CONJUNTURA& SANDRA CRISTINA SANTOS OLIVEIRA* O Controle da Inflação: a Âncora do Governo FHC?* O PROGRAMA DE ESTABILIZAÇÃO BRASILEIRO: O PLANO REAL Pelo lado do projeto político liberal, o Plano possibilitou o primeiro e segundo mandatos de presidente a Fernando Henrique Cardoso. Apesar do êxito sob o aspecto da estabilização, o Plano Real foi construído a partir de contradições insolúveis na sua própria lógica. Segundo Filgueiras (2001, p. 3031) a incoerência vincular-se-ia à dependência externa do país aos capitais financeiros internacionais, refletida na dificuldade de se equilibrar o Balanço de Pagamentos, e a permanente fragilização financeira do setor público que, mesmo em períodos em que se consegue obter elevados superávits primários, se agrava em virtude do crescimento permanente e acelerado do montante de juros pagos pela dívida pública interna e externa. O Plano Real foi pensado a partir do diagnostico teórico inercialista da inflação, durante a segunda metade dos anos oitenta e nos primeiros anos da década seguinte, no âmbito da PUC-Rio sob a liderança de André Lara Resende e Pérsio Arida. Neste escopo teórico a indexação era o principal componente da inflação renitente. Como conseqüência desta contradição apareceram elevados e crescentes déficits operacionais, o montante da dívida pública se elevou, além de provocar taxas de crescimento pífias. A aceitação do programa de estabilização (Plano Real) foi facilitada porque a sociedade brasileira estava farta da inflação crônica que a acompanhava fazia mais de quinze anos, desde a década de oitenta e início dos anos noventa. A estabilidade de preços se configurou como a principal vitória do governo FHC e como a tônica nos seus dois mandatos. No entanto, o controle rígido sobre a inflação implementado desde o início do Plano Real tornou-se mais complexo a partir da crise cambial de 1999. O Plano Real constituiu-se no instrumento de viabilidade da ampliação das reformas liberais no Brasil. Os fulcros deste modelo, que são a estabilidade monetária, o equilíbrio fiscal e a competitividade global, pertencem ao escopo de medidas neoliberais inspiradas nas proposições do Consenso de Washington. Como o controle da inflação foi a principal variável macroeconômica do Plano Real desde o seu inicio, analisarse-á o comportamento da inflação nos últimos oito anos do Governo FHC, buscando apreender a relevância de controle desta componente no sustentáculo do Plano Real e as expectativas em torno do Governo Lula. Do ponto de vista da estabilização dos preços e do projeto político liberal, o Plano Real foi exitoso. Para Barros (2002, p.108), A INFLAÇÃO NOS OITO ANOS DO GOVERNO FHC O Plano Real como instrumento de estabilização dos preços, em um cenário inflacionário que existia até 1994, foi uma obra de arte. A velocidade com que a inflação caiu e se estabilizou é uma prova inconteste do acerto do diagnóstico e das medidas propostas. A política monetária foi o principal foco do Plano Real, especificadamente o controle da inflação. Nesse sentido, a implementação do Plano conseguiu um êxito relativo, pois a inflação apresentou forte tendência de queda nos *Texto discutido na reunião do Núcleo de Estudos Conjunturais (NEC), em 15/01/2003. Conj. & Planej., Salvador: SEI, n.105, p23-27, Fev. 2003 SANDRA CRISTINA SANTOS OLIVEIRA 23 O CONTROLE DA INFLAÇÃO: A ÂNCORA DO GOVERNO FHC? CONJUNTURA& 24 primeiros anos, alcançando em 1998 o patamar de 1,68%, o mais baixo em todo o Governo FHC. Mas, após a desvalorização cambial de 1999, as metas estabelecidas pelo Banco Central vinculadas aos acordos com o FMI ficaram comprometidas. A influência da desvalorização do real frente ao dólar norte-americano provocou a subida dos preços, principalmente no atacado (aumento das matérias primas importadas inflação de custos) e nos reajustes das tarifas públicas. Os altos reajustes das tarifas públicas estão vinculados aos contratos de concessão dos serviços públicos, que utilizam o Índice