Da caixa preta de Skinner à caixa de Pandora: Ratos, homens e a

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Da caixa preta de Skinner à caixa de Pandora: Ratos, homens e a busca de
compreensão da mente animal pela mente humana.
André Luis de Lima Carvalho.
[email protected]
Grupo de Pesquisa em Epistemologia Histórica da Cultura Científica (GPEHCC) –
Departamento de Filosofia – FFLCH – USP
Resumo: Esse trabalho analisa o período de Eclipse da Mente Animal, discutindo
como as narrativas de estudiosos da psicologia animal passaram por um
estreitamento de rigor científico para evitação do. A tese defendida é que a
submissão dos estudiosos aos inicialmente legítimos critérios de cientificidade
impostos pelo chamado Cânone de Morgan acabaram por gerar uma visão que
culminaria no Behaviorismo Radical de B. Skinner, que, na prática, passou a
entender a mente animal não como uma caixa preta, mas como uma caixa vazia.
Usando os experimentos com ratos como estudo de caso, demonstra-se que as
premissas anti-mentalistas desse programa da psicologia experimental, que
contaminaria toda a Biologia, impunham métodos e olhares tão empobrecedores,
que impossibilitavam que as capacidades animais se manifestassem. Demonstra
que hoje as capacidades animais recuperam seu status legítimo como objetos de
pesquisa e ultrapassam as fronteiras das ciências biológicas, se tornando um tema
transidisciplinar
Keywords: Mente Animal, Ratos, Behaviorismo, Antropomorfismo
O camundongo de Eiseley e o rato de Watson
“Não vemos as coisas como elas são, mas como nós somos”. Essa frase,
atribuída pela escritora Anais Ninn a uma passagem talmúdica, sintetiza a discussão
que se pretende aqui encetar a respeito das capacidades mentais dos animais nãohumanos. Para mobilizar essa discussão serão articulados autores vinculados a
distintos campos do saber e cotejadas diferentes correntes de entendimento acerca
da mente animal. Serão convocadas para esse diálogo algumas espécies que
mantêm relações próximas – mas não necessariamente amistosas – com a humana.
O primeiro é o camundongo comum (Mus musculus). Examinemos a narrativa do
1
antropólogo Loren Eiseley sobre um breve encontro com um desses pequenos
roedores na sala de conferências de uma universidade, na década de 1960:
Eu estivera falando, com o propósito de ilustrar um ponto, a respeito de um
minúsculo camundongo, uma criaturinha maravilhosamente nova e radiante, de
pezinhos brancos e fervor investigativo, que eu vira entrar no porão onde se
realizava um seminário sobre o Império Bizantino. Volvido algum tempo, o
camundongo, em seu inocente folgar, trepou numa cadeira vazia e ali ficou
encarapitado, em pé, com trêmula gravidade inquisitiva, enquanto um historiador
de renome internacional continuava a dirigir-se ao grupo, sem revelar, por sinal
algum, que surgira entre seus alunos um ansioso rosto expectante. Depois da
minha própria conferência, fui abordado e censurado por uma senhorita que me
informou, severamente, que eu estava dando provas de um tolo
antropomorfismo, que, por certo, me colocaria em situação desfavorável e
suspeitosa nos círculos psicológicos que ela frequentava.Suspirei e confessei,
relutante, que o camundongo, por ser muito jovem e chegado do interior, não
poderia ter compreendido todas as palavras da conferência. Não obstante, era
lisonjeiramente manifesto ao meu fatigado colega, o grande historiador, que o
camundongo, pelo menos, tentara compreendê-las (EISELEY, 1969: 109).
Lirismo e ironia à parte, Eiseley sustenta que o pequeno animal que subia na
cadeira e explorava o ambiente “com trêmula gravidade inquisitiva”, se esmerava, de
acordo com suas capacidades e limitações, em compreender a dinâmica de
interações animais que aconteciam naquele espaço. Quanto à objeção feita pela
jovem estudante quanto às supostas projeções antropomórficas em que teria
incorrido o antropólogo, estas não se resumem a mera opinião pessoal. Ela se
insere em uma tradição que remonta ao fim do século XIX e início do XX, com
origem na necessidade encontrada por autores do fim da era vitoriana de rever
criticamente as narrativas naturalistas sobre a mente animal, então representadas
pelos darwinistas. Dentre esses naturalistas, os mais empenhados em explorar as
capacidades animais foram o próprio Darwin e seu colaborador George Romanes.
