EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DISTRITAL DE VARGEM GRANDE PAULISTA O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO, por sua representante, a Promotora de Justiça de Vargem Grande Paulista com atribuições atinentes à defesa dos Direitos Humanos e dos Direitos Individuais e Sociais Indisponíveis e a DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE SÃO PAULO, através de seu Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos, por sua representante e Coordenadora Auxiliar, vêm mui respeitosamente à presença de Vossa Excelência, com fundamento no artigo 129, inciso III, da Constituição Federal; artigos 1.º e 5.º da Lei n.º 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública); artigo 91 e seguintes da Constituição do Estado de São Paulo; artigo 103, inciso VIII, da Lei Complementar n.º 734/93 (Lei Orgânica Estadual do Ministério Público de São Paulo); disposições da Lei n.º 8.625/93 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público); nas disposições da Lei n.º 8.078/90 (Código do Consumidor), bem como com supedâneo nas peças de informações inseridas no inquérito civil n.º 132/11, vem propor AÇÃO CIVIL PÚBLICA com pedido de antecipação dos efeitos da tutela contra CLÍNICA CENTRO TERAPEUTICO RESTAURAÇÃO, CNPJ 14.072.503/0001-87, situada na Estrada do Posto, nº 627, Capitão Jerônimo, Vargem Grande Paulista, representanda por Osmar Emanoel da Silva e Vilma Ekstein da Silva, OSMAR EMANOEL DA SILVA, brasileiro, casado, RG nº 15.475.477, SSP/SP, nascido em 23 de março de 21961, CPF 011.198.538-26, residente na Rua Mendonça Furtado, nº 607, Condomínio São Paulo II, Município de Cotia, CEP 06706-135 e VILMA EKSTEIN DA SILVA, brasileira, casada, nascida em 19 de julho de 1960, RG nº 8.891.075-1 SSP/SP, CPF 011.198.59867, que igualmente pode ser localizada no endereço acima, e BRUNO EKSTEIN DA SILVA, brasileiro, estado civil ignorado, CPF nº 328.259.748-70, nascido em 29 de abril de 1985, filho de Vilma Ekstein da Silva e Osmar Emanoel da Silva, residente e domiciliado na Rua Rino Piena Line, nº 175, apartamento 81 A, Vila Mariana, São Paulo/SP, CEP 4017010, pelos motivos de fato e de direito a seguir aduzidos. I. INTRÓITO Inicialmente impende anotar que, em que pese a primeira requerida ser denominada “clínica”, na verdade se trata de Comunidade Terapêutica, regulamentada pela RDC nº 29/2011, da ANVISA, conforme documentação que instrui esta inicial. Referida resolução estabelece o Regulamento Técnico e disciplina as exigências mínimas para o funcionamento de serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso ou abuso de substâncias psicoativas, segundo modelo psicossocial. Tais instituições são também conhecidos como Comunidades Terapêuticas. É clara a finalidade social e assistencial de tais institutos. Serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso ou abuso de substâncias psicoativas (SPA), em regime de residência ou outros vínculos de um ou dois turnos, segundo modelo psicossocial, são unidades que têm por função a oferta de um ambiente protegido, técnica e eticamente orientados, que forneça suporte e tratamento aos usuários abusivos e/ou dependentes de substâncias psicoativas, durante período estabelecido de acordo com programa terapêutico adaptado às necessidades de cada caso. As comunidades terapêuticas são lugares cujo principal instrumento terapêutico é a convivência entre os pares. Oferece uma rede de ajuda no processo de recuperação das pessoas, resgatando a cidadania, buscando encontrar novas possibilidades de reabilitação física e psicológica, e de reinserção social. Os estabelecimentos assistenciais de saúde, que possuem procedimentos de desintoxicação e tratamento de residentes com transtornos decorrentes do uso ou abuso de SPA, que fazem uso de medicamentos a base de substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicos e outras sujeitas ao controle especial, as chamadas Clínicas de Recuperação, estão submetidos à Portaria SVS/MS n.° 344/98 - Regulamento Técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial e suas atualizações ou outro instrumento legal que vier substituí-la. Nas comunidades terapêuticas, a responsabilidade técnica pelo serviço junto ao órgão de Vigilância Sanitária dos Estados, Municípios e do Distrito Federal deve ser de técnico com formação superior na área da saúde e serviço social. Em tais estabelecimentos, em que não há a prescrição de medicamentos, podem ser admitidas pessoas usuárias de remédios controlados, porém os pacientes deverão trazer as prescrições de seus médicos particulares e a entidade assumirá a responsabilidade pela administração e guarda do medicamento, nos termos do receitado. Para os Serviços que atendem dentro do modelo psicossocial, respeitado o critério de voluntariedade e não discriminação por nenhum tipo de doença associada, não haverá restrições quanto ao grau de comprometimento para adesão e manutenção do tratamento. A admissão será feita mediante prévia avaliação diagnóstica, clínica e psiquiátrica, cujos dados deverão constar na Ficha de Admissão. As pessoas em avaliação que apresentarem grau de comprometimento grave no âmbito orgânico e/ou psicológico não são elegíveis para tratamento nestes serviços, devendo ser encaminhados a outras modalidades de atenção, no caso, para clínicas especializadas. Recomenda-se a Comunidade Terapêutica para paciente com comprometimento leve ou moderado. II. DOS FATOS A requerida Clínica Restauração era objeto de investigação do Inquérito Civil nº 132/2011. Em meados do ano passado (2012), chegou a informação à esta Promotoria de Justiça de que referida clínica realizava internações involuntárias, embora nenhuma delas fosse comunicada ao Ministério Público e não tenha ela autorização legal, como acima apontado, para prestar este serviço. Entretanto, conforme imagem que ora se junta, havia inclusive propaganda no site a respeito das internações e dos chamados “resgates” dos paciente que se recusavam a se submeter a tratamento. Em visita realizada no local, juntamente com uma fiscal do CRM e com a Vigilância Sanitária, os requeridos Osmar e Vilma informaram que não havia qualquer interno involuntário, pois todos “assinavam um documento de voluntariedade” quando se internavam. Outrossim, no local não havia, nos termos da Lei nº 10.216/01, laudo médico circunstanciado prévio à internação, recomendando-a pois esgotados os meios extra-hospitalares para a solução da drogadição. Em conversa com internos, alguns deles informaram que haviam ido para o local a força, por meio de “resgate”, que consistia em ser “sequestrado” por terceiros, por ordem da clínica, onde quer que estivessem, serem sedados, jogados no interior de um veículo, e levados para o interior do estabelecimento, onde eram submetidos ao “tratamento”. Narraram tais pacientes que eram humilhados diariamente, ofendidos, sofriam violência física, eram medicados ao bel prazer de Osmar e Vilma, medicação essa que era distribuída por outro paciente, que tinha acesso à “farmácia”. Afirmaram ainda que ficavam trancados em quartos, eram obrigados a trabalhar na casa de Vilma e Osmar, tinham seus tratamentos estendidos como forma de “punição” e tinham pouco ou nenhum contato com o médico psiquiatra. Referidos pacientes, ante a inexistência de ordem médica para internação (que é ato médico e não da família ou do responsável pela clínica) e da inexistência de comunicação da internação involuntária, foram retirados da clínica e trazidos para a Promotoria de Justiça, que providenciou a análise dos paciente por médico psiquiátrica e o devido encaminhamento à família ou outra clínica. No interior da clínica (comunidade terapêuticaré) foram constatadas ainda diversas irregularidades, haja vista que, por se tratar na verdade de uma comunidade terapêutica, não poderia receber internações involuntárias, nem ter a estrutura física que possuía. A “clínica”, então, foi totalmente interditada pela Vigilância Sanitária. A Vigilância Sanitária responsabilizou-se pela fiscalização que lhe incumbia a fim de determinar as adequações necessárias. Outrossim, foram instaurados inquéritos policiais para apurar os “resgates” e os maus tratos relatados pelos pacientes. Pois bem. Em 22/10/2013, chegou ao conhecimento desta Promotoria de Justiça, por meio da família, que havia um paciente no interior da clínica, SEM RECOMENDAÇÃO DE INTERNAÇÃO e que havia sido “RESGATADO” no Estado do Acre por uma “equipe” de “socorristas” contratada pela clínica. Outrossim, informou-se que o interno somente não foi “sedado” para viajar até São Paulo porque não ofereceu resistência à ação dos “socorristas” (dois contra um). Não obstante, a família solicitou a “alta” do interno, mas os responsáveis pela clínica, Osmar e Vilma, recusaram-se a “dar a alta” e “liberar” o paciente sem o pagamento de despesas “extras” que teve com ele. Nesta Promotoria de Justiça, então, foi preenchido um cheque pela genitora do paciente para que ele pudesse ser liberado. Para mais, acionou-se a Polícia Militar para que fossem adotadas as providências cabíveis. Trazido o paciente, ele foi ouvido e narrou que é médico e costumava usar cocaína, motivo pelo qual sua família, sem qualquer intervenção ou ordem médica, contratou a clínica e pagou o “resgate” para que ele fosse trazido para “tratamento”. Ficou no local por aproximadamente dois meses, oportunidade em que relatou, conforme mídia que instrui a ação cautelar preparatória nº 000313377.2013.8.26.0654, as diversas irregularidades existentes no local. Em razão disso, este Órgão propôs a citada ação cautelar para que fosse autorizada a entrada de uma verdadeira “Força Tarefa” a fim de constatar a veracidade das informações recebidas e outrora já constatadas em 2012. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo também acompanhou a diligência. Chegando no local, no dia 22/11/2013, por volta de 08h30, não havia qualquer pessoa que viesse atender o senhor Oficial de Justiça que comunicaria a ordem do juízo. Depois de muita insistência foi necessário “arrombar”/pular o portão e muros para que fosse possível ter acesso às dependências da comunidade terapêutica ré. No lugar não havia um responsável. As informações obtidas com os internos e um “terapeuta” que lá se encontrava é que os requeridos Osmar e Vilma haviam viajado para outro Estado e não havia informação sobre a data prevista para retorno. Os internos estavam todos trancados no interior de um imóvel, conforme demonstram as fotografias que ora se junta, e não tinham acesso à grande parte da área da clínica, pois todo o imóvel onde ficavam os quartos, e que eles eram obrigados a ficar, era cercado por telas e cercas, até o teto, que mais parecia uma espécie de “galinheiro”, visando a impedir que os pacientes deixassem, quando assim desejassem, as dependências que haviam sido a eles “reservadas”. Passa-se, pois, a pormenorizar as violações da dignidade e dos direitos humanos encontradas e praticadas no local. 1. AUSÊNCIA DE LAUDO MÉDICO RECOMENDANDO A INTERNAÇÃO Preceitua a Lei nº 10.216/01, em seu artigo 6º, que, para que haja a internação, é indispensável a existência de laudo médico prévio, circunstanciado, que indique os motivos da internação. Tal documento médico é exigido, uma vez que a política atual de tratamento de pessoas que apresentam diagnóstico relacionado a saúde mental diferenciada é inclusiva, diferente da outrora adotada de segregação e internação asilar. Toda e qualquer pessoa que apresente um diagnóstico que requeiro cuidados especiais deve ser tratada dentro do corpo social e familiar. De há muito já se afastou a ideia de segregação do “diferente”. A sociedade deve conviver com as diferenças e não afastá-las para ignorá-las. Não é por outro motivo que o artigo 4º, do mesmo diploma legal, determina que a internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extrahospitalares se mostrarem insuficientes. Aliás, é neste sentido também a Portaria n.º 2391/GM, de 2002, em seu artigo 2º, impõe que a internação psiquiátrica somente deverá ocorrer após todas as tentativas de utilização das demais possibilidades terapêuticas e esgotados todos os recursos extra-hospitalares disponíveis na rede assistencial, com a menor duração temporal possível. De se consignar que a internação é ato médico e não mera liberalidade do paciente, de seus familiares ou de eventuais responsáveis por clínicas ou comunidades terapêuticas. Ora, ainda que haja voluntariedade, é indispensável, como se verifica pelas normas regem a matéria, que haja um laudo médico que recomende a internação, afinal, trata-se de medida extrema e segregacionista. Não pode uma pessoa, ainda que no livre e desembaraçado exercício de suas faculdades mentais, resolver, sem qualquer ordem médica, entrar em um nosocômio e solicitar na recepção que seja internado. A internação, seja em qual modalidade for, mas principalmente as internações psiquiátricas e para tratamento de síndromes derivadas do uso e abuso de substâncias psicoativas, depende não só do esgotamento das vias extra-hospitalares, mas também da ordem de um médico, que, tendo acompanhado as tentativas de solução da dependência e sendo tecnicamente capacitado para avaliar a necessidade ou não de intensificação do tratamento, decida se é o caso de recomendar, por meio de laudo médico circunstanciado, a internação. Recomendada a internação, como determina o caput, do artigo 6º, da Lei nº 10.216/01, aí sim devera se indagar qual a modalidade de internação poderá ser feita, tomando-se por base a aderência do paciente ao tratamento. Não é por outro motivo, frise-se, que o legislador explicitou as modalidades de internação em incisos do artigo 6º, que exige o laudo para TODAS as internações. Some-se a isso que não basta mera análise, a posteriori, por psiquiatra da clínica/comunidade terapêutica, vez que o laudo que recomenda a internação deve tomar por base todo o tratamento que o paciente já vinha ou deveria vir se submetendo. No caso da comunidade terapêutica ora ré, verifica-se que não havia recomendação médica para internação, apenas vontade própria do paciente ou de terceiros (familiares ou os requeridos). Pise-se que no interior da clínica sequer havia uma pessoa que pudesse apresentar os prontuários médicos dos pacientes. Os representantes da clínica, segundo informado, haviam “viajado para o Paraná”, sem previsão de retorno. Foi necessária muita paciência e cuidado para tentar localizar os prontuários médicos, que estavam bagunçados e misturados aos de pacientes antigos. 2. ACEITAÇÃO DE PACIENTES PARA INTERNAÇÃO comunidades terapêuticas, INVOLUNTÁRIA As definidas, não tem autorização legal para receber conforme internações involuntárias. Ainda que o paciente, com laudo médico, se apresente espontaneamente para tratamento, se, após determinado período, não mais demonstrar interesse em lá permanecer, deve ser desligado do tratamento, já que a continuidade deste implicaria em imposição (involuntariedade). Com a reorganização da atenção psicossocial no âmbito do Sistema Único de Saúde, disciplinada pela Portaria GM/MS n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011, as comunidades terapêuticas foram reconhecidas como componentes da rede de atenção, na qualidade de “serviços de saúde de atenção residencial”, cuja importância não se questiona à vista dos relevantes serviços que prestam em saúde mental, especialmente para portadores de dependência química em decorrência de uso de substâncias psicoativas. Não obstante, não podem oferecer leitos de internação e seus serviços não devem substituir a assistência hospitalar, quando esta for necessária1. Esta problemática, aliás, já fora antevista pela Resolução da Diretoria Colegiada/ANVISA nº 29/2011, preconizando que a permanência de qualquer usuário (ou residente) somente pode ser feita com o seu consentimento expresso: Art. 15. Todas as portas dos ambientes de uso dos residentes devem ser instaladas com travamento simples, sem o uso de trancas ou chaves. (...) Art. 19. No processo de admissão do residente, as instituições devem garantir: (...) III - a permanência VOLUNTÁRIA; IV-a possibilidade de interromper o tratamento a qualquer momento, resguardadas as exceções de risco imediato de vida para si e ou para terceiros ou de intoxicação por substâncias psicoativas, avaliadas e documentadas por profissional médico;” Na obra “Direito Sanitário”, os autores Reynaldo Mapelli Júnior, Mário Coimbra e Yolanda Alves Pinto Serrano de Matos bem sintetizam a essência dos trabalhos das comunidades terapêuticas: Of. Circular nº 17/12-CAO/Saúde-i. Ministério Público do Estado do Paraná - Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Proteção à Saúde Pública. 