enigmas da caixa de pandora

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HIPERATIVIDADE, HIGIENE MENTAL, PSICOTRÓPICOS:
ENIGMAS DA CAIXA DE PANDORA
Maria Lucia Boarini1
Roselania Francisconi Borges2
Área: Salud Pública y Colectiva
Ejes: Lógicas colectivas (grupos, derechos humanos, conciencia crítica y potencias
inventivas)
1
Doutora. Docente do Curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá-PR. End: Avenida
Colombo, 5790 – CEP 87020-900.E-mail: [email protected].
2
Mestre. Docente do Curso de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá-PR. End: Avenida
Colombo, 5790 – CEP 879020-900. E-mail: [email protected].
Atualmente a infância vem se fazendo presente no noticiário nacional e
internacional com certa regularidade por diversos motivos. Um deles se refere ao
incremento da prescrição, à infância em idade escolar, de medicamentos psicotrópicos,
como o cloridrato de metilfenidato. E esta alta incidência de prescrição médica desse
psicotrópico deve-se, principalmente, ao diagnóstico de transtorno de ddéficit de
atenção e hiperatividade/tdah. O tdah é descrito atualmente como “uma síndrome
caracterizada por comportamento hiperativo e inquietude motora, desatenção marcante,
falta de envolvimento persistente nas tarefas e impulsividade” (LIMA, 2005, p. 73).
Este fato nos relembra as intervenções dos médicos higienistas nas escolas nas
primeiras décadas do século xx, no Brasil.
Em breve retorno à historia do Brasil, pelos idos das décadas de 20 e 30 do
século passado, os médicos higienistas, entre estes especialmente os membros da Liga
Brasileira de Higiene Mental, empenharam-se para produzir o homem novo e hígido
capaz de levar o país ao desenvolvimento econômico e social almejado. Foram
inúmeros os estudos, as reuniões, os planos propostos e as intervenções realizadas nas
escolas para classificar e separar os capazes dos não-capazes, os hígidos dos nãohígidos, e assim, neste processo de higienização social, conseguir-se-ia homens sadios
física e intelectualmente e o Brasil se alinharia às nações modernas, como os médicos
higienistas acreditavam. Nesse sentido, a educação escolar, juntamente com a medicina
social, passou a ocupar paulatinamente um lugar de destaque nesse novo projeto
higiênico de sociedade, visando atender ao princípio de que a criança adequadamente
cuidada e educada sob os ditames da higiene se tornaria um adulto física e moralmente
saudável. E aqui relembramos a célebre frase do médico higienista Porto-Carrero (1932,
p. 92) segundo o qual “é de pequenino é que se torce o pepino”.
Apesar de que o tempo transcorrido mostrou as contradições dessa prática, quase
um século depois essa busca continua, de forma diferenciada. Na atualidade basta ir a
uma sala de aula do Ensino Fundamental e solicitar que os alunos que tomam
medicação levantem os braços. Mais simples ainda é receber a notícia por uma das
emissoras televisivas de maior audiência no país de que houve um aumento de 1600%
nas vendas do cloridrato de metilfenidato nestes últimos oito anos, no Brasil (USO
INDISCRIMINADO..., 2009). Todavia, esta não é uma especificidade da sociedade
brasileira. Em outros países também vem ocorrendo um considerável incremento no uso
dessa medicação. Nos Estados Unidos, de acordo com o Jornal The New York Times no
ano de 2005 “cerca de 1,6 milhão de crianças e adolescentes tomaram pelo menos duas
drogas psiquiátricas combinadas. Do total, 280 mil pacientes tinham menos de 10 anos.
Mais de 500 mil se tratavam com três ou mais remédios” (SEGATTO, 2006, p.108). Na
Holanda a situação não é diferente, se considerarmos que “cerca de 750.000 crianças
holandesas entre 05 e 15 anos (34,2% dos que estão nesta faixa de idade, cujo total
chega a 2.191.164) tomavam, no final de 2008, medicamentos para o controle do tdah
[...]. o Governo investiga o que considera um alarmante crescimento no número de
prescrições deste tipo de fármaco, em sua maioria derivados das anfetaminas”
(HOLANDA, 2009, p. 01). Em janeiro de 2009 o Jornal argentino Diário La Nación
publicou um informe oficial sobre as escolas primárias destacando o fato de que a
indicação de um professor sobre um aluno inquieto pode colocá-lo “às portas de um
tratamento farmacológico” (GALLO, 2009).
