A institucionalização do descontrole sobre o espaço no - FAU

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Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
Pós-Graduação em Estruturas Ambientais Urbanas – Tese de doutoramento
Professor orientador Dr. Csaba Deák
CADASTROS E REGISTROS FUNDIÁRIOS
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DO DESCONTROLE SOBRE O ESPAÇO NO
BRASIL
LUISA BATTAGLIA
São Paulo, abril 1995
Esta versão em PDF é provisória,
faltando ainda as ilustraçõòes.
KKM, CD. 09.07.31
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
2
B335c Battaglia, Luisa
Cadastros e registros fundiários: A instituicionalização do descontrole sobre o espaço
no Brasil / Luisa Battaglia, São Paulo: s.n., 1995
300 p.:il.
Tese (doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo
1. sistemas cadastrais. 2.registro de imóveis: Brasil. 3. cadastro: São Paulo. 4.
planejamento territorial. 5. legislação sobre terras: Brasil. 6. propriedade da terra. I.
Título
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
3
Duas pessoas tiveram especial participação nesta tese:
Dr. Csaba Deák, Professor do Departamento de Projeto da FAU USP, que
me orientou. A ele devo apoio e acompanhamento constantes e as
indicações precisas que, em momentos decisivos, me permitiram retomar
o rumo perdido na confusão das novas idéias e possibilidades que se
apresentam a cada instante de uma pesquisa. A ele devo também o
trabalho teórico que serviu de base e de estímulo para o meu trabalho.
Klara Kaiser Mori, também Professora do Departamento de Projeto da
FAU USP, que dividiu comigo bibliografia, dúvidas, frustrações e
entusiasmos, ao longo do processo de dar corpo a conceitos e
experiências esparsas.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
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Apresentação
Este trabalho é resultado de vários anos de pesquisa e indagações ligadas ao
desempenho de atividades profissionais voltadas para o planejamento em setores do
Estado. Versa sobre os instrumentos de reconhecimento, controle e tributação da
propriedade da terra no Brasil, examinados no contexto da formação do Estado e das
características peculiares do desenvolvimento capitalista brasileiro. Dois assuntos,
portanto, constituíram o cerne da pesquisa:
1) as formas de controle e reconhecimento da propriedade fundiária, historicamente
ligadas ao próprio processo de ocupação e de apropriação do território e hoje
institucionalizadas nos Cartórios de Registro de Imóveis;
2) a evolução dos tributos sobre a propriedade da terra e os cadastros mantidos para o
lançamento do Imposto Predial e Territorial Urbano e do Imposto Territorial Rural.
Todo o programa de pós-graduação foi seguido sem que me afastasse das atividades
profissionais. A tese está marcada por essas atividades, enquanto preocupações,
dados e informações coletadas. Seu ritmo de desenvolvimento, lento e descontínuo,
também reflete as conseqüências da vontade de conciliar trabalho profissional com
pesquisa acadêmica.
Foram utilizadas como exemplos informações obtidas de relatórios técnicos e bancos
de dados da Prefeitura do Município de São Paulo, aos quais tive acesso facilitado na
qualidade de funcionária, mas que são públicos. Tomei cuidado de não incluir fontes
de uso restrito. Vale observar que, a menos de detalhes operacionais e dos problemas
decorrentes do tamanho, todas as considerações referentes à estrutura jurídica e
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A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
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institucional apresentadas como referentes a São Paulo podem ser generalizadas para
os demais municípios do país.
A autoria e a fonte usada, sempre que possível, são indicadas junto de cada citação
enquanto que as referências bibliográficas são remetidas ao final do trabalho. Salvo
indicações em contrário as traduções são minhas; transcrevi o original apenas nos
casos em que sua força foi realizada ou em que o texto traduzido pode deixar
dúvidas.
São Paulo, abril de 1995
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A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
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Abstract
The ownership of land in Brazil materializes through a property title, registered by
State regulated private offices. This title is not linked either either to a map or to a
necessarily precise description, leaving a clear field to every kind of violence and
conflicts related to rights on land.
The property title register is not used as the base for property tax either by the Local
Administrations which deal with urban property or by the Federal Government which
is in charge of the rural land taxation. The Federal Government and the almost 5000
Municipalities of the country maintain, for the purposes of taxation, independent data
systems about real state.
Because of this overlap and multiplication of independent data bases related to land
and real estate property it becomes difficult to keep track of the actual rights of
ownership over the private land and, as a consequence, it is also difficult to identify
the so-called public lands and preserve them as such.
Based on both history of the appropriation of land in Brazil and the description of the
different institutional services and legal acts related to such appropriation, this work
presents as a thesis the idea that the overlap of services and data bases, as well as the
lack of reliable property maps are neither an unwanted nor an unavoidable
consequence of some “technical” or “external” problem like a lack of resources. On
the contrary, they are part of the institutional structure built up in accordance with the
specific accumulation process in Brazil, i.e. a process of hindered accumulation,
where the productive forces are not allowed to be fully developed and, as a
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consequence, the “elite” (lasting from the colonial times) was not replaced by a fully
capitalist bourgeoisie as the national ruling class.
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Introdução:
Origem das minhas preocupações com o tema
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A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
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Introdução: origem das minhas preocupações com o tema
Desde 1968 trabalho com planejamento urbano ligado, direta ou indiretamente, à
administração pública. Meu primeiro cargo de responsabilidade foi como assessora
de planejamento da Prefeitura de São Carlos 1 o que, para uma quase recém formada,
era um grande desafio. A Assessoria de Planejamento não era propriamente uma
assessoria mas sim um órgão de linha que, além de acompanhar a elaboração do
Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado, na época áurea do Serfhau,
centralizava a elaboração do orçamento e a programação de obras, respondia pelos
processos de aprovação de parcelamento do solo e desenvolvia projetos ou propostas
que não se enquadravam nas rotinas tradicionais das Divisões e Departamentos.
Livrava a Divisão de Obras e Viação das atividades impopulares ligadas ao controle
urbano e livrava a Divisão de Finanças e Contabilidade de pirotecnia burocrática
associada à elaboração do orçamento. Este era mais uma peça formal,
constantemente alterada ao longo de sua execução e, portanto, nunca levava muito a
sério pelos dirigentes da Administração Municipal.
Os seis anos na Prefeitura de São Carlos me deram grande parte da experiência
básica da minha vida profissional. Nos anos seguintes pude desenvolver, repensar e
criticar o que havia feito. Com mais experiência e mais estudos pude perceber mais
claramente, não só o significado das ações do chamado poder público, como também
os obstáculos estruturais a essas ações e os interesses e forças em jogo. Aprendi a
construir um arcabouço teórico para analisar as ações do quotidiano. Trabalhei (ainda
trabalho) com problemas muito maiores que os de São Carlos, numa cidade muito
maior que é São Paulo. No entanto, a base de meus conhecimentos factuais sobre a
organização, o funcionamento e a estrutura de poder de uma Prefeitura foi adquirida
em São Carlos.
1
São Carlos, cidade na região central do Estado de São Paulo, tinha na época em torno de 100.000
habitantes. É um centro industrial e sede de um campus da Universidade de São Paulo e da
Universidade Federal de São Carlos
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A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
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Encarava o cargo com a ingenuidade e o entusiasmo de quem, com menos de trinta
anos, se dispõe a reorganizar o mundo e comecei a pôr ordem nos fluxos de papéis e
informações necessários para permitir o controle do parcelamento e da propriedade
do solo, com a intenção de fazer funcionar os serviços ligados à aprovação de
loteamentos e de montar um cadastro confiável das propriedades. Esbarrei logo com
problemas circunstanciais, cuja solução dependia só de algum conhecimento, de um
pouco de boa vontade e da mobilização dos recursos disponíveis. Demorei anos para
perceber que, frente às mais diversas circunstâncias, a situação do controle fundiário
é sempre a mesma: falta de cartografia básica, falta de um sistema viável de controle
do parcelamento do solo, legislação confusa e de aplicação inviável, cadastro
imobiliário mantido exclusivamente pelo setor de Finanças, animosidade e
desconfiança mútua entre Finanças e Planejamento. A constatação de que os
problemas aparentes são sempre os mesmos trouxe ao mesmo tempo a curiosidade de
saber porque é tão difícil resolvê-los e a crescente certeza de que eles não são
resolvidos porque são parte de uma estrutura jurídica e institucional organizada
exatamente para mantê-los.
Em 1979, já com a base de trabalho em São Paulo, passei três meses na França num
estágio sobre sistemas de informações para gestão urbana. Foi aí que me dei conta
não só da precariedade dos nossos mapas mas, principalmente, das dificuldades de se
gerenciar um território quanto os critérios de desagregação, de coleta, de
representação gráfica, de confiabilidade etc. etc. dos dados são díspares e dependem
da finalidade. No Brasil temos um registro de imóveis para legitimação da
propriedade e outros para tributação; temos mapas fiscais diferentes de mapas de
obras e dados de população que variam de 20% conforme sirvam para estimar a
demanda de água ou para distribuir recursos públicos entre os municípios.
Um ano a serviço do CNDU (Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano), um
ano nos Estados Unidos, em estágio no Hunter College (City University of New
York) e, mais tarde, um trabalho conjunto da Sempla (Secretaria Municipal do
Planejamento) com a Administração de Toronto (Canadá) me deram mais elementos
para poder comparar as formas de controle e de tributação sobre a propriedade no
Brasil e em países capitalistas centrais.
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Minha dissertação de mestrado, apresentada em 1987, versou sobre a evolução do
processo de ocupação urbana no Brasil e as instituições formais de controle de
ocupação do solo através da aprovação de loteamentos.
A partir de 1989 me dediquei à organização do Departamento de Informações da
Secretaria Municipal do Planejamento em São Paulo. Esse Departamento trabalha
com análise, compatibilização e agregação dos dados usados para planejamento no
âmbito das ações da Administração Municipal. A fonte mais importante de dados
sobre uso e ocupação do solo é o cadastro fiscal do qual se extraem informações
sobre impostos e áreas. Mas a Prefeitura mantém outros cadastros, alguns com a
mesma estrutura porém ligados ao cadastro fiscal de tal maneira que é impossível
comparar dados de origens diferentes ou ter noções sobre o significado preciso e a
confiabilidade dos mesmos. Quatro anos de esforços no sentido de interligar esses
cadastros 2 resultaram em algumas melhorias significativas que imediatamente
provocaram reações no sentido de impedir qualquer outro avanço. O projeto foi
desativado pela simples exigência de medidas burocrático-formais que acabaram
consolidando a estrutura vigente de serviços isolados que utilizam e produzem
conjuntos de dados de maneira autônoma.
Esse trabalho de interligação dos cadastros se ressentiu desde o início das
deficiências das bases cartográficas, o que levou a equipe envolvida a iniciar um
projeto de montagem e manutenção de um sistema cartográfico digitalizado, base
para o mapeamento das propriedades. Logo após os primeiros produtos este projeto
se viu paulatinamente engessado em procedimentos formais de definições de
competências a longo prazo e em uma multiplicação de estudos detalhados para
definir recursos que, de qualquer maneira, estariam sempre muito aquém tanto das
necessidades do projeto quanto da capacidade de gerenciamento dos técnicos
envolvidos.
Essas experiências profissionais definem o quadro de preocupações da pesquisa
relacionada com este programa de doutoramento.
Foi evidente nestes períodos o que significa “máquina administrativa emperrada”,
“inércia das estruturas”, “impedimentos institucionais” etc. Aparentemente, há
2
Projeto SUC – Sistema Unificado de Cadastros
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A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
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vontade política de melhorar o serviço prestado pela administração pública e de
controlar melhor a ocupação territorial, os problemas técnicos não são impeditivos,
os recursos necessários são ínfimos perante o volume total movimentado por uma
Prefeitura mas, mesmo estando razoavelmente próximo das decisões administrativas,
percebe-se que as “coisas não andam”. Ou melhor, andam com um dispêndio de
energia incrivelmente desproporcionado com o resultado aparente. Ao mesmo tempo
em que fui avançando, devagar, num trabalho de análise, compatibilização e
divulgação de informações necessárias para o planejamento, fui sendo obrigada a
identificar pontos vitais desta estrutura aparentemente burra e ineficiente para os
objetivos declarados. Vitais para a manutenção do status quo, inclusive a aparente
burrice e ineficiência.
A convicção de que o conhecimento abrangente da propriedade do solo não se
constitui em objetivo para o Estado brasileiro foi sendo acompanhada pela
constatação da importância atribuída a esse mesmo conhecimento pelos Estados
“centrais”. Donde foi surgindo a indagação do por que dessa diferença e da
importância a ser-lhe atribuída, além da hipótese, ainda embrionária no início deste
trabalho de pesquisa, de que a forma de reconhecimento da propriedade no Brasil é
parte essencial da formação de um Estado deliberadamente incapaz de agir no
controle do espaço nacional.
Em torno dessa hipótese se articula a tese desenvolvida. Procurei mostrar que, no
Brasil, a sobreposição de sistemas de registros fundiários e a precariedade das bases
cartográficas correspondentes não são detalhes acidentais e muito menos falhas mas
sim parte importante da estrutura jurídico institucional de manutenção do status quo
em têrmos da específica organização social, da qual um dos aspectos importantes é a
inviabilidade do planejamento territorial por parte do Estado. Em outras palavras, a
“desinformação” aparentemente acidental sobre a propriedade é parte das
características essenciais que diferenciam o Estado brasileiro de um Estado burguês.
O trabalho está estruturado em doze capítulos, agrupado em quatro partes:
A primeira parte constitui um quadro de referência teórico com a explicação de
alguns conceitos utilizados, notadamente os de propriedade e de Estado, além de um
esboço de interpretação sobre a organização do Estado no Brasil.
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A segunda parte apresenta a evolução histórica das instituições ligadas ao
reconhecimento e à tributação de propriedade da terra.
Na terceira parte são descritos o sistema de registro de imóveis no Brasil e os
cadastros fiscais (tomando o exemplo de São Paulo), precedidos por um breve
apanhado da evolução desses sistemas em países centrais, em especial na França.
A quarta parte, como conclusão, propõe a discussão de algumas diretrizes, sempre
no âmbito dos sistemas cadastrais, no sentido de incorporar às ações explícitas do
Estado brasileiro as relacionadas com o controle do seu território.
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I
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
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Quadro de referência
O assunto central deste trabalho é o registro fundiário no Brasil no seu duplo aspecto
de reconhecimento da propriedade e de instrumento para tributação. O entendimento
do enfoque com que este assunto foi tratado exige algumas considerações prévias
relativas ao conceito de propriedade, ao significado social tanto do reconhecimento
da propriedade quanto da tributação sobre ela e à forma como o Estado trata estas
questões.
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Os três capítulos iniciais compõem esse quadro de referência para o assunto
central específico. Eles se apóiam inteiramente em autores que já desenvolveram
esses temas ou que trazem informações históricas relevantes.
Trata-se, no primeiro capítulo: A propriedade, de precisar o significado da
propriedade enquanto condição básica do modo de produção capitalista e o
significado da expressão jurídica da propriedade enquanto base institucional para
a reprodução desse modo de produção. A conceituação é completada por um
esboço da transformação histórica do domínio feudal sobre a terra em
propriedade, por alguns exemplos da construção da ideologia burguesa sobre a
propriedade e, por fim, por uma breve menção à influência da propriedade na
organização social das colônias americanas.
Em seguida (Capítulo 2) são abordadas questões que dizem respeito ao Estado
como instrumento da classe dominante, garantia da reprodução das relações
sociais, e particularmente à especificidade do Estado capitalista que, sem abdicar
de suas funções proclama a primazia do mercado. Também são citados alguns dos
autores das “teorias” produzidas para justificativa da organização do Estado
burguês. Acrescentam-se alguns exemplos das idéias dominantes sobre o papel do
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A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
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Estado, como parte da ideologia cuja construção permite manter as discussões em
torno de questões irrelevantes para a reprodução da estrutura de dominação e da
hegemonia burguesa.
No Capítulo 3: O Estado no Brasil retoma-se uma interpretação das
características específicas do Estado no Brasil onde o desenvolvimento capitalista
não redundou na supremacia de uma classe burguesa mas sim de uma elite cujos
interesses estiveram até o presente adquiridos no período colonial 1 . Essa elite de
origem colonial sempre entravou o desenvolvimento capitalista que traria
implicado em sua transformação do Estado brasileiro que concorrem para a
manutenção desses entraves e que o caracterizam como um Estado de elite.
1
A idéia foi desenvolvida por Deáki, inicialmente apresentada no III Encontro Nacional da
ANPUR (Associação Nacional de Pesquisa e Ensino em Planejamento Urbano e Regional), em
maio de 1989, e reelaborada para o Seminário: o Brasil pós ’80, 1990. (cf.Deáki, 1991).
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Capítulo 1: A PROPRIEDADE
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A PROPRIEDADE
O professor: Dize-me pois de onde veio a fortuna de teu pai.
A criança: Do avô.
O professor: E deste?
A criança: Do bisavô.
O professor: E deste último?
A criança: Ele a pegou. 1
1.1. O conceito de propriedade
A propriedade, entendida como propriedade dos meios de produção, é condição
necessária para o estabelecimento da relação salarial, base do modo de produção
capitalista. É com este sentido, de condicionante de modo de produção, que o
conceito de propriedade permite entender o significado das transformações
ocorridas tanto nas formas de apropriação das terras do Brasil quanto nas formas
de reconhecimento dessa apropriação.
Desde os primórdios da civilização uma parte da sociedade domina a outra através
do condicionamento do acesso aos meios de produção e, portanto, de
subsistência. 2 A forma pela qual esse acesso é condicionado (variável ao longo da
história) faz parte do modo de (re)produção pela qual no modo de produção
capitalista se impede o livre acesso aos meios de subsistência, que o conceito de
propriedade passa a ter significado.
“Em cada época histórica propriedade tem se desenvolvido de maneiras
diferentes e sob conjuntos inteiramente diferentes de relações sociais;
portanto definir a propriedade burguesa nada mais é do que expor todas as
1
Diálogo citado por Marx que o atribui a Goethe (Marx 1867, 1° Livro, pg. 691, nota 2 do
capítulo XXVI).
2
Engels (1884).
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relações sociais da produção burguesa. Tentar definir a propriedade como
uma relação independente, uma categoria em si, uma idéia abstrata e eterna,
não pode ser mais do que uma ilusão de metafísica ou de jurisprudência.”
(Marx, A ideologia alemã)
3
Historicamente (Inglaterra a partir do século XVI) o modo de produção capitalista
se origina pela transformação do domínio feudal sobre a terra em propriedade,
equivalendo à separação dos trabalhadores dos meios de produção e, portanto, de
subsistência. Em outras palavras, os camponeses/lavradores, produtores imediatos,
deixaram de ser parte integrante dos domínios do senhor, obrigados a lavrar a terra
e produzir, e foram transformados em homens “livres”, sem vínculo com a terra
isto é, sem acesso aos meios de produção, e sem a garantia de sobrevivência
decorrente da relação senhor/servo qual seja, da obrigação de produzir excedente
além do necessário para a própria sobrevivência. Os homens livres dos vínculos e
garantias feudais passaram a ser obrigados a vender sua força de trabalho para
comprar, com seu salário, seus meios de subsistência, transformando-se em
trabalhadores assalariados.
Mas, se na origem dessa transformação está a transformação do domínio feudal
em propriedade, essa deve ser entendida com tudo o que implica em têrmos de
relações sociais; notadamente a substituição da organização social baseada na
extração de excedente sob a forma de renda pela organização baseada na
acumulação capitalista e a substituição do senhor feudal pelo capitalista como
comandantes das relações de produção.
Ao se tornar proprietário dos meios de produção social o capitalista, e só ele, se
assegura da disponibilidade de força de trabalho, reunindo portanto as condições
não só para produzir o total da produção social como sua propriedade como
também para decidir quanto ao que deve ser produzido (e, portanto, consumido),
alterar a organização do trabalho e utilizar a capacidade do trabalhador segundo
seus critérios.
Somente se transformados em propriedade nas mãos do capitalista os meios de
produção passam a ser capital, base da relação salarial.
3
Em Althusser & Balibar (1968), citado à pg. 228.
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“Meios de produção e de subsistência pertencentes ao produtor imediato, ao
trabalhador, não são capital. Eles só se tornam capital ao servir como meio
para explorar e dominar o trabalhador.” (Marx, 1867, pg.560)
Não é o fato de ser propriedade que torna os meios de produção capital e sim a
compulsão da relação salarial, o fato de que, separado dos meios de produção, um
membro da classe trabalhadora não é um trabalhador e não tem condições de
subsistência.
A relação capital/salário é uma relação entre duas classes: a dos proprietários e a
dos não proprietários dos meios de produção. É a propriedade dos meios de
produção (e só esta) que no capitalismo, ao estabelecer a relação salarial, distingue
a classe dominante da classe dominada.
Vale lembrar o caso de Mr. Peel, relatado por Wakefield 4 e citado por Marx 5 : Sir
Robert Peel (1750-1830), industrial inglês, foi montar uma empresa na colônia de
Swan River, na Nova Holanda 6 levando víveres, meios de produção e 3000
indivíduos da classe operária. Lá chegando ficou sem um empregado pois com a
abundância de terra livre que encontraram na colônia, os trabalhadores foram
todos se apossar de um pedaço de chão e trabalhar para si mesmos. As 50.000
Libras em bens levados da Inglaterra, uma vultosa soma equivalente a cnetenas de
milhhões de dólares de hoje, de nada serviram para montar uma empresa
capitalista,visto que a parte essencial dos meios de produção, a terra, não tinha
sido transformada em propriedade.
“Podre Mr. Peel que tinha previsto tudo! Só tinha esquecido de exportar para
Swan River as relações de produção inglesas.” (Marx, 1867, 1° Livro,
pg.560)
Essas relações de produção inglesas se baseavam sobre a instituição da
propriedade, entendida como impedimento do acesso do trabalhador aos meios de
subsistência no caso, a terra. Não havendo essa condição a relação salarial
4
Wakefield (1833, pg.33).
5
Marx (1867, 1° Livro, pg.560).
6
A tradução inglesa (Penguin, pg.932-3) situa o distrito de Swan River na Austrália Ocidental.
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(estabelecida na Inglaterra) se desfez e as 50.000 Libras e os meios de produção
deixaram de ser capital.
O entendimento da propriedade enquanto condição de modo de produção passa
pela distinção entre o seu significado econômico e a sua expressão jurídica.
Enquanto relação juridicamente definida entre pessoa e coisa a propriedade
sempre existiu, com ligeiras variações na sua definição 7 : faculdade de dispor da
coisa segundo sua vontade, de impedir o uso por outra pessoa, de transformar um
valor de uso em valor de troca etc. Mas a relação jurídica só adquire significado
econômico na medida em que permite que a propriedade assim definida se torne
garantia da relação salarial. Ao se falar em propriedade em épocas dominadas por
modos de produção pré-capitalistas está-se dando apenas uma definição jurídica
sem articulação com a estrutura econômica, visto que propriedade como tal não
tinha significado no processo de (re)produção social.
A distinção entre propriedade e sua expressão jurídica, assim como a necessária
articulação entre elas, foram tratadas por Althusser e Balibar em Ler o Capital. O
texto a seguir é uma tradução livre e resumida de trechos das páginas 226 e
seguintes da tradução inglesa - Reading Capital 8 .
Segundo Balibar:
Marx atribui uma função ambivalente às formas legais: elas expressam e
codificam a realidade ‘econômica’, escondendo-a, porém, simultaneamente.
Com relação à propriedade alguns pontos podem ser esboçados como
referência:
(1) A estrutura econômica do modo de produção capitalista pressupõe a
existência de um sistema jurídico cujos elementos básicos são o direito de
propriedade e o contrato.
(2) A peculiaridade desse sistema jurídico é o seu caráter de abstração e
universalidade. Todos os seres por ele abrangidos são distribuidos em duas
categorias, dentro de cada uma das quais não há distinção do ponto de vista
legal: a categoria das pessoas e a categoria das coisas. A relação de
7
Ver as diferentes “formas” de propriedade ao longo da história apresentadas por Marx e Engels
em A Ideologia alemã (Marx e Engels, 1845).
8
Althusser e Balibar (1968).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
propriedade é estabelecida exclusivamente entre pessoas e coisas (ou melhor,
aquilo que é considerado pessoas e aquilo que é considerado coisas); a
relação de contrato é estabelecida exclusivamente entre pessoas. Assim
como, pela lei, não há diferença entre pessoas (todas são ou podem ser
proprietárias e contratantes) também não há distinção entre coisas, as quais
todos podem ser propriedade sejam elas meios de produção ou meios de
consumo e qualquer que seja o uso ao qual essa propriedade se presta.
(3) Essa universalidade do sistema legal reflete outra universalidade que é
parte da estrutura econômica: a universalidade da troca de mercadorias que
só ocorre no modo de produção capitalista (apesar da existência da troca de
mercadorias ser muito mais velha). Somente no modo de produção capitalista
o conjunto de elementos da estrutura econômica está inteiramente distribuído
entre mercadorias (inclusive a força de trabalho) e agentes de troca (inclusive
o produtor direto). Essas duas categorias, portanto, correspondem
adequadamente às definidas pelo sistema legal (coisas e pessoas).
(4) As relações sociais de produção que fazem parte da estrutura do modo de
produção capitalista podem ser caracterizadas por comparação com sua
expressão legal, desvendando-se alguns “deslocamentos” entre elas.
- Em primeiro lugar, enquanto o direito à propriedade é caracterizado como
universal, não diferenciando entre as coisas possuidas e seu uso, a única
propriedade que tem significado do ponto de vista da estrutura do processo de
produção é a propriedade dos meios de produção. Enquanto a propriedade
‘legal’ é um direito a qualquer forma de consumo, a propriedade ‘econômica’
dos meios de produção não é tanto um direito legal sobre eles quanto o
direito de consumi-los produtivamente e um meio de se apropriar do produto
excedente. Este poder não decorre da lei mas da distribuição dos meios de
produção. A relação econômica não se baseia na indiferenciação das coisas
mas na diferenciação em elementos de consumo individual e elementos de
consumo produtivo. Portanto a discrepância entre as relações sociais de
produção e o direito de propriedade pode
ser caracterizada
como um
movimento de extensão, ou de prolongamento: de proprietário dos ‘meios de
produção’ para proprietário ‘em geral’, abolindo as divisões requeridas pela
estrutura de produção.
22
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- Em segundo lugar, a relação estabelecida entre o proprietário dos meios de
produção (o capitalista) e o assalariado é, legalmente, uma forma especial de
contrato: um contrato de trabalho. Este é estabelecido com base na condição
de que o trabalho é legalmente considerado uma troca isto é, o potencial de
trabalho é legalmente considerado como sendo uma ‘mercadoria’ ou uma
coisa. Essa transformação do potencial de trabalho em mercadoria e o
contrato de trabalho são, conceitualmente, totalmente independentes da
natureza da operação na qual o trabalho é consumido. É por isto que a forma
jurídica do assalariado e uma forma universal, aplicada tanto ao trabalho
produtivo (a transformação que produz mais valia) quanto a todas as outras
formas de trabalho, geralmente designadas pelo termo ‘serviços’. Mas
somente trabalho ‘produtivo’ determina uma relação de produção e trabalho
produtivo não pode ser genericamente definido pela relação entre o
empregador e o assalariado, uma relação entre ‘pessoas’. [Novamente
observamos uma ‘extensão’ da relação de produção capital/salário para
qualquer contrato de trabalho – LB] 9
A expressão jurídica da propriedade é formalizada em ‘direitos” reconhecidos e
garantidos pelo Estado (através da legislação, da jurisprudência, do aparato
policial) e aceitos pela sociedade (através da ideologia) como regras de
organização social, parte de sua própria sobrevivência. Mas na origem a
propriedade só pode se constituir pela força. Em todos os períodos históricos a
uma fase de conquista ou de revolução sucede uma de estabilização da situação,
que inclui o reconhecimento das novas relações de poder e a instituição de normas
que as perpetuem.
A apropriação das terras comunais na Inglaterra se fez pela força (sob diversas
formas), seja ao amparo de interpretações jurídicas, seja pela simples razão da
força. Durante séculos as questões relacionadas com direitos de uso da terra
haviam sido resolvidas por um complicado sistema de jurisprudência abrangido
pela Lei Comum (“Common Law”), desenvolvida depois da conquista normanda
9
Tenho dúvidas quanto à importância dada por Balibar a essa distinção entre trabalho
produtivo e não produtivo (de mais valia), considerando que a mais valia só pode ser definida
socialmente. “A massa de mais valia é apropriada pela classe capitalista em seu conjunto. É a base
da solidariedade desta classe, que se impõe como uma restrição às suas divisões enquanto
possuidores de mercadoria” (Anglietta, 1976, pg.35-6).
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mas ainda com base nas práticas tribais Anglo-Saxônicas10 . Apesar de sua força,
demonstrada pelo fato do Código Romano nunca ter sido adotado como base
jurídica na Inglaterra, ao se processar a dissolução do feudalismo a “Common
Law” não impediu as apropriações de terras e a desconsideração dos direitos
feudais dos camponeses de acessar aos campos de cultivo.
Uma vez estabelecida, a nova estrutura de propriedade passou a ser consolidada
através da instituição de formas de reconhecimento e de transmissão, direitos,
restrições etc. As leis e normas que haviam regido o feudalismo não se prestavam
para as novas relações de dominação que estabeleciam e, mesmo na Inglaterra, a
classe burguesa em ascensão teve de buscar no Código Romano alguns princípios
para o posterior desenvolvimento do direito privado. Essa nova estrutura do
direito é parte das condições criadas no capitalismo para sua própria reprodução
como modo de produção dominante.
O capitalismo constantemente recria e altera essas condições de sua reprodução,
em função do estágio de desenvolvimento. Se, para estabelecer a relação salarial,
é necessário transformar a terra em propriedade como meio de condicionar a
subsistência do trabalhador ao seu assalariamento, no estágio onde o regime de
acumulação é predominantemente intensivo 11 as condições de assalariamento
podem não depender mais, diretamente, da propriedade da terra.
Essa alteração da importância relativa da propriedade em função do estágio de
desenvolvimento é uma questão que ainda foi pouco tratada. Donde o perigo de
generalizar para o capitalismo condições que são próprias de algum estágio
específico de desenvolvimento.
10
11
Morton (1938, pg.75).
Os conceitos de regime de acumulação extensiva e intensiva foram usados por Aglietta
(1976). Uma caracterização resumida encontra-se em Deák (1985), particularmente às páginas
140ss. E 156-7: “Num regime de acumulação predominantemente extensivo o principal estímulo
para o crescimento da produção (de mercadorias) é a expansão do trabalho assalariado em novas
áreas. Não porque o trabalho se torna mais produtivo mas sim porque anteriormente o trabalho
não era absolutamente produtivo (de mais valia). Por contraste, num regime de acumulação
predominantemente intensiva o crescimento da produtividade do trabalho é o principal meio de
crescimento da produção e portanto, é a velocidade da mudança nas técnicas de produção que se
torna crucial.”
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
25
A própria identificação do que vem a ser meio de produção e o significado de sua
apropriação são variáveis conforme o estágio de desenvolvimento.
O capitalismo não só aumentou (de ordem de grandeza) a produtividade e
aprofundou sobremania a divisão do trabalho como também, em decorrência,
alterou a relação entre a quantidade de trabalhadores necessários para trabalhar a
terra e os ocupados em atividades não diretamente vinculadas à terra. A terra
deixou de ser o quase único meio de produção, como o foi em todas as sociedades
pré-capitalistas, cuja produção dependia em maior medida das condições naturais.
Essas observações tem aqui como objetivo o de relativizar a atual importância da
propriedade da terra enquanto meio de produção (matéria para produção de
alimentos e matérias primas) alertando para o perigo, bastante frequente, de se
generalizar para o capitalismo condições que são próprias de algum estágio
específico de desenvolvimento.
Mas ao mesmo tempo é necessário ressaltar a importância da terra enquanto
suporte espacial do total da produção e das atividades necessárias à reprodução
social. Com a completa disseminação do capitalismo como modo de produção
dominante e a superação do estágio de acumulação predominantemente extensivo,
a terra deixa de ser meio de produção “natural” e passa a ser espaço urbano,
produzido pelo homem, cuja principal propriedade é sua localização. A terra
enquanto suporte espacial, enquanto localização, é condição de produção. 12
1.2
A transformação dos direitos feudais sobre a terra em propriedade
dos meios de produção
A base histórica do capitalismo é, como foi visto, a separação do trabalhador dos
seus meios de subsistência ou, em outros termos, a criação de uma classe
proprietária dos meios de produção e de uma classe de produtos sem acesso a eles
12
Para o conceito de localização, assim como para uma discussão sobre o preço da terra
(preço da localização) e a organização espacial, ver Deák (1985).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
26
a não ser através da “livre negociação” com os seus proprietários isto é, da venda
da própria força de trabalho.
O processo de separação do trabalhador de seus meios de subsitência deve ser
visto com especial atenção na Inglaterra por corresponder à própria formação e
origem do modo de produção capitalista. Esse mesmo processo de separação
ocorrido mais tarde em outros países já não corresponde à transformação de uma
sociedade feudal em sociedade capitalista “tout court” mas à transformação dentro
de um contexto internacional de forças já dominadas por uma economia
capitalista. 13
A dissolução do feudalismo na Inglaterra e a preparação das condições de
surgimento do capitalismo foi um processo lento. Desde o século XIV o
cercamento e apropriação de terras comunais (“enclosures”) vinham sendo
praticados com maior ou menor intensidade 14 , com a consequente transformação
de servos em trabalhadores livres. No século XV a servidão havia praticamente
desaparecido na Inglaterra e com ela os senhores feudais.
O movimento histórico de conversão dos servos em assalariados passa pela
libertação das relações de servidão e das tutelas das guildas como passo necessário
para o despojamento dos trabalhadores dos seus meios de produção e das garantias
de sobrevivência. Na Inglaterra esta etapa correspondeu à formação de uma classe
de pequenos proprietários cultivando sua própria terra (“yeomen”).
“O campesinato tinha de ser atomizado, pulverizado em unidades solitárias e
indefesas, antes de que seus componentes pudessem ser reintegrados numa
massa de trabalhadores assalariados, participando da produção capitalista.”
15
A partir dessa pulverização do campesinato em pequenas unidades isoladas o
processo de enclosures no período Tudor (século XVI), coincidindo com um
sensível crescimento de população e acompanhado de aumento dos preços,
13
A formação dos diversos Estados absolutistas corresponde precisamente a um período de
transformação, em que a organização social não era mais feudal mas o Estado ainda não se
estruturava plenamente em torno dos interesses da burguesia.
14
Morton (1938, pg.166): “Os fechamentos dos campos não eram novidade [no século
XVI]. Eles vinham acontecendo regularmente desde a Grande Peste e é duvidoso se a proporção
de fechamentos na primeira metade do século XVI seria maior que nos meados do século XIV.”
15
Morton (1938).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
27
assumiu características de espoliação em massa. Por outro lado, o aumento dos
preços, especialmente da lã, tornando a criação de ovelhas mais rentável e a terra
mais valiosa, acelerou o processo de cercamento, transformando áreas de cultivo
em pastagens. Mesmo assim o processo não foi homogêneo em todo o país e nem
todos os campos foram fechados.
Já no fim do século XVII e início do XVIII a rápida introdução de novas técnicas
agrícolas (Revolução Agrícola) possibilitou e exigiu novas alterações na estrutura
de produção. As novas técnicas demandavam grandes capitais e só podiam ser
aplicadas por capitalistas, sendo portanto totalmente incompatíveis com o sistema
de campos comunais ainda remanescentes em boa parte do país. Resultou uma
nova onda de enclouses, desta vez não para transformar áreas de cultivo em
pastagens para ovelhas mas para anexar campos comunais e reservas de caça e
madeira, formando grandes extensões em que os novos metidos de rodísio de uso
podiam ser aplicados em larga escala. Os pequenos produtores independentes sem
condições de introduzir as novas técnicas, foram forçados a vender ou ceder suas
terras para pagamento de dívidas e a vagar em busca de trabalho assalariado. 16
A criação de um campesinato livre havia acompanhado o desenvolvimento de
uma produção agrícola para o mercado e implicou no aparecimento de outro tipo
de senhores da terra: senhores cujo poder não dependia mais do número de
homens nos seus domínios mas sim da quantidade de dinheiro que deles podiam
extrair. A transformações da forma da renda, desde a primitiva renda em trabalho
até a renda em dinheiro, permitiu boa parte das interpretações jurídicas necessárias
à implantação do capitalismo sem alterações formais, uma vez que,
aparentemente, o aluguel pago por um empresário capitalista a um proprietário de
terra equivale à renda (em dinheiro) paga pelo servo ao senhor feudal. 17
1.3
A construção da ideologia burguesa sobre a propriedade
16
Morton (1938, pg.326 ss.)
17
Sobre o desaparecimento histórico da renda e seu não significado enquanto categoria de
análise do modo de produção capitalista ver Deák (1985).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
28
A substituição da nobreza feudal pela burguesia como classe dominante foi
acompanhada pela correspondente substituição das idéias dominantes acerca da
organização da sociedade (e do universo em geral).
Em todas as revoluções as novas idéias já fazem parte do próprio movimento
revolucionário que, no início, não se apresenta como movimento de classe mas
sim como aspiração de toda a sociedade em oposição à única classe, dominante.
No período de superação do modo de produção feudal e de transição para o
capitalismo esse último envolvia as forças progressivas, no sentido do aumento da
produção social e do afastamento do poder de uma classe que já não detinha mais
as condições de controle dessa produção. As idéias de liberdade e direitos
individuais entre o povo, o que permitiu a articulação de algumas revoltas
populares (logo abafadas) e o engajamento das mesmas massas populares nas
(vitoriosas) revoluções burguesas.
Tanto a Revolução Inglesa de 1640-60 como a Francesa no século seguinte se
desenrolaram com o apoio das massas, que no entanto eram logo alijadas das
decisões, uma vez alcançando o objetivo de quebrar o poder da classe até então
dominante. À medida em que a burguesia se constituía como nova classe
dominante, com interesses de classe e não mais de movimento revolucionário,
passou a ser necessário escolher, dentre as idéias em voga, aquelas que mais
convinham para apresentar os interesses da burguesia como interesses da
sociedade. Essas idéias, sistematizadas e erigidas em “teorias”, constituem a base
ideológica necessária para o estabelecimento e manutenção da hegemonia
(burguesia).
“Uma vez que as idéias dominantes tenham sido separadas dos indivíduos
dominantes e, principalmente, das relações que nascem de uma dada fase do
modo de produção, e que com isso chegue-se ao resultado de que na história
as idéias sempre dominam, é muito fácil abstrair dessas idéias ‘a idéia’ etc.
como o dominante na história e nesta medida conceber todos estes conceitos
e idéias particulares como ‘autodeterminação’ do conceito que se desenvolve
na história.” (Marx e Engels, 1845: A ideologia alemã, pg.75)
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
29
Na construção da ideologia a propriedade deixou de corresponder a interesses de
classe bem definidos e passou a ser um “direito natural”, mediante a confusão (já
apontada acima – pg.28) que identifica a apropriação dos meios de produção com
o direito de cada indivíduo à sua própria reprodução. Com a construção desta
identidade é sempre fácil apresentar qualquer alternativa de controle dos meios de
produção como um atentado ao direito de dispor de objetos de consumo.
As idéias difundidas na baixa Idade Média na Inglaterra, tanto entre o povo quanto
entre os senhores feudais e o clero, consideravam como modelo ideal uma
sociedade sem classes e sem proprietários. A imposição da propriedade e da
dominação teria sido conseqüência do pecado original. Já a partir do século XIII
as versões oficiais apontam a propriedade e a divisão em classes como algo
natural numa sociedade humana. 18
As teorias do século XVII, especialmente na Inglaterra, na Holanda e na França,
impregnadas do espírito da Reforma, da obediência a Deus antes que aos homens,
defendiam o livre arbítrio, a liberdade individual e o governo como resultado de
contrato entre governantes e governados. Em franca oposição ao dogma do direito
divino dos reis.
A primeira manifestação pelo estabelecimento formal de direitos individuais, parte
do processo da Revolução Inglesa, foi apresentada ao Parlamento em setembro de
1967, no documento conhecido como Agreement of the People. Nele fazia-se a
distinção entre os direitos à propriedade e os direitos naturais, entendidos esses
como os diretamente ligados à condição humana e à própria sobrevivência. Essa
separação representava a posição dos trabalhadores independentes e tinha por
finalidade estender os direitos políticos e a liberdade a todos os indivíduos,
independente da condição de proprietário ou não proprietário.
Mas, como em todas as revoluções burgueses, uma vez alcançado um primeiro
estágio a luta passou a ser interna, entre os que queriam limitar as mudanças ao
fim dos privilégios feudais e os que queriam abolir ou limitar o poder dos
humanos de posse. Normalmente são os primeiros, os proprietários, que procuram
logo consolidar as posições conquistadas em constituições escritas, funcionando
18
Morton (1952).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
30
como barreiras contra novos avanços dos direitos das massas. No caso do
Agreement, ao contrário, forma os Levellers, os da facção mais radical, que
tentaram consolidar posições ganhas mas que já lhes pareciam difíceis de
conservar. 19 Com efeito, após disputas parlamentares, movimentos de rua e
batalhas entre exércitos, os Levellers foram derrotados e Cromwell consolidou seu
poder como “protetor da propriedade e amigo da ordem” 20 .
Contra a distinção entre direitos naturais e direitos à propriedade argumentava
Ireton (genro de Cromwell e com ele defensor de posições conservadoras) que
“qualquer sistema que permite a todos os homens, tenham ou não
propriedade, votar, só pode ser anarquia. É aquele que possui propriedade,
entendido como propriedade em terras, que tem um compromisso definido
com a sociedade e um interesse claro na preservação do governo.” (Wiltse,
1935, pg.16)
ou então:
“Vocês podem chegar à escolha de homens que, pelo menos grande parte
deles, não tem interesse local ou permanente. Por que esses homens não
votariam contra a propriedade?” (em Morton, 1952, pg.94).
Uma tentativa de salvar, dentro da Revolução burguesa, os interesses dos
pequenos proprietários e trabalhadores independentes foi apresentada por James
Harrington na forma de uma proposta utópica de organização de sociedade em sua
obra Oceana. Segundo Harrington as características de uma sociedade e a forma
de governo dependem da distribuição da propriedade da terra entre as classes
sociais:
- Monarquia absoluta se houver um único senhor do território.
- Monarquia mista se poucos (nobreza e clero) forem senhores de terra.
- República (“Commonwealth”) se o povo todo possui a terra.
19
Morton (1952).
20
Morton (1938, pg. 256).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
31
A proposta básica da organização de Oceana era uma lei agrária dividindo as
terras em pequenas propriedades 21 .
Em geral os “teóricos” da época centraram suas preocupações sobre a questão da
propriedade, reconhecendo-a como essencial para a consolidação da nova
organização da sociedade.
Talvez quem melhor e mais completamente organizou as idéias sobre propriedade
ao gosto da burguesia ascendente foi Locke, que lhe dedicou um ítem de seu
ensaio sobre Governo e Estado. 22
John Locke (1632 - 1704) era de família puritana e associou boa parte da
dificuldade em explicar o conceito de propriedade à necessidade de conciliar a
posse privada com a crença na doação “em comum” dos bens da Natureza aos
homens.
“Deus deu o mundo à humanidade em comum. Mas, isto posto, parece ser
uma grande dificuldade (entender) como que alguém pode em algum
momento ter propriedade de alguma coisa” (Locke, 1690, pg.30)
Duas idéias estariam na base da justificativa da transformação dos
“bens comuns” em propriedade:
(1) Para poder se beneficiar desse bem comum é necessário repartí-lo
para que cada indivíduo possa usufruir de sua parte.
“Deus, que dera o mundo aos homens em comum, também lhes dera a razão
para fazer uso dele para melhor vida e mais comodidade.” (Locke, 1690,
pg.30) 23
(2) Cada um é proprietário de si mesmo, de sua própria pessoa, assim
como do trabalho por ele executado. Em decorrência, também será
21
A obra foi bastante difundida na época e a mesma idéia sobre a lei agrária foi retida um
século e meio mais tarde pela Revolução Francesa que promoveu uma larga distribuição de terras
entre os camponeses, constribuindo para que resultasse uma sociedade inteiramente diversa da
sociedade na Inglaterra e retardando de mais de um século a passagem para um estágio de
acumulação predominantemente intensiva.
22
23
Locke (1690).
“God, who hath given the world to men in common, hath also given them reason to make
use of it to the best advantage of life and convinience.”
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
32
proprietário de tudo aquilo ao qual puder incorporar seu trabalho, isto
é, tudo o que puder retirar da Natureza e transformar em coisa útil por
meio de seu trabalho. O trabalho separa a propriedade do bem comum
(dádiva da Natureza).
Vale notar que todos os exemplos e argumentos usados por Locke giram em torno
do direito de consumir para o próprio sustento (a maçã colhida na árvore ou o
peixe pescado no rio).
Uma vez estabelecido que é o trabalho que permite a cada indivíduo
apropriar-se de uma parte do bem comum restava o problema de
limitar essa “retirada”. Quanto um indivíduo pode amealhar? Quem
estabelece os limites? Segundo Locke essa questão já foi resolvida pelo
próprio Deus ao estabelecer como princípio da Natureza o de não
estragar ou desperdiçar.
“O quanto cada um puder usar com algum proveito para a vida, sem
desperdício, tanto poderá conseguir como propriedade, mediante trabalho.”
(Locke, 1690, pg.31)
Esse é o perfeito limite para o capitalista. Tudo pode ser apropriado desde que o
seja para incorporação num processo produtivo. E considerando os recursos
naturais disponíveis e quão pouco desses recursos haviam sido consumidos pelos
homens (século XVII) havia, segundo Locke, recursos para todos e portanto a
questão não seria motivo de discussão ou de briga 24 .
Os mesmo argumentos são válidos não apenas para os frutos da terra
mas também para a própria terra.
“Quanta terra um homem ara, planta, melhora, cultiva e dela pode usar
os produtos, tanto é a sua propriedade. Ele com seu trabalho a retira da
área comum, como de fato o tem feito.” (Locke, 1690, pg.31) 25
24
A existência desses “recursos naturais disponíveis”, possibilitando a contínua
incorporação de matéria prima e mão de obra ao processo produtivo dirigido pelo capitalista,
corresponde ao estágio de acumulação extensiva.
25
“As much land as a man tills, plants, improves, cultives, and can use the product of, so
much is his property. He by his labour does, as it were, enclose it from the common.”
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
33
E assim como não seria possível, nem necessário, pedir o
consentimento de toda a humanidade para comer uma maça colhida da
árvore (isto é, apropriar-se de algo que era comum) também não seria
possível, nem necessário, pedir o consentimento para se apropriar de
um pedaço de terra e fechar para uso individual um campo que era
comum.
A partir dessa idéia da apropriação de parte do bem comum (dádiva da Natureza)
através do trabalho a formação da propriedade é uma simples questão de
recorrência: cada indivíduo recebe a herança dos pais e avós (sucessivamente até
Noé, ou Adão e Eva) e a essa propriedade acrescenta o fruto de seu próprio
trabalho (ou a desperdiça, se fôr relapso ou vagabundo).
Enquanto para a Inglaterra, onde a burguesia se havia afirmado como classe
dominante ainda no século XVII, as “teorias” sobre propriedade e liberdade
individual correspondente à justificativa posterior de uma organização social já
consolidada, para as demais nações-Estado, que se reorganizaram sob a
dominação burguesa um século mais tarde, as mesmas “teorias” constituiram parte
integrante do processo dessa reorganização. Enquanto para a burguesia inglesa as
“teorias” foram necessárias para consolidar a própria hegemonia, nas outras
sociedades funcionaram como arma de persuasão da classe burguesa para
justificar, seja a aniquilação da nobreza (caso da França), seja a criação de um
novo Estado pela cisão na própria classe burguesa (independência dos E.U.A.),
seja a criação de um novo Estado pela unificação de pequenos mercados regionais
sob o impulso da transformação dos senhores feudais em capitalistas, proprietários
de terras (Alemanha).
A partir da Independência Americana e da Revolução Francesa o direito à
propriedade passou a ser citado em todas as Constituições 26 e “Declarações de
26
“A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brasileiros, que tem por
base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do império,
pela maneira seguinte:
XXII – É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude.”
(Da Constituição Política do Império, 1824, art.179).
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
34
Direitos”, sempre associado ao direito à “liberdade” ou à “busca da felicidade”. A
estrutura ideológica construida com base nas “teorias” sobre tais direitos permite à
sociedade burguesa não apenas reimpor continuamente as condições de
reprodução do modo de produção capitalista sob as aparências de um acordo
social, escamoteando o uso da força, como também justificar a força nos casos
extremos em que não é possível escamoteá-la. 27
Três séculos depois de sua consolidação a propriedade, apresentada ora como
“direito natural”, ora como “acordo social”, continua embasando as “teorias”
justificativas da sociedade burguesa. 28
É sobre a idéia de “acordos” que também se apóiam todas as justificativas de
alteração das leis, especificamente da interpretação do “direito de propriedade”,
alteração necessária uma vez que as regras pelas quais a sociedade reconhece a
cada indivíduo o direito de dispor de algo devem ser variáveis conforme as
necessidades da acumulação. No caso da propriedade fundiária essas regras
formam um dos pontos centrais da discussão entre estatizantes e liberais, entre os
defensores do Estado como organizador do espaço da produção e os que
defendem uma auto-organização pelo funcionamento “livre” do mercado. O
campo é fértil para frase do tipo:
“A estatização da propriedade é antagônica às metas liberais inerentes ao
sistema democrático”. 29
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;”
(Da Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, art.5°).
27
O recurso ao emprego da força como eventualmente necessário para a reprodução do
modo de produção capitalista é geralmente omitido em todos os compêndios de história ou de
direito moderno. De acordo com a construção ideológica, a força é apresentada como um meio
utilizado “antigamente”, antes do advento da “civilização”. Quanto mais evoluída esta civilização
tanto mais as relações sociais estariam baseadas em acordos e contratos livremente estabelecidos
pelas partes.
28
É ilustrativo o conceito de propriedade constante num compêndio sobre avaliação de
imóveis e administração da base tributável, publicado nos E.U.A. pela Associação Internacional
dos Avaliadores: “Propriedade é um conceito cultural [sic] da relação entre pessoas e coisas. Em
nossa cultura as pessoas podem receber o direito de possuir, gozar e dispor de coisas. Os Governos
autorizam e protegem esses direitos. Portanto a propriedade tem uma dimensão legal.” (Eckert,
1990, pg.75).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
35
O último item deste capítulo tem como objetivo o de assinalar a importância
histórica da propriedade da terra na organização social das colônias inglesas da
América do Norte e a diferença com as condições no Brasil onde a propriedade só
foi formalizada no século XIX e até hoje não foi plenamente institucionalizada.
1.4 A apropriação da terra na América
Enquanto a estrutura e os conceitos de propriedade fundiária nos diversos países
da Europa resultaram de um longo processo de sucessivas conquistas e de
transformação do feudalismo 30 em capitalismo, na América o processo de
apropriação se constituiu em três séculos de conquista por parte de sociedades que
já baseavam a produção social dos povos indígenas. Mesmo assim, as diversas
forças que moveram estas conquistas e as diversas formas de ocupação e posse
criaram diversas estruturas fundiárias, correspondentes a outras tantas formas de
produção.
A comparação, mesmo esquemática, das primeiras formas de ocupação na
América do Norte e no Brasil pode ser importante, não só pelo papel hegemônico
desempenhado pelos E.U.A. e a consequente influência exercida sobre os demais
países, em particular sobre o Brasil, mas principalmente vistos os diversos rumos
de desenvolvimento tomados pelos dois países, condicionados pelas respectivas
organizações da produção.
Portugal teve dificuldades desde o início para ocupar todos os territórios
descobertos, devido à sua escassa população, enquanto que, a partir do século
XVII, as colônias inglesas passaram a receber sucessivas levas de colonos,
emigrantes das regiões em que os fechamentos dos campos, a Revolução Agrícola
29
De publicitário do Secovi-SP, sob o título Projeto afronta filosofia liberal, contra o
Projeto de política Urbana – projeto de lei 5788, em tramitação no Congresso. (O Estado de São
Paulo, 29.4.92).
30
Por sua vez resultado da fusão de organizações tribais com os escombros do Império
Romano.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
36
e as guerras e perseguições religiosas (não só na Inglaterra mas em vários países
da Europa) haviam criado massas de trabalhadores sem terra e, portanto, sem
meios de sobrevivência. Gente sem alternativas, aventureiros, perseguidos ou
descontentes, todos tinham uma coisa em comum: o ímpeto de reconstruir a vida
na nova terra sem as amarras das relações e compromissos de seus locais de
origem.
As primeiras tentativas de povoamento da América do Norte por parte da
Inglaterra tinham por objetivo estabelecer bases estratégicas contra as pretensões
da Espanha. A perspectiva de pilhagem de ouro e prata atraiu aventureiros em
busca de enriquecimento rápido, incapazes de sobreviver do cultivo da terra. As
colônias implantadas na Virgínia em 1585 e 1587 foram um completo fracasso 31 e
apenas no século XVII começaram a surgir as primeiras povoações estáveis.
Para o norte (Nova Inglaterra) dirigiam-se grupos de Puritanos, lavradores e
artesãos acostumados ao trabalho independente. O tipo de solo encontrado, o
clima e a relativa estreiteza da faixa agricultável, espremida entre a costa
recortada e os Apalaches, desincentivaram qualquer ocupação por cultura
extensiva, forma dominante de produção colonial. Ao invés, desenvolveram-se
atividades relacionadas com a pesca, a construção de barcos e o comércio. Além
disso, não houve no início restrições que impedissem aos colonos, mesmo os
trazidos como mão de obra por empresas capitalistas, a apropriação de terras e o
cultivo para seu sustento, contribuindo para uma organização social com base no
trabalho independente e na pequena propriedade, como observaria Wakefield 32 ,
um século e meio mais tarde:
“Nos Estados do norte da União Americana é duvidoso que um décimo da
população possa ser considerada como de trabalhadores assalariados. Na
Inglaterra esses compõem a massa do povo.” [Wakefield, 1833, pg.42-44] 33
31
Morton (1938, pg.204).
32
Eduard Gibbon Wakefield (1796 – 1862), economista e político inglês, autor de England
and América. A comparison of the social and political state of both nations, Londres, 1833, em
que expõe os fundamentos de suas propostas sobre “colonização sistemática”.
33
Citado por Marx (1867, 1° Livro, pg.561).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
37
Com o aumento da população e a consolidação de uma economia dependente dos
investimentos ingleses a disponibilidade de terras na costa Nordeste foi
diminuindo, grandes áreas foram reservadas especulativamente e, já no século
XVIII, as levas de migrantes que continuavam chegando da Europa não
encontravam mais as facilidades iniciais para obter a própria terra. Mas junto com
os grandes proprietários e empresários havia-se formado uma classe com certa
independência, cujos interesses eram associados aos dos capitalistas e cujos
princípios éticos e políticos se baseavam no trabalho e na defesa da propriedade.
Na Virgínia e mais ao sul, ao contrário, o solo, o clima e a extensão da faixa
litorânea de topografia favorável atraíram desde o início colonos com recursos e
influência na Metrópole, com o objetivo de explorar a terra com o sistema de
“plantation”: monocultura (fumo e, mais tarde, algodão) em grandes extensões,
usando como mão de obra primeiro os “ajustados” 34 (conscritos e desempregados
trazidos principalmente da Irlanda) e, a partir de 1660, escravos trazidos da
África.
Coerentemente, o movimento de Independência se originou e ganhou força nas
colônias do Norte, onde os interesses da burguesia local entraram em conflito com
os da Metrópole. Nas “plantations” do Sul a classe dominante poderia ter se
acomodado por mais tempo às condições de exploração impostas pela Inglaterra.
Como dito acima, as “teorias” sobre propriedade e liberdade tiveram papel
importante na luta pela Independência, em particular a argumentação de Locke
que sustentava idéias revolucionárias em matéria de organização política:
“os homens entram numa sociedade para a proteção da propriedade e tem,
portanto, o direito de mudar seu governo, pela força se necessário, quando
esse não atende mais aos objetivos.” (Wiltse, 1935, pg.22)
Esse argumento, no entanto, acabou sendo de difícil aplicação na fase de
consolidação de um governo entre os treze Estados Unidos. As justificativas
teóricas das tensões e disputas pelo poder que se seguiram à Declaração de
Independência podem ser resumidas às posições de defesa de um governo central
34
Têrmo usado na tradução do livro de Huberman (1978). Morton (1938, pg.204) usa o
têrmo “indentured labour”.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
38
forte como garantia dos interesses da burguesia nacional (que acabou
prevalecendo) versus o direito de cada pequeno grupo de indivíduos escolher seu
próprio governo, de acordo com as idéias de Locke. Essas divergências se
manifestaram principalmente entre os Estados do Norte, onde a burguesia
precisava de um governo forte para defesa contra a concorrência inglesa, e do Sul,
onde a elite dos grandes proprietários de escravos e terras desejava manter sua
autonomia e seus privilégios.
Vale notar que os moldes da ocupação do Sul do E.U.A. foram muito semelhantes
aos do Nordeste brasileiro. Mas à diferença do Brasil os senhores de escravos não
conseguiram impor seus interesses como interesses da nação por estarem em
posição de inferioridade perante os capitalistas do norte. A tentativa de secessão
foi dominada por quatro anos de guerra civil (1861-1865). Morton resume bem o
significado dessa guerra:
“No fundo foi uma guerra para determinar se o futuro desenvolvimento dos
Estados Unidos seria como país industrial ou como país de economia de
“plantation”, uma economia voltada para a produção de alimentos e matérias
primas para exportação, baseada no trabalho escravo e dirigida por uma
aristocracia escravagista. Além de um certo ponto essas duas economias não
poderiam continuar a existir lado a lado e a guerra foi portanto uma luta de
classes entre a aristocracia fundiária e a democracia burguesa.” (Morton,
1938, pg.412/322)
Convém ressaltar a importância para a formação da economia da Nova Inglaterra
do fato de que, desde o início, a sociedade se organizou em torno da produção
independente e da pequena propriedade. A população livre dessas colônias do
Norte da América formou a base do mercado interno, condicionando o processo
de acumulação nos E.U.A.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
Capítulo 2:
39
O ESTADO
Luisa Battaglia
2
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
40
O ESTADO
“Criar as condições favoráveis à mais rápida acumulação de
capital e remover os obstáculos que impedem o processo (de
acumulação são as tarefas centrais do Estado capitalista às quais,
em última análise, se subordinam todas as suas outras funções.”
Sweezy (1971)
A idéia de Estado está longe de ter um significado único e se presta a diversas
interpretações em diferentes níveis de abstração. Torna-se portanto necessário
colocar alguns pontos de entendimento como parte do quadro de referência para o
desenvolvimento do tema proposto qual seja, a atuação do Estado no Brasil com
relação ao reconhecimento da propriedade fundiária e à tributação sobre a mesma.
Na colocação deste entendimento o maior esforço está no sentido de se
desvencilhar do contexto ideológico no qual se misturam os conceitos de Estado e
sociedade, de público e privado, de governo e contribuintes (“tax-payers”). Essas
próprias dicotomias pressupõem divisões ou antagonismos que não explicam nem
a natureza da entidade Estado, o qual permanece como conceito abstrato, nem as
suas transformações e muito menos as ações que lhe são atribuídas.
Engels 1 associa o surgimento do Estado com a passagem da barbárie para a
civilização, isto é, de uma organização social ainda baseada na gens e tribo como
usuárias em comum do território, para uma organização onde a divisão de trabalho
e a possibilidade de acumulação de riquezas conduzem a relações de dominação e
à divisão em classes. O Estado surge como instituição para reproduzir a divisão da
sociedade em classes através do controle dos meios de produção (basicamente a
terra), assegurando o direito da classe detentora desse controle de explorar a
1
Engels (1884).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
41
destituida. O entendimento do Estado portanto, deve ser feito a partir da
compreensão de seu papel não, como reza o Credo liberal, na distribuição e
consumo mas sim na produção.
O Estado evolui e se transforma de acordo com a evolução da sociedade, por força
das mudanças nas relações de produção dominantes ou, em outros termos, na
relação de forças que se estabelece em cada época entre os diversos interesses
conflitantes. Neste embate de interesses o papel do Estado é sempre o da
manutenção do status quo, da reprodução da organização social. Isto significa que
não pode haver alterações nas relações de poder “decididas” ou “planejadas” pelo
Estado mas, ao contrário, alterações de poder no aparato estatal pressupõem
alterações de poder na sociedade que mantém. O “poder político”, correspondente
à capacidade de estabelecer as leis, de organizar as instituições, de controlar as
forças armadas etc. decorre, com maior ou menor defasagem no tempo, do “poder
econômico” isto é, das condições como são estabelecidas as relações de produção.
Em todos os períodos de transição as lutas pelo controle do Estado se apóiam nas
estruturas
de
produção
ainda
não
adequadamente
representadas
pelas
superestruturas institucionais e tem exatamente o intúito de realizar essa
adequação.
O Estado não é uma invenção do capitalismo; apenas adquire formas específicas,
algumas circunstanciais, de acordo com as forças do momento, outras ligadas à
própria essência da organização social a ser preservada. Trata-se portanto, neste
capítulo, de explicitar o que é o Estado burguês, salientando as ações necessárias à
reprodução do modo de produção capitalista ou, em outros termos, a relação entre
o Estado e o mercado para garantia dessa reprodução.
2.1 O Estado e a produção capitalista
Foi visto no capítulo anterior que a propriedade dos meios de produção é condição
essencial para o estabelecimento e manutenção da relação salarial, por sua vez
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
42
base do modo de produção capitalista. Neste ítem é assinalada a presença do
Estado burguês como necessária à produção capitalista.
O fato de que sema presença do estado o mercado não tem condição de existência
foi apresentado e discutido por vários autores 2 . A análise abrangente da necessária
participação do Estado na produção capitalista, com especial ênfase na
organização espacial dessa produção, foi recentemente apresentada por Deák em
seu trabalho sobre a teoria da renda e o preço da terra: Rent theory and the price of
urban land/Spatial organization in a capitalist economy 3 . É principalmente sobre
esse trabalho que se baseia a construção deste ítem, no sentido de caracterizar o
Estado em sua forma de atuação e em sua relação com o mercado.
A generalização da relação salarial equivale à generalização da forma mercadoria,
isto é, da produção dos valores de uso sob a forma de mercadoria: o trabalhador
(assalariado) vende sua força de trabalho para poder comprar (sob a forma de
mercadorias) os bens e serviços necessários à sua subsistência. A generalização da
relação salarial (e da forma mercadoria) tem limites, decorrem das próprias
contradições inerentes ao modo de produção.
“Mas a forma de mercadoria, mesmo sendo dominante no capitalismo,
encontra seus limites, não devido a alguma força externa, ao contrário: os
limites à ‘mercadorização’ 4 da produção e portanto de valores de uso não‘mercadorizáveis’ são parte da dialética da produção capitalista.” (Deák,
1985, pg.112)
A superação das restrições impostas por esses limites é precisamente o cerne das
atribuições do Estado burguês. Em outras palavras, o processo de acumulação
precisa, para seu funcionamento, de insumos (bens e serviços) que o mercado não
regula e cuja produção deve ser planejada não como mercadorias mas diretamente
como valores de uso. São necessárias medidas “não econômicas”, fora das regras
2
Ver por exemplo Aglietta (1976). Deák (1989) cita os trabalhos de Uno (1964) e Sekine
(1977) que levaram às últimas conseqüências a idéia da redução do capitalismo a uma “economia
de mercado”.
3
Deák (1985). Ver também Deák (1986) em que o autor desenvolveu o assunto específico
da relação Estado / mercado.
4
Uso o têrmo “mercadorizar” (e seus derivados) como sendo “tornar mercadoria”, de
acordo com o uso dado por Deák. Prefiro evitar o têrmo dicionarizado “mercantil” (e seus
derivados) pelas suas conotações, inadequadas no caso.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
43
de livre troca, para garantir tanto a acumulação do capital quanto a própria
permanência do capitalismo.
“A primeira da forma-mercadoria e o processo da reificação das relações
sociais impõem que a regulação da produção capitalista seja efetuada em
primeira instância pelo mercado e em segunda instância pela intervenção do
Estado, a combinação específica de ambos sendo determinada pelas
condições de mercadorização da produção de acordo com o estágio de
desenvolvimento das forças e relações de produção.” (Deák, 1986, pg.25 –
grifo meu)
Marx trata do assunto sob o termo genérico de “condições gerais da produção”
mas não chegou a ressaltar o caráter de necessidade essencial da ação do Estado
na produção dessas condições gerais.
Déak mostrou a necessidade de explicitar o custo social da produção de valores de
uso como tais:
“Nem o trabalho para produzir a estrutura espacial, nem o trabalho para
produzir
as
super-estruturas
jurídico-político-administrativas
estão
explicitamente tratadas na clássica fórmula da valorização
VE = V + VS
onde a relação salarial divide o trabalho abstrato total, ou valor do trabalho
total da sociedade, VE, em valor da força de trabalho, V e mais valia VS
apenas na produção de mercadorias. A fim de incorporar explicitamente
aquelas parcelas de trabalho social, poderíamos então escrever
VS = VA + VL + VT
onde VL e VT são, respectivamente, o tempo de trabalho gasto na produção
do espaço e aquele gasto em todas as outras atividades do Estado, e VA é o
valor disponível para acumulação. A primeira fórmula portanto se transforma
em
VE = V + (VA + VL + VT)
com
5
Déak (1985, pg.113).
VA = VS – (VL + VT)
...
.” 5
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A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
44
Isto é, o valor disponível para acumulação (VA) não é o total da mais valia (VS)
produzida junto com a produção dos meios de subsistência da força de trabalho
(V): desse total deve-se deduzir o valor do trabalho social, realizado através do
Estado (VL + VT). A separação desse trabalho do Estado em VL (produção do
espaço) e VT (outras atividades) ressalta a parcela das atividades diretamente
ligadas aos aspectos espaciais da organização da produção.
Portanto, estudar o Estado no sistema capitalista é estudar as formas pelas quais,
em cada estágio de desenvolvimento e tipo de organização da sociedade, é
garantida a produção do trabalho social necessário para que o mercado tenha
condições de funcionar. A primeira dessas condições é a manutenção da relação
salarial, base do próprio modo de produção, e a ação do Estado para tanto se
concentra em manter, usando o aparato jurídico, institucional, ideológico e militar,
se necessário, a condição essencial da relação salarial, a saber, a propriedade dos
meios de produção. A segunda condição é a regulação do processo de acumulação
ou seja, a produção material em função da reprodução ampliada da sociedade,
implicando na defesa dos interesses de classe mesmo contra os interesses de
indivíduos da classe dominante.
Aglietta 6 chama a atenção para os limites à generalização da forma mercadoria e
trata da superação desses limites nos termos da dialética crise/regulação. Para isto
define o Estado como o agente dessa regulação, ressaltando que o Estado não é
um agente externo ao sistema econômico mas sim parte do mesmo sistema
incorporando, portanto, todas as suas contradições.