1 _______________________________________________ Há que se comunidade observar, no terapêutica entanto, tem que como se a política reitora a voluntariedade do tratamento, que pode ser interrompido residente, não a qualquer pode ela momento manter o pelo residente, involuntariamente. A própria resolução determina que as portas do edifício que abriga a comunidade sejam equipadas com travamento simples, o que torna incompatível com o albergamento de residentes involuntariamente. A internação involuntária, assim como a compulsória deve ser direcionada a estabelecimentos especiais dotados de equipes técnicas especializadas para o tratamento de pacientes, comprometimento, ou que seja, apresentam risco tal imediato a intoxicação por drogas psicoativas, bem como à vida do paciente ou de terceiros. _______________________________________________ Os requeridos, no entanto, oferecem “tratamento involuntário” e, para tanto, inclusive, oferecem serviço de “resgate”, que nada mais é do que “sequestrar” o paciente e obrigá-lo, sob as mais diversas formas espoliativas, a se submeter ao “tratamento”. No entanto, para justificar a não comunicação do fato ao Ministério Público, o que ensejaria controle das internações e das irregularidades perpetradas no interior da comunidade, os pacientes são obrigados a assinar uma “declaração de voluntariedade”. Quando este Órgão esteve in loco, na clínica, em duas oportunidades, foi constatada a existência de diversos pacientes involuntários e resgatados. Outros, apesar de involuntariamente trazidos, haviam aderido o “tratamento”; outros chegaram voluntariamente, mas não tencionavam continuar no local, mas eram obrigados. 3. SEQUESTRO E CÁRCERE PRIVADO Os requeridos seguem odioso modus operandi para obrigar pacientes a se submeterem ao tratamento. Seguem alguns dos relatos que demonstram a reiteração na prática de referido crime: “foi internado involuntariamente. O declarante não queria ir. Quem levou o declarante foi o resgate – o pessoal da clínica foi buscar o declarante em Brasília. Veio de lá aqui no carro do Pastor (Osmar). O filho do Pastor – BRUNO – Leandro (interno) e a mulher do Bruno. O declarante estava em casa quando foi surpreendido por eles. Não tinha nenhum documento médico recomendando sua internação. O declarante foi amarrado e trazido até aqui. Bruno e Leandro deram remédio ao declarante. Chegando aqui ficou três dias de “boi”, dormindo direto (...)”. “foi internado involuntariamente no dia 31/05/2012, o declarante não queria ir. Quem levou o declarante foi o resgate – o pessoal da clínica foi buscar o declarante em Porto Alegre. Veio de lá até aqui no carro do Pastor. O FILHO DO PASTOR – BRUNO – e o Akira – Policial Civil, estavam no carro (...)”. “Fui internado na clínica em 03/06/2012. Minha internação foi involuntária. Eu fumava maconha dentro de casa. A internação foi uma das alternativas que meu pai encontrou para tratamento. Fui pelo “resgate”. Quatro homens invadiram o meu quarto, entre eles BRUNO e Reinaldo, o outro era uma Policial Civil, segundo Bruno, de nome “Grum”. Os Policiais Civis fazem bicos de “resgate”. (...) Eles abriram a porta do meu quarto e disseram para eu sair. Eu fiquei assustado e liguei para a polícia, pedindo ajuda, mas não consegui. Quando eu me recusei a ir, eles pediram para minha irmã sair de dentro de casa. Neste momento percebi que poderia ser agredido, já que meus pais também já tinham sido informados para não ficar em casa no dia do resgate, pelo que me disseram.” “Fui internado no dia 17/06/2012. Minha internação foi consentida inicialmente, mas em caráter involuntário, porque era a vontade de minha, para proteger minha integridade. Eu não tinha laudo médico prévio a internação recomendando-a”. “Afirma ser usuária de “crack” e “cocaína” há sete anos, estando há quatro meses internada na clínica em questão, tendo sido a internação uma escolha de seus familiares”. “Afirma ser usuário de “crack” e permaneceu no vício durante oito meses, sendo que por iniciativa de seus familiares acabou sendo internado na clínica em questão, isso há exatos cinco meses e doze dias.” Um dos “socorristas” contratados para resgatar um dos internos, que residia no Estado do Acre, conforme se verifica pelas tratativas feitas por email que instruem essas inicial, ainda postou foto em seu perfil na rede social denominada “Facebook”, vangloriando-se pelo que chamou de “resgatar mais uma vida”. Figura 1: Um dos "socorristas" anunciando no Facebook a realização de um "resgate" Os trechos dos depoimentos acima descritos demonstram que os requeridos, ao arrepio das normas legais que regulamentam as internações, e em total descaso com os direitos da pessoa humana, praticavam mercenariamente o sequestro de pessoas para submetê-las às formas mais espoliativas de humilhação, agressão e tortura. Não bastasse tais hediondas irregularidades e ilicitudes, havia ainda a proibição dos internos de deixarem o local quando assim desejassem e, para tanto, eles eram trancados no interior de um imóvel e não podiam sequer ter acesso à outras áreas da clínica. Ainda aqueles que chegavam voluntariamente ao local não poderia deixar o “tratamento” se quisessem. A par disso, durante o dia, após o almoço, eram trancados em seus quartos, alguns com cadeados e correntes nas portas, e obrigados a ali permanecer por horas, como forma de “realizarem uma introspecção espiritual”. Figura 2: Quarto de interno em 2012 Não se trata de conjecturar acerca de violações de direitos humanos e fundamentais. As irregularidades e ilicitudes são flagrantes. Figura 3: Quarto de dois internos em 2013 À noite, no horário determinado, eram novamente trancados no interior dos quartos, de onde só poderiam sair pela manhã, quando “tocasse o sino” e os quartos fossem destrancados. Para mais, ainda poderiam receber como punição o castigo do banco, que consistia em ficar por um período de horas determinado por Osmar, Vilma e Bruno sentado em um banco. Algumas pessoas ficavam até dias sendo “punidas”. Tais punições poderiam derivar até mesmo de uma toalha molhada deixada em cima da cama. Bruno, pelo que se verifica, e ainda será tratado de forma pormenorizada, era responsável por “resgatar” alguns dos pacientes, aplicar medicação neles, bem como agredi-los a fim de mantê-los sempre em constante terror. Por assim dizer, Bruno era o responsável, juntamente com seus pais, por manter os internos em temendo por suas vidas. Tudo ao bel prazer e a depender do humor dos requeridos. Figura 4: Pacientes presos dentro do imóvel A liberdade é um direito fundamental assegurado expressamente pela Constituição da República, assim como a possibilidade de cada ser humano se autodeterminar: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei” (art. 5º, inciso II, da CRFB). É justamente em razão da liberdade constituir-se em núcleo fundamental do exercício de direitos que ela, inclusive, é tutelada, em sede infraconstitucional, pelo diploma repressor. Grande parte dos pacientes que ali se encontravam, como os que já se citou, não só foram obrigados a sair de suas casas e do seio de sua família, de forma violenta, como também não podiam sequer circular pelo interior da clínica ou deixá-la quando quisessem. Familiares relataram na Promotoria (IC 132/2011) a forma pela qual seus parentes eram “resgatados” e levados para a clínica. Neste momento, oportuno citar o relato do autor David Rousset, ex-prisioneiro de Buchenwald, que descreveu no livro Les Jours de notre morte – 1947: “O triunfo da SS exige que a vítima torturada permita ser levada à ratoeira sem protestar, que ela renuncie e se abandone a ponte de deixar de afirmar sua identidade. (...) eles sabem que o sistema que consegue destruir suas vítimas antes que elas subam ao cadafalso, é incomparavelmente melhor para manter todo um povo em escravidão. Em submissão”. Mutatis mutandis, e com as devidas proporções, o que se verificou existir dentro da instituição ré é deplorável. Os próprios internos, diante de tão degradante tratamento diário e perene, acabavam por sucumbir e submeter-se, sem possibilidade de salvação, à tamanha desumanidade. 4. REDUÇÃO À CONDIÇÃO ANÁLOGA DE ESCRAVO Não bastasse a conduta hedionda de sequestrar mercenariamente pessoas, todas eram obrigadas a trabalhar no interior da clínica sem receber qualquer remuneração para tanto. A título de realizar “laborterapia”, os requeridos obrigavam diariamente todos os internos a realizar os serviços necessários dentro da clínica. Ora, ainda que se possa sugerir a dignificação da pessoa humana pelo trabalho, não poderiam os internos ser obrigados a trabalhar. Aliás, a própria Carta Magna veda a pena de “trabalhos forçados”. Em que pese haver publicidade no site, não havia no interior da clínica uma cozinheira, uma faxineira, um monitor, nada. Todos os internos é que realizavam os serviços (lavar roupa – o que era cobrado da família – limpar a varanda, lavar banheiro, cozinhar, “pegar detritos”, rastelar área geral do escritório e laterais, limpar a piscina, servir as refeições, etc.). Vejamos as “ordens” deixadas em um quadro que havia no local, que incluem até limpar os escritórios dos representantes e tomar conta dos diversos cachorros que moram no interior da comunidade. Figura 5: "Determinações" para todos os pacieintes Frise-se que, de fato, se tratava de uma “ordem”, como se pode verificar pela “determinação” contida na parte final do documento: Figura 6: "Ordem" - "CUMPRA-SE" Não bastasse os internos serem obrigados a trabalhar, evitando que os requeridos tivessem qualquer custo com manutenção e mão de obra, alguns dos pacientes ainda eram obrigados a TRABALHAR NA CASA DO REQUERIDOS. Veja-se alguns trechos das declarações colhidas no ano passado e neste ano de 2013: “lavava os carros do pastor e trabalhou como pedreiro em uma casa que ele comprou em Cotia”. “Durante o período que esteve na clínica trabalhou no Condomínio São Paulo II, na casa do pastor como empregado doméstico. Lavava tudo por fora, organizava por dentro, a pastora tem mais de 200 sapatos, lavou todos e os organizou por cor. O pastor tem mais de 100. Lavou-os e os organizou. Não recebeu nenhum dinheiro por isso”. “passava aproximadamente metade do dia trabalhando na cozinha, minhas mãos estava doendo. Eu fazia as sobremesas e as saladas”. “Eu nunca trabalhei para o pastor fora da clínica, mas dentro dela tinha que lavar um banheiro e um quarto todos os dias. Não eram os que eu usava. Eles chamam de laborterapia. Eu era obrigado a limpar estes cômodos. Caso não limpasse, era punido. A punição era a critério de Reinaldo.” “Nunca trabalhei fora da clínica, mas o Igor (Rondônia), o Lucas, o Wilson e outras pessoas foram obrigadas a trabalhar fora da clínica”. Neste cenário, o que se verifica é que os internos eram usados como verdadeiros escravos, que ficavam presos no interior do local e era obrigados, sob pena de punição, a trabalhar no que quer que os requeridos desejassem que fosse feito. Poucos dias antes de cumprida a ordem para entrada na clínica os internos foram obrigados a LIMPAR A FOSSA DO LOCAL, carregando BALDES DE FEZES PARA DESCARTE. A exploração dos internos e a certeza de impunidade são flagrantes e qualquer interno que contestasse as “ordens” (rectius – abusos), dizendo que as relataria à autoridades e familiares, recebia como resposta: “pode falar. Em quem vocês acham que vão acreditar? Em nós, que somos pastores, ou em vocês, que são uns drogados?” O CRP-06 (Conselho Regional de Psicologia) constatou, in loco, conforme consta da imagem abaixo, e do relatório que documenta essa ação, que não havia qualquer funcionário no local e os internos eram obrigados a trabalhar. Figura 7: Relatório do Conselho Regional de Psicologia Figura 8: Relatório do Conselho Regional de Psicologia 5. AGRESSÕES FÍSICAS E VERBAIS Durante todo o período em que os pacientes eram submetidos ao “tratamento” ofertado pelos requeridos, eram eles submetidos à agressões físicas e verbais, bem como toda a espécie de tortura psicológica, a fim de que se anulassem ao ponto de nada mais fazer, apenas cumprir. Seguem trechos de alguns dos relatos: “foi amarrado e trazido até a clínica. O BRUNO e o Leandro deram remédio ao declarante. Chegou e ficou três dias de “boi”, dormindo direto e no quinto dia encontrou uma barra de ferro embaixo de sua cama. Achou estranho. Quando foi falar para os GAP (internos que já estavam a mais tempo no local e recebiam incumbência de “monitora” os demais), eles acharam estranho e questionaram. O levaram para dentro do quarto, deram tapas, cabeçadas e murro no estômago. Ficou dois dias urinando sangue. Não contou para ninguém porque ficou com medo. Ainda ficou mais dois dias de banco – ficava dois dias direto no banco. Tinhas internos que chegavam a ficar semanas no banco. (...) Via muitas humilhações feitas pelo pastor. (...) As humilhações com todos os internos eram constantes, principalmente com os que pediam para ir embora. (...) Tinha muito medo de ficar lá por causa das represálias.” “Viu o rapaz de nome Márcio sendo agredido pelo Sr. Reinaldo, chefe da casa e irmão da pastora Vilma. Foi agredido pelo Sr. Reinaldo que o pegou pelo pescoço e o jogou no sofá. (...). O castigo era o banco. Ficou de castigo diversas vezes, fincando sentando no banco o dia todo. Ao chegar no local tiraram sua roupas de marca porque um rapaz fugiu e colocaram o declarante como culpado. Outro castigo foi a determinação para ficar na clínica por mais quatro meses. (...) Quem dava as punições era o pastor. Quase todos os dias tinha palestra de religião. Era obrigatório. Quem não ia recebia punição: banco.” “o senhor Osmar costuma repreender rispidamente os paciente quando tentam passar alguma informação a seus familiares sobre a clínica e vice-versa. Ele costuma fazer isso na frente de todos, para constranger, para humilhar. Certa vez ele me ofendeu, dizendo que eu não era homem, entre outros, porque minha esposa foi me visitar. Ele me fez pedir perdão duas vezes em público para ele. Tinha medo do senhor Osmar. O senhor Osmar me fez assinar um papel dizendo que eu queria continuar o tratamento. (...). Existe um castigo aplicado pelo senhor Osmar que consiste em ficar sentado em um branco, dentro da academia, durante todo o dia (...). No dia em que o Oficial de Justiça foi à Clínica (01/08/2012) afirmei que estava lá voluntariamente e queria ficar lá porque estava com medo do senhor Osmar. Na verdade eu queria ir embora. Ele humilha todo mundo dentro da Clínica. Esta semana uma pessoa estava passando mal do estomago, oportunidade em que pediu por um médico, sendo informado de que não era necessário chamar médico, bastava tomar um medicamento que lhe dariam. Eu tinha que ficar como um “carneirinho” lá dentro. Era obrigado a fazer o que eles queriam. Acho que o Oficial de Justiça Bruno deve ter percebido que eu não queria ficar lá. Antes do Oficial de Justiça ir embora eu ainda pensei em tentar fazer um sinal para Bruno (Oficial). Em seguida, Bruno (Oficial de Justiça) disse que talvez o juiz precisasse me chamar. Eu fiquei com esperança que o juiz me chamasse, para poder sair de lá. Eu tenho medo do filho do senhor Osmar, porque ele fala com um tom de voz e diz “coisas” que geram temor. Ele diz que é amigo de policial”. “Uma vez falei para minha filha que gostaria de estar em outra clínica. Em razão disso, no dia seguinte, o pastor fez um reunião, chamando todos os internos e passou a me humilhar, falar palavrões em relação a mim. (...). Não podia portar nem canetas para escrever e estudar. (...) Sei que tive uma crise de abstinência, mas não me