78 Arquivos Catarinenses de Medicina - V. 34 - Supl. nº. 2 de 2005 - S 1806-4280/05/34 - S 2/78 Arquivos Catarinenses de Medicina XVI Congresso Catarinense de Medicina RESUMO Doença de Kawasaki com Hidropsia aguda da vesícula biliar Leal RDG1, Debiase D1, Carvalho AP1,2, Brunato PM1, Faria SM1,2 Introdução: A Doença de Kawasaki (DK) é uma vasculite que ocorre predominantemente em crianças abaixo de 5 anos de idade e sua origem não é conhecida. O envolvimento cardíaco é a manifestação mais grave e mais importante da doença, visto que aneurismas coronarianos podem ocorrer a partir da segunda semana de evolução sendo identificados no ecocardiograma bidimensional.1 O diagnóstico da doença é baseado em dados clínicos.2 A DK clássica caracteriza-se por febre 5 dias associada a 4 dos seguintes achados clínicos: conjuntivite bilateral, bulbar, não supurativa; alteração na mucosa oral ou lábios (eritema de orofaringe, língua em framboesa ou fissuras e descamação de lábios); exantema polimorfo (ou maculopapular, escarlatiforme); alteração de extremidades (edema e eritema de palmas e plantas) e pelo menos 1 linfonodo cervical, não supurativo, de 1,5 cm de diâmetro. Os sintomas não podem ser explicados por outra doença. Na presença de acometimento coronariano, o diagnóstico pode ser concluído com febre mais 3 dos achados acima.3 DK incompleta ou atípica é mais comum em lactentes.4 A doença é dividida em três fases: aguda, subaguda e convalescença. A fase aguda, que dura de 1a 2 semanas, é caracterizada pelos sinais e sintomas descritos acima. Na segunda fase, a febre e a maioria dos sintomas cedem, podendo persistir a irritabilidade e a conjuntivite por até 2 semanas. Nesta fase pode aparecer o aneurisma coronariano, a descamação de pele mais evidente em ponta de dedos, trombocitose e até morte súbita. Na fase de convalescença, os sinais clínicos da doença desaparecem entre a 3-4a semanas, enquanto as provas de atividade inflamatória anteriormente alteradas, como o VHS, irão se normalizar entre a 6-8a semana3. 1. Hospital Infantil Joana de Gusmão - HIJG - Florianópolis - SC. 2. Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC - Florianópolis - SC. 78 A DK pode ainda apresentar-se com sinais e sintomas de meningite asséptica, uretrite, artrite/artralgia, pneumonite, disfunção hepática, hidropsia aguda da vesícula biliar, uveíte e otite média.5 A hidropsia aguda da vesícula biliar (HAVB) é um dos principais achados na vigência de dor abdominal em crianças com DK6 Ela ocorre em 15% dos pacientes nas primeiras 2 semanas de evolução da doença e pode ser identificada pela ultra-sonografia2 e parece resultar da vasculite generalizada que pode envolver o ducto biliar comum e o ducto cístico ou ser secundária a compressão externa por um linfonodo aumentado de tamanho, resultando na obstrução transitória da drenagem da bile.6,7 Geralmente, vem acompanhada de náuseas, vômitos, dor abdominal e febre.6 Objetivo: Relatar um caso de doença de kawasaki com presença de hidropsia aguda da vesícula biliar. Descrição do caso: Lactente, 12 meses, sexo feminino, branca, natural e proveniente de São José-SC. Paciente com história de febre de 39ºC há 5 dias; quatro dias com vômitos pós-prandiais, tumoração em região cervical esquerda, com persistência da febre de difícil resolução com antitérmicos e, no dia seguinte,evoluiu com tosse intensa noturna, diarréia semi-líquida 3-4 episódios ao dia, sem sangue, pus ou muco. Procurou serviço médico onde foi realizada Penicilina Benzatina (indicação não definida). Há 2 dias, como persistiam os sintomas, foi medicada com Amoxicilina suspensão, após Cefalexina suspensão e Cloranfenicol colírio. Devido à persistência do quadro, foi internada no dia seguinte no HIJG. Ao exame físico apresentava-se muito irritada, com pouca aceitação via oral e queda do estado geral. Havia hiperemia de orofaringe, língua em framboesa, linfonodo cervical à esquerda de +/- 2 cm de diâmetro, móvel, doloroso, sem sinais flogísticos, conjuntivas hiperemiadas e não purulentas. Foi solicitado hemograma (Hem: XVI Congresso Catarinense de Medicina 3,5; Hb: 9,9; HT: 29,4; VCM: 82; HCM: 27; CHCM: 33,6; Leucócitos: 27600; B: 7% (1932;); S: 71%(19596); E: 1(276); L: 15%( 4140); M: 6%( 1656); Plaquetas: 416000), eletrólitos (Na: 123; K: 5,4; Ca: 8; Mg: 2,48), uréia (22), creatinina (0,2), raio X de tórax: normal; foram realizados também monoteste que foi negativo e sorologia para rotavírus também negativa. Durante a internação criança evoluiu com aumento do volume abdominal, área de macicez aumentada à percussão em hipocôndrio direito e a ultra-sonografia abdominal evidenciou hidropsia aguda da vesícula biliar (vesícula bilar medindo 8,3cmX3,5cm) e sugerida hipótese diagnóstica de Doença de Kawasaki. Vesícula Biliar distendida. Provas de função hepática foram realizadas (TGO: 96; TGP: 178), bilirrubinas (BT: 1,1; BD: 0,6; BI: 0,5), provas de atividade inflamatórias (VHS: 102) e ao ecocardiograma foi observada dilatação de coronária direita (CE: 3,2 mm, CD: 3mm), confirmando a suspeita diagnóstica de DK. Criança foi medicada com Imunoglobulina 