A REFORMA PSIQUIÁTRICA E IMPLICAÇÕES PARA A FAMÍLIA

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A REFORMA PSIQUIÁTRICA E IMPLICAÇÕES PARA A FAMÍLIA : O PAPEL DO
ENFERMEIRO NO PROGRAMA SAÚDE DA FAMÍLIA
Fabiana Marques da Silva Macedo1
Marilda Andrade2
Jorge Luiz Lima da Silva3
Entende-se
por
reforma
psiquiátrica, o conjunto de iniciativas
políticas, sociais, culturais, administrativas e
jurídicas que visam transformar a relação da
sociedade com o cidadão mentalmente
enfermo. A reforma vai desde as
transformações na instituição e no saber
médico-psiquiátrico até às práticas sociais
do lidar com essas pessoas portadoras de
problemas mentais. Trata-se de um processo
de transformação complexo nos campos do
saber, da ética, da cultura e da cidadania
(AMARANTE, 1994).
No Brasil, o movimento da reforma
psiquiátrica teve início em abril de 1978
com o episódio conhecido como a “Crise de
Dinsam” (Divisão Nacional de Saúde
Mental). A crise teve início depois que
denúncias de maus tratos não esclarecidas
ocorreram em hospitais psiquiátricos. A
mobilização de diversos profissionais fez
surgir
então,
o
Movimento
dos
Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM),
hoje chamado de Movimento Social por uma
Sociedade sem Manicômios (CASTRO,
2003).
A reforma psiquiátrica brasileira
defende a ideia de que somente os clientes
em crise aguda devem ser internados para
receber tratamento em um hospital
psiquiátrico e, os que tiverem condições,
devem receber tratamento alternativo, não
ser separado de sua família e ter facilitada e
estimulada a sua reintegração à sociedade. A
Câmara dos Deputados aprovou, em
12/09/1989, o Projeto de Lei nº 3.657
assinado pelo Deputado Paulo Delgado que
tem como finalidade a extinção progressiva
dos manicômios e a sua substituição por
outros recursos assistenciais, além de
regulamentar a internação psiquiátrica
compulsória.
Algumas
modificações
vêm
ocorrendo
lentamente
nas
práticas
psiquiátricas. Dentro do contexto da
Reforma, nota-se a importância do
acompanhamento e do apoio das famílias
dos pacientes no tratamento, no processo de
desospitalização e na reinserção desses
indivíduos na sociedade. Mas, para que essa
participação tenha resultado positivo, é
necessário o preparo e a orientação da
família. Portanto, torna-se fundamental o
trabalho da equipe multiprofissional do
programa saúde da família (PSF).
De acordo com Luis, Margiotte e
Santos (1989), a inserção dos familiares e
dos pacientes no acompanhamento do
cuidado, faz com que os clientes tenham sua
autoestima
elevada,
melhorando
consideravelmente sua contribuição no
processo de reabilitação. Acrescenta-se
ainda que, esta dinâmica transmite mais
segurança e responsabilidade à família e/ou
paciente, pois não os julga como pessoas
submissas, material inerte que nada tem a
oferecer. Ao contrário, o profissional numa
atitude de respeito busca a participação do
cliente durante o processo de assistência, e,
ao mesmo tempo, procura ajudá-lo a ter a
compreensão real dos motivos que
desencadearam o episódio de desequilíbrio e
as formas ao seu alcance para minimizar ou
evitar outros.
Com a manifestação da doença
mental em uma família, ela inicialmente se
sente angustiada e sofre muito porque
percebe que o seu familiar necessita de um
cuidado especial, que na maioria das vezes,
ela não está preparada para prestar.
Se a família for considerada a base
da vida, deve-se também pensar no paciente
como um indivíduo que tem uma vida fora
do hospital (trabalho, lazer, amigos, família),
não bastando assisti-lo apenas dentro do
contexto institucional. É necessária a
preocupação com sua família, e aproximação
desta, verificando o que a doença e a
desospitalização do seu familiar está
significando. È preciso que os entes sejam
orientados sobre o que está ocorrendo com o
paciente e que sejam estimulados a
participar de tudo o que desejarem.
Ser familiar de indivíduo com
transtorno mental é algo mais complexo do
que simplesmente ter uma pessoa em casa
que apresenta algum outro tipo de patologia.
A doença mental é carregada de estigma que
atinge todos os membros da família,
principalmente porque, na maioria das
vezes, os próprios familiares trazem consigo
preconceitos acerca da doença mental e até
procuram se afastar da sociedade para evitar
maiores sofrimentos.
Segundo Taylor (1992), a família é
um sistema social com sua própria estrutura,
característica e padrão de comunicação.
Qualquer atitude que ela tomar influenciará
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o seu membro. Esta influência poderá ser
negativa reforçando seu comportamento
desajustado.
Dessa forma, a família e o paciente
encontrarão soluções para os seus
problemas, descobrindo novas formas para a
reinserção social do indivíduo portador de
transtorno mental, sem o comprometimento
do seu estado mental e do relacionamento
familiar. Segundo a autora, “cada família é
única e mantêm crenças e valores,
características morais e éticas próprias que
devem ser levadas em consideração” (p.