lembro. Contaram-me que eu levei tapas no rosto e chutes no peito. Um pessoa de nome “Fran” e Reinaldo que me agrediram. (...) Moralmente eu fui agredida, houve mais de uma reunião sobre mim, em que eu era agredida moralmente, ofendida. Ele me chamava de vadia, bêbeda, alcóolatra. Certa vez fiquei de castigo no banco por aproximadamente um dia e meio. Durante a noite fui para cama e no dia seguinte voltei para o banco, porque eu tinha falado ao telefone com meu marido dizendo que não tinha nada para falar para ele. Não sei o que irritou o pastor, eu estava justamente tentando evitar um castigo. Vi a Carla tomar tapas no rosto desferidos pelo pastor. Teve um rapaz de nome Igor, conhecido como Igor “São Paulo”, que quebrou todo o quarto. Como punição ele ficou três dias trancado no quarto, vestindo uma fralda e recebia comida por baixo da porta. (...) O Bruno é muito agressivo e fala muitos palavrões, fica dizendo que ele machuca pessoas. (...) As reuniões com o pastor e o filho dele eram somente para humilhação de algum paciente.” “Eu vi uma arma em um dos carros da clínica, um dos GAP´S tirou uma “submetralhadora” do carro do Bruno. Nunca fui agredido fisicamente no local, mas já sofri uma ameaça de agressão. (...). Por volta do dia 16/06 chegou à clínica um paciente de nome Wilson. Não vi ele sendo agredido, mas pude ouvir seus gritos, pedindo para parar de ser agredido. (...) O pastor costumava xingar muito os pacientes, assim como o Reinaldo. Eu tenho muito medo de relatar todos esses fatos. Tenho conhecimento de que há policiais civis, em tese, envolvidos. Eu temo por minha vida e por minha integridade física. Na clínica o Bruno era o que mais falava, não sei se para nos colocar medo, de coisas que ele fez ou fazia, agressões que praticava. (...) Não tenho certeza, mas no primeiro dia ou segundo fui medicado com Aldol ou Rivotril, que eu “apaguei” em seguida e só acordei no dia seguinte, com a pressão muito baixa. (...) Não fui atendido por médico, fiquei apenas deitado algumas horas. Uma vez vi aplicarem uma medicação injetável no Vitor, que teve uma espécie de crise de “raiva”. Não sei a medicação aplicada, mas Vitor ficou sedado. Quem aplicou a injeção foi Marcelo, que é veterinário e paciente da clínica. (...) Eram aplicados vários castigos na clínica. Um deles consistia na convocação de uma espécie de reunião com todos os internos em que o pastor humilhava o castigado. Ele chamava a pessoa de “filho da puta”, mandava “tomar no cu” (...). Soube por uma pessoa de nome David, que ele foi amarrado, agredido a tapas na cara, tanto pelo pastor, quanto pelo Bruno, depois jogaram álcool nele e brincavam com o isqueiro perto dele, para aterrorizá-lo.” Quando do cumprimento da ordem liminar concedida na ação cautelar já mencionada, outras violações e condutas odiosas foram narradas. A título de exemplo: “Em uma certa oportunidade uma ex interna comentou que possuía um celular e perguntou se queria utilizá-lo, tendo dito que sim e telefonado para um amigo e também para o genitor. Porém este acabou contando para o pastor sobre a ligação. Então, a declarante além de ser ofendida, foi agredida com um tapa na face, bem como foi jogada no chão, tendo se levantado e então sido jogada contra um banco, no que começou a chorar, oportunidade em que o pastor mandou que “parasse de frescura”, caso contrário ele chutaria o seu braço até quebra-lo, uma vez que já havia machucado-o com a queda. O pastor ainda dizia que ela “sustentava o vício levando droga na cadeia para vagabundo”, lhe desrespeitando e lhe humilhando. Afirma que antes da agressão, foi levada para o quarto, onde foi obrigada a se despir, tendo Vilma afastado suas pernas e olhado o interior de sua vagina, dizendo posteriormente ao pastor que não havia encontrado o celular”. Consta do relatório da médica psiquiátrica que acompanhou a diligência as agressões que foram relatadas à ela pelos internos, consultas esporádicas com o médico psiquiatra, os “resgates”, a permanência involuntária no interior da clínica, os trabalhos forçados. Este relatório instrui essa inicial. Bruno tinha sempre a função de intimidar os internos, mantendo-os sob domínio do medo, vez que não só era o algoz dos “resgates”, como também usava a força física sempre que entendesse necessário para se estabelecer ainda mais no “comando” da barbárie. O Conselho Regional de Psicologia (CRP- 06) recebeu inúmeras “denúncias” de violação dos direitos humanos ocorridas no interior da clínica. Basicamente o que está ali relatado é também o que foi constatado na visita realizada no local. Este cenário, em conjunto com os demais documentos colhidos, demonstra que os internos recebiam tratamento humilhante e desumano, em total afronta aos seus direitos e garantias individuais e a sua dignidade. As agressões, ou ameaças delas, eram constantes e tinham por desiderato tolher qualquer esboço de reação às evidentes ilicitudes praticadas. 6. CASTIGOS E PUNIÇÕES A par das torturas e humilhações já narradas, das agressões e ofensas sofridas, os internos ainda eram obrigados a se submeter a castigos como ficar horas sentados em um banco, por quantos dias os requeridos achassem necessários, sem a menor proporcionalidade objetiva entre o fato praticado e a punição recebida. Figura 9: O BANCO onde os internos eram obrigados a ficar sentados em 2012 Eram ainda convocadas reuniões com todos os internos para a prática de humilhações públicas, ofensas e ridicularização do “castigado”. Outra forma de punição, e porque não de aumento dos lucros, era a ampliação desmotivada do prazo de internação. Assim, sem qualquer ordem ou recomendação médica, os requeridos impunham aos pacientes, como forma de punição, o aumento do tratamento por meses, informando aos familiares que era necessário para que o bem de seu ente querido. Cabe ressaltar que o próprio texto Magno garante a todos que ninguém será submetido a tratamento desumano ou degradante. Trata-se de garantia constitucional explícita que, à evidência, está sendo explicitamente violada. 7. APLICAÇÃO DE MEDICAÇÃO O que se constatou de todas as provas que foram colhidas no bojo do Inquérito Civil que instrui essa inicial, há anos não há um funcionário tecnicamente capacitado e contratado para ministrar medicação. Quem aplica as medicações são pacientes da própria clínica. Tanto em 2012, como em 2013, havia internos formados em veterinária que aplicavam medicação. Entretanto, não havia qualquer óbice que outros pacientes aplicassem e distribuissem a medicação. Aliás, outra temerária conduta praticada pelos requeridos é permitir que pacientes que apresentam dependnência em substâncias químicas tenham acesso à medicação controlada e as separe e entregue aos outros internos. Figura 10: Controle de medicação Não há qualquer controle minimamente inteligível ou formal para da medicação dispensada. O que se verificou é que a medicação é entregue ou forçadamente dada aos pacientes. O único controle que existe é para fins de cobrança do valor dos medicamentos aos responsáveis pelo pagamento do tratamento. Outrossim, a depender do comportamento do paciente, são eles obrigados a tomar medicação, sem qualquer prescrição médica. Para tanto, são agredidos violentamente, ofendidos e até mesmo amarrados. Figura 11: Amarras usadas para ministrar medicação Um dos pacientes que estava no local quando da inspeção feita pela força tarefa montada em 2013, mostrou as faixas (figura acima) que eram utilizadas para amarrar aqueles que se recusavam a tomar medicação. O próprio CRM constatou in loco que os pacientes não sabiam sequer quais medicações tomavam, que não havia prescrição para toda a medicação e ouviu os relatos de internos que eram medicados à força. A medicação era distribuída em copinhos, dentro dos quais era adicionada água e os comprimidos eram triturados e distribuídos desta forma. Figura 12: Recipientes de distribuição de medicação Havia ainda a injeção de medicação, que era feita por quem se predispusesse a aplicar um medicamento em outro ser humano, mesmo sem habilitação técnica. Ao que consta os médicos responsáveis pelo local examinavam esporadicamente os pacientes e com base nas informações prestadas pelos requeridos receitavam medicação. Todos os pacientes relatavam que as consultas eram raras, apenas dias depois da “internação” e por poucos minutos. Não há informação de que os médicos tinham acesso ao histórico do paciente. Aliás, o procedimento dos requeridos era tão temerário que mesmo sem saber se os pacientes podiam tomar uma medicação (por alergia ou por ainda estar sob o efeito de drogas quando do “resgate”) eram injetados e ministrados remédios. Ora, qualquer dos pacientes poderia ter uma reação e vir a óbito. No entanto, como se verifica de todo o narrado, a vida dos internos pouco importava para os requeridos. 8. AUSÊNCIA DE FUNCIONÁRIOS Durante as duas visitas à clínica, não havia funcionários no local. Da última vez (22/11/2013) havia uma pessoa que se identificou como terapeuta, mas não se apresentou funcionalmente. Outra hora identificou-se como fisioterapeuta. Não havia qualquer contrato de trabalho. Em 2012, no bojo do Inquérito Civil, foram juntados “contratos de trabalho” com o réu Bruno, com a esposa dele Rafaela, com o tio dele “Reinaldo”. Ora, nenhuma dessas pessoas possui qualificação técnica para prestar a devida assistência aos pacientes. Flagrante tentativa de burlar as normas legais e regulamentares referentes ao tratamento adequado para casos como o ora em apreço. Os internos, como já narrado, eram obrigados a trabalhar nas mais diversas funções – carpir, limpar piscina, lavar banheiro, limpar fossa, cozinhar, servir, lavar roupa. Dessa forma, os próprios pacientes, além de pagarem pelo tratamento, ainda mantinham a clínica minimamente hígida, trabalhando como escravos dos requeridos. Não terapêutico especializado, tinham elaborado qualquer e acompanhamento mantido por profissional habilitado. 9. VIOLAÇÃO DO SIGILO DAS COMUNIÇÕES TELEFONICAS, DA CORRESPONDÊNCIA E PROIBIÇÃO DE CONTATO COM O MUNDO EXTERNO A fim de evitar que os internos relatassem a terceiros os maus tratos e a exploração que eram vítimas, nas escassas oportunidade que podiam manter contato com o mundo extracomunidade, conversações eram eles telefônicas impedidos privadas pelos requeridos e/ou de enviar de manter e receber correspondências de forma sigilosa. TODOS, absolutamente todos os internos ouvidos relataram que as conversações telefônicas eram feitas por tempo limitado e no viva-voz, acompanhados pelos requeridos ou por terceiros a seu mando, e interrompida quando algo “proibido” fosse dito. Antes das ligações eram os pacientes orientados sobre o que poderiam falar e o que não poderiam. Qualquer “violação” sujeitava o “infrator” as mais diversas e desumanas punições, dentre as quais as já suficientemente descritas acima. O mesmo era feito com as correspondências, que ou eram lidas, antes de ser enviadas, ou já vinham abertas para ser entregues aos internos. O Conselho Regional de Psicologia recebeu diversas denúncias acerca de violação de direitos humanos no interior da clínica. Em uma primeira visita foram impedidos de entrar. Em uma segunda visita somente pôde ter contato com os pacientes na presença de Osmar, de modo que ficaram todos constrangidos em dizer o que realmente acontecia na clínica. Apesar das “internações” serem alegadamente voluntárias, vez que os internos eram obrigados a assinar declaração de voluntariedade, eles não podiam ter qualquer contato com o mundo exterior, salvo à título de regalia e para alguns. 10. AUSÊNCIA DE INDIVIDUALIZADO PLANO TERAPÊUTICO Nos termos do preceituado pelo artigo 22, da Lei Federal nº 11.343/06, as atividades de atenção e as de reinserção social do usuário e do dependente de drogas e respectivos familiares devem observar os seguintes princípios e diretrizes, entre outros: I - respeito ao usuário e ao dependente de drogas, independentemente de quaisquer condições, observados os direitos fundamentais da pessoa humana, os princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde e da Política Nacional de Assistência Social; II - a adoção de estratégias diferenciadas de atenção e reinserção social do usuário e do dependente de drogas e respectivos familiares que considerem as suas peculiaridades socioculturais; III - definição de projeto terapêutico individualizado, orientado para a inclusão social e para a redução de riscos e de danos sociais e à saúde; IV - atenção ao usuário ou dependente de drogas e aos respectivos familiares, sempre que possível, de forma multidisciplinar e por equipes multiprofissionais; Entretanto, todos os pacientes eram tratados de forma aleatória, não havia um plano individualizado e voltado para as peculiaridades de cada um. Não havia atendimento especial àqueles que necessitavam. Cada ser humano é um todo em si mesmo e tem suas próprias especialidades que demandam meio de atenção particularizada. Os réus, por suas condutas transgressivas e do “tratamento” que ofereciam, fechavam os olhos às mais diversas necessidades dos internos e, novamente, violavam toda a sorte de normas regradoras do tratamento de pessoas. 11. CONTATO ESPORÁDICO COM PSIQUIATRA E POR TEMPO INSUFICIENTE MÉDICO Os internos não recebiam o devido cuidado do médico responsável. depoimentos colhidos, Alguns, somente conforme se se pode consultavam verificar com o dos médico psiquiatra dias após a internação e mesmo assim eram medicados neste ínterim. Mesmo após a consulta, que muitos relatam não durar mais de 10 minutos, quando muito, recebiam medicação sem qualquer orientação e sem tomar conhecimento do desiderato daquela droga que lhe era entregue. Permaneciam, por vezes, sedados por dias, e passavam meses sem se consultar com o médico. 12. PUBLICIDADE ENGANOSA Conforme se constata da documentação que instrui essa inicial, os requeridos anunciavam no site da clínica a realização de internação involuntária e até mesmo os denominados “resgates”, que se alegava poderem ser realizados até por meios aéreos. Mesmo sem autorização legal, regulamentar e sem estrutura física e adaptada, referido serviço era “prestado”. Figura 13: Publicidade de Tratamento Involuntário em 2012 Saliente-se, novamente, que este serviço não só não pode ser prestado pela referida “clínica” (Comunidade Terapêutica), como não tem ela os equipamentos e a estrutura necessária para receber esse tipo de internação. Assim, os requeridos ofereciam um serviço que não poderiam prestar e que, de fato, ante todo o narrado, não prestavam, enganando, induzindo a erro e assim mantendo não só os pacientes, como também os familiares que custeavam o tratamento. Após a primeira inspeção e interdição administrativa da clínica, tal informação foi retirada do site. Entretanto, o tratamento continuou a ser oferecido, tanto por informações no site, como quando do contato de familiares para saber informações sobre o tratamento. E-mails trocados ente o réu Osmar e familiares de um interno instruem essa inicial. Figura 14: Informação acerca de "autorização da família" para manter o interno involuntariamente sob tratamento em 29/11/2013 Outrossim, o site de referida clínica anuncia a existência de serviços que ela não possui e/ou possui porque obriga os próprios internos a prestarem. Quando da inspeção realizada em 2013 constatou-se que havia uma paciente que era a “cozinheira” e que estava alegadamente de alta. Outrossim, mesmo antes da “alta” era quem cozinhava. Outra interna era obrigada a prestar serviços como “auxiliar de cozinha”. Caso assim não fizesse, recebia punições e o pouco de autodeterminação que tinha, como fumar um cigarro, lhe era tolhido como forma de coação para trabalhar. Os “monitores” eram outros pacientes que já estavam há mais tempo na clínica e recebiam a denominação de “GAP´S” (Grupo de Apoio ao Paciente). Figura 15: Publicidade de serviços como cozinheira e auxiliares, conselheiros, personal trainer 13. VIOLAÇÃO DA LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E CRENÇA RELIGIOSA Outra intolerável violação está na obrigatoriedade de os internos comungarem da crença dos requeridos, que se auto-denominam “pastores” e impõem aos pacientes deveres como a participação em reuniões religiosas e leitura de textos relacionadas à crenças e suas liturgias. Dentre os direitos e garantias individuais está arrolada a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença. Não se está a tentar impedir a propagação de uma religião específica ou de crenças em Deus. O que não se pode tolerar é a imposição, a compulsoriedade de participação em liturgias religiosas. A documentação encartada é robusta para demonstrar essa violação. Não só havia obrigação de ouvir exortações religiosas, como não se podia contrariar ou questionar as questões postas. Tudo, sempre, sob pena de punições. 