As narrativas de Darwin são pródigas em passagens nas quais diversos animais
apresentam faculdades mentais. Em The Descent of Man (DARWIN, 1871) inúmeras
são as faculdades atribuídas ao homem que Darwin sustenta estarem presentes em
outros animais. “As várias emoções e faculdades, como o amor, memória, atenção,
curiosidade, imitação, razão, etc, das quais o homem se vangloria, podem ser
encontradas (...) nos animais inferiores” (DARWIN, 1871). Em The expression of the
emotions in man and animals, lançado no ano seguinte, lê-se que “até os insetos
exprimem raiva, terror, ciúme e amor com sua estridulação” (DARWIN, 1872: 350).
2
George Romanes, por sua vez, se dedicou à construção de uma abordagem
evolutiva da mente animal, e Darwin confiou-lhe suas anotações sobre esse tema
(E. ROMANES, 1896). Dentre as obras mais significativas de Romanes sobre o
assunto destacam-se Animal Intelligence (1881), Mental Evolution in Animals (1883)
e Mental Evolution in Man (1888). A disposição do autor em atribuir estados mentais
aos mais diversos tipos de animais é ilustrada pelo fato de que seis capítulos de seu
Animal Intelligence discutem a inteligência dos invertebrados (ROMANES, 1881).
A generosidade interpretativa dessas narrativas darwinistas seria questionada na
virada do século XIX para o XX. O britânico Conwy Lloyd Morgan questionou as
narrativas ingênuas do comportamento animal, e concebeu diretrizes denominadas
‘Cânone de Morgan’: “Em nenhum caso devemos interpretar uma ação como o
resultado do exercício de uma faculdade psíquica superior, se ela puder ser
interpretada como o resultado do exercício de uma que se situa abaixo na escala
psicológica” (MORGAN, 1894).
Os parâmetros do Cânone de Morgan nortearam o trabalho do Edward Lee
Thorndike, que observou que os estudos sobre animais estariam, portanto, eivados
de pré-concepções do senso comum: “a maioria dos livros não nos propicia uma
psicologia, mas um panegírico (eulogy) dos animais” (THORNDIKE, 1911: 3).
Thorndike elege Romanes como exemplo dessas percepções errôneas sobre a
mente animal. Reproduzindo passagens da obra de Romanes, desconstrói suas
explicações
sobre
os
estados
mentais
supostamente
envolvidos
em
comportamentos considerados complexos. Thorndike explica-os como decorrentes
de processos. Em Animal Intelligence, por exemplo, Romanes (1881) narra suas
observações e de terceiros sobre gatos que haviam aprendido a abrir maçanetas:
Obviamente em todos esses casos os gatos devem ter observado previamente
que as portas são abertas por pessoas ao colocarem as mãos nas maçanetas e,
observando isso, os animais agem pelo que pode ser estritamente denominado
imitação racional. (...) “O processo como um todo é mais do que imitativo,
envolvendo “uma ideia definida das propriedades mecânicas de uma porta. ”
(ROMANES, 1881)
Criticando essa conclusão do darwinista, Thorndike questiona:
“Como podem cientistas que escrevem como advogados, defendendo os
animais contra a acusação de não possuírem qualquer poder de racionalidade,
serem, ao mesmo tempo, um júri imparcial sentado no banco? Infelizmente, o
3
verdadeiro trabalho nesse
(THORNDIKE, 1911: 4)
campo
tem
sido
realizado
nesse
espírito”
O pesquisador ressalta, ainda, que análises do comportamento animal como as
de Romanes se baseiam em grande parte em relatos anedóticos, que são
“testemunhos ignorantes ou imprecisos”, “preconceituosos”, assentados sobre uma
“avidez por elogiar a inteligência dos animais”, especialmente os de estimação
(THORNDIKE, 1911). Para contrabalançar essas tendências, Thorndike concebeu
experimentos nos quais gatos e outros animais eram forçados – para se alimentar
ou libertar - a aprender a abrir trincos em caixas - as‘puzzle-boxes’ - construídas
para tais fins. Realizando experimentos com animais nessas caixas, concluiu que
aprender como abir-las não envolvia estados mentais complexos, como o raciocínio
ou conhecimento de propriedades físicas ou mecanismos; os animais presos nas
puzzle-boxes aprendiam como sair por um processo de tentativa-e-erro, fazendo
associações entre os movimentos e os resultados obtidos (THORNDIKE, 1911).