A manutenção da relação salarial e a regulação do processo de acumulação são
objetivos exclusivos do Estado e condicionam as suas atribuições e atividades. A
forma concreta de intervenção varia constantemente, em função das condições
concretas da acumulação e, portanto, depende do estágio de desenvolvimento de
cada sociedade 7 . Mas, qualquer que seja a forma de intervenção, algumas áreas
estão sempre cobertas:
6
7
Aglietta (1976).
Cito RANGEL (1988): “...feita a opção pela privatização dos serviços públicos ora
concedidos a empresas públicas, outras questões serão suscitadas. Afinal, no futuro, como no
passado, e como agora, ao lado de um setor privado teremos um setor público, como dois e dois
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A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
45
Sustentação das garantias institucionais: legislação, judiciário, polícia,
informações.
Regulação do fluxo dos recursos financeiros: regulamentação dos
preços e salários, da moeda e das taxas de juros; subsídios e impostos.
Reprodução da força de trabalho: educação, saúde, ideologia 8
Organização do espaço para a acumulação: legislação urbanística,
infraestrutura, estrutura fundiária.
A adequada organização do espaço é uma das condições necessárias para a
acumulação. Apesar dessa organização se materializar em ações localizadas isto é,
sobre específicas porções do espaço,
“...nenhuma porção do espaço encerra um conteúdo específico de trabalho
abstrato: todo trabalho desempenhado sobre qualquer porção particular do
espaço redefine (transforma) o espaço urbano como um todo.” (Deák, 1986,
pg.23)
Ao mesmo tempo o espaço como tal não é um valor de uso, uma vez que não pode
ser consumido individualmente:
“O valor de uso no espaço é representado pelas localizações nele contidas –
mas localização sendo uma posição no espaço, não pode ser produzida como
tal. ...O que é produzido é o espaço, enquanto que as localizações – valores
de uso – resultam coletivamente.” (Deák, 1985, pg.110-1)
Não podendo ser validado socialmente como valor de uso, o espaço não pode ser
produzido como mercadoria, mas sim coletivamente, com trabalho social através
do Estado. A intervenção do Estado no espaço se dá, diretamente, através das
restrições de zoneamento e da implantação e manutenção dos sistemas de
transportes e das demais redes de infraestrutura e, indiretamente, através dos
são quatro. O Estado será aliviado de parte de suas presentes incumbências mas, como tem
acontecido regularmente, sobre seus ombros pesarão novos encargos, inclusive por exigência das
mudanças ordenadas em torno da privatização. Encargos necessários, mas que já não interessam,
ou ainda não interessam à iniciativa privada. A economia é, afinal, um organismo que vive através
de todos os seus órgãos.”
8
O capitalismo se diferencia de todos os outros modos de produção que o procederam pela
necessidade da ideologia como parte integrante do sistema de dominação. As relações de produção
devem ser escamoteadas pois o sistema se reproduz com base na aceitação da igualdade, da livre
troca e da divisão “racional” de atividades.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
46
subsídios ou restrições a determinados setores de produção e pela forma de
distribuir, reconhecer e garantir a propriedade fundiária. O lançamento e a
arrecadação de impostos sobre essa propriedade, além de fornecerem ao Estado os
recursos para custear suas ações, o fazem diferenciando setores da economia e,
portanto, podem se constituir em instrumentos de regulação. A propriedade
fundiária, principalmente nas aglomerações urbanas, faz parte da regulação do uso
do espaço por parte de indivíduos e deve ser vista como parte do processo de
(re)produção da força de trabalho.
2.2
A construção da idéia do Estado liberal
A substituição da justificativa dos poderes senhoriais e do rei como direito divino
pelo escamoteamento das estruturas de dominação por um conjunto de idéias
burguesas sobre igualdade das pessoas, liberdade individual e direito à
propriedade foi parte essencial do processo de transição entre o feudalismo e o
capitalismo:
Historicamente, permitiu a explicitação de interesses antagônicos aos
da sociedade feudal e o surgimento de conflitos armados para quebrar a
ordem institucional existente e adaptar a organização políticoinstitucional à nova organização econômica.
Em termos da organização social justificou (e continua justificando) as
medidas legais e minimiza as medidas policiais necessárias para
consolidar e manter as próprias condições de reprodução do modo de
produção.
O desenvolvimento e disseminação dessas idéias estão vinculados, por um lado ao
crescimento das cidades (burgos) com certa autonomia e, por outro às formas
tomadas pelos conflitos entre os Estados nacionais, que se consolidaram no fim da
Idade Média, e o Papado.
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47
“A Reforma Protestante foi na essência um movimento político sob disfarce
religioso, parte da longa luta das classes endinheiradas da Europa pelo
poder.” (Morton, 1938, pg.182)
Enquanto as maiores potências, como França e Espanha, preferiram não entrar em
conflito aberto com o Papa mas sim disputar entre si o controle da Igreja, os
Estados mais atrazados ou menores, como a Escócia ou os ducados e principados
do Norte germânico, não tiveram outra escolha que não o conflito declarado para
se livrar da influência do Papado e de seu monopólio das graças de Deus 9 .
Principalmente nas regiões mais urbanizadas, onde a burguesia era mais influente,
a Reforma teve grande apoio popular e assumiu um caráter de luta por direitos
individuais.
Assim, novas idéias sobre governo e relações sociais foram inicialmente
difundidas como conceitos religiosos, no bojo do movimento de Reforma da
Igreja, em todas as suas seitas e divisões. Especialmente o Calvinismo reuniu as
melhores condições para a defesa do capitalismo e a moldagem de um Estado à
sua imagem e semelhança: Deus tem o poder absoluto e a salvação é um ato
exclusivo de sua vontade inescrutável 10 ; portanto aos homens não compete o
entendimento dos desígnios do Senhor mas apenas cultivar o trabalho, a
abnegação, a iniciativa individual para resolver os problemas do quotidiano. O
sucesso material não é uma finalidade em si mas é a melhor evidência da
aprovação divina. O individualismo e a crença na seleção de poucos eleitos para o
“reino dos santos” justificaram a organização da igreja em pequenas comunidades
fechadas, reunidas em assembléias maiores por sistemas representativos. Essa
organização na época mostrou-se adequada a movimentos de resistência e de
subversão.
Parte importante do apoio dado à Reforma deveu-se à justificativa do direito de
resistência às ordens do rei quando estas contrariavam a vontade de Deus. Vários
textos, na forma de reivindicações de alterações do Estado, surgiram das guerras
9
10
Morton, 1938, pg.182 ss.
Essa idéia de Deus como um ser abstrato e inquestionável é muito próxima da idéia de um
mercado, entidade abstrata, independente da vontade dos homens, que no entanto tem forças,
regras, leis, crises etc.
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A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
48
religiosas do século XVI e se espalharam rapidamente, sobretudo na Inglaterra.
Colocavam o governo como resultado de um contrato visando determinados
objetivos comuns, a preservação dos direitos constitucionais “inerentes” a cada
povo e a unificação em torno de uma idéia de nação e não mais de igreja. As
crenças e práticas religiosas passavam a ser parte das liberdades individuais.
A inabilidade política de Jaime I da Inglaterra (1603 – 1625) o levou a produzir
uma defesa teórica 11 da Monarquia Absolutista,
“exigindo explicitamente como um direito divino aquilo que os Tudor tinham
se acontententado em tomar sem alarde na ausência de oposição declarada.” 12
Esse “direito divino” contudo não impressionava mais o Parlamento inglês que
continuou afirmando seu direito de debater livremente as questões de seu interesse
e, principalmente, de controlar o lançamento de impostos. Nestas alturas a
discussão real girava em torno das limitações do poder da Coroa e da burguesia,
representada pelo Parlamento, e da importância relativa entre a tradição das leis
comuns (“Common Law”) e uma constituição escrita ou lei fundamental.
Era preciso introduzir novas leis, que representassem melhor as necessidades de
proteção institucional da burguesia em ascensão e que permitissem superar a
complexidade das relações feudais mantidas pela “Common Law”. A nova
organização social exigia o reconhecimento do direito de propriedade, da
igualdade e da liberdade individual em substituição ao poder da Igreja e das
guildas. Na Inglaterra, ao contrário de outros países da Europa, o Código Romano
nunca chegou a ser adotado como tal, devido principalmente à força da tradição da
“Common Law”. Mesmo assim alguns de seus princípios foram usados para
validar (por apóiá-las em regras antigas, já consagradas) medidas adequadas para
sustentar as novas relações de produção.
11
Na sua obra, Trew Law of Free Monarchies, Jaime I baseia sua defesa do poder real como
direito divino em três argumentos:
1 – Os reis são reconhecidos por Deus na Bíblia.
2 – O rei (inglês) tem o direito de conquista por seu antepassado (Guilherme I) que se
apropriou de todas as terras do reino.
3 – O rei funcionava como a cabeça em relação ao corpo, sendo portanto essencial para a
permanência do conjunto. (Wiltse, 1935, pg.10)
12
Morton (1938, pg.212).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
49
“A lei romana era a lei já consolidada correspondente à simples (isto é, précapitalista) produção de mercadorias, que no entanto incluía a maior parte das
relações jurídicas do período capitalista. Precisamente, pois, o de que nossos
burgueses necessitavam na época de sua ascensão e que não encontraram na
legislação baseada nos costumes locais.”
[Carta de Engels para Kautsky, de 26 de junho de 1884] 13
Quando, já no fim do século XVIII, a Revolução Francesa serviu de estopim para
a reorganização dos Estados europeus, pela consolidação do poder público da
burguesia, o Código Romano passou a ser largamente adotado como base para a
estrutura do direito que foi sendo desenvolvida pelos diversos Estados nacionais, à
exceção da Inglaterra que já havia efetuado sua adaptação institucional.
2.3 A ideologia burguesa e a utopia socialista
Passa da fase revolucionária, a nova organização social devia ser reconhecida e
consolidada por princípios inquestionáveis. 14 A formalização teórica desses
princípios foi objeto de inúmeros trabalhos ao longo dos séculos XVII e XVIII.
Dentre as obras que procuravam dar forma à nova organização social algumas se
destacam mais como visões ou propostas utópicas do que como “teorias políticas”.
É o caso do Paraiso Perdido (1667), o poema de Milton. John Milton foi seguidor
e ajudante de Cromwell e, especialmente em panfletos, deu forma às idéias que
circulavam na época sobre os direitos individuais e que deram a base do apoio
popular à revolução: todos os homens nascem livres, o governo representa o povo
e exerce o poder em seu nome, o Estado não pode interferir na relação do
13
14
Em Althusser & Balibar (1968), citado à pg.229).
Charles M. Wiltse, autor de um aprofundado trabalho sobre Thomas Jefferson e sua
influência nas idéias políticas americanas, assim se manifesta sobre a adequação das “teorias” às
instituições: “Teorias políticas surgem quando velhas instituições se desfazem ou quando novas
forças passam a fazer parte da vida de um povo. Elas não são motivadas por mera curiosidade
especulativa mas são criadas conscientemente para justificar a destruição de uma ordem existente
ou para defender o status quo contra os ataques dos radicais e dos descontentes.” (Wiltse, 1935,
pg.3)
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
50
indivíduo com Deus (liberdade de religião) nem na forma de expressão individual
(liberdade de imprensa, liberdade de costumes). No primeiro entusiasmo da
revolução, Milton havia esperado ver a construção do paraiso na terra, esperança
frustrada pelo abandono das reivindicações populares e pela transformação da
revolução em movimento de imposição dos grandes proprietários como classe
dominante.
“Para Milton a tragédia da Queda [expulsão do Paraiso devido ao pecado de
Adão e Eva – LB] não era o erro do homem por desejar o conhecimento do
bem e do mal mas o fato das promessas da serpente serem falsas promessas
(como as promessas da própria revolução burguesa) ... O paraiso que Milton
perdeu, pois, foi a promessa inicial da revolução.”
Também na forma de utopia é a obra de James Harrington, The Commonwealth of
Ocean (1656). Nela é detalhada de maneira bastante concreta uma organização de
Estado, a partir da idéia de que esse tem uma base econômica e que a forma por
ele assumida está diretamente relacionada com a distribuição da propriedade da
terra. O governo “deveria” (e é este aspecto moral que transforma Oceana em
utopia) seguir dos princípios:
-
que todos os cidadãos fossem proprietários de terra;
-
que todos os cidadãos tivessem oportunidade, em rodízio, de exercer
cargos públicos e funções de governo.
Considerando que em qualquer debate alguns indivíduos se manifestam e
propõem, enquanto que a maioria apenas acompanha, Harrington imaginou o
governo composto por um corpo restrito (senado) encarregado das propostas de
leis e por outro maior, que escolheria entre as propostas.
De outra natureza foram os trabalhos destinados a produzir justificativas para os
acertos institucionais requeridos. Essas “teorias” giravam em torno da definição
de uma Lei Fundamental ou Constituição, decorrente de “leis naturais”, portanto
fora da compreensão ou do poder de ação das pessoas. Constituem as bases sobre
as quais, ainda hoje, se discutem as atribuições do Estado ou a organização do seu
aparato.
Luisa Battaglia
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51
Thomas Hobbes em sua obra Leviathan (1651) foi o que mais claramente
explicitou o conceito de Estado como acordo social, considerando como parte
desse acordo todas as formas de relações sociais, incluindo a propriedade 15 .
Segundo Hobbes, as ciências políticas partem das leis naturais como axiomas, leis
essas que não são morais ou imorais mas apenas existem, mais como explicações
do que como regras. De acordo com essas leis os homens são motivados por autopreservação e interesses individuais e portanto todos os valores sociais devem ser
reduzidos ao interesse individual e a sociedade nada mais é do que uma
associação livre de indivíduos que se organizam para defesa de interesses
próprios. Donde a necessidade de uma legislação escrita, como forma de contrato.
Ao mesmo tempo Hobbes defendia a existência de um poder absoluto, acima das
leis, com autoridade para propô-las e fazê-las cumprir.
Outro filósofo inglês, John Locke 16 também desenvolveu sua doutrina sobre
direitos naturais e apresentou o governo como um órgão constituido por contrato
entre os membros da sociedade, com a única finalidade de interpretar e
administrar as leis da natureza. Cada indivíduo mantém o direito à vida, à
liberdade e à propriedade e, sendo voluntária a participação numa sociedade, tem
o direito de mudar de governo, pela força se necessário, quando este não satisfaz
seus interesses.
Se, para Hobbes, o Estado significa força e poder para manter a ordem, para
Locke os homens se associam apenas para garantir a propriedade e portanto essa é
a função do Estado.
As idéias gerais sobre liberdade individual e propriedade, formalizadas em
“teorias” na Inglaterra no século XVII, foram, na França no século seguinte,
difundidas como literatura ou transformadas em descrições de organização social
por diversos autores dos quais se sobressaem Voltaire, Rousseau e Montesquieu.
15
16
Wiltse (1935).
Locke (1690). A colocação de Locke sobre o direito de propriedade como um direito
natural foi apresentada no Capítulo 1, pg.37-9.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
52
O Espírito das Leis 17 é um quadro completo sobre os princípios, leis e relações
entre grupos definidos de pessoas, correspondentes a cada um dos três tipos de
governo identificados por Montesquieu: o Republicano, o Monárquico e o
Despótico. O conjunto forma um todo coerente e inatacável do ponto de vista
lógico, uma vez aceitas as premissas das leis “naturais”. Vale como exemplo a
explicação do que é liberdade e Estado:
“Enfim, como nas democracias o povo parece mais ou menos fazer o que
quer, situou-se a liberdade nestes tipos de governo e confundiu-se o poder do
povo com a liberdade do povo.
É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a
liberdade política não consiste em se fazer o que se quer. Em um Estado, isto
é, numa sociedade onde existem leis, a liberdade só pode consistir em poder
fazer o que se deve querer e em não ser forçado a fazer o que não se tem o
direito de querer.
Deve-se ter em mente o que é a independência e o que é a liberdade. A
liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; e se um cidadão
pudesse fazer o que elas proíbem ele já não teria liberdade, porque os outros
também teriam este poder.” (Montesquieu, 1748, pg.170)
Montesquieu teve enorme influência na organização do Estado criado a partir da
Independência das colônias inglesas da América do Norte, assim como na
elaboração das Declarações de Direitos e das Constituições que se seguiram à
Independência Americana e à Revolução Francesa. A divisão do governo em três
poderes e a necessária separação entre eles, num governo Republicano, formaram
o modelo para a constituição de todas as Repúblicas criadas a partir de ex
colônias.
Na formação dos E.U.A. também tiveram influência direta os “teóricos” ingleses,
em especial Hobbes e Locke. Esses, como visto acima, defendiam posições
conflitantes a respeito do poder do Estado. Essas posições, transformadas em
justificativas de ações políticas, embasaram as lutas pelo poder em torno da
Constituição Americana: de um lado o Estado forte, centralizado e comprometido
17
Mostesquieu (1748).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
53
com os interesses dos capitalistas americanos, defendido por Alexandre Hamilton:
de outro a visão de Thomas Jefferson, de governo descentralizado, apoiado na
pequena propriedade e no absoluto respeito à liberdade e aos direitos individuais.
O resultado de compromisso foi a Constituição de um Estado centralizado e
claramente defensor dos interesses dos capitalistas e uma Emenda elencando os
direitos individuais (Bill of Rights).
Os poderes e direitos assim distribuidos criaram uma estrutura suficientemente
flexível para, segundo Thomas Jefferson, não haver uma rígida definição de
regras, que devem se adaptar ao estágio de desenvolvimento:
“Quando a população é pequena em relação ao espaço nacional e vastos
recursos naturais começam apenas a ser explorados há recursos suficientes
para todos e a iniciativa individual tem prioridade. Mas lá onde a proporção
de desemprego é grande e a distribuição dos bens é cada vez mais desigual, a
opinião pública deverá se voltar para o lado dos despossuidos, e as funções
sociais do Estado serão enfatizadas. Em geral, quanto mais velho e mais
densamente habitado for o país, mais socialista [sic] ele se tornará. A força
peculiar à filosofia democrática repousa justamente na generalidade de seus
princípios que tornam possíveis os ajustes a mudanças da ordem social dentro
do mesmo quadro tradicional da estrutura de governo.” (Wiltse, 1935,
pg.217)
As idéias de Jefferson foram especialmente importantes porque representam bem
a concepção do Estado como garantia do direito à “busca da felicidade” e do
equilíbrio entre a liberdade individual e o “bem social”.
Na transição do feudalismo para o capitalismo as idéias socialistas de igualdade e
liberdade individual foram utilizadas para angariar apoio popular na luta contra a
aristocracia feudal. A utopia, que surge como possibilidade em cada movimento
revolucionário, serviu como motivação para que o povo participasse enquanto
interessados na construção de um mundo à semelhança do modelo utópico. Uma
vez alcançados os objetivos de consolidação do poder da classe burguesa, os
movimentos revolucionários tinham de ser interrompidos, justamente porque seu
objetivo real não era a utopia mas a organização burguesa, justamente porque seu
objetivo real não era a utopia mas a organização burguesa, e as idéias socialistas
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
54
foram abandonadas e substituidas pela ideologia, que lhes conserva no entanto os
aspectos formais.
Consolidaram-se assim as sociedades dos diversos Estados nacionais, sob a
hegemonia da classe burguesa, hegemonia essa garantia pela ideologia que
apresenta a organização social como correspondendo à utopia construída sobre as
idéias socialistas (formalmente conservadas).
2.4 A ideologia e o Estado hoje
Trabalhos recentes como o de Norberto Bobbio 18 substituem o conceito de Estado
por descrições e sistematizações das formas pelas quais ele se manifesta. Bobbio
identifica diversas relações de poder e formas de governo, mas o faz de um ponto
de vista formal/jurídico que acaba dando um caráter universal e atemporal a
organizações sociais.
No fim do século XVIII estava praticamente terminada a construção do arcabouço
ideológico. Conjuntos de “teorias” (da margem de lucro, da renda, do Estado, do
crescimento populacional etc.) forma um mundo perfeito, “racional” apoiado nos
princípios “naturais” da igualdade entre os homens e da tendência ao equilíbrio de
todas as forças e movimentos contrários. Só não correspondem ao mundo real.
Mas, pelas mesmas “teorias”, esta não correspondência se deve a distorções
passageiras desse mundo real, superáveis à medida em que, através do
desenvolvimento capitalista, aqueles princípios forem divulgados e aceitos pelas
sociedades, permitindo a difusão da “democracia” e a inserção de todas as pessoas
na economia de mercado.
As “teorias”, “cientificamente” apoiadas na economia vulgar (na expressão de
Marx), atribuem ao Estado o duplo papel de policial, para que sejam respeitadas
as regras de comportamento social supostamente estabelecidas de comum acordo
18
Bobbio (1985).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
55
por todos, e de provedor de condições de bem estar para os que ainda estão fora da
ou não conseguem competir na economia de mercado 19 . Neste papel o Estado é
apenas um mal necessário, devido ao funcionamento imperfeito do mercado. Seria
portanto um corretivo, cada vez mais dispensável à medida em que a economia
tende para sua perfeição isto é, para a superação de todas as formas précapitalistas de produção.
Como diz Gramsci sobre o Estado e a concepção do direito, o Estado agiria no
sentido da própria superação, uma vez alcançada por todos as condições de bem
estar e de inserção na economia:
“A revolução levada pela classe burguesa na concepção do direito e portanto
na função do Estado consiste especialmente na vontade de conformismo
(portanto em considerar éticos o direito e o Estado). As classes dominantes
que a precederam eram essencialmente conservadoras no sentido de que não
se dispunham a elaborar uma passagem orgânica das outras classes a si
mesmas, isto é a alargar a própria esfera de classe “tecnicamente” e
ideologicamente: conceito de casta fechada. A classe burguesa se coloca a si
mesma como um organismo em contínuo movimento, capaz de absorver toda
a sociedade, equiparando-o ao seu nível cultural e econômico. A função do
Estado se transforma e o Estado se torna “educador” ... Uma classe que se
coloca como passível de assimilar toda a sociedade, e ao mesmo tempo seja
realmente capaz de expressar esse processo, leva à perfeição essa concepção
do Estado e do direito concebendo o fim do Estado e do direito tornados
inúteis por terem exaurido sua tarefa e terem sido absorvidos pela sociedade
civil.” 20
19
Não estar “adequadamente inserido” na economia de mercado passa a ser visto como uma
questão cultural.
20
Gramsci (1991, pg.163). No original: “La rivoluzione portata dalla classe borghese nella
concezione del diritto e quindi nella funzione dello Stato consiste specialmente nella volontà di
conformismo (quindi eticità del diritto e dello Stato). Le classi dominanti precedenti erano
essenzialmente conservatrici nel sendo che non tendevano ad elaborare un passaggio organico
dalle altre classi alla loro, ad allargare cioè la loro sfera di classe “tecnicamente” e
ideologicamente: la concezione di casta chiusa. La classe borghese pone se stessa come un
organismo in continuo movimento, capace di assorbire tutta la società, assimilandola al suo livello
culturale ed economico: tutta la funzione dello Stato à trasformata: lo Stato diventa “educatore”,
ecc. ... Una classe che ponga se stessa come passibile di assimilare tutta la società, e sia nello
stesso tempo realmente capace di esprimere questo processo, porta alla perfezione questa
concezione dello Stato e del diritto come diventati inutili per aver asaurito il loro compito ed
essere stati assorbiti dalla società civile.”
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
56
Seria uma volta à situação tribal em que, havendo acordo e interesse de todos no
respeito às regras de reprodução social, não há espaço para
“um poder público especial, distinto do conjunto dos cidadãos que o
compõem”. (Engels, 1884, pg.105)
O conceito de Estado como provedor de bem estar e guardião de um acordo social
domina as ações políticas dos cidadãos “bem intencionados”, que se perdem em
discussões de caráter ético ou moral em torno de supostas atribuições no sentido
da redistribuição da riqueza produzida (isto é, intervenções nas relações de
consumo) e da manutenção do “equilíbrio” de poder entre as classes.
O aparelho estatal, regulador das condições definidas de reprodução da classe
trabalhadora (apresentadas como “bem estar social”), desempenha esse papel
através de sua organização formal e dos critérios com que são recrutados os
funcionários do Governo: a grande massa desses funcionários tem do Estado um
conceito ético ou moral.
Mas, se este conceito é parte da ideologia construida pela sociedade burguesa, no
caso do Brasil ele deve ser revisto face às características peculiares da organização
social brasileira, objeto do Capítulo 3, a seguir. Desde já pode-se adiantar a
importância do aspecto formal das atividades do Estado que “resolve” problemas
através da legislação ou transforma em problemas questões irrelevantes. Ao
trabalhar como funcionário “público” no Brasil, percebe-se que muito do esforço
intelectual dos técnicos envolvidos com as atividades do Estado acaba sendo
canalizado para a fixação de regras (leis, decretos, portarias, editais) que
supostamente garantam avanços da classe trabalhadora na participação política e
nas condições de trabalho e de consumo mas que, de fato, são apenas instrumentos
(sempre precários) para justificar facções com mais poder num determinado
momento 21 .
Esse trabalho analisa os sistemas de cadastros e registros fundiários dando
especial ênfase ao aspecto das formalidades com que são “resolvidos” os
21
Vale a observação de Morton, no mesmo sentido, sobre as tentativas de influir nos rumos
de uma revolução através de regras formais: “...como sempre, a lógica intrínseca da revolução
burguesa era poderosa demais para ser brecada por qualquer expediente constitucional, por mais
cuidadosamente elaborado que fosse.” (Morton, 1952, pg.103)
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
57
problemas colocados. Apesar de se justificarem por programas “bem
intencionados”, tais formalidades de fato escondem a ausência de soluções e
escamoteiam as questões relevantes relacionadas com a atuação do Estado nas
áreas do planejamento e do controle urbano.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
CAPÍTULO 3:
58
O ESTADO NO BRASIL
Luisa Battaglia
3
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
59
O ESTADO NO BRASIL
“Desde a independência, temos tido duas constituições políticas em vigor:
uma oficial, fundada na soberania do povo, e outra real, em que o poder supremo é
propriedade de uns poucos.”
Fábio Konder Comparato (Oligarquia versus democracia) 1
3.1 O processo de acumulação no Brasil
O capitalismo no Brasil assume características próprias, originadas na estrutura de
produção colonial e na manutenção, depois da Independência, das condições de
reprodução de uma sociedade de elite em contraposição à burguesa.
Uma análise das características específicas do processo de reprodução social no
Brasil foi proposta por Deák em 1989 2 e é sobre essa caracterização que se apoia o
trabalho aqui apresentado.
Numa sociedade colonial
“O processo de produção/reprodução local é antagônico à extração de excedente
por parte da metrópole, pois que somente poderia se desenvolver plenamente se
pudesse utilizar o excedente por ele produzido na ampliação de sua própria
reprodução. No desenvolver da produção colonial e da relação colônia /
metrópole, portanto, o princípio da extração de excedente precisa ser
continuamente re-imposto contra a tendência para a ampliação da reprodução
local, que no entanto é a própria fonte da ampliação do excedente retirável. A
história
das
colônias
no
capitalismo
é
precisamente
a
história
do
desenvolvimento do antagonismo entre a reprodução local e a sua exploração
pela respectiva metrópole. A re-imposição da exploração colonial se deu
1
Artigo publicado no jornal Folha de São Paulo, 29 de setembro de 1994.
2
Deák (1991).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
60
mediante diversos meios, como repressão local mesmo que ao preço de uma
correspondente redução da escala da exploração”. (Deák, 1991, pg.4)
No Brasil colônia, onde a economia se estruturou em torno do latifúndio, da
monocultura e da produção escrava, os interesses da classe dominante local,
associados à exportação de produtos primários, impediram o desenvolvimento de uma
classe de assalariados e, portanto, de uma classe burguesa.
Segundo Deák, ao transformar-se o Brasil num país independente de Portugal a
sociedade colonial se reestruturou de maneira a manter as mesmas características e a
se reproduzir sob a hegemonia da mesma classe. A independência do Brasil não
resultou, como no caso dos E.U.A., da preponderância dos interesses da burguesia,
dominados no período colonial pelos interesses da acumulação externa (na
metrópole), mas sim da necessidade de criação de um arcabouço institucional capaz
de se substituir às forças externas na reprodução da estrutura de produção, uma vez
que, pela debilidade de Portugal, essas forças externas já não podiam assegurar a reimposição da exploração colonial, nem pelas armas, nem pela redução da escala da
reprodução social. Em outras palavras, a Independência do Brasil não resultou da luta
da burguesia local para eliminar as restrições à acumulação na colônia mas, ao
contrário, resultou da necessidade da elite colonial de impedir que a burguesia local
se afirmasse como classe dominante.
A Independência do Brasil não correspondeu a uma cisão entre a burguesia local e a
da metrópole nem, muito menos, a uma revolução social, como bem observa Roberto
Schwartz:
“Entre nós, o rompimento com a Metrópole e a abertura para o mundo
contemporâneo não foram acompanhados de revolução social, como é sabido,
consistindo antes num arranjo de cúpula. Ficava intacto o imenso complexo
formado por trabalho escravo, sujeição pessoal e relações de clientela,
desenvolvido ao longo dos séculos anteriores, ao passo que administração e
proprietários locais, sobre a base mesma desta persistência, se transformavam em
classe dominante nacional, e mais, em membros da burguesia mundial em
constituição, bem como em protagonistas da atualidade no sentido forte da
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
61
palavra. A concomitância regular dos traços moderno e colonial não representa
atrazo nem disparate, como fazem crer a análise e o sentimento liberais, mas o
resultado lógico e emblemático da feição que tomou o progresso no país.”
(Schwartz, 1991, pg.120)
Ao manter a estrutura de produção baseada na mão de obra escrava e na exportação, a
nova nação não se estruturou sobre um processo de acumulação capitalista mas sim
sobre o que Deák denomina de acumulação entravada.
“O processo de produção e reprodução social no Brasil ficou subordinado na
Independência aos requisitos da reprodução das condições de dominação por
uma elite, anteriormente colonial. Ao nível das relações sociais a sociedade
brasileira se diferencia no capitalismo por ser uma sociedade de elite, como
oposta à burguesa, onde a reificação das relações sociais não é completa, como
nem pode ser, uma vez que não domina o princípio da generalização da formamercadoria. No que toca à organização da produção, os mesmos requisitos se
traduzem na primazia da expartição de excedente sobre a acumulação no
mercado interno e assim, sobre a própria dialética da forma-mercadoria (que
demandaria a generalização da forma-mercadoria na mais larga escala possível,
sendo limitada tão somente pela ação antagônica, se necessária, do Estado). Uma
dialética da acumulação entravada toma o lugar da dialética da formamercadoria, e cuja história é a recomposição da primazia da expartição de
excedente sobre a acumulação através de crises sucessivas”. (Deák, 1991, pg.1213. Grifo meu)
A maneira de garantir o entrave continuou sendo a manutenção do princípio de
organização da produção colonial: a expatriação de excedente. Enquanto na sociedade
colonial essa expatriação é, “por natureza”, uma imposição externa (da metrópole),
através das taxas, dízimos, restrições, condições comerciais etc., com a Independência
essa imposição teve de ser criada internamente, em conflito com a própria noção de
acumulação capitalista. Tratava-se, ao assumir a condição de Estado independente,
“da inserção do Brasil nas relações econômico-financeiras internacionais, de uma
maneira que assegurasse a continuidade da padrão produtivo da vida econômica
do país.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
62
A dívida externa foi a solução encontrada. ... Ou seja: ao nascer, o Estado
brasileiro assumiu uma dívida externa que seria um dos principais meios para
transformar –aqui, no sentido estrito de dar nova forma a-- a remessa de uma
parcela do seu excedente produzido para fora do país. ...
O que era exploração colonial torna-se expatriação de excedente. O que era
determinado de fora passa a ser determinado de dentro. O que era colônia passa
a ser nação-Estado, ainda que ‘do Terceiro Mundo’ ou ‘dependente’.” (Deák,
1991, pg.7-8)
À sociedade, formalmente burguesa, organizada em torno da manutenção de
privilégios e da reificação apenas parcial das relações de produção, corresponde um
Estado voltado para a manutenção da “funcionalidade da barbárie colonial para o
progresso das elites brasileiras”, no dizer de Schwartz (1991, pg.120). O que obriga
à construção de uma dupla ideologia: 1) para escamotear as relações de dominação e
2) para manter a organização social em torno de privilégios de classe, sob as
aparências de uma organização burguesa.
3.2 A ação do Estado
Adotando a expressão acima --acumulação entravada--, pode-se dizer que o Estado
no Brasil é chamado a assumir o controle das condições de acumulação mantendo os
“entraves” necessários para que os interesses de plena acumulação capitalista não se
sobreponham aos interesses da manutenção de uma sociedade de elite 3 . Cabe-lhe o
3
Ao nível cultural um dos traços marcantes da sociedade brasileira é o desprezo pelo trabalho
concreto, pelo “fazer” em contraposição ao “gerenciar” ou “dirigir”, reflexo da colossal dispersão no
renque dos salários e da ainda maior concentração da renda. Roberto Schwartz assim relaciona esse
traço com a tradição escravagista: “A referência européia e moderna leva a gente de bem a torcer o
nariz ante a indolência popular, ao passo que o embasamento servil da economia permite, sempre que
oportuno, desconsiderar o serviço prestado pelas pessoas pobres. ... Não tendo propriedade, e estando o
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
63
papel de garantir certo nível de acumulação, necessário à reprodução, inclusive
ampliada, dessa mesma sociedade mas, ao mesmo tempo, impedir o pleno
desenvolvimento das forças produtivas, o que poria em risco a permanência da elite
enquanto classe. O Estado intervem não para garantir a acumulação, como o faz o
Estado burguês, mas sim para garantir a acumulação entravada.
Isto coloca uma das características marcantes da atuação do Estado no Brasil qual
seja, a descontinuidade e insuficiência da ação. Via de regra, os investimentos
públicos são feitos fora do momento oportuno, quando já ou ainda não correspondem
a um impulso para mudança de patamar tecnológico. Os serviços complementares
não são implantados ou o são parcialmente, de modo que nunca o investimento feito
tem um retorno na mesma escala. Exemplos são inúmeros e vão desde os hospitais
com equipamentos sofisticados sem uso por falta de operadores, até o serviço de
cartografia da Região Metropolitana de São Paulo para o qual se contratam vôo,
restituição e desenho sem implantar as rotinas de atualização e manutenção.
A descontinuidade e a insuficiência são garantidas pela própria organização e regras
de funcionamento do Estado, em que prevalecem sobreposições de competências (e
portanto impossibilidade de definição de responsabilidade), atribuições atendidas por
formalidade e não por ações efetivas, insuficiência de recursos, pulverizados em
inúmeros projetos parciais e desarticulados. O orçamento, em qualquer nível de
governo, não corresponde a um projeto discutido e aprovado e portanto a um
compromisso com determinado programa de implantação. Corresponde apenas a um
repasse de recursos para determinado setor da economia, quando não a um grupo de
pressão, sem garantia de continuidade. Assim a construção de uma estrada de ferro ou
a implantação de um programa de merenda escolar, por exemplos, podem ser
decididos sem nenhuma relação de prioridade e, com a mesma aleatoriedade com que
a decisão é tomada, também pode ser tomada a decisão de interromper ou de
modificar a obra ou o programa.
principal da produção econômica a cargo do escravo, os homens pobres pisam terreno escorregadio: se
não trabalham são uns desclassificados, e se trabalham só por muito favor serão pagos ou
reconhecidos. (Schwartz, 1991, pg.99).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
64
A inflação crônica e as sucessivas mudanças de moeda que tem marcado o quotidiano
das últimas gerações de brasileiros apenas facilitam esse processo: é virtualmente
impossível qualquer previsão ou controle orçamentário com uma inflação que pode
oscilar entre 2% ao mês ou ao dia, dependendo de fatores políticos conjunturais.
Note-se que o problema para a confecção e obediência a um orçamento está no
caráter errático da inflação, muito mais do que no seu nível.
Não raro a legislação introduz simplificações no sentido de permitir ações efetivas e
não formais. No entanto a mesma legislação ou melhor a estrutura jurídica que a
interpreta, baseada na defesa dos interesses individuais (sempre apresentada como
resguardo contra possíveis arbitrariedades por parte do poder público), se encarrega
de anular qualquer possível simplificação. O funcionário público, sujeito a
arbitrariedades político/administrativas, não toma decisões que possam implicar em
responsabilidade técnica pessoal e, portanto, qualquer decisão requer uma prévia
diluição de responsabilidades através de regras genéricas, discutidas em termos de
modelos abstratos. Tais modelos exigem definições rígidas que por sua vez se
constituem em obstáculo formal para qualquer mudança: para poder alterar uma regra
social, independente das posições e forças dos interesses diretamente envolvidos, é
necessário antes de mais nada reconstruir todo o arcabouço das definições, o que
confere de antemão uma posição privilegiada aos interesses conservadores.
Caio Prado Júnior em seu Formação do Brasil Contemporâneo, nos dá uma descrição
das origens da administração pública brasileira, diretamente calcada na de Portugal
que
“estendeu ao Brasil sua organização e seu sistema, e não criou nada de original
para a colônia.” (Prado Junior, 1957b, pg.299)
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
65
Também mostra o peso da herança portuguesa em termos de administração,
ressaltando a rigidez das suas regras e estruturas e o apego às formalidades 4 . É
ilustrativo o exemplo da divisão territorial administrativa:
“É nas vilas, sedes dos têrmos e das comarcas, que se concentram as autoridades:
ouvidores, juízes, câmaras e as demais. Era este o modelo do Reino, e ninguém
pensou em modificá-lo. Ou se tratava de uma vila, então todas aquelas
autoridades deviam estar presentes, ou não era vila, e não tinha nada.” (Prado
Junior, 1957b, pg.301)
Esse mesmo modo hoje faz com que São Paulo e Vargem Grande Paulista 5 (para
pegar dois exemplos na mesma Região Metropolitana) sejam formalmente iguais,
com o mesmo (do ponto de vista formal) relacionamento com os governos estadual e
federal, com as mesmas incumbências e prerrogativas, decorrentes do fato de serem
ambos municípios.
Outra característica do Estado brasileiro é o fato de que o espaço 6 nunca esteve
presente entre as questões envolvidas nas grandes decisões. Mesmo ao se configurar
um projeto político nacional com o II PND, e apesar do fato de que, pela primeira
vez, as condições urbanas enquanto tais foram mencionadas e objetivadas, os
aspectos territoriais desse plano foram simplesmente relegados à decorrência dos
acertos de interesses, negociados caso a caso, para o desenvolvimento dos diversos
setores da produção. Não só o planejamento territorial não existiu integrado a uma
política econômica, como os técnicos chamados a participar não tiveram condição de
captar o significado das medidas que estavam sendo implementadas e de prever suas
4
Em que pese a propriedade das descrições da estrutura administrativa portuguesa, Caio Prado
Júnior lhes dá com frequência um enfoque cultural. Um exemplo, sobre a questão da diluição de
responsabilidades: “A confiança com outorga de autonomia, contrabalançadas embora por uma
responsabilidade efetiva, é coisa que não penetrou nunca nos processos de administração portuguesa.”
(Prado Junior, 1957b, pg.307)
5
Município da Região Metropolitana de São Paulo, com 15.480 habitantes de acordo com o
censo de 1991. Pelo mesmo censo, o município de São Paulo contava com 9.528.210 habitantes.
(IBGE)
6
Os conceitos de espaço e território, assim como um histórico da formação do espaço
brasileiro, são tratados por Mori (1988), especialmente na Introdução (pg.22) e no capítulo A
delimitação do território (pg.42).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
66
consequências em termos de propostas de organização espacial. Estas continuaram
tendo características de acertos cosméticos ou de homologação de decisões já
tomadas.
Note-se que, pelas “teorias” liberais (e não apenas no Brasil) planejamento territorial
não é visto como parte integrante de uma política econômica mas, ao contrário, como
um instrumento de correção das distorções e problemas por ela criados.
Na mesma toada, no Brasil desenvolvimento econômico é visto como “naturalmente”
causador de problemas 7 , a serem corrigidos pelo planejamento. Essa função como
que servil do planejamento, ao mesmo tempo em que desqualifica perante a “opinião
pública” os técnicos que a ele se dedicam, também os exime de qualquer
compromisso com a organização social e os interesses em jogo. É significativa a
frequente dissociação entre o planejamento como instituição de um órgão sem poder,
enquanto que os meios efetivos de implantação de algum plano ou programa estão
dispersos em dois ou três ministérios ou secretarias. Até agora as poucas tentativas de
juntar planejamento, proposta orçamentária e controle de recursos, em qualquer nível
de governo, foram abandonadas como mostra o exemplo recente do início de reforma
ministerial do Governo Collor, que rapidamente teve de ser desfeita, por pressões do
Congresso e dos próprios dirigentes dos órgãos re-estruturados.
O Brasil é organizado em três níveis de governo, dos quais dois são típicos de
qualquer Estado capitalista:
- O central, que estabelece a política econômica e as condições da
acumulação.
- O local, cuja principal função é a administrar as formas concretas pelas
quais o território é usado como espaço para a acumulação.
A esses se interpõe um terceiro nível, o dos estados. A organização federativa do
Estado brasileiro atribui aos estados-membros as tarefas de adaptar a política
7
De onde expressões do tipo “crescimento desenfreado” ou, sua imagem especular,
“desenvolvimento sustentado”.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
67
econômica às condições regionais, complementar a infraestrutura espacial e absorver
parte dos custos diretos de reprodução (educação, saúde, distribuição de água e
energia elétrica).
Essa
organização
propicia
tanto
a
sobreposição
quanto
a
ausência
de
responsabilidades definidas e acaba favorecendo a dispersão dos recursos. Dada a
forma como se estabelecem as relações entre a União e os estados-membros esse
nível de governo intermediário pode-se constituir num entrave para a implantação de
qualquer programa nacional que deve passar pelo crivo dos interesses das elites
regionais.
3.3 Investimentos e infraestrutura
Foi visto, no Capítulo 2: O Estado, que a produção capitalista é regulada
simultaneamente pelo mercado (em primeira instância) e pela ação do Estado ou seja,
o Estado regula a produção através e em função da própria regulação do mercado,
superando assim os limites à mercadorização da produção. Em particular o Estado
intervém na produção do espaço, seja indiretamente através da legislação, seja
diretamente através de investimentos na infraestrutura espacial 8 . Tais investimentos
são feitos em função das necessidades da acumulação, definidos portanto pelo próprio
mercado. Em outros têrmos, a capacidade de investimento de um Estado (equivalendo
aos impostos a serem arrecadados) é definida pelas necessidades em infraestrutura
para sustentar determinado regime de acumulação.
8
A infraestrutura espacial constitui um capital fixo, coletivo, apropriado pelos capitalistas no
processo de produção. Para uma discussão do papel do progresso técnico e do capital fixo na
acumulação ver Deák (1985), especialmente o capítulo 5.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
68
No Brasil a estrutura institucional e a produção ideológica garantem a manutenção de
um aparente círculo vicioso: o Estado não pode arrecadar o suficiente para investir
em infraestrutura devido à baixa produtividade; a produtividade é baixa porque a
infraestrutura é deficiente, e o Estado é incapaz de provê-la. O que não aparece é que
a produtividade é baixa porque se quer mantê-la e com isto restringir o
desenvolvimento do mercado. A falta (ou a “escassez”) da infraestrutura é assim um
instrumento eficiente para o controle do desenvolvimento do mercado e da plena
utilização (capitalista) das forças produtivas. Os baixos recursos alocados,
responsáveis pelo baixo nível de infraestrutura, não constituem uma contingência
externa que a sociedade, através do Estado, deve administrar e superar mas, ao
contrário, são uma auto-imposição para evitar a ampliação do espaço urbano (ou do
campo de ação do Capital), a melhoria das condições de produção e a eliminação da
(sempre cultivada) escassez.
Chega a ser espantosa a facilidade com que a “grande imprensa” veicula e faz passar
como verdade opiniões que não passam de defesa de interesses individuais. É
ilustrativa a campanha contra o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) de São
Paulo em 1992: a proposta aprovada pela Câmara e transformada em lei municipal,
previa alíquotas diferenciadas conforme valor e uso do imóvel, com considerável
aumento apenas para as pequenas parcelas de residências de luxo ou de grandes
espaços comerciais em áreas privilegiadas. A lei foi arbitrariamente anulada pelo
Judiciário após uma violenta campanha baseada no repúdio ao “aumento escorchante
e intolerável para os trabalhadores”. Um exemplo claro do poder --e do tipo—da
orquestração ideológica foi dado em um dos episódios da campanha: a entrevista de
uma mulher supostamente atingida por esse aumento escorchante, que “ganha pouco,
tem tantos filhos para criar, mora na periferia etc. e tal”. Perguntada, ao fim do coro
de comentários indignados, de quanto havia sido o aumento do imposto, a cândida
resposta foi: “Não sei, porque ainda não recebi a conta. Mas certamente não vou
poder pagar”.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
69
A nível mais geral, basta comparar a evolução do imposto com o crescimento das
áreas construídas (ou da população) para perceber que houve em São Paulo 9 , no
período de 1978 a 1989, uma política deliberada de redução tributária com a
consequente diminuição da capacidade de investimentos no município. A Figura 3.3
a seguir mostra a evolução do valor médio do imposto (IPTU) por metro quadrado de
área construída.
Figura 3.3
MUNICÍPIO DE SÃO PAULO: 1960 – 1992
Evolução do IPTU
(Valores em Cr$ 1.000,00 de junho 1991)
fontes:
IPTU – PMSP / Secretaria de Finanças
AREA – Cadastro da PMSP / Secretaria de Finanças e estimativas Sempla
A “impressão, amplamente divulgada pelos meios de comunicação, é a de que o
Estado no Brasil é fraco, impossibilitando de conduzir o processo de constante
transformação econômica. Aparentemente ele seria organizado para não funcionar.
De fato ele atende bem a sua finalidade, definida pela elite dominante: o controle do
desenvolvimento da capacidade produtiva isto é, a manutenção do “entrave”. A esse
Estado corresponde um capitalismo sem risco, “cartorial”, única forma de garantir o
funcionamento daquilo, e somente daquilo, que deve funcionar.
No entanto, e isto também é apontado por Deák,
“acumulação com expatriação de excedente só é possível a taxas muito elevadas
de excedente, como aquelas permitidas por um estágio de acumulação extensiva,
em que a taxa de expansão é igual à taxa de excedente propriamente dita (dentro
9
A mesma tendência pode ser percebida na maneira das cidades do país.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
70
da produção de mercadorias) mais a taxa de extensão da produção de mais-valia
(isto é, da própria produção de mercadorias à custa de outras formas de
produção), onde a segunda é a parcela mais substancial. Uma parte do excedente
é expatriada e ainda assim sobre algum para acumulação -- ainda que
acumulação entravada.” (Deák, 1991, pg.15)
Com a virtual urbanização de todo o país, a expansão da produção de mercadorias à
custa de outras formas de produção está atingindo seus limites. A crise atual, que vem
se prolongando há quase duas décadas, assume caráter diferente de todas as que a
precederam: enquanto aquelas deviam ser resolvidas com ajustes para garantir a
continuidade da acumulação entravada, esta crise é gerada pela própria
impossibilidade da permanência deste processo e, portanto, deverá ser resolvida por
sua superação, implicando em transformações da estrutura social e não apenas em
mudanças de regras.
Em que pesem as incertezas decorrentes da crise (também estrutural) do próprio
capitalismo, a acumulação no Brasil passa para o estágio predominantemente
intensivo, exigindo a eliminação dos entraves: ampliação, em escala considerável, da
infraestrutura (comunicações, transporte, energia elétrica, saneamento), alteração do
nível de reprodução da força de trabalho e, em conseqüência, canalização do
excedente para a ampliação do mercado interno. É nesta perspectiva que ganha
importância o planejamento por parte do Estado, em especial, a organização do
espaço.
Contra esse quadro de fundo serão examinados os sistemas de registro e cadastros
fundiários no seu duplo aspecto de fonte de recursos e de fonte de informações para o
planejamento territorial.
Luisa Battaglia
II
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
A base institucional da apropriação do território
71
Luisa Battaglia
II
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
72
A base institucional da apropriação do território
O primeiro reconhecimento formal do domínio português no Brasil não resultou de
um movimento de conquista mas sim de um tratado, assinado em Tordesilhas
(Espanha) em 1494, pelo qual Portugal e Espanha dividiram entre si o mundo
descoberto e a descobrir. 10 Essa divisão, feita sob a bênção papal, tinha o objetivo
expresso da propagação da fé e nesse sentido as terras do Brasil foram postas sob a
jurisdição da Ordem de Cristo, sujeitas ao pagamento de dízimo, recolhido pelo Rei
na qualidade de Mestre da Ordem.
A divisa estabelecida em Tordesilhas teve pouco significado no resultado final do
processo de ocupação do território, a não ser na medida em que definiu os pontos de
partida desse processo: o litoral brasileiro para Portugal, o Caribe e a foz do Prata
para a Espanha.
As populações que ocupavam o território atribuído ao domínio português ainda
mantinham a organização tribal e tinham baixíssimo nível de desenvolvimento
tecnológico, comparado com o dos invasores. Produziam para subsistência,
praticando a troca (escambo) apenas de maneira esporádica e ritualística. Essa falta de
espírito mercantil entre os indígenas e o pouco interesse do que poderia
eventualmente ser objeto de troca condicionaram as primeiras atitudes de indefinição
por parte de Portugal com relação aos novos domínios. Os interesses dos mercadores
e armadores de expedições estavam no estabelecimento de relações privilegiadas de
comércio, enquanto que o Brasil oferecia apenas terras para serem cultivadas, sem
nenhuma produção organizada de excedente que justificasse a manutenção de
entrepostos como nas Índias ou na China.
10
O tratado de Tordesilhas resultou dos protestos de Portugal contra a primeira divisão feita
pelo papa Alexandre VI (o espanhol Rodrigo Borja) por meio da bula Inter Coetera, em 1493. Segundo
essa bula o meridiano de divisa passava a 100 léguas a oeste do arquipélago de Cabo Verde, o que
deixava o Brasil inteiramente fora do domínio português.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
73
Demorou alguns anos para se estabelecer uma forma de ocupação e aproveitamento
da nova terra que fosse mais proveitosa do que a simples coleta de pau-brasil e penas
de araras.
Em meados do século XVI a economia colonial, baseada na monocultura para o
mercado externo, se estruturou em torno da produção escrava em grandes áreas
distribuídas através do sistema de sesmarias. Apesar da apropriação do território terse dado sem grandes resistências ele não correspondeu a um processo de dominação
da população, dadas as diferenças de organização social entre os portugueses e os
indígenas, era a escravidão à qual esses últimos se sujeitavam mal, deixando pouco
ou nenhum excedente para os senhores. Tirando os casos de miscigenação a
população indígena foi praticamente exterminada e a mão de obra escrava passou a
ser importada da África.
No Capítulo 4: Três séculos de apropriação são descritas as diversas formas de
concessão/ocupação das terras no período colonial que, de permeio com o sistema
sesmarial, foram moldando não só a estrutura fundiária mas com ela também o
aproveitamento do solo agrícola, o traçado dos núcleos urbanos, e a própria
organização social. No último ítem desse capítulo são citadas as primeiras medidas no
sentido da definição de impostos fundiários.
O Capítulo 5: A Lei das Terras e o fim da produção escrava abrange o período do
Império, com ênfase na Lei das Terras, de 1850. A Lei das Terras Devolutas
introduziu as alterações no controle do acesso à terra, necessárias face à passagem da
produção baseada na mão de obra escreva para a produção por trabalhadores livres. É
a partir dessa data que começam a tomar forma os registros de terras e que se
estabelece juridicamente o conceito de propriedade.
O Capítulo 6: O arcabouço institucional republicano trata da evolução da legislação
republicana com relação ao registro da propriedade e à tributação sobre a mesma. São
examinados o Código Civil, as Constituições e alguns dos atos legais mais
significativos. Procura-se esboçar um quadro institucional de base dos procedimentos
e normas atuais para os impostos e registros imobiliários, salientando os aspectos
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
74
administrativos que conduzem à multiplicidade desses registros, ao fato de não
corresponderem a um cadastro mapeado e ao fato de não terem como objetivo o
conhecimento abrangente da propriedade e do território nacional mas sim,
exclusivamente, a defesa dos direitos individuais estabelecidos sobre cada parcela
desse território.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
CAPÍTULO 4:
TRÊS SÉCULOS DE APROPRIAÇÃO
75
Luisa Battaglia
4
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
76
TRÊS SÉCULOS DE APROPRIAÇÃO
“...O Capitão da dita Capitania e seus Successores darão, e
repartirão todas as terras della Sesmaria a quaesquer pessoas de
qualquer qualidade, e condição, que sejam, com tanto que sema
Christãos livremente sem foro nem direito algúm sómente o
Dizimo, que serão obrigados a pagar a Ordem do Mestrado de
Nosso Senhor Jesus Christo de todo o que nas ditas terras
houverem, ...”
do Foral da Capitania de Duarte Coelho 1
4.1 Instituições jurídicas portuguesas. Capitanias:
Durante os primeiros três séculos da história brasileira toda a legislação deve ser
procurada nas Ordenações do Reino e nas Cartas Régias, espécies de decretos reais
com que também eram administradas as coisas do Brasil. É interessante notar que a
Espanha instituiu um conjunto específico de leis para as colônias (Código das Indias
ou Recopilacion de Leyes de los Reynos de India), estabelecendo logo no início as
áreas de atribuições dos poderes temporal e espiritual, normas “de convivência entre
clérigos e colonos” 2 e a forma de concessão das terras, com reflexos diretos na
organização espacial, principalmente dos núcleos urbanos.
“Dentro dos mesmos conceitos jurídicos, [os espanhóis] estipulavam bem mais
precisamente que os portugueses a concessão de terras e o convívio entre os
vários colonos e o coletivo.” (Murillo Marx, 1987, pg.57)
1
Trecho do Foral da Capitania de Duarte Coelho, Pernambuco, concedido por D.João III em 23
de setembro de 1534. (Documentos históricos, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, 1929, v.13, p.84).
De cópia fornecida pelo Prof. Murillo Marx no curso de pós-graduação Apropriação da terra e trama
urbana no Brasil. FAUUSP, 1994.
2
Marx, Murillo (1987).
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A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
77
Portugal, em vez, manteve para todo o território por ele controlado a mesma
legislação geral da Metrópole, consolidada nas Ordenações do Reino 3 . São essas
Ordenações que regulam as formas jurídicas feudais4 de relações enfitêuticas
(aforamentos) e de concessão de sesmarias, através das Cartas Régias, Alvarás, Carta
de Sesmarias, Cartas de Datas etc. Vários desses restos jurídicos do sistema feudal
são legalmente reconhecidos até hoje e correspondem a práticas que, apesar de
estarem em processo de extinção, ainda podem ser encontradas 5 .
Nunca houve regras claras e coerentes com relação às diversas circunscrições e
competências para distribuir terras e as divisões territoriais administrativas,
tributárias, eclesiásticas e de domínio privado se sobrepunham sem qualquer relação
umas com as outras.
3
As Ordenações do Reino eram as antigas leis portuguesas compiladas em códigos. Houve três
desses códigos:
As Ordenações Afonsinas, de 1446 ou 47, promulgada por D.Afonso. Citadas pelo Prof. João
Afonso Borges (1960) como “o primeiro monumento legislativo da Europa”.
As Ordenações Manuelinas por D.Manuel em 1512, 1514 e 1521.
As Ordenações Filipinas, promulgadas em 11 de janeiro de 1603, encomendadas por Felipe II
da Espanha e publicadas sob Felipe III. D.João IV ao proclamar a Restauração revalidou as
Ordenações Filipinas pela lei de 29 de janeiro de 1643. Pelo decreto de 20 de outubro de 1823 D.Pedro
I do Brasil ordenou que continuassem vigor as ordenações e leis de Portugal, com o que as Ordenações
Filipinas no Brasil até sua substituição pelo Código Civil em 1916. (Ver Borges, 1960)
4
Não confundir formas jurídicas feudais com relações feudais de produção. Nunca houve
sistema para a produção mercantil em larga escala, para exportação. Isto não impediu a manutenção de
relações de domínio sobre a terra que ainda guardavam formas medievais mas que, de fato, já se
estruturavam em torno da propriedade individual dos meios de produção.
5
Em algumas áreas as relações de domínio fundiário baseadas na enfiteuse ou aforamento eram
comuns até há pouco tempo. Em salvador na Bahia, por exemplo, predominaram até fins da década de
1960, “com o domínio direto, pela Prefeitura, da maior parte da área municipal” (Brandão, 1978,
pg.129). Não só a Prefeitura mas também as irmandades religiosas detinham o domínio das terras, que
iam sendo ocupadas em regime de aforamento ou simples invasão à medida em que aumentava a
população e a necessidade de habitações. “Até a década de 1960, as terras da cidade pertenceram
basicamente a algumas ordens religiosas, a poucos proprietários particulares e à Prefeitura.” (Brandão,
1978, pg.138). Segundo Brandão, na década de 1960 se intensificaram tanto os processos de
“fechamento” das áreas de enfiteuse quanto os de legitimação de posse e de formalização dos títulos de
propriedade, consolidando assim um mercado de terrenos urbanos. Para esse processo foi decisiva a
remoção da inalienabilidade do patrimônio fundiário do município em 1968 (Lei Municipal 2181/68),
o que permitiu a alienação de mais de 2.400 ha de terras até 1978.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
78
Segundo Simonsen 6 , a primeira manifestação de Portugal com relação à
Institucionalização do domínio fundiário no Brasil foi um ato do rei D. Manuel que,
já em 1501, arrendou as terras descobertas a um rico mercador de Lisboa para que
explorasse a extração de pau Brasil. Essa medida se mostrou inútil para assegurar a
posse do território e algum rendimento para a Coroa e em 1532 D.João III ordenou a
demarcação de faixas de 50 léguas de costa, entre Pernambuco e o rio Prata, a serem
instituídas como capitanias.
Capitania designava cada uma das divisões territoriais das regiões de além-mar,
concedidas pelo Rei de Portugal a fidalgos (donatários) para administrá-las conforme
as regras estabelecidas nas Ordenações. Apesar de não haver prazo fixo estipulado
para essas concessões, no Brasil elas foram permanentes e hereditárias.
As capitanias eram unidades administrativas das quais cerca de 20% das terras
constituíam doação efetiva ao donatário. No dizer de Sérgio Buarque de Holanda,
“dava El-Rei a terra para o donatário administrá-la como província ao invés de
propriedade privada.” (Holanda, 1960, pg.99)
No entanto, resto da estrutura jurídica feudal, confundiam-se os rendimentos da
capitania com os do seu donatário. Esse, além da terra recebida em doação, tinha
participação em vários “direitos” da Coroa além de “direitos” próprios como os de
conceder licenças para a instalação de engenhos, vilas e povoados e, em decorrência,
o de receber foros e contribuições 7 .
O mapa da Figura 4.1 mostra as capitanias, provavelmente no fim do século XVII,m
já moldadas pela conformação geográfica e pelos processos de ocupação.
Apesar dos parcos resultados obtidos pela Coroa com esse sistema e da consenquente
instituição do Governo Geral em 1549 8 as capitanias não foram extintas
juridicamente e encontram-se atos de D.João VI referentes a capitanias. Na prática
6
Simonsen (1937).
7
Simonsen (1937, pg.83).
8
O primeiro Governador Geral, Tomé de Sousa, foi nomeado por Carta Régia de 7 de janeiro
de 1549.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
79
não passavam de divisões administrativas que acabaram se transformando nas
províncias.
Figura 4.1
BRASIL (século XVII?)
Nova et Accurata Brasiliac totius Tabula. Joanne Blaeu I.F.
Mapa das Capitanias
4.2 Sesmarias, foros e posses
Os donatários tinham poderes expressos para, em nome do soberano, conceber
extensões de terras, sesmarias, a pessoas com poder econômico suficiente para
explorá-las e obter rendimento para si e para a Metrópole.
Garcia 9 cita diversas origens da palavra sesmaria:
sesma
“medida de divisão das terras de alfoz” 10
sesmo
a sexta parte de alguma coisa
caesina
incisão, corte.
O Vocabulário Jurídico 11 lhe dá a seguinte definição, que corresponde em parte às
origens histórias:
“Derivado de sêsma, oriundo do latim sex, é a expressão usada no Direito para
designar as datas de terras que, se davam para que fossem roteadas, isto é,
libertas da ervas daninhas e plantas infrutíferas e depois cultivadas. E se dizia
9
Garcia (1958, pg.10).
10
Terras ao redor das povoações.
11
Silva, de P. (1963,pg.1448).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
80
sesmaria, de sêsma, a sexta parte de alguma coisa, porque o concessionário
ficava na obrigação de lavrar essas terras incultas, mediante a sexta parte dos
frutos.
Originalmente, as sesmarias recaíam sobre terras cujos senhorios não as
cultivavam, deixando-as ao abandono, desaproveitadas e em ruinas. Avisados
para as aproveitar e valer, não o fazendo, sofriam então a distribuição das terras,
sob o foro ou pensão de sexto ou de seis um.
No Brasil, entanto, embora em se tratando de terras sem senhoria, as cartas
dadas, ou as datas de terra, distribuídas para cultura ou lavoura, passaram a ter
igual denominação: sesmaria. Mas, em realidade, importava em começo, na
doação de terras devolutas e públicas, com a finalidade exclusiva de serem
cultivadas, e cuja venda foi posteriormente autorizada, pela lei de 18 de setembro
de 1850.”
De acôrdo com Ruy Cirne Lima 12 a origem da instituição remonta a antiquíssimo
costume na península Ibérica segundo o qual as terras de cultivo eram dividas por
sorteio entre os homens aptos a cultivá-las. Cada uma dessas divisões seria chamada
sexmo 13 . Com o crescente poder da nobreza e a consolidação de relações de
dominação esse costume de divisão periódica (que além do mais se tornava difícil
pelo aumento da população) foi sendo abandonado, ao mesmo tempo em que a Coroa
passou a zelar pelo volume de produção, intervindo diretamente no sentido do cultivo
das terras aptas. O têrmo sesmaria passou a ser aplicado às terras não aproveitadas
pelo seu possuidor 14 e que, por lei régia, eram cedidas a outros para que as
cultivassem.
“...a atitude comunal cedeu lugar rapidamente à instituição régia, cuja evolução, à
sua vez conduziu às concessões de domínio.” (Lima, 1954, pg.12)
12
Lima (1954).
13
Joaquim Costa, citado por Lima (1954, pg.11).
14
Inclusive as incorporadas aos domínios dos nobres e da Igreja.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
81
As terras do Brasil que, pela bula papal mais tarde alterada pelo tratado de
Tordesilhas, haviam sido atribuídas a Portugal para a “propagação da fé” foram
postas sob a jurisdição da Ordem de Cristo, da qual o Rei era o administrador
perpétuo. Sendo terras aptas ao cultivo porém não aproveitadas, para elas foi
transplantada a instituição das sesmarias como forma de promover o cultivo e o
povoamento.
Cabia aos donatários distribuí-las sendo proibida a concessão a si próprio, à mulher
ou ao filho herdeiro,
“nem po-las em outro para depois virem a elles, por modo algum que seja:
somente as poderão haver titulo de compra verdadeira de pessoas que lhes
quizerem vender, passados oito annos depois das taes terras serem aproveitadas;
e em outra maneira não.” 15
A instituição das sesmarias tinha por finalidade o cultivo da terra e, dado o modo de
produção implantado no Brasil, sua concessão estava vinculada à capacidade do
beneficiário de providenciar mão de obra para a exploração em larga escala.
“Os requerentes das sesmarias têm por isso o cuidado de alegar que são homens
de posses.” (Oliveira Vianna, 1933, pg.56; citado por Lima, 1954, pg.36)
Mesmo entre os homens de posses havia diferenças: as terras do Nordeste, onde as
condições de exploração eram melhores, eram distribuidas em larguíssimas extensões
entre a alta nobreza, os funcionários de primeira categoria, enquanto que no Sul,
menos atraente, as sesmarias eram menores e os beneficiários mais modestos.
Dentro do espírito de distribuição de terra para produção, as leis estabeleciam a
obrigatoriedade do cultivo, sob pena de devolução 16 , e punham restrições ao tamanho
15
Extraído da carta de doação da Martim Affonso de Souza. Citado em nota de rodapé por Lima
(1954, pg.34).
16
Terras devolutas designava justamente as terras que, pelo não-uso, seriam devolvidas à
Coroa. O têrmo passou a ser usado para as terras públicas em geral. As definições do Vocabulário
Jurídico são ilustrativas da base ideológica da estrutura jurídico-institucional:
“Terras devolutas – São as terras que, embora [sic] não destinadas nem aplicadas a algum uso
público, ...ainda se encontram sob o domínio público, como bens integrantes do Domínio da União,
dos Estados, ou dos Municípios.”
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
82
das áreas concedidas. Segundo instruções das Ordenações Manuelinas, mantidas
pelas Ordenações Filipinas,
“... serão avisados os sesmeiros 17 ” que não deêm maiores terras a uma pessoa,
que as que rosoalmente parecer que no dito tempo poderão aproveitar. (Sodero,
1977, pg.166)
Essas instruções foram reforçadas por Regimento:
“... e não darei a cada pessoa mais terra que aquela que boamente e segundo sua
possibilidade vos parecer que poderá aproveitar.” (Sodero, 1977, pg.169)
No entanto os critérios de distribuição levavam em conta muito mais os interesses
pessoais e as relações de poder do que a intenção e a capacidade de exploração
produtiva e, apesar do registro de casos de reversão de terras não aproveitadas, na
maioria das vezes havia transigência e fechar de olhos. Mas a
Pg.94
Exigências nunca foi dispensada nos têrmos de concessão. Assim, junto com os
engenhos e as plantações de cana de açúcar, foi sendo formado um patrimônio de
terras improdutivas, origem do nosso atual sistema fundiário 18 .
“Devoluto – Na linguagem do Direito Administrativo, qualifica-se de devolução tudo o que se
encontrava vago ou desocupado. Assim, dizem-se terras devolutas as que, incultas ou não aproveitas,
embora pertencentes ao domínio fiscal do Estado, se destinam à venda aos particulares.” (Silva, de P.
1963).
17
Termo usado aqui para designar o distribuidor de sesmarias. O mesmo termo passou a ser
empregado para designar o beneficiário, recebedor de sesmaria. “As glebas desaproveitadas
correspondem, na América, às terras virgens, trocado o sentido de sesmeiro, originalmente o
funcionário que dá a terra, para o titular da doação, o colono.” (Faoro, 1925, pg.124).
18
“quem conhece a aristocracia agrária do Brasil, quer nas cochilas do pastoreio, quer nos
altiplanos de cultura, percebe o amor com que o proprietário fita a linha do horizonte longínquo, até
onde chegam as suas terras. Pouco lhe importa que esta vastidão de terras continue desaproveitada; o
espírito de latifúndio ainda que hoje perdura desde o tempo colonial, em que se preferia dar sesmarias
a quem fosse ‘sujeito de muitos teres’.
