚBLICA
O Ministério Público, instituição essencial à
Justiça, detêm, dentre suas atribuições, a defesa da ordem jurídica, do
regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis,
dispondo de legitimidade para a tutela preventiva e repressiva dos
interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos e individuais
indisponíveis, tal como preceituam os artigos 127 e 129, inciso III, da
Constituição Federal, o art. 103, inciso VIII, da Lei Complementar
Estadual nº. 734/93 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de
São Paulo), os arts. 1º e 4º, da Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil
Pública).
A
missão
constitucional
do
Ministério
Público, como visto, é agir em defesa dos interesses difusos e
coletivos e individuais indisponíveis (art. 129, III da Constituição
Federal).
Mas não é só.
A
Lei
nº
10.216/2201
dispõe
sobre
a
legitimidade do Ministério Público, no momento em que preconiza
que os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno
mental são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto
à
raça,
cor,
sexo,
orientação
sexual,
religião,
opção
política,
nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de
gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra,
bem como são direitos da pessoa portadora de transtorno mental ter
acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas
necessidades; ser tratada com humanidade e respeito e no interesse
exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação
pela inserção na família, no trabalho e na comunidade, de ser protegida
contra qualquer forma de abuso e de exploração e de ser tratada em
ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis.
Ainda nesse contexto, cumpre também ao
Ministério Público, em seu papel constitucional, promover a ação
competente para a tutela jurídica das pessoas idosas, questão de
interesse social e coletivo. Na lição de Hugo Nigro Mazzilli, a atuação
do Ministério Público na proteção das pessoas idosas visa assegurar e
preservar seus direitos sociais; criar melhores condições para o
desenvolvimento de sua autonomia, integração e efetiva particiação na
sociedade; defender-lhes o direito à vida, à saúde, ao amparo, à
cidadania, à liberdade, à dignidade, à segurança, ao lazer e ao bemestar e, ainda, buscar erradicar qualquer forma de desigualdade,
discriminação,
marginalização
e
preconceito
decorrentes
de
sua
condição.
O Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741/03, no
artigo 74, norma que integra o microssistema processual coletivo,
dispõe que incumbe ao Ministério Público, dentre outras, instaurar o
inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos e
interesses difusos ou coletivos, individuais indisponíveis e individuais
homogêneos do idoso; atuar como substituto processual do idoso em
situação de risco; promover inspeções e diligências investigatórias;
requisitar informações e documentos particulares de instituições
privadas; zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais
assegurados ao idoso, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais
cabíveis;
inspecionar
as
entidades
públicas
e
particulares
de
atendimento e os programas de que trata esta lei, adotando de pronto
as medidas administrativas ou judiciais necessárias à remoção de
irregularidades verificadas.
De outro lado, o Ministério Público também
possui legitimidade para atuar em benefício de pessoas portadoras de
deficiência, quer se trate de limitação física ou mental, em sede de
interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Assim sendo,
no âmbito da ação civil pública, podem ser ajuizadas medidas judiciais
relativas com saúde, área ocupacional, dentre outras.
No caso em questão a legitimidade relaciona-se
ao objeto da ação, pois durante o transcurso das investigações
promovidas pela Promotoria de Justiça local, nos autos de inquérito
civil nº 14.0632.0000132/2011, foi constatado que os requeridos
violaram direitos inerentes a pessoas dependentes químicos,
pessoas idosas, entre outros que não se teve notícia e possivelmente
não se conseguirá determinar durante estadia na COMUNIDADE
TERAPÊUTICA denominada Clínica RESTAURAÇÃO, sem que houvesse
instalações
físicas
adequadas,
tanto
de
habitualidade
como
de
atendimento por profissionais qualificados, alimentação adequada,
segurança, acompanhamento médico adequado, medicação de uso
controlado sem a devida prescrição médica e manutenção de seus
pacientes em cárcere privado e isolamento familiar.
Não bastasse a tutela dos direitos individuais
indisponíveis da pessoa cometida de doença mental, no caso em tela,
pessoas
que
apresentam
dependência
química
ou
psíquica
de
substância entorpecente, verifica-se, igualmente, que o artigo 3º, da Lei
nº 10.216/2001 determina que é responsabilidade do Estado o
desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a
promoção de ações de saúde, com a devida participação da sociedade e
da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental,
assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência
em saúde a essas pessoas.
A citada lei obriga as entidades de longa
permanência a firmar contrato de prestação de serviço com pessoa
cometida de saúde mental abrigada, caracterizando “a natureza
contratual dos serviços de atendimento aos doentes mentais em clínica
de recuperação, o que faz incidir o Código de Defesa do Consumidor, de
modo a salvaguardar a qualidade da prestação.
Desse modo, aplica-se a Lei nº 8.078/90 aos
contratos de prestação de serviço por entidade de longa permanência ou
casa-lar, diante da vulnerabilidade inconteste em que se encontra o
doente mental, havendo desequilíbrio em relação à comunidade
prestadora de serviços, que dita as regras, sendo, pois, uma relação
entre desiguais. Uma vez compreendida essa relação como de consumo,
aplica-se aos contratos de prestação de serviços em tela todos os
princípios do Código de Defesa do Consumidor a esse respeito.
Outrossim,
incide
o
princípio
geral
da
vulnerabilidade, afinal, o doente mental se mostra a parte mais frágil da
relação, de modo que merece especial proteção, devendo haver em seu
favor: a facilitação de seu acesso à Justiça; o estabelecimento da
responsabilidade objetiva, aliada à inversão do ônus da prova; a
interpretação das cláusulas e normas jurídicas sempre de forma mais
favorável ao idoso consumidor – art. 4º, II, CDC -, dentre outros
princípios também aplicáveis ao respectivo contrato.
Assim, também com fundamento no art. 1º, inc.
II, da Lei Federal nº 7.347/85, que prevê a tutela dos interesses do
consumidor por ação civil pública, está legitimado o Ministério Público à
propositura da presente ação civil pública.
O interesse de agir segue no mesmo caminho,
pois o exame dos fatos e dos fundamentos, por si só, enseja o
reconhecimento de que há necessidade do ajuizamento da ação civil
pública para a proteção dos direitos das pessoas acometidas de
doença mental que se encontravam abrigadas e de tantas outras
que podem ser afetadas pela continuidade dos serviços prestados
pelos requeridos aqui nesta cidade ou em qualquer outro lugar.
Interessa,
pois,
à
sociedade,
que
sejam
adotadas medidas eficazes, a fim de fazer cessar o dano e que
sejam reparados os prejuízos sofridos pelas pessoas lesadas e pela
coletividade indeterminada que é afetada quando há tamanha e
flagrante violação de direitos humanos, especificamente quanto aos
dependentes químicos e psíquicos de substância entorpecente e pessoas
Justifica-se, pois, plenamente, a atuação ministerial no caso.
Salienta-se que a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 atribuiu ao Ministério Público, dentre
outras coisas, o dever de defender a ordem jurídica, o regime
democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis (art.
