Da Crítica Genética à Tradução Literária: o caminho da (re) escritura Marie-Hélène Paret Passos (PUCRS) [email protected] Resumo: Por que e de qual maneira a crítica genética pode ser uma forma de leitura reveladora no processo tradutório de um texto literário? É a pergunta que guia meus passos nesta pesquisa. A partir do estudo genético do prototexto do conto inédito de Caio Fernando Abreu: “Anotações para uma estória de amor”, analiso o processo escritural do autor, isto é, procuro entender como o autor criou, estruturou e textualizou sua narrativa. Isso, no fito de embasar meu processo tradutório nesse saber genético que um texto fixo não pode revelar. Almejo, assim, esboçar as bases de uma interdisciplinaridade entre crítica genética e tradução literária. Palavras-chave: crítica genética, tradução literária, escritura, Caio Fernando Abreu Résumé: Pourquoi et de quelle façon la critique génétique peut-elle être une forme de lecture révélatrice dans le processus de traduction d’un texte littéraire? C’est la question qui guide mes pas dans cette recherche. Á partir de l’étude génétique de l’avant-texte du conte inédit de Caio Fernando Abreu, Anotações para uma estória de amor, je me propose d’analyser le processus d’écriture de l’auteur, cherchant à comprendre comment ce dernier a créé, structuré et textualisé sa narration. Ceci dans la perspective d’appuyer mon processus de traduction sur ce savoir génétique qu’un texte fixe ne révèle pas. Ainsi, j’essaie d’ébaucher les bases d’une interdisciplinarité entre critique génétique et traduction littéraire. Mots-clé: critique génétique, traduction littéraire, écriture, Caio Fernando Abreu No trabalho de pesquisa que iniciei em 2004i e que encerrei em 2008 com uma defesa de tese, procurei estabelecer uma interdisciplinaridade entre crítica genética e tradução literária. Eu tinha várias perguntas para serem, se não respondidas, pelo menos pensadas, sendo a principal: será que o acesso ao manuscrito do autor ajudaria o tradutor no seu processo de tradução? Isso posto que um texto fixo não revele nada do processo criativo e o manuscrito sim. Por outro lado, se é possível reunir documentos de processo de um autor porque não seria possível reunir documentos de processo de um tradutor, para analisar o seu percurso criativo? Então, tanto a passagem prévia pela criação alheia como a passagem pelos rascunhos do tradutor se dá recorrendo à crítica genética e isso de várias formas: para preparar a tradução, mostrar o processo de criação de tradutor, mas também como ferramenta de avaliação da tradução. Por outro lado, porque não aproveitar para tentar revalorizar o trabalho do tradutor sempre visto de forma suspeita? Pareceu-me possível aplicar ao manuscrito do tradutor o mesmo tipo de análise que se aplica ao 2 manuscrito do escritor, para demonstrar que o tradutor é um escritor, que ele desenvolve um processo criativo que deixa rastros, e que manuscritos e rascunhos de uma tradução produzem as mesmas características que os rascunhos de um texto dito original, isto é, que podem ser constituídos em prototexto. (Esse conceito de original é assaz dúbio em tradução. De fato, não podemos esquecer que é a tradução que faz um texto se tornar um original; portanto, um original é sempre original après coup.) Quando utilizado no campo da crítica genética, um original sempre pertence à fase pré-editorial, isto é, é o original no sentido da prova original (primeira) que o escritor remete ao editor com a anotação bon à tirer (bom para impressão) e que mesmo assim, raramente é publicado tal qual, sempre vêm as anotações do revisor e do escritor. Então, o cerne da pesquisa almeja demonstrar que o tradutor é um escritor e que é passando pela crítica genética que se pode chegar a essa conclusão, posto que seja na crítica genética que se pode obter provas do seu processo de trabalho. Sem esquecer que o acesso aos manuscritos de uma tradução pode ser uma pista para a avaliação e a crítica da tradução. A pergunta é: por que, e de qual maneira, a crítica genética pode ser uma forma de leitura reveladora no processo tradutório de um texto literário? É uma pergunta que faz refletir sobre o processo tradutório como sendo um processo criativo remetendo ao ato de escrever, isto