A força e a riqueza da cidadania Silvio Caccia Bava Sociólogo, Mestre em Ciência Política, pesquisador do Instituto Pólis, diretor da ABONG (Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais). Publicado em: 17/05/2000 A defesa da cidadania se tornou central no debate político atual com a transformação crescente das nossas sociedades em sociedades de mercado, marcadas pelas estratégias individuais, pela competição, pela violência. Sociedades que são cada vez mais comandadas pelos interesses das grandes corporações transnacionais e que perdem a cada dia sua capacidade de regulação pública democrática. Feixes de fibras óticas, laser, chips, o poder virtual. As mudanças tecnológicas e a concentração do capital criam uma nova realidade onde as instituições reguladoras do interesse público são capturadas por esse novo poder e deixam de cumprir o papel de representação que lhes era reservado algumas décadas atrás. As instituições democráticas que temos tornaram-se obsoletas. E, por conta desta nova realidade, a defesa da cidadania na forma como vem se apresentando, embora seja estratégica para garantir a possibilidade da construção democrática, é um apelo saudosista à contratualidade de um modelo de democracia que perdeu seu vigor pela violência praticada contra os direitos humanos, sociais e políticos. O Estado não desapareceu, nem se tornou mínimo. Ele serve prioritariamente aos interesses do capital rentista internacional, serve também para aplacar os conflitos. Não funciona mais como expressão da vontade dos cidadãos. Talvez nunca na verdade tenham expressado a vontade de todos os cidadãos, ou mesmo de uma maioria. Mas, de todas maneiras, é preciso reconhecer que a concentração de capital e a primazia do poder econômico adquirem uma velocidade e uma importância cada vez maiores. Essa concentração de poder regida pela ótica do lucro promove uma dualização cada vez maior em nossas sociedades, deixa os ricos mais ricos e promove uma pauperização generalizada que rebaixa à condição de miseráveis milhões de seres humanos. Há algumas décadas a América Latina propunha a revolução socialista como processo de mudança social. E as nossas elites reagiam com regimes ditatoriais, que no entanto estendiam a cobertura das políticas públicas para as massas empobrecidas. Desarticulava-se assim a capacidade autônoma de expressão da cidadania e, ao mesmo tempo, os Estados nacionais, num esforço de modernização autoritária, estendiam a cobertura de benefícios, que se apresentavam como concessões outorgadas pelos poderosos. Hoje vivemos a crise dos paradigmas de mudança social. Para onde orientar os esforços da construção democrática? E percebemos a fragmentação e o enfraquecimento das entidades e instituições da sociedade civil que, no passado, por força dos conflitos que ativaram, garantiram conquistas sociais e a sua afirmação enquanto direitos. Partidos políticos, sindicatos, associações de todo tipo vêem-se esvaziados de seu poder convocatório para promover a mobilização dos cidadãos. Estes, por sua vez, expressam seu desencanto, seu descrédito na capacidade transformadora da ação política, expressam mesmo um desencanto crescente com a própria democracia. O tema da mudança social parece cada vez mais distante neste novo mundo neoliberal nessa situação de desalento, de reacionarismo, de violência, de privatização da vida. É preciso recorrer aos ensinamentos da história da humanidade e perceber que mesmo nas situações as mais adversas foi a mobilização da sociedade que criou novas possibilidades históricas. A luta pela cidadania se apresenta hoje como uma estratégia defensiva, com a manifestação de uma pluralidade de atores da sociedade civil que se vêem espoliados de seus direitos e demandam a reafirmação ou mesmo a ampliação de uma contratualidade democrática que, no entanto, não questionam. A postura de defesa da cidadania não pode querer reeditar as formas democráticas de regulação social que expiram com o século XX. A luta pela cidadania necessita de novos conteúdos e novas formas. Necessita abrir perspectivas no duplo sentido da negação da sociedade de mercado como modelo de sociabilidade e da instituição de um novo contrato social onde a realização das potencialidades humanas e a questão social – isto é, a garantia e a efetivação dos direitos – determinem as novas esferas públicas e as relações com a economia e a política. Trata-se de buscar reconstruir o tecido social e recuperar para os cidadãos – seja no plano individual, seja no plano das suas representações coletivas – sua autonomia e seu poder de decisão sobre suas vidas e sobre a criação novas formas de regulação social, de novas formas da relação público-privado. A luta pela cidadania está intimamente associada à construção de novas formas de regulação democrática de nossas sociedades. Cidadania e democracia são dimensões de um mesmo processo que aponta para a construção de capacidades na sociedade para que todos possam saber escolher, poder escolher e efetivar suas escolhas. A formação para a cidadania, portanto, é um tema crucial. O sentido que se dê a ela desenhará um determinado projeto de sociedade. Não é por outra razão que é um conceito em disputa apropriado por todo o espectro das forças políticas, muitas vezes servindo para processos de cooptação e manipulação. A formação para a cidadania é determinada historicamente, parte do reconhecimento da realidade que vivemos. Ela é a força e a fraqueza desta conjuntura. É a força porque poder aglutinador. É a fraqueza porque ainda não prefigura novas formas de organização social.