1 III CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL IX CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL TRABALHO PARA TEMA LIVRE Autora: Joyce Laudino da Silva email: [email protected] Graduada em Psicologia. Estagiária do Serviço de Psicologia aplicada à área Cirúrgica Hospital Universitário Antônio Pedro. O ATENDIMENTO PSICOLÓGICO NO HOSPITAL GERAL: ENTRE O SOFRIMENTO, A VIOLÊNCIA E O PODER. Resumo O presente trabalho propõe uma discussão acerca do trabalho "psi" em Hospital Geral, espaço determinado por questões institucionais e onde o discurso médico prevalece. Portanto faz-se necessário pensar às relações existentes neste contexto entre o sofrimento orgânico e psíquico, o poder da ordem médica e seus efeitos iatropatogênicos. Ao médico é imposta uma posição totalitária, submetida à exclusão, ao controle e a vigilância, baseada no cientificismo. Desse modo ele assume a posição de saber absoluto e exclusivo, subestimando e excluindo os outros saberes. Esta posição leva ao exercício de um poder, poder este coercitivo. O paciente não reconhecido como sujeito, reduzido a um órgão, é violentado, assim como através da ação médica ou da falta desta, produtoras de alterações patológicas. O atendimento psicológico no hospital geral se circunscreve no registro e intervenção das implicações psicológicas dos pacientes, mas também busca oferecer um espaço de reflexão para as equipes de saúde. Palavras-Chave: hospital geral, psicanálise, ordem médica. 2 O ATENDIMENTO PSICOLÓGICO NO HOSPITAL GERAL: ENTRE O SOFRIMENTO, A VIOLÊNCIA E O PODER. O presente trabalho tem a intenção de discutir as relações existentes no Hospital Geral entre a prática psicológica e a medicina, apontando para os atravessamentos que são conseqüências das questões institucionais. Parte-se de início do estudo acerca da relação entre o sofrimento orgânico e o psíquico, colocando o corpo entre o discurso médico e psicanalítico e apontando para a importância do atendimento psicológico neste contexto. Posteriormente o debate se circunscreve a partir da prática médica e do poder que seu próprio discurso impõe, fazendo-nos refletir sobre os seus efeitos iatrogênicos, vistos como forma de violência. Sabemos que a clínica médica trabalha a partir do sofrimento orgânico, dando um sentido, um nome e um tratamento com o objetivo de suprir a demanda que gerou a consulta. Para a medicina o corpo é uma máquina, a doença é conseqüência de um dano causado em alguma de suas peças e a tarefa do médico é consertá-la. Todavia, o sofrimento humano não se limita à dor física. A demanda biológica pode fazer florescer um enredo que diz respeito à história do paciente enquanto sujeito, abrindo uma possibilidade de intervenção psicológica. A doença pode atualizar o sofrimento, ocasionando para o paciente a produção de sintomas psíquicos, permitindo assim que a psicanálise trabalhe a partir da relação da palavra com esse corpo. É dever da psicologia ampliar a visão da enfermidade e investigar a articulação entre o sofrimento psíquico e o que se inscreve no corpo, oferecendo uma escuta que permita um reposicionamento do sujeito frente as suas questões. Uma intervenção é necessária sempre que, a partir das situações orgânicas incide algo que tem impacto sobre a vida do sujeito, acarretando para ele implicações psíquicas, mencionam Valentim e Mattos (1999). Devemos destacar que por mais que uma doença orgânica seja uma realidade, ela não é menos singular e particular para cada um. Cada sujeito se posiciona frente a ela de maneira bastante pessoal. Por isso nem todo sofrimento orgânico tem uma contrapartida psíquica. No texto “Subjetividade, sofrimento e iatropatogenia”, Loyola, Mattos e Valentim (2005) alegam que: 3 A proposta de um serviço de psicologia hospitalar constituído a partir do horizonte analítico abre espaço para a escuta de um sofrimento que certamente se situa além da dor física que marca tais circunstâncias. Sem privilegiar espaços, esta escuta se estende desde o leito do paciente até outro circuito qualquer que se apresente no contexto hospitalar, incluindo-se aí uma atenção específica à equipe de saúde, no sentido de se apreender a dimensão de