E o resultado foi o seguinte: quer no ciclo do açúcar, quer no ciclo das esmeraldas e quer no
ciclo do café, somente obtinham sesmarias os influentes, os chefes de prol, os amigos da Coroa, dos
governadores, dos capitães-mores ou dos capitães-generais. Debalde se lhes impunha a condição sine
qua, de cultura, como dizia o Alvará de 5 de janeiro de 1785; em vão se lhes falaram nas cláusulas de
medição e confirmação, como está em todas ad Cartas-Régias e provisões que tratam do assunto. Os
agrimensores eram raros; as terras longínquas; difíceis as vias de penetração. Não se fazia a medição;
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
83
A sesmaria no Brasil deixou de ser uma distribuição compulsória de terras como
garantia de produção para tornar-se apenas uma
“doação de domínios régios, a que só a generosidade dos doadores serve de
regra.” (Lima, 1954, pg.37)
Em 1695 uma Ordem Régia determinou que as sesmarias fossem sujeitas ao
pagamento de foros. Somente a partir de 1780 essa lei passou a ser cumprida 19 e as
cartas de concessão passaram a ter uma cláusula de pagamento. No entanto a própria
Ordem Régia, mesmo não cumprida, provou uma série mudança na instituição,
caracterizando a passagem das terras do Brasil da Ordem de Cristo (onde só o dízimo
podia ser cobrado) para o domínio régio. O texto das Ordenações já não se adaptava à
nova condição e aos poucos foi se formando uma legislação específica para o sistema
sesmarial no Brasil, culminando com a suspensão das concessões em julho de 1822.
os seguintes atos são citados por Simonsem (1937) e/ou Coe [1983?] 20 :
2 de novembro de 1700 – Ordem Régia que ampliou para o dobro as sesmarias
doadas às fábricas de igrejas” ou a eclesiásticos.
13 de março de 1772 – Alvará Régio que legislava sobre as terras devolutas.
22 de junho de 1808 – Alvará Régio, estabelecendo as normas para confirmação
de sesmarias.
25 de novembro de 1808 – Decreto sobre concessão de sesmarias a estrangeiros.
25 de janeiro de 1809 – Alvará determinando que à concessão das sesmarias
precedessem as respectivas medições judiciárias e, sob estas condições e formas,
sem ela, está claro, não se processava a confirmação. Preferia-se, inveteradamente, a demarcação
natural do espigão, divórcio de todas as águas que vertiam para este ou para aquele rio. Estaria assim
contornada a dificuldade da agrimensura; ficaria assim poupada a burocracia da confirmação; e
permaneceria plenamente satisfeito o espírito de latifúndio no sistema indeciso e ideal das águas
vertentes.” (de Messias Junqueiro: o Direito, Vol.IX, pg.160/61, conforme citado por Garcia, 1958,
pg.18)
19
20
Prado Júnior (1957a, pg.14).
Paulo Coe: São Paulo: Paraíso dos “grileiros”, livro sem data [1983?], provavelmente
editado pelo autor, bastante confuso como texto mas citando boa documentação sobre disputas por
terras em São Paulo, em torno de títulos conflitantes e sobrepostos.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
84
fossem passadas cartas aos sesmeiros, a fim de evitarem-se questões entre os
mesmos. 21
6 de junho de 1821 – Aviso Régio ordenado que os possuidores de terras
requeressem cartas de sesmaria.
17 de julho de 1822 – Resolução Real proibindo a concessão de novas sesmarias.
As relações de produção que caracterizaram a exploração colonial do Brasil não se
basearam diretamente na propriedade da terra mas sim na propriedade da mão de obra
escrava. Em outras palavras, a dominação não se estabeleceu diretamente através do
domínio sobre o território, visto não haver nesse uma prévia organização de produção
excedente.
A terra era abundante, com baixíssima densidade de ocupação e o seu uso na época
dos descobrimentos não representava nenhum impedimento à exploração22 . Os
constantes ataques indígenas nos primeiros anos da colônia eram de defesa e reação à
expansão dos caçadores de escravos e não de conquista de terras. Mesmo as invasões
holandesas tiveram muito mais a característica de controle dos entrepostos comerciais
do que de domínio sobre a terra como meio de produção.
A produção latifundiária e escrava, em regime de monocultura para o mercado
externo, se baseou nessa disponibilidade de terras, ilimitada para as forças produtivas
da época, donde o caráter predatório da exploração: queimadas, terra usada sem
descanso ou adubação, derrubada indiscriminada das florestas. O elemento caro, que
devia ser utilizado intensivamente e cuja propriedade possibilitava a produção
mercantil, era o braço escravo. As considerações feitas pelo Pe.Vieira em 1662,
embora relativas à ocupação da Amazônia e, portanto, aos escravos índios, podem ser
extendidas a todo o território e aos escravos africanos:
“Na vida dos índios consiste toda a riqueza e remédio dos moradores ... porque a
fazenda não consiste nas terras, que são comuns, senão nos frutos ou indústrias
21
22
Transcrito de Simonsen (1937, pg.458).
Para a história e as condições do início do povoamento do território, ver Prado Júnior
(19957b).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
85
com que cada um os fabrica e de que são os únicos instrumentos os braços dos
índios.” (Citado por Simonsen, 1937, pg.309)
Ser senhor de terras, com tudo o que isto significava de prestígio e poder, implicava
em ser previamente senhor de escravos.
Se o sistema sesmarial foi a base da organização da produção colonial, não foi a única
forma de ocupação do território. Os colonos diretos, trabalhadores livres que por aqui
aportavam, não sendo homens de posse ou fidalgos, preferiam simplesmente ocupar
um pedaço de chão a enfrentar a burocracia para obter uma (incerta) concessão de
sesmarias. Estas
“na maioria dos casos, restringiam-se, portanto, aos candidatos a latifundiários
que, afeitos ao poder ou ávidos de domínios territoriais, jamais, no entanto,
poderiam apoderar-se materialmente das terras que desejavam para si.” (Lima,
1954, pg.37)
Terras foram sendo ocupadas sem título ou contrato formal; seja pela simples posse
de uma área sem domínio conhecido (em geral em regiões isoladas e de difícil
acesso), seja em acerto com o senhor da área. Esse acerto consistia na tolerância
(sempre precária) da moradia e do cultivo de subsistência mediante pagamento em
espécie (meeiros, parceiros etc.) ou em serviços, especialmente de defesa ou
conquista de terras. A imprecisão das descrições das sesmarias tornava a demarcação
física dos limites uma questão de força, favorecendo a formação de grupos armados
cujos interesses eram vinculados aos do senhor pela autorização a ocupar terras
dominiais.
A criação de gado, retaguarda econômica dos grandes engenhos de açúcar, também se
expandiu apoiada tanto na concessão de sesmarias (em geral decorrentes da
ocupação) quanto na simples ocupação. Enquanto a indústria açucareira funcionava
com grandes investimentos em maquinário, instalações e escravos, dependendo em
boa parte da metrópole, a pecuária podia começar com poucos recursos e era tocada
por trabalhadores livres. Os vaqueiros após alguns anos de trabalho nas grandes
fazendas passavam a ser pagos com cabeças de gado, constituindo assim seu próprio
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
86
rebanho. E em imensas regiões pouco habitadas, com propriedades mal descritas e
sem cercas a ocupação de terras pelo gado precedia, e podia dispensar, a concessão de
títulos de domínio.
De todos os grandes senhores de terra no Nordeste sobressaíram-se os Guedes de
Brito e os d’Avila, cujo mando e influência se estendiam por áreas do tamanho de
estados. A Casa da Torre, fundada por Garcia d’Avila em sua primeira sesmaria de 15
léguas no Tatuapara (nove léguas da cidade do Salvador), foi o centro de irradiação
de gado e no fim do século XVII, três gerações mais tarde, senhoreava, no dizer de
Luís da Câmara Cascudo 23 , sobre terras “quase duas vezes o território da Itália”.
Assim, nos interstícios das grandes plantações, ao lado dos senhores e dos escravos,
foi crescendo uma população livre, dependente dos mesmos senhores para o próprio
assentamento e para o plantio das roças e a criação de animais. Uma população
escrava mas sem condições de competir no mercado por não ser proprietária de
escravos. Estima-se que em 1690 a população total do Brasil (excetuados os
indígenas não aculturados) era de cerca de 300.000 habitantes dos quais mais de
100.000, ou seja perto de um terço, eram livres. 24
Nesta mesma época a população total das treze colônias inglesas do norte devia estar
em torno dos 400.000 (não muito maior que a do Brasil) sendo que apenas uns 20.000
eram escravos africanos. Mas por volta de 1760 já havia mais de um milhão e meio
de habitantes, dos quais uma significativa parte de escravos. 25
De acordo com Celso Furtado 26 , o setor de subsistência se desenvolveu como
complemento necessário da monocultura açucareira, garantindo uma reserva de mão
de obra recrutável em curto prazo em casos de expansão doe mercado exportador.
Essa população foi importante na fase de substituição do escravo pelo assalariado.
23
24
Cascudo (1956, pg.112).
Simonsen (1937, pg.228 e 271).
25
Huberman (1978, pg. 16 e 19).
26
Furtado (1959).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
87
“Se a expansão da economia cafeeira houvesse dependido exclusivamente da
mão-de-obra européia imigrante, os salários ter-se-iam estabelecido a níveis mais
altos, à semelhança do que ocorreu na Austrália e mesmo na Argentina. A mãode-obra de recrutamento interno exerceu uma pressão permanente sobre o nível
médio dos salários.” (Furtado, 1959, pg.181)
A dimensão e importância desse contingente de população livre, suas formas de
sobrevivência e quanto dele continuou crescendo fora do mercado, em economia de
subsistência mesmo depois da substituição do escravo pelo assalariado, são questões
importantes para entender as lutas pela posse/propriedade da terra que, já no século
XX, passaram a fazer parte do processo de unificação de todo o território como um
espaço econômico. Foi apenas neste século que a “fronteira agrícola” avançou até os
limites administrativos do país e que os diversos mercados “regionais”, até então
isolados, foram unificados. 27 Parte essencial deste processo de avanço de “fronteira
agrícola” foi a distribuição de títulos de propriedade sobre as terras devolutas para
empresas agrícolas e industriais e a consequente expulsão dos posseiros que, sem
condições de obter títulos, haviam antes ocupado essas terras.
4.3 Aglomerações urbanas
O sistema de distribuição de sesmarias como meio de produção era complementado
pela distribuição de terras necessárias ao assentamento da população não diretamente
empregada nos engenhos e na monocultura. Uma rede de núcleos urbanos foi sendo
construída, num processo lento e aparentemente desarticulado 28 .
A fundação de um povoado se fazia, na grande maioria das vezes, pela doação de
uma área (patrimônio) à capela ou igreja em torno da qual se assentariam os
27
Para um quadro abrangente do processo de formação do espaço brasileiro, no sentido da
integração do território num mercado unificado, ver Mori (1988).
28
Para o processo de formação da rede urbana no Brasil, ver Reis Filho (1968).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
88
habitantes ou, não raro, diretamente ao santo padroeiro. Essas doações eram em geral
recortadas dentro de uma ou mais sesmarias, mediante prévio acordo com os
respectivos senhores que assim consolidavam seu poder político estendendo sua
influência sobre os núcleos urbanos. A área doada constituia o patrimônio da igreja,
para a construção dessa e sua futura ampliação, mas também o patrimônio da
comunidade reservando-se o espaço em torno da igreja para as reuniões públicas e
para o assentamento dos moradores. Esse último se fazia em terrenos cedidos
mediante prestação de serviços ou pagamento de foros. Da mesma forma eram
cedidos terrenos para pequenas plantações ou atividades comerciais.
Vale como exemplo a doação de terras dentro da sesmaria de Joaquem Morato do
Canto para a povoação de Ararapira, no sul do estado de São Paulo:
“Attendendo ás ordens de S.Exa. assentarão a Camara e maior parte dos
moradores que havião de povoar a dita povoação, qual fosse em Ararapira, no
sitio que possue Joaquim Morato do Canto, e achando-se elle prezente, disse que
de muito boa vontade offerecia para a nova povoação duzentas braças de terra
que se conta da barranceira da barra do Rio Indaiahi, correndo para a parte do sul
até uma arvore chamada ‘figueira’ que está no norte do sitio do dito Joaquim
Morato do Canto, e a quadro do mar, correndo pela dita arvore – Figueira, -- até
o Rio Indaiahi, cujas terras dá para a dita povoação sem alguma pensão, ou fôro,
livre conforme as possuia, sem por ellas querer preço algum por ser para o
serviço de S.Mage. Fidelissima que Deus Guarde em quem espera premio que o
mesmo Senhor for Servido.” 29
Essa doação foi confirmada pela carta de Sesmaria, passada a 13 de maio de 1768,
registrada no Livro de Sesmaria, Patentes e Provisões:
“D.Luiz Antonio de Sousa, etc. Faço saber aos que esta minha carta de Sesmaria
virem q. attendendo a me representarem por sua petição os moradores de
Ararapira, ... q. elles Suplicantes querião dar principio a Sua Igreja e como não
29
Trecho do têrmo de doação de terras para a fundação do povoado de Ararapira, registrado no
livro de Atas da Câmara de Cananéia de 1767. Transcrito num artigo de A.Paulino de Almeida,
Sabaúna, Vila Nova da Lage e Ararapira, publicado na Revista do Arquivo Municipal, n.CXLVII, São
Paulo, 1952.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
89
tinhão possibilidade pa.fazerem patrimonio a Igra.e sem isso se lhes não concedia
licença do Juizo Eclesiastico pa. se benzer a da. Igra.; me pedião lhes concedesse
em nome de Sua Mage. duzentas e dez braças de terra q. Joaqm. Morato e Sua mer.
Doarão a Sua Mage. pa. A nova Povoação, e hua casa q. se achava feita na mesma
Povoação q. os novos moradores fizerão pa. Recolher as ferramentas e mais
pertences de Sua Mage.; cuja terra e casa ficarião por patrimonio da Igreja
daquella nova Povoação, .... Hei por bem dar de Sesmaria
em nome de Sua Mage. como por esta o faço em virtude do poder q. Sua Mage.
me há concedido ..., aos moradores da Nova Povoação de Ararapira, duzentas e
dez braças de terra declaradas na escriptura de doação q. dellas fez a Sua Mage.
Joaquim Morato, as quaes se não poderão vender em tempo algum, por qualquer
razão que haja nem transpassar a outro sem expressa ordem do mesmo senhor e
só servirão para patrimonio da dita Igreja na forma acima declarada, e logo q. de
todo estiver formada a referida igra., e congregados os moradores de modo quqe
já tenhão de cincoenta vizinhos pa. cima, mandarão confirmar esta ma Carta por
Sua Mage. e antes de tomar das ditas terras posse, as farão medir e demarcar
judicialmte., ... , pa. q. assim se evitem duvidas pa. o futuro e não serão obrigados
os moradores desta Nova Povoação a pagar tributo algum ou pensão a Joaqm.
Morato, como dono que foi das referidas terras porqto. Sua Mage. quando as
concede de Sesmaria sempre lhe põe a clausula de q. havendo de se formar ali
algua Va. Se poderão fazer livremente, sem ser precizo intervir o dono a quem se
concedeu. Pelo que ordeno ... 30
Já a fundação de vilas ou a passagem de um povoado a vila obedecia à organização
municipal portuguesa, de origem romana 31 , segundo o qual aos núcleos urbanos eram
atribuídas certas funções político-administrativas e judiciárias.
Ao donatário ou capitão-mor competia, sempre em nome do Rei, conceder terras para
as fundações desses núcleos e junto a eles nomear seus representantes.
30
31
Transcrito no mesmo artigo citado na nota anterior.
Os municípios romanos haviam sido uma das formas de administração das províncias
conquistadas, correspondendo a cidades cuja autonomia de organização era reconhecida pelo Império,
que se limitava a cobrar os impostos.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
90
“O poder municipal compunha-se da Alcaidaria e do Conselho. Em virtude do
que dispunham os forais, as alcaidarias esuas rendas foram atribuídas como
privilégio aos donatários. Surgiram, dêsse modo, os capitães das vilas, os quais,
subordinados ao capitão-mor, constituíram no seu conjunto o esquema de
contrôle e direção dos donatários.
Papel de muito maior importância foi desempenhado pelos Conselhos no Brasil.
Estes eram compostos por vereadores, cujo número variava conforme a
importância da povoação. Sua eleição se fazia de forma indireta, por meio de um
colégio eleitoral, de seis membros escolhidos entre os “homens-bons”, categoria
da qual estariam excluídos os oficiais mecânicos, judeus, degredados e
estrangeiros.” (Reis Filho, 1968) 32
Ao se estabelecer uma vila (raramente uma cidade) delimitava-se o seu termo, a área
abrangida pelo novo município.
“A delimitação da área do novo município, de seu termo, constituía uma das
providências a serem tomadas e quiçá, tendo em vista os interesses diretos dos
habitantes e dos concessionários de terra em toda a região, a mais delicada.”
(Marx, Murillo, 1991, pg.67)
Além do termo, delimitava-se o rossio, na origem a área comum, servindo como
pasto de animais e área de coleta de lenha e que, em princípio, não poderia ser cedida.
No entanto o rossio passou a ser considerado também como área de expansão e essa
dupla função de área de uso comum e, ao mesmo tempo, área suscetível de ser
aforada para novos moradores foi origem de indefinições quanto a sua administração
e às competências para decidir sobre seu uso. O rossio era administrado pelo
Conselho 33 e, com o tempo, passou-se a confundir bem comum com bem do Conselho
e este passou a dispor das áreas de rossio para cessão a vários títulos.
32
Obviamente os escravos também não estavam na categoria dos homens-bons. Mas também
estavam fora dessa categoria de assalariados.
33
“...e de mais ... se dará ao Conselho hua sismaria de coatro legoas em quadro que fazem
dezeseis legoas coadradas juntas ou divididas a qual Sismaria rendapara as despezas publicas e seja
administrada pellos officiaes da Câmara que poderão aforala por partes aos moradores pondolhes o
competente foro...”. Trecho da Carta Régia de D.João V, elevando à categoria de Vila o Lugar do Iço.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
91
“... rocio, logradouro público por excelência do qual advêm em princípio vias e
praças públicas e os terrenos concedidos ou hoje vistos como particulares,
também ele conhecendo contínuas dúvidas quanto a sua extensão, demarcação e,
especialmente, sua efetiva posse e utilização.” (Marx, Murillo, 1987, pg.158)
A Carta do Rossio de São Paulo foi outorgada em 28 de maio de 1598, pelo
Governador Martins Garcia sendo “de seis tiros de besta em quadra, que
posteriormente transformou-se em seis tiros de canhão, a começar do Pateo do
Colégio” (Coe [1983?], pg. 209). O rossio de São Paulo só foi demarcado no século
XVIII, por insistência dos moradores.
O sistema sesmarial de distribuição das terras para a produção colonial foi assim
complementado por práticas de assentamento nas aglomerações urbanas marcadas
pela delimitação bastante frouxa dos direitos, individuais e comuns, relativos à
ocupação do solo. Na origem dessas práticas encontrava-se a sobreposição de duas
estruturas administrativas: a nomeada pelo reio e em nome dele, formada pelos
capitães-mor, capitães das vilas e conselhos, e a eclesiástica que se manifestava na
fundação dos povoados, na gestão do patrimônio da igreja, na subdivisão em
freguezias e paróquias. Esta sobreposição, ao mesmo tempo em que permitiu o
assentamento de pessoas sem títulos de propriedade mesmo depois da instituição
formal destes, também impediu que as novas regras sobre ocupação do solo,
decorrentes da formalização da propriedade, fossem claramente definidas, persistindo
durante muito tempo (alguns remanescentes até hoje) “diretos” e relações que
conflitam com o próprio conceito de propriedade.
4.4 Impostos
(De cópia fornecida pelo Prof. Murillo Marx no curso de pós-graduação Apropriação da terra e trama
urbana no Brasil, FAUUSP, 1994).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
92
Quanto à tributação, os impostos e taxas tinham, explicitamente, a finalidade de
retirar do Brasil o máximo de excedente para proveito da Metrópole, e a forma mais
eficiente para isto variava, conforme a época e o produto, entre sistemas de dízimos e
quintos sobre a produção 34 e impostos ligados à comercialização e armazenamento.
Não havendo nenhuma preocupação com uma administração pública voltada para a
organização do espaço e da produção para consumo interno, também não havia
impostos significativos sobre a propriedade imobiliária ou sobre o uso da terra
produtiva.
No início do século XIX, já com o Brasil como sede do reino, começa a ser esboçada
uma estrutura tributária e são instituídos diversos impostos. São dízimos de produção,
direitos aduaneiros de importação e exportação, direitos sobre diversos artigos
produzidos e outros impostos e taxas, entre os quais aparecem alguns relativos a
imóveis:
- taxa sobre engenho de açúcar
- taxa sobre o rendimento anual de imóveis urbanos
- sisa, imposto sobre a venda de imóveis urbanos 35 .
Vários atos de D.João VI tratam de tributos que se relacionam com direitos de
propriedade 36 :
34
Mesmo esses eram variados, conforme as dificuldades de controle sobre a produção e as
possibilidades de sonegação. Simonsen (1937, pg 276-277) se refere às diversas formas de tributação
sobre o ouro nas regiões de mineração:
quintos, parte retirada do produto a ser exportado; exigia a instalação de casas de fundição
finta, montante fixo anual, por região mineradora
por batéia, imposto sobre a quantidade de batéias empregadas na mineração (batéias são as
gamelas de madeira com que se recolhe a areia do fundo do rio e na qual se lava essa areia e se separa
o outro)
de capitação (per capitã), imposto por escravo empregado na mineração.
35
Simonsen (1937, pg 413 e 414). Vale lembrar, no entanto, que em Portugal já existia a sisa
como imposto sobre transmissão de direitos fundiários desde, pelo menos, o final do século XIV.
(Faoro, 1925).
36
Simonsen (1937, pg 458) referindo-se a Max Fleiuss, História Administrativa do Brasil.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
93
21 de janeiro de 1809 – “Alvará concedendo aos habitantes do Brasil o privilégio
de não serem executados na propriedade de seus engenhos, fábrica ou lavoura, e
sim em uma parte dos rendimentos”.
3 de junho de 1809 – “Alvará impondo o tributo de décimos aos prédios urbanos
do Brasil”.
3 de junho de 1809 – “Alvará estabelecendo o direito de sisa no Brasil”.
26 de abril de 1811 – “Decreto isentando de décima por 10 anos aos que
edificarem casas na Cidade Nova do Rio de Janeiro”.
2 de outubro de 1811 – “Alvará declarando o de 3 de junho de 1809 para que a
sisa das compras dos bens de raiz do Brasil se pague a prazos, como se pagar a
preços”.
O imposto de décimos aos prédios urbanos é citado por Raquel Glezer 37 como
Décima Urbana, instituído por Alvará em 27 de junho de 1808. c
Correspondia a um imposto de 10% sobre o rendimento líquido dos prédios urbanos.
O mesmo Alvará definiu como prédios urbanos os que estivessem nas demarcações
das Câmaras, o que exigia não só ter alguma clareza sobre essas demarcações como
também manter uma relação dos prédios sujeitos ao imposto.
Não está claro se essas demarcações das Câmaras deveriam corresponder aos termos
originais ou se as Câmaras teriam poderes para estabelecê-las. Pela documentação
levantada por Glezer e por outra semelhante citada num livro sobre “grilagem” de
terras em São Paulo 38 , esse novo “perímetro urbano” veio complicar um pouco mais
a já confusa sobreposição de datas, termos, sesmarias, rossio etc.
Às vésperas da Independência alguma forma de imposto sobre a propriedade
imobiliária já fazia parte das fontes normais de receita mas esse imposto era mínimo
em termos de valor. Segundo Simonsen 39 , a receita geral orçada para o Brasil em
1820 previa menos de 365:000$ de receitas diversas sobre um total de 9.971:000 $ (o
37
38
39
Glezer (1992).
Coe [1983?]. Ver nota 20.
Simonsen (1937, pg 424 e 425).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
94
que corresponde a 3,66%). Essas “receitas diversas” arrolam correio, papéis selados,
pesca de baleia, imposto territorial etc.
Os núcleos urbanos ainda se mantinham graças à administração, aforamento e venda
dos bens do Conselho (isto é, dos bens da comunidade).
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CAPÍTULO 5:
95
A LEI DAS TERRAS
E O FIM DA PRODUÇÃO ESCRAVA
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
96
5 A LEI DAS TERRAS E O FIM DA PRODUÇÃO ESCRAVA
“Antes bons negros da costa da Africa para felicidade sua e nossa, ...
Antes bons negros da costa da Africa para cultivar os nossos campos
férteis do que ... empresas mal avisadas, muito além das legítimas forças
do país, as quais perturbando as relações da sociedade, produzindo uma
deslocação de trabalho, têm promovido mais que tudo a escassez e alto
preço de todos os víveres.” 1
A história oficial brasileira nos apresenta a Declaração de Independência como um
ato pouco contestado, quase um acordo diplomático, resultado não de uma revolução
ou tomada de poder pela força mas de uma simples divisão familiar de tarefas: D.João
voltou para Portugal e D.Pedro ficou tomando conta do Brasil. De fato, a
permanência de D.Pedro, mesmo contra as ordens de Lisboa, seguida da Declaração
de Independência, abriu um longo período de lutas em que se misturaram confrontos
entre portugueses e brasileiros e entre republicanos e monarquistas, intrigas
palacianas para manter privilégios (mesmo à custa da independência) e revoltas
populares por uma reestruturação da ordem social. Tudo sob a pressão dos
comerciantes e conselheiros ingleses.
Para a elite colonial, cujos interesses giravam em torno da exportação de produtos
primários, tratava-se de assegurar a continuidade da reprodução social nas novas
condições de nação independente. Para tanto o desafio imediato a partir de 1822 foi
montar uma administração capaz de fazer funcionar de maneira autônoma uma
sociedade rigidamente estruturada por vínculos de sujeição, externos e internos,
1
Do relatório da comissão de inquérito sobre a situação financeira do país, nomeada pelo
ministro Ângelo Ferraz em 1859. Relatório transcrito por Caio Prado Júnior (1957a, pg. 87/88).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
97
consolidados por três séculos de exploração colonial. O aparelho de Estado esboçado
no período de D.João VI tivera como objetivo justamente a manutenção da estrutura
de subordinação.
Apesar das turbulências e oscilações quanto ao predomínio dos diversos grupos de
poder, principalmente durante o primeiro Império e a Regência, não chegou a haver
uma ruptura institucional e acabaram prevalecendo (já então!) situações de
compromisso que, afinal, apenas consolidavam a hegemonia dos senhores de terras e
a manutenção do status quo. Werneck Sodré assim descreve o compromisso da
Independência:
“o Brasil seria país autônomo, estruturando a sua autonomia sob o domínio da
classe senhorial, os proprietários de terras e de escravos; permaneceria intocada a
estrutura de produção, pois; o Brasil seria governado por um príncipe, a que se
dera o título de Imperador, ligado a Portugal por ser filho de Portugal, o que era
aspecto meramente formal, mas também por ser filho do rei de Portugal e
herdeiro do trono português, o que tinha significação muito mais séria e colocaria
em posição de desconfiança, no país recém autônomo, o seu próprio governante.”
(Sodré, 1986, pg.172)
As lutas de emancipação se estenderam até o 2° período da Regência, quando ficou
definido que a estrutura da nova sociedade brasileira permaneceria a mesma da
colônia, mudando para tanto as condições de sua reprodução: a elite ligada ao
latifúndio continuava como classe dominante, substituindo-se as regras de exploração
ditadas pela Corte portuguesa pela “remuneração do capital estrangeiro”, “pagamento
da dívida externa” ou “dependência do comércio exterior” como fatores de
expatriação de excedente. Havia uma diferença, no entanto: a necessidade, nova, de
escamotear o fato do interesse da elite (brasileira) estar vinculado com interesses
externos ou a necessidade de fazer passar os interesses de particular, o tratamento
dado à propriedade da terra e à sua tributação refletem essa necessidade. Até hoje é
característica dessa organização o fato de boa parte da legislação relativa ao controle
fundiário ser inaplicável ou apenas parcialmente aplicável, apesar de ser formalmente
calcada em moldes capitalistas.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
98
5.1 A primeira Constituição do Brasil
O Império se iniciou com características conservadoras e os primeiros confrontos
ocorreram logo na elaboração da constituição, culminando com a dissolução da
Assembléia de representantes e a nomeação de outra, disposta a produzir um texto
mais a gosto da corte.
A Constituição Política do Império do Brasil, jurada a 25 de março de 1824 e que
vigiu durante todo o Império, trata com certa ênfase dos direitos individuais mas
omite qualquer referência à organização territorial, diz muito pouco sobre finanças
públicas em geral, menciona os impostos apenas “em passant” e deixa totalmente
indefinida a base de lançamento e arrecadação. É possível que essa base fosse a
mesma que já vinha do tempo da Colonia e que havia sido consolidada por diversos
atos de D.João VI e, não havendo contestação que pusesse em risco o sistema, não
houve necessidade de levantar a questão. Simplesmente “deixa como está” já que
havia problemas mais prementes a serem resolvidos (como o papel da Assembléia e
suas relações com o Imperador) para garantir a manutenção do poder e das relações
de produção na nova situação institucional.
Sendo uma constituição calcada em moldes burgueses, foi afirmado o direito de
propriedade, junto com a única menção à distribuição da carga tributária, no Título
8°, Das Disposições Gerais, e Garantias dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos
Brazileiros:
Art.179 – A inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos
Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade,
é garantida pela Constituição do Império pela maneira seguinte
I
Nenhum Cidadão póde ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma
cousa, senão em virtude da Lei.
...
Luisa Battaglia
XV
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
99
Ninguém será exemplo de contribuir para as despezas do Estado em
proporção dos seus haveres.
...
XXII
É garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o
bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da
Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor
della. A Lei marcará os casos, em que terá logar essa única excepção, e
dará as regras para se determinar a indemnisação.
Não há nenhuma referência ao próprio conceito de propriedade (com o que parece
não haver dúvidas quanto à sua definição) ou ao significado da plenitude com que o
direito de propriedade é garantido 2 . Também não há menção alguma sobre imposto
imobiliário ou sobre fontes próprias de recursos das administrações municipais.
Essa última questão foi tratada alguns anos mais tarde por lei de 1° de outubro de
1828, que “dá nova fórma às Camaras Municipaes, marca suas atribuições, e o
processo para sua eleição, e dos Juízes de Paz”. Essa lei tem um título inteiro sobre
despesas e cita como fontes de receita as multas por desobediência às posturas
(Art.72) e as rendas provenientes da venda, aforamento, arrendamento ou
administração dos bens do Conselho (isto é, do patrimônio municipal). Essas rendas
não são mencionadas diretamente mas apenas pelas regras que a elas se aplicam:
Art.42 – Não poderão [os Vereadores] vender, aforar, ou trocar bens immoveis do
Conselho sem autoridade do Presidente da Província em Conselho, emquanto se
não installarem os Conselhos Geraes, e na Côrte sem a do Ministro do Imperio,
exprimido os motivos, e vantagem da alienação, aforamento ou troca, com a
descripção topographica, e avaliação por peritos dos bens que se pretendem alienar,
aforar, ou trocar.
2
Um século e meio mais tarde esta questão continua em aberto: a Constituição de 1988 se
omite completamente sobre o conceito de propriedade da terra e o substitui por uma menção vaga à sua
“função social”. São frequentes as discussões jurídicas sobre definições de propriedade e função social
e, principalmente, sobre as limitações ao direito de uso e ocupação fundiária. “O conceito de função
social da propriedade é ainda muito mal definido na doutrina, não raro é obscurecido confusão com os
sistemas de limites e restrições da propriedade.” (Silva, J.A., 1981, pg.93/94).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
100
Art.43 – Obtida a faculdade, as vendas se farão sempre em leilão publico, e a quem
mais der, excluidos os Officiaes que servirem então nas Camaras, e aquelles que
tiverem feito a proposta, e exigindo-se fianças ideoneas, quando se fizerem a
pagamentos, por se não poderem realizar logo a dinheiro, pena de responsabilidade
pelo prejuizo d’ahi resultante.
Art.44 – Da mesma fórma, e com as mesma cautelas, e responsabilidade prescriptas
no Artigo antecente, se farão os arrendamentos dos bens dos Conselhos; mas estes
contractos poderão as Camaras celebrar por deliberação sua, e serão confirmados
pelos Presidentes das Provincias em Conselho, e na Côrte pelo Ministro do
Imperio.
Art.45 –Quando acharem não ser a prol dos Conselhos, que se alienem, ou arredem
os bens, mandal-os-hão aproveitar, pondo neles bons administradores, para que
venham a melhor arrecadação, ficando os ditos Vereadores responsaveis pela falta
de execção.
Continuava portanto o sistema colonial em que os recursos da administração local
provinham do patrimônio imobiliário concedido ao núcleo urbano quando do seu
reconhecimento oficial e administrado pelo Conselho. As cidades e vilas continuaram
sustentando seus gastos graças a esse patrimônio imobiliário que foi sendo parcelado
e cedido a diversos títulos ao longo dos anos.
O Acto Addicional de 12 de agosto de 1834 (lei n° 16) que alterou a Constituição de
1824 foi outro resultado de compromisso, de mútuas concessões entre as partes que
disputavam o poder durante o período da Regência. Esse mesmo ato, acertando uma
trégua e portanto o reforço das posições conservadoras, marcou o início de um
período de “regresso” 3 em que o Estado foi definitivamente caracterizado como
instrumento da classe de proprietários de terras e de escravos, com a exclusão de
qualquer caráter burguês.
“As reivindicações populares mais sentidas ficaram fora do texto da reforma, que
se esmerou em medidas meramente políticas ou administrativas, limitando
consideravelmente os seus efeitos.” (Sodré, 1986, pg.172)
3
Neste movimento de “regresso” se insere a Declaração da Maioridade em 1840.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
101
As reivindicações “populares” citadas por Werneck Sodré eram de fato
reivindicações burguesas por uma atuação mais decidida do Estadod em favor da
formação de um mercado de trabalho e da proteção à indústria nascente.
Como parte das “medidas meramente políticas ou administrativas” o Acto Addicional
estabeleceu as competências das Assembléias Legislativas Provinciais, e normas
sobre arrecadação e gastos públicos acenando, pela primeira vez, com a necessidade
de impostos para as “despezas municipaes e provinciaes”.
Art.10 – Compete ás mesmas Assembléas legislar:
§5° Sobre a fixação das despezas municipaes e provinciaes, e os impostos para
ellas necessarios, com tanto que estes não prejudiquem as imposições geraes do
Estado. As Camaras poderão propôr os meios de occorrer ás despezas dos seus
municipios.
§6° Sobre repartição da contribuição directa pelos municipios da Provincia, e
sobre a fiscalisação do emprego das rendas publicas provinciaes e municipaes, e
das contas da sua receita e despeza.
As despezas provinciaes serão fixadas sobre orçamento do Presidente da
Provincia, e as municipaes sobre orçamento das respectivas Camaras.
Apesar do avanço quanto ao conhecimento da necessidade de impostos, esses ainda
são citados sem especificação e não parece ter sido estabelecido qualquer tipo de
tributo sobre o domínio fundiário. O que transparece é a necessidade de buscar fontes
de receita alternativas pois nestas alturas o patrimônio imobiliário dos núcleos
urbanos já devia ter sido bem dilapidado e, por outro lado, o sistema de foros,
laudêmios e enfiteuse tornava-se inviável nas novas condições de produção e de
urbanização. Os imóveis já eram normalmente objeto de transações comerciais e de
hipotecas, o que exigiu diversos atos de regulamentação na década de ’40:
20 de outubro 1843 – Lei 317 sobre o registro de garantia hipotecária.
14 de novembro 1846 – Decreto 482 sobre a transmissão de imóveis e as
garantias hipotecárias.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
102
1850 – Regulamento 737 sobre terras devolutas.
E finalmente a Lei 601/50, Lei das Terras Devolutas, instituiu as novas regras de
aquisição de domínio sobre as terras.
5.2 A Lei das Terras Devolutas.
A Lei 601 de 18 de setembro de 1850 é um marco na história da propriedade
fundiária no Brasil. Dada pelo Imperador D. Pedro II essa lei
“Dispõe sobre as terras devolutas no Imperio, e acerca das que são possuidas por
titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por
simples titulo de posse mansa e pacifica; e determina que, medidas e demarcadas
as primeiras, sejam ellas cedidas a titulo oneroso, assim para emprezas
particulares, como para o estabelecimento de colonias de nacionaes e de
extrangeiros, autorizado o Governo a promover a colonização extrangeira na
forma que se declara.” 4
Com ela se encerra, formalmente, o período da conquista, os três séculos e meio em
que as terras foram sendo ocupadas, doadas e cedidas pelos mais diversos títulos e
formas.
Em 1822, por ato de D.Pedro ainda Príncipe Regente (Resolução de 17 de julho),
havia sido abolido o regime de sesmarias. Entre 1822 e 1850, coincidindo portanto
com o processo de consolidação da estrutura social da nova nação, a posse foi o único
método legítimo de aquisição de domínio sobre terras devolutas. A intenção a este
respeito está clara na provisão de 14 de março de 1822 (portanto antes da Resolução
que aboliu as sesmarias) que diz:
4
Na íntegra, em anexo.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
103
“Hei por bem ordenar-vos procedais nas respectivas mediações de demarcações,
sem prejudicar quaesquer possuidores, que tenhão effectivas culturas no terreno,
porquanto devem elles ser conservados nas suas posses, bastando para título as
reaes ordens, porque as mesmas posses prevaleção ás sesmarias posteriormente
cencedidas.” (Transcrito de Lima, 1954, pg.48)
Considerando a organização social baseada no trabalho escravo e na subserviência e o
baixo nível de consumo da esparsa população livre, essa institucionalização da
simples ocupação, esse gesto magnânimo dizendo “a terra está aí, quem quizer que
dela se aproprie”, obviamente não tinha o sentido de estruturar uma produção em
pequenas propriedades mas, ao contrário, o de permitir tanto a reserva privada de
grandes áreas, sem as complicações burocráticas das cessões de sesmarias, quanto a
invasão das que porventura estivessem ocupadas indevidamente (isto é, perturbando a
expansão das culturas dominantes). Foi o que aconteceu.
“... a posse de fato ... só fez aguçar o problema da excessiva concentração da
terra na mão de muito poucos, embora representasse vistas grossas a
generalizadas invasões.” (Marx, Murillo, pg.103) 5
Ao fim dessas três décadas de transição a Lei 601 regulamentou as condições de
posse e a partir de então passou-se a reconhecer a propriedade, mediante título, como
forma corrente de domínio sobre a terra. Isto é colocado logo no início claramente,
apesar da exceção que aparece em seguida.
Art.1° Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro título que
não seja o de compra.
Exceptuam-se as terras situadas nos limites do Imperio com paizes estrangeiros
em uma zona de 10 leguas, as quaes poderão ser concedidas gratuitamente.
As novas regras faziam-se necessárias face à iminente abolição da escravatura cujo
processo foi iniciado no mesmo ano de 1850 com a efetiva proibição do tráfego de
5
Parece deslocada a ressalva. Não diria embora “representasse vistas grossas a invasões” pois o
que a Resolução de 17 de julho de 1822 fez foi justamente permitir invasões pela oficialização do
processo de posse, antes reservado apenas à subsistência dos trabalhadores sem condição de invadir o
que quer que fosse. De fato eram parte do próprio processo de concentração justamente apontado por
Murillo Marx.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
104
escravos. De fato, se a autorização da posse beneficiaria principalmente os senhores
de escravos porque eram os únicos a poder ocupar e defender vastas áreas de terra,
com a abolição de escravos essa defesa já não seria viável sem o apoio do Estado,
através do aparato jurídico (reconhecimento de título) e policial (garantia desse
reconhecimento). Se a população de escravos e agregados era suficientemente
submissa para não se constituir em ameaça para a estrutura fundiária, a perspectiva de
imigração em larga escala de trabalhadores livres representava o perigo, claramente
exposto por Wakefield em seu trabalho sobre “colonização sistemática” 6 , desses
imigrantes preferirem ocupar e cultivar a própria terra em vez de se empregar nas
grandes fazendas.
“Lá onde a terra custa quase nada e os homens são livres, cada um podendo obter
à vontade um pedaço de terra para si, não somente o trabalho é muito caro em
relação à parte do trabalhador na produção, mas é difícil obter trabalho
combinado, por qualquer preço.” [Wakefield, 1833, pg.247] 7
Um discípulo de Wakefield aponta para a solução:
“Nos velhos países civilizados o trabalhador, apesar de livre, é dependente do
capitalista por uma lei natural [!]; nas colônias essa dependência deve ser criada
por meios artificiais.” (Citado por Marx, 1867, 1° Livro, pg.563)
Tendo constatado que não há capitalistas se não houver assalariados, Wakefield
apresentou um plano de “colonização sistemática” visando resolver o problema da
falta de assalariados nas colônias: o governo deveria vender as terras públicas (isto é,
ainda não apropriadas) a um preço suficientemente alto para que os novos imigrantes
fossem obrigados a trabalhar durante vários anos como assalariados antes de poder
adquirir a própria terra.
“O governo deve pois vender a terra virgem a um preço artificial, oficialmente
fixado por ele, sem nenhuma relação com a lei da oferta e da demanda. O
imigrante será assim obrigado a trabalhar um bom tempo como assalariado antes
6
Wakefield (1833).
7
Citado por Marx (1867, 1° Livro, pg.561).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
105
que ele consiga ganhar dinheiro suficiente para comprar uma terra e tornar-se
cultivador independente.” (Marx, 1867, 1° Livro, pg.564)
Wakefield visava principalmente a Austrália. Apesar de não ter dado bons resultados
nas colônias inglesas onde foi aplicada, pois os fluxos migratórios simplesmente
continuaram desviando para os E.U.A. 8 , essa “colonização sistemática” orientou a
instituição da Lei das Terras Devolutas no Brasil, em 1850.
Ao mudar as regras do jogo a Lei 601 consolidou o status quo, de extrema
concentração da terra em latifúndios, regulamentando o reconhecimento das
propriedades oriundas, seja de sesmarias e outras concessões, seja de posse. Os
posseiros passaram a ser obrigados (mediante pagamento) a tirar títulos de
propriedade para ter sua posse reconhecida, o que exigia um nível de conhecimento e
de articulação social geralmente muito acima das possibilidades dos caboclos,
plantadores der roças. Sem título, esses continuaram à mercê dos avanços dos
latifúndios e, a partir do fim do século, das empresas agrícolas e colonizadoras.
Para passar os títulos o Governo designou repartições provinciais.
Art.11 Os posseiros serão obrigados a tirar titulos dos terrenos que lhes ficarem
pertencendo por effeito desta Lei, e sem elles não poderão Hypothecar os
mesmos terrenos, nem alienal-os por qualquer modo.
Esses titulos serão passados pelas Repartições provinciaes que o Governo
designar, pagando-se 5$ de direitos de Chancellaria pelo terreno que não exceder
de um quadrado de 500 braças por lado, e outrotanto por cada igual quadrado que
de mais contiver a posse; e além disso 4$ de feitio, sem mais emolumentos ou
selho.
8
Nos E.U.A. o Homestead Act, em 1862, foi um incentivo à ocupação e ao povoamento.
Defendida como a solução para os crescentes problemas de desemprego e de congestionamentos nas
grandes cidades, essa lei previa a distribuição das terras públicas a todos os que quisessem se tornar
produtores independentes. Na prática não resolveu nenhum dos problemas sociais apontados mas foi
parte da estratégia da “marcha para o Oeste”, atingindo a meta de uma rápida expansão do espaço
econômico e reforçando o ideário sobre propriedade e liberdade individual. Para uma comparação
entre Homestead Act e a Lei das Terras Devolutas, ver Costa (1987).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
106
Essas declarações de posse e a emissão dos correspondentes títulos, poderiam ter sido
a base de um cadastro de terras privadas e um esboço de registro de imóveis.
Art.13 O mesmo Governo fará organizar por freguezias o registro das terras
possuidas, sobre declarações feitas pelos respectivos possuidores, impondo
multas e penas àquelles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas
declarações, ou as fizerem inexactas.
As terras devolutas deveriam ser medidas e receber destinação: uma parte reservada
para os indígenas, para povoações, estradas ou estabelecimentos públicos, e para a
construção naval (reserva de madeira), e o restante a ser vendido em lotes de 500
braças de lado 9 , ao preço de meio real a dois réis por braça quadra. Os recursos assim
obtidos deveriam ser aplicados na medição de terras e na “importação” de colonos.
Art.19 O producto dos direitos de Chancellaria e da venda das terras, de que
tratam os arts. 11 e 14 será exclusivamente applicado: 1°, à ulterior medição das
terras devolutas e 2°, à importação de colonos livres, conforme o artigo
precedente.
Por pressão dos grandes proprietários foi retirada da lei qualquer menção a impostos
sobre a terra, previstos na versão original.10
Ao proibir “as aquisições de terras devolutas por outro título que não seja o de
compra” a Lei 601 fez mais do que alterar procedimentos burocráticos. Com um
único ato todas as terras do Brasil foram transformadas de áreas formalmente
comuns, passíveis de serem apossadas e concedidas para produção ou assentamento,
em propriedade. Impôs-se de imediato a necessidade de distinguir entre a
“propriedade pública” e a “propriedade privada”, especialmente nos núcleos urbanos,
como bem descreve Murillo Marx 11 . De fato se antes de 1850 a terra era domínio da
Corôa (brasileira que a herdara da portuguesa) e poderia ser apenas cedida para uso,
os limites entre o que havia sido cedido e o que continuava de uso comum podiam ser
9
Uma braça corresponde a 2,2 m.
10
Glezer (1992).
11
Marx, Murillo (1991).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
107
tênues e eram mutáveis conforme as novas necessidades. Nas aglomerações urbanas,
por exemplo, as áreas do rossio podiam ser ocupadas pelos novos moradores ou pela
expansão de alguma atividade, sendo do interesse comum o adensamento da
população, a construção de novos edifícios ou o cultivo de áreas para abastecimento.
Não era necessária (nem possível) a distinção entre passagem, local de encontros ou
área para guardar a carroça ou amarrar o cavalo e, não havendo propriedade mas
apenas direito de uso (mesmo permanente e hereditário) não havia como dar à terra
outro uso que não aquele para o qual havia sido cedida. Ao impor a obrigatoriedade
da compra/venda das terras devolutas e os títulos de propriedade a todas as terras do
país, o governo se colocou na mesma posição de qualquer proprietário, sujeito às
mesmas regras de definição de limites, de aquisição e transmissão etc. A terra passou
a ser negociável diretamente, enquanto pedaço definido de chão e não mais enquanto
direito de uso, exigindo nos núcleos urbanos a demarcação de “alinhamentos” e
“lotes” e eliminando as “brechas”, as áreas de uso mal definido passíveis de serem
ocupadas por mais um morador ou servir de pasto para mais um cavalo. As parcelas
de chão passaram a ser negociáveis (e portanto devem ser definidas) antes e
independente da decisão quanto ao seu uso, donde a regularidade monótona dos
“loteamentos” urbanos que começaram a surgir no fim do século XIX e continuam
sendo a principal forma de expansão das cidades brasileiras.
A Lei 601/1850 foi regulamentada pelo Decreto 1318 (30//1/1854) que montou a
estrutura operacional para o seu cumprimento. Criou uma Repartição Geral das
Terras Públicas, subordinada ao ministro dos Negócios do Império, com amplas
atribuições que iam desde a formulação de políticas de distribuição e reserva de terras
até o estabelecimento de normas de mediação e a fiscalização das cessões e registros.
Também foram criadas repartições nas províncias, encarregadas de supervisionar as
medições e registros das terras. Por sua vez as Províncias seriam divididas em
distritos de medição para o trabalho de “escreventes, desenhadores e agrimensores”,
subordinados a um inspetor.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
108
O mesmo decreto também pôs formalmente fim ao período de lutas de conquista com
as populações indígenas que passaram a ser tuteladas pelo Estado e confinadas em
reservas.
Art.72 Serão reservadas terras devolutas para colonização e aldeamento de
indígenas nos distritos onde existirem hordas selvagens.
Art.75 As terras reservadas para colonização de indígenas, e por elas distribuídas,
são destinadas ao seu usufruto; e não poderão ser alienadas enquanto o Governo
Imperial por ato especial não lhes conceder o pleno gozo delas, por assim
permitir o seu estado de civilização.
Apesar das novas regras de titulação, o Decreto 1318 conservou a prática do
aforamento nos casos de fundação de povoações, ainda reconhecendo a área de
domínio das Câmaras, o direito à concessão dessas áreas e a terra de uso comum.
Art.77 As terras reservadas para fundação das povoações serão divididas,
conforme o governo julgar conveniente, em lotes urbanos e rurais ...
Depois de reservados os lotes que forem necessários para aquartelamentos,
fortificações, cemitérios (fóra do recinto das povoações) e quaisquer outros
estabelecimentos e servidões públicas, será o restante distribuído pelos
povoadores, a título de aforamento perpétuo, devendo o foro ser fixado sob
proposta do diretor geral das terras públicas, e sendo sempre o laudemio em caso
de venda a quarentena.
Apesar de perdurarem os foros e as relações de enfiteuse essas passaram a ser
exceções, cada vez mais dominadas pela forma de título de propriedade, negociável
como qualquer bem material. E cresceram cada vez mais os movimentos para
transformação dos direitos forais e enfitêuticos em títulos de propriedade.
Mais que a Lei 601, o Decreto 1318 reflete a necessidade de se estabelecer alguma
ordem na questão dos direitos de posse e propriedade das terras. Pela primeira vez se
fala em mapeamento:
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
109
Art.14 O inspetor é responsável pela exatidão das medições; o trabalho dos
agrimensores lhe será portanto submetido; e sendo por ele aprovado, procederá à
formação dos mapas de cada um dos territórios medidos.
Art.15 Destes mapas fará extrair três cópias: uma para a Repartição Geral das
Terras Públicas, outra para o delegado da província respectiva, e outra que deve
permanecer em seu poder, formando afinal um mapa geral de seu distrito.
Art. 16 Estes mapas serão acompanhados de memoriaes, contendo as notas
descritivas do terreno medido, e todas as outras indicações que deveram ser feitas
em conformidade do Regulamento especial das medições.
Também é ressaltada a obrigatoriedade do registro das terras possuidas, sendo os
Vigários das freguezias encarregados de receber as declarações.
Art.97 Os Vigários de cada uma das freguezias do Império são os encarregados
de receber as declarações para o registro das terras, e os incumbidos de proceder
a esse registro dentro de suas freguezias, ...
Art.98 Os Vigários ... instruirão a seus freguezes da obrigação em que estão de
fazerem registrar as terras que possuírem, declarando-lhes o prazo em que devem
fazer, as penas em que incorrem, e dando-lhes todas as explicações que julgarem
necessárias para o bom cumprimento da referida obrigação.
Art.99 Estas obrigações serão dadas nas missas conventuais, e publicadas por
todos os meios que parecem necessários para o conhecimento dos respectivos
freguezes.
Apesar dos objetivos de controle sobre a propriedade territorial por parte do Estado
expressos na legislação, é fácil imaginar as arbitrariedades e as imposições em defesa
dos interesses privados (grandes e pequenos) considerando a inexistência de uma
estrutura autônoma de controle, a precariedade das condições de medição (gente,
equipamento, transporte) e a enormidade das terras a medir. Ao nível institucional
essas arbitrariedades seriam facilitadas pela própria disparidade dos títulos a serem
reconhecidos ou não, impondo a necessidade de exame “caso a caso” e a
interpretação de uma legislação que se tornava confusa à medida em que tentava
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
110
resolver todos os casos. Considerem-se, por exemplo, os artigos 3°, 4°, 5° e 6° da Lei
601 (Anexo 1), que tentam definir os critérios de reconhecimento ou não de título de
propriedade privada e acrescentem-se os 36 do Capítulo III do Decreto 1318 (Anexo
2) que trata da “revalidação e legitimação das terras e modo prático de extremar o
domínio público e particular.”
A maneira como o Estado brasileiro dispôs do patrimônio nacional representado pelas
terras devolutas é um perfeito exemplo de alteração de regras formais, necessárias
para a manutenção do status quo. Se, por um lado, a Lei 601 institui uma forma de
titulação das terras mais adequada às necessidades das novas relações de produção,
por outro a falta de clareza da legislação subsequente (decretos, portarias, resoluções
etc.), a precariedade das condições de registro e a absoluta inexistência de referências
cadastrais e cartográficas confiáveis fizeram da aplicação da lei uma sucessão de
batalhas jurídicas e facilitaram todo tipo de negócios e violências com relação a
terras.
Grandes fortunas foram conseguidas no fim do século passado e começo deste com a
ocupação de terras indígenas 12 e os “programas de colonização” (em geral simples
doação de grandes glebas, financiamento a fundo perdido ou endividamento público
sobre empreendimentos privados) promovidos pelo governo. Esse assunto é vasto e a
documentação deve ser procurada, pacientemente, nos poucos registros paroquiais e
nas atas das Câmaras e Assembléias. Duas obras já citadas, os trabalhos de Raquel
Glezer (1992) e Paulo Coe [1983?], dão um vislumbre do caos de demarcações,
atribuições e direitos sobrepostos, condições ideais para especulações e apropriações
ilícitas.
5.3 Escravos e trabalhadores livres
12
As terras do aldeamento de S.Miguel, município de São Paulo, ainda hoje são objeto de
pendências judiciais.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
111
O processo de abolição arrastou-se, sob a crescente pressão da Inglaterra, durante
quase todo o século XIX, instituído por etapas para, supostamente, permitir a
substituição paulatina do escravo pelo trabalhador livre. De fato esse processo por
etapas, retardando e dificultando a formação de força de trabalho assalariada, apenas
evidenciou mais uma vez que os interesses da elite dominante estavam muito
distantes dos interesses que seriam os de uma burguesia nacional.
Não era a competição pelos menores custos de produção que justificava o apego ao
regime escravagista, uma vez que a produtividade do escravo é menor que a do
assalariado na produção de mercadorias 13 , mas sim a preocupação da classe
dominante em evitar uma reorganização social inteiramente baseada nos interesses da
acumulação capitalista, o que implicaria na perda de seus privilégios.
Como parte da estrutura social ligada aos engenhos e fazendas de gado havia se
formado uma classe de trabalhadores livres (isto é, não escravos), vivendo de
produção de subsistência e de serviços prestados aos senhores. Essa população
ocupou os interstícios e as áreas mal definidas entre as grandes propriedades, se
embrenhou nos matos, multiplicando roças além das fronteiras ocupadas pelos
engenhos e fazendas, ou se instalou em terras das sesmarias, em acordos de parceria
ou de serviços com os senhores, sempre sujeitos a expulsão sem aviso prévio.
As tentativas esparsas de povoamento por pequenos proprietários nunca prosperaram.
Antes da Lei das Terras grupos de trabalhadores provenientes de Minas Gerais se
apossaram de terras não florestadas no oeste do que é hoje o estado de São Paulo,
ocupando-as com criação de gado. Esses primeiros povoamentos foram engulidos
pelo avanço das grandes fazendas.
“... sem dinheiro, sem apoio político, pouco numerosos, os mineiros foram
incapazes de resistir aos fazendeiros de café, que seguiram suas pistas e
13
Mesmo Caio Prado Júnior, que em diversas ocasiões defende a permanência da mão de obra
escrava como uma imposição econômica, afirma que “de um modo geral” e de um ponto de vista
estritamente financeiro e contabilístico, o trabalho escravo, sendo as outras circunstâncias iguais, é
mais oneroso que o assalariado.” (Prado Júnior, 1959, pg.180)
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
112
começaram a derrubar a floresta. Esta segunda onde pioneira ... não teve
dificuldade em obter títulos de propriedade sobre imensos territórios, antes
reconhecidos como pertencentes aos criadores de Minas.” (Monbeig, 1951,
pg.109)
O mesmo Monbeig (1952, pg.211 ss) fala de propriedade enormes, com 30.000
alqueires de média, cobrindo todo o Estado de São Paulo.
“No Estado de São Paulo todas as terras são de propriedade particular, tanto as de
florestas como as de campos. Isso se deve à legislação fundiária, ao povoamento
da fase inicial e à perseverança dos grileiros.” (Monbeig, 1952, pg.211)
Por volta de 1850 a população escrava era de cerca de 2.500.000 e a livre de
5.500.000 pessoas 14 dentre as quais um contingente significativo de assalariados.
Face à concorrência dessa mão de obra assalariada a produção escrava tornava-se
cada vez mais insustentável, o que acabou levando à efetiva proibição do tráfego em
1850 e à abolição da escravidão em 1888, apesar dos fortes interesses ainda ligados à
sua manutenção.
Tais interesses haviam sido impostos à sociedade pelo viés da falta de mão de obra.
Com a expansão da cultura do café e a implantação da infraestrutura que a
acompanhava, crescera a demanda por trabalhadores, justificando a manutenção do
tráfego de escravos, única maneira então aceita de abastecer o mercado a curto
prazo 15 . Assim, apesar da baixa produtividade e dos inconveniêntes do trabalho
escravo face ao assalariado, o tráfego só parou por medidas efetivas de força,
principalmente por parte da Inglaterra. Mas nas discussões entre os diversos grupos
de interesse em torno da questão da abolição da escravidão, além do problema básico
da mão de obra para a economia em expansão, estava presente a preocupação com
14
15
Prado Júnior (1959, pg.346).
Na década que antecedeu 1850 (quando o tráfego já havia sido formalmente proibido e a
abolição já era previsível) as importações de escravos se intensificaram, sendo da ordem de 50.000 por
ano. Esse número caiu para 23.000 já em 1850 e para 3.000 em 1851, cessando definitivamente no ano
seguinte. O comércio de escravos era sem dúvida um negócio altamente lucrativo e chegou a
representar a metade do total das importações. (Prado Júnior, 1959, pg. 155).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
113
uma eventual alteração da estrutura social no caso do pleno assalariamento da
população.
Essas preocupações se manifestaram, mesmo depois de abolida a escravidão pelas
variadas formas de obtenção de trabalho, todas tentando fugir à simples relação
salarial. O Senador Nicolau de Campos Vergueiro, “figura prestigiosa na política do
país” 16 chegou a propor (e implantar) o que foi considerado uma forma intermediária
entre colônias de pequenos proprietários e o trabalho assalariado: a fixação de
colonos nas fazendas, trabalhando como subordinados, em regime de parceria. O
fazendeiro lhes comprava a colheita e de fato sua situação era semelhante à dos
escravos. Esse sistema foi largamente utilizado até mostrar-se inviável pela pouca
atração que exercia sobre os emigrantes europeus.
“Muito bem adaptado à mentalidade escravista das classes dominantes
brasileiras, um tal sistema apresentava contudo um inconveniente maior: não era
capaz de provocar uma imigração massiva. ... Foram necessários mais de 10 anos
para que os fazendeiros de café, obrigados pelas exigências da acumulação de
Capital, se decidissem a abandonar seus métodos pré-capitalistas e oferecer aos
trabalhadores condições de trabalho baseadas em contratos salariais, facilitando
assim a imigração.” (Silva,Sérgio, 1976, pg.43/44)
Os programas de colonização incentivados ou aprovados pelo governo 17 foram
tímidos e desarticulados, com poucos efeitos sobre o povoamento e a disponibilização
de mão de obra. No fim do Império o Governo propôs, sob a denominação de Burgos
Agrícolas, um projeto geral de colonização através da concessão de terras devolutas,
“com o fim de desenvolver a riqueza agrícola e industrial deste paiz”. Para ele foram
solicitados recursos (não aprovados) no orçamento da Agricultura para 1889. Mesmo
sem recursos orçamentários o projeto começou a ser implantado, com um contrato
(18/7/1889) de exploração e venda de terras devolutas na Província do Espírito Santo,
16
17
Prado Júnior (1959, pg. 191).
A primeira colônia de imigrantes estrangeiros (não portugueses), para 2.000 colonos suiços
foi criada no Rio de Janeiro (Friburgo) ainda antes da Independência, em 1818. A experiência de
Friburgo foi considerada muito dispendiosa e não teve sequências significativas na época. (Simonsen,
1937, pg.416).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
114
para a fixação de 1.240 famílias de imigrantes. (Coe, [1983?], pg.163). Ver também
Lima (1954, pg.75).
Houve defensores desses programas, postos de lado pelos interesses dos proprietários
que queriam uma solução imediata para o problema da falta de mão de obra.
“O plano de ‘colonização’ não apresentava solução tão pronta e imediata [para o
problema de mão de obra das fazendas]; mas suas perspectivas eram mais
amplas. Argumentavam seus partidários que o principal era incrementar o
povoamento do país; a questão de braços para a grande lavoura se resolveria
naturalmente no futuro como consequência de tal incremento.” (Prado Júnior,
1959, pg.109)
A partir da década de ’70 o problema imediato da falta de mão de obra passou a ser
resolvido, graças a incentivos governamentais à imigração e ao abandono do sistema
de parceria em favor do assalariamento.
5.4 As novas condições de manutenção da velha ordem social
Com o fim da escravidão a condição de ser senhor de escravos para receber terras, ela
concessão de sesmarias, deixou de existir sendo então necessário instituir outro
critério de seleção para ingresso na classe de proprietários. Esse critério foi a
capacidade de pagamento. Se até 1850 o processo geral havia sido o da compra de
escravos para poder ocupar a terra (e isto bastara para garantir um número de
senhores suficientemente reduzido para manter o poder e a coesão de interesses da
classe), a partir dessa data passa a ser o da compra direta de terra. E uma vez
instituída essa nova regra os próprios interesses e ações individuais em jogo se
encarregaram de estabelecer os preços mínimos suficientes para alijar os pequenos
produtores na exata medida necessária para a acumulação de interesse da elite
dominante.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
115
A Lei das Terras Devolutas foi assim um pré-requisito para a substituição do escravo
pelo trabalhador assalariado. Era necessário impedir que o imigrante recém chegado
tivesse a possibilidade de ocupar um pedaço de chão sem dono e produzir para si em
vez de se empregar numa fazenda de café ou numa fábrica.
A ocupação do território avançava lentamente e, o que é mais importante, de maneira
predatória. Com a garantia da abundância de terras sem dono e sem pretendentes
válidos os engenhos e fazendas se expandiam e se multiplicavam na medida em que
ia se esgotando a capacidade produtiva do solo do qual se extraia toda a riqueza, o
mais rápido possível e sem reposição. Vários autores apontaram essa característica
destrutiva da agricultura brasileira 18 relacionando-a em geral com “atrazo cultural” e
“herança escravagista” o que está correto mas deixa de lado o aspecto crucial do
interesse na manutenção dessa forma de produção por parte da elite dominante. A
agricultura
predatória,
sempre
associada
a
um
estágio
de
acumulação
predominantemente extensiva, com altas taxas de lucros, significava no Brasil a
manutenção da possibilidade de expatriação de excedente e portanto a garantia da
manutenção da elite como classe dominante.
Em meados do século passado a terra ainda era abundante para a capacidade
produtiva da época e o sentido imediato da imposição de pagamento não era o de
reservar a terra para produção em larga escala de bens de exportação, mas sim o de
garantir a mão de obra para essa mesma produção, nas grandes fazendas dos senhores
de terra (não mais de escravos).
Assim, ambas as condições para um processo de acumulação plenamente capitalista
no Brasil, baseada na propriedade, no trabalho assalariado de uma população de 8
milhões de habitantes e na formação de um amplo mercado interno, foram
formalmente estabelecidas no mesmo ano de 1850: a propriedade do principal meio
de produção, a terra, e a consolidação de uma classe de assalariados pela supressão do
18
Pierre Mombeig (1951 e 1952), Caio Prado Júnior (1957a) especialmente em Problemas de
povoamento e a divisão da propriedade rural, Ignácio Rangel (1962), Sérgio Silvia (1976), para citar só
alguns.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
116
abastecimento da mão de obra escrava. Porém tanto a abolição do tráfego de escravos
quanto a formalização da propriedade não resultaram da necessidade de se estabelecer
as condições para um processo de acumulação capitalista mas, ao contrário, da
necessidade de se reimpor, sob outra forma, os entraves a essa acumulação e portanto,
o que tinha a aparência de uma ruptura com a organização social e econômica vigente
até então era de fato apensas um rearranjo para a continuidade dessa mesma
organização.
O tráfego de escravos africanos foi abolido, mas sem que houvesse um programa
efetivo de assalariamento do total da população, continuando a predominar durante
várias décadas os acertos pessoais e as relações moldadas pela escravidão, pelo
clientelismo e pelos processos de parceria em suas diversas formas. Criou-se um
contingente por mais de um século com restos de escravidão e economia de
subsistência. O mercado nacional continuou inexpressivo, com a fragmentação em
mercados regionais desarticulados e grande parte da população sem condições de
consumo.
Quanto às terras, passaram a ser propriedade, reconhecida mediante título, mas, sem
registros e demarcações em escala significativa, continuaram sujeitas a toda sorte de
arbitrariedades, objeto de intensa especulação que propiciou inclusive considerável
expatriação de excedente 19 .
19
Veja-se Joffily (1985) para um exemplo da participação dos capitalistas (e governo) ingleses
nos negócios de terras no Brasil, no caso no norte do Paraná.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
CAPÍTULO 6:
O ARCABOUÇO INSTITUCIONAL REPUBLICANO
117
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
118
6 O ARCABOUÇO INSTITUCIONAL REPUBLICANO
“A questão da terra no Brasil sempre acabou em tiroteio ... ou em cadáver.”
Pedro Teixeira, Senador da República 152
6.1 A primeira Constituição da República
Diversos atos tomados pelo Gôverno Provisório, logo após a Proclamação da
República demonstram a importância dada às questões fundiárias, especialmente
quanto à adequação da estrutura legal às possibilidades da comercialização das terras,
privadas e públicas, cada vez mais demandadas pela expansão das empresas agrícolas
e industriais.
Em 1890 foi instituído o Registro Torrens 153 numa tentativa de estabelecer critérios
de garantia jurídica de propriedade das terras, que continuavam não demarcadas e
apenas parcialmente registradas.
Também em 1890, o Decreto 528 regulamentou a cessão de terras devolutas e tratou
da organização de núcleos coloniais, retomando o projeto Burgos Agrícolas que havia
sido debatido pela Câmara ainda no Império (ver pg.122). Seguiu-se a criação de
bancos agrícolas com garantias do Gôverno (Decreto 964, de 7/11/1890). No mesmo
ano, com base no Decreto 528, o Gal.Francisco Glycério, Ministro da Agricultura,
Comércio e Obras Públicas, assinou pelo menos dez contratos de cessão de terras
para a criação de Burgos Agrícolas, nos estados de São Paulo, Paraná, Sta.Catarina,
152
E entrevista à TV Bandeirantes apresentada dia 15.1.95. A entrevista fez parte de uma
reportagem sobre grilagem de terras no Distrito Federal.
153
Ver mais detalhes no Capítulo 10: As terras agrícolas e o Imposto Rural.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
119
Espírito Santo e Ceará, pra a fixação de cerca de 70.000 famílias de imigrantes. Boa
parte dessas concessões de terras foram motivos de controvérsias e litígios que
duraram décadas. Um dos casos mais conhecidos envolveu o Banco Evolucionista e a
Companhia Predial de São Paulo e teve por objetivo a concessão de 50.000 ha às
margens do Tietê (municípios de São Paulo e Mogi das Cruzes), feia e, 14/10/1890 ao
eng. Ricardo Medina 154 . A parte do Decreto 528 referente às concessões foi revogada
no ano seguinte pela Constituição.