O associacionismo de Thorndike era perfeitamente coerente com o Cânone de
Morgan; inaugurava-se uma nova atitude de rigor de critérios de cientificidade nos
estudos de comportamento animal, influenciando a emergência do Behaviorismo,
que teve como fundador o estadunidense John B. Watson. Watson elegeu como
modelos experimentais não os gatos, mas os ratos. Os ratos urbanos (Rattus rattus
ou R. norvegicus) são parentes próximos do camundongo, na família dos murídeos.
Aqueles usados por Watson eram de uma variedade albina do R. norvergicus, obtida
por cruzamentos seletivos especialmente para uso como cobaias científicas. Essa
domesticação para fins laboratoriais teve início na França, nos anos 1860, e na
década de 1890 chegavam os primeiros lotes desses animais nos Estados Unidos,
sendo rapidamente incorporados à experimentação em Psicologia Comparativa
(BOAKES, 1984: 143). Observando desses animais que Watson declarou:
A maioria dos estudiosos de psicologia animal hoje sustenta que o chamado
método de aprendizagem por “tentativa-e-erro” é o que tipifica o comportamento
dos animais. Esse método de aprendizagem por “acidentes afortunados” ou
sucesso por acaso, como por vezes é chamado, pode ser ilustrado pela maneira
como o rato branco consegue entrar na caixa-problema. (...) Em uma dessas
caixas o rato tem que levantar um trinco externo, de modelo antigo. Depois que
o truque é aprendido, ele o faz em três ou quatro segundos. Uma pessoa que
visse apenas o ato completo tenderia a expressar admiração pela inteligência do
rato sem manifestar quaisquer dúvidas. Quão diferente seria a visão dessa
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pessoa caso fosse forçada a assistir todo o processo de aprendizagem!
(WATSON, 1907: 424).
Segue uma detalhada explicação das ações do rato desde seu primeiro contato
com a caixa. O animal corre sobre a caixa e ao seu redor, morde os arames, enfia o
focinho ou as patas entre as barras, saltita sobre a caixa novamente, interrompe
tudo para limpar-se. Somente após um longo processo de ensaio e erro - que pode
durar de dois minutos a até uma hora - acaba por esbarrar no trinco, provocando
casualmente a abertura da porta. Nem isso assegura que o roedor tenha aprendido
a solução do problema, pois na segunda vez com que se depara com o mesmo o
rato retoma seus “movimentos inúteis”. Somente após sucessivas apresentações ao
mesmo problema o animal acaba aprendendo de fato a abrir o mecanismo de forma
direta, sem dificuldades. É com base principalmente no desempenho desses
roedores que Watson afirma logo no início do artigo, de forma categórica e irônica:
A maioria das evidências colhidas até o presente momento (...) aponta para o
fato de que se os animais possuem o que no homem chamamos de funções
mentais superiores, eles as mantêm muito bem escondidas (WATSON, 1907:
424).
As implicações dessa aparente ausência de evidências da presença de atributos
mentais nos animais não-humanos atinge seu corolário no Behaviorismo Radical de
Burrhus Skinner, que inclui os humanos em seu projeto de uma psicologia científica
que opte por prescindir por completo de quaisquer interpretações mentalistas.
Uma análise behaviorista se apoia nas seguintes premissas: Uma pessoa é
antes de tudo um organismo (...) O organismo se torna uma pessoa conforme
adquire um repertório comportamental sob as contingências de reforço às quais
é exposto no decorrer de sua vida. (...) Ele é capaz de adquirir tal repertório (...)
devido aos processos de condicionamento que também fazem parte de seus
dotes genéticos (SKINNER, 1974).