impasse geradora de sofrimento que emerge, dadas as vicissitudes do contexto de trabalho, marcado pelo confronto direto com a questão da morte. (LOYOLA, MATTOS E VALENTIM, 2005, p. 1) Usualmente, quando há uma falha no tratamento fisiológico abre-se espaço para se constatar algo além do corpo, sendo de costume colocar o subjetivo do paciente como obstáculo. As variáveis psíquicas são vistas como algo que pode comprometer a realização do projeto de cura orgânica, visto que prejudicam a prática dos médicos, fazendo que alguma coisa fuja do controle dos “doutores” que detém o saber. É comum a equipe médica se dirigir ao setor de Psicologia buscando atendimento para aqueles pacientes que não admitem o diagnóstico, que não colaboram com o tratamento, e que por vezes encontram-se chorosos, “deprimidos”. Vemos essas demandas como conseqüências da incapacidade médica de lidar com algo além do biológico. E não nos cabe respondê-las com a intenção de controlar o que atrapalha o exercício da medicina, por isso devemos rever a demanda que nos remetem, não nos dispondo a aplicar técnicas para calar a angústia, tamponar a depressão como nos é solicitados. Conforme apontam os autores Mattos e Rocha no texto “O ato médico e a subjetividade” (2008): O psiquismo só é tomado como algo que eclode indevidamente em circunstâncias consideradas inapropriadas, criando transtornos para a ordem médica (...) vindo a contaminar o projeto médico asséptico de cura orgânica. Somente quando fracassar o ideal médico de tratar apenas um órgão, em ligação restrita e direta, é que se abre espaço, a partir dessa sempre experiência traumática, para se constatar a dimensão subjetiva e uma demanda a outras disciplinas só aí se faz presente de modo pelas conseqüências do trauma. Em especial modo a psicologia é assim convocada a intervir. (MATTOS e ROCHA, 2008, p.69). Segundo os autores essa demanda ao campo “psi” é de natureza sedativa a fim de restaurar a relação entre o médico e o seu objeto de trabalho; o órgão. Contudo, nós não trabalhamos com a lógica do controle e da vigilância, e não tratamos de forma restrita, remediando. Nossa tarefa é fazer o sujeito emergir através da palavra. A partir do momento em que consideramos que algo pode acarretar uma interferência no corpo biológico ou que uma enfermidade pode acarretar questões sobre a vida do sujeito, é 4 que um novo campo de escuta é passível de ser sustentado. A escuta que propomos tem como base a ética, é isso que a diferencia da escuta do senso comum. O trabalho do psicólogo em um Hospital Geral, só se sustenta pela aposta de que um sujeito com uma determinada doença deve e pode ser ouvido. É através do encontro do sujeito com suas próprias palavras na transferência que ele poderá retificar sua posição traçando novos encaminhamentos para a sua vida. Este é o fundamento da escuta diferenciada: ouvir e intervir permitindo que as questões do paciente se aflorem permitindo a ele se reposicionar frente o outro, si mesmo e a vida. Nosso trabalho é fazer as questões do sujeito emergir e não calá-las como pede o médico. Eticamente convocamos o sujeito a aparecer, ou seja, fazemos o sintoma tomar uma via do que está precisando ser dito. O trabalho psicológico fundamentado na psicanálise não diz respeito à transposição do dispositivo analítico para a instituição hospitalar. Constitui-se em uma abordagem clínica do sofrimento humano, baseada na escuta sob transferência que tem como objetivo intervir em relação às implicações psicológicas, e possibilitar uma leitura dos aspectos psicopatológicos da instituição e da intervenção médica, permitindo que haja um espaço de reflexão para as equipes de saúde, enfatizam Valentim e Mattos (1999). O objetivo maior de nosso trabalho é buscar investigar e definir os limites e possibilidades de uma prática psicológica em hospital geral, referenciada no discurso psicanalítico; e, assim, criar possibilidades clínicas do sujeito engendrar alternativas ao seu viver. Nesse sentido, não estamos nos referindo, aqui, a um processo analítico nos moldes daquele que se desenvolve no “setting” analítico, conforme usualmente o conhecemos. Cremos ser possível produzir efeitos de