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brazil, promulgada a 24 de
fevereiro de 1891, primeira constituição republicana, já mostra alguma preocupação
com a organização do território, descentraliza parte da administração fiscal e
orçamentária e estabelece a base dos impostos. A urbanização crescente, a
transformação da terra em bem negociável e a inviabilidade da prática de concessão
de terras como fonte de recursos públicos foram fatores que forçaram a definição de
uma estrutura tributária mais adequada à nova organização da produção que,
formalmente, se estabelecia em moldes inteiramente capitalistas. Pela primeira vez a
propriedade imobiliária como tal pode ser tributada, sendo competência dos estados.
Art.9° É da competencia exclusiva dos Estados decretar impostos:
1° Sobre a exportação de mercadorias de sua propria producção;
2° Sobre immoveis ruraes e urbanos;
3° Sobre transmissão de propriedade;
4° Sobre industrias e profissões.
A questão da propriedade permaneceu sem alterações, como parte dos direitos
individuais:
Art.72 A Constituição assegura a brazileiros e estrangeiros residentes no paíz a
inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à
propriedade nos termos seguintes:
154
Para detalhes sobre esse assunto, incluindo transcrição do “Contrato de Burgos Agrícolas”
feito com o eng.Medina, ver Coe [1983?], particularmente pg.163 ss.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
120
17. O direito de propriedade mantém-se em toda a plenitude, salva a
desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante
indemnização prévia.
De acordo com o espírito federativo de fragmentação do espaço 155 que prevaleceu na
Proclamação da República, a administração do território foi atribuida aos estados.
Não só esses passaram a cobrar os impostos fundiários (Art.9°) mas
Art.64 Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas nos seus
respectivos territórios, cabendo à União sómente a porção de territorio que for
indipensável para a defesa das fronteiras, fortificações, construcções militares e
estradas de ferro federaes.
As oligarquias regionais mantinham, portanto, o controle direto sobre a ocupação das
terras e, por meio de uma divisão previamente estabelecida, podiam restringir os
conflitos aos níveis locais, no interior de cada estado.
O Art.64, passando para os estados as terras devolutas, até então incorporadas ao
domínio da União, entrou em conflito com as disposições da Lei das Terras (Lei 601
de 1850) e de seus regulamentos que haviam instituido os serviços de planejamento e
controle das terras públicas no âmbito do governo central. A Lei 601, dispondo sobre
alienação de terras do domínio estadual. Apesar da maioria dos estados ter adaptado
essa Lei, com maiores ou menores modificações, houve não só uma descontinuidade
administrativa como, principalmente, o fracionamento do patrimônio nacional,
institucionalmente sujeito, a partir de então, a diferentes critérios de cessão e de uso.
É pitoresco o artigo 1°, pelo inusitado do assunto tratado como primeira declaração
de uma constituição que estabelece a República em substituição ao Império:
Art.1° Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma
zona de 14.400 kilometros quadrados, que será opportunamente
demarcada, para nella estabelecer-se a futura Capital Federal.
155
A fragmentação do território nacional em estados federados, com autonomia alfandegária e
tributária, facilitou a manutenção dos entraves à formação de um mercado nacional unificado.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
121
Note-se a substituição das braças e légoas, como medidas de comprimento, pelo
sistema métrico decimal 156 .
Enquanto a Constituição estabeleceu a nova organização política, a estrutura jurídica
só foi consolidada em 1916 pelo Código Civil, substituído as Ordenações Filipinas de
1643 (ver nota pg.88).
6.2 O Código Civil e os direitos de propriedade
O Código Civil brasileiro, em vigor desde 1917, foi publicado em 1° de janeiro de
1916, como Lei 3071. Ao longo dos quase 80 anos de sua vigência a maioria dos seus
artigos (se não todos) foram complementados, detalhados ou mesmo alterados por
outras leis permanecendo, porém, a estrutura e a organização do Código como
conjunto das leis que definem os conceitos jurídicos básicos relativos aos direitos
individuais e ao “acordo social”. No Código Civil são explicitadas as regras desse
“acordo”, por oposição às suas exceções.
Especialmente importantes para este trabalho são os conceitos que consolidam o
reconhecimento da propriedade fundiária 157 e dos direitos a ela ligados. Baseado no
Direito Romano que definia a propriedade como “jus utendi, fuendi et abutendi re
sua” (direito de usar, fruir e abusar da coisa sua), o Código Civil estabelece que
156
O sistema métrico havia sido instituido a partir de 1° de janeiro de 1874 (cf. Simonsen, 1937,
pg.462).
157
A palavra fundiário vem do latim fundus significando, no direito romano, o solo com todos os
seus acessórios, especificamente o solo agrário. “Juridicamente, no direito agrário, entende-se por
fundo os bens de raiz, ou seja, os bens imóveis, terrenos, campos, herdades. Estes são os bens de
fundo, também designados bens fundiários, pois o adjetivo fundiário sempre diz respeito a imóveis ou
bens de raiz.” (Enciclopédia Saraiva do Direito, ed.1979, 39° vol. Pg. 166). As sociedades de língua
inglesa usam a expressão real estate, definida pelo Oxford Dictionary como: “Person’s holdings in
landed property”. Por oposição a personal estate: “Personal holding in omvables”.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
122
Art.524 ... a lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus
bens, e de reavê-los do poder de quem quer que, injustamente, os possua.
Isto deixa em aberto as questões de como se estabelece um proprietário ou como se
define que alguém possui algo injustamente. O direito de propriedade acaba sendo
substituído, enquanto definição, por um conjunto de direitos em condições
específicas, formalizando regras ou melhor, relações de forças já existentes. Tais
direitos são exaustivamente comentados em trabalhos de juristas. Dentre estes se
destacam os de Hely Lopes Meirelles 158 e José Afonso da Silva 159 , sobre o direito de
propriedade relacionado com o direito de construir, trabalhos que tem constituido
manuais de consulta para gerações de arquitetos e urbanistas.
Hely Lopes Meireles cita o direito de propriedade como direito real, no sentido de
que incide sobre as coisas (do latim res, rei), por oposição ao direito pessoal. 160
“O direito de propriedade é o que afeta diretamente as coisas corpóreas – móveis
ou imóveis -- subordinando-as à vontade de homem.”
O “direito de uso, gôzo e disponibilidade das coisas, associado ao poder de
reivindicá-las de quem as detenha injustamente, configura o domínio na sua
acepção mais ampla.” (Meirelles, 1965, pg.1-2).
Assim o domínio seria “o poder absoluto, ilimitado e exclusivo sobre a coisa”. O
Código Civil diz (Art.527) que “o domínio presume-se exclusivo e ilimitado até
prova em contrário” e admite a propriedade limitada pela existência de ônus real ou
pelo domínio resolúvel ou revogável isto é, com duração limitada.
“Onus real é toda restrição que incide diretamente sobre a coisa, traspassando a
terceiro parcela do direito de propriedade.” (Meirelles, 1965, pg.2).
158
Meirelles (1965).
159
Silva,J.A. (1981).
160
Vale lembrar aqui os comentários feitos no Capítulo 1: A propriedade sobre as peculiaridades
do sistema jurídico pressuposto pelo modo de produção capitalista: todos os seres são distribuidos
entre as categorias de “pessoas” e “coisas”, não havendo distinção, do ponto de vista legal, entre os
seres dentro de cada categoria.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
123
A um ônus real corresponde um direito real de outrem que não o proprietário da
coisa, sobre a mesma coisa.
Os direitos reais (ou ônus reais, dependendo do ponto de vista) são, ao mesmo tempo,
restos das forma jurídicas feudais (que não compreendiam a propriedade da terra mas
sim do direitos de uso) e portanto fadadas ao desaparecimento, e modificações do
conceito de propriedade como direito irrestrito sobre a terra, necessárias para a
organização social exigida pelo estágio de acumulação (e portanto mutável com esse).
Sem entrar nos detalhes e meandros das definições jurídicas vale a pena citar essas
formas parciais de domínio, enumeradas (Art.674) e definidas pelo Código Civil, não
só para ter uma idéia do arcabouço institucional erigido em torno do direito de
propriedade mas também porque esses ônus reais correspondem a termos
frequentemente usados na literatura sobre urbanismo e planejamento territorial onde
nem sempre seu significado é claro.
I
Enfiteuse 161
Enfiteuse, aforamento ou emprazamento é o direito, atribuído pelo
proprietário a outrem, do domínio útil do imóvel mediante o pagamento de
“pensão ou foro, anual, certo e invariável”. (Código Civil, Art.678). O
contrato de enfiteuse é hereditário e perpétuo, diferindo nisto do
arrendamento que é por tempo limitado. Os aforamentos são resgatáveis
após certo prazo (fixado em 10 anos pelo Código Civil) mediante o
pagamento de laudêmio, correspondente a “2,5% sobre o valor atual da
propriedade plena” (Art.693).
II
Servidão
“Servidão representa o encargo ou o ônus que se estabelece sobre um
imóvel em proveito e utilidade de um outro imóvel, pertencente a outro
proprietário.” (Silva,De P., 1963, pg.1442). Corresponde à perda do
161
Enfiteuse – Apesar da sonoridade, não é uma palavra francesa. Vem do grego
“emphytheusis”, do verbo “emphyteusein” significando plantar dentro ou melhorar terreno inculto
(Silva,De P., 1963)
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
exercício de alguns direitos por parte do proprietário em favor de outrem
ou a obrigação de tolerar que outro se utilize da propriedade para certos
fins. A servidão se estabelece entre imóveis vizinhos e, obrigatoriamente,
de proprietários diferentes.
São comuns as servidões de passagem, pelas quais o ocupante de um lote
encravado tem acesso à via pública através do terreno de outro. Ou a de
iluminação, pela qual um proprietário não pode construir na divisa se com
isto ele fecha uma janela de construção vizinha aprovada ou regularizada.
Na maioria das vezes servidões são remanescentes de relações anteriores à
legislação urbanística que hoje impede a criação de situações como um
lote encravado ou uma janela aberta na divisa com um vizinho. Mas elas
também são estabelecidas, por leis gerais, para os casos de proteção da
comunidade em que o simples direito de propriedade pode representar
perigo. É o caso, por exemplo, do escoamento das águas pluviais cujo
caminho natural não pode ser bloqueado, ou do escoamento da lava nas
encostas do Etna, que não pode ser desviado para o vinhedo do vizinho.
III
Usufruto
É o “direito real de fruir as utilidades e frutos de uma coisa, enquanto
temporariamente destacado da propriedade” (Código Civil, Art.713).
IV
Uso
É o direito de fruir “a utilidade da coisa dada em uso, quanto o exigirem as
necessidades pessoais suas e de sua família” (Código Civil, Art.742). O
usufruto se relaciona diretamente com a produção enquanto que o uso tem
a ver com a reprodução da força de trabalho.
V
Habitação
O direito de habitação é definido como o direito de ocupar ou o de habitar
gratuitamente casa alheia. Esse direito, considerado como uma “servidão
124
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
125
pessoal”, não pode ser transferido (por aluguel ou empréstimo). É o caso
particular de direito de uso.
VI
Rendas constituídas sobre imóveis
Correspondem ao direito do proprietário de um imóvel de continuar a
receber o equivalente à renda proporcionada por esse imóvel mesmo
depois deste ter sido alienado. Esse direito sobre renda surge como fonte
de disputa nos casos de desapropriações pois nos demais casos pode ser
simplesmente incorporado ao preço de venda do imóvel.
VII
Penhor
É um direito sobre bem imóvel, dado em garantia de pagamento de dívida.
O fato do bem ser móvel é o que caracteriza o penhor e o distingue da
hipoteca.
VIII
Anticrese
Vem do grego anti (contra) e khresis (uso). É “o contrato pelo qual um
devedor, conservando ou não a posse do imóvel, dá ou destina ao credor,
para segurança, pagamento ou compensação de dívida, os frutas e
rendimentos produzidos pelo mesmo imóvel. Também se lhe dá o nome de
contrato de consignação de rendimentos.” (Silva, De P., 1963).
IX
Hipoteca
É um direito real sobre imóvel ou bem de raiz, dado em garantia de uma
obrigação (em geral, pagamento de dívida).
Vale também lembrar a distinção entre posse e propriedade nos dizeres de Hely
Lopes Meirelles 162 : “A propriedade é um direito, a posse um fato”; ao que o mesmo
Lopes Meireles acrescente a distinção entre posse e detenção, ambas como situações
de fato, sendo a primeira legítima e a detenção ilegítima.
162
Meirelles (1965, pg.7).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
126
Finalmente, o Código Civil define os bens públicos, por oposição aos particulares:
Art.65 São públicos os bens do domínio nacional pertencentes à União,
aos Estados ou Municípios. Todos os outros são particulares, seja qual for
a pessoa a que pertencerem.
Art.66 Os bens públicos são:
I
Os de uso comum do povo, tais como os mares, rios, estradas,
ruas e praças.
II
Os de uso especial, tais como os edifícios ou terrenos aplicados
a serviço ou estabelecimento federal, estadual ou municipal.
III
Os dominicais, isto é, os que constituem o patrimônio da
União, dos Estados ou dos Municípios, como objeto de direito
pessoal, ou real de cada uma dessas entidades.
Sobre esse mesmo assunto, e além das Constituições, foi sendo acumulada desde
1917 uma vasta legislação, tanto federal como estadual, definindo e regulamentando
os bens públicos 163 .
Além de definir os direitos ligados às diversas formas de domínios parcial sobre os
imóveis o Código Civil também estabeleceu regras para o reconhecimento desses
direitos, instituindo o registro de imóveis, parte do conjunto dos registros públicos
(assim como o das pessoas naturais, o das pessoas jurídicas ou o de títulos e
documentos). O registro de imóveis substitui as anotações e livros mantidos pelos
vigários a partir das determinações da Lei 601/1850 (Lei das Terras) e passou a se
constituir na forma de garantia dos direitos privados sobre imóveis. A descrição e
evolução do registro de imóveis são assunto do Capítulo 8: Os Cartórios de Registro
de Imóveis.
163
Cito alguns ítens da legislação federal, deixando deliberadamente de lado o que se refere ao espaço
aéreo, defesa nacional e fronteiras, águas territoriais, terrenos de marinha e plataforma submarina: D
10.105/13 (Terras devolutas e terrenos aforados); D 19.924/31; DL 22.658/33; D 22.785/33; DL
710/38; DL 2.490/40; DL 7.724/45; DL 7.916/45; DL 9.063/46 (Definição dos bens da União); L
3.081/56; D 40.735/57; DL 200/67; DL 900/69 (Estrutura administrativa).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
127
6.3 O primeiro período Vargas
O governo Getúlio Vargas, de 1930 a 1945, alterou profundamente a estrutura
administrativa e montou o quadro institucional de atribuições e relações formais entre
níveis de governo em vigor até hoje.
No seu discurso de posse em 3 de novembro de 1930 Getúlio Vargas cita, entre as
idéias centrais do “programa de reconstrução nacional”, a
“consolidação das normas administrativas com o intúito de simplificar a confusa
e complicada legislação vigorante, bem como refundir os quadros do
funcionalismo, que deverá ser reduzido ao indispensável, suprimindo-se os
adidos e excedentes”. 164
Os movimentos e pressões que se seguiram à tomada do poder por Vargas com a
instituição do Governo Provisório em 1930 e à Revolução Constitucionalista de 1932
levaram à formação de uma Assembléia Constituinte, eleita com forte participação de
membros de sindicatos e representantes profissionais (“classistas”), uma novidade
com relação às tradições de representação até então. Os confrontos básicos se
articularam em torno da questão federalismo versus centralização mas, mesmo entre
os defensores do federalismo, crescia a aceitação do papel intervencionista do Estado
em assuntos de política econômica, intervenção necessária face à crise internacional e
aos conflitos regionais internos. O país continuava fragmentado numa “constelação”
de mercados regionais, cada qual inserido de maneira autônoma no mercado
internacional, todos dominados pelas oligarquias locais cujos interesses estavam
muito mais vinculados a esse mercado internacional do que ao processo de
acumulação interna.
164
Henriques (1966, pg.129) transcreve alguns dos 17 ítens do programa de reconstrução
nacional anunciados por Getúlio Vargas em seu discurso de posse, dia 3 de novembro de 1930.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
128
A Constituição resultante foi um texto de compromisso, reflexo da multiplicidade das
forças políticas presentes 165 e da necessidade de eliminar da sociedade a memória dos
conflitos de classe esboçados com os movimentos operários da década anterior 166 .
“Procurou-se conciliar a democracia liberal com o socialismo, no domínio
econômico-social; o federalismo com o unitarismo, no setor político; o
presidencialismo com o parlamentarismo, na esfera governamental” (Bastos,
197-?, pg.4).
Na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, promulgada a 16 de
julho de 1934, de curtíssima duração, aparecem nitidamente as preocupações com a
integridade do território, com a infraestrutura nacional, com a complexidade
crescente das funções administrativas e do governo mas também com a participação
política de uma população que crescia e se urbanizava rapidamente.
As questões do domínio e distribuição das terras, incluindo a da ocupação das terras
públicas e a do reconhecimento da posse e do usucapião, continuavam a merecer cada
vez mais a atenção dos constituintes:
Art.121 A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do
trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador
e os interesses econômicos do país.
§4° O trabalho agrícola será objeto de regulamentação especial, em que se
atenderá, quanto possível, ao disposto neste artigo. Procurar-se-á fixar o
homem no campo, cuidar da sua educação rural, e assegurar ao trabalhador
nacional a preferencia na colonização e aproveitamento das terras públicas.
§5° A União promoverá, em cooperação com os Estados, a organização de
colônias agrícolas, para onde serão encaminhados os habitantes de zonas
empobrecidas, que o desejarem, e os sem trabalho.
165
Para uma análise detalhada da composição da Assembléia Constituinte e dos embates que
resultaram na Constituição de 1934 ver Confronto e compromisso no processo de constitucionalização,
de Ângela Maria de Castro Gomes, na História geral da civilização brasileira.
166
Chauí (1981).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
129
Art.125 Todo brasileiro que, não sendo proprietário rural ou urbano, ocupar, por
dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio, um
trecho de terra até dez hectares, tornando-o produtivo por seu trabalho e tendo
nele a sua morada, adquirirá o domínio do solo, mediante sentença declaratória
devidamente transcrita.
Art.130 Nenhuma concessão de terras de superfície superior a dez mil hectares
poderá ser feita sem que, para cada caso, preceda autorização do Senador
Federal. 167
Os registros públicos, que haviam sido instituídos em 1916 pelo Código Civil, são
mencionados pela primeira vez na Constituição:
Art.5° Compete privativamente à União:
XIX. legislar sobre:
a) direito penal, commercial, civil, aéreo e processual; registros
públicos e juntas commerciais;
§3° A competencia federa para legislar ... sobre registros públicos ... não exclui a
legislação estadual supletiva ou completamente sobre as mesmas matérias.
É também a primeira Constituição que define claramente as competências entre os
três níveis de governo e estabelece as regras gerais da tributação sobre a propriedade
imobiliária. A partir dela, as Constituições subsequentes apenas iriam alterar detalhes
(por vezes importantes), permanecendo a estrutura da tributação, resumida, para o
interesse deste trabalho, nas questões da distribuição de competências e na definição
dos impostos imobiliários.
Art.6° Compete também privativamente à União:
I
167
decretar impostos:
É reconfortante saber que dez mil hectares (quatro mil alqueires ou 100 quilômetros
quadrados) de terra pública é uma área suficientemente grande para merecer a atenção do Senado
Federal. A preocupação não era descabida. Joaquim Nabuco cita que “em 1878 o governo brasileiro
fez concessão por vinte anos do Alto Xingu, um tributário do Amazonas cujo curso é calculado em
cerca de dois mil quilômetros, com todas as suas produções e tudo o que nele se achasse, a alguns
negociantes do Pará!”
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
130
a) sobre importação de mercadorias de procedência estrangeira:
b) de consumo de quaiquer mercadorias, exceto os combustíveis de
motor à exploração;
c) de renda e proventos de qualquer natureza, exceptuada a renda
cedular de immoveis;
Art.8° Também compete privativamente aos Estados:
I
decretar impostos sobre:
a) propriedade territorial, excepto a urbana;
b) transmissão de propriedade causa mortis;
c) transmissão de propriedade immobiliaria inter vivos, inclusive a
sua incorporação ao capital de sociedade;
Art.13 Os Municípios serão organizados de fórma que lhes fique assegurada a
autonomia em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse, e especialmente:
I
a eletividade do Prefeito e dos Vereadores da Câmara Municipal,
podendo aquele ser eleito por esta;
II
a decretação dos seus impostos e taxas, e a arrecadação e applicação
das suas rendas;
III
a organização dos serviços de sua competência.
§2° ... pertencem aos Municipios:
I
o imposto de licenças
II
os impostos predial e territorial urbanos, cobrado o primeiro sob a
fórma de decima ou de cédula de renda;
III
o imposto sobre diversões publicas;
IV
o imposto cedular sobre a renda de immoveis ruraes;
V
as taxas sobre serviços municipaes.
A reorganização do Estado, promovida desde o início por Vargas, inclui uma ampla
revisão das jurisdições fiscais, sempre no sentido de diminuir a autonomia dos
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
131
Estados e Municípios (dominados pelas oligarquias locais), de romper a estrutura de
“constelação” de mercados regionais e de consolidar um mercado nacional unificado.
Os impostos que já vinham sendo cobrados tradicionalmente permaneceram
centralizados na União. Os estados poderiam arrecadar o imposto territorial rural,
com o que resolviam “em casa” a questão da participação financeira dos grandes
proprietários que, via de regra, mantinham o poder político regional. Mas o imposto
sobre a renda das propriedades rurais cabia aos municípios, que também tinham
autonomia para tributar as propriedades urbanas e a concessão de licença de
funcionamento para atividades econômicas.
Entre as medidas legais apoiadas na Constituição de ‘34 vale ressaltar o Decreto
58/37 que “dispõe sobre o loteamento e a venda de terrenos para pagamento em
prestações” colocando, pela primeira vez, a questão do controle do parcelamento e
ocupação do solo urbano.
Art.1° Os proprietários ou co-proprietários de terras rurais ou terrenos urbanos,
que pretendem vendê-los, divididos em lotes e por oferta pública, mediante
pagamento do preço a prazo em prestações sucessivas e periódicas, são
obrigados, antes de anunciar a venda, a depositar no cartório do registro de
imóveis da circunscrição respectiva:
I
Um memorial ... contendo:
a) denominação, área, limites, situação e outros característicos do
imóveil;
b) relação cronológica dos títulos de domínio, desde 30 anos, ...
c) plano de loteamento ...
II
planta do imóvel ...
III
exemplar de caderneta ou do contrato-tipo de compromisso de venda
dos lotes.
....
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
132
§1° Tratando-se de propriedade urbana, o plano e planta do loteamento devem
ser previamente aprovados pela Prefeitura Municipal ouvidas, quanto ao que
lhes disser respectivo, as autoridades sanitárias e militares.
O Decreto 58/37 foi o único instrumento legal para disciplinar os loteamentos até a
Lei 6.766 de 1979 (Lei Lehman). Serviu como norteador para a legislação de muitos
municípios e ajudou a formar quadros técnicos e serviços incumbidos de examinar e
aprovar loteamentos. Mas não tinha nenhuma “garra” que pudesse obrigar a cumprir
nem o Artigo 1° nem, muito menos, o seu primeiro parágrafo.
As medidas de reorganização do Estado consolidadas na Constituição de ’34 e na
legislação que a seguiu não foram suficientes para garantir os instrumentos
necessários para a manutenção da ordem social frente à radicalização dos
movimentos que exigiam mudanças: seja no sentido de maior liberalização ou de
maior autonomia das oligarquias regionais, seja no sentido de um decidido apoio ao
desenvolvimento “nacionalista”.
“A curta duração que [a Constituição de 1934] teve não deve ser explicada por
defeitos que trazia em sim, mas, em verdade, pela radicalização do clima social
de então.
Tanto a extrema esquerda quanto a extrema direita tornaram inviável a sua plena
aplicação gerando condições para que fosse possível o Golpe de 1937.” Bastos,
197-?, pg.6.
Em verdade, mais do que “possível” o Golpe de 1937 foi “necessário” para a continuidade do
programa de dotar o país das condições para viabilizar o mínimo de acumulação exigido pela
própria reprodução da organização social e pela manutenção da estrutura econômica.
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 10 de novembro de 1937 foi
decretada por Getúlio Vargas em substituição à de 1934 como ato de força, para
permitir ao governo central controlar as agitações e pressões políticas geradas em
todo o país pelo descontentamento tanto dos trabalhadores e da burguesia em
formação quanto entre a elite dominante (que compreendia boa parte dos capitalistas)
que sentia seus privilégios ameaçados pelo rápido processo de unificação do mercado
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
133
nacional e pelas condições de incorporação da população (40 milhões) nesse
mercado. Medidas de força, centralizadas e institucionalizadas, seriam necessárias
para preservar as reformas exigidas pelo processo de acumulação. Isto está refletido
no próprio texto que introduz a Constituição:
“O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil:
Atendendo às legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social,
profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da
crescente agravação dos dissídios partidários, que uma notória propaganda
demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação de conflitos
ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, a resolver-se em
termos de violência, colocando a nação sob a funesta iminência da guerra civil;
Atendendo ao estado de apreensão creado no país infiltração comunista, que se
torna dia a dia mais extensa e profunda, exigindo remédios de caráter radical e
permanente;
Atendendo a que, sob as instituições anteriores, não dispunha o Estado de
meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem estar do
povo;
Com o apoio das fôrças armadas e cedendo ás inspirações da opinião nacional,
umas e outra justificadamente apeensivas diante dos perigos que ameaçam a
nossa unidade e da rapidez com que se vem processando a decomposição das
nossas instituições civis e políticas;
Resolve assegurar á Nação a sua unidades, o respeito á sua honra e á sua
independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as
condições necessárias á sua segurança, ao seu bem estar e á sua prosperidade,
Decretando a seguintes Constituição, que se cumprirá desde hoje em todo o
país:” (Campanhole, 1976).
As alterações com relação à Constituição anterior são todas no sentido da
centralização do poder e do controle político e econômico. A consolidação de um
mercado nacional deu um passo essencial com a eliminação dos impostos
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
134
interestaduais que, além de manter a fragmentação em mercados regionais, haviam
constituído até então uma das maiores fontes de receita dos estados 168 :
Art.25 O território nacional constituirá uma unidade do ponto de vista
alfandegário, econômico e comercial, não podendo no seu interior estabelecer-se
quaisquer barreiras alfandegárias ou outra limitações ao tráfego, vedado assim
aos Estados como aos Municípios cobrar, sob qualquer denominação, impostos
inter-estaduais, inter-municipais, de viação ou de transporte, que gravem ou
perturbem a livre circulação de bens ou de pessoas e dos veículos que os
transportarem.
A organização burocrático/institucional no que diz respeito ao controle e tributação
fundiária permaneceu a mesma. As disposições sobre os impostos seguiram, quase
ipsis litteris, as da Constituição de ‘34.
Dois anos mais tarde o Decreto Lei 1202 de 8 de abril de 1939 “dispõe sôbre a
administração dos Estados e Municípios”, complementando a Constituição e
consolidando a estrutura da administração pública do Estado Novo. As competências
e os tributos relativos aos imóveis foram mantidos, com as mesmas redações, e foram
fortemente reforçadas as restrições à cessão de terras públicas pelos estados e
municípios, o que constituía mais um golpe na autonomia dos estados:
Art.35 A concessão, a cessão, a venda, o arrendamento e o aforamento de terras e
quaisquer imóveis do Estado e dos Municípios ficam sujeitos, no que couber, às
restrições impostas por lei no que diz respeito às terras e imóveis da União,
inclusive o Decreto-Lei nº 893, de 26 de novembro de 1938.
Parágrafo único Os Estados e Municípios não poderão, sem licença do Presidente
da República:
a) conceder, ceder ou arrendar, por qualquer prazo, terras de área
superior a 500 hectares, ou terras de área menor por prazo superior a
10 anos;
b) vender terras de área superior a 500 hectares;
168
Skidmore (1968 pg.56).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
135
c) vender qualquer área de terra ou conceder, ceder ou arrendar
qualquer área e por qualquer prazo a estrangeiros ou sociedades
estrangeiras, ...
A Constituição de 1937 foi alterada por vinte e uma Leis Constitucionais (L.C.). As
primeiras oito decretadas por Getúlio Vargas visaram o reforço da autoridade central
e a sua instrumentação para decisões rápidas em situações de guerra ou de
insubordinação interna, chegando até a restringir o direito de propriedade em casos de
emergência (L.C. nº 5).
Já a L.C. nº 9, de 28 de fevereiro de 1945, ao contrário, reflete a necessidade de ceder
às fortes pressões para alterar a condução da política nacional; é a Lei Constitucional
mais extensa, alterando a relação e o funcionamento dos órgãos de governo e
determinado eleições para Presidente e Governador dos estados, para o Parlamento e
as Assembléias Legislativas.
As Leis Constitucionais de nº 11 a 21 já vem assinadas por José Linhares como
Presidente da República 169 e visam desativar os instrumentos de controle do Estado
Novo, instituir uma Assembléia Constituinte e assegurar a rápida posse do Presidente
a ser eleito.
Encerrava-se assim uma fase de transição na qual o Estado havia sido reorganizado
em molde mais centralizado e nacional e havia sido plenamente consolidada a
instituição da propriedade fundiária e a estrutura de tributação sobre a mesma.
6.4 Intervalo liberal: de Dutra a JK
169
A última L.C. decretada por Vargas (L.C. nº10, de 26 de maio de 1945) proíbe aos juízes
exercerem qualquer outra função pública. A primeira assinada por José Linhares (L.C. nº 11 de 30 de
outubro de 1945) trata do mesmo assunto, abrindo exceção para cargos de confiança direta do
Presidente da República ou dos Interventores.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
136
A Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 18 de setembro de
1946, atribuiu grande poder de decisão ao Congresso, permitindo a rearticulação das
representações municipais e regionais, dominadas pelo esquema do coronelismo. A
composição do Congresso assegurou uma representação proporcionalmente maior
para os estados atrazados e com maior número de analfabetos.
Apesar da mudança dos grupos no poder, a estrutura administrativa montada no
período Vargas foi consolidada e as competências quanto aos impostos
permaneceram as mesmas.
Art.19 Compete aos Estados decretar impostos sobre:
I
propriedade territorial, exceto a urbana;
II
transmissão de propriedade causa mortis;
III
transmissão de propriedade imobiliária inter vivos e sua incorporação
ao capital de sociedades;
...
Art. 29 ...pertencem aos Municípios os impostos:
I
predial e territorial urbano;
II
de licença;
III
de industrias e profissões
...
Sob a fácil bandeira da “democratização” e da defesa dos sagrados direitos de
propriedade os senhores de terra garantiram (Art.141, § 16) que a desapropriações
teriam pagamento prévio, justo e em dinheiro. O pagamento prévio data do Império; o
justo já havia sido estabelecido pela Constituição de 1934; o pagamento em dinheiro
foi uma inovação “em flagrante contradição com a tendência universal a condicionar
o uso da propriedade ao bem estar social” 170 .
170
Em nota de rodapé na História Geral da Civilização Brasileira, vol.III/3, pg.144, citando
entrevista com Carlos Medeiros Silva.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
137
Com relação à ocupação das terras públicas e à legitimação da posse, a Constituição
de 1946 é, nos dizeres do jurista Themistocles Brandão Cavalcanti, um “retrocesso na
evolução dos direitos dos posseiros”. De fato, enquanto a Lei 601 de 1850 (Lei das
Terras Devolutas) e toda a legislação que a seguiu colocavam a posse, a moradia
habitual e a exploração como únicos requisitos para a legitimação do título de
domínio, a Constituição do ’46 apenas se refere a “preferência para aquisição”:
Art.156 A lei facilitará a fixação do homem no campo, estabelecendo planos de
colonização e de aproveitamento das terras públicas. Para êsse fim, serão
preferidos os nacionais e, dentre eles, os habitantes das zonas empobrecidas e os
desempregados.
§1º Os Estados assegurarão aos posseiros de terras devolutas, que nelas tenham
morada habitual, preferência para aquisição até vinte e cinco hectares.
§2º Sem prévia autorização do Senado Federal, não se fará qualquer alienação ou
concessão de terras públicas com área superior a dez mil hectares.
O segundo parágrafo reintroduz a necessidade de ouvir o Senado para concessão de
terras públicas com mais de dez mil hectares, substituindo as restrições impostas pelo
artigo 35 da Constituição de 1937, que limitava a 500 há as cessões sem autorização
do Presidente da República.
Alguns dias antes da promulgação da Constituição as condições de cessão das terras
públicas haviam sido alteradas pelo Decreto Lei 9760, de 5.9.46, que autorizava o
aluguel, aforamento ou cessão de imóveis da União, prevendo inclusive a ocupação
por funcionários públicos em casos de guarda. O mesmo D.L. também criou o
Conselho de Terras da União (CTU) e incumbiu o Serviço do Patrimônio da União
(SPU) de identificar e descrever as terras do domínio da União, em mais uma
alternativa, formal, de demarcar e controlar as terras públicas.
Art.6º As controvérsias entre a União e terceiros, concernentes à propriedade ou
posse de imóveis, serão dirimidas, na esfera administrativa, pelo Conselho de
Terras da União (C.T.U.), criado por este Decreto-lei.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
138
Art.7º O referido Conselho terá, ademais, atribuições de órgão de consulta do
Ministro da Fazenda, sempre que este julgue conveniente ouvi-lo sobre assuntos
que interessem ao patrimônio imobiliário da União.
Art.19 Incumbe ao S.P.U. promover, em nome da Fazenda Nacional, a
discriminação administrativa das terras na faixa de fronteira e nos Territórios
Federais, bem como de outras terras do domínio da União, a fim de descrevê-las,
medi-las e extremá-las do domínio particular.
Art.186 Fica criado, no Ministério da Fazenda, o Conselho de Terras da União
(CTU), órgão coletivo de julgamento e deliberação, na esfera administrativa, de
questões concernentes a direitos de propriedade ou posse de imóveis entre a União
e terceiros, e de consulta do Ministro da Fazenda.
Art.199 A partir da data da publicação do presente Decreto-lei, cessarão as
atribuições cometidas a outros órgãos na esfera administrativa, de questões entre a
União e terceiros, relativas à propriedade ou posse do imóvel.
O Decreto-lei se refere (Art.199) a “atribuições cometidas a outros órgãos” o que faz
supor que já havia sido institucionalizada uma estrutura de controle das terras
públicas. No entanto, ao invés de ativar a estrutura existente dando-lhe efetivas
condições de operação, criaram-se novos órgãos, novas formalidades, igualmente
fadadas à inoperância pela falta das medidas operacionais de suporte. De maneira
geral, não é por falta ou falha de legislação que não são dadas soluções aos problemas
já sobejamente detectados. Ao contrário, grande parte das leis e decretos apresentam
soluções e permitiriam a ação, caso houvesse intenção de remover os entraves. Para
tanto os atos legais deveriam ser coordenados com a efetiva instrumentação dos
órgãos encarregados do controle e da execução das medidas complementares, em
termos de pessoal, de qualificação técnica, de equipamento, de recursos. Não havendo
a intenção, a legislação é usada de fato como pseudo solução, numa função
puramente ideológica, como se sua presença bastasse para assegurar seu
cumprimento.
Em 1947 duas tentativas de reorganização da produção agrícola morreram no
Congresso: 1) uma proposta de reforma agrária encaminhada pelo Executivo que
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
139
pretendia facilitar o loteamento e a redistribuição (por particulares) das terras rurais;
2) uma proposta de desapropriação de terras improdutivas e de incentivo à produção
de alimentos através da lavoura de subsistência. Os dois projetos esbarravam no
princípio defendido pelos senhores de terra de que qualquer reforma agrária deveria
começar pelas terras devolutas, em geral em regiões pouco habitadas e sem
infraestrutura. Houve fortes reações, explicitadas pela Imprensa como porta voz
principalmente da Sociedade Rural Brasileira, e as propostas acabaram sendo
arquivados 171 .
Na primeira metade da década de ‘50 Getúlio Vargas, reconduzido à presidência por
voto popular, defrontou-se mais uma vez com a necessidade de retirar alguns dos
entraves que emperravam o crescimento industrial. O esbanjamento das reservas
(sobras da 2ª Guerra) pelo Gal.Dutra atirava novamente “a restrição externa”,
tornando necessário um alargamento da produção para o mercado internacional. Uma
pré-condição para isto era a ampliação da infraestrutura ou, na linguagem ideológica
da sociedade de elite, a “eliminação dos estrangulamentos”. Uma das linhas maestras
do segundo governo Vargas foi justamente um programa de implantação de
infraestrutura industrial: Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico, Petrobrás,
Cia.Siderúrgica Nacional, Eletrobrás (que não chegou a ser implantada por Vargas).
A nova fase de expansão industrial, apoiada nessa ampliação da infraestrutura, longe
de corresponder a uma alteração na organização social, redundou, mais uma vez, na
consolidação do processo de acumulação regulado muito mais pela manutenção dos
privilégios das elites do que pelo pleno desenvolvimento do mercado.
Os diversos grupos sociais formados no processo de industrialização e urbanização
tinham fraca articulação política e não chegavam a desafiar a elite como classe
dominante. Os movimentos operários e camponeses haviam sido abafados em 192829 e diluidos nas reformas do Estado Novo 172 . Os capitalistas, em sua maioria, eram
parte da elite dominante, interessados na manutenção do processo de acumulação
171
História Geral da Civilização Brasileira, vol.III/3 pg.144-5.
172
De Decca (1981).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
140
entravada. Continuava a existir um largo setor de subsistência, sem nenhuma
importância política e, portanto, sem nenhuma condição de exigir mudanças no
sistema de propriedade rural.
Tanto o governo Vargas quanto o de Kubitschek se caracterizaram por um
“nacionalismo desenvolvimentista” condicionado pelos entraves institucionais
mantidos e pelas diversas formas de “conciliação” entre todos os interesses
manifestos 173 . Não houve nenhuma tentativa mais séria de alteração da estrutura
social do que as generalizadas discussões sobre “reforma agrária” que marcaram as
décadas de ‘50 e ‘60 (e que, de alguma forma, se prolongam até hoje). Especialmente
Kubitschek baseou seu governo num programa de acelerado desenvolvimento
econômico, apoiado num clima de confiança e de entusiasmo por grandes realizações
nacionais. A nova capital, usinas hidroelétricas, estradas cortando regiões até então
inaccessíveis, dispensaram ou adiaram a necessidade de reformas.
“Quanto aos outros agricultores [os grandes proprietários – LB], tinham poucas
razões para continuar a temer reformas significativas na estrutura arcáica do uso da
terra. Kubitschek, pelo contrário, assim como Vargas antes dele, nunca levantou o
problema da terra de outra forma, senão a de sugerir medidas politicamente
inóquas, tais como a expansão do crédito rural ou o aperfeiçoamento da
distribuição de alimentos através das facilidades de construção de novos armazéns.
Tendo sido bem treinado na escola política da PSD de Minas Gerais, Kubitschek
estava pouco inclinado a influir no sistema de propriedade rural existente.”
(Skidmore, 1968, pg.209-10).
No entanto cresciam as agitações e os movimentos “radicais” entre os camponeses,
principalmente no Nordeste, e pela primeira vez os proprietários rurais se sentiram
ameaçados, criando pressões para que algo fosse feito ao nível das instituições.
Apesar dessas pressões, no confuso período que se seguiu ao governo Kubitschek a
única alteração significativa com relação à propriedade fundiária foi introduzida pela
Emenda Constitucional nº 5 (21/11/61) que “instituiu nova discriminação de rendas
173
Skidmore (1968).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
141
em favor dos municípios brasileiros”, passando aos municípios os impostos sobre
propriedade rural e transmissão de propriedade:
Art. 29 ...pertencem aos Municípios os impostos:
I
Sôbre propriedade territorial urbana e rural;
II
predial;
III
sôbre transmissão de propriedade imobiliária inter vivos e sua
incorporação ao capital de sociedade;
IV
de licença;
V
de industrias e profissões;
Essa atribuição durou pouco tempo pois a Emenda Constitucional nº 10/64 devolveu
o imposto rural para a União.
O desenvolvimento das forças produtivas e o alargamento do mescado interno
ocorrido no governo Kubitschek resultaram na consolidação de uma classe de
assalariados (operários e camponeses) e de uma burguesia nacional, mais uma vez
desafiando a permanência do regime de acumulação entravada. No período
Janio/Jango a elite perdeu o contrôle do Estado, tornando necessário o Golpe de 1964.
6.5 A Constituição de 1967/69 e o Sistema Tributário Nacional
A consolidação jurídica do golpe de Estado de 1964 se fez através de uma série de
Leis e Emendas Constitucionais até ser promulgada nova Constituição em 1967,
seguida da outra redação dada pela Emenda nº1, em 1969. As Emendas à
Constituição de 1946 prepararam o caminho para as leis que iriam dar uma estrutura
muito mais rígida de controle sobre os orçamentos e as finanças públicas por parte do
governo central. Duas medidas de alcance estrutural, diretamente ligadas ao interesse
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
142
deste trabalho, forma impostas logo no início do governo militar: o Estatuto da Terra
e o Sistema Tributário Nacional.
A Lei 4.504 (30/11/64) que “dispõe sobre o Estatuto da Terra” 174 se constitui num
marco histórico da legislação sobre a propriedade pois, pela primeira vez, coloca a
reforma agrária como assunto central.
Art.1° Esta Lei regula os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis
rurais, para os fins de execução da Reforma Agrária e promoção da Política
Agrícola.
Esta lei estabeleceu condições formais para uma reforma agrária (que nunca foi feita),
criou o IBRA (Instituto Brasileiro de Reforma Agrária) e instituiu um cadastro de
imóveis rurais, regulamentado pouco depois pelo Decreto 55.891 de 31 de março de
1965.
Já a Emenda Constitucional n° 18, publicada em 6.12.65, estabeleceu as novas regras
tributárias ao nível das determinações constitucionais, sendo a base da legislação
federal e municipal hoje em vigor.
O imposto sobre a propriedade territorial rural foi mantido como competência da
União, apoiado sobre o IBRA e o cadastro de imóveis rurais. Depois de arrecadado, o
imposto rural é redistribuido aos municípios.
O impôsto sôbre a propriedade predial e territorial urbana continuou sendo de
competência dos municípios e os estados ficaram com a arrecadação da sisa (imposto
sobre transmissão de imóveis).
Art.9° Compete aos Estados o impôsto sôbre a transmissão, a qualquer título, de
bens imóveis por natureza ou por cessão física, como definidos em lei, e de direitos
reais sôbre imóveis, exceto os direitos reais de garantia.
§ 1º O impôsto incide sôbre a cessão de direitos relativos à aquisição dos bens
referidos neste artigo.
174
O Estatuto da Terra será examinado no Capítulo 10: As terras agrícolas e o Imposto Rural.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
143
§ 2º O impôsto não incide sôbre transmissão dos bens ou direitos referidos neste
artigo, para sua incorporação ao capital de pessoas jurídicas, salvo o daquelas
cuja atividade preponderante, como definida em lei complementar, seja a venda
ou a locação da propriedade imobiliária ou a cessão de direitos relativos à sua
aquisição.
O segundo parágrafo traz uma alteração significativa com relação às constituições
anteriores qual seja, a eliminação do imposto sobre transmissão de bens para
incorporações ao capital de sociedade.
Um ano depois da Emenda Constitucional n°18 à Constituição de 1946 a Lei 5.172
de outubro de 1966 estabeleceu o Sistema Tributário Nacional, pela primeira vez
reunindo as “normas gerais de direito tributário”, explicitando uma estrutura de
tributação e estabelecendo os tributos e respectivas competências:
Impostos sobre o Comércio Exterior
Importação
União
Exportação
União
Impostos sobre o Patrimônio e a Renda
Propriedade Territorial Rural
União
Propriedade Predial e Territorial Urbana
Municípios
Transmissão de Bens Imóveis
Estados
Renda e Proventos de qualquer natureza
União
Impostos sobre a Produção e a Circulação
Produtos Industrializados
União
Estadual sobre a Circulação de Mercadorias
Estados
Municipal sobre a Circulação de Mercadorias
Municípios
Operários de Crédito
União
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
Serviços de Transporte e Comunicações
União
Serviços de qualquer Natureza
Municípios
144
Impostos Especiais
Combustíveis, Energia Elétrica etc.
União
Extraordinários (em caso de guerra)
União
Foram estabelecidas regras visando consolidar os sistemas de impostos federais,
estaduais e municipais. Em particular, os impostos imobiliários foram resolvidos em
três artigos para a propriedade urbana (de competência municipal) e outros tantos
para a rural (de competência da União):
Art.32 O impôsto, de competência dos Municípios, sôbre a propriedade predial e
territorial urbana tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse
de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil,
localizado na zona urbana do Município.
§1º Para efeito dêste impôsto, entende-se como zona urbana a definida em lei
municipal; observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos
indicados em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou
mantidos pelo Poder Público:
I
meio-fio ou calçamento, como canalização de águas pluviais;
II
abastecimento de água;
III
sistema de esgôtos sanitários;
IV
rêde de iluminação pública, com ou sem posteamento para distribuição
domiciliar;
V
escola primária ou posto de saúde a uma distância máxima de 3
quilômetros do imóvel considerado.
§2º A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de expansão
urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos competentes,
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
145
destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo que localizados
fora das zonas definidas nos termos do parágrafo anterior.
Art.33 A base de cálculo do imposto é o valor venal 175 do imóvel.
Art.34 Contribuinte do impôsto é o proprietário do imóvel, o titular do seu domínio
útil, ou o seu possuidor a qualquer título.
Art.29 O impostos, de competência da União, sobre a propriedade territorial rural
tem como fato gerador a propriedade, o domicílio [sic, deve ser domínio – LB]
útil ou a posse de imóvel por natureza, como definido na lei civil, localizado
fora da zona urbana do Município.
Art.30 A base de cálculo do impôsto é o valor fundiário.
Art.31 Contribuinte do impôsto é o proprietário do imóvel, o titular de seu domínio
útil, ou o seu possuidor a qualquer título.
Nota-se pela primeira vez a preocupação em distinguir entre urbano e rural. A falta
de sentido desta distinção e os problemas decorrentes são examinados nos Capítulo
10.
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 24 de janeiro de 1967, com a
redação dada pela Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, consolidou
a estrutura jurídico-institucional montada a partir do Golpe de ‘64.
No que diz respeito aos impostos imobiliários, sua estrutura já tinha sido adequada
com as Emendas à Constituição anterior, especialmente a E.C. n°18, e foi apenas
confirmada em 67/69, com poucas alterações.
Vale ressaltar a manutenção da contribuição de melhoria.
Art.18 ...compete ... aos Municípios instituir:
II
contribuição de melhoria, arrecadada dos proprietários de imóveis
valorizados por obras públicas
175
Venal (do latim venalis, venale) significa “vendável” ou “que está sujeito a ser vendido”.
Portanto a expressão “valor venal” não se aplica corretamente no caso de “valor de base para
tributação” pois esse valor difere exatamente do “valor de mercado” ou “valor de venda”.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
146
Houvera algumas tentativas anteriores de usar a contribuição de melhoria como
instrumento para forçar a participação efetiva dos proprietários de terra nos custos de
implantação da infraestrutura necessária para a acumulação. Já em 1949 a Lei 854
estabelecera com detalhes as condições e regras para cobrança de contribuição de
melhoria, pela União, Estados e Municípios, nos casos de valorização de imóveis
resultante de obras públicas. Somente a partir de EC nº 18, em 1966, as Constituições
passaram a citar a contribuição de melhoria como uma possibilidade, sempre
dependente de regulamentação. A Lei 5.172/66 (que institui o Sistema Tributário
Nacional) expressamente revogou a Lei 854/49 e apenas menciona vagamente a
competência municipal para cobrar contribuição de melhoria. Por que a lei de 1949
nunca foi aplicada e por que é tão difícil cobrar algo que parece simples, é uma
história que ainda precisa ser contada (ou, talvez, apenas publicada).
A Constituição de 67/69 pela primeira vez menciona a formação de regiões
metropolitanas:
Art.164 A União, mediante lei complementar, poderá, para a realização de serviços
comuns, estabelecer regiões metropolitanas, constituídas por municípios que,
independentemente de sua vinculação administrativa, façam parte da mesma
comunidade sócio-econômica.
Vale ainda lembrar a última alteração na ordenação do direito de propriedade,
ocorrida com a Lei 6.766 de 19 de dezembro de 1979 (Lei Lehmann). Promulgada
especificamente para regulamentar o parcelamento do solo urbano ela atingiu as
práticas de registro de títulos imobiliários, responsabilizando os Cartórios não só pela
correção dos registros mas também pela regularidade dos loteamentos registrados.
Art.18 Aprovado o projeto de loteamento ou de desmembramento, o loteador
deverá submetê-lo ao registro imobiliário dentro de 180 (cento e oitenta) dias, sob
pena de caducidade da aprovação, ...
§4º O Oficial do Registro de Imóveis que efetuar o registro em desacordo com as
exigências desa Lei ficará sujeito à multa equivalente a 10 (dez) vezes os
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
147
emolumentos regimentais fixados para o registro,... ,sem prejuízo das sanções
penais e administrativas cabíveis.
Art.22 Desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio do
Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a edifícios
públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do memorial
descritivo.
Constitui crime contra a Administração Pública:
Art.52 Registrar loteamento ou desmembramento não aprovado pelos órgãos
competentes, registrar o compromisso de compra e venda, a cessão ou promessa de
cessão de direitos ou efetuar registro de contrato de venda de loteamento ou
desmembramento não registrado. Pena: Detenção, de um a dois anos, e multa de 5
a 50 vezes o maior salário mínimo vigente no País, sem prejuízo das sanções
administrativas cabíveis.
Apesar de não eliminar a prática de loteamentos irregular, a Lei Lehmann disciplinou
a questão. Até então, via de regra, os cartórios registravam qualquer subdivisão, fosse
ou não aprovada. Cabia ao Estado ou ao Município fazer valer as próprias leis
mediante aplicação de sanções que, no entanto, não punham em risco o direito de
propriedade e, portanto, de venda da terra parcelada 176 .
Essas duas décadas marcaram o fim do processo de urbanização do Brasil, não apenas
no sentido corriqueiro de transferência da maior parte de sua população para as
cidades mas, de fato, no sentido da completa unificação do mercado com a integração
nele de praticamente toda a população. Em outras palavras, atingiram-se os limites
para um estágio de acumulação predominantemente extensivo, o que coloca pela
primeira vez na história do país a crise como crise estrutural e não apenas de
conjuntura política.
176
Sobre o processo de aprovação de loteamentos ver Battaglia (1987).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
148
6.6 A Nova República
Como visto no Capítulo 3: O Estado no Brasil, o esgotamento do processo de
crescimento econômico pela transformação de produção pré-capitalista em produção
de mercadorias, significa o esgotamento das possibilidades de se manter o processo
de acumulação entravada e impõe alterações estruturais na economia e portanto na
organização social. A continuidade do processo de acumulação (equivalendo à
continuidade do modo de produção capitalista) implica na passagem para um estágio
de acumulação predominantemente intensiva, o que exige por sua vez infraestrutura e
condições de produtividade em patamares totalmente diversos do que forma
instituidos até o momento.
Vale notar também que essa reorganização, se ocorrer, se fará num quadro de crise
estrutural do capitalismo a nível mundial, crise esta cada vez mais difícil de ser
escamoteada.
A Nova República se implantou neste quadro, iniciando pela elaboração de mais uma
Constituição.
A Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de
1988 foi precedida de ampla movimentação de grupos e da imprensa, com posições e
interesses que estavam longe de serem claros, situação que, aliás, perdura nos atuais
debates sobre a “revisão constitucional”. As partes são rotuladas de “liberais” ou
“estatizantes”, confundidas com “direita” e “esquerda” ou com “modernos” e
“retrógrados” (ou dinossauros), misturadas com “corruptos” e “honestos”, tornando
difícil a percepção das medidas tendentes a gerar condições para a continuidade do
processo de acumulação (em novo patamar tecnológico) no meio de todas as pressões
e ações para a manutenção dos privilégios e da estrutura de classe não burguesa.
Vista como porta de regresso a uma forma “democrática” de governo, a Constituição
de ‘88 foi construída e discutida ítem a ítem sob as pressões da imprensa para que a
“opinião pública” visse nela uma garantia de distribuição do poder e do bem estar
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
149
social, independente das reais condições de produção 177 . Nessa ilusão de conquista de
poder através de formalidades jurídicas pode-se entender as tentativas de “reforma
urbana” ou “desenvolvimento urbano”, conforme será examinado adiante.
As alterações introduzidas pela Constituição de ’88 com relação ao registro de terras
e à tributação foram poucas.
Há uma referência aos registros junto com a confirmação de seu caráter privado:
Art.236 Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por
delegação do Poder Público.
A menor possibilidade de terras se reflete na redução das áreas máximas de terras
públicas cedidas sem controle:
Art.188 A destinação de terras públicas e devolutas será compatibilizada com a
política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária.
§1° A alienação ou a concessão, a qualquer título, de terras públicas com área
superior a dois mil e quinhentos hectares a pessoa física ou jurídica, ...,
dependerá de prévia aprovação do Congresso Nacional.
A tributação sobre a propriedade fundiária teve poucas alterações, destacando-se:
1) Uma tentativa (até agora não regulamentada por lei complementar) de tributar as
grandes fortunas:
Art.153 Compete à União instituir impostos sobre:
177
I
importação de produtos estrangeiros;
II
exportação, para o exterior, de produtos nacionais ou nacionalizados;
III
renda e proventos de qualquer natureza;
IV
produtos industrializados;
Observe-se que uma nova constituição não anula toda a legislação anterior, que continua
valendo enquanto for interpretada como contrária, o que só faz adensar a selva institucional que regula
direitos e deveres ligados a interesses por natureza conflitantes.
Luisa Battaglia
V
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
150
operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou
valores mobiliários;
VI
propriedade territorial rural;
VII
grandes fortunas, nos termos de lei complementar.
§4° O imposto previsto no inciso VI terá suas alíquotas fixadas de forma a
desestimular a manutenção de propriedades improdutivas e não incidirá
sobre pequenas glebas rurais, definidas em lei, quando as explore, só ou
com sua família, o proprietário que não possua outro imóvel.
2)A transferência da sisa (sobre compra/venda de imóveis) do Estado para os
municípios e a permissão de imposto predial progressivo amarrado, no entanto, ao
“cumprimento da função social da propriedade” 178 :
Art.156 Compete aos Municípios instituir impostos sobre:
I
propriedade predial e territorial urbana;
II
transmissão intervivos ... de bens imóveis ...
III
vendas a varejo de combustíveis ...
IV
serviços de qualquer natureza.
§1° O imposto previsto no inciso I poderá ser progressivo, nos termos de lei
municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da
propriedade.
§2° O imposto previsto no inciso II:
I
não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao
patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, ...
Uma alteração importante, até agora com poucas consequências por falta de
regulamentação, foi a transferência para os municípios da competência para criar e
alterar distritos 179 :
178
Essa vinculação serviu de pretexto para impedir sua aplicação em São Paulo em 1992.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
151
Art.30 Compete aos Municípios:
IV
criar, organizar e suprimir distritos,...
VIII
promover no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante
planejamento e controle de uso, do parcelamento e da ocupação do
solo urbano;
IX
promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local,...
A Constituição de ‘88 coloca, sem resolver, a questão do conflito entre planejamento
e propriedade privada do solo. O assunto é tratado em vários capítulos, sempre de
maneira suficientemente genérica para que os artigos se prestem a interpretações
diversas conforme os interesses envolvidos. A “função social da propriedade”, que
havia sido introduzida na Constituição anterior como princípio básico para o
“desenvolvimento nacional e a justiça social” (Art.160), reaparece com certa ênfase:
há uma afirmação (Art.5°) e, mais adiante (Art.170), uma declaração de princípios:
Art.5° Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
XXII
é garantido o direito de propriedade;
XXIII a propriedade atenderá a sua função social;
Art.170 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na
livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
179
I
soberania nacional;
II
propriedade privada;
III
função social da propriedade;
Disstritos são subdivisões administrativas do município. O distrito-sede pode, em alguns
casos excepcionais, como o de São Paulo, ser subdividido em subdistritos que, com maiores ou
menores distorções, formam a base da descentralização das ações do Estado: delegacias escolares,
delegacias de polícia, zonas eleitorais, agrupamento de unidades censitárias etc.
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A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
IV
livre concorrência;
V
defesa do consumidor;
VI
defesa do meio ambiente;
VII
redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII
busca do pleno emprego;
IX
tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital
152
nacional de pequeno porte.
A mesma função social reaparece várias vezes, relacionada com propriedade urbana
(no capítulo sobre Política Urbana) e com propriedade rural e reforma agrária (Da
Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária).
Art.182 A política de desenvolvimento urbano, executada pelo poder público
municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade [aqui não mais da
propriedade! – LB] e garantir o bem-estar de seus habitantes.
§1° O plano diretor ... é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de
expansão urbana.
§2° A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§3° As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa
indenização em dinheiro.
§4° É facultado ao poder público municipal, mediante lei específica para área
incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do
solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu
adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de:
I
parcelamento ou edificação compulsórios;
II
imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo
no tempo;
III
desapropriação ...
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
153
A sequência de sanções do último parágrafo transcrito é ridícula pela indefinição e
impossibilidade de sua aplicação.
Art.184 Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma
agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social,
...
Art.186 A função social é cumprida quando a propriedade rural atende,
simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos
seguintes requisitos:
I
aproveitamento racional e adequado;
II
utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação
do meio ambiente;
III
observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV
exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos
trabalhadores.
A ênfase dada ao planejamento na Constituição de ‘88, longe de definir uma diretriz
para a construção do espaço nacional, cria um pouco mais de confusão numa área já
bastante conturbada. Mais uma vez percebe-se o resultado de compromissos entre
interesses conflitantes, mas não explicitados em têrmos de ações “possíveis” ou “de
consenso” e sim, ao contrário, em têrmos de “princípios” que podem ser traduzidos
em ações em qualquer direção, incluindo nenhuma.
A “política de desenvolvimento urbano” é atribuição dos municípios (Art.182) ou
seja, o planejamento continua sendo visto como “planejamento econômico”,
supostamente desvinculado de qualquer territorialidade, e “planejamento físicoterritorial” resultante das “políticas de desenvolvimento urbano”, supostamente
estabelecidas e executadas pelos 4.493 municípios (Art.182). Ora, se política urbana
significa ação deliberada sobre o território, no sentido de definir um espaço e
consolidar um mercado com razoável grau de autonomia, não é ao nível das decisões
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
154
municipais que ela se efetiva. Mais uma vez “política urbana” foi relegada à condição
de corretora de distorções geradas pela “política econômica”.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
III
155
Cadastros e registros
Luisa Battaglia
III
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
156
Cadastros e registros
Sem contar os cadastros imobiliários mantidos pela Prefeituras para fins tributários, existem
no Brasil cinco sistemas de registro de imóveis1 :
a) O Geral, comum e obrigatório (ou melhor, condição sine qua non de
reconhecimento dos direitos de propriedade), disciplinado pela Lei Federal
6015/73).
b) O Torrens, facultativo, instituído no fim do século passado numa tentativa
de garantir de fato os direitos de propriedade sobre imóveis bem definidos;
hoje só é admitido para imóveis rurais.
c) O Rural, organizado pelo INCRA para tributação dos imóveis rurais.
d) O especial, de imóveis rurais adquiridos por estrangeiros (Lei 5.709/71 e
D.74.965/74).
e) O das terras públicas.
Cada sistema foi sendo instituído para atender a uma finalidade precípua, cada um
com uma estrutura própria de manutenção e consulta, cada um sendo alterado ao
sabor das pressões e problemas específicos do momento, sem nenhuma preocupação
com a possibilidade de complementaridade, de compatibilidade e de cruzamento de
dados com os demais sistemas cujos registros são, ou deveriam ser, em boa parte os
mesmos. É como se uma montadora quisesse gerenciar seus estoques de produtos
1
Diniz (1992, pg.23).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
157
mantendo separadamente um sistema de registro dos carros grandes, um dos carros de
luxo, um dos carros verdes etc.
A esses sistemas se acrescentam os cadastro das 4.493 2 Prefeituras do país, mantidos
para fins tributários, que só cobrem as áreas consideradas urbanas. Esses cadastros,
cuja finalidade é o conhecimento das propriedades para fins de pagamento do Imposto
Predial e Territorial Urbano, não garantem o direito de propriedade, reconhecido
apenas através do Registro Geral no Cartório de Registro de Imóveis. Não há
vinculação direta entre esses dois serviços, e nenhum dos dois se baseia em mapas
cadastrais confiáveis.
Tanto o Registro Geral quanto o Torrens são organizados unicamente para provar
direitos individuais sobre imóveis. O sistema de registro das terras públicas seria por
suposto o complemento equivalente. No entanto ele é incompleto e também não
mapeado.
Essa multiplicidade de registros torna inviável, na prática, saber a quem pertence cada
metro quadrado do território nacional. No próprio cadastro imobiliário da Prefeitura
de São Paulo (certamente um dos melhor organizados do país) há centenas de imóveis
de “proprietário ignorado”. O imposto não é cobrado e qualquer ação no sentido de
ocupar a área para uso público deve ser precedida por demorados trâmites judiciais.
De acôrdo com toda a estrutura jurídica a terra não é, em princípio, bem público
cabendo o ônus da prova em contrário a um eventual proprietário privado. Ao
contrário, o poder público deve demonstrar que não há títulos sendo reivindicados
sobre determinada área, ou enfrentar longas disputas judiciais na tentativa de reaver
terrenos “grilados”. Em geral perde.3
Essa relutância em tornar pública a informação de quem é proprietário do que (ou a
quem pertence o território nacional) se esconde atrás da dificuldade técnica de se
2
Número de municípios brasileiros em 01.01.91, segundo o IBGE - Anuário Estatístico do
Brasil, 1991.
3
Sobre “grilagem” em São Paulo ver indicações de documentação em Coe [1983?].
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
158
elaborar e manter um sistema de mapas cadastrais. Até poucos anos atrás 4 os
cartórios continuavam registrando títulos com descrições do tipo “segue por um valo
até a cerca do João da Silva ou quem de direito” e, ainda hoje, quando há um
levantamento, este raramente está referenciado a um sistema geral, conhecido de
coordenadas. Não há controle efetivo possível nessas condições.
O Registro Torrens foi uma tentativa de resolver o problema das frequentes disputas
de terras rurais, pela descrição mais precisa das glebas. Acabou sendo abandonado,
salvo em alguns estados onde foi implantado (Goiás, Rio Grande do Sul, por
exemplos), mesmo assim apenas parcialmente. As tentativas de implantar esse ou os
demais sistemas que o seguiram (INCRA, terras de estrangeiros, terras públicas),
conforme o espírito dominante desde sempre na administração pública brasileira de
acrescentar novos serviços ao invés de fazer funcionar os já existentes, só reforçam a
confusão e dispersam os recursos.
As próprias divisas de estado e municípios tem problemas de demarcação e não estão
claros os procedimentos práticos em casos de alteração física do elemento definidor
da divisa. Exemplos clássicos são o da retificação de um rio ou córrego ou do imóvel
cujas divisas cruzam as divisas do município. Dificilmente essas indefinições trazem
problemas administrativos, razão pela qual as soluções, em geral muito simples, não
são tomadas, contribuindo para manter a confusão e o descaso com o assunto
mapeamento 5 .
Inúmeros são os temas relacionados com a propriedade, o processo de sua formação
ou mesmo apenas com as formalidades de seu reconhecimento, objeto específico
4
Que a prática ainda continua, prova-o a reportagem feita pela TV Bandeirantes de São Paulo
(apresentada em 15 de janeiro de 1995) sobre “grilagem” de terras no Distrito Federal.
5
Um relato sobre a “febre da cassiterita” em São João Del Rei na década de ‘40 é um exemplo
de problemas e vantagens da falta de mapeamento: “...requeriam-se autorizações de pesquisas até pelo
telefone, enviando-se instruções a intermediários no Rio, que logo introduziam os requerimentos,
obtendo praso para a juntada das plantas e demais documentos. Estas plantas, em geral, não eram
obtidas por levantamentos diretos que, não obstante a simplicidade dos seus processos expeditos e
sumários, exigiam a presença de um topógrafo no local, o que já poria de sobre-aviso o proprietário,
que lhe barraria a entrada. Elas eram, em geral, forjada sobre a planta do município, muito falha e
repleta de erros, e abrangiam terrenos onde o requerente nunca havia antes posto o pé, ...” J.G.Moraes
Filho (1951).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
159
desta parte III. Foi portanto necessário delimitar, um tanto arbitrariamente, o assunto
a ser tratado e neste sentido o trabalho aqui apresentado se atém por um lado, a uma
introdução do tema, dando um quadro resumido da multiplicidade dos registros e, por
outro, à descrição de apenas dois sistemas: o registro geral e os cadastros fiscais,
objetos, respectivamente, dos Capítulos 8 e 9. O Capítulo 10 esboça, de maneira
abrangente porém sucinta, as questões relacionadas com as terras agrícolas.
Esses três capítulos são precedidos (Capítulo 7) por algumas informações sobre a
evolução dos cadastros em outros países, particularmente na França, procurando
mostrar a importância dada aos sistemas cadastrais nas sociedades burguesas.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
160
CAPÍTULO 7: SISTEMAS CADASTRAIS
Luisa Battaglia
7
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
161
SISTEMAS CADASTRAIS
“O levantamento tinha dois objetivos: primeiro providenciar as
informações para a arrecadação dos impostos sobre a propriedade e,
segundo, dar ao Rei um conhecimento detalhado da extensão e da
distribuição da riqueza, das terras e das rendas de seus vassalos.”
Morton, A People’s history of England 1
O conhecimento do território e de seus recursos sempre foi uma preocupação dos
governantes pois constitui a informação básica para medir a força disponível e
elaborar qualquer plano de ação, seja de administração, de defesa ou de conquista.
Com a formação das nações-Estado burguesas essa preocupação assumiu formas
muito específicas, decorrentes da necessidade de, por um lado, assegurar a
propriedade individual como instituição confiável e, por outro, permitir ao Estado
utilizar as informações sobre a propriedade individual e os rendimentos dela advindos
como base para tributação.
“É evidente que um Estado de direito moderno, que reconhece duas vezes o
direito de propriedade no preâmbulo de sua Constituição como um direito natural
e fundamental, não pode dispensar um documento de referência fundiária
exaustivo.” (Coudert, 1993).
Esta frase, tirada de um artigo de apresentação do projeto de informatização do
sistema cartográfico nacional da França, apresenta alguns aspectos relevantes para
entender o significado do cadastro numa sociedade burguesa.
