A INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA NA VISÃO DE

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A INSUFICIÊNCIA RENAL CRÔNICA NA VISÃO DE PACIENTES EM
HEMODIÁLISE: RESSIGNIFICANDO O CORPO E A VIDA1
CAMARGO, Valéri P.2; WOTTRICH, Shana H. 2; QUINTANA, Alberto M.3
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Trabalho de Conclusão de Graduação- Psicologia UFSM
Psicóloga, Mestranda em Psicologia UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
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Doutor em Antropologia, Professor Adjunto do curso de Psicologia UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
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Financiamento: CAPES
E-mail: [email protected]
RESUMO
Este trabalho traz um recorte de um estudo exploratório, de cunho qualitativo, com o objetivo de
compreender a forma como pacientes com Insuficência Renal Crônica representam a doença e seu próprio
tratamento. Para a coleta dos dados, foram realizadas oito entrevistas semi-estruturadas com pacientes em
tratamento hemodialítico, além da observação participante. Os dados foram transcritos e analisados a partir da
análise de conteúdo. Uma das categorias emergentes foi “a doença e um novo olhar do doente sobre si”. A
doença parece trazer uma nova significação do sujeito sobre o seu corpo e sua vida, matizada por uma
sensação de estranhamento e pela necessidade da construção de uma nova identidade. Ressalta-se a
necessidade da equipe de saúde aproximar-se das significações singulares atribuídas pelos pacientes à doença
e ao tratamento, a fim de prestar uma assistência mais efetiva e plena ao sujeito doente e a sua família.
Palavras-chave: Psicologia Hospitalar; Hemodiálise; Insuficiência Renal Crônica.
1. INTRODUÇÃO
Diz-se do processo de adoecimento aquele no qual um fator interfere na homeostase
– equilíbrio multifatorial vital do ser humano - atravessando o curso normal de
desenvolvimento e afetando o físico, psíquico, afetivo e social do sujeito (REY, 2003). Há
doenças, como as doenças crônicas, que possuem ainda maior capacidade de interferência
à vida do paciente acometido, já que se referem a enfermidades ainda sem possibilidades
de cura e cujos tratamentos são permanentes. No contexto das doenças crônicas, os
pacientes passam por inúmeras perdas, como a perda de um corpo saudável, de um
emprego, da atividade sexual e mesmo perda da expectativa de vida, falências singulares
que podem geram o processo de luto antecipado à morte propriamente dita (MESSA, 2004).
Dentre tantas turbulências e perdas vividas ou vislumbradas, os pacientes
portadores de doenças crônicas têm como possibilidade de uma maior sobrevida um
tratamento paliativo, que não assegura sua cura (FILHO, 1992). No caso da Insuficiência
Renal Crônica, a hemodiálise - tratamento que visa filtrar o sangue com excessivo teor de
uréia substituindo o rim doente - tem se apresentado como uma possibilidade de um tempo
maior de vida aos pacientes, já que sem o tratamento muitos viveriam em torno de um ano e
meio, período que tende a aumentar com a hemodiálise.
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O avanço na terapia, o qual a hemodiálise simboliza expõe o paciente, gerando
situações estressantes e impondo limitações psicológicas, físicas e sociais. Juntamente com
o vislumbre de prolongar a vida, há um decréscimo importante da qualidade de vida do
paciente (MELETI, 2003).
Considera-se que, quando uma doença acomete, destrói ou modifica qualquer parte
do corpo humano, se faz necessário reorganizar a imagem que se possui de si e as
concepções pessoais. Ainda, ressalta-se que crenças, saberes e valores, que fazem parte
das representações do sujeito, se relacionam diretamente com a maneira de lidar com o
adoecimento e com sua expectativa de cura (MARINHO; SANTOS; PEDROSA, 2005).
Dessa forma, surgiu o interesse em realizar um estudo onde os pacientes diagnosticados
com Insuficiência Renal Crônica pudessem retratar sua opinião sobre o tratamento
hemodialítico e sua enfermidade.
2. OBJETIVOS
Compreender a forma como pacientes com insuficiência renal crônica representam a
doença e seu próprio tratamento, avaliando a repercussão diagnóstica e as mudanças
estruturais ocasionadas pela doença.
3. METODOLOGIA
Realizou-se uma pesquisa exploratória, de cunho qualitativo (TURATO, 2003), que
empregou a pesquisa etnográfica (LAVILLE; DIONE, 1999; STRAUSS; CORBIN, 1990).
Para coleta de dados, foram utilizadas as técnicas de observação participante e entrevistas
individuais semi-estruturadas com eixos norteadores.
Foram observados dois grupos, com quatro pacientes cada, que estavam em
tratamento hemodialítico em uma clínica renal de um hospital da cidade de Santa Maria RS. Quanto às entrevistas individuais, elas foram realizadas com todos os integrantes dos
grupos observados, sendo o critério de exclusão a idade inferior a dezoito anos ou aquele
que não se fosse voluntário.