Nesse sentido, a considerar que esta medicação é indicada para diagnósticos de
tdah e que o fenomenal aumento do consumo, em vários países,
da ‘droga da
obediência’ - como comumente vem sendo denominado o cloridrato de metilfenidato não constitui mais um caso particular de um individuo ou de um país, podemos supor
que vivemos uma pandemia, o que caracteriza uma questão de saúde pública.
Estas, entre outras constatações, nos colocaram alguns desconfortos e algumas
indagações: o que dizem os especialistas acerca do transtorno de déficit de
atenção/hiperatividade e de aplicações medicamentosas para o caso? Em que casos
estão ocorrendo estas prescrições medicamentosas? Quais são as controvérsias a
respeito destas prescrições? Como a literatura especializada responde a estas questões?
Afinal, este é um tema que inquieta vários profissionais, os quais vêm se
posicionando a este respeito. Desta perspectiva, inicialmente reunimos algumas destas
posições e em seguida realizamos um trabalho de campo, circunscrito a três casos de
crianças brasileiras, visando compreender o percurso realizado para produzir o
diagnostico de tdah.
Neste ponto há que se considerar que subjacente ou mesmo anterior à discussão
da existência ou não desta ‘doença’ psíquica e da pertinência ou não deste consumo
fenomenal de psicotrópicos pela infância em idade escolar, há uma queixa, uma
avaliação por parte da família, dos professores, dos médicos, que finalmente chegam a
um diagnóstico. Buscando compreender esses fatores entrevistamos as pessoas que
participaram direta ou indiretamente do processo diagnóstico de três crianças com
idades entre 7 e 8 anos, estudantes de escolas públicas do Ensino Fundamental, a saber,
os médicos, os professores atuais e anteriores, as mães e as próprias crianças.
Exporemos a seguir algumas reflexões, fruto deste do percurso empreendido e
das análises realizadas, considerando que, na complexidade das relações atuais, exige-se
alterações na forma de se portar, de se alimentar, de se vestir, de se divertir, de se
banhar, de caminhar, de se pensar - em síntese, de viver em sociedade, o indivíduo vai
se produzindo objetiva e subjetivamente. O ritmo da sociedade de nossos dias parece
inverter a máxima do sofista grego Protágoras que afirmava ser o homem ‘a medida de
todas as coisas’. Na atualidade parece ser a técnica ‘a medida de todas as coisas’ e o
homem deve ser a sua semelhança. Por outro lado, considerando-se que nesta máxima
Protágoras possibilita a ambiguidade, podemos pensar que de fato o ‘homem é a medida
de todas as coisas’, entendendo este homem como o indivíduo em particular, encerrado
em si mesmo, como afirma o adágio popular: ‘cada um por si e salve-se quem puder’.
Podemos pensar, também, que o homem continua sendo ‘a medida de todas as coisas’
enquanto um padrão a ser seguido incondicionalmente. É a padronização dos costumes,
dos sabores, dos tipos de vestimenta, do gostar, do sentir e daí por diante. Somos
solicitados a responder com velocidade intensa a questões para as quais ainda não
estamos preparados, se não [...]. somos impulsionados a seguir normas, mudar hábitos
de acordo com padrões definidos a priori, se não [...]. e assim se proliferam ‘os riscos’
da não-obediência ao padrão. Tudo se padroniza, até mesmo os sintomas do sofrimento
psíquico, como podemos constatar nas sucessivas atualizações do Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais ou o DSM IV, como é comumente denominado
(APA, 1994). E aqui, para além do diagnóstico, indagamos: resguardadas as devidas
proporções, será que estamos criando um novo bode expiatório e uma reedição do
Malleus Maleficarum ou Martelo das Bruxas?
Outro ponto a refletir é que, neste cenário de surpreendentes avanços
tecnológicos e caóticas relações humanas, a educação escolar ‘dança conforme a
música’, como se diz na linguagem popular. Assim, temos professores que, em geral,
confundem trabalho com problema e muitas famílias que, por não entenderem ou não
aceitarem dificuldades de seus filhos ou as próprias dificuldades, terceirizam suas
tarefas ao invés de reconhecê-las e administrá-las, sinalizando uma crise da infância
(BOARINI; BORGES, 1998). Nesta terceirização entram em cena os especialistas: o
psicólogo, o fonoaudiólogo, o psicopedagogo e outros, além do médico em suas
diferentes especialidades - neurologia, pediatria, psiquiatria, entre outros. E assim os
pais vão resolvendo as dificuldades dos filhos à sua maneira e de acordo com suas
posses financeiras. Por outro lado, só o especialista já não basta. Temos um novo padrão
a ser seguido. As soluções devem ser instantâneas e pouco trabalhosas e a sociedade,
com o auxilio do novo personagem que entra no cenário – a indústria farmacêutica - não
tardou em encontrar a ‘solução’: os psicotrópicos, disponíveis em qualquer farmácia.