14. VIOLAÇÃO DE NORMAS SANITÁRIAS Outrossim, no local, cuja situação da cozinha era precária, havia ainda alimentos com a data de validade vencida. Não bastasse, alguns internos tomavam água em copos de plástico, que deveriam ser descartáveis, mas que eram reaproveitados e inclusive identificar a quem pertenciam. ganhavam uma “etiqueta” para Havia “copos” feitos com latas de refrigerante e sucos. Os objetos ficavam expostos ao tempo, eram utilizados pelos internos e sequer eram lavados. Figura 16: Copo descartável reutilizado e identificado com o nome de seu usuário Não havia condições minimamente higiênicas para o acondicionamento dos “copos”. Figura 17: "Copos" feitos de lata de refrigerante e suco reutilizadas Ainda, conforme se verifica dos relatórios da Vigilância Sanitária que instruem esta ação, havia um número excessivo de leitos por quarto e medicação restrita sem prescrição médica estocada no local. Outro absurdo constatado: os requeridos trouxeram de um Mc Donald´s um copo de refrigerante cheio de catchup para que os internos utilizassem em suas refeições, de modo a evitar o custo da compra de um pote de catchup em condições próprias para consumo. Figura 18: Copo do Mc Donald´s cheio de catchup recolhido da loja e guardado na geladeira para utilização pelos internos nas refeições Os internos ainda relataram que os banhos duravam apenas cinco minutos, independentemente da necessidade dos internos. Ainda, havia a possibilidade de se tomar apenas um banho por dia. No local, durante a inspeção, foi constatado que nos relógios de água e luz eram dispostos imãs que tinha por função segurar os ponteiros dos medidores, impedindo que eles girassem e apontassem o consumo de água e energia. Foi instaurado inquérito policial para investigar a prática de furto. EM SUMA, as violações, os maus tratos, as torturas físicas e psicológicas, as ilicitudes e as irregularidades encontradas e praticadas pelos requeridos apenas denotam que não possuem eles condições de continuar a prestar serviço de atenção a pessoas dependentes de substâncias psicoativas ou que precisem de tratamento para saúde mental. São desnecessárias palavras, até mesmo porque difícil encontrá-las, para descrever tamanha falta de respeito e de humanidade. Atitudes como as acima descritas atentam contra os próprios princípios constitucionais que servem de base para o Estado Democrático de Direito, nos quais se fundamentam a nossa República, dentre eles, o maior de todos: a Dignidade da Pessoa Humana, núcleo essencial da Constituição da República e norteador do qualquer comportamento humano. III. DO DIREITO Ao refundar a República do Brasil em 1988 os Constituintes elencaram a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos da democracia a ser instalada (CR, art. 1º). Arrolaram como objetivos fundamentais da nova República: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização; a redução das desigualdades sociais e regionais; e, ainda, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (CR, art. 3º). O artigo 5º, caput, da Constituição da República estabelece que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se ao brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos do seus 78 incisos. Trata-se de um rol meramente exemplificativo, na medida em que os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais. Os direitos fundamentais possuem eficácia irradiante2, seja para o Legislativo ao elaborar a lei, sea para a Administração Pública ao “governar”, seja par ao Judiciário ao resolver eventuais conflitos. De há muito já se sedimentou que os direitos fundamentais podem e devem ser aplicados de forma horizontal, é dizer, no âmbito das relações privadas, especialmente diante de atividades privadas que tenham um certo “caráter público”3. Conforme leciona a mais abalisada doutrina4, além dos direitos fundamentais, é necessário se observar os denominados deveres fundamentais. Isto porque, muita vez, o direito Daniel Sarmento. Lenza, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 2012. 4 D. Dimoulis, L. Martins. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. 2 3 de um certo indivíduo depende do dever de outro de não violar ou de não impedir a concretização do referido direito. Assim, coroando a necessária intervenção do Ministério Público e da Defensoria Pública neste caso concreto, vale repisar que é cediça a possibilidade de particulares lesarem direitos humanos alheios. A constatação deste terrível predicado advém de construções doutrinárias que culminaram na teoria da eficácia horizontal dos Direitos Humanos. Confira-se, a propósito, a lição de Gilmar Mendes: ___________________________________________________ Ganhou alento a percepção de que os direitos fundamentais possuem uma feição objetiva, que não somente obriga o Estado a respeitar os direitos fundamentais, mas que também o força a fazê-los respeitados pelos próprios indivíduos, nas suas relações entre si. Ao se desvendar o aspecto objetivo dos direitos fundamentais, abriu-se à inteligência predominante a noção de que esses direitos, na verdade, exprimem os valores básicos da ordem jurídica e social, que devem ser prestigiados em todos os setores da vida civil, que devem ser preservados e promovidos pelo Estado como princípios estruturantes da sociedade. O discurso majoritário adere, então, ao postulado de que "as normas sobre direitos fundamentais apresentam, ínsitas a elas mesmas, um comando de proteção, que obriga o Estado a impedir que tais direitos sejam vulnerados também nas relações privadas". Tudo isso contribuiu para que se assentasse a doutrina de que também as pessoas privadas podem estar submetidas aos direitos fundamentais. A incidência das normas de direitos fundamentais no âmbito das relações privadas passou a ser conhecida, sobretudo a partir dos anos cinquenta, como o efeito externo, ou a eficácia horizontal, dos direitos fundamentais (a drittwirkung do Direito alemão)1 4 8 . Desse efeito vem-se extraindo desdobramentos práticos não negligenciáveis, que traçam novas perspectivas para o enfrentamento de questões quotidianas. O tema da eficácia horizontal dos direitos fundamentais veio a empolgar estudos e decisões judiciais em todos os países em que o nosso modelo constitucional se abebera, valendo notar que a Constituição portuguesa, por exemplo, chega a proclamar que os direitos fundamentais vinculam também as entidades privadas. (MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. Saraiva. 4 ed. p. 310) (grifei). ________________________________________________________ Sucintamente, a mencionada teoria foi elaborada a partir da constatação de que, ainda que a própria pessoa consinta com alguma restrição em relação aos seus direitos fundamentais, tais violações não serão legitimadas. A autonomia da vontade, dessa forma, é limitada pela prevalência dos direitos humanos. O caso paradigmático da teoria é o do “arremesso de anões” na França: mesmo que anões consintam em ser arremessados, por meio de um canhão, em um espetáculo circense, tal evento deverá ser proibido, por atentar à dignidade humana. O dever de efetivação dos direitos fundamentais se relaciona, sobretudo, com os direitos sociais e garantias das instituições públicas e privadas. Estamos diante da necessidade de atuação positiva do Estado, passando-se a falar em um estado que tem o dever de realizar os direitos, aquela ideia de Estado prestacionista. Nos termos do art. 5º, inciso III, da CRFB, ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante, sendo que a lei considerará crime inafinaçável a prática de tortura (Lei nº 9.455/97). A dignidade humana5 proclama o valor distinto da pessoa humana e tem, como consequência lógica, a afirmação de direitos específicos de cada ser humano, sem distinções de gênero, raça, cor, credo, sexo e outras. Objetivo e fundamento dos direitos humanos que dá unidade ao sistema constitucional brasileiro. Inicialmente, sua justificação constitucional foi atribuída constitucionais ao jusnaturalismo. como paradigmas Com da a evolução organização dos dos textos Estados Democráticos de Direito, sua positivação foi considerada necessária para permitir uma interpretação do texto constitucional consentânea com os respectivos momentos históricos, buscando-se, ao mesmo tempo, preservar as conquistas dos direitos fundamentais e promover sua plena realização. As concepções em voga destacam suas dimensões individual, coletiva e personalista. A individual pressupõe que cada ser humano, cuidando dos seus interesses, protege e realiza os interesses da coletividade; perspectiva característica do liberalismo burguês presente na Revolução Francesa e que impõe limites à ação do Estado sobre a esfera do indivíduo. Esta concepção coloca o ordenamento jurídico sob uma interpretação que privilegia o indivíduo em detrimento do coletivo. A dimensão coletiva prioriza o bem coletivo e global, apesar de salvaguardar os interesses individuais; os interesses da coletividade devem prevalecer sobre os individuais quando houver conflito entre eles; os direitos da pessoa humana não são absolutos, 5 D. Dimoulis. Dicionário de Direito Constitucional. 2012. mas sempre passíveis de interpretação no âmbito das finalidades do coletivo. Por fim, a corrente personalista caracteriza-se por buscar a harmonia, por meio da interpretação das normas jurídicas, entre os valores individuais e os coletivos. A CRFB prevê, em seu art. 1º, III, a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro. Trata-se de norma constitucional que deve balizar toda e qualquer ação do ente estatal e de seus agentes, determinando seus parâmetros em face dos objetivos traçados para os poderes constituídos da República. A CRFB consagra, também, a inviolabilidade da intimidade, do domicílio dos indivíduos, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas no art. 5º, X, XI e XII. As disposições constitucionais citadas revelam que, no caso brasileiro, o legislador constituinte buscou dispensar tratamento unitário a essa categoria de direitos fundamentais, inclusive para poder dispor sobre seus limites no meio coletivo e de modo a torná-los factíveis de realização pelos poderes constituídos da República, a saber, Judiciário, Legislativo e Executivo. Apesar de a dignidade da pessoa humana ser conceito sujeito a múltiplas interpretações, há certo consenso, na doutrina, acerca de tratar-se de princípio de direito fundamental, o qual determina interpretação sobre os direitos da pessoa, revelando um minimun jurídico invulnerável que todo estatuto político deve assegurar. O texto constitucional busca assegurar a possibilidade de o indivíduo encontrar meios para promover o pleno desenvolvimento de sua personalidade. Para tanto, o indivíduo deve ter assegurada, para si, a possibilidade de autodeterminar seu destino, o que tem levado a doutrina a afirmar acerca da autodisponibilidade de exercício e fruição da dignidade da pessoa humana. Perez Luño destaca que a dignidade da pessoa humana possui duas dimensões constitutivas: uma negativa e outra positiva. Aquela significa que a pessoa não venha a ser objeto de ofensas ou humilhações. Daí o nosso texto constitucional dispor, coerentemente, que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante” (art. 5º, III). Com efeito, “a dignidade – ensina Jorge Miranda – pressupõe a autonomia vital da pessoa, a sua autodeterminação relativamente ao Estado, às demais entidades públicas e às outras pessoas”. O princípio da dignidade humana6 é o fundamento filosófico e jurídico dos direitos humanos e se expressa nestes direitos, funciona também como metanorma, indicando como devem ser interpretadas e aplicadas as outras normas e princípios, em especial as normas definidoras de direitos fundamentais, ampliando o seu sentido, reduzindo-os ou auxiliando em conflitos entre direitos fundamentais. A dignidade da pessoa humana é a chave de interpretação material das demais normas jurídicas. Com o estudo da antropologia filosófica e da filosofia do direito, pode-se estabelecer, com maior precisão, os contornos do princípio da dignidade da pessoa humana, que é uma unidade formada de corpo e alma. O Tribunal Constitucional alemão adotou essa posição em decisão tomada no ano de 1981. Antonio Junqueira Azevedo estabelece que a dignidade traduz-se em respeito absoluto à vida humana. Desde os horrores da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional traçou, em 1945, a meta de “preservar as gerações vindouras dos flagelos da guerra”, que deveria ser alcançada por meio de um sistema de segurança coletiva, através da ONU. Concluiu-se 6 que todos os Estados-Membros deveriam cooperar MAGALHÃES, Leslei Lester dos Anjos. A Dignidade da Pessoa Humana e o Direito à Vida. 2012. estreitamente em todas as áreas da vida internacional. Por meio da cooperação, graves violações dos direitos humanos deveriam ser evitadas e boas experiências, trocadas. Essa abordagem está consubstanciada no art. 55 da Carta das Nações Unidas. A Declaração Universal dos Direitos do Homem, já no seu preâmbulo reconhece a dignidade inerente e os direitos inalienáveis de todos os membros da sociedade como condição para liberdade, justiça e paz no mundo. Em seus trinta artigos, são listados direitos políticos e liberdades civis (arts. 1–22), bem como direitos econômicos, sociais e culturais (arts. 23–27). À primeira categoria pertencem, entre outros, o direito à vida e à integridade física, a proibição da tortura, da escravatura e de discriminação (racial), o direito de propriedade, o direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, o direito à liberdade de opinião e de expressão e à liberdade de reunião. Preleciona o abalisado doutrinador constitucionalista André de Carvalho Ramos7 que a Declaração e Programa de Ação da Conferência Mundial de Viena (1993) implantou, em definitivo, o dever dos Estados de punir criminalmente os autores de graves violações de direitos humanos para que seja consolidado o Estado de Direito, tendo sido estabelecido que os “Estados devem ab-rogar leis conducentes à impunidade de pessoas responsáveis por graves violações de direitos humanos, como a tortura, e punir criminalmente essas violações, proporcionando, assim, uma base sólida para o Estado de Direito”. Assim, ficou consagrada uma nova forma de relacionamento entre a proteção dos direitos humanos e o direito penal, com foco, em especial, no revigorado desejo do direito internacional dos 7 Ramos, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. 