127), ao mesmo tempo em que lhe confiou o zelo pelo efetivo respeito
dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos
nela assegurados, promovendo as necessárias medidas à sua garantia
(art. 129, inc. II). No mesmo sentido dispõem a Constituição Estadual, e
a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público.
A Carta Política não deixa qualquer dúvida a
respeito da natureza jurídica do bem saúde. É um direito social (art.
6º), enquadrado expressamente, ainda, como o único serviço dito de
relevância pública (art. 197), cujo traço distintivo em face de qualquer
outro, em tal qualificação, repousa basicamente na primariedade e
essencialidade do seu objeto em relação à sobrevivência humana.
A par disso, confirma-se a necessidade de
fortalecimento de todas as instâncias de controle das práticas
sanitárias, ressaltando, neste ponto, o papel constitucionalmente
atribuído ao parquet, que tem o dever, entre outras coisas, de zelar
pelos serviços de relevância pública.
Além
de
coletivamente
legitimado,
em
relação ao direitos individuais homogêneos também afetados pela
conduta dos requeridos, evidenciada está a legitimação ministerial,
haja vista que os lesados estão dispersos por todo o país (Acre, Mato
Grosso, Brasília, Goiás, Rio de Janeiro, Minas Gerais, etc.) e as
atividades da clínica, nos moldes irregulares constatados, se protraem
por anos, de modo que há demasiado número de lesados e dispersão
relevante das lesões individuais.
Portanto, diante do contexto constitucional,
extrai-se que o Ministério Público, de modo genérico, promove todas as
medidas necessárias para a restauração do respeito aos direitos
constitucionalmente assegurados. Consequentemente, clara está a
legitimidade postulatória naqueles casos de violação de normas que
acarretem prejuízos a serviços de relevância pública, devendo sua
defesa ser feita através de ação civil pública, na medida em que há
ameaça de lesão à saúde de toda a coletividade, com destaque para um
grupo de pessoas.
No mais, a população visada pelas Rés é
facilmente captada como necessitada, em especial porque privadas de
liberdade e impedidas de realizar contato livre com o mundo externo.
Ademais, compõem grupo vulnerável, que necessita de atenção especial
do Estado.
Nesse sentido já decidiu o Superior Tribunal de
Justiça, exatamente em situação em que a discussão travada residia na
legitimidade ativa da Defensoria Pública. No caso, pontuou a Corte que
"quanto mais democrática uma sociedade, maior e mais livre deve ser o
grau de acesso aos tribunais que se espera seja garantido pela
Constituição e pela lei à pessoa, individual ou coletivamente", mormente
quando se busca tutelar direitos de grupos vulneráveis. Para o Superior
Tribunal de Justiça, "a categoria ético-política, e também jurídica, dos
sujeitos vulneráveis inclui um subgrupo de sujeitos hipervulneráveis,
entre os quais se destacam, por razões óbvias, as pessoas com
deficiência física, sensorial ou mental". Destarte, "é dever de todos
salvaguardar, da forma mais completa e eficaz possível, os interesses e
direitos das pessoas com deficiência, não sendo à toa que o legislador
refere-se a uma "obrigação nacional a cargo do Poder Público e da
sociedade" (Lei 7.853/89, art. 1°, § 2°, grifo acrescentado)9.
Destarte, a Defensoria Pública do Estado de
São Paulo tem legitimidade ativa para propor a presente ação, eis que,
como Instituição essencial à função jurisdicional, a qual incumbe a
defesa dos necessitados (art. 134 da CF/88 e art. 103 da CESP/89), é
Instituição pela qual se concretizam objetivos fundamentais da
República, como o de construir uma sociedade livre, justa e solidária, e
mais especialmente o de erradicar a pobreza e a marginalidade,
reduzindo as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, incs. I e III da
CF/88 c/c art. 3º da Lei Complementar Estadual 988/06).
Aliás, entre os objetivos da Defensoria Pública
estão a prevalência e efetividade dos direitos humanos e a garantia
dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório
(artigo 3ºA, III e IV da Lei Complementar 80/94).
Neste
contexto,
constitui
atribuição
institucional da Defensoria Pública promover ação civil pública para a
tutela
de
qualquer
interesse
difuso,
coletivo
e
individual
homogêneo (art. 5º, inc. VI, alínea ‘g’ da Lei Complementar Estadual
988/06), sendo que a todo e qualquer Defensor Público cumpre
executar referidas atribuições institucionais na defesa judicial, no
âmbito coletivo, dos necessitados (art. 50 da Lei Complementar
Estadual 988/06). Mais do que isso, é função institucional da
Defensoria Pública "promover a mais ampla defesa dos direitos
fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais,
9
REsp 931513 / RS, DJe 27/09/2010.
coletivos,
sociais,
econômicos,
culturais
e
ambientais,
sendo
admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua
adequada e efetiva tutela", reservando-se especial atenção para "a
defesa dos interesses individuais e coletivos da pessoa portadora de
necessidades especiais e de outros grupos sociais vulneráveis que
mereçam proteção especial do Estado" (artigo 4º, X e XI da Lei
Complementar 80/94).
A
legitimidade
em
tela,
outrossim,
é
conferida
à
Defensoria Pública pelo próprio artigo 5.° da Lei 7.347/85, verbis:
Art. 5. Têm legitimidade para propor a ação principal e a
ação cautelar:
I - o Ministério Público;
II - a Defensoria Pública;
III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios;
IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade
de economia mista;
V - a associação que, concomitantemente:
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos
termos da lei civil;
b)
inclua,
entre
suas
finalidades
institucionais,
a
proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem
econômica,
à
livre
concorrência
ou
ao
patrimônio
artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. (NR)
Dessa forma, indiscutível a legitimidade da
Defensoria Pública para o ajuizamento de Ação Civil Pública, mormente
para a tutela do direito de grupo hipervulnerável.
V.
DO DANO MORAL COLETIVO
A
reparação
por
danos
morais
é
direito
fundamental do indivíduo, previsto expressamente no artigo 5º, incisos
V e X da Constituição da República Federativa do Brasil.
No caso em apreço não é possível individualizar,
de forma inequívoca, quais e quantas pessoas foram afetadas direta ou
indiretamente pelas condutas transgressivas dos réus praticadas ao
longo dos anos.
Outrossim, todo o corpo coletivo é afetado
quando há violação de direitos fundamentais, ainda mais quando há
violação tão grave!
O ser humano, com fim em si mesmo, não pode
tolerar que mesmo após os degradantes exemplos das grandes guerras e
de país não democráticos, se continue a DESUMANIZAR tanto as
pessoas, reduzindo-as a objetos para consecução de fins ilícitos.
Nossas Cortes Superiores já reconheceram a
possibilidade de reconhecimento de dano moral coletivo até mesmo no
cause de fraudes a procedimentos licitatórios.
Como abaixo se verá, houve reconhecimento
pelo Tribunal de Justiça Bandeirante da existência de dano moral
coletivo indenizável na venda de bebidas alcoólicas à menores de idade.