Geral de Preços do Mercado (IGPM). Este sofre grande influência da taxa de câmbio. Segundo Ghirardi (2003, p.10), "entre janeiro de 1995 e outubro de 2002, o aumento do custo de vida medido pelo IPCA foi de 90,8%, enquanto os preços administrados subiram 203,1%". Assim, trocando "em miúdos isso significa que de 1995 para cá o preço médio dos bens e serviços utilizados pelas famílias praticamente dobrou" já a "tarifa de serviços públicos subiu três vezes". Ou seja, parte do valor das tarifas dos serviços públicos é fixada em dólar, enquanto as receitas dos brasileiros são em reais. Isto acaba impactando fortemente as famílias de mais baixo nível de renda, pois boa parte destas vêm sendo despendida com os serviços públicos essenciais (água, luz, telefone, etc). A meta de inflação definida pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), que utiliza o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), para o ano de 2002 era de 3,5%, com variação de dois pontos percentuais para cima ou para baixo. No entanto, pela segunda vez consecutiva, os dirigentes da política monetária não conseguiram cumprir a meta - o IPCA acumulado no ano passado foi de 12,53% (gráfico 1). No ano de 2001 a meta estipulada era de 4%, com teto de 6%, mas ao final de 2001 o índice de preços apontava uma inflação de 7,67%. A variação nos preços no ano passado refletiu basicamente o efeito do repasse da alta do dólar sobre os preços ao consumidor, evidenciado a partir de junho, quando os alimentos interromperam a trajetória de queda. No segundo semestre de 2002, o IPCA apresentou uma taxa acumulada de 9,32%. A maior taxa mensal deste período foi a de novembro (3,02% - gráfico 2), provocada, principalmente, pelo aumento dos alimentos (5,85%) e da gasolina (10,53%). Desde julho de 1994, quando foi implantado o Plano Real, a inflação acumulou variação de 137,93%, segundo o IPCA. Os fatores que mais contribuíram para esta variação foram os reajustes dos preços administrados e a desvalorização cambial a partir de 1999. Durante este período, os itens que apresentaram maior variação nos preços afetando o IPCA foram: gás de botijão (540,95%), telefone fixo (433,37%), aluguel (385,54%), energia elétrica (255,91%), educação (144,37%), saúde e cuidados pessoais (135,68%), eletrodomésticos e equipamentos (89,12%) e vestuário (54,50%). Os alimentos possuem maior peso no consumo dos brasileiros, principalmente sobre aqueles que possuem um menor nível de renda. Durante os anos de desvalorização da moeda brasileira os preços dos alimentos subiram: 8,14% em 1999, 3,2% em 2000, 9,63% em 2001 e 19,47% em 2002. Nesse ano, alimentos Conj. & Planej., Salvador: SEI, n.105, p23-27, Fev. 2003 CONJUNTURA& SANDRA CRISTINA SANTOS OLIVEIRA 25 e habitação, juntos, foram responsáveis por mais de nove pontos percentuais dos 14,74% de inflação registrados pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que se refere às famílias com rendimento monetário de 01 a 08 salários mínimos. Isso comprova que a inflação puniu, principalmente, os brasileiros que se encontram nas faixas mais baixas de rendimento. (KUPFER, 2003, p. A-12); ii) "a recomposição dos mercados na direção das exportações, as quais, em número crescente de setores industriais, já está em 20% do total da produção, chegando, em alguns casos, a 30%" (Ibid, 2003, p. A-12). A meta de inflação para o ano de 2003, segundo o Banco Central, medida pelo IPCA, é de no máximo 6,5 %. Mas, as projeções feitas pelo próprio BC revelam tendência de uma inflação com três pontos percentuais acima do teto da meta acertada, ou seja, o IPCA deverá acumular, ao final de 2003, uma variação de 9,5%. A disparada do dólar, cuja alta no ano passado superou os 50%, foi um dos grandes motivos que levaram o BC a estimar a inflação em 9,5% para este ano. Além do mais, para atingir este nível de inflação, a taxa de juros básica da economia tem que estar situada, ao longo do ano, em 25% a.a. e a cotação do dólar norte-americano