2g/Kg EV e AAS: 100mg/kg/dia. Depois de realizada medicação houve melhora clínica e laboratorial. Realizou novo ecocardiograma após 2 semana do diagnóstico e tratamento, apresentando ainda leve dilatação e aumento da ecogenicidade em coronária direita. Paciente realizou 14 dias de AAS:100mg/Kg/dia e após 5 mg/kg/dia. Realizou novo ecocardiograma após 2 meses do diagnóstico apresentando-se normal e novo ultra-som abdominal após 3 meses apresentando diminuição significativa da vesícula biliar (3,6X3,8 cm). Paciente segue acompanhamento ambulatorial no HIJG. Discussão: A doença de Kawasaki é uma das vasculites mais comuns em crianças e é a principal causa de doença cardíaca adquirida na infância em países desenvolvidos.4,8 Sua apresentação clínica é variada, muitas vezes dificultando o diagnóstico, visto que nem sempre todas as principais características estão presentes.9 A identificação precoce é de suma importância pois aneurismas co- Arquivos Catarinenses de Medicina - V. 34 - Supl. nº. 2 de 2005 - S 79 ronarianos e ectasias podem ocorrer em 15-25% das crianças se não tratadas precocemente, podendo levar a cardiopatia isquêmica e até mesmo a morte súbita.2 O tratamento com imunoglobulina endovenosa nos 10 primeiros dias da doença reduz o risco de aneurismas coronarianos de 25% para 3%, conforme Newburger et al.2 A HAVB pode ser definida como a aguda distensão da vesícula biliar na ausência de uma obstrução mecânica do ducto cístico.10 O diagnóstico pode ser considerado quando uma massa no quadrante superior direito for palpável ou for visualizada no raio-x de abdome, como descreve Fung et al.10 Esse achado, evidenciado no exame físico da paciente acima foi à alteração que levou a solicitação da ultra-sonografia e a suspeita do diagnóstico. É a ultra-sonografia abdominal que confirma o diagnóstico de HAVB.3,11,12,13 A vesícula na sua forma normal apresenta-se ovóide, mas na HAVB apresenta-se biconvexa no seu eixo longitudinal e arredondada.8,10 No caso relatado, a criança apresentava uma vesícula biliar de 8,3 cm (normal é abaixo de 3 cm)7, demonstrando a distensão aguda e importante do órgão. Condições clínicas, em crianças, como escarlatina, DK, leptospirose, febre tifóide, sepse, nutrição parenteral total, poliarterite nodosa7,10 devem fazer parte do diagnóstico diferencial quando o paciente apresenta HAVB. Nos quatro casos de HAVB relatados por Horvath M et al., em 1994, foi identificada como etiologia a DK, sepse e múltiplos traumas.14 A apresentação clínica da HAVB geralmente vem acompanhada de febre, náuseas, vômitos, dor abdominal, freqüentemente antecedida por infecção respiratória e/ou gastrenterite.6 No caso relatado a criança apresentava um quadro de IVAS e gastrenterite, mascarando o diagnóstico da DK, visto a alta incidência dessas enfermidades nessa faixa etária. Zulian, et al.15 relatam que dos 10 pacientes que apresentavam abdômen agudo cirúrgico como manifestação DK, e que foram submetidos à cirurgia, 5 apresentavam hidropsia aguda da vesícula biliar, demonstrando ser uma das complicações gastrintestinal mais comum na DK. A hidrosia aguda da vesícula biliar em criança com DK usualmente tem resolução espontânea.7,10,11,12,13,14 Em 1980, Slovs, et al.12 descreveu a HAVB em 4 pacientes com DK, diagnosticadas por ultra-sonografia abdominal, relatando a resolução espontânea em todos os casos, após 15 dias de acompanhamento. Em 1982, Liebmann et al. relataram a presença de 79 80 Arquivos Catarinenses de Medicina - V. 34 - Supl. nº. 2 de 2005 - S XVI Congresso Catarinense de Medicina HAVB em adulto com DK, evidenciando a presença de tal complicação em faixa etária não usual da doença.16 Já em 1990, foi relatada por Augarten A, et al., a presença de HAVB em criança de 15 meses com DK.17 Outro caso foi descrito em1995 or Coskun et al em um menino de 5 anos.18 Nos 36 casos de DK avaliados por Costa, et al.3 a hidropsia de vesícula biliar foi detectada em apenas dois (5,6% do total). Conclusão: A DK é um desafio diagnóstico para o clínico, visto que sua apresentação clínica nem sempre é tão evidente. Vários casos isolados foram relatados sobre a relação da DK e a HAVB10,11,12,13,14,15,16,17,18, alertando para o diagnóstico de DK associada a HAVB em quadros abdominais agudos na vigência de febre por mais de 5 dias. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. Descritores: 1. Kawasaki; 2. Criança; 3. Vesícula biliar. Referências Bibliográficas 1. Rowley AH, Shulman ST. Doença de Kawasaki. In: Behrman RE, Kliegman RM, Jenson HB, editors. NELSON Textbook of Pediatrics, 16a edição, Editora Guanabara Koogan; 2002. P. 718-20. 2. Newburger JW et al. Diagnosis, tratment, and longterm management of kawasaki disease. Circulation 2004 October; 110: 2747-71. 3. Costa PSS, Sakane PT, Marques HHS, Foranda A, Atik E, Grisi SJFE. Avaliação clínico-laboratorial na doença de Kawasaki e marcadores da formação de aneurisma coronariano. Pediatria (São Paulo) 2000; 22(1): 22-8. 4. Shulman STH, Rowley AH. Advances in kawasaki disease. Eur J Pediatr 2004; 163:285-91. 5. 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