379).
O que acontece na prática é que os
profissionais de saúde, de um modo geral,
dificilmente estão disponíveis ou dispostos a
trabalhar a dimensão subjetiva e objetiva do
cuidado com o doente mental. È comum que
os profissionais esperem que as famílias
aceitem seu familiar com transtorno mental
sem oferecer-lhe suporte e orientações
adequadas (GONÇALVES; SENA, 2001).
A comunidade e, principalmente, as
famílias, não recebem explicação sobre o
que é uma doença mental ou sobre o
diagnóstico de seu familiar. Esse lidar com o
desconhecido gera medo, incompreensão e
espanto em conviver com os portadores de
transtorno mental.
Além disso, os familiares se
encontram
sobrecarregados
pelas
dificuldades decorrentes da baixa renda,
dificuldades de convívio com o transtorno
mental,
desequilíbrio
emocional
e
dificuldades financeiras para prover as
necessidades de um familiar que demanda
cuidado especial.
O adoecimento psíquico de um
indivíduo e a incapacidade de os familiares
proverem o sustento adequado faz com que
as dificuldades se acumulem e a rede de
sofrimento se amplie (BRÊDA, 2001).
Pressupõe-se que mesmo não tendo
o seu familiar hospitalizado em uma
instituição psiquiátrica, as famílias se sentem
presas dentro de suas dificuldades,
responsabilidades e sobrecarga o que remete
o pensamento de que a “prisão” dos
manicômios pode estar sendo apenas
transferida para a vida extramuro desses
indivíduos e de suas famílias.
Em uma pesquisa realizada sobre
autonomia de pacientes psiquiátricos, os
autores concluíram que quanto maior o
tempo de internação desses pacientes, maior
será o grau de comprometimento que terão
da sua autonomia, principalmente em
relação à administração de dinheiro,
ocupação, lazer, preparo e incapacitação
física (WAGNER, 2006). Portanto, é
fundamental que haja um planejamento da
desospitalização prolongada levando em
conta os déficits funcionais, avaliação do
funcionamento social e identificação das
necessidades do paciente para que a
desinternação seja viável para todos.
Macedo (1996) descreve algumas
alterações geradas na vida dos familiares dos
portadores de transtorno mental: quase
sempre o convívio com o paciente
psiquiátrico produz uma sobrecarga intensa
que acaba por comprometer a saúde, vida
social, relação com os outros membros da
família, lazer, disponibilidade financeira,
rotina doméstica, desempenho profissional e
escolar e inúmeros outros aspectos da vida
dos familiares e substitutos. Os cuidadores
que se dedicam aos pacientes mais
debilitados investem tempo e energia na
busca de tratamento e nas negociações para
que o cliente aceite se tratar.
Outro ponto muito importante está
relacionado com o uso de medicamentos
sem um acompanhamento devido, o que
gera preocupação aos familiares que se
apoiam nos medicamentos como solução ou
uma forma de reduzir os problemas.
O medicamento toma um grau de
importância para essas pessoas que, em
muitas vezes, supera a necessidade de outra
forma de cuidado à saúde e essa atitude,
quando parte dos serviços de saúde, tem
gerado sérios malefícios. Segundo Brêda
(2001), ainda depara-se com uma prática
assistencial individual, passiva e pouco
criativa centrada na internação e na tomada
de medicamentos, com um consumo cada
vez maior de benzodiazepínicos.
O desencadeamento das crises
constitui outra dificuldade, já que as famílias
não estão orientadas sobre o conceito da
doença mental e de suas implicações. A
imprevisibilidade do paciente é outra fonte
de tensão em casa. O comportamento
imprevisível debilita as expectativas sociais
e dá origem a sensações de incerteza e
insegurança (OLIVEIRA; JORGE, 1998).
Diante de tantas dificuldades, uma
forma que algumas famílias encontram de
enfrentar os problemas é abandonar seus
familiares com transtorno mental. Para
Agudelo (1997), ao aceitar esta lógica a
sociedade reconhece sua impotência para
recuperar parte dos seus membros e opta,
ativa ou passivamente, por autorizar ou
tolerar sua exclusão. Por outro lado, o amor,
a amizade, a religião e o entretenimento são
tidos como recursos de alto valor terapêutico
para a maioria dessas pessoas e, muitas
vezes, é o único recurso que elas dispõem.
Apesar de os portadores de
transtorno mental que se encontram
desospitalizados estarem vinculados e
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A reforma psiquiátrica e
implicações
para
a
família: o papel do
enfermeiro no programa
saúde da família
freqüentarem uma instituição alternativa,
essa mesma instituição não tem dado o
suporte que as famílias necessitam,
principalmente nos momentos de crise, pois
nesses momentos mais difíceis as famílias
têm estado sozinhas, sem recursos e sem
apoio profissional.