2012. direitos humanos pela repressão penal aos violadores de direitos humanos. No plano infraconstitucional, conforme dispõe a Lei Federal nº 10.216/01, as internações psiquiátricas de qualquer natureza (inclusive as involuntárias ou compulsórias) somente poderão ser realizadas mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos e em estabelecimentos de saúde que ofereçam leitos e serviços médicos ininterruptos. O mesmo diploma estabelece que a pessoa portadora desses transtornos tem direito a ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade (art. 2º, II); sendo protegida contra qualquer forma de abuso e exploração (art. 2º, III); devendo o tratamento ser estruturado de forma a oferecer assistência integral à pessoa, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicólogos, ocupacionais, de lazer, e outros. Ainda que fosse possível às comunidades receber pacientes involuntários, lhes é exigida a comunicação individual de cada qual, no prazo de 72 horas, ao Ministério Público estadual, conforme o disposto no art. 7º, parágrafo 1º, da referida Lei. No entanto, a referida comunidade terapêutica está promovendo internações involuntárias, à revelia das normas acima mencionadas e dos regulamentos do Ministério da Saúde. Com a reorganização da atenção psicossocial no âmbito do Sistema Único de Saúde, disciplinada pela Portaria GM/MS n. 3.088, de 23 de dezembro de 2011, as comunidades terapêuticas foram reconhecidas como componentes da rede de atenção, na qualidade de “serviços de saúde de atenção residencial”, cuja importância não se questiona à vista dos relevantes serviços que prestam em saúde mental, especialmente para portadores de dependência química em decorrência de uso de substâncias psicoativas. Não obstante, não podem oferecer leitos de internação e seus serviços não devem substituir a assistência hospitalar, quando esta for necessária8. Esta problemática, aliás, já fora antevista pela Resolução da Diretoria Colegiada/ANVISA nº 29/2011, preconizando que a permanência de qualquer usuário (ou residente) somente pode ser feita com o seu consentimento expresso: Art. 15. Todas as portas dos ambientes de uso dos residentes devem ser instaladas com travamento simples, sem o uso de trancas ou chaves. (...) Art. 19. No processo de admissão do residente, as instituições devem garantir: (...) III - a permanência VOLUNTÁRIA; IV-a possibilidade de interromper o tratamento a qualquer momento, resguardadas as exceções de risco imediato de vida para si e ou para terceiros ou de intoxicação por substâncias psicoativas, avaliadas e documentadas por profissional médico;” Tais serviços têm por função a oferta de um ambiente protegido, técnica e eticamente orientados, que forneça suporte e tratamento aos usuários abusivos e/ou dependentes de substâncias psicoativas, durante período estabelecido de acordo com programa terapêutico adaptado às necessidades de cada caso. É um Of. Circular nº 17/12-CAO/Saúde-i. Ministério Público do Estado do Paraná - Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Proteção à Saúde Pública. 8 lugar cujo principal instrumento terapêutico é a convivência entre os pares. Oferece uma rede de ajuda no processo de recuperação das pessoas, resgatando a cidadania, buscando encontrar novas possibilidades de reabilitação física e psicológica, e de reinserção social. A regra vale mesmo para aquelas comunidades terapêuticas que não sejam contratadas/conveniadas com o SUS, pois ao exercerem reconhecidamente ações de atenção à saúde mental precisam observar as normas sanitárias específicas de funcionamento, nos termos do art. 22, da Lei n. 8080/90. Ora, no caso presente, pelas provas documentais e testemunhais produzidas, a entidade em questão está muito distante de ser considerada COMUNIDADE TERAPÊUTICA, já que o tratamento dispensado aos seus residentes não leva em consideração o respeito à cidadania e à dignidade de cada uma dessas pessoas que se encontram numa situação extremamente delicada e frágil, amarradas que estão ao vício do álcool e das drogas. Com efeito, no momento em que esses dependentes mais precisam de um tratamento que lhes possibilite uma recuperação, a fim de resgatar-lhes auto estima, proporcionando-lhes uma reabilitação física e psicológica, OSMAR, VILMA e BRUNO oferecem-lhes castigos físicos, psíquicos e morais, desrespeitando a dignidade e a integridade de cada um. Sua entidade não oferece sequer programa terapêutico para os seus residentes, privando-os da liberdade mais elementar. Para mais, para ministração de medicamentos, é necessário contratar farmacêutico para o dispensário de medicamentos, bem como abrir livro de controle dos medicamentos controlados. Outras considerações devem ser feitas e aqui residem os principais abusos. Existe uma grande diferença entre COMUNIDADE TERAPÊUTICA e CLÍNICA DE INTERNAÇÃO PARA TRATAMENTO DE DEPENDENTES QUÍMICOS. Como visto a entidade não pode ser considerada uma comunidade terapêutica por violação a todas as exigências elencadas acima, quanto mais praticar atos de clínica de internação, que é o que estamos vendo na prática, principalmente após os últimos acontecimentos envolvendo o estabelecimento e seus representantes legais e fáticos. A diferença marcante entre tais entidades é a voluntariedade da submissão ao tratamento, aliás, o sucesso de qualquer tratamento fica totalmente comprometido quando não há aceitação por parte do internado. Como COMUNIDADE TERAPÊUTICA, na qual vigora o princípio da voluntariedade na submissão ou aderência ao tratamento, a CLÍNICA RESTAURAÇÃO jamais poderia conduzir qualquer pessoa às suas dependências, sem consentimento, mesmo que houvesse termo assinado por parente ou responsável, pois tal atividade é privativa de CLÍNICAS DE RECUPERAÇÃO. Aqui está o grande abuso praticado pela requerida que tem gerado repercussão, inclusive criminal, para seus responsáveis. A matéria, como já pontado, vem disciplinada pela Portaria RDC n.º 29/11, da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que estabelece Regulamento Técnico disciplinando as exigências mínimas para o funcionamento de serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso ou abuso de substâncias psicoativas, segundo modelo psicossocial, também conhecidos como Comunidades Terapêuticas. As pessoas em avaliação que apresentarem grau de comprometimento grave no âmbito orgânico e/ou psicológico não são elegíveis para tratamento nestes serviços, devendo ser encaminhados a outras modalidades de atenção, no caso, para clínicas especializadas. Recomenda-se a Comunidade Terapêutica para paciente com comprometimento leve ou moderado. Em síntese, o que se defende é que não se está diante de problemas pontuais, relativos à falta de um ou outro profissional, à condição de um ou outro aposento, etc. Tem-se, na verdade, um problema até mesmo de método/essência, já que se trabalha mediante a restrição de liberdade, fora das hipóteses legais, e já que se trabalha mediante técnicas que aniquilam a dignidade e o senso de valor do dependente químico, quais sejam: a sedação por períodos longos, a restrição às visitas familiares, a aplicação de castigos corporais e de contenção física, e a ministração indiscriminada de remédios por pessoas sem habilitação para tanto. E não é preciso falar que tais técnicas, além de ilegais, tem índice de sucesso muito baixo. Relevante, também, a transcrição do artigo 33, inciso III da Lei Complementar Estadual 791/95, que estabeleceu o Código de Saúde no Estado de São Paulo: “Artigo 33 - No tocante à saúde mental, o SUS, estadual e municipal, empreenderá a substituição gradativa do procedimento de internação hospitalar pela adoção e o desenvolvimento de ações predominantemente extra-hospitalares, na forma de programas de apoio à desospitalização que darão ênfase à organização e manutenção de redes de serviços e cuidados assistenciais destinada a acolher os pacientes em seu retorno ao convívio social, observados, ainda, os seguintes princípios: [...] III - Toda pessoa acometida de transtorno mental terá direito a tratamento em ambiente o menos restritivo possível, o qual só será administrado depois de o paciente estar informado sobre o diagnóstico e os procedimentos terapêuticos, e expressar seu consentimento; IV - A internação psiquiátrica será utilizada como último recurso terapêutico, e objetivará a mais breve recuperação do paciente; V - Quando necessária a internação de pessoa acometida de transtorno mental, esta se dará, preferentemente, em hospitais gerais; e VI - A vigilância dos direitos indisponíveis dos indivíduos assistidos será realizada de forma articulada pela autoridade sanitária local e pelo Ministério Público, especialmente na vigência de internação psiquiátrica involuntária”. Além disso, constituindo-se a requerida CLÍNICA RESTAURAÇÃO como pessoa jurídica de direito privado, há que se observar também a ótica do Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal nº 8.078/90), sendo considerado fornecedor, nos moldes do seu art. 3º, pois desenvolve atividade de prestação de serviços, e seus clientes, na qualidade de consumidores, utilizam os serviços como destinatários finais (art. 2º). No que tange à proteção da saúde do consumidor, necessário transcrever do mesmo diploma legal: “Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo (...)”. “Art. 8º. Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores (...)”. “Art.10. O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou que deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança”. Oportuno citar, a título meramente ilustrativo, o teor de duas resoluções (Resolução CFM nº 1.408/94 e Resolução CFM nº 1.598/2000), que especificam, de forma taxativa, os procedimentos a serem desenvolvidos, visando, precipuamente, evitar atuações irregulares, de forma a causar violações aos direitos fundamentais. A primeira, em síntese, regulamenta sobre as necessidades de “consentimento esclarecido do paciente” (art. 4º e parágrafo único); a “proibição de “procedimentos lesivos à personalidade e à saúde física e psíquica dos pacientes” (art. 5º, parágrafo II), além de outras. A segunda determina que “um paciente em tratamento psiquiátrico somente deve ser submetido à contenção física por prescrição médica, devendo ser diretamente acompanhado, por um auxiliar do corpo de enfermagem durante todo o tempo que estiver contido” (art. 11); Como se vê, basta uma simples análise da legislação para se constatar as graves irregularidades da comunidade terapêutica. Não é por outra razão que a comunidade terapêutica se reveste das seguintes características de abordagem: _______________________________________________ Deve ser aceita voluntariamente. Não se destina a todo tipo de dependente. Isso ressalta a importância fundamental da triagem, como início do processo terapêutico. Muitas vezes, algumas CTs, por meio de suas equipes, se sentem onipotentes e ‘adoecem’ acreditando que, se o residente não quer ficar, é porque não quer recuperação. Não consideram que o residente tem o direito de escolher como e onde quer se tratar. Deve reproduzir, o melhor possível, a realidade exterior para facilitar a reinserção. Deve fornecer um modelo de tratamento residencial altamente estruturado. Atua por um sistema de pressões provocadas de modo artificial. Estimula a explicação da patologia do residente, diante dos partes. Os pares servem de espelho da consequência social de atos do residente. Há um clima de tensão afetiva. O residente é o principal ator do próprio tratamento. A equipe oferece apenas apoio e ajuda. (DIEH, Alessandra; CORDEIRO, Daniel Cruz; Comunidade Laranjeira, Terapêuticas. Ronaldo In: (Orgs.). Dependência química, prevenção, tratamento e políticas públicas. Porto Alegre: Artmed, 2011, Cd Rom, p.63). _______________________________________________ Nesse sentido, lamentavelmente observa-se que TODOS estes preceitos fundamentais foram desrespeitados pela Comunidade-ré e por seus representantes e prepostos que, de forma inescrupulosa, submeteram os internos a condições desumanas e inacreditáveis, justificando a propositura desta ação como busca de tutelas urgentes e severas. Diante destas irregularidades, torna-se imprescindível a intervenção judicial para que tal entidade de direito privado, prestadora de serviços de saúde e, portanto, de relevância pública, e os seus representantes e prepostos deixem de colocar em risco a saúde e a vida das pessoas que recorrem aos seus préstimos. A suspensão das atividades pela comunidade-ré é imperativa, sendo ABOLUTAMENTE EVIDENTE que não pode continuar a funcionar, ainda que parcialmente, devendo, pois, ser INTEGRALMENTE INTERDITADA, com a retirada de todos os pacientes ali internados, caso ainda haja alguém no local, já que não houve interdição administrativa pela Viglância Sanitária, em que pese as inúmeras irregularidades constatadas in loco, em razão de seu COMPLETO desrespeito a todos os preceitos legais cristalizados em todo nosso ordenamento jurídico. IV. DA LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DA DEFENSORIA PÚBLICA O Ministério Público, instituição essencial à Justiça, detêm, dentre suas atribuições, a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, dispondo de legitimidade para a tutela preventiva e repressiva dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos e individuais indisponíveis, tal como preceituam os artigos 127 e 129, inciso III, da Constituição Federal, o art. 103, inciso VIII, da Lei Complementar Estadual nº. 734/93 (Lei Orgânica do Ministério Público do Estado de São Paulo), os arts. 1º e 4º, da Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública). A missão constitucional do Ministério Público, como visto, é agir em defesa dos interesses difusos e coletivos e individuais indisponíveis (art. 129, III da Constituição Federal). Mas não é só. A Lei nº 10.216/2201 dispõe sobre a legitimidade do Ministério Público, no momento em que preconiza que os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra, bem como são direitos da pessoa portadora de transtorno mental ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades; ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade, de ser protegida contra qualquer forma de abuso e de exploração e de ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis. Ainda nesse contexto, cumpre também ao Ministério Público, em seu papel constitucional, promover a ação competente para a tutela jurídica das pessoas idosas, questão de interesse social e coletivo. Na lição de Hugo Nigro Mazzilli, a atuação do Ministério Público na proteção das pessoas idosas visa assegurar e preservar seus direitos sociais; criar melhores condições para o desenvolvimento de sua autonomia, integração e efetiva particiação na sociedade; defender-lhes o direito à vida, à saúde, ao amparo, à cidadania, à liberdade, à dignidade, à segurança, ao lazer e ao bemestar e, ainda, buscar erradicar qualquer forma de desigualdade, discriminação, marginalização e preconceito decorrentes de sua condição. O Estatuto do Idoso, Lei nº 10.741/03, no artigo 74, norma que integra o microssistema processual coletivo, dispõe que incumbe ao Ministério Público, dentre outras, instaurar o inquérito civil e a ação civil pública para a proteção dos direitos e interesses difusos ou coletivos, individuais indisponíveis e individuais homogêneos do idoso; atuar como substituto processual do idoso em situação de risco; promover inspeções e diligências investigatórias; requisitar informações e documentos particulares de instituições privadas; zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados ao idoso, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis; inspecionar as entidades públicas e particulares de atendimento e os programas de que trata esta lei, adotando de pronto as medidas administrativas ou judiciais necessárias à remoção de irregularidades verificadas. De outro lado, o Ministério Público também possui legitimidade para atuar em benefício de pessoas portadoras de deficiência, quer se trate de limitação física ou mental, em sede de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos. Assim sendo, no âmbito da ação civil pública, podem ser ajuizadas medidas judiciais relativas com saúde, área ocupacional, dentre outras. No caso em questão a legitimidade relaciona-se ao objeto da ação, pois durante o transcurso das investigações promovidas pela Promotoria de Justiça local, nos autos de inquérito civil nº 14.0632.0000132/2011, foi constatado que os requeridos violaram direitos inerentes a pessoas dependentes químicos, pessoas idosas, entre outros que não se teve notícia e possivelmente não se conseguirá determinar durante estadia na COMUNIDADE TERAPÊUTICA denominada Clínica RESTAURAÇÃO, sem que houvesse instalações físicas adequadas, tanto de habitualidade como de atendimento por profissionais qualificados, alimentação adequada, segurança, acompanhamento médico adequado, medicação de uso controlado sem a devida prescrição médica e manutenção de seus pacientes em cárcere privado e isolamento familiar. Não bastasse a tutela dos direitos individuais indisponíveis