1
“The survey had two objects: first to provide the necessary information for the levy of the gel
dor property tax, and second, to give the King a detailed knowledge of the extent and distribution of
the wealth, lands and revenues of his vassals.” Comentários sobre o Domesday Survey, levantamento
das terras e da produção da Inglaterra feito em 1086 por ordem de Guilherme I. (Morton, 1938, pg.64).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
162
Em primeiro lugar é evidente o entendimento ideológico do direito de propriedade,
aceito como direito natural e fundamental. Nota-se, além disso, que não há distinção
de tratamento entre os dois termos, apesar de suas distintas origens: a propriedade é
de fato fundamental para o modo de produção capitalista (ver Capítulo 1) enquanto
que ser considerada natural é apenas resultado de uma formação ideológica.
O segundo aspecto interessante é a importância dada à identificação fundiária
exaustiva. Exatamente porque a propriedade como instituição é fundamental para a
manutenção de uma sociedade burguesa, essa instituição deve ser cercada e protegida
por todas as formalidades jurídicas e técnico/administrativas necessárias para o seu
reconhecimento e a sua perpetuação. Um “documento exaustivo de referência
fundiária” significa o elenco de todas as propriedade e sua representação de maneira a
não haver dúvidas nem quanto à abrangência desse elenco nem quanto à
disponibilidade de todos os recursos fundiários para a produção capitalista, excluida
portanto a possibilidade de qualquer parcela ter sido deixada para produção de
subsistência.
O registro de uma propriedade não é apenas um ato burocrático, externo ao objeto
registrado, como o é, o registro de um nascimento ou de um óbito. Neste caso não é o
fato de registrar que faz com que alguém nasça ou morra, enquanto que no caso da
propriedade e sim o registro (ou qualquer outro ato equivalente) que confere
existência à propriedade como tal. Portanto o processo histórico de afirmação da
propriedade e da distribuição da terra em propriedades teve de ser acompanhado dos
correspondentes reconhecimentos formais, que no Brasil vão das cartaas de sesmarias
ao registro nos Cartórios.
Este capítulo apresenta um breve apanhado da formação da propriedade numa
sociedade burguesa, mas desta vez sob o ponto de vista das formalidades do seu
reconhecimento. São apontadas as relações, mais ou menos estreitas, entre o cadastro
e os registros jurídicos da propriedade, assim como seus precedentes históricos para,
em seguida, apresentar como exemplo algumas das características gerais do sistema
cadastral francês.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
163
A escolha da França para mostrar aspectos do tratamento dado à propriedade por uma
sociedade burguesa teve dois motivos:
O cadastro francês sempre foi apresentado no Brasil como modelo de qualidade,
devido talvez à indubitável influência da França nos nossos meios acadêmicos e entre
os profissionais do planejamento. Mesmo não tendo a perfeição muitas vezes
alardeada, é de fato um modelo pela sua organização e, principalmente, pelo fato de
estar apoiado numa sólida base cartográfica.
O segundo motivo tem a ver com a semelhança das estruturas jurídicas da França e do
Brasil, derivada da semelhança das estruturas sociais marcadas pela implantação
incompleta do assalariamento 2 . Ambas as estruturas jurídicas se baseiam no Direito
Romano e ambas tem uma forte tradição de direito baseado em textos formais, à
diferença da importância dada à jurisprudência pela Inglaterra (e ex-colônias), por
exemplo. Muito da legislação brasileira sobre cadastros e registros sofreu influência
direta da francesa, sem no entanto dispor da base organizacional capaz de garantir
resultados semelhantes. De fato, apesar da permanência em abas as sociedades de
uma classe de trabalhadores não assalariados, as duas se diferenciam pelas
características das classes dominantes (burguesa na França, de elite no Brasil) e,
portanto, pela organização social correspondente. Assim, enquanto na França a
acumulação capitalista exige o conhecimento do território e a contínua expansão da
infraestrutura, no Brasil a acumulação entravada requer o descontrole do espaço, a
escassez da infraestrutura e o cultivo do arbítrio. Nestas condições um cadastro
organizado não só é desnecessário como indesejado.
7.1 O conceito de cadastro
2
Vale lembrar que a Revolução Francesa não redundou no assalariamento de toda a população
trabalhadora pois deixou uma classe de “camponeses”, produtores independentes.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
164
Cadastro, na origem, é o arquivo (ou sistema de arquivos) que reúne o conjunto de
informações sobre a propriedade imobiliária necessárias para o lançamento dos
impostos sobre as mesmas. É com este sentido que a palavra é usada na França 3
(cadastre) e na Itália 4 (cadastro), e é com este sentido que ela é empregada neste
trabalho.
Essa observação é necessária para evitar confusões geradas pelo frequente uso do
termo num sentido mais genérico, visto que no Brasil cadastro passou a designar uma
relação organizada de dados sobre um conjunto de elementos quaisquer.
“Por extensão cadastro, aproveitado na organização informativa que representa,
passou a designar todo sistema de fichário, organizado pelos estabelecimentos
públicos ou particulares, referente a qualquer assunto de seu interesse, seja
econômico ou mesmo administrativo. E assim se conhecem os cadastros
policiais, bancários, e outros.” (Silva, De P., 1963, pg.272)
Distinguem-se dois tipos de cadastros: os fiscais e os jurídicos.
Os fiscais, são mantidos pelo Estado apenas para fins de tributação, sem que com isso
ele assuma a prova da propriedade que cabe, exclusivamente, ao proprietário. Quando
da confecção ou atualização do cadastro o Estado aceita a informação aparente,
fornecida mediante certas regras que não incluem o estabelecimento da prova jurídica
da propriedade. O cadastramento se dá sem que seja precedido pela publicação dos
dados com vistas ao levantamento de possíveis contestações e ao acerto e
reconhecimento legal. A Inglaterra, por exemplo, mantém um cadastro deste tipo,
separado do registro fiscal isto é, os dados que contém não tem valor jurídico, não
3
Eis um exemplo de definição de cadastro na França: “O cadastro poderia ser definido como o
inventário geral dos imóveis construídos e não construídos de um território, identificados graças a uma
representação planimétrica das parcelas (lotes), qualificados quanto à utilidade econômica e à
propriedade, com a finalidade de fornecer à administração uma estimativa suficientemente exata para
distribuir de maneira eqüitativa os impostos sobre a propriedade fundiária.” (Maurin, 1992, pg.13).
4
Definição de catasto segundo o Zingarelli – Vocabolario della lingua italiana: “Conjunto das
operações destinadas a estabelecer a consistência e os rendimentos dos imóveis com a finalidade de
lançar-lhes os correspondentes impostos. / Conjunto de documentos e registros que contém os
resultados de tais operações.”
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
165
servem como prova de propriedade e, via de regra, não tem relação com os registros
nos Cartórios que, estes sim, constituem prova de propriedade.
Os cadastros jurídicos reúnem num único sistema o reconhecimento dos direitos e os
dados para tributação. Nestes casos o Estado intervém diretamente na determinação
das provas de propriedade: o cadastro e o registro são serviços complementares que
emitem um título de propriedade garantido pelo Estado. O Grundbuch, o livro
fundiário alemão onde são registradas as propriedades, está fundamentado sobre um
cadastro jurídico.
Qualquer que seja o tipo de cadastro ele tem duas funções, às quais correspondem
formas diversas de gerenciamento: uma função “estática”, de armazenamento de
dados de situação física, cuja alteração é esporádica; uma função “dinâmica”, de
manutenção das frequentes alterações de ocupação, uso, propriedade etc.
Nos últimos anos vem-se difundindo nos países centrais a utilização da estrutura
cadastral como suporte para dados de interesse para planejamento, obras, gestão de
serviços etc. Essa utilização, tornada viável graças aos avanços tecnológicos na área
da informação, ainda esbarra em problemas de organização e de mudança de
estruturas administrativas mesmo em países que dispõem de cadastros atualizados
como a França ou os Estados Unidos. No Brasil há tentativas isoladas de utilizar os
dados cadastrais para outros fins que não os tributários, tentativas essas limitadas não
só por problemas administrativos mas pela própria precariedade dos cadastros.
7.2 Precedentes históricos
Um dos primeiros cadastros de que se tem notícia foi criado no Egito, cerca de 3000
anos A.C., com a dupla função de estabelecer uma base tributária e de permitir a
recuperação dos limites dos terrenos periodicamente inundados pelo Nilo.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
166
Os cadastros gregos já incluíam as áreas urbanas e refletem uma vontade de controlar
a forma de ocupação do território através de parcelamentos cuidadosamente
projetados.
Os romanos, cuja organização social inclui durante muito tempo uma classe de
proprietários de terra, desde cedo dispuseram de bons serviços de medição e de
delimitação das áreas (ciência dos agrimensores). Nas províncias conquistadas
procederam à criação de cidades e à redistribuição de terras seguindo os princípios de
traçado dos campos militares, de tal modo que os cadastros se confundiam com os
planos de implantação. Esses planos continham as inscrições dos lotes, as medidas
das áreas que permaneciam de uso comum, a avaliação do rendimento e a situação
jurídica das terras: sob domínio do governo central ou do município, distribuídas
entre cidadãos romanos ou devolvidas aos antigos possuidores (em geral por serem
terras medíocres). Muitas propriedades, principalmente na França e na Itália (o caso
de Bologna é notável), guardam até hoje o traçado das centuriae romanas 5 .
Apesar da qualidade dos cadastros romanos é provável que estes não tivessem base
cartográfica. Registros de casos jurídicos mostram a preocupação em confiscar
representações cartográficas para evitar que outros que não o imperador tivessem
conhecimento da extensão do Império. Mas mesmo não relacionados a um sistema de
representação cartográfica único que permitisse a elaboração de um mapa geral de
uma província ou do Império, os cadastros tinham representações gráficas precisas
pois a planta cadastral de cada cidade ou projeto de assentamento era corretamente
amarrada a acidentes locais. Essas plantas cadastrais foram instrumentos importantes
para a administração fiscal, para a distribuição de terras, para projetos de utilização de
novas áreas (irrigação, drenagem, derrubada de florestas), para possibilitar o censo
dos recursos disponíveis.
5
A centuria correspondia ao terreno entre vias (o que hoje chamaríamos quadra) e recebia esse
nome porque, na origem, era dividida em cem lotes individuais, de domínio privado. Tinham uma área
de 200 jugeri (perto de 50 ha), cada jugerum (jeira em português) equivalendo à superfície que podeia
ser arada num dia por uma parelha de bois sob jugum (canga).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
167
Com a queda do Império Romano os cadastros deixaram de ser mantidos, se bem que
alguns continuaram a ser utilizados por algum tempo como instrumentos fiscais.
Segundo Maurin 6 ,
“muito provavelmente os Merovíngios mantiveram, sem atualização, o imposto
fundiário romano – e portanto o cadastro que permitia seu funcionamento –
enquanto puderam dispor de pessoal suficientemente capaz para administrá-lo.”
Bem mais do que a falta de pessoal para administrar os restos dos cadastros romanos
pesou no seu abandono o fato de não corresponderem mais nem a necessidades
administrativas nem a conceitos jurídicos, uma vez que a sociedade feudal se
organizou em torno do domínio senhorial sobre as terras e de intrincadas ralações de
vassalagem, o que não incluía qualquer conceito de propriedade individual.
Encontram-se restos de vários levantamentos de domínios feudais feitos durante a
baixa Idade Média para avaliar a extensão e qualidade das terras, a população servil e
portanto as rendas que poderiam ser extraídas. De maneira geral esses levantamentos
não possam de descrições pouco precisas.
Uma exceção foi o Domesday Survey 7 , um completo recenseamento da capacidade
produtiva da Inglaterra, feito por ordem de Guilherme o Conquistador em 1087,
apenas 20 anos após a conquista. Apesar das queixas e protestos generalizados,
registrados pelos cronistas da época, os encarregados do levantamento percorrem
quase todas as cidades e aldeias do país, perguntando sobre a extensão das áreas
cultivadas, quem as cultivava, quanta gente havia, quantos arados, quantos bois etc.
etc. Todas essas informações foram registradas no Domesday Book que nos dá uma
boa imagem da estrutura social e das fontes de riqueza na Inglaterra do século XI.
Não se trata de um cadastro mas de um levantamento mais abrangente que mostra
bem o tipo de informações que interessavam para a gestão dos domínios na época.
6
Maurin (1992, pg.53, n.31).
7
Morton (1938).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
168
Durante a Idade Média, pelo menos na França, os municípios (restos das cidades de
administração autônoma do Império Romano) tinham liberdade para lançar, quando
necessário, impostos diretos em função da capacidade de contribuição de cada um. As
estimativas desta capacidade, sem base material de comparação, geraram revoltas e
acabaram fortalecendo a idéia de manter registros das declarações de capacidade de
contribuição com base nos bens disponíveis. Apesar de parciais e desarticulados, e de
não terem representação gráfica, esses registros são vistos como o ressurgimento dos
cadastros, a partir do fim do século XIII e início do XIV. A representação gráfica só
apareceu na França no século XVIII.
7.3 O cadastro na França
Coerentemente, o cadastro das propriedades (e não apenas o levantamento da
capacidade tributária) na França nasce com a revolução burguesa. As primeiras
medidas tomadas continuaram sendo na direção de se conhecer os rendimentos
fundiários, estabelecidos como base tributável, mas ficou claro desde o início que
para tanto era preciso substituir os velhos registros medievais. Esses, não só se
haviam tornado obsoletos pela própria forma de administração como, principalmente,
não respondiam às inúmeras alterações correspondentes às mudanças jurídicas
(direitos feudais transformados em propriedade) e aos confiscos das terras da Igreja.
Atribui-se a Bonaparte, Primeiro Cônsul, a declaração:
“Nunca se fez nada na França a favor da propriedade; aquele que fizer uma boa
lei sobre o cadastro será merecedor de uma estátua.” 8
Conforme observado acima, a revolução burguesa na França, à diferença da
Inglaterra, não se fez sobre a espoliação do campesinato e a população camponesa foi
em grande parte transformada em pequenos proprietários. Isto impôs a necessidade de
8
Maurin (1992, pg.33).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
169
se montar um sistema cadastral capaz de fornecer dados para tributação sobre muitas
pequenas parcelas, portanto mais difícil de manter do que um cadastro de grandes
propriedades.
Uma primeira tentativa de confecção de um cadastro geral foi lançada em 1802.
Previa-se o traçado, sobre mapas comunais na escala 1:5.000, das áreas de uso
homogêneo. A subdivisão entre os proprietários no interior de cada área não seria
mapeada, valendo as declarações de superfície de cada um. A experiência foi um
fracasso o que, em julho de 1807 valeu nova observação de Napoleão, já Imperador:
“As meias medidas sempre fazem perder tempo e dinheiro.” 9
No mesmo ano de 1807 foi determinada a execução de um cadastro nacional, a nível
de lote. A extensão e objetivos desse cadastro estão claramente expressos na
exposição de motivos da lei que o criou:
Medir sobre uma extensão de mais de quarenta mil léguas quadradas mais de
cem milhões de parcelas ou propriedades separadas, confeccionar para cada
município um mapa em formato de Atlas contendo esses cem milhões de
parcelas, classificá-las de acordo com o grau de fertilidade do solo, avaliar o
produto bruto de cada uma; reunião em seguida, para cada proprietário, as
parcelas que lhe pertencem, determinar pela soma de seus produtos o rendimento
total, e fazer deste rendimento um indicador que será daí em diante a base
imutável para sua tributação ... 10
Apesar desse caráter nitidamente fiscal do cadastro projetado (a cargo do Ministério
das Finanças), havia a idéia de que ele poderia ter valor jurídico com o que resolveria
todos os problemas de contestação de divisas. O próprio código cadastral, elaborado
no início do processo de levantamento diz:
9
Maurin (1992, pg.35).
10
Maurin (1992, pg.35).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
170
Art.1143 O cadastro pode, e deverá com o tempo, servir de título na justiça para
provar a propriedade. 11
E, finalmente, vale mais uma citação do imperador que resume bem o significado do
cadastro naquele momento qual seja, o reconhecimento da nova situação jurídica da
propriedade no início do século XIX:
“O que melhor caracteriza o direito de propriedade é a posse pacífica e declarada.
É preciso que o cadastro se limite a constatar essa posse. Meu código fará o resto;
e na segunda geração não haverá mais processos para contestação de divisas.” 12
O cadastro foi terminado em 1850 mas já muito antes começaram a se avolumar as
reclamações e críticas: não havia sistema de atualização e a própria legislação que
criara o cadastro o havia considerado imutável, um retrato definitivo da estrutura
fundiária e da capacidade de produção agrícola do país. Apenas os nomes dos
proprietários eram atualizados, o que obviamente não correspondia à mobilidade das
divisas e dos usos do solo, não mais presos a normas e tradições feudais.
Uma comissão montada em 1891 concluiu, após vários testes e 14 anos de trabalho,
pela revisão/reconfecção do cadastro e pela instituição de livros de registro fundiário,
baseados no cadastro e tendo valor jurídico. A comissão recomendava:
1) agilizar os trabalhos de colocação de marcos de referência em todo
o país
2) coordenar meios e programas para completar os trabalhos em trinta
anos
3) nomear um Conselho junto ao Ministro das Finanças para assegurar
a qualidade dos trabalhos
Essas conclusões não tiveram sequência.
11
“Art.1143 Le cadastre peut et doit même nécessairement par la suite, servir de titre en justice
pour prouver la propriété.”
12
Maurin (1992, pg.59, n.90).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
171
Em 1898 nova lei instituiu regras para a reforma parcial do cadastro, condicionando-a
à solicitação dos departamentos ou das “communes”. Pelo seu caráter parcial e nãojurídico essa reforma teve pouco efeito.
Diante das crescentes distorções fiscais geradas pela obsolescência do cadastro que
continuava em vigor, em 1907 o parlamento aprovou uma lei autorizando uma
reavaliação direta dos rendimentos de cada propriedade. Resolvia a curto prazo o
problema fiscal sem, no entanto, criar as condições para uma solução duradoura. De
fato, após uma primeira reavaliação, foram crescendo as dificuldades pra manter essa
avaliação atualizada, com a base cadastral cada vez mais obsoleta.
Uma lei de 1930 determinou a renovação do cadastro nas áreas de baixa densidade
(predominância de uso agrícola), aproveitando as plantas existentes e apenas
atualizando as alterações de divisas. A execução dos trabalhos demonstrou a
inviabilidade do aproveitamento de boa parte dessas plantas, seja por deficiências das
plantas, seja pela quantidade das alterações ocorridas.
A estrutura atual do cadastro se apoia em lei de 1941 (e decretos de regulamentação)
que determinou a execução de um novo levantamento e a unificação dos métodos e
serviços ligados à renovação cadastral. Foi previsto que, à medida em que ocorresse
esta renovação, o cadastro garantia a identificação dos imóveis. Ao mesmo tempo a
documentação da situação jurídica seria mantida por cartórios de registro de
hipotecas, com base no cadastro. Note-se que a importância dessas medidas e dos
serviços decorrentes não está apenas no fato de ter sido determinado um novo
levantamento mas principalmente no de ter sido montada uma estrutura
administrativa e jurídica, com recursos e regras estáveis de funcionamento, visando a
atualização permanente do cadastro. Não se tratava de refazer todo o levantamento
mas de corrigir, completar e atualizar, permanentemente, aproveitando todo o
trabalho já acumulado e revendo constantemente as prioridades. O novo cadastro foi
paulatinamente substituindo o velho cadastro, aproveitando grande parte de sua
estrutura e de seus dados, e vale notar que o processo de substituição ainda não está
terminado.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
172
A partir de 1972 foram introduzidas novas técnicas de informatização e as plantas
passaram a ser digitalizadas. Durante a década de ‘70 foram introduzidos os grandes
arquivos de apoio ao cadastro 13 , utilizados por todas as administrações públicas e
usuários privados:
RIVOLI (Répertoire dês Voies et Lieux-dits 14 ) - Contém o nome de todas as vias
e localidades, por departamento e “commune”, e um código associado a cada
nome. É utilizado desde 1973.
RGU (Répertoire Géographique Urbain 15 ) - Contém todas as quadras, por
departamento e “commune”, identificas por um código e associadas aos
segmentos das vias que as limitam. Contem também os nós que limitam os
segmentos de vias e os números dos imóveis (endereço) dos cantos de quadra.
Está em operação desde 1976.
RGP (Répertoire Géographique dês Parcelles 16 )- Contém todas as parcelas ou
lotes, por departamento e “commune”, cada uma identificada por um código e
associada à quadra que a contém e à via que lhe dá acesso. Em 1978 ainda estava
em fase experimental e tornou-se operacional na década de ‘80.
A esses arquivos foram acrescentadas a relação das construções e a relação dos
proprietários. Um sistema complexo apoiado num trabalho de padronização permite a
passagem de um arquivo a outro e a pesquisa a partir de qualquer dado de entrada.
Os números a seguir (de 1° de janeiro de 1987) dão uma idéia do volume de dados
tratados pelo sistema cadastral, provavelmente o sistema que manipula o maior banco
de dados da França 17 :
Área total do território metropolitano 18
13
546.547 km2
CEESI (1979) e OPIDA (1978).
14
Relação das vias e localidades. “Lieux-dits” designa aglomerados de parcelas e/ou
construções que, não correspondendo a alguma divisão administrativa, são conhecidos por algum
nome. Correspondem mais ou menos aos nossos “bairros”.
15
Relação Geográfica Urbana.
16
Relação Geográfica das Parcelas.
17
Maurin (1992, pg.48).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
Número de vias
788.388
Número de localidades
5,7 milhões
Número de parcelas
97,4 milhões
Número de proprietários
20 milhões
Número de atualizações por ano
20 milhões
173
O impostos sobre a propriedade imobiliária, mesmo sendo recursos das “communes”,
são lançados e arrecadados pelo governo nacional. Anualmente, por ocasião da
elaboração do orçamento, os dados cadastrais são usados para o cálculo e lançamento
dos impostos fundiários. Mas os mesmo dados de identificação de vias, quadras e
lotes também são fornecidos para as finalidades mais diversas, de gestão e
planejamento. São cada vez mais frequentes os convênios entre administrações de
diversos níveis para a troca e atualização permanente de dados.
Vale ainda mencionar que todo o cadastro se apoia sobre um sistema cartográfico
nacional, mantido pelo IGN (Institut Géographique National).
A meta de transformar o cadastro num instrumento de valor jurídico ainda não foi
plenamente alcançada. Os tribunais aceitam como pressuposto as informações do
cadastro mas essas não tem valor diante de um título ou outro documento de posse
reconhecido (contrato de compra e venda, por exemplo). No entanto, a cada caso de
acerto judicial de divisas e de propriedade os dados acertados são incorporados pelo
cadastro.
Muitas das pendências judiciais que ainda surgem se devem a situações não
perfeitamente enquadradas nas definições de propriedade como direito absoluto.
Existem ainda ônus e direitos sobre a terra, vindos de relações pré-capitalistas e que,
apesar de previstos no cadastro, nem sempre são corretamente anotados pelos
encarregados do levantamento. Esses ônus e direitos correspondem em boa parte aos
18
Não incluidos os territórios de além-mar.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
174
previstos no Código Civil brasileiro, acrescidos de alguns específicos de
determinadas regiões ou característicos de situações não existentes no Brasil
(relativos ao uso de canais, por exemplo). Diferentemente do que ocorre no Brasil, a
legislação francesa prevê detalhadamente qual parte de imposto compete a cada um
dos detentores de um direito real, o que exige informações mais precisas do que o
mero nome de um proprietário.
Estão em curso debates em torno da total informatização do cadastro e sua utilização
como base para o desenvolvimento de Sistemas de Informações Geográficas 19 . O
Plano Informatizado Nacional (PNN – Plan Numérique National 20 ) tem por objetivo
“transformar o cadastro naquilo que se acredita ser”, especificamente:
definir os limites das propriedades e não a sua posse aparente;
definir esses limites através do acerto entre as partes, de modo a validá-los
juridicamente;
transformar em parcelas e delimitar todos os terrenos de domínio público;
elencar para cada parcela os direitos e ônus reais;
localizar cada parcela num sistema nacional de localização.
Finalmente, mesmo num relato sumário com este, é relevante notar a importância
dada às terras agrícolas que, historicamente, constituíram o primeiro objeto do
cadastro.
7.4 Informações esparsas sobre outros cadastros 21
19
Mais conhecidos pela sigla inglesa GIS (Geographic Information Syystem). Ver a respeito o
ítem 7.5 – Alterações tecnológicas. Sistemas de Informações Geográficas.
20
21
Coudert, Georges (1993).
Esses dados não foram objeto de pesquisa: foram aparecendo ao longo das leituras ou do
trabalho profissional desenvolvido nesses últimos anos. Na inviabilidade de um tratamento sistemático
julguei preferível apresentá-los assim mesmo, ao invés de ignorá-los e omiti-los.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
175
Seguem algumas informações sobre cadastros e tributação imobiliário em alguns
países centrais: Itália, Holanda, Canadá e E.U.A. Essas informações não tem
nenhuma sistematização nem pretendem montar um quadro abrangente dos cadastros
no mundo. São apenas dados esparsos, com o intuito de mostrar a diversidade de
preocupações e de soluções em diversas sociedades capitalista e, ao mesmo tempo, a
constância de certos problemas.
Itália 22
O sistema cadastral na Itália é essencialmente fiscal, salvo em algumas provincias que
faziam parte do Império Austríaco onde ele dá certa cobertura jurídica. É formado por
dois grandes cadastros: o dos terrenos e o das construções urbanas.
O primeiro foi organizado a partir de uma lei de 1886 para substituir os diversos
arquivos existentes antes da recente unificação do país. Houve várias alterações legais
até a consolidação por um texto único em 1931/33. O levantamento em si foi
terminado em 1956, tendo sido mapeadas todas as parcelas (lotes) em escala 1:2.000
ou 1:1000. Aos mapas são anexados arquivos alfanuméricos contendo dados sobre o
proprietário, sobre o uso, ocupação e características físicas da propriedade. Esses
dados são recuperáveis por lote ou por proprietário.
O cadastro das construções urbanas foi refeito a partir de 1961, com base nas
declarações e plantas fornecidas pelos proprietários (em escala 1:100 e 1:200).
Holanda
Na Holanda perto de 100 das 650 administrações locais fornecem informações
topográficas e cadastrais mapeadas à Agência Central de Cadastro. Essa agência tem
170 anos e, segundo os holandeses, mantém um dos cadastros mais completos do
mundo. A definição geométrica de todas as propriedades do país é atribuição dessa
22
Maurin (1992).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
176
Agência Central, que distribui os mapas cadastrais. As cidades que mantém serviços
próprios de levantamento e controle de uso do solo fornecem a esse cadastro central a
identificação de cada propriedade. A terra agrícola é isenta de imposto.
Canadá 23
As informações disponíveis sobre o Canadá se referem à cidade de Toronto e à
província de Ontário abrangendo, portanto, a parte mais populosa e rica do país.
O Canadá se organiza em quatro níveis de governo: federal, provincial, regional
(metropolitano) e local. O cadastro das propriedades e os valores atribuídos a cada
uma (“property assessment”, correspondente ao valor venal) são mantidos pelo
Departamento Regional de Avaliação (Ministério da Receita) da Província de Ontário
e tratadas através do “Standard Assessment System”. Anualmente uma fita com os
dados cadastrais e os valores venais (“Assessment Tape”) é enviada a cada
administração local para o rateio e lançamento dos impostos. A partir dessa fita a
prefeitura da cidade de Toronto cria um arquivo (“Tax Master File”) que alimenta um
sistema (“Tax System”) para o cálculo, lançamento e controle de arrecadação dos
impostos. O sistema foi desenvolvido no fim da década de ‘50, a partir das rotinas
baseadas em arquivos em papel e cartões perfurados. O sistema mantém duas
contabilidades separadas, para propriedades imobiliárias e para atividades
econômicas.
Todas as alterações relativas à propriedade (compra/venda, desmembramento,
construção, reforma, mudança de uso) são comunicados ao cadastro provincial para
atualização.
O cálculo, lançamento e arrecadação do imposto são atribuiões do governo local. No
Canadá (assim como nos E.U.A.) o imposto imobiliário por unidade tributada não
resulta da aplicação de uma alíquota fixa a um valor venal do imóvel mas sim do
rateio do valor total do imposto a ser arrecadado, por todos os contribuintes, em
23
City of Toronto: manuais e relatórios técnicos.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
177
função do valor venal de cada imóvel. Na prática determina-se um índice de rateio
(mill rate 24 ) que, em seguida, é aplicado ao valor da propriedade.
B
M= ____
ti = m * Ai
Ai
onde
m = mill rate
B = total do imposto imobiliário orçado
Ai = valor estimado da propriedade i
ti = imposto sobre a propriedade i
O imposto total a ser arrecado é definido (votado) como parte do orçamento e é
formado pela soma das parcelas a serem destinadas às administrações local, regional
e das escolas públicas. Como exemplo, foi a seguinte a distribuição desse imposto em
Toronto, em 1989:
Cidade de Toronto
20,9%
Região Metropolitana
25,8%
Escolas
53,3%
Os impostos imobiliários respondem por cerca de 86% do total das receitas próprias
da Cidade de Toronto.
E.U.A. 25
Nas colônias inglesas da América eram comuns 5 tipos de imposto:
24
O índice recebe este nome porque costuma ser expresso em miliavos (um dólar de imposto
por mil dólares de valor venal).
25
Eckert (1990).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
178
Per capita (“Poll tax”) isto é, um imposto igual por pessoa, independente
de ocupação, renda ou propriedade. Geralmente incidia sobre os
adultos de sexo masculino e às vezes sobre os escravos (o que o
transformava em imposto sobre propriedade).
Sobre propriedades especificadas (não necessariamente sobre a terra). Em
geral era fixo, independente do valor da coisa tributada.
Sobre a capacidade potencial de ganho, incidindo sobre pessoas dedicadas
a determinadas atividades ou tendo determinados recursos técnicos.
Sobre importação e exportação.
Sobre determinados ítens de consumo.
A composição variava nas diversas colônias, dependendo das relações de força do
momento. Em geral os grandes proprietários de terras conseguiam minimizar os
impostos fundiários.
O aumento de impostos para custear a Guerra de Independência pôs em evidência as
distorções na sua distribuição e provocou resistências, até armadas, em diversos
estados. Já no século XIX se difundiu a idéia de tributar todas as propriedades,
inclusive as moveis e as “intangíveis”. O Illinois foi o primeiro estado a incluir esse
tipo de imposto em sua constituição. As dificuldades (administrativas e jurídicas) de
lidar com impostos sobre qualquer tipo de propriedade levaram ao abandono dessa
base tributária ampla, permanecendo apenas o imposto sobre a propriedade
imobiliária.
Hoje a regulamentação e a administração do processo de avaliação da base tributária
são, em geral, responsabilidades dos governos estaduais. Em alguns estados são as
administrações locais que procedem à avaliação, supervisionadas por algum órgão
estadual.
A base cartográfica é mantida pelo Governo Federal. Em 1785 foi criado o primeiro
sistema de amarração cartográfica, o United States Public Land Survey System, com a
finalidade de demarcar as terras ainda não apropriadas (terras públicas). Consiste
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
179
numa malha retangular, definida por paralelos e por linhas paralelas a um meridiano
arbitrário, equidistantes aproximadamente seis milhas. Cada retângulo assim definido
é denominado “township” e é dividido em trinta e seis “sections” de
aproximadamente uma milha quadrada. Os cantos dos “township” foram marcados no
terreno, cobrindo todo o território, com exceção das treze colônias originais onde at
erra já havia sido dividida em propriedades. Esse sistema funciona como um índice
de localização dos mapas cadastrais.
Todas a plantas de subdivisão de terras são registradas por algum órgão oficial, em
geral ao nível do “country”.
7.5 Alterações tecnológicas. Sistemas de Informações Geográficas
Os avanços na tecnologia de armazenamento e manipulação de dados nas duas
décadas, principalmente a recente difusão da computação gráfica, levantaram em todo
o mundo a possibilidade (e portanto, a necessidade) de informatizar a cartografia e as
plantas cadastrais e de estabelecer o tratamento simultâneo dos dados gráficos e alfanuméricos. A informatização desses serviços requer (e provoca) mudanças na
organização administrativa da mesma ordem de grandeza das que já foram
provocadas nos países centrais pela introdução dos computadores no tratamento dos
arquivos de dados alfa-numéricos.
As discussões em torno dessas mudanças ainda estão em níveis técnico-operacionais
e aparecem em artigos de revistas especializadas e anais de congressos. Ao mesmo
tempo se avolumam as experiências em todo o mundo, pressionadas pela busca da
“eficiência” ou atraídas pelo fascínio da vanguarda tecnológica.
Uma reflexão sobre as perspectivas a médio prazo ainda está para ser feita. No
entanto, pelo menos na França, algumas questões estão sendo colocadas, não apenas
com relação às dificuldades operacionais para mudar rotinas administrativas mas
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
180
também pondo em dúvida a própria “eficiência” supostamente alcançável coma
informatização e integração de todos os serviços ligados ao cadastro, em todo o país.
Além de ter uma sólida tradição nas áreas da cartografia e do cadastro, os franceses
desenvolveram seus próprios aplicativos e sistemas de computação gráfica e há vários
anos já informatizaram os serviços nacionais, associando cartografia, cadastro e
imagem. Já o processo de informatização dos departamentos regionais e
“communes”, a ampliação dos serviços e o intercâmbio de dados avançam com
dificuldades maiores e começam a colocar de maneira aguda questões jurídicas e
gerenciais a serem resolvidas.
O problema mais recorrente nas publicações e congressos é o da adequação das
estruturas administrativas, em geral hierarquizadas, para a utilização de tecnologias
cujas vantagens residem justamente na possibilidade de distribuir informações e
responsabilidades não hierarquizadas. Um relatório governamental sobre a
informática na administração francesa conclui que
“O computador não melhorou a eficácia da administração. A introdução de
aplicativos informáticos raramente conduz a alterações profundas, limitando-se
na maioria das vezes a decalcar os sistemas pré-existentes, consolidando os
isolamentos tradicionais.” (Rouet 26 , 1992).
Foge ao escopo deste trabalho investigar se essas questões também são colocadas em
países como a Inglaterra, a Alemanha ou os E.U.A., que também dispõem de
cadastros bem organizados e de uma boa base cartográfica, ou se são problemas mais
restritos à França e, neste caso, investigar como essa diferença se relaciona com o
fato da França não ter se constituído desde o início numa sociedade inteiramente
capitalista.
26
Economista, responsável pelo desenvolvimento do Sistema de Informações por Parcela criado
pela administração de Paris na APUR (Atelier Parisien d’Urbanisme), órgão de planejamento territorial
da cidade.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
181
Muitos dos problemas levantados por técnicos e administradores franceses soam
familiares no Brasil, o que reforça o interesse nessas questões, apesar das diferenças
na organização social dos dois países.
Um desses problemas, por exemplo, diz respeito ao sigilo das informações cadastrais.
Se, por um lado, os “direitos individuais” são cada vez mais invocados como
justificativas de ações e de atos legais, por outro a manutenção do sigilo como forma
de preservar esses “direitos” assume cada vez mais o caráter de defesa de interesses
não mais aceitos como legítimos. A alegada necessidade de sigilo dos dados
cadastrais no Brasil é claramente apensa uma forma de inviabilizar o conhecimento
da distribuição das terras e a comparação entre bases tributáveis.
A divulgação da informação, que não se colocava como problema enquanto os bancos
de dados estavam escondidos em grandes computadores de acesso restrito, passa a ser
uma questão de acerto institucional à medida em que este acesso se torna
tecnicamente mais fácil e em que mais usuários compartilham dos mesmos dados
para diversas finalidades.
As possibilidades técnicas de armazenamento e manipulação de dados e a velocidade
com que a tecnologia evolui tornam obsoletos, cada vez mais rapidamente, os
equipamentos e programas aplicativos utilizados, ao mesmo tempo em que
enxurradas de dados se tornam acessíveis. Se, do lado dos capitalistas individuais isto
significa a cada vez mais rápida obsolescência do capital fixo 27 , do ponto de vista do
Estado significa a necessidade de adoção de procedimentos e rotinas administrativas
capazes de evoluir com a constante incorporação de nova técnicas de tratamento de
dados.
27
“Na definição mais geral, capital fixo é a parte do capital empregada para garantir as
condições de produção por mais de um período de produção e capital circulante é a parte adiantada
para as condições de produção para um período de produção isto é, um período ao fim do qual o valor
de troca das mercadorias produzidas durante o mesmo período é realizado em forma monetária. ... Os
componentes mais comuns do capital fixo são máquinas e edifícios, enquanto que os do capital
circulante são salários e matéria prima.” (Deák, 1985, pg.127). A esses componentes do capital fixo
deve-se acrescentar (para o que interesse no caso) as informações, parte essencial do processo de
aumento de produtividade (e portanto da acumulação).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
182
Nas sociedades burguesas o avanço tecnológico é quase inteiramente financiado pelo
Estado, cujas instituições servem em parte para teste das aplicações de tais avanços.
No Brasil, não só a pesquisa científica praticamente inexiste, como o Estado
dificilmente adota novas técnicas em suas rotinas administrativas.
A incorporação de alterações tecnológicas pelo Estado brasileiro, restrita até agora a
poucos setores isolados, significaria uma efetiva “reforma administrativa” em que a
“informatização” (para usar um termo em voga) seria um jeito de fazê-la e não uma
sobreposição 28 .
28
Sobre as propostas de “reforma administrativa” e de “informatização” da Prefeitura de São
Paulo ver Battaglia, 1990.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
CAPÍTULO 8:
OS CARTÓRIOS DE REGISTRO DE IMÓVEIS
183
Luisa Battaglia
8
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
184
OS CARTÓRIOS DE REGISTRO DE IMÓVEIS
“Antigamente tudo que a gente vê aqui na Vila Capivari, não tinha dono. Um dia
chegaram dois homens: um chamado Jordão e outro chamado Caetano. E
combinaram dividir entre eles todos os campos. Mas não sabiam como fazer as
divisas. Então combinaram que cada um reuniria os seus piões e estes iriam
ateando fogo em linha. Nos pontos onde os fogos se encontrassem, aí seriam as
divisas.” (pg.28)
“Ele veiu pros Campos do Jordão desde que os portugueses chegaram ao Brasil.
Desde a barra do Paraíba, desde Taubaté, tudo era dele, mas ele não comprou,
ficou com as terras.” (pg.29) 1
8.1 A instituição dos registros
Os cartórios fazem parte do rol dos ofícios públicos cujas origens devem ser
procuradas na própria formação do Estado português. De acôrdo com as
Ordenações Filipinas 2 , os ofícios públicos eram considerados imóveis, providos
como propriedade vitalícia dos nomeados, podendo ser vendidos. Somente no
século XIX essa prática começou a ser revista. A Lei de 11/10/1827 (portanto já
depois da Independência) diz no Art.1° que
“nen-um offício de Justiça ou Fazenda, seja qual for a sua qualidade e
denominação, será conferido a título de propriedade”.
E segue (Art.2°) determinado que os ditos ofícios
1
Depoimentos recolhidos por Nicanor Miranda: Três lendas paulistas. In Revista do
Arquivo Municipal CLXVI, Prefeitura do Município de São Paulo, 1962.
2
As Ordenações Filipinas, instituidas em 1603, eram o conjunto de eis que regulavam a
administração de Portugal e suas colônias e que, mantidas pelo Brasil mesmo tipo da
Independência, só foram revogadas em 1917 pelo Código Civil.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
185
“serão conferidos por títulos de serventias vitalícias à pessoas que para eles
tenhão a necessária e que os sírvão pessoalmente.” 3
Deixaram portanto de ser propriedade, não podendo ser vendidos, mas
continuaram sendo vitalícios. Na prática os títulos de serventia eram concedidos
de modo a corresponder a uma transmissão hereditária, seguindo a boa tradição da
divisão do poder e das benesses entre os “homens bons”, providos da “necessária
idoneidade”.
O registro de imóveis aparece inicialmente como registro das hipotecas, sendo seu
objetivo o reconhecimento público das hipotecas sobre a propriedade e não da
propriedade em si.
Há diversos tratados jurídicos sobre o sistema de registro de hipotecas e de títulos
de propriedade no Brasil, comparando-o com o de outros países. De acordo com
Cretella Junior 4 , por exemplo, o Brasil adotou o sistema germânico de
reconhecimento de hipotecas (e direitos em geral) sobre a propriedade, por
oposição ao francês. O sistema germânico se baseia sobre o registro do título isto
é, reconhece que é pela transcrição e não pelo contrato que se adquire a
propriedade ou direitos sobre ela. Já o sistema francês admite que o direito é
adquirido pelo contrato e o registro tem por objetivo a publicidade do ato. Isto é
no Brasil, assim como na Alemanha, o contrato pelo qual se adquirem direitos
sobre um pedaço de chão deve ser registrado para que tenha valor jurídico.
Mas tanto o sistema germânico quanto o francês se baseiam num cadastro
mapeado e nisto o brasileiro difere de ambos. Os mesmos juristas ressaltam a
inexistência de um cadastro abrangente e, numa clara demonstração de defesa da
organização social vigente, afirmam a impossibilidade de se montá-lo:
“o registro de hipotecas foi timidamente introduzido pelo Art.35 da Lei
Orçamentária n° 317, de 21.10.1843 e regulamentado pelo Decreto n° 482 de
14.11.1846. A Lei 601 de 1850 (Lei das Terras Devolutas) e principalmente o
Decreto 1318 de 1854 que a regulamentou atribuiram aos vigários das
freguezias a incumbência de registrar os títulos de domínio, legalizando
3
Enciclopédia Saraiva do Direito (1981).
4
Cretella Junior (1968, vol.V, pg.120).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
186
inclusive a posse. A respeito do Regulamento 1318 observa Teixeira de
Freitas: ‘Com esse registro nada se predispõe, como pensam alguns, para o
cadastro da propriedade imóvel, base do regime hipotecário germânico.
Teremos uma simples descrição estatística, mas não uma exata conta corrente
de toda a propriedade imóvel do país, demonstrando sua legitimidade e todos
os seus encargos. O sistema cadastral é impossível entre nós.’” (Wilson
Batalha, 1977)
ou:
“Num país em que a propriedade está cadastrada é possível se estabelecer, de
maneira irrefragável, a presunção de domínio. ... E num país imenso como o
Brasil, com população rarefeita como a sua, é impossível cadastrar a
propriedade imobiliária.” (Rodrigues, 1977)
Certamente não é impossível, como o mostra o Canadá que cadastrou suas
propriedades apesar de ser igualmente imenso e com população mais rarefeita que
o Brasil. O que foi impossível até agora, aos poucos que desejariam alterações na
organização social, foi mobilizar a vontade coletiva para isto.
O registro paroquial das terras, instituído pela Lei 601 de 1850, não chegou a ter
função cadastral e é difícil avaliar a importância de sua função como fonte de
informações estatísticas ou como base jurídica. Não há menção, nem na Lei nem
no decreto de regulamentação, a qualquer entrosamento entre os registros feitos
pelos vigários e o trabalho de medição e mapeamento das terras públicas,
atribuição da Repartição Geral das Terras Públicas. Esta foi mantida por mais de
trinta anos mas, apesar dos altos custos que lhe foram imputados na época, nunca
produziu um mapa ou inventário completo dos lotes já demarcados.
Em 1878 o Ministro da Agricultura nomeou uma comissão para estudar uma
reforma da Lei das Terras. A comissão se desincumbiu do encargo apresentando
um relatório e indicando alterações a serem introduzidas; a esse relatório
seguiram-se diversos estudos e projetos de lei sem que, até o final do Império,
algum desses textos tivesse sido aprovado.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
187
Em 1890, já sob o Governo Provisório da República, foi instituído o Registro
Torrens 5 para garantia jurídica da propriedade das terras mediante demarcação e
confrontação de divisas.
Em 1916 o Código Civil instituiu os registros públicos e explicitou a
obrigatoriedade do registro de imóveis para reconhecimento do título.
Pelo Código o direito real sobre um imóvel só é reconhecido juridicamente se
inscrito no registro de imóveis (Art.676). Há uma inteira seção (Seção VI)
dedicada a esses registros.
Art.530 Adquire-se a propriedade imóvel:
I
Pela transcrição do título de transferência no registro do imóvel.
II
Pela acessão.
III
Pelo usucapião.
IV
Pelo direito hereditário.
Art.531 Estão sujeitos à transcrição, no respectivo registro, os títulos
translativos da propriedade imóvel, por ato entre vivos.
Art.532 Serão também transcritos:
I
Os julgados, pelos quais, nas ações divisórias, se puser termo à
indivisão.
II
As sentenças que, nos inventários e partilhas, adjudicarem bens
de raiz em pagamento das dívidas da herança.
III
A arrematação e as adjudicações em hasta pública.
Art.676 Os direitos reais sobre imóveis constituídos, ou transmitidos por atos
entre vivos só se adquirem depois da transcrição, ou da inscrição, no registro
de imóveis, dos referidos títulos, salvo os casos expressos neste Código.
Art.856 O registro de imóveis compreende:
5
I
A transcrição dos títulos de transmissão da propriedade.
II
A transcrição dos títulos enumerados no artigo 532.
Ver mais detalhes no capítulo 10.
Luisa Battaglia
III
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
188
A transcrição dos títulos constitutivos de ônus reais sobre coisas
alheias.
IV
A inscrição das hipotecas.
Questões ligadas à concessão de terras públicas, no entanto, continuaram sendo
objeto de interpretações jurídicas díspares. A partir de 1850 essas concessões eram
feitas por contrato passado pelas Tesourarias da Fazenda, no caso de adjudicação
em hasta pública 6 , ou por título expedido pelo presidente da Província, se a venda
decorrera de proposta ou requerimento do adquirente. Houve dúvidas sobre se o
contrato dispensaria ou não a expedição do título, prevalecendo entre a maioria a
posição de que esse seria necessário em qualquer caso. Por outro lado, esse
mesmo título dispensava o registro. Diz Cirne Lima:
“Era o título de terras, mais do que lhe diz o nome, um verdadeiro modo de
aquisição de propriedade imóvel; dispensava-se-lhe a transcrição no registro
predial.” (Lima, 1954, pg.100-101)
e citando um reconhecido jurista do início do século:
“As concessões de terras públicas sempre dispensaram no nosso direito a
transcripção.” (Clóvis Bevilaqua; citado por Lima, 1954, pg.101)
Mesmo depois da promulgação do Código Civil o mesmo Bevilaqua defendia a
dispensa da transcrição do título:
“O Código Civil deu à transcripção o caracter de modo de adquirir, a elle
sujeitando os títulos translativos da propriedade immovel. Essa regra, porém,
applica-se aos actos jurídicos, que se desenvolvem na esphera do direito
privado. ...a transcripção segundo a systematizou o Código Civil, tem por fim
fornecer prova sufficiente da propriedade; fazer presumir a legalidade da
acquisição; dar publicidade à transferencia do dominio. ... Ora, aquêles dois
primeiros efeitos, o título de terras já os produz, de acôrdo com a doutrina
6
A venda em leilão, não vedada pela Lei 601 de 1850, é a grande diferença entre essa lei e
as recomendações de Sir E Wakefiel sobre o sistema de colonização. Segundo essas o preço da
terra deveria ser uniforme e fixo, variando somente segundo a extensão, proibida portanto a venda
em hasta pública.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
189
firmada pela jurisprudência norte-americana [sic]”. (Clóvis Bevilaqua; citado
por Lima, 1954, pg.101)
Está claro que o registro de terras ou melhor, o registro dos títulos, tinha como
exclusiva finalidade a de legalizar esses títulos, sem a menor preocupação com um
possível cadastro ou inventário das propriedades.
As Constituições fazem pouquíssima referência a esses registros, limitando-se a
citá-los como parte das coisas sobre as quais a União tem competência exclusiva
para legislar.
8.2 A evolução dos registros
Com base no Código Civil os registros públicos foram unificados e reorganizados
pelo Decreto 4827 de 7 de fevereiro de 1924 que ainda manteve o caráter
privativo e vitalício dos oficiais.
Art.1°
Os
registros
públicos
instituidos
pelo
Codigo
Civil,
para
authenticidade, segurança e validade dos actos juridicos ou tão somente para
os seus effeitos com relação a terceiros, comprehendem:
I
o registro civil das pessoas naturaes;
II
o registro civil das pessoas jurídicas;
III
o registro de titulos e documentos;
IV
o registro de immoveis;
V
o registro da propriedade litteraria, scientifica e artistica.
O Artigo 5° prevê os casos de inscripção, transcripção e averbação, enquanto o
Artigo 6° diz que os registros ficarão a cargo de officiaes privativos e vitalicios.
Alguns atos legais foram regulamentando a questão dos registros, seja diretamente
seja, no mais das vezes, ao tratar de assuntos correlatos.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
190
Por exemplo, a Lei 492/37 regulou o penhor rural e estabeleceu que a escritura de
penhor rural deve ser “apresentada ao oficial do registro imobiliário”.
O Decreto 58/37 que “dispõe sobre o loteamento e a venda de terrenos para
pagamento em prestações” e que, até 1979 foi o único instrumento legal para
disciplinar o parcelamento aprovado pela Prefeitura. No entanto não havia
nenhuma sanção prevista por desobediência e, na prática, essa tímida tentativa de
disciplinar a ocupação urbana foi burlada por todos os lados: os loteadores
apresentavam lantas falsas ou imprecisas e diferentes conforme a finalidade; as
próprias Prefeituras não verificavam essas plantas, não demarcavam as ruas e não
tomavam posse das áreas indicadas como públicas; os Cartórios registravam
qualquer documento, correspondesse ou não a um projeto aprovado ou à
conformação física do terreno.
Além da péssima qualidade da grande maioria dos projetos (ruas sem
continuidade e sem retorno, desconhecimento da topografia) são clássicos os
expedientes de má fé utilizados para burlar a lei, especialmente com relação à
reserva de áreas públicas. Alguns exemplos são ilustrativos:
Figura 8.2 a
Dois loteamentos aprovados com a mesma área pública
Loteamento A
Loteamento B
Figura 8.2 b
Parte de outra propriedade oferecida como área pública
Planta apresentada
Situação real
Figura 8.2 c
Registro em Cartório de lotes em área apresentada como pública na Prefeitura.
Planta para Prefeitura
Planta para Cartório
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
191
A Prefeitura de São Paulo se debate até hoje com milhares de processos de
loteamentos irregulares, cuja situação indefinida e muitas vezes juridicamente
insolúvel emperra qualquer cadastro ou lançamento.
Depois do Decreto 58/37 outro marco importante foi o Decreto 4857/39, que
“dispõe sobre a execução específica dos serviços concernentes aos registros
públicos” assentados no Código Civil. Pela primeira vez se estabeleceu um
conjunto de normas e procedimentos para a escrituração dos registros, dentre os
quais o de imóveis, conjunto esse que vigorou, com pequenas modificações, até
1976 quando foi substituido pela Lei 6.015/73 que rege a questão até hoje.
O Decreto 4.857/39 enumera os registros públicos e atribui o registro de imóveis a
serventuários privativos e vitalícios:
Art.1° Os serviços concernentes aos registros públicos estabelecidos pelo
Código Civil, para autenticidade, segurança e validade dos atos jurídicos,
ficam sujeitos ao regime estabelecido neste decreto.
I
o registro civil das pessoas naturais;
II
o registro civil das pessoas jurídicas;
III
o registro de títulos e documentos;
IV
o registro de imóveis;
V
o registro da propriedade literária, científica e artística.
Art.2° Os registros indicados nos números I a IV, do artigo anterior, ficarão a
cargo de serventuários privativos e vitalícios, nomeados de acordo com a
legislação em vigor no Distrito Federal, nos Estados e no Território do Acre,
e serão feitos:
...
3°
de n.IV, nos ofícios privativos 7 , ou nos cartórios do registro de
imóveis.
7
A questão da responsabilidade atribuída a ofícios privados por uma função que é
essencialmente pública é levantada por alguns juristas mas não encontrei nada muito esclarecedor.
O seguinte trecho é um bom exemplo de simples constatação: “...cabe reinterpretar o Art.2°. O
caráter privado os distingue do serviço público das serventes oficiais ou oficializadas, submetidas
a funcionários públicos, integrados na administração direta e em cargos de carreira, nos moldes
do Art.37 da Carta Magna.” (Ceneviva, 1991).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
192
O Título V, do Artigo 178 ao 296, é inteiramente dedicado ao registro de imóveis.
O Artigo 178 relaciona os documentos a serem nele inscritos (14 casos),
transcritos (10) ou averbados (8). Em seguida são estabelecidos os livros e os
procedimentos de escrituração:
Art.182 Haverá no registro de imóveis os seguintes livros:
- Livro n.1 - protocolo,
- Livro n.2 - inscrição hipotecária,
- Livro n.3 - transcrição das transmissões,
- Livro n.4 - registros diversos,
- Livro n.5 - emissão de debentures,
- Livro n.6 - indicador real,
- Livro n.7 - indicador pessoal,
- Livro n.8 - registro especial,
Seguem a descrição de cada livro, a forma de escriturar, os documentos
necessários etc. Finalmente o mesmo decreto estabelece “disposições peculiares
aos oficiais de Registro do Distrito Federal”, entre as quais a discriminação dos
ofícios para o registro de imóveis: um abrangendo dois distritos municipais
(Andaraí e Copacabana) e oito para as freguesias.
Alguns meses depois (29 de fevereiro de 1940) o Decreto 5318/40 “faz alterações
de redação no Decreto 4857/39”, simples correções de texto.
O Decreto 61.132 alterou o artigo 182 do Decreto 4857/39, mudando a finalidade
do Livro n.3 de transcrição para inscrição das transmissões, e acrescentando o
Livro n.9 para registro de cédulas de crédito rural, com 300 folhas.
Já o Decreto Lei 1000/69 é um caso particularmente interessante. Promulgado em
21 de outubro pelos três ministros militares que assumiram o governo quando do
impedimento do presidente Costa e Silva8 , esse decreto lei alterou os serviços
relativos aos registros públicos, no sentido de simplificar e agilizar os processos
8
Ministro da Marinha de Guerra, Almirante Augusto Hamann Rademaker Grünewald; do
Exército, General Aurélio de Lyra Tavares; da Aeronáutica Militar, Brigadeiro Márcio de Souza
Mello.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
193
de escrituração. Ele é precedido de um texto justificativo 9 em que são também
apresentadas as principais alterações:
Permite a utilização de técnicas de escrituração mais modernas que os
livros manuscritos: sistema de folhas soltas; certidões de inteiro teor por
cópia xerox autenticada; microfilmagem.
Aboliu a formalidade de rubrica dos livros pelo juiz.
Atualizou o valor das multas, indexando-as ao salário mínimo.
Permitiu pedidos de certidão por via bancária.
Unificou em uma só série de livros (livro 2) os livros 2, 3 e 4, e
autorizou a desmembrar o livro 2 em até 10 partes, para permitir a
escrituração simultânea por vários escriturários.
Aboliu o livro talão, duplicidade de registro criado para supostamente
permitir a reconstituição dos arquivos em caso de incêndio 10 .
Como consequência da unificação dos livros, cada imóvel passa a ter
um registro próprio ao invés de estar relacionado em vários registros,
conforme o tipo de transação.
Esse decreto lei deveria entrar em vigor 60 dias após sua publicação ou seja, em
21 de janeiro de 1969. No entanto, o Decreto 65.905/69, já do Presidente Medici,
considerando que o prazo de 60 dias fora muito exíguo para as necessárias
adaptações dos cartórios, prorrogou-o até 21 de abril de 1970. O Decreto
66.460/70, com a mesma justificativa, prorrogou-o novamente para 21 de outubro
de 1970. Ao findar mais esse prazo, novo decreto (67.375/70) pelo qual se
informava que o Poder Executivo enviaria ao Congresso um projeto de lei
alterando algumas disposições do decreto 1.000/69 e que portanto sua entrada em
9
“No tocante ao registro de imóveis, o Projeto orientou-se no sentido de torná-lo um instrumento
mais simples e mais eficiente. Supriu-lhe falhas, escoimou-o de formalidades inúteis, adaptou-o à
legislação vigente, modernizou seus métodos de controle, aboliu imperfeições e dinamizou-o,
enfim”. “Finalmente, incluído já se encontra no Projeto determinação contida no recente DL 549
de 24 de abril de 1969, referente à desapropriação, por interesse social, de imóveis rurais situados
nas áreas declaradas prioritárias para fins de reforma agrária.”
10
Precaução inútil pois, visto que os arquivos estaduais não recebiam os livros talão por falta de
espaço, esse eram guardados no mesmo local que os demais e, em caso de incêndio, poderiam
queimar junto com todos os outros livros.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
194
vigor era adiada para 30 de junho de 1971. Seguiram-se 4 decretos (68.773/71,
69.803/71, 71.523/72 e 72.406/73) pelos quais, sem qualquer explicação ou
justificativa, o prazo de entrada em vigor do decreto 1.000/69 foi passado
sucessivamente para 31/12/71, 31/12/72, 30/6/73 e 31/12/73. Finalmente, sem
nunca ter entrado em vigor, o Decreto Lei 1.000/69 foi substituído pela Lei 6.015
(31 de dezembro de 1973) que rege a questão dos registros públicos até hoje. Mas
antes dessa lei entrar em vigor, a Lei 6.064/74 revogou o DL 1000/69 ao mesmo
tempo em que adiou o início da vigência da 6.015 de 1° de julho de 1974 para 1°
de julho de 1975, com o que também adiou de um ano a revogação da Lei 4827/24
e dos Decretos 4857/39, 5318/40 e 5553/40. As manobras com datas de vigência
ainda não tinham acabado: em 30 de junho de 1975 (Governo Geisel) a entrada
em vigor da 6.015/73 foi novamente adiada, para 1° de janeiro de 1976, pela Lei
6.216, a qual também lhe alterou a redação e suprimiu vários artigos,
especialmente no tocante aos registros de imóveis.
Se algum dia for feita, uma comparação detalhada entre essas diversas peças
legais deve dar boas indicações sobre os interesses em jogo, além de elementos
adicionais para avaliar as transformações em curso num período “mal contado” da
história brasileira recente, classificado apenas, e simplistamente, como “período
militar” ou “ditadura”.
8.3 A legislação federal em vigor
Atualmente os Cartórios de Registro de Imóveis são regidos pela Lei Federal
6.015/73, Lei dos Registros Públicos (LRP), (que só entrou em vigor em 1976,
alterada pela Lei 6.216/75) e seu funcionamento é regulamentado por leis
estaduais e controlado pelas administrações estaduais através das Corregedorias
Gerais (Varas de Registros Públicos). Não há muito mais informações disponíveis
sobre seu funcionamento que as constantes nas leis e decretos que estabelecem
minuciosamente os livros, os horários de abertura, as formas de escrituração e de
atendimento etc.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
195
As transcrições que seguem são da versão pela Lei 6216 11 .
Art.1° Os serviços concernentes aos Registros Públicos, estabelecidos pela
legislação civil para autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos,
ficam sujeitos ao regime estabelecido nesta Lei.
§1° Os registros referidos neste artigo são os seguintes:
I
o registro civil das pessoas naturais;
II
o registro civil das pessoas jurídicas;
III
o registro de títulos e documentos;
IV
o registro de imóveis;
§2° Os demais registros reger-se-ão por leis próprias.
Art.2° Os registros indicados no §1° do artigo anterior ficam a cargo de
serventuários privativos nomeados de acordo com o estabelecido na lei de
Organização Administrativa e Jurídica do Distrito Federal e dos Territórios e
nas Resoluções sobre a Divisão e Organização Judiciária dos Estados, e serão
feitos:
III
os do item IV, nos ofícios privativos, ou nos cartórios de registro
de imóveis.
Com relação ao Decreto 4857/39, o Artigo 1° apenas substituiu “Código Civil”
por “legislação civil” e “validade dos atos jurídicos” por “eficácia dos atos
jurídicos”. O registro da “propriedade literária, científica e artística” permanecia
no original de 1973.
Foi mantida a mesma estrutura de regras quanto ao tamanho dos livros, número de
páginas, numeração, horário de funcionamento, ordem de registro, pagamento etc.
Também é mantido o caráter público dos registros, no sentido de que qualquer
pessoa pode requerer certidão.
No caso específico do registro de imóveis, essa lei introduziu muitas das
simplificações propostas pelo Decreto 1.000/69 e, apesar da estrutura de
apresentação dos assuntos continuar sendo às vezes um tanto confusa, o registro
11
Entre outras mudanças a lei passou de 310 para 296 artigos, com a supressão do registro da
propriedade literária, científica e artística.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
196
de imóveis ficou certamente mais claro com a introdução da matrícula,
equivalente a uma inscrição cadastral. Após a matrícula são feitos os registros dos
fatos relativos ao imóvel e as averbações dos fatos que alteram ou complementam
um registro.
Art.227 Todo imóvel objeto de título a ser registrado deve estar matriculado no
Livro n.2 – Registro Geral...
Art.236 Nenhum registro poderá ser feito sem que o imóvel a que se referir
esteja matriculado.
Art.246 ...serão averbadas na matrícula as subrogações e outras ocorrências
que, por qualquer modo, alterem o registro.
O artigo 167 enumera 34 casos de registro e 13 de averbações. São transcritos alguns, a
esmo, como exemplos:
Art.167 No Registro de Imóveis, além da matrícula, serão feitos:
I
o registro:
1) da instituição de bem de família;
3) dos contratos de locação de prédios, nos quais tenha sido consignada
cláusula de vigência no caso de alienação da coisa locada;
10) da enfiteuse;
11) da anticrese;
17) das incorporações, instituições e convenções de condomínio;
19) dos loteamentos urbanos e rurais;
27) do dote;
29) da compra e venda para e condicional;
II
a averbação:
1) das convenções antenupciais ...;
2) por cancelamento, da extinção dos ônus e direitos reais;
4) da mudança de denominação e de numeração dos prédios, ...;
7) das cédulas hipotecárias;
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
197
13) “ex officio”, dos nomes dos logradouros, decretados pelo Poder
Público.
A simplificação introduzida permitiu diminuir o número de livros.
Art.173 Haverá no registro de imóveis os seguintes livros:
- Livro n.1 - Protocolo,
- Livro n.2 - Registro Geral,
- Livro n.3 - Registro Auxiliar;
- Livro n.4 - Indicador Real;
- Livro n.5 - Indicador Pessoal.
Art.174 O Livro n.1 - Protocolo - servirá para apontamento de todos os títulos
apresentados diariamente, ...
Art.176 O Livro n.2 - Registro Geral - será destinado à matrícula dos imóveis
e ao registro ou averbação dos atos relacionados no Art.167 e não atribuídos
ao Livro n.3.
Art.177 O Livro n.3 - Registro Auxiliar- será destinado ao registro dos atos
que, sendo atribuídos ao Registro de Imóveis por disposição legal, não digam
respeito diretamente a imóvel matriculado.
Art.179 O Livro n.4 - Indicador Real – será o repertório de todos os imóveis
que figurem nos demais livros, devendo conter sua identificação, referência
aos números de ordem dos outros livros e anotações necessárias.
Art.180 O Livro n.5 - Indicador Pessoal – dividido alfabeticamente, será
repositório dos nomes de todas as pessoas que, individual ou coletivamente,
ativa ou passivamente, direta ou indiretamente, figurem nos demais livros,
fazendo-se referência aos respectivos números de ordem.
Todos os livros, salvo o de Protocolo, podem ser substituídos por fichas.
Com a generalização do uso de arquivos eletrônicos essa forma de escrituração,
concebida para tornar viável a recuperação das informações guardadas em
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
198
livros 12 , deverá ser revista, junto com as regras de segurança e com a
responsabilidade pelas informações.
Não parece haver especial interesse na legislação posterior que apenas foi
introduzindo adaptações decorrentes das mudanças de regras do Sistema
Financeiro da Habitação ou dos indexadores monetários. É o caso das leis 6.850
de 12 de novembro de 1980 e 6.941 de 14 de setembro de 1981.
Vale ainda lembrar a última alteração na ordenação do direito de propriedade,
ocorrida com a Lei 6.766 de 19 de dezembro de 1979 (Lei Lehmann). Promulgada
especificamente para regulamentar o parcelamento do solo urbano ela atingiu as
práticas de registro de títulos imobiliários, responsabilizando os Cartórios não só
pela correção dos registros mas também pela regularidade dos loteamentos
registrados.
Art.18 Aprovado o projeto de loteamento ou de desmembramento, o loteador
deverá submetê-lo ao registro imobiliário dentro de 180 (cento e oitenta) dias,
sob pena de caducidade da aprovação, ...
§4° O Oficial do Registro de Imóveis que efetuar o registro em desacordo
com as exigências desta Lei ficará sujeito à multa equivalente a 10 (dez)
vezes os emolumentos regimentais fixados para o registro,... ,sem prejuízo
das sanções penais e administrativas cabíveis.
Art.22 Desde a data de registro do loteamento, passam a integrar o domínio
do Município as vias e praças, os espaços livres e as áreas destinadas a
edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, constantes do projeto e do
memorial descritivo.
Constitui crime contra a Administração Pública:
Art.52 Registrar loteamento ou desmembramento não aprovado pelos órgãos
competentes, registrar o compromisso de compra e venda, a cessão ou
promessa de cessão de direitos ou efetuar registro de contrato de venda de
loteamento ou desmembramento não registrado. Pena: Detenção, de um a
dois anos, e multa de 5 a 50 vezes o maior salário mínimo vigente no País,
sem prejuízo das sanções administrativas cabíveis.
12
A multiplicação dos livros permite recuperar a informação por diferentes entradas: data de
registro, número de matrícula ou nome de pessoa envolvida
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
199
Apesar de não eliminar a prática de loteamentos irregulares, a Lei Lehmann
disciplinou a questão. Até então, via de regra, os cartórios registravam qualquer
subdivisão, fosse ou não aprovada. Cabia ao Estado ou ao Município fazer valer
as próprias leis mediante aplicação de sanções que, no entanto, não punham em
risco o direito de propriedade e, portanto, de venda da terra parcelada 13 .
8.4 A legislação estadual complementar
As normas de reconhecimento da propriedade e a legislação federal sobre os
registros públicos são complementados pelas legislações estaduais sobre o
provimento dos encarregados desses registros e sobre o controle exercido pelas
Corregedorias estaduais. Isto é, enquanto as normas sobre registros públicos, em
particular sobre registros de imóveis, são federais, cabe ao Poder Judiciário dos
Estados assegurar e fiscalizar a execução dos serviços. Esses são feitos, seja por
funcionários públicos, pagos pelo Estado, seja, no mais das vezes, por oficiais
privados, nomeados e fiscalizados pelo Estado, remunerados diretamente pelas
taxas pagas pelos serviços prestados. Um Cartório de Registro é, na verdade, uma
cessão de serviço público.
A legislação sobre o assunto para o Estado de São Paulo versa quase que
exclusivamente sobre o provimento de funcionários e os direitos de opção dos
oficiais ou serventuários. Destacam-se abaixo os atos mais significativos.
O Decreto 12.520, de 22 de janeiro de 1942, “dispõe sobre provimento de Ofícios
de Justiça”.
Art.1° Nenhum ofício de justiça será provido a título de propriedade, mas o seu
exercício será atribuido em serventia vitalícia.
Art.4° O provimento dos ofícios de justiça, em cada série de nove vagas, far-seá:
13
Sobre o assunto controle e processo de aprovação de loteamentos ver Battaglia (1987).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
200
a) 1/3 por livre escolha do Chefe do Governo, dentre doutores e
bachareis em direito e cidadãos de reconhecimento idoneidade e
competência;
b) 1/3 dentre serventuários de justiça com mais de cinco anos
de efetivo exercício, escolhidos em lista tríplice e mediante
concurso de títulos;
c) 1/3 dentre escreventes habilitados, dos cartórios da mesma
natureza, com mais de 5 anos de efetivo exercício,
escolhidos em lista tríplice e mediante concurso de títulos,
...