O número de participantes foi definido por saturação da amostra. Totalizou-se oito
participantes, (sendo seis homens e duas mulheres). Nas entrevistas, foram abordados os
pontos identificados como eixos norteadores do trabalho, sendo que esses se tornaram
necessários, pois “na verdade nenhuma interação, para finalidade de pesquisa, se coloca de
forma totalmente aberta” (MINAYO, 1996). Os eixos norteadores para as entrevistas desse
estudo foram os seguintes: o paciente e a doença; o momento diagnóstico; o tratamento
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paliativo; o grupo de hemodiálise, sobre o corpo e a doença; atividades profissionais e de
lazer e transplante renal.
Os dados obtidos foram considerados de acordo com a análise de conteúdo
(BARDIN, 1977) . Durante todas as etapas do estudo foram considerados os preceitos da
Resolução de 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 1996). O projeto foi
aprovado pelo Comitê de Ética da UFSM.
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES
Com a efetivação da análise das falas, houve a categorização dos conteúdos. Nesse
trabalho será apresentada uma das categorias emergentes a partir da análise dos dados:
A doença e um novo olhar do doente sobre si
O adoecer, mesmo que se principie como um processo silencioso e sorrateiro, tende
a se manifestar através dos sintomas, obrigando o sujeito a perceber que algo está
diferente, talvez até irreconhecível, e esse é um marco importante (QUAYLE; LUCIA, 2006).
A doença, ao provocar dor ou fraqueza, exige atenção do indivíduo para determinada parte
do corpo e suas necessidades (ISMAEL, 2005). No caso da doença renal crônica, os rins,
órgãos antes pouco lembrados passam a atrair a atenção do doente, que percebe os efeitos
do seu mau funcionamento.
Os exames dava tudo alto e eu não podia caminhar que eu sentia canseira,
sabe, dor no rim, assim e eu sentia aquela canseira que não conseguia nem
caminhar (A, masculino, 49 anos).
Comecei tendo náuseas, vômito, dores e passando mal e .teve uma época
que eu urinava, assim...o xixi era bem escuro e tal, daí eu disse ta, me
levaram no médico e deu insuficiência renal crônica (B, feminino,41 anos).
Ainda, a principal função renal que é a de filtrar o sangue e proporcionar a eliminação
de impurezas através da urina, começa a ser reconhecida no momento em que a doença
surge. Uma função fisiológica antes comum e automatizada, como urinar, adquire um novo
significado para a pessoa:
É muito líquido no corpo, dá falta de ar, a gente sente o gosto de uréia aqui
na boca (C, Masculino, 48 anos).
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Eu estou preocupado, estou urinando pouco, bem pouco por dia (D,
Masculino, 50 anos).
Frente a tais circunstâncias, onde o corpo mostra sinais de mudanças em seu
funcionamento, é comum o estranhamento da pessoa consigo mesma, porque seu corpo
recusa a obedecer aos comandos. Nessa fase, é freqüente o sentimento de raiva e mesmo
descrédito frente a nova situação (ISMAEL, 2005). Quayle e Lucia (2006) afirmam que o ser
humano costuma considerar-se muito bem quando o corpo está silencioso: não sentir o
corpo, não perceber os órgãos que o compõe, são sinais de que tudo está bem. Há um
momento, entretanto, que o corpo, antes calado, passa a dar sinais de sua existência.
Algum órgão sinaliza e é lembrado, gerando mal-estar ao indivíduo.
A percepção de que o próprio corpo possui algo diferente gera angústia, funcionando
como se um estranho habitasse nele mesmo. Tal situação gera a necessidade de
adaptação, de significar a doença e de configurar uma nova identidade. Faz-se necessário
um novo olhar da pessoa sobre si.
É difícil, eu acho que não existe alguém que vá te dizer assim, “ah, eu me
sinto super a vontade” porque tu passa a refletir sobre tuas questões, a se
ver doente, porque o que passa na cabeça das pessoas “ah, agora sou uma
pessoa doente” mas na verdade tu não é uma pessoa doente, tu só tem um
problema de saúde que é irreversível. E é isso que eu digo, porque eu não
me acho doente hoje (E, masculino, 45 anos).
Na fala apresentada, percebe-se que, congruente à percepção do adoecimento, há a
busca e o encontro dos fatores saudáveis do sujeito. Para que a pessoa não assuma a
doença como única forma identitária, é realizado o foco nos aspectos positivos e saudáveis
que são mantidos.
a angústia que é pra ti carregar o outro não carrega, né, então deus não te
dá nada maior do que tu pode carregar, né. Então, eu tenho minha vida
normal, acho que faço o que eu deveria fazer, hoje vou sair pra tomar uma
cerveja, e aí eu tomo cerveja normal (B, feminino, 41 anos).