da pessoa cometida de doença mental, no caso em tela, pessoas que apresentam dependência química ou psíquica de substância entorpecente, verifica-se, igualmente, que o artigo 3º, da Lei nº 10.216/2001 determina que é responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde, com a devida participação da sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam assistência em saúde a essas pessoas. A citada lei obriga as entidades de longa permanência a firmar contrato de prestação de serviço com pessoa cometida de saúde mental abrigada, caracterizando “a natureza contratual dos serviços de atendimento aos doentes mentais em clínica de recuperação, o que faz incidir o Código de Defesa do Consumidor, de modo a salvaguardar a qualidade da prestação. Desse modo, aplica-se a Lei nº 8.078/90 aos contratos de prestação de serviço por entidade de longa permanência ou casa-lar, diante da vulnerabilidade inconteste em que se encontra o doente mental, havendo desequilíbrio em relação à comunidade prestadora de serviços, que dita as regras, sendo, pois, uma relação entre desiguais. Uma vez compreendida essa relação como de consumo, aplica-se aos contratos de prestação de serviços em tela todos os princípios do Código de Defesa do Consumidor a esse respeito. Outrossim, incide o princípio geral da vulnerabilidade, afinal, o doente mental se mostra a parte mais frágil da relação, de modo que merece especial proteção, devendo haver em seu favor: a facilitação de seu acesso à Justiça; o estabelecimento da responsabilidade objetiva, aliada à inversão do ônus da prova; a interpretação das cláusulas e normas jurídicas sempre de forma mais favorável ao idoso consumidor – art. 4º, II, CDC -, dentre outros princípios também aplicáveis ao respectivo contrato. Assim, também com fundamento no art. 1º, inc. II, da Lei Federal nº 7.347/85, que prevê a tutela dos interesses do consumidor por ação civil pública, está legitimado o Ministério Público à propositura da presente ação civil pública. O interesse de agir segue no mesmo caminho, pois o exame dos fatos e dos fundamentos, por si só, enseja o reconhecimento de que há necessidade do ajuizamento da ação civil pública para a proteção dos direitos das pessoas acometidas de doença mental que se encontravam abrigadas e de tantas outras que podem ser afetadas pela continuidade dos serviços prestados pelos requeridos aqui nesta cidade ou em qualquer outro lugar. Interessa, pois, à sociedade, que sejam adotadas medidas eficazes, a fim de fazer cessar o dano e que sejam reparados os prejuízos sofridos pelas pessoas lesadas e pela coletividade indeterminada que é afetada quando há tamanha e flagrante violação de direitos humanos, especificamente quanto aos dependentes químicos e psíquicos de substância entorpecente e pessoas Justifica-se, pois, plenamente, a atuação ministerial no caso. Salienta-se que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 atribuiu ao Ministério Público, dentre outras coisas, o dever de defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis (art. 127), ao mesmo tempo em que lhe confiou o zelo pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos nela assegurados, promovendo as necessárias medidas à sua garantia (art. 129, inc. II). No mesmo sentido dispõem a Constituição Estadual, e a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público. A Carta Política não deixa qualquer dúvida a respeito da natureza jurídica do bem saúde. É um direito social (art. 6º), enquadrado expressamente, ainda, como o único serviço dito de relevância pública (art. 197), cujo traço distintivo em face de qualquer outro, em tal qualificação, repousa basicamente na primariedade e essencialidade do seu objeto em relação à sobrevivência humana. A par disso, confirma-se a necessidade de fortalecimento de todas as instâncias de controle das práticas sanitárias, ressaltando, neste ponto, o papel constitucionalmente atribuído ao parquet, que tem o dever, entre outras coisas, de zelar pelos serviços de relevância pública. Além de coletivamente legitimado, em relação ao direitos individuais homogêneos também afetados pela conduta dos requeridos, evidenciada está a legitimação ministerial, haja vista que os lesados estão dispersos por todo o país (Acre, Mato Grosso, Brasília, Goiás, Rio de Janeiro, Minas Gerais, etc.) e as atividades da clínica, nos moldes irregulares constatados, se protraem por anos, de modo que há demasiado número de lesados e dispersão relevante das lesões individuais. Portanto, diante do contexto constitucional, extrai-se que o Ministério Público, de modo genérico, promove todas as medidas necessárias para a restauração do respeito aos direitos constitucionalmente assegurados. Consequentemente, clara está a legitimidade postulatória naqueles casos de violação de normas que acarretem prejuízos a serviços de relevância pública, devendo sua defesa ser feita através de ação civil pública, na medida em que há ameaça de lesão à saúde de toda a coletividade, com destaque para um grupo de pessoas. No mais, a população visada pelas Rés é facilmente captada como necessitada, em especial porque privadas de liberdade e impedidas de realizar contato livre com o mundo externo. Ademais, compõem grupo vulnerável, que necessita de atenção especial do Estado. Nesse sentido já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, exatamente em situação em que a discussão travada residia na legitimidade ativa da Defensoria Pública. No caso, pontuou a Corte que "quanto mais democrática uma sociedade, maior e mais livre deve ser o grau de acesso aos tribunais que se espera seja garantido pela Constituição e pela lei à pessoa, individual ou coletivamente", mormente quando se busca tutelar direitos de grupos vulneráveis. Para o Superior Tribunal de Justiça, "a categoria ético-política, e também jurídica, dos sujeitos vulneráveis inclui um subgrupo de sujeitos hipervulneráveis, entre os quais se destacam, por razões óbvias, as pessoas com deficiência física, sensorial ou mental". Destarte, "é dever de todos salvaguardar, da forma mais completa e eficaz possível, os interesses e direitos das pessoas com deficiência, não sendo à toa que o legislador refere-se a uma "obrigação nacional a cargo do Poder Público e da sociedade" (Lei 7.853/89, art. 1°, § 2°, grifo acrescentado)9. Destarte, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo tem legitimidade ativa para propor a presente ação, eis que, como Instituição essencial à função jurisdicional, a qual incumbe a defesa dos necessitados (art. 134 da CF/88 e art. 103 da CESP/89), é Instituição pela qual se concretizam objetivos fundamentais da República, como o de construir uma sociedade livre, justa e solidária, e mais especialmente o de erradicar a pobreza e a marginalidade, reduzindo as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, incs. I e III da CF/88 c/c art. 3º da Lei Complementar Estadual 988/06). Aliás, entre os objetivos da Defensoria Pública estão a prevalência e efetividade dos direitos humanos e a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório (artigo 3ºA, III e IV da Lei Complementar 80/94). Neste contexto, constitui atribuição institucional da Defensoria Pública promover ação civil pública para a tutela de qualquer interesse difuso, coletivo e individual homogêneo (art. 5º, inc. VI, alínea ‘g’ da Lei Complementar Estadual 988/06), sendo que a todo e qualquer Defensor Público cumpre executar referidas atribuições institucionais na defesa judicial, no âmbito coletivo, dos necessitados (art. 50 da Lei Complementar Estadual 988/06). Mais do que isso, é função institucional da Defensoria Pública "promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, 9 REsp 931513 / RS, DJe 27/09/2010. coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela", reservando-se especial atenção para "a defesa dos interesses individuais e coletivos da pessoa portadora de necessidades especiais e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado" (artigo 4º, X e XI da Lei Complementar 80/94). A legitimidade em tela, outrossim, é conferida à Defensoria Pública pelo próprio artigo 5.° da Lei 7.347/85, verbis: Art. 5. Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: I - o Ministério Público; II - a Defensoria Pública; III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; V - a associação que, concomitantemente: a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. (NR) Dessa forma, indiscutível a legitimidade da Defensoria Pública para o ajuizamento de Ação Civil Pública, mormente para a tutela do direito de grupo hipervulnerável. V. DO DANO MORAL COLETIVO A reparação por danos morais é direito fundamental do indivíduo, previsto expressamente no artigo 5º, incisos V e X da Constituição da República Federativa do Brasil. No caso em apreço não é possível individualizar, de forma inequívoca, quais e quantas pessoas foram afetadas direta ou indiretamente pelas condutas transgressivas dos réus praticadas ao longo dos anos. Outrossim, todo o corpo coletivo é afetado quando há violação de direitos fundamentais, ainda mais quando há violação tão grave! O ser humano, com fim em si mesmo, não pode tolerar que mesmo após os degradantes exemplos das grandes guerras e de país não democráticos, se continue a DESUMANIZAR tanto as pessoas, reduzindo-as a objetos para consecução de fins ilícitos. Nossas Cortes Superiores já reconheceram a possibilidade de reconhecimento de dano moral coletivo até mesmo no cause de fraudes a procedimentos licitatórios. Como abaixo se verá, houve reconhecimento pelo Tribunal de Justiça Bandeirante da existência de dano moral coletivo indenizável na venda de bebidas alcoólicas à menores de idade. Assim, mesmo que não houvesse esses exemplos pretorianos, é evidente a ocorrência de dano a todo o corpo social quando a dignidade humana é tamanhamente violada. Outrossim, não se pode mensurar quantas pessoas foram atraídas pela publicidade enganosa que os requeridos faziam em seu site e em contato com as pessoas que os procuravam em busca de uma ilusória ajuda. Nas palavras de Caio Mário da Silva Pereira10, o dano moral “decorre de injusta violação à situação jurídica subjetiva extrapatrimonial, tutelada pela ordem civil - constitucional através da cláusula geral de tutela da pessoa humana (através da sua personalidade) que, por sua vez, se fundamenta no princípio maior de dignidade da pessoa humana”. Com a evolução da tutela judicial dos direitos coletivos (em sentido lato), a partir do advento da Lei nº 7.347/85 e fortalecida por uma série de dispositivos legais subsequentes, além do viés constitucional trazido pela Carta Magna de 1988, firmou-se no ordenamento jurídico brasileiro o entendimento de que também merecem proteção jurídica aqueles direitos que extrapolam a esfera estritamente individual, passando-se a tutelar os direitos de grupos, classes ou categorias de pessoas, ainda que a reparação seja indivisível entre seus titulares. Sobre a proteção aos direitos transindividuais no ordenamento jurídico, vale citar as palavras de Hugo Nigro Mazzilli11: “Situados numa posição intermediária entre o interesse público e o interesse privado, existem os interesses transindividuais (também chamados de interesses coletivos, em sentido lato), os quais são compartilhados por grupos, classes ou categorias de pessoas (...). São interesses que excedem o âmbito estritamente individual, mas não chegam propriamente a constituir interesse público. (...) Sob o aspecto processual, o que caracteriza os interesses transindividuais, ou de grupo, não é apenas o fato de serem compartilhados por diversos titulares individuais reunidos pela mesma relação jurídica ou fática. Mais do que isso, é a circunstância de que a ordem jurídica reconhece a necessidade “Instituições de Direito Civil”, volume II, 21ª edição, Rio de Janeiro, Forense, 2006, p. 382 Mazzilli, Hugo Nigro, “A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo”, 24ª edição, São Paulo, Saraiva, 2011. 10 11 de que o acesso individual seja substituído por um acesso coletivo, de modo que a solução obtida no processo coletivo não apenas deve ser apta a evitar decisões contraditórias como, ainda, deve conduzir a uma solução mais eficiente da lide, porque o processo coletivo é exercido em proveito de todo o grupo lesado”. Diante disto, é inegável que, ao reconhecer a proteção jurídica na esfera transindividual, o ordenamento também estendeu a noção de dano moral para a tutela jurídica dos direitos difusos e coletivos. Foi com este manifesto propósito que o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), por meio de seu artigo 6º, inciso VI, reconheceu, como direito básico do consumidor, a prevenção, proteção e a reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos. Ressalte-se que as disposições processuais daquele diploma cabem a quaisquer direitos transindividuais, e não só aos consumidores, por conta da interação do Código de Defesa do Consumidor e da Lei da Ação Civil Pública, os quais constituem, em parte, um microssistema processual de tutela destes interesses e direitos. De qualquer forma, o artigo 1º da Lei 7.347/85, com redação dada pela Lei nº 8.884/94, passou a prever expressamente o cabimento das ações de responsabilização por danos morais causados a quaisquer interesses difusos ou coletivos, a serem regidas por aquela mesma Lei. Inequívoca, portanto, a vontade do legislador em atribuir a possibilidade de reparação de danos morais coletivos. Isto se justifica porque os interesses de uma coletividade, sendo ela sujeito de direitos, não se resumem a questões patrimoniais, havendo também um elo de valores que a constitui, cujo caráter é extrapatrimonial. Na medida em que há ofensa antijurídica a algum dos elementos que caracterizam aquela reunião de pessoas que formam uma coletividade, afronta-se mais do que a moral individual de cada um dos membros que a compõem, mas a do grupo como um todo, independentemente do fato de eventualmente não ser possível identificar seus componentes, nem tampouco ser impossível atribuir sentimentos individuais a esta coletividade. A conclusão lógica é que, se por um lado nem todos os interesses transindividuais possuem caráter diretamente patrimonial, por outro lado, deve haver instrumento hábil à reparação judicial dos interesses extrapatrimoniais, o que se traduz pela valoração do dano para fins indenizatórios, sob pena de se denegar o acesso à justiça. André de Carvalho Ramos12, ao reconhecer a hipótese de da no moral coletivo, considera “... com isso, vê- se que a coletividade é passível de ser indenizada pelo abalo moral, o qual, por sua vez, não necessita ser a dor subjetiva ou estado anímico negativo, que caracterizariam o dano moral na pessoa física, pode não ser o desprestígio do serviço público, do nome social, a boa imagem de nossas leis ou mesmo o desconforto da moral pública, que existe no meio social”. Não obstante, é certo que resistência já houve quanto à admissibilidade do dano moral coletivo no ordenamento jurídico brasileiro, sob o errôneo argumento de que o dano moral estaria vinculado à noção de dor ou sofrimento psíquico do indivíduo, o que seria imensurável no âmbito dos direitos transindividuais. RAMOS, André de Carvalho. A Ação Civil Pública e o Dano Moral Coletivo. Revista de Direito do Consumidor nº 25. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 83. 