Assim,
mesmo
que
não
houvesse
esses
exemplos pretorianos, é evidente a ocorrência de dano a todo o
corpo social quando a dignidade humana é tamanhamente violada.
Outrossim, não se pode mensurar quantas
pessoas foram atraídas pela publicidade enganosa que os requeridos
faziam em seu site e em contato com as pessoas que os procuravam em
busca de uma ilusória ajuda.
Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira10, o
dano moral “decorre de injusta violação à situação jurídica subjetiva
extrapatrimonial, tutelada pela ordem civil - constitucional através da
cláusula
geral
de
tutela
da
pessoa
humana
(através
da
sua
personalidade) que, por sua vez, se fundamenta no princípio maior de
dignidade da pessoa humana”.
Com a evolução da tutela judicial dos direitos
coletivos (em sentido lato), a partir do advento da Lei nº 7.347/85 e
fortalecida por uma série de dispositivos legais subsequentes, além do
viés constitucional trazido pela Carta Magna de 1988, firmou-se no
ordenamento jurídico brasileiro o entendimento de que também
merecem proteção jurídica aqueles direitos que extrapolam a esfera
estritamente individual, passando-se a tutelar os direitos de grupos,
classes ou categorias de pessoas, ainda que a reparação seja indivisível
entre seus titulares.
Sobre a proteção aos direitos transindividuais
no ordenamento jurídico, vale citar as palavras de Hugo Nigro Mazzilli11:
“Situados numa posição intermediária entre o interesse público e o
interesse privado, existem os interesses transindividuais (também
chamados de interesses coletivos, em sentido lato), os quais são
compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas (...). São
interesses que excedem o âmbito estritamente individual, mas não
chegam propriamente a constituir interesse público. (...) Sob o aspecto
processual, o que caracteriza os interesses transindividuais, ou de grupo,
não é apenas o fato de serem compartilhados por diversos titulares
individuais reunidos pela mesma relação jurídica ou fática. Mais do que
isso, é a circunstância de que a ordem jurídica reconhece a necessidade
“Instituições de Direito Civil”, volume II, 21ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 382
Mazzilli, Hugo Nigro, “A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo”, 24ª edição, São Paulo, Saraiva,
2011.
10
11
de que o acesso individual seja substituído por um acesso coletivo, de
modo que a solução obtida no processo coletivo não apenas deve ser apta
a evitar decisões contraditórias como, ainda, deve conduzir a uma
solução mais eficiente da lide, porque o processo coletivo é exercido em
proveito de todo o grupo lesado”.
Diante disto, é inegável que, ao reconhecer a
proteção jurídica na esfera transindividual, o ordenamento também
estendeu a noção de dano moral para a tutela jurídica dos direitos
difusos e coletivos.
Foi com este manifesto propósito que o Código
de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), por meio de seu artigo 6º,
inciso VI, reconheceu, como direito básico do consumidor, a prevenção,
proteção e a reparação de danos patrimoniais e morais, individuais,
coletivos e difusos.
Ressalte-se que as disposições processuais
daquele diploma cabem a quaisquer direitos transindividuais, e não só
aos consumidores, por conta da interação do Código de Defesa do
Consumidor e da Lei da Ação Civil Pública, os quais constituem, em
parte, um microssistema processual de tutela destes interesses e
direitos.
De qualquer forma, o artigo 1º da Lei 7.347/85,
com
redação
dada
pela
Lei
nº
8.884/94,
passou
a
prever
expressamente o cabimento das ações de responsabilização por
danos morais causados a quaisquer interesses difusos ou coletivos,
a serem regidas por aquela mesma Lei.
Inequívoca, portanto, a vontade do legislador
em atribuir a possibilidade de reparação de danos morais coletivos.
Isto se justifica porque os interesses de uma
coletividade, sendo ela sujeito de direitos, não se resumem a questões
patrimoniais, havendo também um elo de valores que a constitui,
cujo caráter é extrapatrimonial.
Na medida em que há ofensa antijurídica a
algum dos elementos que caracterizam aquela reunião de pessoas que
formam uma coletividade, afronta-se mais do que a moral individual
de cada um dos membros que a compõem, mas a do grupo como
um todo, independentemente do fato de eventualmente não ser
possível identificar seus componentes, nem tampouco ser impossível
atribuir sentimentos individuais a esta coletividade.
A conclusão lógica é que, se por um lado nem
todos os interesses transindividuais possuem caráter diretamente
patrimonial, por outro lado, deve haver instrumento hábil à reparação
judicial dos interesses extrapatrimoniais, o que se traduz pela valoração
do dano para fins indenizatórios, sob pena de se denegar o acesso à
justiça.
André de Carvalho Ramos12, ao reconhecer a
hipótese de da no moral coletivo, considera “... com isso, vê- se que a
coletividade é passível de ser indenizada pelo abalo moral, o qual, por
sua vez, não necessita ser a dor subjetiva ou estado anímico negativo,
que caracterizariam o dano moral na pessoa física, pode não ser o
desprestígio do serviço público, do nome social, a boa imagem de nossas
leis ou mesmo o desconforto da moral pública, que existe no meio social”.
Não obstante, é certo que resistência já houve
quanto à admissibilidade do dano moral coletivo no ordenamento
jurídico brasileiro, sob o errôneo argumento de que o dano moral
estaria vinculado à noção de dor ou sofrimento psíquico do indivíduo, o
que seria imensurável no âmbito dos direitos transindividuais.
RAMOS, André de Carvalho. A Ação Civil Pública e o Dano Moral Coletivo. Revista de Direito do
Consumidor nº 25. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 83.
12
Sobre o tema, explica mais uma vez Hugo
Mazzilli13 leciona que “não se justifica o argumento de que não pode
existir dano moral coletivo uma vez que o dano moral estaria vinculado à
noção de dor ou sofrimento psíquico individual. De um lado, os direitos
transindividuais nada mais são do que um feixe de lesões individuais; de
outro, mesmo que se recusasse o caráter de soma de lesões individuais
para o dano moral coletivo, seria necessário lembrar que hoje também se
admite uma função punitiva na responsabilidade civil, o que confere
caráter extrapatrimonial ao dano moral coletivo”.
É inevitável, portanto, que a consagração da
coletivização dos direitos enseje que institutos jurídicos clássicos como
o dano moral acompanhem tais mudanças e abandonem aquele
ultrapassado prisma exclusivamente individualista, a fim de que seja
garantida a efetiva tutela dos direitos transindividuais.
Destarte, ao se admitir no ordenamento jurídico
brasileiro o dano moral na esfera das pessoas jurídicas, o que fora
pacificado pela Súmula 227 do STJ, expurgou-se cabalmente a ideia de
dano moral limitado à dor ou sofrimento psíquico individual. Por tais
motivos, a reparabilidade dos danos morais causados à coletividade
tem recebido amplo acolhimento na jurisprudência brasileira,
tornando-se, inclusive, posição unânime na 2ª Turma do Superior
Tribunal de Justiça:
_______________________________________________
ADMINISTRATIVO-TRANSPORTE - PASSE LIVRE –
IDOSOS-DANO
MORAL
COLETIVO
-
DESNECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DA DOR E
DE SOFRIMENTO - APLICAÇÃO EXCLUSIVA AO
DANO MORAL INDIVIDUAL - CADASTRAMENTO DE
IDOSOS
PARA
USUFRUTO
DE
DIREITO
-
ILEGALIDADE DA EXIGÊNCIA PELA EMPRESA DE
13
Obra já citada.