é, ao ato de criar um discurso próprio a partir de um discurso alheio. Esta criação do discurso, representada pelo “fazer”, pelo “escrever” da tradução em processo, não é uma simples técnica linguística de passagem de uma língua para outra, é uma escritura, ou uma (re)escritura, oriunda do espaço recôndito do pensamento em criação. Parto da afirmação de Henri Meschonnic (1999, p. 459) dizendo que “traduzir é traduzir somente quando traduzir é um laboratório de escrever”ii (tradução minha), afirmação corroborada por Serge Bourjea (1995, p. 7) quando diz que “traduzir a literatura como tentar compreendê-la geneticamente a partir de seus primeiros rastros ou balbucios, é necessariamente e em muitos sentidos (re) escrevê-la”iii (tradução minha). A partir dessas reflexões, me parece possível entrar nesse “laboratório do escrever” pela abordagem genética do prototexto do texto a ser traduzido. Por outro lado, se o geneticista entrar no laboratório da escritura tradutória, ele encontrará o texto em devir do tradutor, sobre o qual poderá se debruçar exatamente como se debruçaria sobre o texto em devir do escritor, para desvelar o processo de criação do tradutor. Essa abordagem genética do prototexto da tradução é fundamental, pois ajuda a demonstrar que o tradutor não é um simples “passador”, e sim um verdadeiro criador, um autor 3 singular que se inscreve no seu discurso. O tradutor está, e escreve, de dentro da linguagem e de dentro de sua língua; assim, não é um mero intermediário descartado após a comunicação. Ele está de forma plena e contínua na literatura. Nesse sentido, acredito que a crítica genética tem, também, um papel importante a desenvolver no campo da crítica da tradução. Ela me aparece como uma chave na tentativa de rever o pressuposto, dizendo que, por definição, toda tradução é uma “má” tradução, pois a tradução perfeita, que seria o original redobrado, não existe. Consequentemente, perdura essa tendência a avaliar com ar de suspeita o texto traduzido e o tradutor. O meu primeiro objetivo é duplo. De um lado, fazer a análise genética das três versõesiv manuscritas (digitoscritos) do conto de Caio Fernando Abreu “Anotações para uma estória de amor”, fixar o texto a partir da versão 03,v tentando resgatar o processo de construção da estrutura textual, assim como o seu fazer, em outros termos, tentando resgatar o efeito que esse “protoenunciado”vi produz. É esse mesmo fazer que procuro perenizar, no texto fixado, assim como, posteriormente, no texto oriundo da tradução, no intuito de fazer perdurar o movimento textual originário. O segundo objetivo, igualmente duplo, consiste na tradução do texto fixado, seguida da abordagem genética do terceiro texto, isto é, do prototexto do texto traduzido, no intuito de demonstrar que nele são presentes as marcas características de um prototexto. O terceiro texto No seu pequeno livro Sobre a tradução, Paul Ricœur sugere que, para avaliar o texto traduzido, seria preciso um terceiro texto, ele diz: Porque não existe critério absoluto da boa tradução; para que tal critério seja disponível, seria preciso poder comparar o texto de partida e o texto de chegada com um terceiro texto que seria portador do sentido idêntico que, supostamente, circula do primeiro para o segundo […] Mas não há terceiro texto entre o texto fonte e o texto de chegada (2004, p. 39) (tradução minha)vii Dizendo isso, ele me parece abrir a porta para a crítica genética. De fato, esse espaço vazio de texto pode ser preenchido pelo prototexto da tradução, que funcionará como esse texto terceiro que não existe, posto que o prototexto também não exista, e ele não existe por existir “a mais”, em excesso. Isto é, ele é um texto além do texto publicado, é o transbordamento da escritura literária. Ele não se situa no mesmo plano, contudo, está no mesmo espaço literário. De fato, nesse espaço literário, o manuscrito do 4 tradutor é a terceira margem do texto, uma margem que hospeda a essência do texto fonte e a do texto de chegada, na essência de um texto em devir, em estado nascente, balizado pelos rastros da criação do tradutor-escritor deixados pelas incessantes idas e vindas entre o pensamento e a linguagem de quem “traduscreve”.viii E, mais que uma margem de passagem de um texto