A fala acima se relaciona com a idéia disposta por Duvidovich e Winter (2004, p.36),
na qual referem que “há um eixo de vivências que não se apóia no esconderijo, no disfarce
das dores”, e assim deveriam ser tratadas na sua dificuldade, integrando essa experiência a
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própria realidade dolorida, de forma que a doença possa ser compreendida e vivenciada
pelo sujeito de forma menos traumática.
tu morre fazendo hemodiálise ou não fazendo hemodiálise, então é aquilo
que eu te falei, o novo as vezes assusta, com qualquer pessoa, qualquer
idade, qualquer tipo de vivência, assusta, só que ai vai muito de como tu
encara o novo (E, masculino, 45 anos).
Romano (1999)
refere-se à doença e à saúde como um contínuo, porém, com
múltiplas facetas. Assim, falar de saúde e doença não seria se referir a conceitos díspares,
senão a pólos de um mesmo processo. Doença e saúde estão muito próximos, isso porque
possuem como intermédio o mesmo ser humano. Dessa forma, é importante salientar que a
história da doença, embora seja universal, é escrita pela história individual. Tal história faz
sentido para a realidade de um sujeito e é vivenciada de maneira particular.
5. CONCLUSÃO
Com a realização desse estudo, pode-se perceber que a descoberta diagnóstica da
Insuficiência Renal Crônica atua na vida do sujeito como um algo angustiante, causando
estranhamento e trazendo a necessidade de adaptação. A partir dessa questão, ocorre a
simbolização destes novos fatores, doença e tratamento, de modo que eles possam ser
assimilados e integrados à realidade do sujeito. Essas representações são essencialmente
influenciadas pelas histórias de vida dos indivíduos, por suas concepções de saúde e
doença, que por sua vez refletem as concepções de seus grupos familiares e sociais.
A partir da doença, os discursos dos sujeitos a respeito de seus próprios corpos e
vidas parecem adquirir matizes de uma significação ambivalente, posto que o mesmo corpo
que refere-se à vida e à onipotência do ser humano, pode estar à mercê da finitude. Dessa
forma, apropriar-se da realidade da doença não diz respeito apenas a se considerar “nãosaudável”, mas também a se apropriar do corpo e das limitações e potencialidades deste.
Tal apropriação pode se dar a partir da fala e da elocubração de sentidos novos para uma
realidade inicialmente assustadora, justamente porque desconhecida. Tal realidade deve ser
considerada pela equipe de saúde, enquanto promotora de ações e políticas que visem o
bem-estar do ser humano em termos biopsicossociais.
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REFERÊNCIAS
BARDIN, L. (1977) Análise de conteúdo. Lisboa: Edições.
BRASIL - Conselho Nacional De Saúde. (1996). Resolução nº 196 de 10 de outubro de
1996. Brasília, 9 out. 1996. Disponível em:
< http://www.conselho.saude.gov.br/docs/Resolucoes/Reso196.doc > Acesso em: 2 de jun.
2008.
DUVIDOVICH, E.,WINTER, T. (org) (2004). Maternagem: uma intervenção preventiva em
saúde; abordagem psicossomática. São Paulo: Casa do Psicólogo.
FILHO, J. M. (1992). Psicossomática hoje. Porto Alegre: Artes médicas Sul.
ISMAEL, J. C. (2005). O médico e o paciente: breve história de uma relação delicada. 2 ed.
rev. ampl. São Paulo: MG Editores.
LAVILLE, C. & DIONE, J. (1999). A construção do saber: manual de metodologia da
pesquisa em ciências humanas. Porto alegre: Artes Médicas; Belo Horizonte: UFMG.
MARINHO, R., SANTOS, N., PEDROSA, A. et al. (2005). Crenças relacionadas ao processo
de adoecimento e cura em pacientes renais crônicos. Psicologia hospitalar. São Paulo,
ago., vol.3, no.2.
MELETI, M. (2003). O paciente em hemodiálise. In: ARGERAMI-CAMON, V (org.) (2003). A
psicologia no Hospital. 2 ed. São Paulo: Pioneira Thompson Learning,.
MESSA,
A.
(2004)
O
impacto
da
doença
crônica
na
família.
<http://www.psicologia.org.br/internacional/pscl49.htm> Acesso em março de 2009.
MINAYO, M. (1996). O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo:
Hucitec-Abrasco.
REY, L. (2003). Dicionário de termos técnicos de medicina e saúde. 2° Ed. Rio de Janeiro:
Editora Guanabara Koogan
TURATO, E. R. (2003). Tratado da metodologia da pesquisa clínico-qualitativa. Petrópolis:
Vozes.
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