estabilizada em R$ 3,55. O IGP-M, calculado pela Fundação Getúlio Vargas, é composto pelo Índice de Preços ao Consumidor (IPC), Índice de Preços no Atacado (IPA) e Índice Nacional da Construção Civil (INCC). Dentre os três índices que compõe o IGP-M, o IPA tem maior influência no cálculo, com peso de 60%, enquanto o IPC tem peso de 30% e o INCC, 10%. Devido a essa composição, o índice sofre grandes influências do preço no atacado, captando de forma direta o comportamento do dólar. O IGP-M é um dos índices mais utilizados no reajustes de contratos, principalmente os firmados entre governo e empresas de serviços públicos, como as da telefonia e de energia elétrica. Em um cenário alternativo traçado pelo Banco Central, onde o dólar recua para R$ 3,20 até o final deste ano, o IPCA registraria uma alta de 7,3%. Em ambos os cenários a inflação ao final deste ano superaria a meta, o que nos tornaria "tricampeões" em estouro de metas de inflação. Para Kupfer, o reaparecimento de pressões inflacionárias não se deve exclusivamente a bolhas produzidas por uma desvalorização cambial abrupta. Segundo ele existem pelo menos dois fatores que as alimentam: i) "a recuperação dos preços de commodities, com ênfase nos preços dos alimentos e nos insumos intermediários" Conj. & Planej., Salvador: SEI, n.105, p23-27, Fev. 2003 O IGP-M No ano de 2002 o IGP-M alcançou a maior variação anual desde a implementação do Plano Real. O acumulado do ano passado foi de 25,31% (gráfico 4), maior que no ano de 1999, quando a taxa variou 20,10%, devido à mudança do regime de câmbio e sua desvalorização. A alta dos preços em 2002 foi influenciada, principalmente, pela alta do dólar, que por sua vez elevou os preços dos alimentos, das matériasprimas e dos combustíveis. Neste ano o IPA teve alta de 33,64%, enquanto o índice no varejo, IPC, variou 11,87%. No mês de dezembro de 2002 o IGP-M obteve uma 26 O CONTROLE DA INFLAÇÃO: A ÂNCORA DO GOVERNO FHC? CONJUNTURA& variação menor que a registrada no mês anterior, 3,75% contra 5,19%. Essa queda foi motivada pela estabilidade, em R$3,66, da taxa de câmbio em dezembro. Com isso, os produtos cujos preços elevavam a inflação mantiveram-se inalterados ou caíram. Um dos principais exemplos foi o trigo, que no atacado teve uma queda de 7,72% no mês. Os itens que causaram maiores impactos inflacionários, no mês de dezembro, foram: a gasolina (3,54%), o gás de botijão (9,60%), o álcool combustível (10,69%), o óleo diesel (13,89%), ovos (14,27%) e álcool hidratado (12,07%). Os principais "vilões" do ano de 2002 foram os preços administrados. Os combustíveis apresentaram uma das maiores altas entre os produtos que influenciam o índice de preços:1 a gasolina subiu 10,89% e o gás de botijão 48,22%. Outro preço administrado que registrou alta de maior peso na taxa acumulada no ano de 2002 foi a energia elétrica, com reajuste de 19,54%. Dentre os preços livres, o pão francês, com aumento de 36,97%, esteve em segundo lugar em termos de impacto sobre a inflação. AS POLÍTICAS MACROECONÔMICAS DE CONTROLE DA INFLAÇÃO E SUAS CONSEQÜÊNCIAS NO GOVERNO LULA Pelo lado da política macroeconômica, não existe uma sinalização de mudanças, pelo menos no curto prazo, das políticas econômicas adotadas pelo ex-ministro Malan. Segundo Palocci (2002, p.03), em seu discurso de posse no Ministério da Fazenda, os "nossos problemas não são de gestão econômica de curto prazo". Reitera-se a manutenção das metas de inflação, do regime cambial flutuante e das metas de superávit primário acordadas com o FMI (Fundo Monetário Internacional) Conj. & Planej., Salvador: SEI, n.105, p23-27, Fev. 2003 Ainda em seu discurso de posse, Palocci (2002, p.5) ressalta a dificuldade atual provocada pela depreciação cambial do ano passado e a pressão momentânea nos índices de preço. Ademais, considera que é parte inseparável da responsabilidade pública do governo a preservação da estabilidade dos preços e a adoção de medidas de política monetária