A modalidade de atenção básica
deveria ser a principal porta de entrada do
sistema de saúde e o elo mais próximo entre
as unidades de assistência, a família e a
comunidade.
A Política de Saúde Mental vigente
norteia a Reforma Psiquiátrica para práticas
baseadas na territorialização e numa rede
integrada de assistência ao portador de
transtorno mental. Pressupõe-se que um
grande número de problemas relacionados à
saúde mental poderia ser resolvido no nível
primário da assistência, sem a necessidade
de encaminhar para outros níveis de
complexidade. Daí a importância de ações
de prevenção e promoção da saúde mental
que têm na atenção básica o local ideal que
possibilita que essas ações sejam
desenvolvidas.
A estratégia saúde da família, por
sua vez, é um importante articulador da rede
de saúde mental para superar o modelo
tradicional, centrando o cuidado na família e
não somente no indivíduo, trabalhando com
questões relacionadas com vigilância em
saúde e atividades que atuem nos
determinantes sociais do adoecimento.
Uma forma de a enfermagem atuar
buscando qualidade na assistência é dialogar
mais com os pacientes e com seus
familiares. Para Breda (2001), dialogar tem
característica onde as pessoas se colocam em
pé de igualdade quanto à participação de
cada um no processo de melhoria de
determinada situação. Para a autora, o
“diálogo de ajuda” deve estar baseado na
certeza de que as soluções necessárias estão
dentro do indivíduo ou podem ser
construídas em conjunto.
Outro aspecto importante é a
transformação ou ampliação do conceito de
saúde mental. Assim como se sabe de um
conceito ampliado de saúde, também se deve
passar a pensar a saúde mental de forma
ampliada.
A reforma vai desde a ampliação do
conceito até as transformações nas
instituições, no saber médico-psiquiátrico e
nas práticas sociais do lidar com essas
pessoas portadoras de problemas mentais.
Relacionando as práticas assistenciais que
vem sendo aplicadas com a Política de
Saúde.
Os
princípios
da
equidade,
universalidade
no
atendimento
e
integralidade das ações não estão sendo
contemplados em sua totalidade, pois ainda
há uma grande distância a ser percorrida
entre as propostas da Lei e a realidade
vivida.
Complemento com a inexistência
de uma estratégia do PSF para lidar com a
saúde mental contemplando ações de
promoção, comunicação e educação em
saúde, de práticas coletivas, além das
individuais.
Conclui-se que o processo de
desospitalização e reabilitação psicossocial
são muito mais complexos. Envolve não só a
qualidade da assistência prestada, mas
também a importância de a sociedade de um
modo geral, mudar seus conceitos de bemestar social, de saúde-doença e da maneira
de entender e acolher os doentes mentais.
Logo, se houver consideração pelo
paciente psiquiátrico inserido em um
contexto social de vida, valorizando
questões que transcendem ao seu estado
clínico
de
“doente”,
como
seus
relacionamentos afetivos, trabalho, lazer,
considerando a saúde em um conceito
ampliado, estar-se-á estendendo as ações aos
familiares desse indivíduo, contribuindo
para resgatar sua cidadania e para construção
de uma prática de saúde humanizada.
Nesse contexto, a ajuda da família
na assistência do indivíduo com doença
mental é fundamental, mas para que essa
ajuda seja efetiva é necessário que a família
seja orientada e estimulada, principalmente
pelos profissionais de saúde e, nesse caso, é
imprescindível destacar que cabe à
Enfermagem
uma
parte
dessa
responsabilidade,
sempre
buscando
desenvolver um trabalho multiprofissional.
O que se espera da reforma
psiquiátrica não é apenas tirar o paciente do
hospital e devolve-lo à família. É muito mais
que isso, é o resgate da cidadania, tornandoo sujeito de seu próprio tratamento. É a
recuperação da autonomia e a reintegração à
família e à sociedade. Para que esse objetivo
seja alcançado, ainda há um longo caminho
a ser percorrido e construído.
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A reforma psiquiátrica e
implicações
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enfermeiro no programa
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REFERÊNCIA DO TEXTO
MACEDO, F. M. S.; ANDRADE, M.; SILVA, J. L. L. A reforma psiquiátrica e implicações para
a família: o papel do enfermeiro no programa saúde da família. Informe-se em promoção da saúde,
v.5, n.2. p.19-23, 2009.
1
Enfermeira. Especialista em Promoção da Saúde pelo Curso de Especialização em Enfermagem e Promoção da
Saúde com ênfase em PSF/ UFF.
2
Enfermeira. Doutora em Enfermagem pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professora Adjunta do
Departamento de Enfermagem Médico-cirúrgica da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa UFF.
Coordenadora do Curso de Especialização em Enfermagem e Promoção da Saúde/ UFF.
3
Enfermeiro. Mestre em Enfermagem (Unirio). Professor Colaborador do Curso de Especialização em Enfermagem
e Promoção da Saúde/ UFF.
Informe-se em promoção da saúde, v.5, n.2.p.19-23, 2009.
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