para outro, ele é uma margem de hospedagem, nela transluz o que Paul Ricœur qualifica de “hospitalidade linguageira” (hospitalité langagière). A análise do terceiro texto permite ter acesso ao “não sabido” (WILLEMART, 1999) do trabalho tradutório, observar o seu fazer nos rastros de sua criação. Permite descobrir que o texto traduzido foi produzido pelas campanhas de escritura de um escritor-scriptor.ix Essa aproximação em direção ao tradutor, ao seu prototexto, pode constituir uma fase fundamental no âmbito da crítica da tradução, para evidenciar que está definitivamente descartada a ideia da transparência do tradutor e que ele é, de fato, autor à part entière, isto é, completo e legítimo. Assim, ao examinar os rascunhos da tradução, é possível constatar que todas as características que fundam um prototexto estão reunidas. Rascunhos e manuscritos da tradução apresentam uma escritura em statu nascendi, apontando várias direções, indicando várias possibilidades. Estão cobertos de rasuras, substituições, cancelamentos ou acréscimos; de listas paradigmáticas de palavras possíveis, ou não; de correções e reescrituras manuais, testemunhos de campanhas de releitura modificadora; de metalinguagem atestando que houve reflexão, diálogo interior do tradutor. Todas essas marcas genéticas evidenciam a presença do scriptor do tradutor. Portanto, o texto literário traduzido possui componentes similares àqueles presentes no processo de criação literária ficcional. Assim, a análise genética do terceiro texto revelará a hesitação, a certeza, o dilema na escolha de palavras, o arrependimento, as mudanças, enfim, a escritura em processo, do tradutor. Essa abordagem poderá também embasar uma crítica da tradução. Então, voltando ao programa da pesquisa, estavam definidos os objetivos. Mas, em julho de 2008, surgiu a ideia de retomar a tradução seguindo um novo caminho: traduzir cada versão na sua integralidade e comparar os resultados com os da primeira fase tradutória que era feita a partir do texto fixado. Realizou-se a discussão dos dois processos tradutórios, assim como a avaliação do papel do estudo genético prévio do prototexto, nesse mesmo processo tradutório. Essa discussão foi a ilustração possível da afirmação de Meschonnic (1973), evidenciando a necessidade de realizar primeiro a análise do que um texto faz antes de traduzi-lo. 5 O ponto comum entre tradução e escritura é que, assim como o texto literário, o texto traduzido não se constitui de uma única vez, de um único jorro. Ele passa por uma trajetória criativa, de composição, tentativas, dúvidas, hesitações, releituras e reescrituras. O texto oriundo de uma tradução é, em seu processo de emergência e de criação, idêntico ao texto literário. A partir daí, a escritura tradutória pode ser abordada pela análise genética. Trabalhei com as três versões do conto inédito de Caio Fernando Abreu acima citado. Analisei a integralidade das três versões, posto que se tratasse de entender um movimento escritural, seu fazer e seu efeito, no intuito de amparar-se nele no processo tradutório. Portanto, me preocupei em compreender “o como” de um fazer. Neste sentido, cada descrição minuciosa de cada uma das versões visava à desconstrução deste fazer para entender o funcionamento do texto em estado nascente. Pela análise genética anterior ao processo tradutório, entendi a dinâmica do texto, a tendência escritural seguida, as modificações, os acréscimos, todos redundando na busca de um equilíbrio na alternância de um diálogo textual entre monólogo e diário. Com efeito, o conto é estruturado em torno de dois tipos de texto, monólogo interior e diário, que estabelecem entre si uma sorte de diálogo. Iniciado o processo tradutório, concentrei-me no texto que eu estava “traduscrevendo”. Trabalhei de forma habitual, lendo, escrevendo, fazendo um primeiro jorro literal, deixando as palavras problemáticas em português, assinalando as dúvidas com “?”, ou escrevendo várias possibilidades no fluxo escritural. Contudo, quando surgia uma dúvida, recorria ao manuscrito da versão 03, a versão a partir da qual foi fixado o texto. É pertinente sublinhar que, quando o fluxo tradutório interrompia-se, na consulta ao manuscrito, eu encontrava uma rasura. Portanto, ocorria uma