Art.6° O 1° provimento dos ofícios que ser crearem ou se estabelecerem será
feito livremente pelo Chefe do Governo.
Seguem as condições de inscrição e de realização dos concursos e demais detalhes
operacionais visando estabelecer formalmente direitos e deveres dos servidores e
responsáveis pelos cartórios de registro.
Também a Lei 819, de 31 de outubro de 1950, “dispõe sobre provimento de
Offícios de Justiça” (e dá outras providências).
Art.1° Nenhum ofício de justiça será provido a título de propriedade, mas o seu
exercício será atribuido em serventia vitalícia.
Art.5° É instituida a carreira de Servidores da Justiça, na qual ficam
enquadrados os serventuários vitalícios e os escreventes habilitados de todos os
cartórios do Estado não estipendiados pelos cofres públicos, qualquer que seja
a sua natureza. Para esse efeito, as serventes de Justiça ficam classificadas da
seguinte forma:
a) Primeira classe: os ofícios de registro de imóveis e anexos, ... ,
das comarcas de 1ª instância;
b) Segunda classe: os ofícios de registro de imóveis e anexos, ... ,
das comarcas de 2ª instância;
c) Terceira classe: os ofícios de registro de imóveis e anexos, ... ,
das comarcas de 3ª instância;
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
201
d) Quarta classe: os ofícios de registro de imóveis e anexos, ... , da
comarca de São Paulo (4ª instância);
O Decreto Lei 159, de 28 de outubro de 1969, “dispõe sobre provimento das
serventias de justiça não oficializadas e dá providências correlatas”. A grande
alteração foi a perda do caráter vitalícia dos serviços cartoriais.
Art.1° Nenhuma serventia será provida a título de propriedade, nem em caráter
vitalício.
As serventias são reclassificadas, criando-se uma Classe Especial em que são
incluídos os Cartórios de Registro de Imóveis:
Art.4° Para fim de admissão, remoção e promoção, ficam assim classificadas
as serventias de justiça não oficializadas, qualquer que seja a sua natureza:
I
Primeira Classe: Os Cartórios de Registro Civil das Pessoas
Naturais dos distritos e subdistritos que não sejam sede de
município, das comarcas de 1ª entrância.
II
Segunda Classe:
III
Terceira Classe:
IV
Quarta Classe:
V
Quinta Classe:
VI
Classe Especial: Os Cartórios de Notas, os Cartórios de Registro
de Imóveis, ...
A seguir o decreto lei passa aos critérios as formalidades para admissão dos
serventuários e oficiais, por concurso de provas e títulos. 14
A base mais geral da legislação estadual sobre registros públicos deve ser
procurada na organização do serviço judiciário. Destaca-se a Lei 8.051/63 que
“reorganiza o serviço judiciário do Estado, especialmente na Comarca da
Capital”. Todo o capítulo IV é dedicado à Vara dos Registros Públicos.
Art.32 Compete ao Juíz da Vara dos Registros Públicos:
14
O D.L.159/69 revoga, explicitamente, os decretos 5.120/31, 6.986/35, 11.464/40
(anexações de ofícios de justiça), 12.520/42 e as leis 819/50, 4.342/57, 4.633/58, 7.565/62,
9.189/65, 10.079/68, 10.171/68 e 10.304/68, todos eles sobre provimento de serventias vagas.
Luisa Battaglia
I
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
202
processar e julgar as ações e procedimentos administrativos
referentes aos registros públicos, loteamentos de imóveis, bem de
família, usucupião e hipoteca legal, exceto as que interessarem à
Fazenda Pública;
Para completar este apanhado sobre a legislação estadual referente aos registros
fundiários vale ainda citar o Decreto 27.863/87 que estrutura a Secretaria de
Estado de Assuntos Fundiários e o Decreto 30.848/89 que “institui o Sistema
Estadual de Gestão do Patrimônio Imobiliário”.
8.5 O funcionamento dos Cartórios de Registro de Imóveis
O registro não é obrigatório mas é a única garantia da propriedade contra
eventuais direitos de herança ou hipotecas feitas pelo detentor do título
anteriormente registrado. Por causa do custo, da desinformação e dos trâmites
burocráticos muitos imóveis não são registrados. Segundo reportagem publicada
no jornal O Estado de São Paulo em 2.3.92, havia 880.000 imóveis sem registro
no município de São Paulo, de um total de aproximadamente 2 milhões de meio.
Os municípios menores são atendidos por um único Cartório enquanto que
municípios grandes, como é o caso de São Paulo, são subdivididos em
circunscrições. Ao contrário dos Cartórios de Registro Civil (nascimentos,
casamentos e óbitos) que, em geral, se situam nas próprias circunscrições, os
Cartórios de Registro de Imóveis não tem nenhuma vinculação, quanto à sua
localização, com o território a ser registrado. Pode-se observar na relação dos 18
cartórios de São Paulo (cf.pg.205) que muitos deles não se localizam nas suas
circunscrições e que, em seis casos, essas são descontínuas, conforme ressaltado
na Figura 8.5 a.
Figura 8.5 a.
Município de São Paulo, 1994.
Circunscrições dos Cartórios de Registro de Imóveis.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
Cartório e Localização
203
Circunscrição
1°
V.Mariana
Liberdade e V.Mariana
2°
Barra Funda
Sta.Cecília e PerdizesA Constituição
de 1988 trata da fiscalização e dos preços cobrados:
Art.236 Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado,
por delegação do Poder Público.
§1° Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidade civil e criminal
dos notórios, dos oficiais de registro e de seus propostos, e definirá a
fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.
§2° Lei federal estabelecerá normas gerais para fixação de emolumentos
relativos aos atos praticados pelos serviços notariais e de registro.
Os preços do registro em São Paulo variam em função do valor venal do valor da
transação (valendo o maior), sendo a variação do preço do registro inversamente
proporcional à variação do valor do imóvel. Isto significa que quanto menor o
valor do imóvel, maior é a incidência dos custos para seu reconhecimento. A
Tabela 8.5 a, mostra as regras de cálculo para o preço de registro, com base na
tabela oficial, em vigor a partir de 1° de julho de 1994.
Tabela 8.5 a
Cartório de Registro de Imóveis, São Paulo, 1994
Cálculo do preço do registro
_______________________________________________________________
Valor do imóvel
Cálculo
_______________________________________________________________
até R$ 374,78
R$ 34,50
de R$ 374,78 a R$ 2297,67
R$ 34,50 mais R$ 0,33 a cada R$ 4,47 ou fração
de R$ 2297,67 a R$ 54042,26 R$ 175,80 mais R$ 0,02 a cada R$ 4,47 ou fração
_______________________________________________________________
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
204
A Tabela 8.5 b mostra o preço de registro em porcentagem do valor do imóvel,
para os valores limites das faixas acima definidas.
Tabela 8.5 b
Cartório de Registro de Imóveis, São Paulo, 1995
Preço do registro
_______________________________________________________________
Valor do imóvel
Preço do registro
(absoluto)
(%)
_______________________________________________________________
R$ 374,78
R$ 34,50
9,21
2297,67
R$ 175,80
7,65
R$ 54042,26
R$ 404,06
0,75
_______________________________________________________________
A partir do valor de R$54042,26 o preço do registro é constante.
O projeto de lei que regulamenta a atividade cartorial, em tramitação no
Congresso, prevê a autofiscalização, através de representantes da própria
categoria.
As simplificações introduzidas pela legislação visam facilitar as buscas e agilizar
o trabalho de inscrição. Obedecidas as normas legais quanto aos livros a serem
mantidos, horários e emolumentos, cada cartório é livre quanto à organização dos
seus serviços. Alguns cartórios de São Paulo usam o Mapa Oficial da Cidade,
publicado pela Secretaria de Finanças da Prefeitura, para localizar os imóveis e
mantem um fichário das matrículas indexado pelo código Setor/Quadra/Lote do
cadastro fiscal da Prefeitura. Isto facilita as buscas e permite melhor controle
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
205
sobre a localização. No entanto, a maior preocupação com a localização parece
ser apenas a de evitar o registro de imóvel de outra circunscrição.
O direito de propriedade, apesar de ser sempre apresentado com sua áurea de
natural e sagrada, é objeto de acirradas controvérsias jurídicas:
“Por um lado os Códigos Civis proclamam a intangibilidade do domínio; por
outro, o Direito Administrativo rói e devora os direitos do proprietário. Daí os
embaraços torturantes do jurista na dedução das fórmulas sobre a realização do
direito de propriedade.” 15
Trata-se afinal de situar o direito de propriedade no âmbito do Direito Privado
(direitos individuais) ou do Direito Público e isto tem a ver diretamente com o
enfoque com que é tratada a questão dos registros. Sendo assunto de Direito
Privado, também o seu reconhecimento é assunto privado e o Estado só intervém
para regulamentar e garantir a publicidade, exercendo apenas o poder de polícia.
“Assunto típico da órbita privatística, o direito de propriedade poderia parecer,
à primeira vista, deslocado em obra dedicada ao Direito Público, não fora a
ciência geral de que cumpre à Administração intervir não na realização do ato
jurídico, mas na fiscalização, vigilância e publicidade que deve cercá-lo. ...
A intervenção do Estado na tutela da propriedade constitui uma atividade
administrativa e pela finalidade que tem em mira é função de polícia de
segurança demarcada em lei. A polícia de segurança da propriedade privada
repousa nos Registros, sem os quais o direito de propriedade não pode ficar
protegido” 16
Apesar dos importantes avanços no sentido da simplificação dos registros, e
mesmo nos casos de troca de dados com os cadastros municipais, o sistema todo
mantém suas características de serviço de interesse particular: garante os direitos
ligados a títulos de domínio contra terceiros (inclusive o poder público). Não é e
não pretende ser um cadastro das terras do país. Esse cadastro continua faltando.
15
José Augusto César, Ensaio sobre os atos jurídicos, 1913, pg.16, 17. Citado em Cretella
Junior (1968, pg.117).
16
Cretella Junior (1968, vol.V, pg.118,119).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
206
CAPÍTULO 9
O CADASTRO FISCAL E O IMPOSTO PREDIAL E TERRITORIAL
URBANO EM SÃO PAULO
Luisa Battaglia
9
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
207
O CADASTRO FISCAL E O IMPOSTO PREDIAL E TERRITORIAL
URBANO EM SÃO PAULO
“Ninguém gosta de pagar impostos. A Revolução Francesa começou quando a
burguesia decidiu que a nobreza e o clero deveriam pagar impostos e taxas,
eliminando privilégios e cirando a república. ... A classe dominante brasileira
também não gosta de pagar impostos, tanto assim que a propriedade quase não
é taxada (correspondente a 1% da arrecadação total do país), garantindo que
ocupemos o 3° lugar mundial em concentração de riqueza e o 80° em
distribuição da renda.”
Marilena Chauí 1
“Na origem da crise que o Brasil hoje atravessa está a encarniçada resistência
dos ricos a pagar impostos. ... Ninguém gosta de pagar impostos. Eu também
não gosto. Mas é difícil encontrar um imposto mais justo do que o IPTU. Um
imposto que distribua renda, em um país no qual a concentração de renda é
escandalosa.”
Luiz Carlos Bresser Pereira 2
No Brasil, como aliás na maioria dos países capitalistas, compete ao Governo
local (Prefeitura, no caso) a gestão direta do patrimônio coletivo: o uso do
território, a localização das atividades, a organização da circulação etc. Para isto
as Prefeituras dispõem de legislação específica (zoneamento, código de obras) e
de recursos financeiros, em geral provindos de transferências do Governo central
1
Marilena Chauí: Nós quem, cara pálida?, artigo publicado no jornal Folha de São Paulo
em 19 de fevereiro de 1992.
2
Luiz Carlos Bresser Pereira: O IPTU e os ricos, artigo publicado no jornal de São Paulo
em 17 de fevereiro de 1992.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
208
e de tributos próprios. Destes últimos os mais significativos para as grandes
cidades são os impostos sobre a propriedade imobiliária. No Brasil, as Prefeituras
arrecadam o Imposto Predial e o Imposto Territorial Urbano, ambos previstos na
Constituição e instituídos por lei federal. Para o lançamento desses impostos cada
Prefeitura mantém um cadastro que, no entanto, não garante o direito de
propriedade: o Brasil adota o sistema de cadastros fiscais (por oposição aos
jurídicos) ou seja, o Estado não assume responsabilidade com relação à prova da
propriedade, que é deixada inteiramente a cargo das proprietários através do
registro nos Cartórios de Registro de Imóveis. Os cadastros fiscais refletem a
situação mais provável de acordo com as informações de que o Estado (no caso as
Prefeituras) dispõe. Não há vinculação direta entre os cadastros e os registros e,
via de regra, nenhum desses dois serviços se apoia num sistema de mapeamento
abrangente ou em mapas cadastrais com valor jurídico.
No capítulo anterior foi esboçado o funcionamento dos Cartórios de Registros e
sua evolução a partir das origens coloniais. Neste serão detalhados alguns
aspectos de um cadastro fiscal, no caso o de São Paulo.
A escolha de São Paulo se deve não apenas à facilidade de acesso aos dados, mas
principalmente ao fato de que, pelo seu tamanho e pela complexidade dos
problemas que se entrecruzam, São Paulo apresenta exemplos de todos os casos
que ocorrem num sistema cadastral, em especial situações de discrepância entre a
aplicação da lei e as intenções declaradas. Além disso a operação de todo o
sistema tributário é exemplar, o que elimina da análise as variáveis desnecessárias
ligadas a deficiência de operação.
9.1 Os cadastros fiscais no Brasil
O lançamento do imposto sobre a propriedade imobiliária requer três conjuntos de
informações:
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
209
A identificação do imóvel, isto é, os elementos que permitem saber, de
maneira inequívoca, a qual imóvel se refere o imposto lançado.
A identificação da pessoa (física ou jurídica) de quem será cobrado o
imposto.
Os atributos do imóvel em função dos quais será lançado o imposto.
Cada um desses conjuntos de informações define características qualitativas do
cadastro e a sua eficiência como instrumento de arrecadação e eventual fonte de
dados para gestão e planejamento.
No Brasil essas informações estão todas contidas nos cadastros fiscais, que cada
Prefeitura mantém no Departamento (ou Secretaria) de Finanças. Tipicamente o
cadastro fiscal de uma Prefeitura é formado por um conjunto de plantas (em geral
esquemáticas, muitas vezes sem escala) onde são identificados os imóveis, e por
bancos de dados, informatizados ou não, onde são arquivados os atributos de cada
imóvel (área, forma, estado de conservação etc.) e os dados de seu proprietário.
No fim da década de ‘60 e início de ‘70 quando, em decorrência da reformulação
do sistema tributário nacional em 1966 3 , foram reorganizados os cadastros fiscais
no país, a grande preocupação das administrações municipais se concentrou nos
atributos do imóvel: uso, padrão de construção, existência de serviços públicos,
eram objeto de discussões mais ou menos teóricas e de contratos de levantamento
cadastral. Procurava-se ao mesmo tempo a “justiça fiscal” e a eliminação do
processo subjetivo de avaliação através da acurada diferenciação de valor entre os
imóveis, resultante da combinação de fatores supostamente objetivos. As
planilhas de levantamento forma saturadas com detalhes sobre revestimentos de
piso ou a cor das louças do banheiro, detalhes estes que, afinal, se mostravam
inúteis para classificar o padrão de construção em “alto, médio ou baixo”.
Essa saturação de dados de levantamento, além de dificultar a manutenção
atualizada dos arquivos, ajudava a esconder os verdadeiros problemas:
3
Lei federal 5.172, de 25 de outubro de 1966 que instituiu o Sistema Tributário Nacional.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
210
As dificuldades com a identificação do imóvel ou melhor, a dificuldade
em operar um sistema em que, pelas deficiências do mapeamento, não
há controle sobre o universo abrangido.
A dificuldade de se basear o sistema de avaliação sobre o valor da
localização, nem sempre representado pelo preço do terreno mas
certamente sem nada a ver com o custo de reposição da construção.
O fato de não se atribuir valores venais próximos (ou proporcionais) aos
valores de mercado, o que implicaria, por um lado, no reconhecimento e
correção das distorções na tributação e por outro, na explicitação de uma
política territorial, em geral não formulada.
Pressionadas pelo rápido crescimento das aglomerações urbanas, exigindo o
lançamento de impostos imobiliários como fonte de recursos para sua gestão, e
apesar das dificuldades criadas pelo falseamento das características da base
tributável, muitas Prefeituras conseguiram montar cadastros que atendem
satisfatoriamente as finalidades de lançar e arrecadar impostos, constituindo um
indiscutível avanço com relação à situação anterior ao Sistema Tributário
Nacional, de virtual inexistência de bases de tributação confiáveis.
A disponibilidade desses cadastros 4 passos então a propiciar a outros serviços das
Prefeituras o uso de dados até então inaccessíveis, com consequentes pressões no
sentido de maior integração entre o cadastro e os demais arquivos e bancos de
dados mantidos pelos diversos órgãos municipais. Os trabalhos e compromissos
decorrentes dessas pressões levaram à implantação dos CTM (Cadastros Técnicos
Municipais) ou equivalentes, com diferentes níveis de sucesso. O passo seguinte,
em plena discussão hoje em dia, é o da implantação dos Sistemas de Informações
Geográficas (GIS – Geographic Information Systems) e/ou dos cadastros
digitalizados (LIS – Land Use Systems), o que coloca de maneira aguda o
problema da precariedade das representações cartográficas.
4
Disponibilidade relativa pois se constituíram desde o início em propriedade de uso
exclusivo dos Departamentos (ou Secretarias) de Finanças, sempre relutantes (com amparo legal)
em disponibilizar os dados para outros usuários, mesmo da própria Administração.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
211
9.2 A definição dos tributos em São Paulo
Em São Paulo o cálculo e o lançamento dos impostos imobiliários são feitos pela
Prefeitura, com base nos dados do cadastro fiscal instituído como parte do
Sistema Tributário Municipal pela Lei 6.989/66 5 . Sucederam-se várias alterações
legais, com mudanças nas alíquotas, na definição do valor venal e no cálculo dos
impostos exigindo, vinte anos depois, a consolidação da legislação tributária
através do Decreto 26.129 de 7 de junho de 1988. Parte dessas leis apenas
concedem isenções ou alteram as alíquotas e os valores venais unitários, via de
regra simples reajustes monetários, mas duas delas introduzem alterações
significativas:
Lei 10.235 (16/12/86) que “dispõe sobre a forma de apuração do valor venal de
imóveis ...” e passou a tratar os dois impostos num conjunto único, Imposto
Predial e Territorial Urbano - IPTU 6 .
Lei 10.394 (20/11/87) que instituiu alíquotas progressivas, em função do valor
venal 7 .
O artigo 1° da Lei 6.989/66 criou 4 impostos municipais, 6 taxas e a contribuição
de melhoria:
Art.1° 8 - Ficam criados os seguintes tributos, que se regularão pelo disposto
nesta Lei e pelos demais atos normativos que sejam expedidos pelo Executivo:
I
impôsto predial;
5
A lei municipal 6989 de 29/12/66, que “dispõe sobre o Sistema Tributário do Município e
dá outras providências”, foi publicada dois meses depois da lei federal 5.172 de 25 de outubro de
1966 que instituiu o Sistema Tributário Nacional, obedecendo ao disposto no artigo 212 dessa lei
federal.
6
Trata-se de dois impostos alternativos: sobre um mesmo imóvel ou se cobra Imposto
Predial (se o imóvel for construido) ou Imposto Territorial Urbano (se for um terreno vazio).
7
A desvinculação das alíquotas para predial e territorial permite a utilização do imposto
como instrumento de intervenção na organização espacial, na medida em que é possível incentivar
ou penalizar determinados usos de solo. As tentativas de se aplicar imposto territorial progressivo
para induzir a ocupação de terrenos centrais vazios foram até agora barradas por medidas judiciais,
o que apenas confirma que o instrumento não é inóquo.
8
Esse artigo não é mencionado no Decreto de consolidação que já inicia com a incidência
do imposto predial.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
II
impôsto teritorial urbano;
III
impôsto sôbre operações realtivas à circulação de mercadorias;
IV
impôsto sôbre serviços de qualquer natureza;
V
taxa de limpeza pública;
VI
taxa de conservação de vias e logradouros públicos;
VII
taxa de pavimentação e de serviços preparatórios de pavimentação;
VIII
taxa de licenças;
IX
taxa de expediente;
X
taxas de serviços diversos;
XI
contribuição de melhoria.
212
O imposto predial e o imposto territorial urbano são tratados respectivamente nos
Capítulos I e II:
Art.2° Constitui fato gerador do imposto predial a propriedade, o domínio útil
ou a posse de bem imóvel construído, localizado na zona urbana do Município.
Art.4° Para os efeitos deste imposto, considera-se construído todo o imóvel no
qual exista edificação que possa servir para habitação ou para o exercício de
quaisquer atividades.
Art.23 Constitui fato gerador do imposto territorial urbano a propriedade, o
domínio útil ou a posse de em imóvel não constuído, localizado na zona urbana
do Município...
Art.24 Para os efeitos dêste imposto, consideram-se não construídos os
terrenos:
I
em que não existir edificação como definida no artigo 4°;
II
em que houver obra paralisada ou em andamento, edificações
condenadas ou em ruínas, ou construções de natureza temporária;
Luisa Battaglia
III
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
213
cuja área exceder de 3 (três) vêzes a ocupada pelas edificações,
quando na 2ª (zona 9 ), e 10 (dez) vezes quando além do perímetro
desta última;
IV
ocupados por construção de qualquer espécie, inadequada à sua
situação, dimensões, destino ou utilidade.
Para ambos os impostos o cálculo consiste na multiplicação da alíquota pelo valor
venal havendo, em cada caso, dois artigos sobre a forma de se determinar o valor
venal.
Para o imposto predial:
Art.8° Determina-se o valor venal em função dos seguintes elementos, tomados
em conjunto ou separadamente:
I
declaração do contribuinte, desde que aceita pelo Fisco;
II
preços correntes das transações no mercado imobiliário;
III
custos de reprodução;
IV
decisões judiciais passadas em julgado, em ações renovatórias de
locações ou revisionais de aluguéis;
V
locações correntes;
VI
localização e características do imóvel;
VII
outros dados informativos tecnicamente reconhecidos.
§2° O valor venal determinado na forma deste artigo não poderá ser inferior:
I
ao décuplo do aluguel efetivo anual;
II
ao preço decorrente do valor unitário fixado para efeito de
desapropriação amigável ou judicial, proporcionalmente à parte
expropriada e à parte remanescente do imóvel.
Art.16 – O valor venal dos imóveis construídos, para efeito de lançamento,
apura-se:
9
Trata-se no caso de zona fiscal isto é, de um dos três conjuntos, concêntricos, de setores
fiscais em que está dividida a cidade. A primeira zona fiscal corresponde à área central, a terceira à
coroa periférica e a segunda é a Intermediária. Não confundir com zonas de uso, definidas para
efeitos da aplicação de normas de ocupação e edificação.
Luisa Battaglia
I
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
pela conjunção dos valores médios unitários de terrenos com os
valores unitários de construção, constantes das “Plantas Genéricas
de Valores”;
II
em razão do metro quadrado de construção, que inclua o valor do
terreno correspondente, nos casos de unidade:
a) autonomas, de prédios em condomínio;
b) distintas, em edifícios destinados a habitação ou ao exercício de
atividade comercial ou profissional ou mistos;
III
em função de qualquer dos incisos do artigo 8° e respectivos
parágrafos, quando superior ao resultado da aplicação do disposto
nos incisos anteriores deste artigo.
§1° As “Plantas Genéricas de Valores” serão publicadas pelo Executivo e
vigorarão a partir do exercício imediato aquele em que forem editadas,
enquanto não substituídas ou modificadas por outras, no todo ou em parte.
§2° As “Plantas Genéricas de Valores” descreverão os métodos de avaliação a
serem utilizados, em caráter genérico ou específico.
Para o imposto territorial urbano:
Art.8° Determina-se o valor venal em função dos seguintes elementos, tomados
em conjunto ou separadamente:
I
declaração do contribuinte, desde que aceita pelo Fisco;
II
preços correntes das transações no mercado imobiliário;
III
arrendamentos correntes;
IV
localização, forma, dimensões e outras características ou condições
do terreno;
V
outros dados informativos tecnicamente reconhecidos.
Art.35° O valor venal dos terrenos, para efeito de lançamento, é o resultante da
aplicação:
I
dos valores médios unitários constantes das “Plantas Genéricas de
Valôres”, a que se refere o artigo 16;
214
Luisa Battaglia
II
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
215
de quaisquer dos incisos do artigo 28 e dos respectivos parágrafos,
se superior ao decorrente do inciso anterior deste artigo;
Esses artigos não são propriamente conflitantes entre si mas são redundantes visto
que a Planta Genérica de Valores (tomada como um dos critérios) já deveria ser o
resultado de todos os critérios enumerados nos artigos 8° e 28.
Essas regras foram alteradas pela Lei 10.235/86 que definiu tipos e padrões de
construção:
Art.2° (Art.35 do Decreto 26.120/88) Os valores unitários de metro quadrado
de construção e de terreno são determinados em função dos seguintes
elementos, tomados em conjunto ou separadamente:
I
preços correntes das transações e das ofertas à venda no mercado
imobiliário;
II
custos de produção;
III
locações correntes;
IV
características da região em que se situa o imóvel;
V
outros dados informativos tecnicamente reconhecidos.
Parágrafo único. Os valores unitários, definidos como valores médios para os
locais e construções, serão atribuídos:
I
as faces de quadras, a quadras ou quarteirões, a logradouros ou a
regiões determinadas, relativamente aos terrenos;
II
a cada um dos padrões previstos para os tipos de edificação
indicados na Tabela V 10 , relativamente às construções.
As alterações mais significativas entre as duas leis foram a junção dos dois
impostos e a supressão do §2° do Art.8° da Lei 6.989/66, em especial seu ítem II.
9.3 O sistema cadastral
10
A Tabela V define os tipos e padrões de construção. Ver pg. 225.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
216
Para responder às determinações legais sobre tributos e considerando o volume
dos dados a serem manipulados a Secretaria de Finanças da Prefeitura reformulou
todo o sistema cadastral, permitindo o tratamento mais ágil das informações e a
paulatina incorporação de novos bancos de dados e rotinas. O núcleo central do
sistema, contendo a relação, endereços e atributos das unidades tributárias, foi o
primeiro a ser totalmente informatizado. Durante toda a década de ‘70 foram
desenvolvidos esforços e alocados recursos para complementar esse núcleo
central, resultando um sistema bastante sofisticado, baseado em conceitos e
tecnologia de ponta na época, que foi efetivamente implantado e passou a integrar
as rotinas operacionais da administração pública municipal. Consiste basicamente
de três sub-sistemas interligados através dos códigos de quadras e logradouros,
conforme esquematizado na Figura 9.3a:
TPCL que gerencia os dados referentes às unidades tributáveis.
Cadlog que gerencia os dados referentes aos logradouros.
Geolog que mantém os códigos de localização geográfica (coordenadas
para mapeamento).
Figura 9.3a
Cadastro de São Paulo, 1994
Componentes do sistema cadastral
TPCL
A sigla TPCL corresponde às iniciais dos tribunais previstos pelo sistema:
(imposto) Territorial, (imposto) Predial, (taxa de) Conservação e (taxa de )
Limpeza. É formado por diversos bancos de dados e uma centena de programas e
está estruturado de forma hierarquizada 11 , eficiente para manipulação de grandes
11
Num sistema hierarquizado os dados são arquivados por critérios de mínima redundância.
Por exemplo, se o valor venal unitário for constante para todos os lotes de uma quadra, esse valor
será guardado num banco por quadra e cada lote da quadra terá uma ligação com esse banco para
buscar aí o valor venal. O valor venal será arquivado por lote (ou por face de quadra) apenas nos
casos em que não for constante por quadra.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
217
arquivos mas pouco flexível e de difícil operação para quem não o conhece a
fundo. Foi implantado no início da década de ‘70, época em que ainda prevalecia
a preocupação com o máximo aproveitamento da máquina, mesmo a custo de
muito trabalho direto humano. Vinte anos depois os recursos eletrônicos são
incomparavelmente mais potentes e mais baratos e, portanto, desenvolvem-se
programas que minimizam o trabalho ou a necessidade de especialização humana,
mesmo a custo de grande “desperdício” de máquina. Mesmo assim, a eventual
substituição do atual sistema por outro de manipulação mais fácil esbarraria, além
do problema de manutenção do histórico, nas dificuldades oriundas do volume de
dados a serem tratados: cerca de 2.200.000 unidades lançadas, distribuidas, em
50.000 quadras, acessadas por 65.000 ruas.
A inscrição dos imóveis no cadastro é obrigatória, seguindo as condições
estabelecidas pela Lei 6989/66:
Art.11° Todos os imóveis construídos, inclusive os que gozem de imunidade ou
isenção, situados na zona urbana do Município, devem ser inscritos, pelo
sujeito passivo, na repartição competente, de acordo com a legislação
municipal.
§1° A inscrição será feita em formulário próprio, no qual o sujeito passivo
declarará, sob sua exclusiva responsabilidade, e sem prejuízo de outros
elementos que sejam exigidos pelo Executivo:
I
nome e qualificação;
II
número de inscrição anterior e do contribuinte;
III
localização do imóvel;
IV
dimensões e área do terreno; área do pavimento térreo; número de
pavimentos e área total da edificação; uso, data da conclusão do
prédio;
V
valor venal do imóvel;
VI
aluguel efetivo anual;
VII
dados do título de aquisição da propriedade ou do domínio útil;
VIII
qualidade em que a posse é exercida.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
218
Art.31° Todos os imóveis não construídos, inclusive os que gozem de
imunidade ou isenção, situados na zona urbana do Município, devem ser
inscritos, pelo sujeito passivo, na repartição competente, de acordo com a
legislação municipal.
§1° A inscrição será feita em formulário próprio, no qual o sujeito passivo
declarará, sob sua exclusiva responsabilidade, e sem prejuízo de outros
elementos que sejam exigidos pelo Executivo:
I
o nome e qualificação;
II
o nome do procurador ou representante legal;
III
o endereço para entrega do aviso;
IV
o local do imóvel; denominação do bairro, vila ou loteamento e do
logradouro ou estrada em que estiver situado;
V
as dimensões e área do terreno e confrontações;
VI
o valor venal do imóvel;
VII
os dados do título de aquisição da propriedade ou do domínio útil;
VIII
a qualidade em que a posse é exercida;
IX
a localização do imóvel, segundo esboço que anexará.
Cada unidade lançada constitui um lote ou melhor, um lote fiscal visto que esse
não corresponde necessariamente ao conceito corrente de lote qual seja, de
parcela de terreno. O lote no conceito fiscal é qualquer propriedade imobiliária
passível de ser tributada como unidade: pode ser uma casa, um apartamento, um
prédio, um terreno, uma vaga de garage, uma gleba de 50 ha etc.
Os lotes são agregados em quadras, normalmente delimitadas por ruas. No
entanto uma quadra pode também ser delimitada por uma propriedade tipo gleba
ou por um córrego, assim como pode haver diversas áreas delimitadas por ruas,
formando uma única quadra. No fundo trata-se apenas de um código de
localização, sem vínculo essencial com o conceito físico de quadra ou quarteirão.
A Figura 9.3b mostra alguns exemplos de numeração de quadras fiscais.
Figura 9.3b
Cadastro de São Paulo, 1994
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
219
Exemplo de numeração de quadras fiscais
Pela mesma lógica de código de localização, cada quadra, por sua vez, faz parte
de um setor fiscal. Todo o município está dividido em 310 setores a Figura 9.3c.
Figura 9.3c.
Município de São Paulo, 1994
Divisão em Setores Fiscais
Antes cada unidade tributada pode ser localizada através de um código composto
de três números que identificam sucessivamente o Setor, a Quadra dentro do setor
e o Lote dentro da quadra. Esse código é conhecido pela sigla SQL e corresponde
ao número do contribuinte isto é, ao número pelo qual a unidade a ser tributada é
identificada no cadastro e relacionada a um proprietário em nome do qual será
lançado o imposto.
setor
quadra
lote
dígito de controle
A cada lote são associados os dados de endereço e proprietário e os atributos
(área, tipo, uso, padrão) necessários para o lançamento do imposto:
Tipo de terreno (ver Figura 9.3d)
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
A legislação prevê descontos ou acréscimos para tipos de terreno considerados
desvalorizados ou mais valorizados com relação ao terreno normal.
1 normal
2 de esquema
3 com duas ou mais frentes
4 interno (acesso por viela ou via particular)
5 encravado (acesso por servidão)
6 de fundo (acesso por passagem com menos de 4m)
Figura 9.3d
Cadastro de São Paulo, Lei 10.235/86
Tipos de terreno
Uso
O conceito de uso se confunde em parte com o de tipo de construção,
especialmente no caso de residência como diferente de apartamento. O
primeiro dos códigos de uso identifica os terrenos não construídos, sujeitos a
imposto territorial.
0 terreno
1 residência (entendida como em prédio unifamiliar; no entanto inclui
residência coletiva)
2 apartamento (incluindo garagem)
3 escritório ou prédio de escritório
4 comércio
5 indústria, armazéns e depósitos
6 serviço (entendido como oficina, posto de serviço ou prédio de garagem)
7 cinemas, templos e clubes
220
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
8 especiais (hotéis, hospitais, asilos, etc.)
Padrão de construção
O padrão de construção, estabelecido por tipo, deveria complementar as
informações sobre o uso mas de fato se sobrepõe de maneira um tanto confusa.
Cada tipo é classificado em até 5 padrões de construção que vão do
“arquitetura modesta” (padrão A) ao “prédio isolado com projeto arquitetônica
especial e personalizado” (padrão E). Apesar das descrições extensas de cada
padrão o critério que prevalece é o da área bruta construída:
Tipo 1: Residencial horizontal
Padrão “A” – até 80 m²
Padrão “B” – até 120 m²
Padrão “C” – até 300 m²
Padrão “D” – até 500 m²
Padrão “E” – acima de 500 m²
Tipo 2: Residencial vertical
Padrão “A” – até 60 m²
Padrão “B” – até 85 m²
Padrão “C” – até 200 m²
Padrão “D” – até 350 m²
Padrão “E” – acima de 350 m²
Tipo 3: Comercial horizontal
Padrão “A” a “D”
Tipo 4: Comercial vertical
Padrão “A” a “D”
Tipo 5: Oficinas, depósitos, indústrias
Padrão “A” a “E”
Tipo 5: Garages, clubes, templos, teatros
Padrão “A” a “D”
221
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
222
Código de cobrança
O código de cobrança identifica os imóveis isentos ou imunes de impostos ou
taxas. Estão nesses casos as propriedades municipais, estaduais e federais,
algumas sociedades de economia mista e casos especiais de particulares. O
código de cobrança 0 (zero) se refere a imóveis de proprietário ignorado.
Código de regularidade
Combina a regularidade ou não do loteamento e da construção.
Para cada combinação de uso, tipo e padrão podem ser estabelecidos valores
venais unitários e alíquotas para cálculo dos impostos.
Cadlog
O segundo componente do sistema cadastral, o Cadlog – Cadastro de
logradouros, foi desenvolvido entre 1974 e 1978 com a principal finalidade de
reduzir o espaço gasto com os nomes das ruas, redundantemente repetidos a cada
registro de propriedade, substituindo o nome completo do logradouro por um
código sequencial. Para isto foi criado um arquivo de logradouros com os
respectivos códigos (Codlog), conforme exemplo da Figura 9.3e.
Figura 9.3e.
Cadastro de São Paulo, 1994
Códigos de logradouros
O Codlog tem um potencial de utilização muito maior do que a simples
codificação dos logradouros pois sua estrutura permite armazenar dados sobre
cada trecho da rua, como numeração das extremidades, largura, redes de serviço
existentes etc. ele se constitui no Indice Mestre de Logradouros (IML) ao qual se
relacionam todos os bancos de dados do sistema cadastral.
Geolog
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
223
Ao mesmo tempo em que se desenvolvia e implantava o Cadlog também foi
organizado o conjunto de mapas e projetado o terceiro sub-sistema cadastral, o
Geolog – Geocodificação dos Logradouros. Esse consistiu na atribuição das
coordenadas de localização geográfica (mesmas referências UTM do Sistema
Cartográfico Metropolitano) a cada intersecção de eixos de ruas (permitindo
assim o traçado de mapas de ruas e quadras por computador) e no
desenvolvimento de programas para mapear seletivamente, usando os dados do
Cadlog.
9.4 A identidade dos imóveis e o mapeamento
A caracterização de um imóvel para fins tributários, a rigor, não requer a
representação cartográfica desse imóvel pois mesmo atributos geométricos como
área ou testada podem ser registrados como valores num banco de dados
alfanuméricos. Bastaria portanto uma representação topológica 12 que fornecesse a
posição com relação a elementos conhecidos: rios, ou vias públicas, por
exemplo 13 . No entanto um mapa (representação cartográfica) é necessário: não
para a caracterização dos imóveis mas sim para a caracterização dos imóveis mas
sim para a caracterização do universo considerado, garantindo, por um lado que
todas as propriedades sejam representadas e, por outro, que a soma das áreas das
propriedades seja igual à área total do território. Em outras palavras, uma
representação cartográfica é a única maneira de evitar sobreposição de
propriedade e de evidenciar eventuais lacunas. Sem essa representação não há
condição de se afirmar que as áreas estão corretas (qualquer que seja a precisão
definida a priori) ou que todas as propriedades foram cadastradas. O exemplo a
seguir ilustra a questão.
12
Topologia aqui é usado como a geometria das relações de posição, que não se interessa
pelas dimensões, lineares ou angulares.
13
É o caso do endereço postal.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
224
A Figura 9.4a mostra a representação cartográfica, em escala 1:1000, de uma
quadra e sua subdivisão em lotes. Em cada lote está assinalada a respectiva área,
obtida diretamente através do desenho que, por sua vez, foi feito a partir de algum
tipo de levantamento ou de descrição. A soma das áreas dos lotes deve
corresponder à área da quadra (também conhecida graças ao desenho) sendo,
portanto, um critério simples de checagem. Observe-se que um mapa, ou
representação cartográfica, não dispensa a fonte primária dos dados qual seja, um
levantamento ou uma descrição apoiada em levantamento. Apenas não há
degenerescência da informação, como é o caso de uma representação
esquemática.
Figura 9.3e.
Exemplo de representação de lotes sobre uma base cartográfica
Escala 1:2:000
Uma representação esquemática (ou topológica) da mesma quadra (Figura 9.4b)
também permite localizar cada imóvel na rua e assinalar em cada lote a respectiva
área. Neste caso, porém, a área não pode ser obtida do desenho (sem escala) e não
há como conferir eventuais erros, visto não haver vinculação cartográfica entre a
representação individual de cada lote e o conjunto dos lotes (a quadra).
Figura 9.4b
Representação esquemática dos lotes do exemplo anterior (cf. Figura 9.4b)
A representação cartográfica não é apenas uma forma de arquivo de leitura direta,
mas é a única maneira segura de registrar todas as informações sobre elementos
espacialmente localizados. Donde a necessidade de mapeamento das quadras e
das propriedades, mesmo para o simples controle fiscal.
A necessidade de dispor de mapas confiáveis foi expressa pelo presidente da
Prodam (Cia. De Processamento de Dados do Município) na abertura de um
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
225
seminário sobre geoprocessamento, em novembro de 1978, por ocasião da
apresentação do Geolog e do sistema de mapeamento:
“Nos primórdios das necessidades da Secretaria das Finanças, de uma melhor
visão sobre o imposto territorial e da necessidade de melhorar a base desse
imposto. Quando foi visto que havia necessidade de melhorar essa base física
do imposto, verificou-se que nós não tínhamos uma base física. Os mapas que
havia na Secretaria anão correspondiam biunivocamente aos dados do cadastro
da Secretaria. Por outro lado, esses mesmos dados não correspondiam aos
mapas do Sistema Cartográfico Metropolitano. Além disso nós tínhamos vinte
mil ruas na cidade que não tinham nomes oficiai. Havia uma indefinição total
sobre a realidade de cada um dos logradouros da cidade, suas características
legais, suas características físicas, em resumo, muito pouca informação sobre a
base física, e no entanto administrar a cidade é conhecer a base física.
Quaisquer planos que a gente faça, qualquer plano que a gente queira fazer,
depende essencialmente de um conhecimento da base física.” (Isu Fang, 1978)
O sistema de mapeamento então apresentado tornara-se possível graças à
elaboração do Sistema Cartográfico Metropolitano pelo Gegran 14 em 1972. O
Sistema Cartográfico Metropolitano é formado por um conjunto articulado de
14
Em 1967, antes mesmo do reconhecimento federal das regiões metropolitanas
(Constituição de 1967/68 e Lei Complementar n°14, de 1973), o Governo de São Paulo subdividiu
o Estado em 11 Regiões Administrativas uma das quais a da Grande São Paulo e criou para esta o
Conselho de Desenvolvimento da Grande São Paulo --Codegran--e o Grupo Executivo da Grande
São Paulo --Gegran-- , este último ligado à Secretaria de Economia e Planejamento. Pela primeira
vez a ocupação da Região Metropolitana foi colocada como uma questão a exigir uma política
territorial coordenada e toda a atuação do Gegran se baseou na instrumentalização para a
elaboração dessa política. Em pouco tempo o Gegran se baseou na instrumentalização para a
elaboração dessa política. Em pouco tempo o Gegran conseguiu não só reunir um considerável
acervo técnico, com também colocar esse acervo em termos de instrumentos de ação. Entre esses
instrumentos talvez o mais importante tenha sido o levantamento aerofotogramétrico de toda a
região e a implantação do Sistema Cartográfico Metropolitano (SCM).
A atuação do Gegran é um exemplo claro de que os órgãos públicos na são ineficientes e incapazes
por natureza. No entanto, mais uma vez mostrou-se a descontinuidade de ação do Estado
brasileiro: o trabalho do Gegran punha em risco o descontrole sobre a organização territorial por
parte do Estado e este agiu, transformando o Grupo Executivo em Empresa: Empresa
Metropolitana de Planejamento S.A. - Emplasa. A Emplasa, sem suporte político efetivo, e
paralizada pela ambiguidade de ser uma empresa (e portanto sujeita às regras do mercado) de
planejamento do Estado (e portanto com atribuição de intervir no mercado externamente), limitase a assessorar municípios pequenos e a controlar uma parte da legislação urbanística. Para uma
análise da atuação do Gegran, ver Battaglia, 1990.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
226
cartas nas escalas 1:2000 (cadastral) e 1:10.000 15 , e constitui a base
cartográfica usada até hoje.
Figura 9.4c
Sistema Cartográfico Metropolitano – Gegran 1972
Escala 1:2.000
Figura 9.4d
Sistema Cartográfico Metropolitano – Gegran 1972
Escala 1:10.000
Entre 1974 e 1978 a Secretaria de Finanças da Prefeitura elaborou um mapa de
quadras 16 , com os limites dos setores fiscais e a numeração dos setores e das
quadras, o qual, instituido como Mapa Oficial da Cidade (MOC), é a base de
referências para os trabalhos da Prefeitura. Esse mapa foi feito em conjunto com a
Emplasa (Empresa Metropolitana de Planejamento AS) a partir do Sistema
Cartográfico Metropolitano.
Figura 9.4e
Mapa Oficial da Cidade – PMSP 1985
Escala 1:7.500
O MOC é completado pelas plantas de quadras, desenhos esquemáticos de cada
quadra com os lotes de terreno e a indicação dos lotes fiscais em cada terreno.
Figura 9.4f
Cadastro de São Paulo – PMSP 1994
Planta da quadra
15
16
Fazem parte do conjunto do SCM as cartas 1:25.000, redução fotográfica de 1:10.000.
Originalmente na escala 1:5000, obtido por ampliação fotográfica do mapa 1:10.000. A
segunda versão do mapa foi feita na escala 1:7500.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
227
Por sua vez o Mapa Oficial da Cidade serviu de base para a geocodificação das
quadras e ruas, formando o banco de dados do Geolog. Mal chegou a ser
terminado e, em 1982, o Geolog foi desativado sob a alegação de que sua
manutenção era muito cara.
Figura 9.4g
Cadastro de São Paulo – PMSP 1994
Geolog
O Geolog foi retomado em 1991, já com outras perspectivas de utilização, graças
a um início de integração com outros serviços municipais, e contanto com
profundas alterações na forma de manipulação, graças aos avanços técnicos na
área da computação gráfica e das redes de micro-computadores.
9.5 Problemas na manutenção da base cartográfica
A atualização do sistema MOC / Quadras fiscais é feita pela Secretaria de
Finanças a partir das informações dos processos administrativos (plantas de
loteamentos, projetos de melhoramento viário, desmembramentos, aprovação de
obras etc) e das vistorias e levantamentos feitos pelos inspetores fiscais.
Enquanto a Secretaria de Finanças teve recursos para manter uma equipe de
desenhistas e pessoal de campo que assegurasse o trabalho permanente de
levantamento e fiscalização, esse método foi bastante eficaz no sentido de que o
cadastro fiscal se mantinha suficientemente atualizado para garantir a necessária
expansão da base tributável, apesar da crescente perda de qualidade cartográfica.
Mesmo assim alguns problemas se tornaram evidentes, acentuados ainda mais
com a política 17 de paulatina desativação dos serviços relacionados com o
17
Para implantar uma política de desativação de serviços não é necessária nenhuma ação
deliberada: basta não expandir os recursos no mesmo ritmo do aumento da demanda ou das
mudanças tecnológicas que ocorrem no conjunto da sociedade. Um serviço baseado em fichas
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
228
controle e o planejamento da ocupação do território, no caso específico, de
manutenção da base cartográfica. Esses problemas são do mais diversos tipos e
podem ser resumidos em alguns exemplos a seguir.
Rede de marcos de apoio geodésico
Um levantamento, seja aerofotogramétrico seja fotográfico, deve estar
amarrado (ou referenciado) a pontos fixos, dos quais se conhecem as
coordenadas geográficas isto é, a longitude e a latitude sobre o geóide de
representação da Terra. E necessário, portanto, existir uma rede desses
pontos, ou marcos de apoio geodésico, fisicamente demarcados, em
densidade suficiente para que de qualquer área a ser levantada se tenha
fácil acesso a, pelo menos, dois deles. Na falta de uma rede de marcos
oficiais, cada entidade que necessita mapear uma área extensa coloca um
conjunto de marcos para seu próprio uso, às vezes georeferenciados, às
vezes com coordenadas arbitrárias. Em São Paulo vários órgãos
implantaram verdadeiras redes de apoio: as companhias de estradas de
ferro, a Light, o IBGE. Essas redes acabaram sendo unificadas e
consolidadas numa única, oficial, mas mesmo assim a densidade de
marcos é insuficiente como referência para os levantamentos na regi5o. A
falta de administração efetiva dessa rede impediu até agora que ela fosse
utilizada como referência para as atualizações cartográficas: os marcos
físicos são destruidos, não há (ou pelo menos não se conhece) um registro
centralizado com a localização e descrição desses marcos, não há um
serviço de fornecimento de referências de apoio para levantamentos
topográficos, não há serviço permanente de reposição e adensamento de
marcos.
Como consequência os levantamentos parciais continuam sendo feitos
desvinculados do sistema geral e, portanto, não são aproveitáveis como
dado cartográfico.
Levantamentos topográficos incorretos
datilografadas em máquinas de escrever numa sociedade que se reorganiza usando redes de
computadores está fadado à rápida obsolescência.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
229
Tanto empresas privadas quanto órgãos públicos fazem, constantemente,
levantamentos topográficos parciais: para anteprojeto ou projeto de
loteamentos, para abertura ou locação de obras viárias, para grandes
construções etc. Esses levantamentos deveriam ser a base de informações para
atualização do sistema cartográfico. No entanto a dificuldade na obtenção de
referências de apoio, a falta de controle público sobre sua qualidade, a própria
falta de uma base cartográfica atualizada são fatores que concorrem para que
os levantamentos de rotina não sejam confiáveis para a atualização
cartográfica.
Alterações sem controle
Aberturas de ruas sem projeto aprovado, projetos aprovados com base em
levantamento falhos, obras em desacordo com o projeto, são outros tantos
fatores que promovem a rápida desatualização da base cartográfica.
Lote físico não identificado
O sistema cadastral adotado em São Paulo identifica cada parcela de terreno
pois trabalha com o conceito de lote fiscal e não de lote físico. Este é
representado nos desenhos das quadras mas não é acoplado, no cadastro, a cada
unidade tributada. Essa desvinculação dificulta o acompanhamento do histórico
de cada imóvel em termos de projetos aprovados e executados, infrações,
desmembramentos etc.
Falta de articulação dos serviços de atualização
Dispondo de uma base cartográfica ou melhor, de um sistema cartográfico
confiável, a atualização cadastral deveria fazer parte dos serviços de rotina dos
diversos órgãos de uma Prefeitura: aprovação de projetos e de obras, atribuição
de nome de rua, autorização para serviços nas vias, concessão de alvará de
funcionamento, extensão de rede pública, são atividades próprias de qualquer
administração municipal que só podem ser bem desenvolvidas se forem
instruídas por mapas e plantas cadastrais. Ao mesmo tempo a própria atividade
traz alterações que, se forem registradas sistematicamente, podem garantir a
atualização permanente das plantas cadastrais. Não é isto que ocorre. Os serviços
são pulverizados em inúmeros órgãos independentes, cada um examinando e
respondendo por um aspecto específico da questão em pauta, cada um usando
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
230
fontes de informações diferentes e fazendo anotações ou atualizações parciais
(quando as fazem) em mapas de uso restrito para o serviço específico. Essa falta
de articulação acabou gerando problemas cuja solução escapa totalmente das
rotinas, exigindo um trabalho sobreposto a elas e em muitos aspectos em conflito
com elas. É o caso, por exemplo, dos milhares de ruas não identificáveis (rua A,
rua UM, rua Particular) ou dos imóveis do patrimônio municipal não mapeados e
não localizáveis.
Na origem de todas as dificuldades apontadas para a atualização cartográfica está
o fato do sistema ser de uso exclusivo para tributação, sem qualquer
compromisso.
9.6 A Planta Genérica de Valores e o cálculo dos impostos
A manutenção do cadastro fiscal e a atribuição dos valores venais são tarefas da
Secretaria de Finanças. Os valores venais são consolidados e aprovados
anualmente num documento conhecido como PGV – Planta Genérica de Valores.
Os valores unitários de terreno, definidos em função da localização, eram de fato
mapeados (por zonas de mesmo valor), e a Lei 6.986/66 se refere à Planta
Genérica de Valores (ver Artigos 16 e 35, à página 217).
Já a Lei 10.235/86 substituiu a PGV por uma Lista de Valores Unitários, por face
de quadra 18 .
Art.1° A apuração do valor venal, para fins de lançamento dos Impostos sobre
a Propriedade Predial e Territorial Urbana, será feita conforme as normas e
métodos ora fixados.
Lista de Valores.
Art.4° O valor venal do terreno ... resultará da multiplicação de sua área total
pelo correspondente valor unitário de metro quadrado de terreno, constante da
Listagem de Valores ...
A partir da informatização dos cadastros a planta foi substituída para efeitos
operacionais por uma listagem das faces de quadra e seus respectivos valores
18
Face de quadra é o resultado do cruzamento de quadras com ruas. Por exemplo, uma
quadra X, limitada por quatro ruas A, B, C e D, terá quatro faces de quadras XA, XB, XC e XD.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
231
venais. Via de regra os valores venais dos terrenos isto é, os valores que refletem
diferenças de localização, são atualizados linearmente, o que significa apenas uma
correção monetária. A valorização em função de alterações de fatores de
localização como acessibilidade a sistema viário, transporte ou redes de serviços,
só se reflete em termos de valores venais com anos de atrazo, através de pesquisas
de valor de mercado.
Dentro das conquistas estabelecidas cabem à Secretaria de Finanças da Prefeitura
as tarefas de manter o cadastro das propriedades imobiliárias, estabelecer os
valores venais de cada propriedade e calcular os impostos.
A legislação é ao mesmo tempo muito detalhada em certos aspectos e omissa em
outros, deixando dúvidas para quem “não é do ramo”. Isto é, de fato as atribuições
se resolvem pela prática dos funcionários e pelas rotinas e sistemas implantados.
As leis fornecem alguns critérios gerais, justificativas e parâmetros de cálculo,
além de constituírem as bases para discussões e negociações político-partidárias.
Pela Lei 6.989/66 o imposto era calculado mediante aplicação de alíquotas fixas
sobre os valores venais apurados segundo as regras citadas (ver pg.218).
Art.7° O impôsto [predial] calcula-se à razão de 1,2% sôbre o valor venal do
imóvel.
Art.27 O impôsto [territ.urbano] calcula-se sobre o valor venal do imóvel, à
razão de:
I
quando situado na 1ª subdivisão da zona urbana, 4,2%;
II
quando situado na 2ª subdivisão da zona urbana, 3,0%;
III
quando situado além do perímetro desta última, 2,4%.
A partir da Lei 10.235/86 os dois impostos passaram a ser tratados em conjunto,
num único Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), o que gera uma certa
confusão com a possível interpretação de que o IPTU resultaria da soma dos dois.
De fato, sem considerar o caso de excesso de área, como definido no inciso III do
Artigo 24, os dois impostos são alternativos isto é, se aplica um ou outro,
conforme o imóvel seja ou não construído. No entanto o Imposto Predial é
calculado sobre um valor venal obtido pela soma dos valores venais do terreno e
da construção: o do terreno depende da localização e o da construção é definido
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
232
para todo o município em função do uso, tipo e padrão. Obviamente essa forma de
cálculo de valor venal do imóvel pela soma de valores venais de imóveis
inexistentes (um terreno vazio com determinado uso e uma construção sem
terreno) não corresponde a nenhum critério de avaliação de mercado. No entanto
é uma forma bastante eficaz de distribuir a carga tributária e, a menos dos
problemas pontuais comuns num cadastro tão grande como o de São Paulo, não
parece haver grandes distorções.
Por outro lado, a Lei 10.394/87 estabeleceu alíquotas diferenciadas, em função do
uso e do Valor Venal do Imóvel (VVI), em substituição à alíquota única de 1,2%
para imóveis construidos e às três alíquotas em função da localização para os
terrenos vagos.
Art.1°, inciso I (art.7° do Decreto 26.120/88) O imposto [predial] calcula-se
sobre o valor venal do imóvel à razão de:
I
tratando-se de imóvel utilizado exclusivamente como residência:
Classes de VVI (em UFM) 19
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
II
até 30
30 até 80
80 até 120
120 até 200
200 até 300
300 até 1000
1000
Alíquotas
0,8%
1,0%
1,2%
1,4%
1,6%
1,8%
2,0%
demais casos:
Classes de VVI (em UFM)
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
até 80
80 até 120
12 até 200
200 até 300
300 até 1000
1000
Alíquotas
1,2%
1,4%
1,6%
1,8%
2,0%
2,2%
§1° O imposto é calculado em cada classe sobre a porção de valor venal do
imóvel em UFM, compreendida nos respectivos limites.
19
UFM – Unidade Fiscal do Município. É um indexador usado para Prefeitura para corrigir
os valores recebidos de impostos e taxas e os valores pagos a fornecedores.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
233
§2° O imposto progressivo é a soma das parcelas correspondentes a cada
classe.
Art.1°, inciso IV (art.23 do Decreto 26.120/88) O imposto [territorial urbano]
calcula-se sobre o valor venal do imóvel à razão de:
I
tratando-se de imóvel utilizado exclusivamente como residência:
Classes de VVI (em UFM)
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
até 30
30 até 100
100 até 200
200 até 500
500 até 1500
1500 até 3000
3000
Alíquotas
2,4%
3,0%
3,6%
4,2%
5,0%
6,0%
7,0%
As Leis 10.805/89 e, mais ainda, 11.152/91 alteraram não apenas os valores das
alíquotas mas principalmente a estrutura de distribuição dos impostos,
aumentando-os mais para as propriedades de valores venais mais altos.
Alíquotas definidas pela Lei 11.152/91:
I
imóvel construído, utilizado exclusivamente como residência:
Classes de VVI (em UFM)
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
II
até 550
550 até 1400
1400 até 4600
4600 até 15000
15000
Alíquotas
0,2%
0,4%
0,6%
0,8%
1,0%
imóvel construído não residencial:
Classes de VVI (em UFM)
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
até 80
80 até 300
300 até 500
500 até 800
800 até 1200
1200 até 2600
2600 até 10000
10000
Alíquotas
0,60%
0,75%
0,95%
1,15%
1,30%
1,50%
1,70%
2,40%
Luisa Battaglia
III
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
234
terreno não construído:
Classes de VVI (em UFM)
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
acima de
até 50
50 até 100
100 até 200
200 até 300
300 até 600
600 até 1500
1500 até 4500
450 até 9000
9000
Alíquotas
0,75%
0,95%
1,30%
1,50%
1,70%
1,90%
2,80%
3,70%
5,00%
A título de exemplo, segue a sequência de operações para cada cálculo do IPTU
de uma residência (sobrado), de acordo com a notificação emitida pela Prefeitura.
IMAGEM
Area construída: 96 m².
É a área constante do cadastro. Neste caso específico a área real é de 220 m².
Valor m² construído: CR$ 1 229,00 20 .
Valor venal unitário da construção, definido por lei, função do tipo e padrão da
construção. Trata-se no caso de 1B isto é,
Tipo 1 - residencial horizontal
Padrão B - área bruta entre 80 e 120 m².
Fator de obsolescência: 0,79.
O fator de obsolescência é um redutor do valor venal do imóvel em função da
idade, sendo essa contada a partir do último alvará (seja de construção, de
reforma ou de conservação). O fator 0,79 corresponde a 15 anos.
Fatores.
Três espaços reservados para eventuais fatores de (des)valorização do imóvel.
20
Todos os valores monetários estão divididos por 1.000.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
Valor (venal) da construção: CR$ 93 207,00.
Area construída pelo valor venal unitário corrigido pelos diversos fatores.
96 m² X CR$ 1 229,00/m² X 0,79 = CR$ 93 270,00
Area de terreno incorporada: 276 m².
Calculada em função da área ocupada (projeção da área construída sobre o
terreno) e da zona em que se situa o imóvel. Neste caso trata-se de imóvel na 2ª
zona, com área ocupada de 46 m².
46 m² X 6 = 276 m²
Valor m² terreno: CR$ 1 201,00.
Valor venal unitário do terreno, definido por quadra ou por face de quadra na
Planta Genérica de Valores.
Fator (no caso, de profundidade): 0,9877.
O fator de profundidade é um redutor do valor venal, definido em função da
“profundidade equivalente”, essa sendo a relação entre área e testada. A
intenção desse fator é considerar a desvalorização de terrenos com proporções
muito diferentes do clássico lote de 10 X 30 m. O fator de profundidade é
aplicado, de maneira progressiva, para terrenos em que a relação entre área e
testada é menor que 20 ou maior que 40.
Fator.
Espaço reservado, sem aplicação neste caso.
Fator condomínio.
Aplicado em casos de prédios com mais de uma unidade, tributada
(apartamentos, escritórios, lojas etc). Notar que, no cadastro, a cada unidade
tributada está associado o terreno inteiro e não apenas sua fração ideal. Esta é
aplicada diretamente para o cálculo do valor venal.
Valor terreno incorporado: CR$ 327 392,00.
Area do terreno incorporado, pelo valor unitário, pelos fatores de correção,
condomínio e fração ideal.
276 m² X CR$ 1 201,00 X 0,9877 = CR$ 327 392,00
235
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
236
Fator especial.
Mais uma correção para casos previstos por leis específicas.
Valor venal imóvel: CR$ 420 599,00.
Soma dos valores venais da construção e do terreno incorporado.
CR$ 93 207,00 + CR$ 327 392,00 = CR$ 420 599,00
Fator de desconto.
Não está sendo usado. A Prefeitura costuma conceder descontos em função do
valor venal apurado (o que equivale a uma alteração de alíquotas), seja na
forma de um percentual (ou fator), seja na de valores fixos. Em 1993 foi
concedido desconto fixo de 400 UFM, razão pela qual o “fator de desconto”
não foi usado.
Valor venal do imóvel corrigido: CR$ 266 423,80.
Valor venal calculado anteriormente ao qual se aplicou o desconto de 400
UFM.
Alíquota: 0,0060.
A alíquota é estabelecida por lei, em função do uso do imóvel. Ao longo dos
anos houve várias tentativas mais ou menos bem sucedidas de se estabelecer
alíquotas progressivas, em função do valor venal do imóvel. Em 1993 a
alíquota foi única.
Parcela a deduzir.
Campo disponível para os casos de alíquota progressiva por faixa de valor, para
evitar descontinuidade nos valores do imposto.
Area do terreno não incorporado:
Área total menos a área do terreno incorporado.
400 m² - 276 m² = 134 m²
O cálculo do valor venal do terreno não incorporado se repete, com todos os
fatores de correção, e neste caso sem desconto.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
237
Sobre o valor venal do terreno não incorporado é aplicada a alíquota do imposto
territorial, normalmente mais alta que a do imposto predial. Em 1993 as duas
alíquotas foram iguais mas em 1992, por exemplo, as alíquotas foram:
Predial
0,006
Territorial
0,017
Seguem os códigos do logradouro, de uso, tipo, cobrança etc., além dos dados
necessários para o lançamento das taxas. Finalmente, o imposto total é calculado
pela soma dos impostos predial (referente à construção e terreno incorporado) e
territorial (referente ao terreno não incorporado).
Predial
CR$ 266 423,80 X 0,006 = CR$ 1 598.50
Territorial
CR$ 158 952,00 X 0,006 = CR$
953.70
_______________
Total
CR$ 2 552.20
A partir de 1990 a Prefeitura passou a fazer tentativas de cobrar o imposto em
valores constantes. Até 1989 o IPTU era calculado em moeda corrente “corrigida”
por uma estimativa de inflação futura 21 . O resultado era parcelado em prestações
e recebia um “desconto” para pagamento a vista. Em 1990 a Prefeitura conseguiu
a autorização para “atualizar o valor a pagar em 70% da variação do BTN entre o
mês base e o do vencimento”. Ainda não era uma atualização plena do valor mas
o reconhecimento da necessidade de se ter as contas públicas em alguma moeda
constante foi um passo importante no sentido do controle sobre o orçamento. No
ano seguinte a atualização foi pelo valor total do BTN. Em 1992 e 1993 os valores
em moeda corrente foram transformados em UFM (Unidade Fiscal do
Município), com variação mensal e, finalmente, em 1994 a Prefeitura adotou a
UFM diária para pagamento dos impostos municipais.
21
Considerando que o orçamento é montado em julho/agosto do ano anterior e enviado à
Câmara em setembro, é fácil imaginar que essas previsões tem sido bastante próximas ao aleatório.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
238
9.7 Imóveis regulares e irregulares
A legislação não menciona qualquer diferença de tributação com base na
regularidade ou não do imóvel. No entanto a questão não é isenta de problemas.
A produção do lote (terreno com acesso à estrutura de vias públicas) se dá através
de processo de parcelamento de glebas, seja por desmembramento (simples
subdivisão das quadras resultantes). Esse processo passa pela aprovação do poder
público 22 e, via de regra, está legalmente condicionado à implantação de
infraestrutura e à doação de áreas para uso público. Os lotes assim obtidos podem
receber construções cujo projeto também deve ser aprovado, dentro de regras
definidas de ocupação e uso. Um imóvel construído é considerado regular pela
Prefeitura Municipal quando é formado por uma construção aprovada sobre um
lote resultante de um processo de parcelamento aprovado. Ao longo da história de
São Paulo poucos imóveis foram produzidos estritamente de acordo com a
legislação em vigor. A grande maioria, irregulares ou “clandestinos” acabam
sendo reconhecidos em sucessivos processos de regularização e de anistias. No
entanto mesmo irregulares os imóveis podem ser (e são) cadastrados para
tributação, criando-se um duplo processo de reconhecimento: um para pagamento
de impostos, outro para obtenção de documentos de regularidade e direitos a
serviços públicos. Dois mundos, com regras e definições diferentes, com claro
predomínio, em termos de importância, do mundo tributário. E note-se que
nenhum desses dois mundos corresponde ao reconhecimento jurídico do direito
de propriedade que, como visto acima, depende do registro de um título no
Cartório de Registro de Imóveis.
Na prática isto significa a pouca utilidade de todo o sistema de proposição e
aplicação da legislação urbanística cujos recursos de persuasão estão limitados a
certidões esporádicamente necessárias (no caso de financiamentos, por exemplo)
ou a complicadas e demoradas ações jurídicas.
22
Para uma descrição detalhada do processo de aprovação de parcelamento do solo em São
Paulo Battaglia (1987).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
239
As regras estabelecidas pela legislação federal e municipal com relação à
tributação da propriedade imobiliária são bastante simples e coerentes se
consideradas isoladamente isto é, apenas como conjunto de normas tributárias. As
coisas se complicam à medida em que as mesmas categorias ou conceitos usados
pelo sistema tributário, não sendo exclusivos deste sistema, aparecem em outros
contextos, em outros conjuntos legais, muitas vezes com definições diferentes,
mesmo conflitantes. É aí que a legislação se torna um instrumento paralizante,
que impede qualquer tentativa de resolução dos problemas concretos que surgem.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
CAPÍTULO 10
AS TERRAS AGRÍCOLAS E O IMPOSTO RURAL
240
Luisa Battaglia
10
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
241
AS TERRAS AGRÍCOLAS E O IMPOSTO RURAL
“Se os pobres tivesse crédito e terreno
que beleza não seria.
Todos os pobres plantavam
e todos os pobres coía.
Nisto eu falo a verdade
até o povo da cidade
muito mais fácil vivia.”
(Sebastião Roque, cantador de cururu) 1
O sistema cadastral brasileiro é formado pelos 4.493 cadastros urbanos mantidos
pelas prefeituras para lançamento do Imposto Predial e Territorial Urbano e pelo
cadastro das propriedades rurais, atualmente mantido pelo INCRA (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e destinado ao lançamento do
Imposto Territorial Rural.
Com o intúito de completar um quadro suficientemente abrangente do sistema de
cadastros e registros no Brasil, este capítulo apresenta informações sobre o
cadastro do INCRA, suas origens e alguns problemas, e uma breve indicação sobre
o registro Torrens cujo interesse hoje parece ser apenas histórico. Serão deixados
deliberadamente de lado os registros das terras públicas e de estrangeiros por
constituírem assuntos para áreas de estudos a parte, que fogem da viabilidade de
tratamento neste trabalho.
1
Verso de cururu cantado por Sebastião Roque, cantador de Sorocaba na década de ‘50.
Toda a cantoria foi reproduzida em 1964 pelo Grêmio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
num folheto editado por ocasião da apresentação de cantadores de cururu na FAU.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
242
Antes de abordar a origem e as características do cadastro de propriedades rurais é
necessário examinar a separação entre territorial urbano e territorial rural do ponto
de vista da validade da dicotomia urbano e rural como conceitos de análise para,
em seguida, avaliar sua utilidade quanto à aplicação prática.