TRANSPORTE - ART. 39, § 1º DO ESTATUTO DO
IDOSO
-
LEI
10741/2003
VIAÇÃO
NÃO
PREQUESTIONADO.
1. O dano moral coletivo, assim entendido o que é
transindividual e atinge uma classe específica ou
não de pessoas, é passível de comprovação pela
presença de prejuízo à imagem e à moral coletiva
dos
indivíduos
individualidades
enquanto
percebidas
síntese
como
das
segmento,
derivado de uma mesma relação jurídica-base.
2. O dano extrapatrimonial coletivo prescinde da
comprovação de dor, de sofrimento e de abalo
psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera do
indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e
coletivos.
3. Na espécie, o dano coletivo apontado foi a
submissão
dos
idosos
a
procedimento
de
cadastramento para o gozo do benefício do passe
livre,
cujo
deslocamento
foi
custeado
pelos
interessados, quando o Estatuto do Idoso, art. 39, §
1º exige apenas a apresentação de documento de
identidade.
4. Conduta da empresa de viação injurídica se
considerado o sistema normativo.
5. Afastada a sanção pecuniária pelo Tribunal que
considerou as circunstancias fáticas e probatória e
restando sem prequestionamento o Estatuto do
Idoso, mantém-se a decisão.
5. Recurso especial parcialmente provido.
(STJ,
REsp1057274/RS,
CALMON,
SEGUNDA
Rel.
Ministra
TURMA,
ELIANA
julgado
em
01/12/2009, DJe 26/02/2010).
_______________________________________________
Ou ainda, em outro aresto:
_______________________________________________
RECURSO ESPECIAL-DANO MORAL COLETIVOCABIMENTO-ARTIGO 6º, VI, DO
DEFESA
DO
CÓDIGO DE
CONSUMIDOR-REQUISITOS
-
RAZOÁVEL SIGNIFICÂNCIA E REPULSA SOCIAL OCORRÊNCIA, NA ESPÉCIE - CONSUMIDORES
COM DIFICULDADE DE LOCOMOÇÃO-EXIGÊNCIA
DE
SUBIR
LANCES
DE
ESCADAS
PARA
ATENDIMENTO - MEDIDA DESPROPORCIONAL E
DESGASTANTE-INDENIZAÇÃO-FIXAÇÃO
PROPORCIONAL
-DIVERGÊNCIA
JURISPRUDENCIAL
-
AUSÊNCIA
DEMONSTRAÇÃO-RECURSO
DE
ESPECIAL
IMPROVIDO.
A dicção do artigo 6º, VI, do Código de Defesa do
Consumidor é lara ao possibilitar o cabimento de
indenização por danos morais aos
consumidores,
tanto de ordem individual quanto coletivamente.
Todavia, não é qualquer atentado aos interesses dos
consumidores
que
pode
acarretar
dano
moral
difuso. É preciso que o fato transgressor seja de
razoável significância e desborde os limites da
tolerabilidade. Ele deve ser grave o suficiente para
produzir verdadeiros sofrimentos, intranquilidade
social
e
alterações
relevantes
na
ordem
extrapatrimonial coletiva. Ocorrência, na espécie.
Não é razoável submeter aqueles que já possuem
dificuldades de locomoção, seja pela idade, seja por
deficiência física, ou por causa transitória, à
situação desgastante de subir lances de escadas,
exatos 23 degraus, em agência bancária que possui
plena capacidade e condições de propiciar melhor
forma de atendimento a tais consumidores.
Indenização
moral
coletiva
fixada
de
forma
proporcional e razoável ao dano, no importe de R$
50.000,00
(cinquenta
mil
reais).
Impõe-se
reconhecer que não se admite recurso especial pela
alínea "c" quando ausente a demonstração, pelo
recorrente, das circunstâncias que identifiquem os
casos confrontados. Recurso especial improvido.
(STJ, REsp 1221756/RJ, Rel. Ministro MASSAMI
UYEDA,
TERCEIRA
TURMA,
julgado
em
02/02/2012, DJe 10/02/2012).
_______________________________________________
Até mesmo a 1ª Turma do Superior Tribunal de
Justiça, inicialmente refratária à ideia de dano moral coletivo, já
sinaliza mudança de entendimento:
_______________________________________________
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO
REGIMENTAL
COMPETÊNCIA
NO
PARA
RECURSO
O
ESPECIAL.
PROCESSAMENTO
E
JULGAMENTO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA
PELO
MINISTÉRIO
OBJETIVANDO
MORAIS
PÚBLICO
INDENIZAÇÃO
COLETIVOS
EM
POR
FEDERAL
DANOS
DECORRÊNCIA
DE
FRAUDES EM LICITAÇÕES PARA A AQUISIÇÃO DE
MEDICAMENTOS PELO ESTADO MEDIANTE A
UTILIZAÇÃO DE RECURSOS FEDERAIS. EMISSÃO
DE DECLARAÇÕES FALSAS DE EXCLUSIVIDADE
DE DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS. ART. 535
DO
CPC
NÃO
VIOLADO.
UNIÃO
FEDERAL
ADMITIDA COMO ASSISTENTE. SÚMULA 150 DO
STJ. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. ART.
109, I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ALEGAÇÃO
DE
AUSÊNCIA
INDISPENSÁVEIS
À
DE
DOCUMENTOS
PROPOSITURA
DA
AÇÃO
RECHAÇADA PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS.
INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7 DO STJ.
1. Constatado que a Corte regional empregou
fundamentação adequada e suficiente para dirimir a
controvérsia,
dispensando,
portanto,
qualquer
integração à compreensão do que fora por ela
decidido, é de se afastar a alegada violação do art.
535 do CPC.
2. À luz dos artigos 127 e 129, III, da CF/88, o
Ministério Público Federal tem legitimidade para o
ajuizamento
de
indenização
por
ação
civil
danos
pública
morais
objetivando
coletivos
em
decorrência de emissões de declarações falsas de
exclusividade
de
distribuição
de
medicamentos
usadas para burlar procedimentos licitatórios de
compra de medicamentos pelo Estado da Paraíba
mediante a utilização de recursos federais.
3. A presença da União Federal como assistente
simples (art. 50 do CPC), por si só, impõe a
competência Justiça Federal, nos termos do art.
109, I, da Constituição Federal. Incidência da
Súmula 150 do STJ: "Compete à Justiça Federal
decidir sobre a existência de interesse jurídico que
justifique a presença da União, no processo, da
União, suas Autarquias ou Empresas Públicas".