12 Sobre o tema, explica mais uma vez Hugo Mazzilli13 leciona que “não se justifica o argumento de que não pode existir dano moral coletivo uma vez que o dano moral estaria vinculado à noção de dor ou sofrimento psíquico individual. De um lado, os direitos transindividuais nada mais são do que um feixe de lesões individuais; de outro, mesmo que se recusasse o caráter de soma de lesões individuais para o dano moral coletivo, seria necessário lembrar que hoje também se admite uma função punitiva na responsabilidade civil, o que confere caráter extrapatrimonial ao dano moral coletivo”. É inevitável, portanto, que a consagração da coletivização dos direitos enseje que institutos jurídicos clássicos como o dano moral acompanhem tais mudanças e abandonem aquele ultrapassado prisma exclusivamente individualista, a fim de que seja garantida a efetiva tutela dos direitos transindividuais. Destarte, ao se admitir no ordenamento jurídico brasileiro o dano moral na esfera das pessoas jurídicas, o que fora pacificado pela Súmula 227 do STJ, expurgou-se cabalmente a ideia de dano moral limitado à dor ou sofrimento psíquico individual. Por tais motivos, a reparabilidade dos danos morais causados à coletividade tem recebido amplo acolhimento na jurisprudência brasileira, tornando-se, inclusive, posição unânime na 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça: _______________________________________________ ADMINISTRATIVO-TRANSPORTE - PASSE LIVRE – IDOSOS-DANO MORAL COLETIVO - DESNECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DA DOR E DE SOFRIMENTO - APLICAÇÃO EXCLUSIVA AO DANO MORAL INDIVIDUAL - CADASTRAMENTO DE IDOSOS PARA USUFRUTO DE DIREITO - ILEGALIDADE DA EXIGÊNCIA PELA EMPRESA DE 13 Obra já citada. TRANSPORTE - ART. 39, § 1º DO ESTATUTO DO IDOSO - LEI 10741/2003 VIAÇÃO NÃO PREQUESTIONADO. 1. O dano moral coletivo, assim entendido o que é transindividual e atinge uma classe específica ou não de pessoas, é passível de comprovação pela presença de prejuízo à imagem e à moral coletiva dos indivíduos individualidades enquanto percebidas síntese como das segmento, derivado de uma mesma relação jurídica-base. 2. O dano extrapatrimonial coletivo prescinde da comprovação de dor, de sofrimento e de abalo psicológico, suscetíveis de apreciação na esfera do indivíduo, mas inaplicável aos interesses difusos e coletivos. 3. Na espécie, o dano coletivo apontado foi a submissão dos idosos a procedimento de cadastramento para o gozo do benefício do passe livre, cujo deslocamento foi custeado pelos interessados, quando o Estatuto do Idoso, art. 39, § 1º exige apenas a apresentação de documento de identidade. 4. Conduta da empresa de viação injurídica se considerado o sistema normativo. 5. Afastada a sanção pecuniária pelo Tribunal que considerou as circunstancias fáticas e probatória e restando sem prequestionamento o Estatuto do Idoso, mantém-se a decisão. 5. Recurso especial parcialmente provido. (STJ, REsp1057274/RS, CALMON, SEGUNDA Rel. Ministra TURMA, ELIANA julgado em 01/12/2009, DJe 26/02/2010). _______________________________________________ Ou ainda, em outro aresto: _______________________________________________ RECURSO ESPECIAL-DANO MORAL COLETIVOCABIMENTO-ARTIGO 6º, VI, DO DEFESA DO CÓDIGO DE CONSUMIDOR-REQUISITOS - RAZOÁVEL SIGNIFICÂNCIA E REPULSA SOCIAL OCORRÊNCIA, NA ESPÉCIE - CONSUMIDORES COM DIFICULDADE DE LOCOMOÇÃO-EXIGÊNCIA DE SUBIR LANCES DE ESCADAS PARA ATENDIMENTO - MEDIDA DESPROPORCIONAL E DESGASTANTE-INDENIZAÇÃO-FIXAÇÃO PROPORCIONAL -DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL - AUSÊNCIA DEMONSTRAÇÃO-RECURSO DE ESPECIAL IMPROVIDO. A dicção do artigo 6º, VI, do Código de Defesa do Consumidor é lara ao possibilitar o cabimento de indenização por danos morais aos consumidores, tanto de ordem individual quanto coletivamente. Todavia, não é qualquer atentado aos interesses dos consumidores que pode acarretar dano moral difuso. É preciso que o fato transgressor seja de razoável significância e desborde os limites da tolerabilidade. Ele deve ser grave o suficiente para produzir verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem extrapatrimonial coletiva. Ocorrência, na espécie. Não é razoável submeter aqueles que já possuem dificuldades de locomoção, seja pela idade, seja por deficiência física, ou por causa transitória, à situação desgastante de subir lances de escadas, exatos 23 degraus, em agência bancária que possui plena capacidade e condições de propiciar melhor forma de atendimento a tais consumidores. Indenização moral coletiva fixada de forma proporcional e razoável ao dano, no importe de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). Impõe-se reconhecer que não se admite recurso especial pela alínea "c" quando ausente a demonstração, pelo recorrente, das circunstâncias que identifiquem os casos confrontados. Recurso especial improvido. (STJ, REsp 1221756/RJ, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/02/2012, DJe 10/02/2012). _______________________________________________ Até mesmo a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, inicialmente refratária à ideia de dano moral coletivo, já sinaliza mudança de entendimento: _______________________________________________ PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO REGIMENTAL COMPETÊNCIA NO PARA RECURSO O ESPECIAL. PROCESSAMENTO E JULGAMENTO DE AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELO MINISTÉRIO OBJETIVANDO MORAIS PÚBLICO INDENIZAÇÃO COLETIVOS EM POR FEDERAL DANOS DECORRÊNCIA DE FRAUDES EM LICITAÇÕES PARA A AQUISIÇÃO DE MEDICAMENTOS PELO ESTADO MEDIANTE A UTILIZAÇÃO DE RECURSOS FEDERAIS. EMISSÃO DE DECLARAÇÕES FALSAS DE EXCLUSIVIDADE DE DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS. ART. 535 DO CPC NÃO VIOLADO. UNIÃO FEDERAL ADMITIDA COMO ASSISTENTE. SÚMULA 150 DO STJ. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. ART. 109, I, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA INDISPENSÁVEIS À DE DOCUMENTOS PROPOSITURA DA AÇÃO RECHAÇADA PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 7 DO STJ. 1. Constatado que a Corte regional empregou fundamentação adequada e suficiente para dirimir a controvérsia, dispensando, portanto, qualquer integração à compreensão do que fora por ela decidido, é de se afastar a alegada violação do art. 535 do CPC. 2. À luz dos artigos 127 e 129, III, da CF/88, o Ministério Público Federal tem legitimidade para o ajuizamento de indenização por ação civil danos pública morais objetivando coletivos em decorrência de emissões de declarações falsas de exclusividade de distribuição de medicamentos usadas para burlar procedimentos licitatórios de compra de medicamentos pelo Estado da Paraíba mediante a utilização de recursos federais. 3. A presença da União Federal como assistente simples (art. 50 do CPC), por si só, impõe a competência Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da Constituição Federal. Incidência da Súmula 150 do STJ: "Compete à Justiça Federal decidir sobre a existência de interesse jurídico que justifique a presença da União, no processo, da União, suas Autarquias ou Empresas Públicas". 4. Se as instâncias ordinárias decidiram por bem manter a ora agravante na lide diante do acervo fático-probatório já produzido, não é dado a esta Corte rever os elementos que levaram à tal convicção. 5. É defeso ao Superior Tribunal de Justiça apreciar a alegação de ausência de documentos indispensáveis à propositura da ação, rechaçada pelas instâncias ordinárias. Incidência da Sumula 7 do STJ. 6. Agravo regimental não provido. (STJ, AgRg no REsp 1003126/PB, GONÇALVES, Rel. PRIMEIRA Ministro TURMA, BENEDITO julgado em 01/03/2011, DJe 10/05/2011). _______________________________________________ Da mesma forma, o Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo já vem adotando posicionamento favorável no tema: _______________________________________________ AÇÃO CIVIL PÚBLICA - Venda de bebida alcoólica a menor - Violação aos artigos 73 e 81, inciso II, do Estatuto da Criança e do Adolescente - Dano moral coletivo caracterizado - Obrigação de indenização do dano que se impõe – Montante fixado que se revela razoável, e adequado à hipótese vertente – Recurso não provido". (TJ/SP, Apelação nº 0531935- 55.2010.8.26.0000, Rel. Encinas Manfré, Câmara Especial, j. 02/05/2011). _______________________________________________ Por outro lado, a possibilidade de configuração do dano moral coletivo comporta sua aplicação em duplo aspecto: coletivo e individual homogêneo. Com efeito, sob o ponto de vista jurídico da tutela dos direitos transindividuais, as condutas dos requeridos podem ser visualizadas por dois diferentes aspectos. O primeiro deles diz respeito aos constrangimentos e agressões sofridos por cada uma das vítimas das ocorrências relatadas e comprovadas nestes autos, ainda que não tenham sido elas identificadas e qualificadas. Sob este prisma, o dano moral, cuja configuração é inquestionável, possui caráter subjetivo, ou seja, atinge diretamente a esfera da intimidade psíquica do indivíduo. Nesta hipótese, embora os danos sofridos pelos cidadãos possuam origem comum (no caso, a atuação dos réus), podem eles ser quantificados separadamente para fins de reparação. São, portanto, direitos individuais homogêneos, aqueles cujos titulares são determinados ou determináveis e o objeto da demanda é divisível entre cada um dos lesados, mas a ofensa jurídica possui a mesma origem. É o que se extrai do conceito previsto no artigo 81, parágrafo único, inciso III do Código de Defesa do Consumidor. Como se não bastasse, deve-se destacar que a presente demanda assume especial relevância na medida em que as vítimas são pessoas em situação de vulnerabilidade social e que, em boa parte, seja por questões psíquicas, físicas ou descrença dos próprios familiares, praticamente não reúnem condições de buscarem por si mesmas, pela via da legitimação ordinária, a tutela jurisdicional estatal. É sabido que, embora a Constituição da República consagre a assistência judiciária gratuita (a ser exercida pela Defensoria Pública, sendo esta já atuante, com destaque, no Estado de São Paulo), expressiva parcela dos internos se encontram em um triste estado de exclusão social e marginalização, considerados a “última camada da sociedade”, o que, se não impossibilita, ao menos dificulta seu acesso ao Judiciário. Reforça-se, assim, a importância da tutela coletiva no ordenamento jurídico brasileiro: garantir o acesso à Justiça e a defesa de direitos de grupos que, estando seus membros individualmente considerados, dificilmente buscariam a devida prestação jurisdicional. Daí a maiúscula responsabilidade do Poder Judiciário na questão. Discorrendo sobre a atuação do profissional do Direito em face das injustiças sociais, lembra o lúcido filósofo do Direito paulista Alysson Mascaro14 que “a preocupação sobre o justo e o injusto deve ser a mais alta preocupação do jurista. Aquele que disser que não quer trabalhar com os problemas da justiça porque essa é uma questão ideológica, automaticamente já escolheu um lado e tomou partido, ideologicamente, da questão: quem nada faz pela justiça do mundo não é um técnico neutro; pelo contrário, é um omisso que legitima a injustiça pelas suas mãos lavadas. Quem se nega a fazer juízo de valor sobre a sociedade existente, querendo ser apenas um técnico jurídico, já fez o juízo de valor de apoiar e legitimar esse atual estado de coisas. Portanto, não é nem neutro nem técnico. É deliberadamente conservador, e lhe agrada o podre cheiro das injustiças sociais presentes” Sob um segundo aspecto, deve-se considerar que as proporções dos danos causados pelos requeridos vão muito além de um punhado de ocorrências isoladas, a serem responsabilizadas de forma individual e autônoma, como se não tivessem nenhuma ligação entre si Há dois pontos convergentes em Alysson Leandro Mascaro, “Introdução ao Estudo do Direito”, 1ª edição, Editora Quartier Latin, São Paulo, 2007, pág. 236. 14 todos esses episódios exemplares, os quais compõem uma relação jurídica- base: 1) a conduta abusiva dos réus, em grave descumprimento às políticas de saúde e assistência social; 2) a atuação timbrada pela violência e pela truculência, em flagrante violação aos direitos humanos, contra dependentes químicos em situação de vulnerabilidade. Cumpre reconhecer, assim, que os abusos perpetrados pelos réus transcendem a honra e a integridade de cada uma das vítimas individualmente consideradas. Mais do que uma soma de casos individuais de abusos e violência, as ações representam, sob a perspectiva da esfera dos direitos transindividuais, afronta à dignidade da população de dependentes químicos desta cidade, sendo o elo comum atingido deste grupo o direito ao tratamento digno destinado aos usuários de droga, consubstanciado em uma série de dispositivos constitucionais e legais. Eis aí a essência do direito coletivo aqui tutelado. Ora, restou incontroverso que as ações dos réus se desvirtuaram das finalidades anunciadas e propagadas por eles aos familiares e aos próprios pacientes, pelos mais diversos meios, que supostamente seriam de enfrentamento ao consumo de drogas, assumindo o nítido propósito de amedrontar, humilhar e explorar os internos. Dúvida não há, portanto, acerca da existência de dano especialmente dirigido a esta classe de pessoas. Quanto a este aspecto, a tutela é coletiva em sentido estrito, nos moldes do disposto no artigo 81, parágrafo único, inciso II do Código de Defesa do Consumidor, uma vez que os integrantes do grupo lesado são, ainda que de maneira hipotética, determináveis (população de dependentes químicos) e unidos por uma relação jurídica-base; o objeto da demanda, por outro lado, é indivisível entre seus membros, já que não é possível mensurar a dor sofrida por cada um dos lesados para fins de reparação, mas tão somente se forem considerados todos eles como uma única coletividade lesada. Em outras palavras: trata-se de dano moral coletivo em prejuízo dos dependentes químicos que tenham, por qualquer meio, chegado à cidade de Vargem Grande Paulista na esperança de um tratamento e encontraram apenas mais sofrimento e dor, além de prejuízo financeiro. De se destacar que no interior da clínica havia pessoas de diversos Estados do país. Que se tenha notícia, nenhum era morador da cidade de Vargem Grande Paulista. A reparação do dano moral sofrido por estas pessoas é medida que se mostra de plena justiça. Por outro lado, o dano é também difuso no que concerne à população deste município e até mesmo, por que não, de toda a população mundial, porque, ao mesmo tempo, perpetrou grave violação dos valores fundamentais do Estado Democrático de Direito, ao sinalizar que segmentos “excluídos” podem ser humilhados, agredidos e violentados. Axiologicamente, o sentido de justiça e de dignidade de cada cidadão foi ofendido pela atuação ilícita dos requeridos, ensejando evidente dano moral coletivo ou difuso. VI. VALOR DO DANO MORAL Mensurar dano moral é sempre tarefa ingrata. Valores integridade física socioassistencial e e como psíquica, sanitária dignidade expectativa eficiente, dentre de humana, atenção outros, todos vergastados pela hedionda atitude dos réus, não são facilmente aferíveis em cifras monetárias. Todavia, como o modo de buscar aquela compensação pelo dano produzido deve ser convertido em pecúnia, algum parâmetro, que precisa ser escolhido, ressalvando, de qualquer modo, que não há dinheiro que pague a honra violada com um tapa na cara ou a menor cidadania que se reconhece a quem se vê agredido pela pessoa a quem sua saúde e bem estar foram confiados. 