O autor compara sua abordagem behaviorista à “visão tradicional mentalista em
psicologia”, segundo a qual “uma pessoa é um membro da espécie humana que se
comporta da forma como o faz devido a várias características ou capacidades
internas”,
tais
como
sensações,
hábitos,
inteligência,
opiniões,
sonhos,
personalidades, humores, expectativas, pulsões, memórias, propósitos, desejos,
medos reprimidos, um senso de dever, sabedoria, um instinto de morte, a vontade
de viver, entre outros. Skinner defende a visáo behaviorista, por sua objetividade, em
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oposição à subjetividade mentalista. “A psicologia como estudo de fenômenos
subjetivos, distinta do estudo do comportamento objetivo, não seria uma ciência, e
não teria motivos para existir”.Sustenta que a introspecção, ferramenta central das
investigações da psicologia mentalista, não é um guia confiável, e acrescenta que
“uma ciência do comportamento deve considerar o lugar dos estímulos privados
como coisas físicas, e ao fazê-lo ela proporciona uma narrativa alternativa a respeito
da vida mental” (SKINNER, 1974). O Behaviorismo Radical de Skinner seguia,
assim, as diretrizes de uma linhagem que remontava a Lloyd Morgan e que adquiria
contornos mais rigorosos a partir de Thorndike e, posteriormente, Watson. Esse
último compara seus métodos e narrativas dos darwinistas vitorianos:
Em acentuado contraste com nossos métodos atuais de estudo da mente nos
animais estão aqueles da velha escola de estudiosos da psicologia animal.
Leiam os prefácios dos muitos livros de Romanes, Darwin, Lindsay, Lubbock e
outros, e vejam como seus “fatos”eram obtidos. Miríades de anedotas são
contadas sobre gatos abrindo trincos, cães comprando pãezinhos e só aceitando
o troco correto, macacos arrumando as próprias camas. A lista é inumerável.
Essas anedotas eram colhidas por meio de cartas, de todas as partes do mundo
e consideradas confiáveis. Mas em nenhuma parte se encontra uma declaração
completa, ou mesmo incompleta, da forma precisa como tais truques foram
aprendidos (WATSON, 1907: 425).
Watson arremata, afirmando que “se o material do atual estudante do
comportamento animal não é tão excitante (...) nem tão supra-humano em suas
implicações quanto o de seus amigos das anedotas”, por outro lado esse estudante
está acrescentando “mais uma pedra à sempre crescente estrutura da ciência
moderna” (WATSON, 1907: 425).
Alexander, Panksepp e os ratos que brincam e riem
Atualmente essa eclipse da mente animal que começa com Morgan e tem seu
apogeu nos behavioristas vem se aproximando de seu fim. As explicações
mentalistas
do
comportamento
animal
vêm
conquistando
legitimidade
epistemológica. Esse processo teve início com os primeiros estudos de longa
duração em Primatologia, como os de Jane Goodall nas selvas da Tanzânia a partir
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de 1960 (GOODALL, 1991), seguidos do advento da Etologia Cognitiva nos anos
1970 (GRIFFIN, 1976). Hoje as investigações das capacidades animais têm
revelado faculdades complexas em espécies insuspeitadas, como corvos (FRASER
e BUGNYAR, 2010), papagaios africanos (PEPPERBERG, 2009), carneiros
(DESPRET,2010), entre outros. Essa lista de animais-revelaçãoinclui a espécie que
foi provavelmente a mais sacrificada nas caixas de Watson e Skinner: o rato branco.
Na década de 1960 pesquisadores interessados no estudo dos mecanismos
fisiológicos e comportamentais relacionados à dependência química realizaram
experimentos envolvendo ratos em caixas de Skinner. Eles aperfeiçoaram técnicas e
aparatos que permitiam (mas não obrigavam) que os ratos injetassem na própria
corrente sanguínea pequenas doses de alguma droga, ao pressionar uma alavanca.