4. Se as instâncias ordinárias decidiram por bem
manter a ora agravante na lide diante do acervo
fático-probatório já produzido, não é dado a esta
Corte
rever
os
elementos
que
levaram
à
tal
convicção.
5. É defeso ao Superior Tribunal de Justiça apreciar
a
alegação
de
ausência
de
documentos
indispensáveis à propositura da ação, rechaçada
pelas instâncias ordinárias. Incidência da Sumula 7
do STJ.
6. Agravo regimental não provido. (STJ, AgRg no
REsp
1003126/PB,
GONÇALVES,
Rel.
PRIMEIRA
Ministro
TURMA,
BENEDITO
julgado
em
01/03/2011, DJe 10/05/2011).
_______________________________________________
Da mesma forma, o Egrégio Tribunal de
Justiça de São Paulo já vem adotando posicionamento favorável no
tema:
_______________________________________________
AÇÃO CIVIL PÚBLICA - Venda de bebida alcoólica a
menor - Violação aos artigos 73 e 81, inciso II, do
Estatuto da Criança e do Adolescente - Dano moral
coletivo caracterizado - Obrigação de indenização do
dano que se impõe – Montante fixado que se revela
razoável, e adequado à hipótese vertente – Recurso
não
provido".
(TJ/SP,
Apelação
nº
0531935-
55.2010.8.26.0000, Rel. Encinas Manfré, Câmara
Especial, j. 02/05/2011).
_______________________________________________
Por outro lado, a possibilidade de configuração
do dano moral coletivo comporta sua aplicação em duplo aspecto:
coletivo e individual homogêneo.
Com efeito, sob o ponto de vista jurídico da
tutela dos direitos transindividuais, as condutas dos requeridos podem
ser visualizadas por dois diferentes aspectos.
O
primeiro
deles
diz
respeito
aos
constrangimentos e agressões sofridos por cada uma das vítimas das
ocorrências relatadas e comprovadas nestes autos, ainda que não
tenham sido elas identificadas e qualificadas. Sob este prisma, o dano
moral, cuja configuração é inquestionável, possui caráter subjetivo, ou
seja, atinge diretamente a esfera da intimidade psíquica do indivíduo.
Nesta hipótese, embora os danos sofridos pelos
cidadãos possuam origem comum (no caso, a atuação dos réus), podem
eles ser quantificados separadamente para fins de reparação. São,
portanto, direitos individuais homogêneos, aqueles cujos titulares são
determinados ou determináveis e o objeto da demanda é divisível entre
cada um dos lesados, mas a ofensa jurídica possui a mesma origem. É o
que se extrai do conceito previsto no artigo 81, parágrafo único, inciso
III do Código de Defesa do Consumidor.
Como se não bastasse, deve-se destacar que a
presente demanda assume especial relevância na medida em que as
vítimas são pessoas em situação de vulnerabilidade social e que, em
boa parte, seja por questões psíquicas, físicas ou descrença dos
próprios familiares, praticamente não reúnem condições de buscarem
por si mesmas, pela via da legitimação ordinária, a tutela jurisdicional
estatal.
É sabido que, embora a Constituição da
República consagre a assistência judiciária gratuita (a ser exercida pela
Defensoria Pública, sendo esta já atuante, com destaque, no Estado de
São Paulo), expressiva parcela dos internos se encontram em um triste
estado de exclusão social e marginalização, considerados a “última
camada da sociedade”, o que, se não impossibilita, ao menos dificulta
seu acesso ao Judiciário.
Reforça-se, assim, a importância da tutela
coletiva no ordenamento jurídico brasileiro: garantir o acesso à Justiça
e a defesa de direitos de grupos que, estando seus membros
individualmente considerados, dificilmente buscariam a devida
prestação jurisdicional.
Daí a maiúscula responsabilidade do Poder
Judiciário na questão. Discorrendo sobre a atuação do profissional do
Direito em face das injustiças sociais, lembra o lúcido filósofo do Direito
paulista Alysson Mascaro14 que “a preocupação sobre o justo e o
injusto deve ser a mais alta preocupação do jurista. Aquele que
disser que não quer trabalhar com os problemas da justiça porque essa é
uma questão ideológica, automaticamente já escolheu um lado e tomou
partido, ideologicamente, da questão: quem nada faz pela justiça do
mundo não é um técnico neutro; pelo contrário, é um omisso que
legitima a injustiça pelas suas mãos lavadas. Quem se nega a fazer
juízo de valor sobre a sociedade existente, querendo ser apenas um
técnico jurídico, já fez o juízo de valor de apoiar e legitimar esse atual
estado de coisas. Portanto, não é nem neutro nem técnico. É
deliberadamente conservador, e lhe agrada o podre cheiro das injustiças
sociais presentes”
Sob um segundo aspecto, deve-se considerar
que as proporções dos danos causados pelos requeridos vão muito
além
de
um
punhado
de
ocorrências
isoladas,
a
serem
responsabilizadas de forma individual e autônoma, como se não
tivessem nenhuma ligação entre si Há dois pontos convergentes em
Alysson Leandro Mascaro, “Introdução ao Estudo do Direito”, 1ª edição, Editora Quartier Latin,
São Paulo, 2007, pág. 236.
14
todos esses episódios exemplares, os quais compõem uma relação
jurídica-
base:
1)
a
conduta
abusiva
dos
réus,
em
grave
descumprimento às políticas de saúde e assistência social; 2) a atuação
timbrada pela violência e pela truculência, em flagrante violação aos
direitos humanos, contra dependentes químicos em situação de
vulnerabilidade.
Cumpre reconhecer, assim, que os abusos
perpetrados pelos réus transcendem a honra e a integridade de
cada uma das vítimas individualmente consideradas.
Mais do que uma soma de casos individuais
de abusos e violência, as ações representam, sob a perspectiva da
esfera dos direitos transindividuais, afronta à dignidade da população
de dependentes químicos desta cidade, sendo o elo comum atingido
deste grupo o direito ao tratamento digno destinado aos usuários
de
droga,
consubstanciado
em
uma
série
de
dispositivos
constitucionais e legais. Eis aí a essência do direito coletivo aqui
tutelado.
Ora, restou incontroverso que as ações dos réus
se desvirtuaram das finalidades anunciadas e propagadas por eles aos
familiares e aos próprios pacientes, pelos mais diversos meios, que
supostamente seriam de enfrentamento ao consumo de drogas,
assumindo o nítido propósito de amedrontar, humilhar e explorar os
internos.
Dúvida não há, portanto, acerca da existência
de dano especialmente dirigido a esta classe de pessoas.
Quanto a este aspecto, a tutela é coletiva em
sentido estrito, nos moldes do disposto no artigo 81, parágrafo único,
inciso II do Código de Defesa do Consumidor, uma vez que os
integrantes do grupo lesado são, ainda que de maneira hipotética,
determináveis (população de dependentes químicos) e unidos por uma
relação jurídica-base; o objeto da demanda, por outro lado, é indivisível
entre seus membros, já que não é possível mensurar a dor sofrida por
cada um dos lesados para fins de reparação, mas tão somente se forem
considerados todos eles como uma única coletividade lesada.