É necessário deixar claro que a nossa crítica não significa oposição ao uso do
psicotrópico ou desvalorização da sua eficácia e necessidade. Nossa oposição diz
respeito a fazer deste o único recurso possível ou a fazer dos demais recursos algo de
menor importância, perdendo-se de vista os limites e as contradições da
psicofarmacologia. Opomo-nos também aos interesses econômicos que subjazem a esta
valorização fenomenal do consumo de psicotrópicos, atingindo os limites de um
discurso hegemônico, tal como apontamos no início deste texto em relação ao cloridrato
de metilfenidato. É fato também que os efeitos do uso de psicotrópicos, por tempo
prolongado ou não, têm suas limitações e contradições. O primeiro limite a ressaltar, e
talvez o mais importante, é o enigma que encerra o uso prolongado do psicotrópico ou
de qualquer outro medicamento. Levantam-se suposições sobre o efeito da química no
organismo, mas certezas não existem. A situação até aqui exposta, ainda que não
exaustivamente explorada, indica que o consumo exacerbado de medicação, em
particular do cloridrato de metilfenidato, pode estar impossibilitando o conhecimento do
mal que aflige o indivíduo.
Vale lembrar que os mistérios do organismo humano ainda constituem um
desafio para a ciência. Isto significa que, apesar de todo o empenho da ciência
farmacológica, são imprevisíveis os efeitos da medicação no organismo, e a prova disto
são os efeitos colaterais. Em alguns casos, inclusive ocorrem reações adversas, podendo
levar à letalidade. Tratando-se especificamente dos psicotrópicos, parcos são os
conhecimentos das alterações que se processam no interior do organismo,
principalmente quando este consumo da medicação se faz em longo prazo. Então é
preciso pensar que, ao insistir em procurar soluções rápidas para problemas complexos,
seja com a busca de benzimentos, simpatias, ervas etc., seja por persuasão da indústria
farmacêutica, podemos estar estimulando a abertura da “Caixa de Pandora” que a
humanidade tem em seu poder.
Referências
BOARINI, M. L.; BORGES, R. F. Demanda infantil por serviços de saúde mental: sinal
de crise. Estudos de Psicologia, Maringá, v. 3, n. 1, p. 83-108, 1998.
GALLO, D. Alertan sobre el uso de psicofarmacos em chicos de corta edad. Disponível
em: <http://www.forumadd.com.ar/documentos/a34.htm. Acesso 18 maio 2009>.
Acesso em: 23 abr. 2009.
HOLANDA: de cada três crianças, uma recebe medicamentos para hiperatividade. Rio
de Janeiro: Centro Colaborador em Vigilância Sanitária da Escola Nacional de Saúde
Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz, 2009. Disponível em:
<http://www4.ensp.fiocruz.br/visa/noticias/noticia.cfm?noticia=1641>. Acesso em: 01
maio 2009.
LIMA, R. C. Somos todos desatentos? O tda/h e a construção de bioidentidades/
Rossano Cabral Lima. – Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2005.
PORTO-CARRERO, J. P. Entrevista ao Jornal Globo. Em: Archivos Brasileiros de
Hygiene Mental. Rio de Janeiro: Typ. Do Jornal do Commercio, Anno V, n. 2, out.,
dez., 1932.
SEGATTO, C. et al. Remédios demais? Os riscos enfrentados por crianças e
adolescentes que tomam medicamentos psiquiátricos para tudo: da falta de atenção a
hiperatividade. Época, São Paulo, p. 108-115, 18 dez. 2006. p. 108-115.
USO indiscriminado de medicamento em crianças preocupa. Jornal Nacional. Edição
do
dia
18
jun.
2009.
Disponível
em:
<http://jornalnacional.globo.com/Telejornais/JN/0,,10406-p-18062009,00.html>.
Acesso em: 18 jun. 2009.
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