Os resultados demonstraram que na grande maioria dos casos os ratos optavam por
acionar o mecanismo, se autoadministrando grandes quantidades de heroína,
morfina,anfetamina, cocaína e outras drogas. A mídia fez ampla cobertura e alarde
dessas pesquisas, ressaltando as supostas implicações nas sociedades humanas e
a legitimação das visões que defendiam a adoção de políticas de repressão à
produção e consumo de drogas (ALEXANDER, 2010).
Entretanto, um pesquisador da Simon Fraser University chamado Bruce
Alexander desconfiou desses resultados. Refletindo que os ancestrais desses ratos
de laboratório sào criaturas altamente sociais, sexuais e industriosas, Alexander se
perguntava: como se poderia esperar avaliar as reais propensões comportamentais
de um rato se este era mantido em situação de confimanento solitário - um contexto
completamente distinto das condições normais de vida dos ratos comuns? Nào seria
de esperar que ratos – ou humanos – assim isolados recorressem ao recurso que
tivessem em mãos (no caso, as drogas) para embotar suas mentes e tornar mais
suportáveis todas as privaçõesimposta pela jaula? (ALEXANDER, 2010).
Para testar essa hipótese, Alexander e alguns colaboradores conceberam um
experimento alternativo. Inúmeros ratos de ambos os sexos foram colocados em
uma imensa caixa, “cheia de coisas de que os ratos gostam”: serragem, plataformas
para escalar, latas onde se esconder, rodas de correr para se exercitarem. Não
demorou para que os ratos de reproduzissem, e os pesquisadores apelidaram o
espaço de Rat Park (ALEXANDER, 2010; ALEXANDER et al, 1981).
As dependências e condições do Rat Park também incluíam o acesso
irrestrito a drogas, e para efeitos comparativos e de validação de sua hipótese,
Alexander e colaboradores mantiveram outro grupo, este de machos e fêmeas em
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jaulas individuais. Os resultados demonstraram o que era esperado: o consumo de
drogas pelas fêmeas e machos em situação de livre mobilidade foi virtualmente nulo,
enquanto entre os machos e fêmeas submetidos a condições de privação de
liberdade e de acesso a companheiros e recursos lúdicos o consumo foi bastante
alto (ALEXANDER, 2010; ALEXANDER et al, 1981).
Os ratos do Rat Park não são os únicos roedores de laboratório que gostam
de brincar. No ano de 2003 os neurocientistas Jaak Panksepp e Jeff Burgdorf
publicaram um artigo intitulado ‘‘Laughing’’ rats and the evolutionary antecedents of
human joy? (PANKSEPP e BURGDORF, 2003). O texto é alinhado ao campo
relativamente recente da neurociência afetiva, que postula a existência de
“processos emocionais/afetivos que emergem de sistemas cerebrais subcorticais
compartilhados por todos os mamíferos”. O argumento central dos autores é que no
comportamento de brincar dos ratos – mais especificamente nas “vocalizações
ultrassônicas induzidas por brincadeiras e cócegas”, podem ser encontradas
características que implicam “mais que uma breve semelhança com o riso humano
primitivo” (PANKSEPP e BURGDORF, 2003: 533). Em contextos controlados de
manipulação experimental, os pesquisadores provocavam cócegas em ratos de
laboratório, os quais emitiam vocalizações ultrassônicas que foram interpretadas
como equivalentes de risos, já que os mesmos sons são emitidos quando dois ou
mais ratos se encontram envolvidos em atividades de brincar uns com os outros.
Nesse estudo criterioso e sistemático, os pesquisadores afirmam que essas
vocalizações “refletem um tipo de afeto positivo que pode ter relações evolutivas
com a alegria do riso [característico] da infância humana, o qual geralmente
acompanha o brincar social” (PANKSEPP e BURGDORF, 2003: 533).