Em outras palavras: trata-se de dano moral
coletivo em prejuízo dos dependentes químicos que tenham, por
qualquer meio, chegado à cidade de Vargem Grande Paulista na
esperança de um tratamento e encontraram apenas mais sofrimento e
dor, além de prejuízo financeiro.
De se destacar que no interior da clínica havia
pessoas de diversos Estados do país. Que se tenha notícia, nenhum era
morador da cidade de Vargem Grande Paulista.
A reparação do dano moral sofrido por estas
pessoas é medida que se mostra de plena justiça.
Por outro lado, o dano é também difuso no que
concerne à população deste município e até mesmo, por que não, de
toda a população mundial, porque, ao mesmo tempo, perpetrou grave
violação dos valores fundamentais do Estado Democrático de Direito, ao
sinalizar que segmentos “excluídos” podem ser humilhados, agredidos e
violentados.
Axiologicamente, o sentido de justiça e de
dignidade de cada cidadão foi ofendido pela atuação ilícita dos
requeridos, ensejando evidente dano moral coletivo ou difuso.
VI.
VALOR DO DANO MORAL
Mensurar dano moral é sempre tarefa ingrata.
Valores
integridade
física
socioassistencial
e
e
como
psíquica,
sanitária
dignidade
expectativa
eficiente,
dentre
de
humana,
atenção
outros,
todos
vergastados pela hedionda atitude dos réus, não são facilmente
aferíveis em cifras monetárias.
Todavia, como o modo de buscar aquela
compensação pelo dano produzido deve ser convertido em pecúnia,
algum parâmetro, que precisa ser escolhido, ressalvando, de qualquer
modo, que não há dinheiro que pague a honra violada com um tapa
na cara ou a menor cidadania que se reconhece a quem se vê agredido
pela pessoa a quem sua saúde e bem estar foram confiados.
01.
Quanto
aos
interesses
individuais
homogêneos dos dependentes químicos: partindo-se do menor cálculo
de quantidade de pessoas que foram internadas na comunidade ré, que,
em 2012, eram 41 pessoas quanda da fiscalização e, em 2013, eram 15
pessoas, há de se chegar ao valor final mínimo da almejada indenização
multiplicando-se um dado valor individual por 56 (41 + 15). Assim,
chega-se a uma média de 28 pessoas atendidas pela clínica por ano.
Considerando
que,
ao
que
se
sabe,
os
requeridos atuam nesta cidade há pouco mais de dois anos, de se supor
que foram 56 pessoas atingidas pelas condutas ilícitas deles (28 x 2).
O valor individual deve ser buscado no
balizamento oferecido pelos Tribunais, a partir de alguns exemplos. A
seguir, algumas situações reais enfrentadas pelas Cortes e os
respectivos valores indenizatórios fixados:
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE
SÃO PAULO:

Expulsão de casa noturna (segurança que torceu o braço e puxou
o cabelo da autora) - R$ 3.500,00 - Apelação nº 912490835.2007.8.26.0000.

Disparo indevido de alarme antifurto em loja - R$ 5.450,00 Apelação nº 9069884- 22.2007.8.26.0000.
o Inscrição
indevida
inadimplentes
–
do
R$
nome
8.000,00
em
banco
de
–
Apelação
dados
nº
de
9154034-
04.2005.8.26.0000.
o Abordagem vexatória por segurança da empresa – R$ 10.000,00
- Apelação n° 0101519-91.2009.8.26.0005.
o Lesão corporal de natureza grave – fratura de ossos – R$
10.000,00 - Apelação nº 0100048-26.2007.8.26.0000.
o Prisão
ilegal
–
R$
30.000,00
-
Apelação
nº
0360378-
34.2009.8.26.0000.
o Prisão ilegal (pessoa homônima) – R$ 60.000,00 (100 SM) –
Apelação nº 0110018-51.2008.8.26.0053.
o Ofensa de advogado à honra de Magistrada–R$ 109.000,00
http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI145310,51045.
o Homem espancado por engano em Delegacia de Polícia por
Desembargador e por Delegado de Polícia – R$ 150.000,00.
Danos morais + R$ 88 .356,00 danos materiais. Apelação nº
9067893-79.2005.8.26.0000.
Decisões
do
SUPERIOR
TRIBUNAL
DE
JUSTIÇA:

Disparo indevido de alarme antifurto – R$ 7.000,00 – Resp
1042208 RJ 2008/0063204 - 5.

Prisão arbitrária por sete horas, sem violência – R$ 10.000,00 REsp 1209341 / SP.

Prisão ilegal e lesão corporal por policial civil – R$ 12.000,00 - REsp
631650 / RO 2004/0021504-5.

Disparo indevido de alarme antifurto – R$ 15.000,00 – Resp
327679 SP 2001/0055425-8.

Lesão corporal de preso em cadeia pública – R$ 20.000,00 - REsp
982811 / RR 2007/0204697-8

Protesto
indevido
–
R$
20.000,00
–
REsp
792051
AL
2005/0177883-0.

Publicação de notícia inverídica – R$ 22.500,00 – Resp 401358 PB.

Foto no jornal de mulher com o noivo errado – R$ 30.000,00 - REsp
1053534 RN 2008/0093197-0.

Prisão abusiva, sem violência – R$ 30.000,00 – Resp 1001056 /
PB.

Prisão penal injustificada – R$ 180.000,00 (300 SM) – Resp
697458 / SP.
Diante destes exemplos, pode-se arbitrar o
dano moral sofrido pela média do número de dependentes químicos que
se achavam em “tratamento” com os requeridos quando da atuação do
Ministério Público em R$ 50.000,00, o que enseja, multiplicando-se
pelo número estimado de pessoas nos dois anos que se teve notícia das
irregularidades (56), um valor total da pretendida indenização em, no
mínimo, R$ 2.800.000,00 (dois milhões e oitocentos mil reais).
02. Interesses difusos da população da cidade:
tendo em conta a natureza do dano moral suportado, bastante diverso
daquele diretamente sofrido pelos dependentes químicos que se
achavam na comunidade terapêutica, fazendo-se uma estimativa per
capita, de 5% do valor acima apontado, por exemplo, para cada membro
do município de Vargem Grande Paulista, resultaria em R$ 2.500,00
(5% de R$ 50.000,00) que multiplicado pelo número de pessoas que
moram no munícipio segundo a última apuração atualizada, do site do
IBGE15, 42.997, chegar-se-ia ao valor de R$ 107.492.500, 00 (cento e
sete milhões quatrocentos e noventa e dois mil e quinhentos reais).
Todavia,
considerando-se
que
o
propósito
desta demanda não é econômico, pode-se estimar que os danos difusos
representem apenas o dobro dos danos individuais homogêneos (2, 8
milhões x 2 = 5,6 milhões). Afinal, o que se pretende nesta ação civil
pública é uma indenização que contribua para a afirmação e
construção dos direitos humanos, mais que um mero valor
pecuniário.