análise, ou seja, intervenções e pontuações que coloquem o sujeito frente a possibilidades outras de repetição, onde os fatores constituintes de seu projeto de sofrimento, capitaneados por seu sintoma, quedem, por se tornarem fragilizados, e se permitam ao confronto que redunde em novas formas deste sujeito pavimentar a trajetória de seu viver (...) (VALENTIM e MATTOS, 1999, p. 15). Muitos consideram a prática psicanalítica neste espaço restrita devido às condições institucionais. Há uma série de fatores que particularizam o atendimento psicológico no Hospital Geral, como: o tempo das sessões, o local e a possibilidade de cada sessão ser a última, devido alta ou óbito. Neste contexto os atendimentos não ocorrem como no “setting”, eles são feitos nas enfermarias, corredores da emergência, CTI, locais que não permitem privacidade, podendo a consulta ser interrompida a qualquer momento por algum membro da equipe de saúde, ou até mesmo o paciente do leito ao lado. Trabalhamos no sentido que cada sessão é única, visto que não sabemos se encontremos o paciente no próximo dia. 5 A psicanálise instaurou em torno do corpo um discurso diferente do médico, assim como instaurou outra metodologia e outra clínica. Constitui-se como um processo terapêutico que não se baseia no eventual desaparecimento do sintoma no sentido médico. Um sintoma para a psicanálise não deve ser confundido com o sintoma médico, nem com o lugar que esse discurso dá ao sintoma no tratamento. Na análise não é raro que os pacientes dirijam-se ao analista como se dirigem ao médico, esperando ver seu sofrimento e sintomas inscritos em um discurso capaz de torná-los inteligíveis para eles. Ao contrário da clínica médica, a psicanálise, sustenta a demanda durante todo o processo. Essa demanda que se mantém, é o que levará a uma pesquisa do inconsciente, capaz de construir elos entre a história do paciente e a sua vida atual. O corpo que é anunciado pela psicanálise não se confunde com o organismo biológico e não obedece às leis da distribuição anatômica dos órgãos e dos sistemas funcionais, objeto de estudo e intervenção da medicina. Ele se apresenta como palco onde se desenrolam as relações entre o psíquico e o somático. A teoria de Freud evidencia que o somático (conjunto das funções orgânicas), é habitado por um corpo atravessado pela pulsão e ligado às leis do desejo inconsciente. São essas inscrições que conferem ao corpo um lugar na teoria psicanalítica, como refere-se Fernandes (2003): Enquanto o corpo biológico obedece às leis da distribuição anatômica dos órgãos e dos sistemas funcionais, constituindo um todo em funcionamento, isto é, um organismo, o corpo psicanalítico obedece às leis do inconsciente, constituindo um todo funcionamento coerente com a história do sujeito. (FERNANDES, 2003, p. 110) O corpo psicanalítico encontra seu lugar não só em uma anatomia e uma fisiologia, mas em uma anatomia singular, que se constrói a partir de um cenário fantasmático de cada um. Encontra-se nas manifestações objetivas do corpo biológico as ressonâncias desse outro corpo, portando vários sentidos e significados, em função desse cenário fantasmático. É isso que faz do corpo biológico um corpo-linguagem, aberto à psicanálise, diz Fernandes (2003). Como aponta a autora, a inovação freudiana foi demonstrar como esse corpo que nos identifica a nós mesmos e que não equivale imediatamente a um corpo próprio, vai sendo construído à custa do encontro com o outro. Freud, no desenvolvimento de sua investigação, foi destacando a presença do corpo na experiência analítica, bem como os impasses e as possibilidades de o sujeito ter acesso a ele. No texto “O ego e o id”, Freud (1923) menciona que a dor orgânica aparece relacionandose diretamente com a dor anímica, atraindo nossa atenção para o corpo, dando acesso ao 6 conhecimento dos órgãos, que nos permite uma representação do mesmo sob o signo de um sofrimento que nos afeta. A dor também parece ter um papel, e a maneira como adquirimos um novo conhecimento de nossos órgãos por ocasião de doenças dolorosas talvez seja um protótipo da maneira como, de forma geral, chegamos à representação de nosso próprio corpo. (FREUD, 