que garanta a convergência dos índices de inflação às metas já definidas pelo CMN. O Banco Central teria, assim, liberdade para adotar as medidas adequadas para administrar a convergência de inflação às metas programadas para os próximos anos. A preocupação do novo Ministro da Fazenda gerou reflexo sobre a primeira reunião do Comitê de Política Monetária (COPOM) no Governo Lula, quando ficou acordado o aumento da taxa Selic para 25,5 %a.a. e o ajuste da meta de inflação em 8,5% para este ano. A convergência para as metas originais será feita em dois anos, ou seja, em 2004 a meta de inflação a ser alcançada será de 5,5%. A inflação deste ano tende a apresentar uma menor variação em relação ao ano de 2002, mas será elevada graças ao componente de inércia dos preços provenientes da correção das tarifas de energia elétrica e telefonia pelo IGP-M. O aumento da taxa Selic induzirá aumentos progressivos da meta de superávit primário, de modo a compensar o impacto dos juros mais altos sobre a dinâmica da dívida. Existem grandes riscos associados a essa operação, já que um choque fiscal e de juros pode levar a economia para uma recessão profunda, o que, por sua vez, tende a gerar receitas tributárias menores, comprometendo a meta fiscal e, portanto, o acesso ao crédito do FMI. Percebe-se que o controle inflacionário continuará como uma variável relevante na construção das políticas macroeconômicas no Governo Lula. Apesar de certa elevação dos índices de preços, que preocupam o atual governo, já começa a se observar recuos em certos índices nas primeiras semanas de janeiro de 2003. Segundo dados do Banco Central, os índices de inflação mostraram sinais de recuo em janeiro deste ano. O IGP-M apresentou uma variação em dezembro do ano passado de 3,75%, caindo para 2,33% em janeiro deste ano. Os dados CONJUNTURA& apontam uma queda na variação dos preços, principalmente no segmento de alimentos e bebidas. As políticas econômicas restritivas provavelmente conseguirão manter a inflação em um patamar controlado. Por outro lado, quais serão as conseqüências desta política restritiva para o conjunto da economia? Provavelmente, provocará um baixo crescimento econômico em 2003. Notas 1 Apesar da gasolina ter apresentado uma variação menor que a variação captada pelo IPCA, o peso que este item representa na composição do índice é relativamente grande. Referências bibliográficas BANCO CENTRAL. Informações econômicas e financeiras. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br>. Acesso em 15 jan. 2003 BARROS, Luís Carlos Mendonça de. Os desafios da macroeconomia brasileira. In: BIELSCHOWSKY, Ricardo; MUSSI, Carlos (orgs.). Políticas para a retomada do crescimento - reflexões de economistas brasileiros. Brasília: Ipea/Escritório da Cepal no Brasil, 2002. FILGUEIRAS, Luiz Antônio Mattos. Da substituição de importações ao Consenso de Washington. In: SERRANO, Dóris (coord.). Reflexões de economistas baianos. Salvador: CORECON, 2001. FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Indicadores Econômicos. Disponível em: <http://www.fgv.br>. Acesso em 18 jan. 2003 GHIRARDI, André Garcez. Revisão de tarifas e o papel dos Estados. A Tarde, Salvador, 06 jan. 2003. Caderno principal, p.10. IBGE. Indicadores Conjunturais - Preços. Disponível em: <http:// www.ibge.gov.br>. Acesso em 29 jan. 2003. KUPFER, José Paulo. Um Caminho estreito para Lula. Gazeta Mercantil, São Paulo, 02 jan. 2003. Caderno principal, p. A-12 PALOCCI, Antonio. Veja a íntegra do discurso do ministro. Folha on line, São Paulo, 02 de jan. 2003. Disponível em: <http:// www.uol.com.br/folha/política>. Acesso em: 05 jan. 2003. * Sandra Cristina Santos Oliveira é estudante de Economia (FCE/UFBA), bolsista do NEC. O texto foi produzido com a colaboração de Eduardo Costa Pinto, mestrando em Economia da Faculdade de Ciências Econômicas (CME/FCE/ UFBA) e integrante do NEC. Conj. & Planej., Salvador: SEI, n.105, p23-27, Fev. 2003 SANDRA CRISTINA SANTOS OLIVEIRA 27