Ambas as modalidades, portanto, implicam
num pleito final indenizatório de R$ 8,4 milhões (2, 8 milhões + 5,6
milhões = 8,4 milhões).
VII. DA DESCONSIDERAÇÃO
JURÍDICA
DA
PERSONALIDADE
Como regra, a responsabilidade dos sócios em
relação às dívidas sociais é subsidiária. Justamente devido a essa
possibilidade
de
exclusão
da
responsabilidade
dos
sócios
ou
administradores, a pessoa jurídica, por vezes, começou a ser utilizada
de modo desviado, desvinculando-se de seus fins e princípios.
Em razão de tais abusos surgiu a figura da
Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica (disregard
doctrine).
Nos termos do art. 28, do Código de Defesa do
Consumidor, o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da
sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de
15
http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?codmun=355645, pesquisa realizada em 30/11/13
direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação
dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será
efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento
ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
Na mesma esteira o Código Civil também
possui previsão, genérica, acerca do instituto, preceituando que Em
caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de
finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a
requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber
intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de
obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores
ou sócios da pessoa jurídica.
É o caso dos autos.
Não bastasse estar evidenciado que a conduta
dos requeridos se afasta, e muito, das finalidade sociais descritas no
contrato social da pessoa jurídica, verifica-se não é o caso de
responsabilizar, apenas, a entidade moral, mas também os seus
gestores, pessoalmente.
Seja com base no dispositivo que esposou a
Teoria Maior, ou no que esposou a Teoria Menor, os requeridos
abusaram da personalidade jurídica, causando prejuízo a terceiros e
desviando-se da finalidade dela.
Conforme leciona o Professor Flávio Tartuce16,
abalizado civilista, não se pode esquecer que, para a aplicação da
desconsideração da personalidade jurídica, devem ser utilizados os
parâmetros constantes do art. 187, do Código Civil, que conceitua
abuso de direito como ato ilícito. Esses parâmetros são o fim social ou
econômico da empresa, a boa-fé objetiva e os bons costumes.
16
Tartuce, Flávio. Manual de Direito Civil. Ed. Metodo, 2012.
Não pode a personalidade jurídica servir de
obstáculo ao integral ressarcimento dos danos causados.
Diante de todo o narrado, evidenciado está o
abuso, o excesso de poder, a infração de lei e o desvio de finalidade,
fundamentos
suficientes
para
determinar
a
indispensável
desconsideração. Portanto, a fim de que sejam todos devidamente
responsabilizados pelos ilícitos praticados, indispensável se faz a
superação episódica da personalidade para fins de reparação.
VIII. INDISPONIBILIDADE
REQUERIDOS
DOS
BENS
DOS
De tudo que se argumentou e em razão da
farta documentação que instrui essa inicial, verifica-se estarem
presentes os requisitos necessários à concessão da cautela pretendida.
O fumus boni iuris se traduz na plausibilidade
do direito ora afirmado, ou seja, o eventual crédito a ser constituído na
condenação dos requeridos nos autos desta ação civil pública.
Já quanto ao segundo requisito, o periculum in
mora, verifica-se pela cristalina a dificuldade na reparação deste direito,
caso os bens não sejam reservados cautelarmente, uma vez que, se
necessário se fizer aguardar o resultado da demanda, a chance de se
perderem aumenta-se indescritivelmente, já que, diante das inúmeras
ilicitudes praticadas, de rigor presumir a tentativa de furtar-se da
responsabilidade que recairá sobre os réus.
Sobre os elementos processuais indispensáveis
à presente demanda, ensina o doutrinador Nelson Nery Junior e Rosa
Maria de Andrade Nery, em suas obra Código de Processo Civil
Comentado, Décima edição, editora Revista dos Tribunais, página 1116:
___________________________________________________
Requisitos para cautelar. Para que a parte possa
obter a tutela cautelar, no entanto, é preciso que
comprove a existência da plausibilidade do direito
por
ela
afirmado
(fumus
boni
iuris)
e
a
irreparabilidade ou difícil reparação desse direito
(periculum in mora), caso se tenha de aguardar o
trâmite normal do processo. Assim, a cautela visa
assegurar a eficácia da execução. (grifos nossos)
___________________________________________________
Ante a presença dos requisitos cautelares
legais requer o Ministério Público e a Defensoria Pública seja decretada
a indisponibilidade dos bens dos réus, até o valor de R$ 8,4 milhões,
visando à eficácia de futuras execuções judiciais.
IX.
DA DISSOLUÇÃO JUDICIAL DA PESSOA JURÍDICA
Não se ignora que, para os efeitos jurídicos, a
sociedade empresarial se distingue dos membros que a compõem.
A força de regra, entretanto, não é absoluta. Por
ter uma função social, o Direito não pode prestigiar a utilização abusiva
de seus institutos nem é curial que estes se prestem como anteparo de
fraude ou infração à lei. Bem por isso, quando a pessoa jurídica for
empregada de modo impróprio ou com fins ilícitos, é passível de SER
DISSOLVIDA, no caso concreto, para impedir o advento de um
resultado socialmente indesejável.
Considerando os flagrantes abusos praticados,
seja por meio desta comunidade terapêutica, seja por meio de outra que
anteriormente criaram os requeridos (Novos Tempos) se utilizam da
personalidade autônoma da pessoa jurídica para ludibriar e lesar
terceiros.
A Clínica ré, em que pese constar em seu
contrato social que possui objeto lícito, somente é utilizada para a
violação
flagrante
da
constituição,
das
leis
e
das
normas
regulamentadoras.
Nesta ordem de ideias, indispensável a sua
dissolução, a fim de que não mais pratique tão graves ilicitudes.
X.
IMPOSIÇÃO DE RETIRADA DO SITE DA REDE
MUNDIAL DE COMPUTADORES
Como já narrado, necessário se faz a interdição
total da clínica ré, a fim de que outros danos não venham ser causados
a terceiros “desavisados” que tenham contato com as informações
enganosas que constam do site (www.clinicarestauracao.com.br).
Assim, sendo determinada a interdição da
clínica, necessário se fará, igualmente, que seja determinada a retirada
do referido site do ar.
Ao final, com a justa condenação, deverá ser ele
definitivamente removido da rede mundial de computadores.
XI.
ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA
Nos exatos termos do artigo 12 da Lei 7.347/85
e artigo 461, caput e § 3.º, do Código de Processo Civil , vislumbra-se no
presente caso concreto a hipótese de concessão da antecipação parcial
dos efeitos da tutela pretendida para o fim de se determinar interdição
da CLÍNICA RESTAURAÇÃO conforme acima aduzido.
A relevância dos fundamentos da demanda se
faz notória diante da presença de provas contundentes da burla das
disposições constitucionais e legais que disciplinam a matéria.
Com efeito, a requerida não preenche nenhum
dos requisitos necessários para funcionar como uma COMUNIDADE
TERAPÊUTICA.