1923, p.270) Para a medicina o corpo é posto numa condição em que só lhe cabe se submeter aos ideais de manipulação e prescrição, longe de qualquer perspectiva que possa comportar sua articulação com outras dimensões humanas, em especial, à subjetiva. O médico vê o sujeito como um corpo orgânico sem nada além, aplicando técnicas para curar a enfermidade, muitas vezes sem ao menos ver de onde ela se origina. Não é de todo irrelevante lembrar o fato em que um paciente 1 de setenta e cinco anos chegou ao hospital sem movimentar as pernas, e a equipe da neurologia sem antes de concluir os exames, disse ao paciente e a sua família que ele não voltaria a andar. Não houve um diagnóstico preciso da doença e sua etiologia, o paciente foi colocado na rota da morte antecipadamente por aqueles que deveriam ter tratado da sua doença. As questões que perpassam a relação médico-paciente originam-se do próprio saber da medicina. Saber este totalitário que muitas vezes prejudica a sua prática, pois é devido a ele que o médico assume a posição de saber absoluto, subestimando e excluindo os outros saberes. Essa posição leva ao exercício de um poder coercitivo, que atravessa e se coloca acima do médico, impondo uma posição totalitária, submetida à exclusão, ao controle e a vigilância. Ele detém de todo o saber o que justifica sua postura onipotente. Subordinado à ordem médica, o próprio médico é desligado enquanto sujeito, sendo excluída também a sua subjetividade. A ordem que o atravessa está além da sua pessoa. Como nos diz Clavreul (1983): É inexato dizer apenas que a medicina despossui o doente de sua doença, de seu sofrimento, de sua posição subjetiva. Ela despossui, do mesmo modo, o médico, chamado a calar seus sentimentos porque o discurso médico exige. O mesmo tempo que o doente, como indivíduo, se apaga diante da doença, o médico enquanto pessoa também se apaga diante das exigências de seu saber. A relação “médico-doente” é substituída pela relação “instituição médica-doença”. (CLAVREUL, 1983, p. 49). 1 Caso apresentado no seminário teórico-clínico em 31 de março de 2008 no Hospital Universitário Antônio Pedro pela autora Joyce Laudino. 7 Os médicos reagem como se quanto maior for à distância melhor é o desempenho da técnica médica. Por isso que não se relacionam com o doente e sim com a doença. Havendo uma diferença em relação à posição que se toma frente à doença, pois o psiquismo do paciente é afetado, já o médico não leva em consideração os efeitos que não são de ordem fisiológica, pois para ele a subjetividade é dispensável. A moléstia é o seu discurso, não se leva em conta o seu portador, a única importância é o enunciado da doença e o tratamento. A medicina tem como característica um discurso que se afilia a tradição cientificista, positivista. Invoca a ciência porque esta é sinônimo de verdade, é objetiva. Entretanto não há um saber absoluto, como a medicina impõe para si própria. O médico se coloca na posição de saber e poder frente ao que interessa - a doença -, excluindo tudo que não é objetivo. O mito da neutralidade científica assim é acolhido. Conforme o autor aponta em seu texto “A ordem médica”: (...) a exatidão do saber médico não é a verdade. Ela é ao contrário desta: constituindo o que faz seu objeto (a doença) como sujeito de seu discurso, a medicina apaga a posição do enunciador do discurso que é a do próprio doente no enunciado do sofrimento, e a do médico na retomada desse enunciado no discurso médico. É aí que teremos de fazer ressurgir a verdade, enquanto ela está mascarada pela própria objetividade científica. (CLAVREUL, 1983, p. 50). O campo médico é ideológico, e somos nós os responsáveis por essa ideologia. A idéia de verdade da medicina que coloca o médico numa posição onipotente é forjada pelos próprios pacientes que entregam sua vida nas mãos deles. O saber que compete ao médico é pautado na crença e não no saber científico. (...) a Ordem se impõe por ela mesma. Ela está sempre presente em nossa vida, desde nosso nascimento numa maternidade até a nossa morte no hospital, desde os exames pré-natais até a “verificação”, na autópsia. Mais ainda que a eficácia da medicina, é sua cientificidade que