10.1 A falsa oposição entre rural e urbano
O uso generalizado do termo rural como oposto a urbano não facilita o
entendimento dessa oposição assim como não elimina as dificuldades em separar
fenômenos e processos que possam ser definidos como urbanos de outros não
urbanos.
A questão é tratada por alguns autores, sob diferentes pontos de vista:
Michael Ball 2 , por exemplo, critica a possibilidade de se definir “economia
urbana” enquanto área de estudo ou de atuação.
Merrington 3 examina a dicotomia cidade/campo na economia feudal e a sua
dissolução no processo de transição para o capitalismo.
Deák 4 aborda a questão sob o enfoque do processo de produção e de acumulação:
no capitalismo a formação de um mercado unificado, correspondente ao espaço de
uma nação-Estado, elimina os mercados locais, tornando sem sentido a separação
entre cidade e campo.
A falsa dicotomia urbano / rural é uma herança da dicotomia cidade / campo na
sociedade feudal, em que o campo era o lugar da produção e a cidade o lugar da
troca e do consumo de excedente. Duas características essenciais da sociedade
feudal originavam essa separação:
2
Ball (1979).
3
Merrington (1975).
4
Deák (1985).
Luisa Battaglia
1
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
243
A produção estava estruturada em boa medida diretamente em função
do valor de uso (meios de subsistência), sendo a troca restrita ao
excedente; mesmo a produção mercantil (para troca) estava
subordinada à estrutura de produção de valores de uso.
2
O espaço era fracionado em áreas de produção e mercados separados,
o que permitia a atividade mercantil, baseada na possibilidade de
“comprar barato e vender caro” 5
Os espaços eram fisicamente separados, seja pela distância, seja por muros de
defesa das cidades e vilas, onde se acumulavam os excedentes.
Ao contrário, o processo de acumulação capitalista, em que predomina a produção
pelo valor de troca, em que a produção de mercadorias se estende aos meios de
subsistência, e em que a base do mercado é a troca de valores equivalentes, requer
(e constroi) um espaço unificado, em que a separação cidade / campo não tem
mais significado.
“O surgimento do capitalismo é precisamente o processo de transformação no
qual a forma mercadoria se torna generalizada e dominante, a produção para
subsistência e a produção de excedente como tal (renda) são incorporadas
(subordinadas) à produção de valor na forma de mercadorias pelo trabalho
assalariado sob o comando do capital, e a troca passa a ser troca de
equivalentes num mercado unificado. Assim enquanto no feudalismo a
separação entre a produção e a troca/consumo numa constelação de mercados
separados acarreta a dicotomia cidade/campo e o fracionamento do território
numa constelação dos espaços locais, a produção capitalista de mercadorias
num mercado unificado acarreta a redução da anterior dicotomia
cidade/campo e a redução da constelação de espaços locais a um único
espaço no qual mercadorias, trabalho e capital fluem livremente e numa
escala suficientemente grande para sustentar um processo autônomo de
acumulação – como o que ocorreu historicamente dentro das fronteiras da
moderna nação-estado.” (Déak (1985, pg102).
Na transição do feudalismo para o capitalismo o espaço unificado, correspondente
à produção capitalista de mercadorias, foi concretamente construído pelas redes de
5
Merrington (1975).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
244
transporte e comunicações, pela eliminação das barreiras alfandegárias internas (e
eventual reforço das externas) e pela desconsideração dos muros periféricos das
cidades que separavam o espaço dentro do espaço fora (como espaços com
características diferentes enquanto formas e relações sociais de produção). O
espaço passa a ser único, formado por um contínuo de localizações, independente
da forma assumida pela localização específica de cada atividade.
No período feudal português os municípios correspondentes a cidades com
administração autônoma, em geral fiéis ao rei, constituíam uma força para
contrabalançar a da nobreza cujo poder dependia da produção do campo.
No Brasil-colônia o campo correspondia aos locais de produção, aos engenhos, às
sesmarias, à relação senhor/escravo. As cidades e vilas eram o local do comércio,
das formalidades administrativas e dos encontros sociais, onde o assentamento se
dava através das concessões feitas pelos Conselhos e a dominação, apesar de ser
exercida pelos mesmos senhores de terras, não o era diretamente mas sim através
das posições políticas e das ações administrativas.
A evolução para uma estrutura social inteiramente capitalista no Brasil teria
levado (como levou nos Estados burgueses) ao abandono da separação cidade /
campo por não corresponder mais ao modo de produção determinante. Ao invés,
foi mantida uma separação, mas sem significado para a estrutura de produção,
substituindo-se cidade por “zona urbana” e campo por “zona rural”, o que apenas
dificulta a administração e facilita a manutenção de privilégios em matéria de
impostos. Toda a legislação tributária e de controle do uso e ocupação do solo está
solidamente ancorada na distinção, cada vez mais vazia de significado, entre
“urbano” e “rural”. Na falta de corresponder a processos concretos, essa distinção
exige definições formais, das quais o melhor exemplo é o dos traçados dos
perímetros urbanos.
10.2 Os perímetros urbanos
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
245
O trabalho de Raquel Glezer, Chão de terra 6 , oferece importante contribuição em
matéria de documentação e bibliografia específica sobre as origens dos perímetros
urbanos no Brasil.
A partir do início do século XIX os moradores das povoações estavam sujeitos ao
pagamento da décima urbana, imposto sobre os prédios urbanos, definidos como
tais os que estivessem compreendidos nas demarcações dos Conselhos (mais tarde
Câmaras). A décima urbana fora instituída por Alvará de 27 de junho de 1808 (e
estendida a todas as povoações pelo Alvará de 3 de junho de 1809) e correspondia
a 10% do rendimento líquido. O seu lançamento exigiu a anotação, em livros e
cadernos, não só dos valores lançados e arrecadados, mas também da relação dos
imóveis, seus proprietários e inquilinos, os foros, os rendimentos, a quantidade de
andares e lojas etc., constituindo-se assim os primeiros cadastros fiscais 7 . A título
de curiosidade vale citar Raquel Glezer sobre as juntas incumbidas da avaliação
dos imóveis:
“Para a cobrança do novo tributo a Coroa exigiu a formação de uma Junta da
Décima, para lançamento do valor, composta por Superintendente, ..., um
Escrivão, dois homens bons, um nobre e outro do povo, dois carpinteiros, um
pedreiro e um fiscal, obrigatoriamente advogado.” (Glezer, 1992, pg.90).
Em 1983 a décima urbana foi transformada em imposto provincial.
Por outro lado o registro das posses, determinado pela Lei das Terras
Devolutas (1850), foi dispensado nos núcleos urbanos 8 . Uma circular
de 13.1.1855 da Repartição Geral das Terras Públicas aos Presidentes das
Províncias dizia:
“Visto ser princípio regulador do Registro das terras possuídas o destino
destas para a lavoura ou criação, se observe em geral como linha de
separação a demarcação da décima urbana declarando comprehendidos na
6
Glezer (1992).
7
Segundo Raquel Glezer, o livro de São Paulo em 1809 arrolava 56 ruas e 1.288
propriedades.
8
Raquel Glezer cita o trabalho de Viviane Tessitore de compilação dos registros paroquiais
de freguesia da Sé, em São Paulo: os 69 registros compilados estão todos fora do perímetro da
décima.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
246
obrigação do registro todos os terrenos que estão fora da dita demarcação.”
(Glezer, 1992).
Em 29 de setembro de mesmo ano o Aviso nº 17 reforçava a circular:
“Na obrigação do registro não forão comprehendidos os terrenos que ficão
dentro da demarcação da Décima Urbana.” (Glezer, 1992).
Formalizavam-se assim dois regimes de terras, separados por uma linha
demarcatória mal definida:
O correspondente às áreas urbanas, não registradas, sujeitas à décima
urbana e ao pagamento de foro às Câmaras municipais.
O correspondente às demais, sujeitas a registro para obtenção de
título de propriedade e isentas do imposto da décima.
O traçado dessa linha demarcatória não está muito claro para os historiadores de
hoje, especialmente no caso de São Paulo onde havia uma certa confusão entre a
área do rossio e a área do termo.
“Chamo atenção para o fato da palavra rossio ter tido seu sentido alterado.
Era originalmente a área destinada ao uso comum, e só podia ser doada para
moradia ou aforada, pois era parte integrante dos bens do conselho. No
decorrer dos séculos, de “terras de uso comum” rossio se transformou na área
de controle direto da Câmara, como se fosse o termo.” (Glezer, 1992, pt.136).
Acrescente-se a essa confusão de nomes o fato de que, em São Paulo, o rossio só
foi demarcado em 1726 9 e novamente em 1769 10 e que o termo (nunca
demarcado) correspondia vagamente a seis léguas em torno da vila, para se ter
idéia das condições de controle sobre domínio e propriedade. Sem contar com a
divisão eclesiástica em freguesias, sem correspondência com qualquer outra, sobre
a qual se organizava o sistema de registro dos títulos de propriedade.
Em correspondência ao processo de regulamentação e implantação das medidas
estabelecidas pela Lei das Terras iniciaram-se movimentos nos diversos
municípios no sentido de se livrar dos foros às Câmaras e de transformar os
9
Glezer (1992, pg.142).
10
Glezer (1992, pg.151).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
247
direitos de ocupação em títulos de propriedade. Esse processo já durou mais de
um século 11 e não há evidência de que esteja totalmente concluído.
10.3 Competências tributárias e legislação sobre o território
Talvez porque a tributação sobre a terra fosse ainda incipiente, a primeira
Constituição republicana (1891) não fez distinção entre imóveis rurais e urbanos,
dando aos Estados a competência de decretar impostos sobre ambos.
Já a Constituição de 1934 definiu como competência dos Estados a de lanças
impostos sobre a “propriedade territorial, excepto a urbana” e como pertencentes
aos municípios os “impostos predial e territorial urbanos”. Enquanto estes últimos
permaneceram desde então no âmbito municipal, o lançamento do impostos sobre
a propriedade não urbana foi atribuído ora aos Estados, ora à União e durante um
curto período aos municípios, sendo que o produto arrecadado foi parcialmente
repassado aos municípios.
A parte o fato de que os termos urbano e rural não definem categorias de análise,
a manutenção desta separação traz problemas na prática, na medida em que é cada
vez mais difícil distinguir entre “urbano” e “rural” mesmo apenas para efeito de
tributação. Um prédio de apartamento no centro de São Paulo é considerado um
imóvel “urbano” enquanto que uma plantação de cana no município de
Iracemápolis é um imóvel “rural”, de acordo com a lógica de separação por
atividade predominante do imóvel. Mas seria difícil considerar como “rural” os
dois hectares na periferia de Itaquera, plantados com hortaliças no aguardo de uma
ocupação “urbana” (entenda-se “construída”), ou mesmo a plantação de cana
numa área contígua à ocupação “urbana” e aguardando os trâmites legais para ser
parcelada em lotes de 10m X 30m.
11
Ver o caso de Salvador, citado na nota 5 à pg.88.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
248
Segundo o ponto de vista legal/tributário o problema se resolve com um perímetro
urbano traçado segundo as normas do próprio Sistema Tributário Nacional (Lei
Federal 5.172/66):
Art.32
§1°: Para os efeitos dêste imposto (sôbre a propriedade predial e territorial
urbana), entende-se como zona urbana a definida em lei municipal;
observado o requisito mínimo da existência de melhoramentos indicados
em pelo menos 2 (dois) dos incisos seguintes, construídos ou mantido
pelo poder público:
I
meio-fio ou calçamento, com canalização de águas pluviais;
II
abastecimento de água;
III
sistema de esgotos sanitários;
IV
rêde de iluminação pública, com ou sem posteamento para
distribuição domiciliar;
V
escola primária ou pôsto de saúde a uma distância máxima de 3
(três) quilômetros do imóvel considerado.
§2°: A lei municipal pode considerar urbanas as áreas urbanizáveis, ou de
expansão urbana, constantes de loteamentos aprovados pelos órgãos
competentes, destinados à habitação, à indústria ou ao comércio, mesmo
que localizados fora das zonas definidas nos termos do parágrafo
anterior.
Para tributar a propriedade, portanto, é necessário definir uma zona urbana
através de lei municipal. Esta definição é normalmente interpretada como
descrição de perímetro e, posteriormente, a Prefeitura deveria encaminhar à
Câmara projeto de lei alterando o Perímetro urbano. A legislação municipal em
vigor em São Paulo (consolidada através do Decreto 26.120/88) repete as
definições da Lei Federal 5.172/66 e acrescenta:
Art.3° Observados os requisitos do Código Tributário Nacional, considerarse-ão urbanas, para os efeitos deste imposto (predial), as áreas
urbanizáveis e as de expansão urbana, a seguir enumeradas, destinadas à
habitação - inclusive à residencial de recreio - à indústria ou ao comércio,
ainda que localizadas fora de zona urbana do Município:
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
I
249
áreas pertencentes a loteamentos de solo regularizados pela
Administração
Municipal,
mesmo
que
executados
irregularmente;
II
as áreas pertencentes a loteamentos aprovados, nos termos da
legislação pertinente;
III
as áreas dos conjuntos habitacionais, aprovados e executados,
nos termos da legislação pertinente;
IV
as áreas com uso ou edificação aprovada de acordo com a
legislação urbanística de parcelamento, uso e ocupação do solo e
de edificações.
Parágrafo único As áreas referidas nos incisos I, II e III deste artigo terão
seu perímetro delimitado por ato do Executivo ...
As mesmas regras são repetidas para o caso dos terrenos não construídos (sujeitos
ao imposto territorial).
Ou seja, o Executivo pode traçar quaisquer perímetros urbanos desde que
englobem áreas de loteamentos aprovados ou regularizados, mas não basta
aprovar um loteamento para reconhecê-lo como área urbana: é necessário também
alterar o(s) perímetro(s) urbano(s). Ao mesmo tempo um loteamento irregular fora
do perímetro urbano, ou um conjunto habitacional executado pelo governo
estadual sem aprovação da Prefeitura (e os há!) podem não entrar no sistema
cadastral para pagamento de impostos municipais.
As tentativas de se contornar as dificuldades mediante a definição por uso do
terreno só aumentam a confusão pois, via de regra, vão no sentido inverso ao da
tendência de urbanização:
Lei Federal 5.868/72
Art.6° Para fim de incidência do Imposto sobre a Propriedade Territorial
Rural ... considera-se imóvel rural aquele que se destinar à exploração
agrícola,
pecuária,
extrativa
vegetal
ou
agro-industrial
e
que,
independentemente de sua localização, tiver área superior a um hectare.
§ único Os imóveis que não se enquadrem no disposto neste artigo,
independentemente de sua localização, estão sujeitos ao Imposto sobre a
propriedade Predial e Territorial Urbana.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
250
Lei Municipal 10.515/88
Art.1° São isentos do imposto (predial):
Os imóveis com área de terreno superior a 1 (um) hectare que,
embora localizados na zona urbana do Município, inclusive áreas
urbanizáveis ou de expansão urbana, forem utilizados efetiva e
comprovadamente para exploração agrícola, pecuária, extrativa
vegetal ou agroindustrial, vistoriados por órgão competente da
Administração, que informará à Secretaria das Finanças a
atividade rural nele explorada.
A mesma lei municipal concede isenção, nas mesmas condições para o imposto
territorial urbano. Isto significa que terrenos com algum uso considerado agrícola,
independente da localização, deveriam ser cadastrados pelo INCRA e pagar
Imposto Territorial Rural. Inversamente, terrenos de uso não agrícola, devem
pagar impostos urbanos. As duas determinações para serem efetivas, requereriam
um perfeito entrosamento entre os cadastros municipais e o do INCRA.
Por um lado há uma declarada intenção de controle por parte da União ao manter
o cadastro das propriedades rurais e o lançamento do ITR, apesar de não ficar com
o produto da arrecadação. Por outro lado não há acesso municipal a esse cadastro
(cruzamento de dados, por exemplo) e, na prática, parece não haver controle
público sobre a propriedade rural e sobre a tributação correspondente.
Recentemente o Secretário de Finanças do município de São Paulo assim se
manifestou a respeito do ITR:
“Nas discussões sobre a reforma do Sistema Tributário Nacional em todo o
país impera completo e conivente silêncio sobre um dos seus principais
componentes: o Imposto Territorial Rural (ITR). Escândalo notório na
questão tributária, a arrecadação ridícula desse imposto reflete a influência
lobista dos grandes proprietários rurais sobre os Poderes Executivos,
Legislativo e Judiciário.
Tributo equivalente ao IPTU para os imóveis rurais, o ITR recolhido em todo
o território nacional em 1990 atingiu a insignificante cifra de US$14,6
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
251
milhões, algo próximo à arrecadação de um dia da Prefeitura do Município de
São Paulo e a 6% do IPTU no mesmo exercício.” 12
Essa separação de competências sobre o mesmo território do município cria uma
série de problemas além dos relativos à simples distribuição dos impostos.
Convém lembrar que a Prefeitura aprova loteamentos urbanos. Aqueles para
ocupação rural devem ser aprovados pelo INCRA e a administração municipal não
tem controle sobre eles. O zoneamento municipal da área rural só tem aplicação
enquanto restrições para usos urbanos.
Em São Paulo, a partir da Lei 9.300/81, o zoneamento abrange todo o território do
município, incluindo a zona rural. Isto resolveu o problema legal das restrições
urbanísticas que passaram a ser definidas para todo o município mas não resolveu
a questão das competências de tributação fundiária para o que ainda é necessário
delimitar perímetros urbanos.
Cria-se assim uma área de confusão de competências com a simples separação
entre controle de uso e ocupação do solo e tributação fundiária, todo o processo
girando em torno de qual imposto deve ser pago: se IPTU (Imposto Predial e
Territorial Urbano) ou ITR (Imposto Territorial Rural).
10.4 O Estatuto da Terra e o cadastro nacional
Apesar do Imposto Territorial Rural já estar previsto desde a Constituição de
1891 as condições efetivas para seu lançamento, isto é a organização de um
cadastro de propriedades, só foi institucionalizado em 1964 como parte da
“reforma agrária”.
12
Amir Antônio Khair: Escândalo nacional, artigo publicado no jornal O Estado de São
Paulo em 5.10.91.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
252
Todo o período entre o Estado Novo e o golpe militar de 1964 foi marcado por
acirradas discussões e tímidas tentativas em torno da reforma agrária.
Praticamente todos os grupos sociais clamavam por ela como o remédio para pôr
fim ao êxodo rural que aumentava as populações das cidades num ritmo que as
Prefeituras não acompanhavam em termos de provimento da infraestrutura e das
condições sanitárias. Já a maneira de implantar e o sentido da reforma agregavam
interesses e opiniões divergentes, que iam desde tentativas de lutas armadas pela
posse de terras agricultáveis até a promulgação de leis e decretos para formalizar
“soluções” sem as correspondentes medidas operacionais. Entre essas “soluções”
inclui-se o Estatuto da Terra (Lei 4.504/64) que, formalmente, incorporou todas as
reivindicações relativas a uma reforma agrária, diluindo assim as discussões
sobre o assunto e a necessidade de ações mais efetivas.
A
questão
agrária
e
suas
relações
com
o
processo
de
desenvolvimento/industrialização do país estão necessariamente fora dos
objetivos deste trabalho. No entanto alguns aspectos devem ser assinalados,
mesmo que esquematicamente e correndo o risco de simplificar, para além do
compreensível, uma histórica complexa.
Ignácio Rangel 13 traz muitas contribuições para essa história e o que também
exige esclarecer alguns pontos de entendimento. O autor atribui a origem da
valorização da terra e as conseqüentes mudanças na estrutura de produção no
campo ocorridas na década de ‘40 a ‘60 ao que ele chama de “inclosure” [sic] isto
é, “a conversão do latifúndio agrícola em latifúndio pecuarista” 14 . Certamente
houve essa conversão, em larga escala, mas nem foi um fenômeno isolado,
autônomo, nem seria suficiente para explicar as alterações ocorridas na
distribuição da população e na estrutura de produção. A valorização da terra
aconteceu junto com a rápida industrialização e com a expansão de investimentos
nos ramos de energia, transporte, saneamento, fertilizantes, mecanização etc.;
junto com as dificuldades institucionais na manutenção dos regimes de parceria,
13
14
Especialmente em A questão agrária brasileira (Rangel, 1962).
O uso do termo “enclosure” não é apropriado no caso: a conversão do latifúndio agrícola
em pecuarista no Nordeste brasileiro no século XX tem pouco a ver com o fechamento dos campos
comunais na Inglaterra nos séculos XIV a XVIII.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
253
com a incorporação paulatina da população no mercado de trabalho (e de
consumo), com a extensão desse mesmo mercado a todo o território nacional.
Segundo Rangel, a industrialização substituidora de importações dispensou no
Brasil a reforma agrária prévia pela disponibilidade de terras livres, passíveis de
serem incorporadas à economia justamente pelo desenvolvimento industrial:
transporte, saneamento, energia, adubos etc.
As tensões sociais manifestadas no início da década de ’60, especialmente
centradas sobre alterações da estrutura fundiária e das relações de produção no
campo como caminho para uma reformulação da ordem social brasileira, levaram
o governo militar que assumiu em abril de 1964 a promover uma reforma agrária,
na forma de uma legislação que facilitasse a desapropriação de terras
improdutivas, a implantação de programas de colonização e de regularização
fundiária e a captação de recursos para isto através de um sofisticado sistema de
Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR). A Lei 4.504 de 30.11.64
“dispõe sobre o Estatuto da Terra” e, pela primeira vez coloca a questão fundiária
como assunto central.
O Estatuto define os tipos de propriedades rurais, dá as condições de acesso à
propriedade, oficializa um programa de reforma agrária e de colonização, cria o
IBRA – Instituto Brasileiro de Reforma Agrária, o INDA – Instituto Nacional de
Desenvolvimento Agrário e o Fundo Nacional de Reforma Agrária, institui o
cadastro das propriedades rurais, regulamenta a tributação, promove programas de
eletrificação e mecanização e cria linhas de crédito para financiamento da
produção e da comercialização.
O Estatuto da Terra foi regulamentado através de três decretos, todos do dia 31 de
março de 1965:
D 55.889 que regulamenta a IBRA
D 55.890 que regulamenta o INDA
D 55.891 que regulamenta a execução da reforma agrária, incluindo a
elaboração e manutenção do cadastro de imóveis rurais.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
254
O programa que deu origem à promulgação do Estatuto era ambicioso e não teve
o respaldo político, operacional e financeiro para ser efetivamente implantado.
Houve alguns avanços em termos de cadastramento e tributação, mantendo-se no
entanto uma prudente distância de qualquer organização de um sistema cadastral
confiável.
Uma análise crítica da Lei 4.504 foi apresentada em julho de 1965 pela Codepar –
Companhia de Desenvolvimento Econômico do Paraná 15 . Uma frase desse
trabalho resume as circunstâncias em que a lei e seus regulamentos foram
elaborados:
“o Estatuto da Terra parece apresentar todas as características de um
compromisso entre o impulso do Executivo Federal e a notória relutância do
Legislativo em conceder-lhe os instrumentos adequados para os fins da
Reforma Agrária.”
Para o melhor entendimento do comentário acima é necessário mudar
ligeiramente o foco, passando dos personagens para os interesses em jogo: a
eventual divergência entre Executivo e Legislativo é circunstancial; o que é
estável e permanente é a oposição entre a necessidade de alterações na ordem
social para permitir o pleno desenvolvimento das forças produtivas e os entraves
colocados a esse desenvolvimento. Visto sob este ângulo o Estatuto da Terra é o
perfeito exemplo de aparente avanço ou reforma mantendo e consolidando o
status quo.
Sem entrar em todos os meandros da legislação, bastante complexa, relativa ao
Estatuto da Terra cabe assinalar dois de seus aspectos diretamente ligados ao
assunto deste trabalho: a estrutura administrativa criada e a complexidade do
cadastro de terras rurais para lançamento de impostos.
Estrutura administrativa
A estrutura administrativa criada simplesmente ignorou qualquer organização
existente e lhe sobrepôs dois Institutos: o IBRA (Instituto Brasileiro de Reforma
15
Estudo sobre o Estatuto da Terra. Elaborado por Ricardo Werneck de Aguiar.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
255
Agrária) e o INDA (Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário). Mais uma
vez uma “reforma” começou por sobrepor órgãos e atribuições como se cada
projetos nascente autônomo e pudesse ser implantado a partir do nada, numa
sociedade sem organização, sem estrutura de poder e sem instituições
permanentes a serem consideradas.
A criação do IBRA, diretamente ligado à Presidência da República, como órgão de
coordenação interministerial das ações relativas à reestruturação e à tributação
fundiária teria sido um grande avanço no sentido dessa reestruturação. No entanto
a mesma lei que o criou atribui-lhe funções de administração e execução direta,
duplicando serviços já existentes e inviabilizando qualquer ação efetiva pela
complexidade e volume dos serviços a serem montados por um órgão novo, sem
suficiente pessoal qualificado, sem experiência e sem a documentação histórica.
O IBRA tinha “por objetivo primordial promover, coordenar e controlas as
atividades que visam corrigir a estrutura agrária do país, e a executar os planos de
Reforma Agrária.”
Suas finalidades estão enumeradas no Decreto 55.889 de 31 de março de 1965,
abrangendo 33 ítens (dos quais apenas alguns foram relacionados a seguir)
distribuídos em cinco campos de atuação:
zoneamento, cadastro e tributação
a) promover a realização de estudos e elaborar o zoneamento do país em
regiões homogêneas do ponto de vista sócio-econômico e das
características da estrutura agrária;
b) organizar e manter atualizado o cadastro dos imóveis rurais de todo o
país;
d) elaborar os estudos para fixação dos índices e tabelas relativos à
tributação, e das normas para a respectiva arrecadação;
distribuição de terras
a) promover o acesso á propriedade rural mediante a distribuição e
redistribuição de terras;
b) pronunciar-se sobre qualquer alienação de terras públicas;
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
256
f) promover a discriminação das áreas de domínio federal ocupadas por
posseiros, a fim de regularizar a situação destes, se for o caso, ou
de tomar as medidas necessárias para reintegrar a União na sua
posse;
colonização
a) efetuar estudos e promover a colonização, fixando a metodologia a ser
aplicada nas ares prioritárias e fora delas, aqui sob a supervisão
do INDA;
d) exercer as atividades relacionadas com a educação e capacitação de
pessoal ...;
promoção agrária
a) exercer as atividades de extensão rural e das várias formas de assistência
social, técnica e agronômica nos empreendimentos de exploração
agropecuária;
b) promover a eletrificação rural e outras obras de melhoria da infraestrutura;
assistência financeira
a) promover a expansão do crédito rural tecnificado, efetuando
empréstimos a agricultores e a parceleiros, ...;
b) promover a colocação dos títulos da Dívida Agrária Nacional, bem
como a adequada aplicação dos recursos obtidos para garantia do
respectivo resgate;
Mesmo considerando que o Decreto previa com certa frequência convênios e
colaboração com outros órgãos é impressionante o conjunto das atribuições sobre
postas às de outras entidades, desde o Ministério da Fazenda, com relação à
arrecadação de imposto, até o Banco do Brasil ou o BNDE com relação ao crédito
rural. Sem contar que diversos critérios e normas a serem elaborados deveriam
obedecer a Instruções Especiais, a serem baixadas pelo Ministro do Planejamento
ou pelo Ministro da Fazenda.
A participação do Ministério da Agricultura (é bom notar que está-se falando de
reforma agrária) se daria através de outro instituto, o INDA (Instituto Nacional de
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
257
Desenvolvimento Agrário) o qual tinha “como objetivos primordial promover o
desenvolvimento rural, essencialmente através das atividades de colonização,
extensão rural e cooperativismo” e cujas atribuições remontavam em grande parte
com as do IBRA.
Cadastro rural
A estrutura prevista para o cadastro de imóveis rurais resultou dos dois decretos
de regulamentação, do cadastro e do IBRA.
Mais uma vez trata-se de um cadastro cartorial, sem nenhuma amarração
cartográfica, montado a partir das declarações dos proprietários. Os textos legais
deixam a impressão de que a execução de um cadastro imobiliário é algo muito
semelhante à organização de um “cadastro” de contas bancárias ou de clientes de
uma companhia de seguros. O caráter dúbio das finalidades reais do cadastro rural
transparece claramente em alguns pontos, como no D.55.891/65:
Art.47
Parágrafo único Os levantamentos cadastrais serão precedidos de amplo
serviço de divulgação das normas de sua execução, para garantia da
adequada informação dos proprietários que deverão preencher os
questionários, a fim de que possam eles conhecer as vantagens e as
obrigações que, para si, decorram das declarações fornecidas.
As funções que deveriam ser preenchidas por esse cadastro foram enumeradas
pelo Decreto 56.792/65 16 que estabeleceu critérios para o lançamento e
arrecadação do Imposto Territorial Rural (ITR), calculado sobre o valor da terra
nua alterado por quatro coeficientes:
De dimensão – considera “a relação entre a área total agricultável do conjunto
de imóveis rurais de um mesmo proprietário e a média ponderada dos módulos
de todos esses imóveis.”
16
O grande avanço desse Decreto foi relacionar o ITR com o Imposto de Renda no caso de
rendas provenientes de exploração agrícola. O imposto de Renda passou a poder ser lançado “ex
officio” com base em dados do cadastro do IBRA.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
258
De localização – em função da zona de situação do imóvel e das condições de
acesso.
De condições sociais – considera “o grau de alheamento ou de dependência e
participação do proprietário nas responsabilidades da administração e nos
frutos da exploração do imóvel”. É formado por três fatores que medem a
participação do proprietário no trabalho de exploração agrícola, as condições
de moradia e as condições de educação na propriedade.
De rendimento economico – em função das “condições técnico-economicas de
exploração do imóvel rural”. É obtido por fatores que, além de considerar a
existência ou não de escrituração, relacionam a área total explorada a
explorável, a renda bruta efetiva e a potencial, o nível de investimento em
benfeitorias e o valor total do imóvel, o rendimento efetivo com o rendimento
padrão para certos produtos.
Segue um impressionante elenco de “dados considerados para a fixação do
tributo”, que inclui descrições das construções existentes, discriminação das áreas
plantadas e número de residentes entre 7 e 14 anos. Só não inclui uma planta
confiável de localização do imóvel, substituída por uma “descrição da linha de
divisas e nome dos confrontantes”. Esses dados seriam utilizados para definir
índices, de acordo com tabelas elaboradas pelo IBRA.
Art.47 Para incentivar a política de desenvolvimento rural, o Poder Público se
utilizará da tributação progressiva da terra, do Imposto de Renda, da
colonização pública e particular, da assistência e proteção à economia rural e
ao cooperativismo e, finalmente, da regulamentação do uso e posse
temporários da terra, objetivando:
I
desestimular os que exercem o direito de propriedade sem
observância da função social e econômica da terra;
II
estimular a racionalização da atividade agropecuária dentro dos
princípios de conservação dos recursos naturais renováveis;
III
proporcionar recursos à União, aos Estados e Municípios para
financiar os projetos de Reforma Agrária;
IV
aperfeiçoar os sistemas de contrôle da arrecadação dos impostos.
Art.48 Observa-se quanto ao Imposto Territorial Rural, os seguintes princípios:
Luisa Battaglia
I
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
259
a União poderá atribuir, por convênio, aos Estados e Municípios, o
lançamento, tendo por base os levantamentos cadastrais executados
e periodicamente atualizados;
II
a União também poderá atribuir, por convênio, ao Município, a
arrecadação, ficando a eles garantida a utilização da importância
arrecadada;
III
quando a arrecadação for atribuída, por convênio, ao Município, à
União caberá o controle da cobrança;
Art.49 As normas gerais para a fixação do impôsto territorial obedecerão a
critérios de progressividade e regressividade, levando-se em conta os seguintes
fatores:
I
os valôres da terra e das benfeitorias do imóvel;
II
a área e dimensões do imóveis e das glebas de diferentes usos;
III
a situação do imóvel ...
IV
as condições técnicas e econômicas de exploração agropecuáriaindustrial;
V
a natureza da posse e as condições de contratos de arrendatários,
parceiros e assalariados;
VI
a classificação das terras e suas firmas (sic) de uso e rentabilidade;
VII
a área total agricultável do conjunto de imóveis rurais de um
mesmo proprietário no país.
Seguem-se considerações sobre a responsabilidade do proprietário pelas
declarações, a alíquota e os critérios de progressividade das alíquotas em função
da área total por proprietário. O mesmo decreto fixou as taxas de serviços
cadastrais:
Art.58 O acréscimo de 1/25 (vinte e cinco avos) do maior salário mínimo
vigente no país, a ser cobrado para cada 50 ha ou fração que exceda de 20 ha
para fixação da taxa de serviços cadastrais no fornecimento do Certificado, ...,
será limitado às áreas dos imóveis rurais até 1000 ha. Acima dessa área os
acréscimos serão efetuados à razão de vinte e cinco avos para cada milhar ou
fração que exceder os primeiros 1000 ha.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
260
Também foram definidos critérios e prioridades para a redistribuição de terras
agrícolas, havendo uma inteira seção sobre o “zoneamento do país em regiões
homogêneas do ponto de vista sócio-econômico e das características da estrutura
agrária” (Art.43)
Um mês depois da publicação da Lei 5.172/66 (STN), o Decreto-Lei n° 57
(18/11/66) “altera dispositivos sôbre lançamentos e cobrança do Impôsto sôbre a
Propriedade Territorial Rural, institui normas sôbre arrecadação da Dívida Ativa
correspondente, e dá outras providências”. Esse DL, além de instituir multas pelo
atrazo no pagamento do ITR, consolidou as disposições da Lei 5.176/66 e da Lei
4.504/64. Em resumo:
Responsabilizou o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA) pelo
Cadastro de Propriedade Rurais.
Definiu as áreas a serem ou não consideradas aproveitáveis para efeito
de impôsto.
Proibiu o desmembramento de que resultassem áreas menores que os
módulos definidos pelo IBRA.
Proibiu os Cartórios de Registro de Imóveis de registrar esses
desmembramentos.
Previu a cobrança de IPTU sobre os “sítios de recreio”, mesmo em zona
rural, e a cobrança de ITR sobre imóveis de exploração agrícola, em
zona urbana.
Em 1970 o DL 1.110 extinguiu o IBRA, o INDA e o GERA, criando no lugar o
INCRA (Instituo Nacional de Colonização e Reforma Agrária), ligado ao
Ministério da Agricultura.
Dois anos depois a Lei 5.868/72 criou o Sistema Nacional de Cadastro Rural,
compreendendo os cadastros de:
I
imóveis rurais
II
proprietários e detentores de imóveis rurais
III
arrendatários e parceiros rurais
Luisa Battaglia
IV
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
261
terras públicas
A validade jurídica desses cadastros é declarada pela própria lei:
Art.3°
Parágrafo único: Os documentos expedidos pelo INCRA, para fins cadastrais,
não fazem prova de propriedade ou de direitos a ela relativos.
Em 1987 o INCRA foi extinto pelo DL 2.363 que criou o Instituto Jurídico das
Terras Rurais, junto ao Ministério da Reforma Agrária. O texto desse decreto lei,
no entanto, foi rejeitado dois anos depois pelo Decreto Legislativo 2/89.
10.5 O Registro Torrens
O Torrens Title System foi introduzido em 1858 na Austrália por proposta
(aprovada em lei) de Sir Robert Richard Torrens, então deputado por Adelaide, e
regulado em 1861 pelo Real Property Act. Tratava-se de um sistema de registro de
propriedade fundiária elo qual o governo assumia a garantia da propriedade
registrada, simplificando os processos de transferência e dispensando o seguro dos
títulos. Sua implantação pôs ordem nos títulos de domínio e facilitou as transações
imobiliárias pois a matrícula no registro fundiário passou a ser prova bastante
segura do direito de propriedade e base para todas as transações posteriores.
O sistema foi rapidamente adotado em toda a Austrália e em colônias inglesas e
francesas, notadamente no Canadá.
O Registro Torrens foi incorporado ao direito brasileiro logo depois da
proclamação da República por esforço de Rui Barbosa, Ministro de Estado do
Governo Provisório, que via nele uma maneira de “criar um título indestrutível de
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
262
propriedade imóvel, tornada absoluta e indisputável.” 17 Na sua exposição de
motivos Rui Barbosa enumera as vantagens desse registro
“que permitiria:
a)
a instituição de um processo expurgativo, destinado a delimitar a
propriedade e a fixar, irrevogavelmente, os direitos dos proprietários,
autenticando-os num título público;
b)
a criação de um sistema de publicidade hipotecária, adequado a
patentear exatamente a condição jurídica do solo, com os direitos reais e
gravames que o onerarem;
c)
a mobilização da propriedade.” 18
Esse sistema de registro imobiliário foi estabelecido pelo Decreto número 451 B,
de 31 de maio de 1890, regulamentado pelo Decreto 955-A de 5 de novembro de
1890.
“Por ele, com o intuito de legalizar e sanear tôda posse não fundada em
perfeito título de propriedade, estabeleceu-se a matrícula do imóvel ocupado,
mediante a satisfação de certos requisitos, indicados pela própria lei.
A efetivação da matrícula ou do Registro Torrens atribui ao requerenteocupante do prédio o domínio sobre êle, de modo a não permitir qualquer
contrato ou ato, mesmo de data anterior, desde que não seja também
registrado na forma da lei.
O título efetivo desta matrícula equivale ao título legítimo de propriedade
sôbre o imóvel registrado pelo sistema Torrens.
Prevalecem contra êle, entretanto, na forma do que estabelece o art.41 do
citado decreto, os encargos, direitos e servidões, constantes das notas
lançadas no livro de matrícula, quando ocorreu o processo de registro, e que
se reputaram legítimas.” (Silva, De P., 1963, pg.1329).
Pelo Decreto 451-B a inscrição no sistema Torrens foi permitida para qualquer
imóvel e obrigatória para as terras adquiridas do Governo e para os terrenos e
construções no perímetro urbano da capital federal. O serviço estava a cargo dos
17
Assis (1974).
18
Diniz (1992, pg.).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
263
oficiais do “registro geral das hipotecas”. O pedido de inscrição de imóvel rural
devia ser instruído por levantamento planimétrico em escala entre 1:500 e
1:10.000, dependendo do tamanho da propriedade, acompanhado das cadernetas
de campo, de memorial descritivo das culturas e benfeitorias e de avaliação.
A lei dispensou a escritura pública nos casos de transferência de uma imóvel já
registrado, bastando preencher um formulário impresso ou redigir um termo
equivalente.
“A verdade, porém, é que esse processo de transferência nunca foi usado
entre nós. O excesso de simplicidade gerou a desconfiança. Todos os
interessados preferem a escritura pública. É que a lei Torrens, nesse
particular, está em briga com o Código Civil, e por isso a prudência
aconselha que as alienações e instituições de ônus sejam feitas por escritura
pública. Apesar de a mobilização do solo constituir, no dizer de Bichara
Tabbah, a idéia mais original do sistema; apesar de se encontrar na
equiparação dos imóveis às coisas móveis quanto ao modo de transferência a
base de todo o mecanismo da lei Torrens, no dizer de Rui, a verdade é que
essa maneira de transferência da propriedade nunca terá aplicação entre nós.”
(Borges, ‘960, pg.33)
A inscrição pode ser anulada por processo judicial em casos comprovados de
fraude mas, enquanto o título estiver inscrito ele é garantia absoluta da
propriedade. Teve grande aplicação nos primeiros tempos da República,
principalmente nos estados do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais. Mais tarde
Goiás, Mato Grosso e Pará também usaram o sistema Torrens para distinguir os
títulos “seguros” dos direitos adquiridos sobre posses, heranças e promessas de
toda sorte.
O Código Civil (1916) não menciona o registro Torrens e muitos juristas
entenderam que não era mais admitido. No entanto o Código de Processo Civil
(1939) o manteve, limitado porém aos imóveis rurais.
A Lei 6.015/73 que regulamenta os registros públicos admite a inscrição
facultativa no sistema Torrens para os imóveis rurais, mantendo assim uma área
de confusão pela sobreposição de serviços com a mesma finalidade. No entanto o
registro Torrens é cada vez menos usado e muitos proprietários de imóveis já
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
264
inscritos pediram sua exclusão do sistema. Na medida em que as propriedades
passam a ser melhor demarcadas, a matrícula no registro comum é considerada
suficiente para garantir os direitos.
Luisa Battaglia
IV
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
À guisa de conclusão
265
Luisa Battaglia
IV
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
266
À guisa de conclusão
Uma das maiores dificuldades no desenvolvimento deste trabalho foi a constante
necessidade de delimitar o campo de coleta e apresentação do material, de modo a
manter o equilíbrio entre o tema específico escolhido - - os cadastros e registros
fundiários no Brasil- - e a complexidade das áreas que com ele se relacionam
diretamente - -a propriedade de porções do território nacional e a forma como o
Estado tributa e organiza o uso dessas propriedades. Essas áreas, por sua vez, são
básicas para o entendimento do processo de formação da sociedade brasileira e de
sua inserção no conjunto dos Estados Nacionais.
Por outro lado, a vinculação entre fatos concretos e uma interpretação abrangente
dos processos sociais dos quais esses fatos são parte é a única maneira de entender
nossas ações quotidianas e de optar, o tempo todo, com alguma consciência
quanto às consequências ou ao significado da opção. Em outras palavras, a
preocupação subjacente a este trabalho é a da possibilidade de ação.
É neste sentido, de volta ao concreto na forma de ação, que esta parte completa as
anteriores com algumas propostas tentativas de discussão sobre as alterações que
deverão ocorrer na organização do Estado brasileiro com relação ao planejamento
do território, na perspectiva plausível de uma saída da crise da sociedade brasileira
para um estágio de desenvolvimento baseado em significativo aumento da
produtividade do trabalho e no correspondente aumento também do nível de
subsistência de sua população. Tal perspectiva implica na consolidação e defesa
de um espaço nacional, no sentido de um mercado unificado e capaz de sustentar
um processo autônomo de acumulação. Pressupõe também um Estado forte, o que
não significa economia estatizada, capaz de intervir na organização da produção
mediante planejamento, adequação das instituições e provimento da infra
estrutura.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
267
Trata-se pois de retornar ao assunto do terceiro capítulo, O Estado no Brasil, para,
a partir do entendimento das características peculiares do processo de acumulação
brasileiro e, em decorrência, da maneira como se efetua a construção do espaço,
repensar as possíveis ações do Estado relativas a essa construção, correpsondentes
à transformação daquele processo e ao abandono das práticas que visam a
manutenção da atual sociedade de elite.
Esta última parte do trabalho é composta por dois capítulo:
O Capítulo 11: O espaço urbano brasileiro, constitui um resumo da atual situação
de descontrole (institucionalizado) sobre o espaço por parte do Estado, situação
essa que está vinculada às características do processo de acumulação no Brasil e
que, portanto, deverá se alterar na perspectiva de alterações desse processo.
No Capítulo 12: Na perspectiva de mudanças nas condições de produção
propõem-se algumas diretrizes para ações relativas aos cadastros e registros
fundiários, no intuito de contribuir para uma discussão sobre alternativas para a
atuação do Estado brasileiro com relação ao planejamento territorial, supondo que
sejam removidos os entraves ao desenvolvimento das forças produtivas,
permitindo a passagem para um estágio de acumulação predominantemente
intensiva.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
CAPÍTULO 11:
O ESPAÇO URBANO BRASILEIRO
268
Luisa Battaglia
11
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
269
O ESPAÇO URBANO BRASILEIRO
11.1 A ocupação do território
A distribuição da propriedade do território brasileiro, ao longo dos quase 500 anos
de história, é o resultado de três “ondas” sucessivas de ocupação das terras
inicialmente consideradas como patrimônio da Ordem de Cristo (e administradas
pelo rei como seu Grão Mestre) e posteriormente denominadas públicas ou
devolutas.
O primeiro período é o do desbravamento e da conquista sobre os indígenas. Essa
conquista se deu pela ocupação agrícola baseada na monocultura de exportação e
no trabalho escravo e propiciou a formação dos latifúndios coloniais. Estando o
Brasil na situação jurídica de patrimônio da Ordem de Cristo, as terras eram
outorgadas pelo rei (ou por sua delegação) através das cartas de sesmaria que
também estabeleciam as condições e direitos e se constituíam em documentos
suficientes para a comprovação de tais direitos.
A população mais pobre e menos influente, trabalhadores livres sem condições de
obter sesmarias, foram ocupando as terras mais distantes ou intersticiais com
roças de subsistência, sem nenhuma alternativa de reconhecimento institucional
de domínio e portanto sempre sujeitos a expulsão, ao arbítrio dos senhores das
terras. Na sociedade estruturada em torno dos senhores (na casa grande) e dos
escravos (na senzala) a população livre dependia da vontade pessoal dos primeiros
para sobreviver.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
270
Já nos núcleos urbanos, formados em terras concedidas a entidades religiosas ou
ao Conselho da vila ou cidade, o assentamento da população se fazia mediante
pagamento de foro ou prestação de serviços, o que dava certos direitos e garantia
de estabilidade. Não havendo “propriedade” não havia a noção de assentamentos
“irregulares”.
O fim da dependência colonial e o esgotamento do regime escravagista foram
marcados por um período de ocupação por simples posse, seguido pela
consolidação e reconhecimento tanto dessas posses quanto das sesmarias (Lei das
Terras Devolutas). O reconhecimento do domínio sobre a terra passou a ser feito
através dos títulos de propriedade, facilitando o processo de compra/venda e o
desenvolvimento do mercado de hipotecas. O processo de registro dos títulos,
inicialmente anotados pelos vigários, evoluiu para o sistema dos Cartórios de
Registro de Imóveis.
A Lei das Terras Devolutas, ao mesmo tempo em que permitiu a titulação das
posses (aparentemente resolvendo o problema de assentamento da população
livres), também impôs para essa titulação um preço e procedimentos burocráticos
que continuaram mantendo a terra fora do alcance da maioria da população. Com
a substituição dos escravos por trabalhadores livres o assentamento desses passou
a ser vinculado a relações de trabalho mal definidas, em que o alojamento ou a
autorização para plantar uma hora eram parte e justificativa do baixo salário.
Muitas indústrias em São Paulo usaram do mesmo esquema, construindo e
mantendo “vilas operárias” como meio de garantir mão de obra barata.
A ocupação de grandes extensões de território se fez com os programas de
colonização associados ao avanço das frentes pioneiras do café e do gado,
propiciando a formação de grandes fortunas baseadas na obtenção e comercio de
terras devolutas 1 .
A terceira “onda” corresponde à extensão da propriedade sobre todo o território,
simultaneamente com a expansão e adensamento das redes rodoviárias e de
telecomunicações. As terras públicas ou devolutas foram sendo parceladas (em
programas de reassentamento e de colonização) ou cedidas em grandes glebas,
1
Cf. França (1960), Martins (1979), Monbeig (1951 e 1952), Silva,S. (1976).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
271
seja por venda, seja na forma de concessão pra exploração. As propriedades assim
criadas se soprepuseram à ocupação por pequenas posses (roças de subsistência e
abastecimento local), na grande maioria sem qualquer título. Na medida em que
foram se esgotando as terras devolutas e a simples ocupação foi deixando de ser
viável, foram se acirrando os inúmeros conflitos, seja entre posseiros e detentores
de títulos, seja entre detentores de títulos sobrepostos, seja ainda por processos de
“grilagem”. A precariedade das descrições das terras reforça esses conflitos e está
na origem de boa parte deles.
Como alternativa de assentamento nas aglomerações urbanas os contratos de
enfiteuse e os alojamentos fornecidos pelas indústrias foram sendo substituidos, a
partir do fim do século passado, pelas construções precárias em lotes na periferia.
As medidas formais para disciplinar esse tipo de assentamento tiveram pouco
efeito e os lotes continuaram sendo produzidos e ocupados em desacordo com a
legislação urbanística na quase totalidade dos casos. Todas as grandes cidades do
país
cresceram
pela
multiplicação
dos
loteamentos
“irregulares”
ou
“clandestinos”. A alternativa “regular”, ensaiada pelo Plano Nacional de
Habitação, cobriu uma pequena parte das demandas 2 .
Nos útlimos anos, e principalmente nas grandes cidades, nota-se a tendência a
substituir os loteamentos por empreendimentos que abrangem todas as operações
de implantação de unidades para moradia ou para atividades econômicas. Na
medida em que se esgotam as possibilidades de compra de lote ou de ocupação de
pequenas áreas em glebas mal demarcadas as alternativas de assentamento da
população mais pobre se reduzem ao adensamento em áreas já construídas
(cortiços) ou à ocupação do que sobra de áreas públicas (favelas) 3 .
A constante dessas sucessivas ondas de ocupação é a desqualificação
institucionalizada das formas de assentamento da grande maioria da população.
Sua presença, necessária, sempre foi apenas tolerada. Sem contar os casos que
2
No auge de sua atuação o BNH chegou a financiar cerca de um milhão de residências
entre 1968 e 1973 (cf. Francisconi, 1974, pg.68) ou seja, em torno de 16% do total construído no
período.
3
O que define a favela não é a precariedade da construção mas sim o fato de estar em terra
pública ou de propriedade alheia. A favela é uma invasão, sendo o termo grilagem reservado para
a classe dominante.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
272
atingiam um número restrito de pessoas (aforamento nos núcleos urbanos no
período colonial, por exemplo) não houve formas legítimas de assentamento para
o conjunto da massa de trabalhadores, evidenciando, nas palavras de Roberto
Schwartz,
“o descompromisso da classe dominante brasileira para com seus
dependentes e também para com a própria norma burguesa” (Schwartz, 1991,
pg.70)
Essa situação de ilegalidade estrutural em que foi mantido até agora o
assentamento da população mais pobre cria impasses incômodos para o conjunto
da sociedade, bem conhecidos de todos os técnicos de planejamento,como a
permanência de habitações em áreas de inundação ou o adensamento de áreas sem
condições sanitárias.
Mas a mesma ilegalidade estrutural, ao justificar o desprezo da lei (e aliada à
precariedade da demarcação das propriedades), também permite negócios
fabulosos com a compra/venda de terras. Um exemplo atual (e noticiado) é dado
pela proliferação de loteamentos no Distrito Federal, quase contíguos ao Plano
Piloto, em áreas que já foram desapropriadas pelo Governo. O mapa esquemático
da Figura 11.1, publicado como parte de uma reportagem sobre parcelamentos
irregulares em Brasília, mostra o tipo de negócios propiciados pelas indefinições
legais e pela falta de registros confiáveis das propriedades.
Figura 11.1
DISTRITO FEDERAL, 1995
Localização esquemática de parcelamentos irregulares
Segundo a reportagem
“Na região, há todos os tipos de situação: terras vendidas por um herdeiro
que já havia morrido, condomínio formados em terras públicas e até
empreendimentos fantasmas.” 4
4
Reportagem do Correio Braziliense, de 24 de março de 1995, assinada por Luis Turiba. A
reportagem foi motivada pelas investigações da “CPI da Grilagem” da Câmara Legislativa do D.F.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
273
Acrescente-se a essa situação o fato de que boa parte dos condomínios descritos
se sobrepõem uns aos outros e que muitos dos compradores são funcionários
públicos ou membros do Legislativo ou do Judiciário, para se ter uma idéia da
extensão dos negócios (e dos problemas).
Finalmente cabe observar que os títulos correspondentes às diversas formas de
ocupação, reconhecidas ou apenas toleradas, ao longo de quase cinco séculos
foram os mais variados e sua padronização hoje é um trabalho que só pode ser
feito caso a caso, à medida em que suas transações levam os proprietários (novos
ou velhos) aos Cartórios de Registro.
11.2 Planejamento e informações sobre o território
No Capítulo 2: O Estado foi enfatizada a importância do Estado, numa economia
capitalista, na produção do espaço ou seja, no planejamento e organização
espacial da produção de mercadorias.
“ (E)nquanto a regulação pelo mercado é capaz de exercer um papel bastante
importante na regulação do uso do espaço uma vez que este tenha sido
produzido (pois localizações podem ser consumidas como mercadorias), ela
não ajuda em nada na produção do espaço que transcende o domínios dos
capitais individuais. A intervenção do Estado tem um papel dominante na
produção do espaço - - mesmo quando, como no caso de crescimento
anárquico, ele mais segue do que antecipa e induz as necessidades criadas
pelo crescimento ‘espontâneo’; e mesmo quando o Estado deixa a regulação
do uso do espaço em grande parte para o mercado.” (Deák, 1885, pg.216-17)
Se no estágio inicial do capitalismo a necessidade de localizações diferenciadas, e
portanto de infraestrutura, era baixa, deixando pouco perceptível a intervenção do
Estado, no estágio intensivo a produção capitalista requer concentrações de
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
274
atividades e de infraestrutura, exigindo planejamento e intervenção direta do
Estado, de maneira explícita e em escala significativa.
Sendo o território o suporte físico sobre o qual se organiza a produção e em
função do qual uma sociedade define o seu espaço, as informações sobre o
território são essenciais à própria permanência e organização de uma sociedade
burguesa enquanto Estado-nação. Não apenas é necessário conhecer, como nas
sociedades medievais, os recursos naturais disponíveis (minérios, fertilidade do
solo, hidrologia etc.) como, principalmente, é necessário conhecer a localização
dos fatores de produção. Pode-se esquematizar essas necessidades em três
objetivos abrangentes:
1
A sociedade burguesa deve garantir a propriedade da terra, condição básica
para a manutenção da relação salarial. Essa garantia é instituída através dos
sistemas de títulos e cadastros sistemas esses que, de acordo com a norma
burguesa de igualdade entre as pessoas e entre as coisas, não podem fazer
distinção entre diferentes proprietários ou entre diferentes usos da
propriedade.
2
A tributação sobre a propriedade, além de ser fonte de recursos para o
Estado, é uma forma pela qual a sociedade reconhece a existência da
propriedade e regula a sua utilização para a produção capitalista.
3
A função de planejamento do espaço, inerente ao Estado, exige o
conhecimento do território (cartografia) e da sua distribuição em propriedades
(cadastro). As informações para isso se apresentam na forma de dados
associados a representações gráficas de porções do território isto é, a plantas e
mapas.
A capacidade e as formas de intervenção no espaço por parte do Estado definem
os sistemas de informações a serem mantidos, ao mesmo tempo em que
dependem da qualidade e conteúdo desses mesmos sistemas. Algumas das bases
dos sistemas de informações sobre o espaço no Brasil foram objeto dos capítulos
precedentes, em que se procurou ressaltar aspectos de sua deliberada
precariedade. As propostas de discussão sobre possíveis melhorias dos sistemas
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
275
cartográficos e cadastrais, objeto do capítulo seguinte, partem das condições
atuais de estruturação e articulação desses sistemas.
Cartografia
Na época dos descobrimentos Portugal dispunha de uma avançada cultura
cartográfica. A confecção de mapas era crucial para o programa de navegação e
descobrimentos dos séculos XV e XVI e a Escola de Sagres era o centro de
conhecimentos mais desenvolvido da época. As cartas e os livros de navegação,
os portulanos, eram objetos valiosos, guardados e roubados com igual empenho,
pois continham as informações necessárias seja para chegar nas novas terras, seja
para evitar as áreas de maior perigo. Cada documento, acumulando novos
conhecimentos aos anteriores, permitia novas conquistas. Com a perda do
domínio da navegação Portugal também perdeu o domínio (e a necessidade) das
técnicas de elaboração de mapas, que passaram para as mãos dos holandeses e
franceses.
A história da representação cartográfica do Brasil segue, obviamente, a da sua
ocupação territorial. No início apenas descrições da costa, com detalhes dos
portos, embocaduras de rios e povoações, boa parte dos mapas dos séculos XVI e
XVII desenham essa costa na posição em que ela se apresenta para os
navegadores vindos do leste: com o norte voltado para o lado direito. As primeiras
informações mapeadas além da costa são os rios navegáveis e, à medida em que a
rede hidrográfica foi sendo esboçada, consolidaram-se os conhecimentos sobre a
forma do continente e as posições relativas das diversas regiões de penetração e
povoamento.
A fixação dos limites entre os domínios de Portugal e Espanha passou a merecer a
atenção dos cartógrafos a partir do século XVIII. Motivo de guerras e de vários
tratados na região do Sacramento, esses limites não tinhas base de disputa
concreta nos imensos territórios desabilitados e a linha demarcatória fixada em
Tordesilhas pode ir sendo deformada para oeste, a partir da costa brasileira, pelas
ocupações extremamente rarefeitas dos posseiros, garimpeiros e caçadores.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
276
Alguma preocupação com a integridade do território levou à elaboração de dois
mapas gerais durante o Império:
A Carta Corográfica do Império do Brasil, elaborada em 1846 pelo
Cel.Eng.Conrado Jacob de Niemeyer.
Um mapa composto de 31 cartas, terminado em 1875, feito pela
Comissão Geral da Carta do Império criada em 1864.
Em 1903 foi criada no Rio Grande do Sul a Comissão da Carta Geral do Brasil,
ligada ao Exército, com a incumbência de produzir uma base cartográfica do
território, assinalar as fronteiras e estabelecer uma rede de marcos de apoio
geodésico. Por dificuldades técnicas e insuficiência dos recursos para o
empreendimento 5 o trabalho, iniciado no extremo sul, não passou do paralelo de
Porto Alegre.
A partir da década de ‘20 começaram a ser aplicadas técnicas que possibilitaram
levantamentos muito mais rápidos, precisos e em condições de trabalho menos
penosas. Fotos aéreas, medição eletrônica de distância, radar, imagens de satélite,
sem contar os recursos de cálculo e a melhoria das redes viárias e de transporte,
tudo isto fez com que a elaboração de mapas gerais se tornasse tarefa viável em
prazos relativamente curtos.
Em 1937 foi criado o Conselho Brasileiro de Geografia. No ano seguinte, pelo
Decreto-Lei 218 de 26 de janeiro de 1938, esse Conselho foi reunido ao Instituo
Brasileiro de Estatística 6 para formar o Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE) 7 .
O problema hoje não está mais no conhecimento e localização dos acidentes
geográficos tanto assim que algumas atividades dispõem de mapas detalhados e
precisos, constantemente atualizados, como por exemplo as cartas de navegação
aérea.
5
É bom lembrar que na época qualquer levantamento era totalmente feito no chão, por
equipes viajando a pé, a cavalo e em carroças puxadas por mulas.
6
Criado pelo Decreto 24.609 de 1934.
7
Informações fornecidas pelo IBGE, São Paulo.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
277
O que falta é o conhecimento e atualização das jurisdições e propriedades, um
sistema cartográfico que permitia articular mapas gerais e plantas cadastrais nas
diversas escalas necessárias para as funções e serviços ligados à organização e ao
uso do espaço. 8
Dados cadastrais
Ao longo deste trabalho procurou-se enfatizar a importância de uma base
cartográfica para o mapeamento dos dados referentes a localizações espaciais,
especialmente os relativos à propriedade fundiária. No Brasil o registro jurídico
das propriedades não é mapeado e os cadastros tem representações gráficas em
geral esquemáticas e não vinculadas a uma base cartográfica.
Assim como não há um sistema cartográfico abrangente e unificado para servir de
base às plantas cadastrais, também não há um sistema abrangente e unificado de
cadastro das propriedades nacionais.
Os registros jurídicos são mantidos por cartórios, na grande maioria privados
(Cartórios de Registro de Imóveis), regidos por legislação federal e controlados
pelos Estados. O objetivo desses registros é o da garantia dos direitos privados.
Não é um serviço concebido para fornecer informações para planejamento ou
controle por parte do Estado.
Os cadastros fiscais são mantidos pelas Prefeituras e pela União (atualmente
através do INCRA), separados por conceitos mal definidos de urbano (a cargo das
Prefeituras) e rural (a cargo da União).
A desarticulação entre esses sistemas, associada ao fato de nenhum deles ser
mapeado, propicia a criação de sobreposições e a multiplicação de sistemas para
objetivos diferentes, como o registro das terras públicas separado do das
8
O descaso institucional com a cartografia e os sistemas cadastrais se reflete no descaso
com a precisão dos levantamentos e das locações de obras públicas ou com a fidelidade da
execução. São clássicos os casos de ruas abertas sobre lotes (cujos proprietários exigem
indenizações) e raríssimos os casos em que uma obra pública é executada de acordo com o projeto
ou mesmo que tenha um registro posterior de execução (o chamado “as built”). Aliás, a grande
maioria das obras públicas é licitado sem projeto executivo, sobre um estudo preliminar ou um
anteprojeto.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
278
propriedades, ou um cadastro para aprovação de projetos de construção separados
daquele para lançamento de impostos. Essa multiplicação é mantida pela própria
estrutura institucional que trata cada serviço público como algo independente dos
demais, fechado num mundo supostamente autosuficiente de informações e
rotinas. Esse isolamento impede a avaliação das informações (e portanto dos
resultados de seu uso) por parte de outros setores da administração pública ou da
sociedade.
A legislação ou melhor, a estrutura jurídica que a interpreta, se baseia na defesa
dos interesses individuais como resguardo contra possíveis arbitrariedades por
parte do poder público. No nível operacional o funcionário público, sujeito por
sua vez a arbitrariedades político/administrativas, não toma decisões que possam
implicar em responsabilidade técnica pessoal e, portanto, qualquer decisão requer
uma prévia diluição de responsabilidades através de regras genéricas, discutidas
em termos de modelos abstratos. Isto se aplica à PGV como ao zoneamento, por
exemplo. Para permitir a preservação deste quadro abstrato em que as
responsabilidades se diluem e os interesses não aparecem (ou, na expressão
popular, em que não se dá nome aos bois) as informações são consideradas
sigilosas mesmo quando, como no caso da Listagem Genérica de Valores
(Prefeitura de São Paulo), por exemplo, são publicadas em Diário Oficial 9 .
Apesar de sua posição de vanguarda na organização de um cadastro e de um
sistema de controle fiscal exemplares no país, São Paulo não escapou da
tendência geral de fechar o sistema tributário num mundo a parte, não accessível
para outros usos: tanto o sistema de mapeamento e de identificação dos imóveis
quanto os critérios de atribuição de valor venal dificultam a avaliação de conjunto
e a utilização dos dados para outros fins.
Não seria de se esperar que o processo de apropriação das terras do Brasil tivesse
sido ordenado por normas claras e documentado em registros sistematizados. No
tempo do descobrimento o mundo português não era mais feudal mas o
capitalismo ainda não se havia implantado como modo de produção dominante
numa Europa em transição. Terras de extensão limitada e sem donos capazes de
9
O que garante o sigilo é o fato da Listagem ser ilegível ou melhor, sem aplicação por
procedimentos manuais, devido ao seu tamanho.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
279
contestar sua ocupação era uma situação que fugia de todas as vivências sociais e
para a qual não havia regras estabelecidas. Estas foram sendo moldadas, a partir
das formalidades feudais ainda vigentes, ao sabor dos projetos dominantes do
momento.
Mas após quase cinco séculos em que o capitalismo se impôs como modo de
produção dominante, o Estado brasileiro continua sem os instrumentos básicos
para a sua organização espacial. Decorrem as sobreposições de competências
administrativas, os conflitos pela propriedade, as inúmeras pendências judiciais,
as dificuldades na partilha das heranças, a perda sistemática das áreas públicas, os
loteamentos sem controle etc. O que espanta não é o fato de não ter havido
normas e documentação no período colonial, mas sim o fato de não ter havido
normas e documentação da propriedade do território não parece ser problema para
o Estado brasileiro, em qualquer nível da administração. O que espanta é que
técnicos e administradores constituem discutindo e propondo em torno de uma
legislação que não tem a menor condição de ser aplicada por falta de instrumental
básico, como uma planta cadastral coerente e confiável.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
280
CAPÍTULO 12
NAS
PERSPECTIVAS
PRODUÇÃO
DE
MUDANÇAS
NAS
CONDIÇÕES
DE
Luisa Battaglia
12
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
281
NAS PERSPECTIVAS DE MUDANÇAS NAS CONDIÇÕES DE
PRODUÇÃO
Sapo não pula de boniteza mas porém por precisão (João
Guimarães Rosa)
O trabalho desenvolvido conduziu à explicitação de um conjunto de idéias
arraigadas, normas, leis e procedimentos institucionais relativos à propriedade
fundiária no Brasil, ao seu reconhecimento público e aos impostos incidentes
sobre ela. Esse conjunto se articula formando uma teia densa e resistente a
alterações, teia esta que constitui uma parte importante do sistema de sustentação
de uma elite dominante, visceralmente refratária a mudanças e, portanto, incapaz
de aceitar, quanto menos liderar, um processo de transformação social. A
estrutura de sustentação do poder compõe-se de instrumentos de força e de
ideologia. Os dois esteios de sustentação dessa última, a produção acadêmica e a
grande imprensa, mantém e divulgam a convicção de que a resistência a
alterações se deve a causas impessoais como “tradição cultural”, “estrutura
administrativa”, “falta de recursos” e quejandos, deixando sistematicamente de
lado os interesses pessoais e de grupos que cultivam a “tradição cultural” e a
“escassez dos recursos’.
O processo de acumulação no Brasil se sustentou até agora pela contínua
ampliação do espaço, significando a incorporação a esse espaço de novas terras e
novas populações. O esgotamento dessa possibilidade de ampliação impõe a
necessidade de alterar a forma de ocupação do território em termos de
planejamento, provimento de infraestrutura e distribuição da carga tributária.
É na perspectiva dessa alteração, para que seja possível de fato uma nova
organização social, voltada para a criação e defesa de um espaço brasileiro, que
este trabalho pretende trazer alguma contribuição para a discussão que deverá se
estabelecer em torno dos instrumentos do Estado para o planejamento e
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
282
intervenção sobre o espaço. Essa contribuição se baseia tanto nas posições
teóricas defendidas nesta tese quanto na experiência acumulada em vários anos de
trabalho profissional.
12.1 Elementos de ação governamental
Uma vez que a opção pelo desenvolvimento econômico leva à exigência da
implantação de um processo efetivo de planejamento do espaço por parte do
Estado, esse processo deverá incorporar a organização e manutenção de sistemas
de informações sobre o território na forma, como visto acima, de plantas, mapas e
dados alfa-numéricos. Deverá, portanto, agir sobre os sistemas de registro e os
cadastros de imóveis.
A confecção de uma planta cadastral ou a articulação dos diversos sistemas de
registro são problemas técnicos cuja solução, mais ou menos complexa, é sempre
viável desde que o problema seja real e não apenas um pretexto para encobrir
outras questões ou para inviabilizar qualquer mudança. Isto significa que só pode
haver solução de fato na medida em que houver interesse nessa solução ou, em
outras palavras, na medida em que os problemas forem sendo reconhecidos como
tais. Portanto:
Uma pessoa concreta de ação só pode ser feita por quem percebe o
problema e tem condições e interesse de encaminhar a solução.
A própria discussão do problema é sintoma de que há interesse na
solução e, portanto, já é parte dela.