Se não bastasse, a condição pessoal dos
administradores, estando inclusive o réu OSMAR sendo investigado em
mais de cinco inquérito policiais por crimes como sequestro, tortura,
estelionato, aliada à maneira não usual e estranha como a “entidade”
familiar foi criada, não traz a segurança necessária de que o real
objetivo da entidade seja aquele disposto em seu estatuto.
Também é facilmente dedutível o receio de
ineficácia do provimento final se não houver a pronta determinação de
finalização das atividades. A ilegalidade do funcionamento da dita
“comunidade terapêutica” é flagrante e qualquer outro ser humano que
seja ali abrigado se encontrarão, na verdade, submetidos a essa
ilegalidade, na medida em que não há ali o mínimo necessário para o
tratamento de sua dependência química.
Não
se
deve
confundir
“Comunidade
Terapêutica”, legalizada e idônea, com verdadeiros “depósitos de
dependentes químicos”, geridos por entidades de duvidosa idoneidade,
formadas por pessoas que figuram como indiciadas em inquéritos
policiais e comprovadamente infratoras de normas constitucionais e
legais.
Tal
ilegalidade
(funcionamento
ilegal
da
“comunidade
terapêutica”) e os riscos dela inerentes são gravíssimos e outras
pessoas podem ser vítimas dessa situação.
Como podemos inferir do instrutório, é bem
provável que as pessoas que estão sendo levadas a tratamento no local,
o fazem por erro, acreditando que se trata de uma COMUNIDADE
TERAPÊUTICA totalmente legalizada.
Comprovou-se, ainda, que os internos são
tratados como escravos e o único tratamento disponibilizado é o
labor em prol da própria comunidade terapêutica, não recebendo
qualquer tratamento psiquiátrico minimamente aceitável, havendo
medicamentos fortíssimos sem prescrição médica no interior da
comunidade terapêutica, a qual realiza serviços que agridem a
dignidade da pessoa humana.
Assim, permitir que tal estado de coisas
somente venha a ser regularizado ao final da demanda, implica em
prejuízo à saúde, ou mesmo à vida das pessoas que ainda serão
“atendidas” pelo serviço em questão.
Sem dúvida, o fato de não atender à obrigação
de proporcionar amparo e melhoria das condições do atendimento aos
internos
da
instituição,
já
delineia
um
quadro
de
inúmeras
irregularidades que colocam em risco a saúde, vida e bem-estar dos
usuários, sendo que a delonga na prestação da tutela pleiteada
certamente colocará ou manterá em risco os bens de vida (saúde,
dignidade, bem-estar), constitucionalmente assegurados e que aqui
pretende-se proteger, evitando-se, repita-se, danos irreparáveis.
XII. DO PEDIDO
Diante do exposto, requer-se:
a) A concessão de medida liminar inaudita
altera parte para:
1.
A
interdição
TOTAL
da
entidade
CLÍNICA RESTAURAÇÃO, proibindo-a de receber novos pacientes, sob
pena do pagamento de multa no importe de R$ 50.000,00 (cinquenta
mil reais) para cada adesão, comunicando-se à Vigilância Sanitária
Municipal;
2.
Caso haja pacientes no interior da clínica,
sejam eles removidos para outras clínicas que possam recebe-los ou
devolvidos aos respectivos núcleos familiares, no prazo de 24 horas, sob
pena do pagamento de multa no importe de R$ 50.000,00 (cinquenta
mil reais);
3.
Seja
retirado
da
rede
mundial
de
computadores o site www.clinicarestauracao.com.br e proibidos os
requeridos
de
substitui-lo/utilizar-se
qualquer
outro
meio
de
publicidade para captação de pacientes; Não sendo esse o entendimento
do
juízo,
requer-se
a
imposição
de
contrapropaganda
no
site,
informando que se trata de comunidade terapêutica e, portanto, não
pode receber internações involuntárias, qualquer uma das hipóteses
sob pena de multa diária de R$ 10.000,00;
4.
Sejam
indisponibilizados
os
bens
dos
requeridos até o limite de 8,4 milhões a fim de assegurar a reparação do
dano causado;
b) A citação dos requeridos para, querendo,
contestar a presente ação, que deverá seguir o rito ordinário, no prazo
legal e sob pena de revelia;
c) Ao final, requer:
i.
a
condenação
da
entidade
Clínica
Restauração, de Osmar Emanoel da Silva, de Vilma Ekstein da Silva e
de Bruno Ekstein da Silva na OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER consistente
na proibição dos requeridos, bem como seus representantes legais ou
convencionais, por si ou por meio de seus sucessores ou prepostos,
ainda que através da utilização de outra pessoa jurídica ou de nome
fantasia
diverso,
realizar
quaisquer
atividades
relacionadas
ao
atendimento a pessoas portadoras de dependência química ou qualquer
outra síndrome psiquiátrica, vez que não demonstraram condições
mínimas de preparo para tão importante e útil munus público,
promovendo-se
a
interdição
total
das
atividades
exercidas
no
estabelecimento mencionado, proibindo-se tanto seu funcionamento
quanto a eventual admissão de novos internos, sob pena de multa
diária de R$ 100.000,00 por dia de descumprimento, uma vez que se
tratará de decisão definitiva;
ii.
seja
desconsiderada
a
personalidade
jurídica da requerida Clínica Restauração a fim de que o patrimônio
pessoal dos sócios também seja atingido pela ordem de reparação do
dano;
iii.
seja
determinada,
após
a
devida
indenização, a dissolução da pessoa jurídica Clínica Restauração;
iv.
a
condenação
da
entidade
Clínica
Restauração, de Osmar Emanoel da Silva, de Vilma Ekstein da Silva e
de Bruno Ekstein da Silva no pagamento de danos morais aos lesados
individuais no importe de R$ 2.800.000,00;
v.
a
condenação
da
entidade
Clínica
Restauração, de Osmar Emanoel da Silva, de Vilma Ekstein da Silva e
de Bruno Ekstein da Silva ao pagamento de danos morais coletivos no
importe de R$ 5.600.000,00;
vi. seja oficiado à ANVISA e à JUCESP para
que fiquem cientes de que os réus estão proibidos de exercer essa
atividade, ficando vedada a concessão de licenças e abertura de pessoa
jurídica nesse ramo
vii. o apensamento da ação cautelar nº
0003133-77.2013.8.26.0654 a este feito.
Protesta-se por provar o alegado por todos os
meios de prova admitidos em Direito, sem exceção de qualquer,
especialmente pela oitiva de testemunhas, juntada de documentos
novos, perícias, constatações, requisições, depoimento pessoal dos
representantes legais das requeridas e outras diligências que se forem
necessárias à completa elucidação dos fatos articulados.
Dá-se a causa o valor de R$ 8.400.000,00 (oito
milhões e quatrocentos mil reais)
Vargem Grande Paulista, 10 de dezembro de 2013
MARIA JÚLIA KAIAL CURY
Promotora de Justiça de Vargem Grande Paulista
Defensora Pública do Estado de São Paulo
Rafaela D’Assumpção Cardoso Glioche
Analista de Promotoria
Download