constitui lei, pois ninguém contesta que o saber médico, pelo menos por uma parte, seja verdadeiro e verificável. (CLAVREUL, 1983, p. 40). Baseada no ideal positivista que busca conhecer, prever e controlar, a hegemonia do saber médico torna seu exercício uma prática iatrogênica. O médico tem um ideal de cura orgânica, por isso intervém no organismo, através da vigilância, controle, produzindo por si mesmo a Iatrogenia, pois exclui a condição do doente enquanto sujeito. Essa coerção produz erros dentro da prática da medicina, podendo ser perigosa e nociva ao que se propõe. A forma pela qual a medicina busca tratar de seus pacientes pode ser compreendida como uma forma 8 de violência governada pelo exercício de poder imposto pelo seu discurso. O médico acaba usualmente, trabalhando não só contra o paciente, quando implementa condutas iatrogênicas, mas também contra si mesmo. Para Quinet (1998): Por outro lado, condicionada pelo discurso da ciência, a medicina, foraclui de seu âmbito a dimensão do sujeito por lidar com um real que não é o mesmo real da psicanálise. Enquanto para esta o real em jogo é relativo à castração e à falta do Outro, o real para a ciência é tudo aquilo que ainda não foi simbolizado por seu discurso. O projeto da ciência de colonizar todo o real com seus significantes lhe conferem um aspecto de loucura ao rejeitar de sua esfera qualquer subjetividade. Não há nada na própria ciência, e podemos dizer, na própria Medicina, que possa deter seus avanços. (QUINET, 1998) Pereira e cols (2000) mencionam que o termo iatrogenia deriva-se do grego e significa qualquer alteração patológica provocada no paciente pela má prática médica. Os autores consideram dois tipos de iatrogenia: de ação que se refere à imprudência ou imperícia médica gerada através da má utilização de medicamentos, erros na prescrição, má interpretação de informações clínicas, exames e relação médico-paciente. E a iatrogenia de omissão que é compreendida como a falta de ação do médico, sendo assim um ato negligente. Segundo os autores, os médicos não agem devido ao temor dos efeitos colaterais dos procedimentos. Entretanto, a iatrogenia não está somente ligada à sua competência e formação, mas também advém na dimensão subjetiva. É de extrema importância atentar para outras formas de violência presentes nos hospitais, como o mau atendimento oferecido aos pacientes, as filas, o tempo da consulta que na maioria das vezes não permite que um exame clínico seja realizado com eficácia, a falta de leitos e materiais necessários para o tratamento. Mattos e Rocha (2008) alertam que a iatrogenia é muitas vezes relacionada à estatística, servindo assim como justificativa para o médico recalcar as conseqüências do seu ato. Ou seja, quando um paciente morre depois de sofrer um dano ao ser operado, o médico lamenta, apontando que infelizmente o paciente teve o azar de cair na margem de erro. Abrevia-se assim a vida, segregando, excluindo, colocando um sujeito como um número na faixa percentual de óbitos devido a um erro. Por sermos todos mortais, essa lógica exclui e antecipa muitas vezes o término da vida. Isso expressa o descaso e o desinvestimento na reflexão do próprio ato. 9 Atualmente, a formação da medicina é mais restrita um órgão, trata-se de uma visão restritiva do especialismo. A especialidade refere-se a um olhar máximo sob um mínimo espaço do organismo. Quanto maior a assepsia do olhar mais produtivo será o tratamento. Outro fator a ser destacado é o avanço tecnológico que contribui para o afastamento na relação médico-paciente, como citam Mattos e Rocha (2008). Os exames contêm informações precisas que independem do médico para decifrá-lo, o próprio paciente pode saber se a sua taxa de colesterol está na margem ideal. As operações realizadas por robôs enfatizam sua ausência de erros devido à precisão, o que mais tarde por servir para alegar a ausência de médicos e a presença de técnicos para gerir as máquinas. A investigação e tratamento das doenças orgânicas devem permanecer como competência da medicina, pois é clara a importância da atuação médica, mas se a dimensão humana não for enfatizada, a tecnologia desempenhará melhor a função