O que se propõe aqui não é um programa de ação (que não faria sentido
justamente por estar desvinculado de qualquer instância de governo) mas sim
alguns aspectos de eventuais programas, a serem discutidos no sentido de
substituir pseudo-soluções formais por medidas que permitam o efetivo
conhecimento, no caso dos direitos fundiários e dos tributos correspondentes.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
283
Até agora a maioria das ações relativas à implantação de sistemas de dados sobre
a propriedade tem-se caracterizado pela capacidade de confundir e escamotear as
informações, sob as aparências de organizá-las ou de resolver “problemas
administrativos”. A recolocação dos objetivos desses sistemas como sendo os de
igualar o tratamento burguês da propriedade e facilitar as ações de tributação e
planejamento por parte do Estado requer alterações na maneira de decidir sobre
medidas efetivas, pois requer que tais medidas correspondam de fato aos objetivos
declarados e não ao de escamoteá-los.
As observações que seguem são uma tentativa de identificar as características
gerais das ações destinadas a resolver problemas, no sentido de remover entraves
à produção e ao desenvolvimento de um processo de planejamento nacional:
Em primeiro lugar, cabe lembrar que a ideologia do entrave está
arraigada em todos os níveis de decisão: não é apenas nos altos escalões
do governo que existe a tensão entre o “fazer” e o “fazer de conta”. As
pequenas ações em todos os órgãos que manipulam dados sobre
propriedades podem ir num ou noutro sentido.
Por outro lado, alterações estruturais exigem tocar diretamente nos
pontos certos isto é, nos pontos capazes de alterar a estrutura e não
apenas detalhes. Mudanças de detalhe sem importância só provocam o
rearranjo dos interesses oponentes. Esses pontos nevrálgicos não são
sempre os mais visíveis e podem passar por detalhes sem importância.
Qualquer ação deve dispor de recursos suficientes alocados. Isto não
significa necessariamente muito dinheiro; significa sim garantia de
continuidade e de interesse político.
O avanço por etapas, colocando metas claras a curto prazo, facilita o
dimensionamento e a organização do trabalho e diminui a tendência ao
desânimo diante de um volume de tarefas aparentemente inexequível.
Medidas efetivas são frequentemente menos abrangentes, menos
completas, que pseudo-soluções formais pois devem obrigatoriamente
levar em conta a composição das forças presentes em cada momento.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
284
A última dessas observações diz respeito ao volume de trabalho
necessário. Em que pesem as facilidades de armazenamento e de
manipulação de dados permitidas pelas técnicas mais recentes, essas não
substituem trabalhos de coleta, de organização e de divulgação. Como já
foi observado acima, é parte da ideologia do entrave o desprezo pelo
fazer,
sempre
relegado
para
o
estagiário
ou
o
funcionário
desqualificado. 1 Ora, alterar os sistemas de cadastros e registros
montados em muitos anos de rotinas, leis e tradições certamente não é
tarefa para trabalhadores despreparados nem para sofisticados sistemas
eletrônicos comprados prontos.
Um programa de reorganização dos sistemas cadastrais a nível nacional não se faz
sem alterações profundas na organização social pois implica em alterações na
legislação e nas práticas administrativas, alterações essas que não precedem um
programa de trabalho mas já são parte dele. Do mesmo modo, a discussão sobre
um programa de mudanças já é parte e sintoma da mudança em curso.
Na perspectiva de um debate sobre as possíveis alterações é que se esboçam
alguns elementos para um programa, centrado em duas linhas de ação:
1
Apoio à cartografia nacional
2
Articulação entre os diversos sistemas de cadastros e registros.
12.2 Apoio à cartografia nacional
A elaboração de um projeto de sistema cartográfico nacional não só não partiria
do zero como provavelmente já existe, aguardando apoio e condições de
implantação. Não se trata de mais um projeto a ser feito por mais uma entidade a
1
“E aqui chegamos à última das linhas mestras fundamentais da nossa cultura: o desamor
ao trabalho orgânico e tudo quanto lhe esteja ligado: iniciativa, organização, cooperação, espírito
técnico e científico. ... Abolida a escravatura, não foi a toda forma de atividade que passamos a ter
aprêço. Ao contrário, de acôrdo com os nossos velhos preconceitos, um sem-número de formas de
trabalho, em lugar de dignificar o indivíduo, passaram a rebaixá-lo e aviltá-lo.” (Moog, 1964,
pg.231-2).
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
285
ser criada mais sim da articulação dos órgãos já envolvidos com o assunto, da
alocação de recursos e da atribuição clara de responsabilidades pelos diversos
serviços,
principalmente
os
de
atualização.
Entre
os
órgãos federais
necessariamente envolvidos por uma coordenação conjunta de ações e recursos
estão o IBGE e as Forças Armadas que, ambos, detêm o conhecimento e a prática
dos levantamentos cartográficos. Às ações desses órgãos, por sua vez, deverão se
articular as de outras entidades federais, além das estaduais, metropolitanas e
municipais, sempre no sentido de permitir a junção e cruzamento dos dados nas
diversas escalas e de evitar a repetição dos serviços iguais. A atribuição clara de
responsabilidades significa compromisso com a alocação de recursos para tais
serviços e garantias de não dispersão de recursos pela alocação em serviços
sobrepostos.
Nestas articulações entre órgãos produtores e usuários de bases cartográficas
deverão se resolver todos os problemas técnicos e operacionais ligados aos
sistemas de projeção e de coordenadas, às redes de apoio geodésico, à articulação
das folhas, à padronização da nomenclatura e da linguagem cartográfica, à
compatibilização dos processos de informatização, aos limites administrativos e,
acima de tudo, aos serviços de atualização e aos fluxos de dados.
Haveria resultados a curto prazo em três linhas simultâneas:
1
A garantia de existência e de atualização periódica de mapas base (em
alguma escala e com algum nível de qualidade definidos), articulados ao
sistema cartográfico nacional, para todos os municípios brasileiros.
2
O dimensionamento e a implantação dos séricos de manutenção,
adensamento e divulgação das redes de apoio geodésico.
3
A elaboração e publicação das normas de padronização, em conjunto
com os protocolos de trocas de informações entre as diversas entidades
envolvidas.
Essa primeiro passo permitiria dimensionar prioridades para levantamentos
cadastrais abrangentes e estabelecer competências, além de normas e
procedimentos de atualização.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
286
12.3 Articulação entre cadastros e registros
A articulação entre os registros e os sistemas cadastrais involve dois aspectos: a
sua representação gráfica (mapeamento) e a troca permanente de dados.
O mapeamento requer uma base cartográfica, donde parte da importância dos
resultados esboçados no ítem anterior. Mas muito trabalho pode ser feito sobre as
bases disponíveis, mesmo desatualizadas, principalmente no sentido de resolver
questões de jurisdição e de limites administrativos. Divisas de estados e
municípios e circunscrições dos Cartórios de Registro de Imóveis deveriam ser
perfeitamente acertados e amplamente divulgados para uso de todos.
A revisão das atribuições do INCRA e da separação entre imposto territorial
urbano e rural deve levar a conclusões sobre a permanência ou não dos perímetros
urbanos, em caso afirmativo, a sua redefinição periódica.
Partindo do atual funcionamento dos serviços existentes uma primeira articulação
poderia ser estabelecida através da adoção de um código comum de identificação
de imóvel, coincidente ou não (parcialmente) com o número de matrícula no
Cartório ou com o número do cadastro do INCRA ou das Prefeituras. Esse código
teria uma estrutura nacional, mesmo que a coordenação funcionaria como chave
de acesso comum, permitindo o cruzamento dos dados alfanuméricos entre os
principais sistemas de registro fundiário. Assim, mesmo antes de qualquer
mapeamento, seria possível comparar e, portanto, corrigir e completar esses
registros. A adoção de um código comum exige cuidados e alguma padronização
nos sistemas de informatização.
O segundo passo poderia ser no sentido do cruzamento de responsabilidades
como, por exempo, o lançamento de impostos ter como base os registros nos
Cartórios e os registros de propriedade serem feitos sobre mapas das Prefeituras
ou do INCRA.
O programa geral, a longo prazo, deveria tender para:
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
287
O mapeamento de todas as propriedades.
A recuperação dos dados por proprietário.
A eliminação de dados conflitantes sobre propriedades.
Os programas intermediários, balizados pelo de longo prazo, teriam como
objetivos principal o de quebrar o tradicional isolamento em serviços estanques e
autosuficientes, permitindo uma reorganização não necessariamente moldada
apenas pelos interesses imediatos de cada órgão.
12.4 O Sentido da discussão proposta
A manutenção dos entraves à plena acumulação vem sendo garantida no nível
institucional pelo complexo de leis, procedimentos e interpretações jurídicas e, ao
nível econômico, pela expatriação de excedente. A expatriação não é um entrave
em si mas sim a garantia e justificativa para a manutenção dos entraves. Estes
adquirem formas variadas, em todos os níveis de decisão e de consciência,
apoiados seja nas variações sobre o tema “não há recursos”, seja nas variações
sobre “a lei não permite”.
A história nos apresenta uma sucessão de reimposições da expatriação na
superação das crises que periodicamente são colocadas pelas necessidades do
próprio processo de acumulação (mesmo entravada). Até o momento foi possível
manter esse sistema graças às altas taxas de excedente que permitiram expatriar
mantendo porém o mínimo necessário para a continuação do processo de
acumulação interna. Cessando essas altas taxas de escedente, com o esgotamento
do estágio de acumulação predominantemente extensiva 2 , a questão que se coloca
não é mais da forma mas sim da própria possibilidade de reimposição
da
expatriação e, com ela, a da continuidade de uma sociedade de elite.
2
A acumulação brasileira foi concedida até o momento pela contínua incorporação de
terras incultas e de população até então vivendo de formas pré-capitalistas de produção.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
288
Os interesses estão visivelmente em luta e parecem suficientemente equilibrados
para manter as posições há perto de 15 anos. O desenlace é imprevisível no
momento e, apesar de parecer impossível a manutenção do status quo, não há
indicações precisar do rumo que será seguido, lembrando demais que a crise
brasileira deverá se resolver no contexto da crise mundial. Mas, mesmo sem
indicações precisas, o repensar a organização social e o espaço dessa organização
é certamente uma forma de participar do embate.
Ora, ao espaço nacional corresponde um território, sobre o qual se constituem
direitos, materializados em títulos de domínio e registros cadastrais. A forma de
conhecimento público desses direitos e, portanto, as condições de intervenção do
Estado na consolidação e defesa do espaço nacional, serão colocadas como
questões centrais e deverão ser repensadas no contexto de uma reestruturação da
sociedade. Não se trata de promover reforma agrária ou distribuição de terras mas
sim de ter clareza sobre o projeto nacional de ocupação do território e de
construção do espaço.
Luisa Battaglia
Bibliografia e referências
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
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Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
Bibliografia e referências
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Codepar – Companhia de Desenvolvimento Econômico do Paraná,
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294
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
295
ANEXO I:
Lei 601 de 1850 – Lei das Terras Devolutas
Anexo I:
Lei 601 de 1850 – Lei das Terras Devolutas
Reproduzido do livro São Paulo, paraiso dos “grileiros” de Paulo Coe [1983?].
Lei nº 601 de 1.850
Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e a cerca das que são possuídas
por título de sesmaria sem preenchimento das condições legais, bem como por
simples título de posse mansa e pacífica e determina, que, medidas e demarcadas
as primeiras, sejão elas cedidas a título oneroso assim para empresas particulares,
como para estabelecimentos de colônias de nacionais e de estrangeiros na forma
que se declara.
Dom Pedro II, por Graça de Deus e Unanime aclamação dos Povos,
Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil: Fazemos saber a todos
os Nossos Subditos que a Assembléia Geral Decretou, e Nós Queremos a Lei
seguinte:
Art. 1° -- Ficam as aquisições de terras devolutas proibidas por outro título do
que não seja o de compra.
Excetuam-se as terras situadas nos limites do Império com países estrangeiros
em uma zona de dez léguas, as quais poderão ser concedidas gratuitamente.
Art. 2° -- Os que se apossarem de terras devolutas ou alheias, e nelas
derrubarem matos, ou lhe puzerem fogo, serão obrigados a despejo, com perda de
benfeitorias e, demais, sofrerão a pena de dois a seis meses de prisão, e multa de
cem mil réis, além da satisfação do dano causado. Esta pena porém não terá nos
atos possessórios entre hereos confinantes.
§ - Único - Os juízes de Direito nas correições que fizerem na forma das Leis e
Regulamentos, investigarão se as autoridades a quem compete o conhecimento
destes delitos põem todo o cuidado em processá-los e puni-los, e farão efetiva a sua
responsabilidade, impondo no caso de simples negligência a multa de cinquenta a
duzentos mil réis.
Art. 3° - São terras devolutas:
§ 1° - as que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional,
provincial ou municipal.
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
144
§ 2° - As que não se acharem no domínio particular por qualquer título
legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral
ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições
de medição, confirmação e cultura.
§ 3° - As que não se acharem dadas por sesmarias ou outras concessões do
Governo, que, apezar de incursas em comissão, forem revalidadas por esta lei.
§ 4° - As que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se
fundarem em título legal, forem legitimadas por esta lei.
Art. 4° - Serão revalidadas as sesmarias, ou outras concessões do Governo
Geral ou Provincial, que se acharem cultivadas, ou com princípios de cultura, e
morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionário, ou de quem os
represente, embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições, com
que foram concedidas.
Art. 5° - Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas, adquiridas por
ocupação primária, ou havidas do primeiro ocupante, que se acharem cultivadas,
ou com princípio de cultura e morada habitual do respectivo posseiro, ou de quem
o represente, guardadas as regras seguintes:
§ 1° - Cada posse em terras de cultura, ou em campos de criação,
compreenderá, além de terreno aproveitado, ou - o necessário para pastagem dos
animais que tiver o posseiro, outro tanto mais de terreno devoluto que houver
contiguo, com tanto que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a de
uma sesmaria para cultura ou criação, igual às últimas concedidas na mesma
comarca ou na mais vizinha.
§ 2° - As posses em circunstâncias de serem legitimadas, que se acharem em
sesmarias ou outras concessões do Governo, não incursas em comisso ou
revalidade por esta Lei, só darão direito a indenização pelas benfeitorias.
Excetua-se desta regra o caso de verificar-se a favor da posse qualquer das
seguintes hipóteses: 1° a ter sido declarada boa por sentença passada em Julgado
entre sesmeiro ou concessionários e os posseiros; 2° ter sido estabelecida antes da
medição da sesmaria ou concessão, e não perturbada por cinco anos; 3°, ter sido
estabelecida depois da dita medição, e não perturbada por dez (10) anos.
§ 3° - dada a excepção do parágrafo antecedente, os posseiros gozarão do
valor que lhes assegura o § 1°, competindo ao respectivo sesmeiro ou
concessionário ou ficar com o terreno que sobrar da divisão feita entre os ditos
posseiros, ou considerar-se também posseiro para entrar em rateio igual com eles.
§ 4 - Os campos de uso comum dos moradores de uma ou mais Freguesias,
Municípios ou Comarcas serão conservados em toda a extensão de suas divisas, e
continuarão a prestar o mesmo uso, conforme a prática atual, em quanto por lei
não se dispuzer o contrário.
Art. 6° - Não se haverá por princípio de cultura para a revalidação das
sesmarias ou outras concessões do Governo, nem para a legitimação de qualquer
posse, os simples roçados, derrubadas ou queimas de matos ou campos,
levantamentos de ranchos e outros atos de semelhante natureza, não sendo
acompanhadas da cultura efetiva, e morada habitual exigida no artigo
antecedente.
Art. 7° - O Governo marcará os prazos dentro dos quais deverão ser medidas
as terras adquiridas por posses ou por sesmarias, ou outras concessões, que
estejam por medir, assim como designará e instruirá as pessoas que devam fazer a
medição, atendendo às circunstâncias de cada Província, Comarca e Município, e
podendo prorrogar os prazos marcados, quando o julgar conveniente, por medida
geral que compreenda todos os possuidores da mesma Província, Comarca e
Município, onde a prorrogação convier.
Art. 8° - Os possuidores que deixarem de proceder à medição nos prazos
marcados pelo Governo serão reputados cahidos em comisso, e perderão por isso
o direito que tenham a serem preenchidos das terras concedidas por seus títulos,
ou por favor da presente Lei, conservando-o somente para serem mantidos na
posse do terreno que ocuparem com efetiva cultura, havendo-se por devoluto o
que se achar inculto.
144
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
145
Art. 9° - Não obstante os prazos que forem marcados, o Governo mandará
proceder à medição das terras devolutas, respeitando-se no ato da medição os
limites das concessões e posses que se acharem nas circunstancias dos Artigos 4° e
5°.
Qualquer oposição que haja da parte dos possuidores não impedirá a
medição; mas, utimada esta, se concederá vista aos oponentes para deduzirem
seus embargos em termo breve.
As questões judiciárias entre os mesmos possuidores não impedirão tão pouco
as diligências tendentes à execução da presente Lei.
Art. 10° - O Governo proverá o modo prático de extremar o domínio público
do particular, segundo as regras acima estabelecidas, incumbindo a sua execução
as autoridades que julgar mais convenientes, ou a Comissárias especiais, os quais
procederão administrativamente, fazendo decidir por arbítrios as questões e
dúvidas de fato, o dando de suas próprias decisões recursos para o Presidente da
Província, do qual haverá também para o Governo.
Art. 11° - Os posseiros serão obrigados a tirar títulos dos terrenos que lhe
ficarem pertencendo por efeito desta Lei e sem eles não poderão hipotecar os
mesmos terrenos, nem aliená-los por qualquer modo.
Esses títulos serão passados pelas Repartições Provinciais que o Governo
designar, pagando-se cinco mil réis de direitos de Chancelaria pelo terreno que
não exceder de um quadrado de quinhentas braças por lado, e outro tanto por
cada igual quadrado que demais contiver a posse; e além disso, quatro mil réis de
feitio, sem mais emolumento ou sêlo.
Art. 12° - O Governo reservará das terras devolutas as que julgar –
necessárias. 1° - para a colonização dos indígenas; 2° para a fundação de
Povoações abertura de estradas e quaisquer outras servidões, assento de
Estabelecimentos públicos; 3° - para a construção naval.
Art. 13° - O mesmo Governo fará organizar por Freguezias e registro das
terras possuidoras, sobre declarações feitas pelos respectivos possuidores impondo
multas e penas aqueles que deixarem de fazer nos prazos marcados as ditas
declarações, ou as fizerem inexatas.
Art° 14 - Fica o Governo autorizado a vender as terras devolutas em hasta
pública ou fora dela, como o quando julgar mais conveniente, fazendo
previamente medir, dividir, demarcar e descrever a porção das mesmas terras
que houver exposta a venda, guardadas as regras seguintes:
§ 1° - A medição e divisão serão feitas, quando o permitirem as circunstâncias
locais, por linhas que correrão do norte ao sul, conforme o verdadeiro meridiano,
e por outras que as cortem em ângulos retos, de maneira que formem lotes ou
quadrados de 500 braças por lado demarcado convenientemente.
§ 2° - Assim esses lotes, como as sobras de terras, em que se não puder
verificar a divisão acima indicada, serão vendidos separadamente sobre o preço
mínimo, fixado antecipadamente e pago à vista, de meio real, um real, um real e
meio e dois réis, por braça quadrada, segundo for a qualidade e situação dos
mesmos lotes e sortes.
§ 3° - A venda fóra da hasta pública será feita pelo preço que se ajustar,
nunca abaixo do mínimo fixado, segundo a qualidade e situação dos respectivos
lotes e sobras, ante o Tribunal do Tesouro Público, com assistência do chefe da
Repartição Geral das Terras, na Província do Rio de Janeiro, e ante as
Tesourarias, como assistência de um Delegado do dito Chefe e com aprovação do
respectivo Presidente, nas outras Províncias do Império.
Art. 15° – Os possuidores de terras de cultura e criação, qualquer que seja o
título de suas aquisição, terão preferência na compra de terras devolutas que lhes
forem contiguas, contanto que mostrem pelo estado de sua lavoura ou criação,
que tem os meios necessários para aproveitá-los.
Art. 15 – A terras devolutas que se venderem ficarão sempre sujeitas aos ônus
seguintes:
145
Luisa Battaglia
A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
146
§ 1° - Ceder o terreno preciso para estradas públicas de uma povoação a
outra, ou algum porto de embarque, salvo o direito de indenização das
benfeitorias e do terreno ocupado.
§ 2° - Dar servidão gratuita aos vizinhos quando lhes forem indispensáveis
para sairem a uma estrada pública, povoação ou porto de embarque, e com
indenização quando lhes for proveitosa por incurtamento de um quarto ou mais
de caminho.
§ 3° - Consentir a tirada de águas desaproveitadas e passagem delas
precedendo a indenização das benfeitorias e terreno ocupado.
§ 4° - Sujeitas as disposições das leis respectivas quaisquer minas que se
descobrirem nas mesmas terras.
Art. 17 – Os estrangeiros que comprarem terras e nelas se estabelecerem, ou
vierem à sua custa exercer qualquer indústria no País, serão naturalizados
querendo, depois de dois anos de residência pela forma porque o farão os da
Colônia de São Leopoldo, e ficarão isentos do serviço militar, menos do da
Guarda Nacional dentro do Município.
Art. 18 - O Governo fica autorizado a mandar vir anualmente à custa do
Tesouro, certo número de colonos livres para serem empregados, pelo tempo que
fôr marcado, em estabelecimentos agrícolas, ou nos trabalhos dirigidos pela
Administração Pública na formação de Colonias nos lugares em que estas mais
convierem; tomando antecipadamente as medidas necessárias para que tais
colonos achem emprego logo que desembarcarem.
Aos colonos assim importados são aplicáveis as disposições do art.
antecedente.
Art. 19° - O Produto dos direitos de Chancelaria e da venda das terras, de que
tratão os artigos 11° e 14°, será exclusivamente aplicado: 1° a - ulterior medição
das terras devolutas e, 2°, a importação de colonos livres, conforme o artigo
precedente.
Art. 20° - Em quanto o referido produto não for suficiente para as despesas a
que é destinado, o Governo exigirá anualmente os créditos necessários para as
mesmas despesas, às quais aplicará desde já as sobras que existiram dos créditos,
anteriormente dados a favor da colonização, e mais a soma de duzentos contos de
réis.
Art. 21° - Fica o Governo autorizado a estabelecer, com o necessário o
Regulamento, uma Repartição especial que se denominará - Repartição Geral das
Terras Públicas - e será encarregada de dirigir a medição, divisão, a descrição das
terras devolutas, e sua conservação, de fiscalizar a venda e distribuição delas, e de
promover a colonização nacional e estrangeira.
Art. 22° - O Governo fica autorizado igualmente a impor, nos Regulamento
que fizer para a execução da presente Lei, penas de prisão até três meses, e de
multa até duzentos mil de réis.
Art. 23° - Ficam derrogadas todas as disposições em contrário. Mandamos,
portanto a todas as Autoridades, a quem o conhecimento e execução da Referida
Lei pertencer, que a cumprão, e façam cumprir, e guardar tão inteiramente, como
nela se contem. O Secretario d’Estado dos Negócios do Império a faça imprimir,
publicar e correr. Dada no Palácio do Rio de Janeiro aos dezoito dias do mes de
Setembro de mil oitocentos e cinquenta, vigésimo nono da Independência e do
Império.
IMPERADOR com a Rúbrica e Guarda. Visconde de Mont'Alegre.
Carta de Lei, pela qual Vossa Majestade Imperial executar o Decreto da
Assembléia Geral, que houve por bem sancionar, sobre terras devolutas,
sesmarias, posses e colonização. Para Vossa Majestade Imperial vêr.
João Gonçalves de Araújo a fez. Euzébio de Queiroz Coitinho Matoso
Camara. Selada na Chancelaria do Império em 20 de Setembro de 1.850. José de
Paiva Magalhães Calvet. Registrada a fls. 57 do livro 1° de Atos Legislativos.
Secretaria d’Estado dos Negócios do Império em 2 de Outubro de 1.850.
Bernardo José de Castro.
146
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A institucionalização do descontrole sobre o espaço no Brasil
147
ANEXO II:
Decreto 1.318 de 1854
147
Anexo II:
Decreto 1.318 de 1854
DECRETO nº 1.318, de 30 de janeiro de 1854
Manda executar a Lei nº 601, de 18 de Setembro de 1850.
Em, virtude das autorizações concedidas pela Lei nº 601, de 18 de Setembro
de 1.850, hei por bem que para execução da mesma Lei de observe o
Regulamento que com este baixa assinado por Luiz Pedreira do Souza Ferraz,
do meu conselho ministro e secretário do Estado dos Negócios do Império, que
assim o tenha entendido e faça executar. Palacio do Rio de Janeiro em 30 de
Janeiro de 1854, trigésimo terceiro da Independência e do Império. - Com a
rubrica de S.M. o Imperador. - Luiz Pedreira do Couto Ferraz
REGULAMENTO
Para execução da Lei n° 601, de 18 de 09 de 1.850, a que se refere o Decreto
d’esta data.
CAPÍTULO 1
Art. 1° - A Repartição Geral das terras públicas, creada pela Lei n°. 601, de
18 de Setembro de 1.850, fica subordinada ao ministro e secretário de Estado
dos Negócios do Império, e constará de um diretor geral das terras públicas,
chefe da repartição, e de um fiscal.
A secretaria se comporá de um oficial-maior, dois oficiais, quatro
amanuenses, um porteiro, e um contínuo.
Um oficial e um amanuense serão hábeis em Desenho topográfico, podendo
ser tirados dentre os oficiais do corpo de engenheiros, ou do estado maior de 1a.
Classe.
Art. 2° - Todos estes Empregados serão nomeados por decreto imperial
excepto os amanuenses, porteiro e contínuo, que serão por portaria do ministro
e secretário de estado dos negócios do Império; e terão os vencimentos
seguintes:
Diretor geral, quatro contos de réis – 4:000$000
Fiscal, dois contos e quatrocentos mil réis – 2:400$000
Oficial-maior, três contos e duzentos mil réis - 3:200$000
Oficial (cada um), dois contos e quatrocentos mil réis 2:400$000
Amanuenses (cada um), um conto e duzentos mil réis - 1:200$000
Porteiro, um conto de réis - 1:000$000
Contínuo, seiscentos mil réis - 600$000.
Art. 3° - Compete à repartição geral das terras públicas:
§ 1° - Dirigir a medição, divisão e descrição das terras devolutas, e prover
sobre a sua conservação.
§ 2° - Organizar um Regulamento especial para as medições no qual
indique o modo prático de proceder a elas, e quais as informações que devem
conter os memorais de que trata o art. 16 deste Regulamento.
§ 3° - Propor ao Governo as terras devolutas que deveram ser reservadas:
1° para a colonização dos indígenas; 2°) para a fundação de povoações,
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abertura de estradas, e qualquer outras servidões e assentes de estabelecimentos
públicos.
§ 4° - Fornecer ao ministro da marinha todas as informações que tiver
acerca das terras devolutas que em razão de sua situação e abundância de
madeiras próprias para as construções navais, convenha reservar para o dito
fim.
§ 5° - Propor a porção de terras medidas que anualmente deveram ser
vendidas.
§ 6° - Fiscalizar a distribuição das terras devolutas, e a regularidade das
operações da venda.
§ 7° - Promover a colonização nacional e estrangeira.
§ 8° - Promover o registro das possuidas.
§ 9° - Propor ao Governo a fórmula que devem ter os títulos de revalidação
e de legitimação de terras.
§ 10° - Organizar e submeter à aprovação do Governo o Regulamento que
deve reger a sua secretaria, e as de seus delegados nas províncias.
§ 11° - Propor finalmente todas as medidas, que a experiência for
demonstrando convenientes para o bom desempenho de suas atribuições, e
melhor execução da Lei n° 601, de 18 de Setembro de 1.850, e deste
regulamento.
Art. 4° - Todas as ordens da repartição geral das terras publicas, relativas à
medição divisão e descrição das terras devolutas nas províncias; a sua
conservação, venda e distribuição e colonização nacional e estrangeira serão
assinadas pelo ministro e secretário de estado dos Negócios do Império, e
dirigidas aos presidentes das províncias.
Art. ° - As informações, porém, que forem necessárias para o regular
andamento do serviço a cargo da mesma repartição poderão ser exigidas pelo
diretor-geral de seus delegados, ou requisitadas das autoridades incumbidas por
este Regulamento do registro das terras possuídas, da medição, divisão,
conservação, fiscalização e venda das terras devolutas, e da legitimação ou
revalidação das que estão sujeitas a estas formalidades.
§ 1° - Dar parecer por escrito sobre toda as questões de terras de que trata
a Lei n° 601, de 18 de Setembro de 1.850, e em que estiverem envolvidos direitos
e interesses do estado e tiver de intervir a repartição geral das terras públicas,
em virtude deste Regulamento ou por ordem do Governo.
§ 2° - Informar sobre os recursos interpostos das decisões dos presidentes
das províncias para o Governo Imperial.
§ 3° - Participar ao diretor geral das faltas cometidas por quaisquer
autoridades, ou empregados, que por este Regulamento tem de exercer funções
concernentes ao registro das terras possuídas, à conservação, venda, medição,
demarcação e fiscalização das terras devolutas, ou que estão sujeitas à
revalidação e legitimação pelos artigos 4° e 5° da Lei n° 601, de 18-09-1.850.
§ 4° - Dar ao diretor geral todos os esclarecimentos e informações que
forem exigidas para o bom andamento do serviço.
Art. 6° - Haverá nas províncias uma repartição das terras públicas nelas
existentes. Esta repartição será subordinada aos presidentes das províncias e
dirigidas por um delegado do diretor geral das terras públicas; terá um fiscal,
que será o mesmo da tesouraria; os oficiais e amanuenses que forem
necessários, segundo a afluência do trabalho, e um porteiro servindo de
arquivista.
O Delegado e os oficiais serão nomeados por decreto imperial; os
amanuenses e o porteiro por portaria do Ministro e Secretário de Estado dos
Negócios do Império. Estes empregados perceberão os vencimentos que forem
marcados por decreto, segundo a importância dos respectivos trabalhos.
Art. 7° - O Fiscal da repartição especial das terras públicas deve:
§ 1° - dar parecer por escrito sobre todas as questões de terras de que trata
a Lei n° 601, de 18-09-1.850 e em que estiverem envolvidos interesses do Estado
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e tiver de intervir a repartição especial das terras públicas, em virtude da Lei,
Regulamento e ordem do Presidente da Província.
§ 2° - Participar ao Delegado do Chefe da Repartição Geral, afim de as
fazer subir ao conhecimento do Presidente da Província e ao do mesmo Chefe,
as faltas cometidas por quaisquer autoridades ou empregados nas respectivas
provincias, que por este Regulamento tem de exercer funções concernentes ao
registro das terras possuídas, à conservação, venda, medição, demarcação e
fiscalização das terras devolutas ou que estão sujeitas à revalidação e
legitimação pelos arts 4°, e 5° da Lei n° 601, de 18 de Setembro de 1.850.
§ 3° - Prestar ao Delegado do Chefe da Repartição Geral todos os
esclarecimentos e informações que forem por ele exigidos para o bom
andamento do serviço.
Art. 8° - O Governo fixará os emolumentos que as partes tem de pagar
pelas certidões, cópias de mapas e quaisquer outros documentos passados nas
secretarias das repartições geral e especiais das terras públicas. Os títulos,
porém, das terras, distribuídos em virtude da Lei n° 601, de 18-09-1.850,
somente pagarão o imposto fixado no artigo 11 da mesma Lei. Os emolumentos
e impostos serão arrecadados como renda do Estado.
Art. 9° - O Diretor Geral das terras públicas, nos impedimentos
temporários, será substituído pelo oficial maior da repartição; e os Delegados
por um dos oficiais da respectiva secretaria, designado pelo Presidente da
Província.
CAPÍTULO II
“Da medição das terras públicas”
Art. 10° - As províncias onde houver terras devolutas, serão divididas em
tantos distritos de medição quantos convier, compreendendo cada distrito parte
de uma comarca, uma ou mais comarcas, e ainda a província inteira, segundo a
quantidade de terras devolutas ahi existentes, e a urgência de sua medição.
Art. 11° - Em cada distrito haverá um inspetor geral das medições no qual
serão subordinados tantos escreventes, desenhadores e agrimensores, quantos
convier. O inspetor geral será nomeado pelo Governo, sob proposta do diretor
geral, os escreventes, desenhadores e agrimensores serão nomeados, com
aprovação do presidente da província.
Art. 12° - As medições serão feitas por territórios, que regularmente
formarão quadrados de seis mil braças de lado, subdivididos em lotes ou
quadrados de quinhentos braças de lado, conforme a regra indicada no art. 14.
da Lei n° 601, de 18-09-1.850, e segundo o modo prático prescrito no
Regulamento especial que for organizado pela repartição geral das terras
públicas.
Art. 13° - Os organizadores trabalharão regularmente por contrato que
farão com o inspetor de cada distrito, e no qual se fixará os seus vencimentos
por braça de medição, compreendidas todas as despesas com picadores, homens
de corda, demarcação, etc. O preço máximo de cada braça de medição será
estabelecido no Regulamento especial.
Art. 14° - O Inspetor é o responsável pela exatidão das medições; o trabalho
dos agrimensores lhe será portanto submetido; o sendo por ele aprovado,
procederá à formação dos mapas de cada um dos territórios medidos.
Art. 15° - Destes mapas fará extrair três cópias: uma para a repartição
geral das terras públicas, outra para o delegado da província respectiva, e outra
que deve permanecer em seu poder, formando afinal um mapa geral de seu
distrito.
Art. 16° - Estes mapas serão acompanhados de memoriaes, contendo, as
notas descritivas do terreno medido, e todas as outras indicações que deverem
ser feitas em conformidade do Regulamento especial das medições.
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Art. 17° - A medição começará pelas terras que se reputarem devolutas e
que não estiverem encravadas por posse, anunciando-se por editais e pelos
jornais, se os houver no distrito, a medição que se vai fazer.
Art. 18° - O Governo poderá contudo, se julgar conveniente, mandar
proceder a medição das terras devolutas contiguas tanto as terras que se
acharem no domínio particular, como as sujeitas a legitimação e sesmarias, e
concessões do Governo sujeitas revalidação, respeitando os limites de umas e de
outras.
Art. 19° - Neste caso, se os proprietários ou posseiros vizinhos se sentirem
prejudicados,, apresentarão aos agrimensores petição em que exporão o
prejuízo que sofrem. Não obstante, continuará a medição; e ultimada ela,
organizados pelo inspetor o memorial e mapa respectivos, será tudo remetido ao
juiz municipal, se o peticionário prejudicado for possuidor ou sesmeiro não
sujeito à legitimação ou revalidação, e ao juiz comissário criado pelo art. 30
deste Regulamento, se o dito peticionário for possuidor ou sesmeiro sujeito à
revalidação. Tanto o Juiz municipal como o comissário darão vista aos opoentes
por cinco dias para deduzirem seus embargos que serão decididos ou deduzidos
perante o juiz comissário nos termos e com o recurso do art. 47, e os deduzidos
perante o juiz municipal na forma das leis existentes, e um recurso para as
autoridades judiciais competentes.
Art. 20° - As posses estabelecidas depois da publicação do presente
Regulamento não devem ser respeitadas. Quando os inspetores e agrimensores
encontrem semelhantes posses, o participarão aos juizes municipais para
providenciarem na conformidade do art. 2° da lei supracitada.
Art. 21° - Os inspetores não terão ordenado fixo, mas sim, gratificação pelas
medições que fizerem, as quais serão estabelecidas sob proposta do diretor geral
das terras públicas, com atenção as dificuldades que oferecerem as terras a
medir.
CAPÍTULO III
Da revalidação e legitimação das terras e modo prático de extremar o
domínio público do particular.
Art. 22° - Todo o possuidor de terras que tiver título legítimo da aquisição
do seu domínio, quer as terras que fizerem parte dele tenhão sido
originariamente adquiridos por posse de seus antecessores, quer por concessões
de sesmarias não medidas ou não confirmadas, nem cultivadas, se acha
garantida em seu domínio, qualquer que fora a sua extensão, por virtude do
disposto no § 2 (do art. 3° da Lei n° 601, de 18-09-1.850, que exclui do domínio
público, e considera como não devolutas todas as terras que se acharem no
domínio particular por qualquer título legítimo.
Art. 23° - Estes possuidores, bem corno os que tiverem terras havidas por
sesmarias e outras concessões do Governo geral ou provincial não incursas em
comisso por falta de cumprimentos das condições de medição, confirmação e
cultura, não tem precisão de revalidação, nem de legitimação, nem de novos
títulos para poderem gozar, hipotecar ou alienar os terrenos que se acham no
seu domínio.
Art. 24° - Estão sujeitas à legitimação:
§ 1° - As posses que se acharem em poder do primeiro ocupante não tendo
outro título senão a sua ocupação.
§ 2° - As que, posto se achem em poder de segundo ocupante, não terem
sido por este adquiridas por título legítimo.
§ 3° - As que, achando-se em poder do primeiro ocupante até a data da
publicação do presente Regulamento, tiverem sido alienadas contra a proibição
do art. 11 da Lei n° 601, de 18-09-1.850.
Art. 25° - São títulos legítimos todos aqueles que, segundo o direito, são
aptos para transferir o domínio (1).
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Art. 26° - Os escritos particulares de compra e venda ou doação, nos casos
em que por direito são aptos para transferir o domínio de bens de raiz se
consideram legítimos, se o pagamento do respectivo imposto tiver sido
verificado antes da publicação deste Regulamento; no caso, porém, de que o
pagamento se tenha realizado depois dessa data, não dispensarão a legitimação,
se as terras transferias houverem sido adquiridas por posse e o que as transferir
tiver sido o seu primeiro ocupante.
Art. 27° - Estão sujeitas a revalidação as sesmarias, ou outras concessões do
Governo geral ou provincial que, estando ainda no domínio dos primeiros
sesmeiros, ou concessionários, se acharem continuadas ou com princípio de
cultura e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionário ou de quem
represente, e que não tiverem sido medidas e demarcadas. (1). Excetuam-se
porém, aquelas sesmarias ou outras concessões do Governo geral ou provincial,
que tiverem sido dispensadas das condições exigidas por ato do poder
competente; e bem assim, as terras concedidas a companhias para
estabelecimento de colonias, e que forem medidas e demarcadas dentro dos
prazos da concessão.
Art. 28° - Logo que for publicado o presente Regulamento, os Presidentes
das Províncias exigirão dos Juízes Municipais, Delegados, Subdelegados e Juízes
de Paz, informação circunstanciada sobre a existência em suas Comarcas
Termos e Distritos, de posses sujeitas à revalidação forma dos artigos 24, 25, 26
e 27.
Art. 29° - Se as autoridades a quem incumbe dar tais informações deixarem
de o fazer nos prazos marcados pelos Presidentes das Províncias, serão punidos
pelos mesmos Presidentes com a multa de cincoenta mil réis e com o dobro nas
reincidências.
Art. 30° - Obtidas as necessárias informações, os Presidentes das Províncias
nomearão para cada um dos municípios em que existirem sesmarias ou outras
concessões de Governo Geral e Provincial sujeitas a revalidação, ou posses
sujeitas a legitimação, um Juiz comissario de medições.
Art. 31° - Os nomeados para este emprego que não tiverem legítima excusa,
a juízo do Presidente da Província, serão obrigados a aceitá-lo, e poderão ser
compelidos a isso por multas até a quantia de cem mil réis (100$000).
Art. 32° - Feitas as nomeações dos juízes comissários das medições o
Presidente da Província marcará o prazo em que deverão ser medidas as terras
adquiridas por posses sujeitas a legitimação ou por sesmarias ou outras
concessões que estejam por medir, e sujeitas à revalidação, marcando maior ou
menor prazo, segundo as circunstâncias do município e o maior ou menor
número de posses ou sesmarias sujeitas a legitimação e revalidação que ahi
existirem.
Art. 33° - Os prazos marcados poderão ser prorrogados pelos mesmos
Presidentes se assim o julgarem conveniente; e neste caso a prorrogação
aproveita a todos os possuidores do município para o qual for concedida.
Art. 34° - Os juízes comissários das medições são os competentes:
1° - Para conceder a medição e demarcação da sesmaria, ou concessões do
Governo Geral ou Provincial sujeitas a revalidação e das posses sujeitas à
legitimação.
2° - Para nomear os seus respectivos excrivões e os agrimensores que com
elos devem proceder as medições e demarcações.
Art. 35° - Os agrimensores serão pessoas habilitadas por qualquer escola
nacional ou estrangeira, reconhecida pelos respectivos governos, e em que se
ensine topografia. Na falta de título copetente serão habilitados por exame feito
por dois oficiais do corpo de engenheiros, ou por duas pessoas que tenham o
curso completo da Escola Militar, sendo os examinadores nomeados pelos
Presidentes da Províncias.
Art. 36° - Os juízes comissários não procederão a medição alguma sem
preceder requerimento de parte; o requerimento deverá designar o lugar em
que é sita a posse, sesmaria ou concessão do Governo e os seus confrontantes.
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Art. 37° - Requerida a medição, o juiz comissário, verificando a
circunstância da cultura efetiva, e morada habitual, de que trata o art. 6° da Lei
n° 601, de 18-09-1.850, e que não são simples roçados, derrubadas ou queima de
matas, e outros atos semelhantes, os que constituem a pretendida posse,
marcará o dia em que a deve começar, fazendo público com antecedência de
oito (8) dias pelo menos, por editais que serão afixados nos lugares de costume,
na freguezias em que se acharem as possessões ou sesmarias que houverem de
ser legitimadas ou revalidadas, e fazendo citar os confrontantes por carta de
editos.
Art. 38° - No dia assinado para a medição, reunidos no lugar o Juiz
comissário, escrivão e agrimensor, e os demais empregados da medição,
deferirá, o Juiz, juramento ao escrivão, e ao agrimensor se já o não tiverem
recebido; e fará lavrar do termo do qual conste a fixação dos editais e a entrega
das cartas de citação aos confrontantes.
Art. 39° - Imediatamente declarará aberta a audiência e ouvirá a parte e os
confrontantes, decidindo administrativamente e sem recurso imediato os
requerimentos tanto verbais como escritos que lhe forem apresentados.
Art. 40° - Se a medição requerida for de sesmaria ou outra concessão do
Governo, fará proceder a ela de conformidade com os rumos e confrontações
designados no título de concessão; contanto que a sesmaria tenha cultura efetiva
e morada habitual, como determina o art. 6° da Lei n° 601, de 18-09-1.850.
Art. 41° - Se dentro dos limites da sesmaria ou concessão encontrarem
posses com cultura efetiva e morada habitual em circunstâncias de serem
legitimadas, examinarão se essas posses tem em seu favor algumas exceções
constantes da segunda parte do § 2° , do art. 5° da Lei n° 601, de 18-09-1.850, e
verificada algumas das ditas exceções, em favor das posses, deverão elas ser
medidas, a fim de que os respectivos posseiros obtenhão a sua legitimação,
medindo-se neste caso para o sesmeiro ou concessionário o terreno que restar
da sesmaria ou concessão, se o sesmeiro não preferir o rateio de que trata o § 3°
do art. 5° da Lei.
Art. 42° - Se, porém as posses que se acharem nas sesmarias ou concessões
não tiverem em seu favor alguma das ditas exceções, o juiz comissário fará
proceder a avaliação das benfeitoras que nelas existirem; e entregue o seu valor
ao posseiro, ou competentemente depositado, se este o não quiser receber, as
fará despejar, procedendo a medição de conformidade com o título da sesmaria
ou concessão.
Art. 43° - A avaliação das benfeitorias se fará por dois arbitros nomeados,
um pelo sesmeiro ou concessionário, e outro pelo posseiro; e se aqueles
discordarem na avaliação, o juiz comissário nomeará um terceiro arbitro, cujo
voto prevalecerá, e que poderá concecer com um dos dois, ou indicar novo
valor; contanto que não esteja fora dos limites dos preços arbitrados pelos
outros dois.
Art. 44° - Se a medição requerida for de posses não situadas dentro de
sesmarias ou outras concessões, porem em terrenos que se achassem devolutos e
tiverem sido adquiridos por ocupação primária ou havidas sem título legítimo
do primeiro ocupante, devem ser legitimadas, estando cultivadas ou com
princípio de cultura e morada habitual do respectivo posseiro ou de quem o
represente; o Juíz comissário fará estimar por arbitros os limites da posse, ou
seja em terras de cultura ou em campos de criação; e verificados esses limites e
calculada pelo agrimensor a área neles contida, fará medir para o primeiro, o
terreno que tiver sido cultivado ou estiver ocupado por animais, sendo terras de
criação tanto mais de terreno devoluto que houver contíguo; contanto que não
prejudique a terceiro e que em nenhum caso a extensão total da posse exceda a
uma sesmaria para cultura ou criação, igual às últimas concedidas na mesma
comarca ou na mais vizinha.
Art. 45° - Se a posse que se houver de medir for limitada por outras cujos
posseiros possam ser prejudicados com a estimação de terreno ocupado, cada
um dos posseiros limitrofes nomeará um arbitro, os quais, unidos ao nomeado
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pelo primeiro cujo terreno se vai estimar, procederão em comum a estimação
dos limites de todas, para proceder-se ao cálculo de suas áreas e ao rateio
segundo a porção que cada um posseiro tiver cultivado ou aproveitado. Se os
arbitros não concordarem entre si, o juíz nomeará um novo, cujo voto
prevalecerá, e em que poderá concordar com o de qualquer dos antecedentes
arbitros ou indicar novos limites; contanto que estes não compreendam, em
cada posse áreas maiores ou menores do que as compreendidas nos limites
estimados pelos anteriores arbitros.
Art. 46° - Se, porém, a posse não for limitada por outras que possam ser
prejudicadas, a estimação do terreno aproveitado ou ocupado por animais se
fará por dois arbitros, um nomeado pelo posseiro, e outro pelo escrivão que
servirá neste caso de promotor do juízo; e se discordarem estes, o juíz nomeará
um terceiro arbitro, que poderá concordar com um dos dois primeiros ou fixar
novos limites; contanto que estejam dentro do terreno incluido entre os limites
estimados pelos outros dois.
Art. 47° - Nas medições, tanto de sesmarias e outras concessões do Governo
Geral e Provincial, sujeitas a revalidação, como nas posses sujeitas a
legitimação, as decisões dos arbitros aos quais serão submetidas pelo juíz
comissário todas as questões e dúvidas de fato que se suscitarem, não serão
sujeitas a recurso algum; aos dos juízes comissários, porem, que versarem sobre
o direito de sesmeiro, ou posseiros e seus confrontantes, estão sujeitas a recursos
para o Presidente da Província e deste para o Governo Imperial.
Art. 48° - Estes recursos não suspenderão a execução; ultimada ela, e feita a
demarcação, escritos nos autos todos os termos respectivos, os quais serão
também assinados pelo agrimensor, organizará este, mapa que deve esclarecer e
unidos aos autos todos os requerimentos escritos que tiver havido o todos os
documentos apresentados pelas partes, o juíz comissário a julgará por finda;
fará extrair um traslado dos autos para ficar em poder do escrivão, e remeterá
os originais ao Presidente da Província, ainda quando não tenha havido
interposição de recurso.
Art. 49° - Recebidos os autos pelo Presidente e obtidos por ele todos os
esclarecimentos que julgar necessário, ouvirá o parecer do Delegado do diretor
das terras públicas, e este ao fiscal respectivo, e dará a sua decisão, que será
publicada na Secretaria da presidencia, a registrada no respectivo livro da
porta.
Art. 50° - Se o Presidente entender que a medição foi irregular ou que se
não guardou as partes o seu direito, em conformidade da Lei n° 601, de 18-091.850, e do presente Regulamento, mandará proceder a nova medição, dando as
instruções necessárias a concessão dos erros que tiver havido; e, se entender
justo, poderá condenar o Juíz comissário, o escrivão, e agrimensor a perderem
os emolumentos que tiverem percebido pela medição irregular.
Art. 51° - Se o julgamento do Presidente aprovar a medição, serão os autos
remetidos ao delegado do diretor geral das terras públicas para fazer passar em
favor do posseiro, sesmeiro, ou concessionário o respectivo título de sua
possessão, sesmaria, ou concessão depois de pagos na tesouraria os direitos de
Chancelaria, segundo a taxa do art. 11 da Lei n° 601, de 18-09-1.850. Os títulos
serão assinados pelo Presidente.
Art. 52° - Das decisões do Presidente da Província da-se recurso para o
Governo Imperial. Este recurso será interposto em requerimento apresentado
ao secretário da província dentro de dez dias, contados da data da publicação
da decisão na secretaria; e sendo assim apresentado, suspenderá a execução da
decisão enquanto pender o recurso que será remetido oficialmente por
intermédio do Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império.
Art. 53° - Os concessionários de sesmarias que, posto tenhão sido medidas,
estão sujeitos à revalidação por falta do cumprimento da condição de
confirmação, a requererão aos Presidentes da Província, os quais mandarão
expedir o competente título pelo delegado do diretor geral das terras públicas,
se a medição houver sentença passada em julgado.
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Art. 54° - Os concessionários de sesmarias que posto tenhão sido medidas,
não tiverem sentença de medição passada em julgado, deverão fazer proceder a
medição nos termos dos artigos 36 e 40, para poderem obter o título de
revalidação.
Art. 55° - Os Presidentes das Províncias, quando nomearem os juízes
comissários de medições, marcarão os salários e emolumentos que estes, seus
escrivães e agrimensores deverão receber das partes pelas medições que
fizerem.
Art. 56° - Findo o prazo marcado pelo Presidente para medição das
sesmarias e concessões do Governo, sujeitas à revalidação, e das posses sujeitas
a legitimação, os comissários informarão os presidentes do estado das medições
e do número das sesmarias e posses que se acharem por medir declarando as
causas que houverem inibido a ultimação das medições.
Art. 57° - Os Presidentes, a vista destas informações, deliberação sobre a
justiça e conveniência da concessão de novo prazo; e resolvendo a concessão, a
comunicação aos comissários, para prosseguirem nas medições.
Art. 58° - Findos os prazos que tiverem sido concedidos, os Presidentes
farão declarar pelos comissários aos possuidores de terras que tiverem deixado
de cumprir a obrigação de as fazer medir, que eles tem caido em comisso e
perdido o direito a serem preenchidos das terras concedidas por seus títulos, ou
por favor da Lei n° 601, de 18-09-1.850 e desta circunstância farão as
convenientes participações ao delegado do diretor geral das terras públicas, e
este ao referido diretor, afim de dar as providências para a medição das terras
devolutas que ficarem existindo em virtude dos ditos comissos.
CAPÍTULO IV
Da medição das terras que se acharem no domínio particular por qualquer
título legítimo.
Art. 59° - As posses originariamente adquiridas por ocupação, que não
estão sujeitas a legitimação por se acharem atualmente no domínio particular
por título legítimo, podem ser contudo legitimadas se os proprietários
pretenderem obter título de sua possessão, passado pela repartição geral das
terras públicas.
Art. 60° - Os possuidores que tiverem nas circunstâncias do art.
antecedente requererão aos Juízes municipais medição das terras que se
acharem no seu domínio por título legítimo; e estes a vista do respectivo título a
determinação citados confrontantes. No processo de tais medições guardar-seão as Leis e Regulamentos existentes, e conformidade com as suas disposições se
darão todos os recursos para as autoridades judiciárias existentes (2).
Art. 61° - Obtida a sentença de medição, e passada em julgada, os
proprietários poderão solicitar com ela dos Presidentes da Província o título de
suas possessões; e estes o mandarão passar pela maneira declarada no art. 51.
Art. 62° - Os possuidores de sesmarias que, posto não fossem medidas não
estão sujeitas a revalidação por não se acharem já no domínio concessionários,
mas sim no de outrem com título legítimo, poderão igualmente obter novos
títulos de sua propriedade, feita a medição pelos Juizes Municipais nos termos
dos artigos antecedentes.
Art. 63° - Os Juízes de direito, nas correções que fizerem indagarão se os
juízes municipais são ativos e diligentes em proceder as medições de que trata
este capítulo, e que lhes forem requeridas; e achando-os em negligência, lhes
poderão impor a multa de 100$000 e 200$000. Esta multa, bem como a dos
artigos antecedentes, serão cobradas executivamente como dívidas da fazenda
pública, e para esse fim as autoridades que as impuserem farão as necessárias
participações aos inspetores das tesourarias.
CAPÍTULO V
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Da venda das terras públicas.
Art. 64° - A medida que se for verificando a medição e demarcação dos
territórios que devem ser divididas as terras devolutas, os delegados do diretor
geral das terras públicas remeterão ao dito diretor os mapas de medição e
demarcação de cada um dos ditos territórios, acompanhados dos respectivos
memoriais, e de informação e todas as circunstâncias favoráveis ou
desfavoráveis ao território medido, e do valor de cada braça quadrada, com
atenção aos preços fixados no § 2°, do art. 14 da Lei 601, de 18-09-1.850.
Art. 65° - O diretor geral, de posse dos mapas, memoriais e informações,
proporá ao Governo Imperial a venda das terras que não forem reservadas
para alguns dos fins declarados no art. 12 da Lei n° 601, de 18-09-1.850, tendo
atenção a demanda que houver delas em cada uma das províncias e indicando o
preço mínimo da braça quadrada que deva ser fixado na conformidade do
disposto no § 2°, do art. 14 da citada Lei.
Art. 66° - Ao Governo Imperial compete deliberar, como julgar
conveniente, se as terras medidas e demarcadas devem ser vendidas; quando o
devem ser; e se a venda se ha de fazer em hasta pública, ou fora dela; bem como
o preço mínimo pelo qual devão ser vendidas.
Art. 67° - Resolvido pelo Governo Imperial que a venda se faça em hasta
pública, e estabelecido o preço mínimo, prescreverá o mesmo Governo o lugar,
em que a hasta pública se ha de verificar; as autoridades perante quem ha de
ser feita, e as normalidades que devem ser guardadas; contanto que se observe o
disposto no § 2°, do art. 14 da Lei n° 601, de 18 de setembro de 1850.
Art. 68° - Terminada a hasta pública, os lotes que andarem nela e não
forem vendidos, os serão fora dela, quando apareçam pretendentes. As ofertas
para esse fim serão dirigidas ao Tribunal do tesouro nacional na província do
Rio de Janeiro, e aos inspetores das tesourarias nas outras províncias do
império.
Art. 69° - O Tribunal do tesouro nacional, recebidas as ofertas convocará o
diretor geral das terras públicas, e com a sua assistência fará a venda pelo preço
que se ajustar, não sendo menor do que o mínimo fixado para cada braça
quadrada, segundo a qualidade e situação.
Art. 70° - Se as ofertas aos inspetores das tesourarias nas outras províncias
do Império, estes a submeterão aos respectivos presidentes para declararem se
aprovão ou não a venda; e no caso afirmativo convocarão o delegado do diretor
geral das terras públicas, e com a sua assistência ultimarão o ajuste,
verificando-se a venda de cada um dos lotes nos termos do art. antecedente.
Art. 71° - Quando o Governo Imperial julgue conveniente fazer vender fora
da hasta pública algum, ou alguns dos territórios medidos, a venda se verificará
sempre perante o tesouro nacional nos termos do artigo 69.
CAPÍTULO VI
Das terras reservadas:
Art. 72° - Serão reservadas terras devolutas para colonização e aldeamento
de indígenas nos distritos onde existirem hordas selvagens.
Art. 73° - Os inspetores e agrimensores, tendo notícia da existência de tais
hordas nas terras devolutas que tiverem de medir, procurarão instruir-se
engenio e indole, número provável de almas que elas contem, e da facilidade ou
dificuldade que houver para o seu aldeamento, e de tudo informarão do diretor
geral das terras públicas por intermédio dos delegados, indicando o lugar mais
azado para o estabelecimento do aldeamento, e dos meios de o obter; bem como
a extensão de terra para isso necessário.
Art. 74° - A vista de tais informações, o diretor geral proporá ao Governo
Imperial a reserva das terras para o aldeamento, e todas as providencias para
que este as obtenha.
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Art. 75° - As terras reservadas para colonização de indígenas, e por elas
distribuídas, são destinadas ao seu usofruto; e não poderão ser alienadas
enquanto o Governo Imperial por ato especial não lhes conceder o pleno gozo
delas, por assim o permitir o seu estado de civilização.
Art. 76° - Os mesmos inspetores e agrimensores darão notícia pelo mesmo
intermédio dos lugares apropriados para a fundação de povoações, abertura de
estradas, e quaisquer outras servidões, bem como para assento de
estabelecimentos públicos; e o diretor geral das terras públicas proporá ao
Governo Geral Imperial as reservas que julgar convenientes.
Art. 77° - As terras reservadas para fundação das povoações serão
divididas, conforme o governo julgar conveniente, em lotes urbanos e rurais ou
somente nos primeiros: estes não serão maiores de dez (10) braças de frente e 50
de fundo; os rurais poderão ter maior extensão, segundo as circunstâncias o
exigirem, não excedendo porém cada lote de 400 braças de frente sobre outras
tantas de fundo. Depois de reservados os lotes que forem necessários para
aquartelamentos, fortificações, cemitérios (fóra do recinto das povoações) e
quaisquer outros estabelecimentos e servidões públicas, será o restante
distribuídos pelos povoadores, a título de aforamento perpétuo, devendo o fôro
ser fixado sob proposta do diretor geral das terras públicas, e sendo sempre o
laudemio em caso de venda a quarentena (1).
Art. 78° - Os lotes, em que devem ser divididas as terras destinadas a
fundação de povoações serão medidos com frente para as ruas e praças,
traçadas com antecedência, dando o diretor geral das terras públicas as
providências necessárias para a regularidade e formosura das povoações.
Art. 79° - O Fôro estabelecido para as terras assim reservadas e o laudenio
proveniente das vendas delas serão aplicados ao calçamento das ruas e seu
aformoseamento, a construção de chafarizes e de outras obras de utilidade das
povoações, incluindo a abertura e conservação de estradas dentro do distrito
que lhes for marcado. Serão cobrados, administrados e aplicados pela forma
que prescrever o governo quando mandar fundar a povoação, e enquanto esta
não for elevada a categoria de vila. Neste caso a municipalidade proverá sobre a
cobrança e administração do referido fôro, não podendo dar-lhe outra aplicação
que não seja a acima mencionada.
Art. 80° - A requisição para a reserva de terras públicas, destinadas a
construção naval será feita pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios
da Marinha, depois de obtidos os esclarecimentos e informações necessários,
seja da repartição geral das terras públicas, seja de empregados da marinha ou
de particulares.
Art. 81° - As terras reservadas para o dito fim ficarão sob a administração
da marinha, por cuja repartição se nomearão os guardas que devem vigiar na
conservação de suas matas e denunciar aos juízes conservadores do art. 87°,
aqueles que, sem legítima autorização, cortarem madeiras, afim de serem
punidos com as penas do artigo 2° da Lei n° 601, de 18-09-1.850.
CAPÍTULO VII
Das terras devolutas situadas nos limites do Império com paízes
estrangeiros.
Art. 82° - Dentro da zona de dez (10) léguas contígua nos limites do império
com paízes estrangeiros, e em terras devolutas que o Governo pretender povoar,
estabelecer-se-ão colônias militares.
Art. 83° - Para o estabelecimento de tais colonias não é necessário que
preceda a medição; porém esta deverá ser feita, logo que for estabelecida a
colonia, por inspetores e agrimensores especiais, a quem serão dadas as
instruções particulares para regular a extensão que devem ter os territórios que
forem medidos dentro da zona de des (10) léguas, bem como a extensão dos
quadrados ou lotes, em que hão de ser subdivididos os territórios medidos.
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Art. 84° - Deliberado o estabelecimento das colonias militares, o Governo
marcará o número de lotes que hão de ser distribuidos gratuitamente, aos
colonos, e aos outros povoadores nacionais e estrangeiros, as condições dessa
distribuição e as autoridades que hão de conferir os títulos.
Art. 85° - Os empresários que pretenderem fazer povoar quaisquer terras
devolutas compreendidas na zona de 10 léguas nos limites do Império com
paízes estrangeiros, deverão dirigir suas propostas ao Governo Imperial por
intermédio do diretor geral das terras públicas, sob as bases:
1° - da concessão aos ditos emprezários de 10 léguas em quadro ou o seu
equivalente para cada colonia de mil e seiscentos almas, sendo as terras de
cultura, e 400 sendo campos próprio para criação de animais;
2° - de um subsídio para ajuda da empreza, que será regulado segundo as
dificuldades que ela oferecer.
Art. 86° - As terras assim concedidas deverão ser medidas a custa dos
emprezários, pelos inspetores e agrimensores, na forma que for designada no
ato da concessão.
CAPÍTULO VIII
Da conservação das terras devolutas alheias.
Art. 87° - Os Juízes Municipais são os conservadores das terras devolutas.
Os Delegados e Subdelegados exercerão as funções de conservadores em seus
distritos, e, como tais, deverão proceder ex-ofício contra os que cometerem
delitos de que trata os arts. seguintes, e remeter depois de preparados os
respectivos autos ao Juíz Municipal do termo para o julgamento final.
Art. 88° - Os Juízes Municipais logo que receberem os autos mencionados
no artigo antecedente, ou chegar ao seu conhecimento por qualquer meio, que
alguem se tem apossado de terras devolutas, procederão imediatamente exofício contra os delinquentes, processando-os pela forma por que se processam
os que violam as posturas municipais, e impondo-lhes as penas do art. 2° da Lei
n° 601, de 18-09-1.850.
Art. 89° - O mesmo procedimento terão a requerimento dos proprietários,
contra os que se apossarem de suas terras, e nelas derrubaram matos ou
lançarem fogo; contanto que os indivíduos que praticarem tais atos não sejam
hereos-confinantes. Neste caso, somente ao hereo prejudicado a ação civil.
Art. 90° - Os juízes de direito, nas correições que fizerem investigarão se os
juízes municipais põem todo o cuidado em processar os que cometerem tais
delitos, e os delegados e subdelegados em cumprir as obrigações que lhes impõe
o art. 87° - e farão efetiva a sua responsabilidade, impondo-lhes, no caso de
simples negligência, multa de 50$000 e 200$000, e, no caso de maior culpa,
prisão até três meses.
CAPÍTULO IX
Do registro dos terras possuídas.
Art. 91° - Todos os possuidores de terras, qualquer que seja o título de sua
propriedade ou possessão, são obrigados a fazer registrar as terras que
possuirem, dentro dos prazos marcados pelo presente Regulamento, os quais se
começarão a contar na Corte e Província do Rio de Janeiro, da data fixada pelo
Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império, e nas Províncias, da
fixada pelo respectivo Presidente.
Art. 92° - Os prazos serão 1°, 2° e 3°, o 1° de dois anos; o 2° de um ano; e o
3° de seis (6) meses.
Art. 93° - As declarações para o registro serão feitas pelos possuidores, que
as escreverão, ou farão escrever por outrem em dois exemplares iguais,
assinando-os ambos, ou fazendo-os assinar pelo, indivíduo que os houver
escrito, se os possuidores não souberem escrever.
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Art. 94° - As declarações para o registro das terras possuídas por menores,
índios ou quaisquer corporações, serão feitas por seus pais, tutores, curadores,
diretores, ou encarregados da administração de seus bens e terras. As
declarações de que tratam este artigo e o antecedente não conferem algum
direito aos possuidores.
Art. 95° - Os que não fizerem as declarações por escrito nos prazos
estabelecidos serão multados pelos encarregados do registro na respectiva
freguesia; findo o 1° prazo, em 25$000; findo o 2° em 50$000; e findo o 3° em
100$000.
Art. 96° - As multas serão comunicadas aos inspetores da tesouraria e
cobradas executivamente, como dívidas da Fazenda Nacional.
Art. 97° - Os Vigários de cada uma das freguesias do Império são os
encarregados de receber as declarações para o registro das terras, e os
incumbidos de proceder a esse registro dentro de suas freguesias, fazendo-o por
si ou por escreventes, que poderão nomear e ter sob a sua responsabilidade.
Art. 98° - Os Vigários, logo que for nomeada a data do primeiro prazo de
que trata o art. 91°, instruirão a seus fregueses da obrigação em que estão de
fazerem registrar as terras que possuírem, declarando-lhes o prazo em que
devem fazer, as penas em que incorrem, e dando-lhes todas as explicações que
julgarem necessárias para o bom cumprimento da referida obrigação.
Art. 99° - Estas obrigações serão dadas nas missas conventuais, publicadas
por todos os meios, que parecerem necessários para o conhecimento dos
respectivos freguezes.
Art. 100° - As declarações das terras possuidas devem conter o nome do
possuidor, a designação da freguesia em que estão situadas, o nome particular
da situação, se o tiver; sua extensão, se for conhecida, e seus limites.
Art. 101° - As pessoas obrigadas no registro apresentarão ao respectivo
Vigário os dois exemplares de que trata o art. 93°; e sendo conferidos por clã,
achando-os iguais e em regra, fará em ambos uma nota que designe o dia de sua
apresentação; e assinadas as notas de ambos os exemplares, entregará um deles
ao apresentante para lhe servir de prova de haver cumprido a obrigação do
registro, guardando o outro para fazer esse registro.
Art. 102° - Se os exemplares não contiverem as declarações necessárias os
vigários poderão fazer aos apresentantes as observações, no caso de que lhes
pareção não satisfazer elas ao disposto no art. 100°, ou de conterem erros
notórios; se, porém, as partes insistirem no registro de suas declarações pelo
modo por que se acharem feitas, os vigários não poderão recusa-las.
Art. 103° - Os Vigários terão livros de registro por eles abertos, numerados,
rubricados e encerrados. Nestes livros lançarão por si ou por seus escreventes
textualmente, declarações que lhes forem apresentadas, e por esse registro
cobrarão do declarante o emolumento correspondente ao número de letras que
contiver um exemplar, a razão de dois reais por letra, e do que receberem farão
notar em ambos os exemplares.
Art. 104° - Os exemplares que ficarem em poder dos vigários serão por eles
emanados, e numerados pela ordem que forem recebidos, notando em cada
fôlha de livro em que foi registrada.
Art. 105° - Os Vigários que extraviarem algumas das declarações, não
fizerem o registro cometerem erros que alterem ou tornem ininteligíveis os
nomes, designação, extensão e limites de que trata o art. 100° deste
Regulamento, serão obrigados a restituir os emolumentos que tiverem recebido
pelos documentos que se extraviarem de seu poder, ou forem mal registrados e
além disso sofrerão a multa de 50$000 a 200$000, sendo tudo cobrado
executivamente.
Art. 106° - Os possuidores de fôros que” fizerem declarações falsas,
sofrerão a multa de 50$000 a 200$000; e conforme a gravidade da falta poderá
também lhes ser imposta a pena de um a três meses de prisão.
Art. 107° - Findos os prazos estabelecidos para o registro, os exemplares
emissados se conservarão no arquivo das paróquias, e os livros de registro serão
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remetidos ao delegado do diretor geral das terras públicas da província, para
em vista deles formar o registro geral das terras possuídas na província, do qual
se enviará cópia ao supradito diretor para a organização do registro geral das
terras possuidas no Império.
Art. 109° - Todas as pessoas que arrancarem marcos e estacas divisórias, ou
destruirem os sinais, números e declarações que se gravarem nos ditos marcos
ou estacas e em árvores, pedras nativas, etc., serão punidas com multa de
200$000, além das penas a que estiverem sujeitas pelas leis em vigor.
Palácio do Rio de Janeiro, em 30 de Janeiro de 1.854.
a) Luiz Pedreira do Couto Ferraz.
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