01. Quanto aos interesses individuais homogêneos dos dependentes químicos: partindo-se do menor cálculo de quantidade de pessoas que foram internadas na comunidade ré, que, em 2012, eram 41 pessoas quanda da fiscalização e, em 2013, eram 15 pessoas, há de se chegar ao valor final mínimo da almejada indenização multiplicando-se um dado valor individual por 56 (41 + 15). Assim, chega-se a uma média de 28 pessoas atendidas pela clínica por ano. Considerando que, ao que se sabe, os requeridos atuam nesta cidade há pouco mais de dois anos, de se supor que foram 56 pessoas atingidas pelas condutas ilícitas deles (28 x 2). O valor individual deve ser buscado no balizamento oferecido pelos Tribunais, a partir de alguns exemplos. A seguir, algumas situações reais enfrentadas pelas Cortes e os respectivos valores indenizatórios fixados: TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO: Expulsão de casa noturna (segurança que torceu o braço e puxou o cabelo da autora) - R$ 3.500,00 - Apelação nº 912490835.2007.8.26.0000. Disparo indevido de alarme antifurto em loja - R$ 5.450,00 Apelação nº 9069884- 22.2007.8.26.0000. o Inscrição indevida inadimplentes – do R$ nome 8.000,00 em banco de – Apelação dados nº de 9154034- 04.2005.8.26.0000. o Abordagem vexatória por segurança da empresa – R$ 10.000,00 - Apelação n° 0101519-91.2009.8.26.0005. o Lesão corporal de natureza grave – fratura de ossos – R$ 10.000,00 - Apelação nº 0100048-26.2007.8.26.0000. o Prisão ilegal – R$ 30.000,00 - Apelação nº 0360378- 34.2009.8.26.0000. o Prisão ilegal (pessoa homônima) – R$ 60.000,00 (100 SM) – Apelação nº 0110018-51.2008.8.26.0053. o Ofensa de advogado à honra de Magistrada–R$ 109.000,00 http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI145310,51045. o Homem espancado por engano em Delegacia de Polícia por Desembargador e por Delegado de Polícia – R$ 150.000,00. Danos morais + R$ 88 .356,00 danos materiais. Apelação nº 9067893-79.2005.8.26.0000. Decisões do SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA: Disparo indevido de alarme antifurto – R$ 7.000,00 – Resp 1042208 RJ 2008/0063204 - 5. Prisão arbitrária por sete horas, sem violência – R$ 10.000,00 REsp 1209341 / SP. Prisão ilegal e lesão corporal por policial civil – R$ 12.000,00 - REsp 631650 / RO 2004/0021504-5. Disparo indevido de alarme antifurto – R$ 15.000,00 – Resp 327679 SP 2001/0055425-8. Lesão corporal de preso em cadeia pública – R$ 20.000,00 - REsp 982811 / RR 2007/0204697-8 Protesto indevido – R$ 20.000,00 – REsp 792051 AL 2005/0177883-0. Publicação de notícia inverídica – R$ 22.500,00 – Resp 401358 PB. Foto no jornal de mulher com o noivo errado – R$ 30.000,00 - REsp 1053534 RN 2008/0093197-0. Prisão abusiva, sem violência – R$ 30.000,00 – Resp 1001056 / PB. Prisão penal injustificada – R$ 180.000,00 (300 SM) – Resp 697458 / SP. Diante destes exemplos, pode-se arbitrar o dano moral sofrido pela média do número de dependentes químicos que se achavam em “tratamento” com os requeridos quando da atuação do Ministério Público em R$ 50.000,00, o que enseja, multiplicando-se pelo número estimado de pessoas nos dois anos que se teve notícia das irregularidades (56), um valor total da pretendida indenização em, no mínimo, R$ 2.800.000,00 (dois milhões e oitocentos mil reais). 02. Interesses difusos da população da cidade: tendo em conta a natureza do dano moral suportado, bastante diverso daquele diretamente sofrido pelos dependentes químicos que se achavam na comunidade terapêutica, fazendo-se uma estimativa per capita, de 5% do valor acima apontado, por exemplo, para cada membro do município de Vargem Grande Paulista, resultaria em R$ 2.500,00 (5% de R$ 50.000,00) que multiplicado pelo número de pessoas que moram no munícipio segundo a última apuração atualizada, do site do IBGE15, 42.997, chegar-se-ia ao valor de R$ 107.492.500, 00 (cento e sete milhões quatrocentos e noventa e dois mil e quinhentos reais). Todavia, considerando-se que o propósito desta demanda não é econômico, pode-se estimar que os danos difusos representem apenas o dobro dos danos individuais homogêneos (2, 8 milhões x 2 = 5,6 milhões). Afinal, o que se pretende nesta ação civil pública é uma indenização que contribua para a afirmação e construção dos direitos humanos, mais que um mero valor pecuniário. Ambas as modalidades, portanto, implicam num pleito final indenizatório de R$ 8,4 milhões (2, 8 milhões + 5,6 milhões = 8,4 milhões). VII. DA DESCONSIDERAÇÃO JURÍDICA DA PERSONALIDADE Como regra, a responsabilidade dos sócios em relação às dívidas sociais é subsidiária. Justamente devido a essa possibilidade de exclusão da responsabilidade dos sócios ou administradores, a pessoa jurídica, por vezes, começou a ser utilizada de modo desviado, desvinculando-se de seus fins e princípios. Em razão de tais abusos surgiu a figura da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica (disregard doctrine). Nos termos do art. 28, do Código de Defesa do Consumidor, o juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de 15 http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?codmun=355645, pesquisa realizada em 30/11/13 direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. Na mesma esteira o Código Civil também possui previsão, genérica, acerca do instituto, preceituando que Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. É o caso dos autos. Não bastasse estar evidenciado que a conduta dos requeridos se afasta, e muito, das finalidade sociais descritas no contrato social da pessoa jurídica, verifica-se não é o caso de responsabilizar, apenas, a entidade moral, mas também os seus gestores, pessoalmente. Seja com base no dispositivo que esposou a Teoria Maior, ou no que esposou a Teoria Menor, os requeridos abusaram da personalidade jurídica, causando prejuízo a terceiros e desviando-se da finalidade dela. Conforme leciona o Professor Flávio Tartuce16, abalizado civilista, não se pode esquecer que, para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, devem ser utilizados os parâmetros constantes do art. 187, do Código Civil, que conceitua abuso de direito como ato ilícito. Esses parâmetros são o fim social ou econômico da empresa, a boa-fé objetiva e os bons costumes. 16 Tartuce, Flávio. Manual de Direito Civil. Ed. Metodo, 2012. Não pode a personalidade jurídica servir de obstáculo ao integral ressarcimento dos danos causados. Diante de todo o narrado, evidenciado está o abuso, o excesso de poder, a infração de lei e o desvio de finalidade, fundamentos suficientes para determinar a indispensável desconsideração. Portanto, a fim de que sejam todos devidamente responsabilizados pelos ilícitos praticados, indispensável se faz a superação episódica da personalidade para fins de reparação. VIII. INDISPONIBILIDADE REQUERIDOS DOS BENS DOS De tudo que se argumentou e em razão da farta documentação que instrui essa inicial, verifica-se estarem presentes os requisitos necessários à concessão da cautela pretendida. O fumus boni iuris se traduz na plausibilidade do direito ora afirmado, ou seja, o eventual crédito a ser constituído na condenação dos requeridos nos autos desta ação civil pública. Já quanto ao segundo requisito, o periculum in mora, verifica-se pela cristalina a dificuldade na reparação deste direito, caso os bens não sejam reservados cautelarmente, uma vez que, se necessário se fizer aguardar o resultado da demanda, a chance de se perderem aumenta-se indescritivelmente, já que, diante das inúmeras ilicitudes praticadas, de rigor presumir a tentativa de furtar-se da responsabilidade que recairá sobre os réus. Sobre os elementos processuais indispensáveis à presente demanda, ensina o doutrinador Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, em suas obra Código de Processo Civil Comentado, Décima edição, editora Revista dos Tribunais, página 1116: ___________________________________________________ Requisitos para cautelar. Para que a parte possa obter a tutela cautelar, no entanto, é preciso que comprove a existência da plausibilidade do direito por ela afirmado (fumus boni iuris) e a irreparabilidade ou difícil reparação desse direito (periculum in mora), caso se tenha de aguardar o trâmite normal do processo. Assim, a cautela visa assegurar a eficácia da execução. (grifos nossos) ___________________________________________________ Ante a presença dos requisitos cautelares legais requer o Ministério Público e a Defensoria Pública seja decretada a indisponibilidade dos bens dos réus, até o valor de R$ 8,4 milhões, visando à eficácia de futuras execuções judiciais. IX. DA DISSOLUÇÃO JUDICIAL DA PESSOA JURÍDICA Não se ignora que, para os efeitos jurídicos, a sociedade empresarial se distingue dos membros que a compõem. A força de regra, entretanto, não é absoluta. Por ter uma função social, o Direito não pode prestigiar a utilização abusiva de seus institutos nem é curial que estes se prestem como anteparo de fraude ou infração à lei. Bem por isso, quando a pessoa jurídica for empregada de modo impróprio ou com fins ilícitos, é passível de SER DISSOLVIDA, no caso concreto, para impedir o advento de um resultado socialmente indesejável. Considerando os flagrantes abusos praticados, seja por meio desta comunidade terapêutica, seja por meio de outra que anteriormente criaram os requeridos (Novos Tempos) se utilizam da personalidade autônoma da pessoa jurídica para ludibriar e lesar terceiros. A Clínica ré, em que pese constar em seu contrato social que possui objeto lícito, somente é utilizada para a violação flagrante da constituição, das leis e das normas regulamentadoras. Nesta ordem de ideias, indispensável a sua dissolução, a fim de que não mais pratique tão graves ilicitudes. X. IMPOSIÇÃO DE RETIRADA DO SITE DA REDE MUNDIAL DE COMPUTADORES Como já narrado, necessário se faz a interdição total da clínica ré, a fim de que outros danos não venham ser causados a terceiros “desavisados” que tenham contato com as informações enganosas que constam do site (www.clinicarestauracao.com.br). Assim, sendo determinada a interdição da clínica, necessário se fará, igualmente, que seja determinada a retirada do referido site do ar. Ao final, com a justa condenação, deverá ser ele definitivamente removido da rede mundial de computadores. XI. ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA Nos exatos termos do artigo 12 da Lei 7.347/85 e artigo 461, caput e § 3.º, do Código de Processo Civil , vislumbra-se no presente caso concreto a hipótese de concessão da antecipação parcial dos efeitos da tutela pretendida para o fim de se determinar interdição da CLÍNICA RESTAURAÇÃO conforme acima aduzido. A relevância dos fundamentos da demanda se faz notória diante da presença de provas contundentes da burla das disposições constitucionais e legais que disciplinam a matéria. Com efeito, a requerida não preenche nenhum dos requisitos necessários para funcionar como uma COMUNIDADE TERAPÊUTICA. Se não bastasse, a condição pessoal dos administradores, estando inclusive o réu OSMAR sendo investigado em mais de cinco inquérito policiais por crimes como sequestro, tortura, estelionato, aliada à maneira não usual e estranha como a “entidade” familiar foi criada, não traz a segurança necessária de que o real objetivo da entidade seja aquele disposto em seu estatuto. Também é facilmente dedutível o receio de ineficácia do provimento final se não houver a pronta determinação de finalização das atividades. A ilegalidade do funcionamento da dita “comunidade terapêutica” é flagrante e qualquer outro ser humano que seja ali abrigado se encontrarão, na verdade, submetidos a essa ilegalidade, na medida em que não há ali o mínimo necessário para o tratamento de sua dependência química. Não se deve confundir “Comunidade Terapêutica”, legalizada e idônea, com verdadeiros “depósitos de dependentes químicos”, geridos por entidades de duvidosa idoneidade, formadas por pessoas que figuram como indiciadas em inquéritos policiais e comprovadamente infratoras de normas constitucionais e legais. Tal ilegalidade (funcionamento ilegal da “comunidade terapêutica”) e os riscos dela inerentes são gravíssimos e outras pessoas podem ser vítimas dessa situação. Como podemos inferir do instrutório, é bem provável que as pessoas que estão sendo levadas a tratamento no local, o fazem por erro, acreditando que se trata de uma COMUNIDADE TERAPÊUTICA totalmente legalizada. Comprovou-se, ainda, que os internos são tratados como escravos e o único tratamento disponibilizado é o labor em prol da própria comunidade terapêutica, não recebendo qualquer tratamento psiquiátrico minimamente aceitável, havendo medicamentos fortíssimos sem prescrição médica no interior da comunidade terapêutica, a qual realiza serviços que agridem a dignidade da pessoa humana. Assim, permitir que tal estado de coisas somente venha a ser regularizado ao final da demanda, implica em prejuízo à saúde, ou mesmo à vida das pessoas que ainda serão “atendidas” pelo serviço em questão. Sem dúvida, o fato de não atender à obrigação de proporcionar amparo e melhoria das condições do atendimento aos internos da instituição, já delineia um quadro de inúmeras irregularidades que colocam em risco a saúde, vida e bem-estar dos usuários, sendo que a delonga na prestação da tutela pleiteada certamente colocará ou manterá em risco os bens de vida (saúde, dignidade, bem-estar), constitucionalmente assegurados e que aqui pretende-se proteger, evitando-se, repita-se, danos irreparáveis. XII. DO PEDIDO Diante do exposto, requer-se: a) A concessão de medida liminar inaudita altera parte para: 1. A interdição TOTAL da entidade CLÍNICA RESTAURAÇÃO, proibindo-a de receber novos pacientes, sob pena do pagamento de multa no importe de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) para cada adesão, comunicando-se à Vigilância Sanitária Municipal; 2. Caso haja pacientes no interior da clínica, sejam eles removidos para outras clínicas que possam recebe-los ou devolvidos aos respectivos núcleos familiares, no prazo de 24 horas, sob pena do pagamento de multa no importe de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais); 3. Seja retirado da rede mundial de computadores o site www.clinicarestauracao.com.br e proibidos os requeridos de substitui-lo/utilizar-se qualquer outro meio de publicidade para captação de pacientes; Não sendo esse o entendimento do juízo, requer-se a imposição de contrapropaganda no site, informando que se trata de comunidade terapêutica e, portanto, não pode receber internações involuntárias, qualquer uma das hipóteses sob pena de multa diária de R$ 10.000,00; 4. Sejam indisponibilizados os bens dos requeridos até o limite de 8,4 milhões a fim de assegurar a reparação do dano causado; b) A citação dos requeridos para, querendo, contestar a presente ação, que deverá seguir o rito ordinário, no prazo legal e sob pena de revelia; c) Ao final, requer: i. a condenação da entidade Clínica Restauração, de Osmar Emanoel da Silva, de Vilma Ekstein da Silva e de Bruno Ekstein da Silva na OBRIGAÇÃO DE NÃO FAZER consistente na proibição dos requeridos, bem como seus representantes legais ou convencionais, por si ou por meio de seus sucessores ou prepostos, ainda que através da utilização de outra pessoa jurídica ou de nome fantasia diverso, realizar quaisquer atividades relacionadas ao atendimento a pessoas portadoras de dependência química ou qualquer outra síndrome psiquiátrica, vez que não demonstraram condições mínimas de preparo para tão importante e útil munus público, promovendo-se a interdição total das atividades exercidas no estabelecimento mencionado, proibindo-se tanto seu funcionamento quanto a eventual admissão de novos internos, sob pena de multa diária de R$ 100.000,00 por dia de descumprimento, uma vez que se tratará de decisão definitiva; ii. seja desconsiderada a personalidade jurídica da requerida Clínica Restauração a fim de que o patrimônio pessoal dos sócios também seja atingido pela ordem de reparação do dano; iii. seja determinada, após a devida indenização, a dissolução da pessoa jurídica Clínica Restauração; iv. a condenação da entidade Clínica Restauração, de Osmar Emanoel da Silva, de Vilma Ekstein da Silva e de Bruno Ekstein da Silva no pagamento de danos morais aos lesados individuais no importe de R$ 2.800.000,00; v. a condenação da entidade Clínica Restauração, de Osmar Emanoel da Silva, de Vilma Ekstein da Silva e de Bruno Ekstein da Silva ao pagamento de danos morais coletivos no importe de R$ 5.600.000,00; vi. seja oficiado à ANVISA e à JUCESP para que fiquem cientes de que os réus estão proibidos de exercer essa atividade, ficando vedada a concessão de licenças e abertura de pessoa jurídica nesse ramo vii. o apensamento da ação cautelar nº 0003133-77.2013.8.26.0654 a este feito. Protesta-se por provar o alegado por todos os meios de prova admitidos em Direito, sem exceção de qualquer, especialmente pela oitiva de testemunhas, juntada de documentos novos, perícias, constatações, requisições, depoimento pessoal dos representantes legais das requeridas e outras diligências que se forem necessárias à completa elucidação dos fatos articulados. Dá-se a causa o valor de R$ 8.400.000,00 (oito milhões e quatrocentos mil reais) Vargem Grande Paulista, 10 de dezembro de 2013 MARIA JÚLIA KAIAL CURY Promotora de Justiça de Vargem Grande Paulista Defensora Pública do Estado de São Paulo Rafaela D’Assumpção Cardoso Glioche Analista de Promotoria