técnica, a qual o médico restringe a sua participação. (...) não se pode deixar de concluir que o próprio médico, em certa medida, é prisioneiro daquilo mesmo que o constitui como tal. Por conseguinte é tarefa árdua, e ao mesmo tempo delicada, o médico a perceber-se daquilo que o determina e da configuração dos efeitos que produz a partir da posição que é levado a ocupar na sua prática. (MATTOS, 1990, p. 2) O discurso da medicina não facilita a prática clínica e os médicos ainda não se deram conta dos efeitos de seus atos. Portanto, deve-se implantar a reinvenção do ato médico na direção do reconhecimento da amplitude do território humano que perpassa seu vínculo com o paciente. O que está em jogo é a existência do sujeito no discurso médico, e como esse discurso incide sobre o sujeito. Pereira e cols (2000) afirmam que os médicos devem ter como objetivo a prevenção das doenças iatrogênicas, que implica em se pensar o exercício da medicina, abrindo espaço para a reflexão, afim de reconfigurar sua posição frente a sua prática. De acordo, Clavreul (1983) expõe que: “Se a medicina deve ser renovada, cabe aos médicos fazê-lo.” (p.45). Cabe a nós enquanto profissionais da área “psi" responder através de um posicionamento ético que leve em consideração estas questões. É nosso desafio e tirar o médico da posição de gozo intrínseca ao seu saber, que por vezes atrapalha a sua prática, permitindo que a crença na ordem médica seja desconstruída a partir de reflexões acerca do seu próprio ato. Nossa intervenção neste contexto gera certa inadequação, pois a escuta produz efeitos, transformações subjetivas que faz com que o sujeito mude de posição. Trata-se de um novo olhar sobre as práticas do campo em questão. Salvar a vida é mais que tirar o 10 sujeito da falência orgânica, é também apontar para as questões do saber médico em sua relação com o paciente, fazendo-nos pensar sobre nossa prática clínica que deve estar atenta para a forma como a prática médica se estabelece. A Psicopatologia Fundamental propõe uma multidisciplinaridade ao tratamento do sofrimento humano, produzindo uma clínica em que a dimensão subjetiva está presente junto à dor que irrompe no corpo. Subjetividade e sofrimento entrecruzam-se no hospital geral, produzindo um cenário onde a criação e produção de atos clínicos torna-se crucial. É nosso dever analisar os aspectos essenciais na atuação do psicólogo em Hospital Geral e pensar novas formas de sustentação do dispositivo analítico, recriando a nossa prática de acordo com as questões da instituição. 11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CLAVREUL, J. A ordem médica. Poder e impotência do discurso médico. São Paulo: Brasiliense, 1983. 40 a 50. FERNANDES, M.H. Corpo (coleção psicanalítica/ dirigida por Flávio carvalho Ferraz). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2003. FREUD, S. (1923). O ego e o id. In: ___: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980. vol. XIX. LAUDINO, J. Caso Antônio. Trabalho apresentado no Hospital Universitário Antônio Pedro em Niterói no dia 31 de março de 2008 – não publicado. LOYOLA, V. F., MATTOS, P. R., VALENTIM, J. H. Subjetividade, sofrimento e iatrogenia. Publicado em: Latin-American Journal of Fundamental Psychopathology, 2005. MATTOS, P. R. O trabalho Psi em Hospital Geral: uma leitura possível. Estudos em Psicologia Hospitalar. Niterói, UFF, Cadernos do ICHF, n. 27, 1990. MATTOS, P. R. O Psicólogo e o Hospital: Trabalho ou Ilusão? Pulsional – Revista de Psicanálise, São Paulo, vol. XII, n. 120, 1999. MATTOS, P. R., ROCHA, M. S. O ato médico e a subjetividade. Pulsional – Revista de Psicanálise, São Paulo, vol. XI, 2008. PEREIRA e Cols. Iatrogenia em Cardiologia. São Paulo. Arquivo Brasileiro de cardiologia, vol 75, n.1, 2000. QUINET, A. As novas formas do sintoma na medicina. Trabalho apresentado no VII encontro Brasileiro do Campo Freudiano realizado em São Paulo de 18 a 20de abril de 1998. VALENTIM, J. H., MATTOS, P. R. Psicanálise e hospital geral: algumas considerações sobre o serviço de psicologia da área cirúrgica do hospital Universitário Antônio Pedro. Pulsional – Revista de Psicanálise, São Paulo, vol. XII, n. 120, 1999.