Sobre ratos, caixas, mentes e fronteiras: Considerações Finais
O período que tem início no fim do século XIX, com os textos de Morgan e
Thorndike, e prossegue até pelo menos o fim da segunda metade do século XX,
pode ser entendido como um momento de uma progressiva atitude de proscrição
das explicações mentalistas do comportamento animal em prol de critérios de
cientificidade mais rigorosos. A tese aqui defendida é a de que embora todos os
autores acima mencionados se considerassem adeptos do evolucionismo darwinista,
que incluía humanos e demais animais em um continuum evolutivo, na prática, sua
adesão ao cânone de Morgan resultou em uma forte tendência a negar a atribuição
de estados mentais complexos a animais, em um longo período de eclipse da mente
8
animal darwiniana. As atribuições de capacidades cognitivas sofisticadas, de
emoções e tantos outros estados mentais passaram a ser cuidadosamente evitadas
- senão completamente rejeitadas - em obediência a uma preocupação obstinada
com os riscos de incorrer em antropomorfismo (SOBER, 2005). Embora o programa
behaviorista defendesse uma ciência objetivista que, em nome de um rigor
metodológico, propunha o tratamento da mente animal como uma caixa preta, de
conteúdo inacessível, na prática o olhar dos pesquisadores passou a ser treinado
para encarar a mente dos animais objetos de seus estudos como uma caixa vazia.
Nessa caixa os cientistas nào deveriam esperar – e, na verdade, era-lhes interditado
encontrar – quaisquer conteúdos subjetivos, como emoções, afeição, amizade,
crenças, expectativas, e tantos outros atributos reconhecidos na mente humana pelo
processo introspectivo rejeitado pelo programa behaviorista
Em meio a roedores como os de Eiseley, Alexander e Panksepp temos que
reconsiderar as capacidades não apenas dos ratos e pombos de Skinner, mas
também dos demais mamíferos e aves. A respeito dessas últimas, Vicki Hearne,
filósofa e adestradora de cavalos, pergunta: por que os filósofos presumem com
tanta certeza que os papagaios não são capazes de conversar? Hearne (1994: 5)
atribui às condições precárias de desenvolvimento e interlocução da ave engaiolada
o julgamento equivocado feito por aqueles que supõem que o papagaio seja um
mero repetidor de fonemas. Comentando as ideias de Hearne, a filósofa e psicóloga
belga Vinciane Despret observa que “os papagaios não podem falar se não tiverem
o sentimento de estar falando a alguém. E esse alguém está cruelmente ausente no
experimento do behaviorista” (DESPRET, 2010). Discutindo contextos de pesquisa
distintos e o quanto o olhar do pesquisador sobre o animal influencia no resultado
dos experimentos ou na interpretação desses resultados, comenta que uma leitura
completamente distinta emerge desde que o pesquisador esteja aberto para “dar
uma chance ao animal de ser interessante, ativo, inteligente” (DESPRET, 2010).
Algumas formas de aproximação do comportamento animal consideradas
heréticas desde Morgan hoje são retomadas em novas bases. O primatólogo Frans
de Waal, além de sustentar a validade metodológica de relatos anedóticos quando
realizados por observadores treinados, confronta o cânone de Morgan, ou “princípio
de parcimônia cognitiva” com um “princípio de parcimônia evolutiva”. Esse autor
defende a possibilidade do emprego de um “antropomorfismo heurístico”, baseado
na faculdade da empatia, para o estudo de primatas. Essa nova perspectiva reafirma
9
a complexidade mental do animal das primeiras narrativas darwinistas, após um
longo período de obscurecimento, mas agora em novos patamares de rigor
investigativo e interpretativo.
Como salienta Lynda Birke (2009: 23), os animais não mais se encontram
confinados aos domínios da Biologia, mas são objeto de investigação também pelas
diversas ciências humanas, algumas das quais ainda jovens e já nascidas sob o
signo da transdisciplinaridade, como é o caso da Ética Animal e da Antrozoologia.
Esses novos olhares e esforços de pesquisa múltiplos e/ou combinados têm
propiciado que os animais ultrapassem as camisas-de-força do rigor anti-mentalista,
e se libertem das paredes limitantes das caixas pretas e vazias de estímulos ou
atrativos onde foram mantidos por tanto tempo. Hoje compartilhamos um mundo
habitado por gorilas que amam, golfinhos que pensam, cães que sonham, papagaios
que falam, polvos que brincam e ratos que riem. Animais inteligentes, sensíveis e
conscientes. As zonas de sobreposição das fronteiras entre os nossos mundos
percpetivos e os de cada um deles podem ser o espaço no qual são possíveis a
empatia, a compreensão mútua, a comunicação e o encontro.
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11
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