pausa na leitura-escritura tradutória no mesmo lugar em que o scriptor havia interferido. É provável que essa suspensão escritural esteja ligada ao tipo peculiar da leitura inerente ao processo de tradução, mas, sobretudo, ela confirma a asserção de Willemart quando diz que o que está escondido sob a rasura assinala um não-dito do texto publicado e que, por isso: “sustento que o texto publicado é a metonímia do manuscrito” (2005, p. 20), asserção compartilhada por Almuth Grésillon, quando diz que as rasuras são: “rastros perdidos que, todavia, permanecem, sobrecargas que não saberão eliminar o que jaz embaixo, sobrevivência, co-presença do antes e do depois, eis o estatuto paradoxal da rasura” (2008, p. 91). Essa foi uma primeira constatação. Na segunda fase tradutória, traduzindo versão por versão, resolvi iniciar diretamente a tradução sem antes reler o que já havia traduzido. A escritura tradutória 6 fluiu muito mais que durante a primeira fase. No entanto, não é porque se lembrava do texto, pelo contrário, parecia que se tratava de um texto nunca visto. As interrogações que pontuavam os rascunhos da primeira fase foram quase “desvendadas” no fluxo escritural. Apesar de não lembrar-me das palavras, mas de suas sonoridades, o texto parecia familiar, com sensação de déjà vu. Isso, não na leitura do português, mas na leituraescritura do francês. Eu diria que trabalhar diretamente no manuscrito possibilitou leitura e releitura “PENSAMENTO POR PENSAMENTO”, como escreveu Guimarães Rosa em uma carta a seu tradutor alemão (2003, p. 116); e não é por acaso que ele escreveu com letras de forma. De fato, a sensação de conviver com o “pensamento” de Caio Fernando Abreu foi patente quando eu traduzia diretamente a partir dos manuscritos, o que não aconteceu com o texto fixado, porque a análise genética havia sido feita numa fase anterior, já distante. Iniciado o processo tradutório, a cada suspensão da escritura tradutória, eu recorria ao prototexto para dar um suporte visual à dúvida, posto que o texto fixado não falasse por si só. Portanto, acabei desenvolvendo o processo de tradução, seguindo o texto fixado e o manuscrito, principalmente o da terceira versão. Mas, quando não conseguia uma solução satisfatória, recorria às versões 01 e 02. Assim, quando surgiu a ideia de traduzir cada versão diretamente do manuscrito e iniciou-se o que chamo de segunda fase tradutória, dei-me rapidamente conta que a identificação imediata da rasura, e, portanto, da mudança no escrito, refletia-se no processo de escritura tradutória, no sentido de, por estar imersa no movimento escritural, ou no seu resultado, eu refazia em francês, o raciocínio da mudança e elaborava ao mesmo tempo a nova consistência. De certa forma, encontrava-me nessa “mímica genética” evocada por Berman, em seu livro L’épreuve de l’étranger (1995), e que, segundo ele, sustenta o ato de traduzir, pois permite uma penetração da individualidade alheia. A partir daí, a leitura passava por uma sorte de processamento duplo, de compreensão e reelaboração do movimento escritural, antes de redundar em escritura. Mecanismo que, na primeira fase, era diferido por passar, antes, pelo texto fixado. Como já salientei, no texto fixado, quando a tradução era suspensa, ao recorrer ao manuscrito, encontrava quase sempre um rastro criativo. Portanto, parece-me que traduzir com acesso ao manuscrito e a partir do manuscrito aumenta o grau de autonomia do tradutor e facilita suas negociações. De fato, sabendo, principalmente, o que e como o escritor-scriptor modificou o seu já escrito, permite ao tradutor embasar sua reescritura em um não-sabido que, mesmo se ele aflora no texto 7 fixado, não se revela em sua consistência factual. Assim, me senti mais próxima da intentio operis, isto é, do que havia sido feito pelo escritor. Na segunda fase de tradução, a sensação foi ampliada, o que possibilita dizer que, ao traduzir a obra em processo, traduz-se de dentro, quase dentro do pensamento, como o desejava Guimarães Rosa. Portanto, posso concluir que, de fato, a crítica genética pode ser uma forma de leitura reveladora no processo de tradução de um texto literário porque ela dá a possibilidade de testemunhar as mudanças que o escritor, na sua luta com e contra as palavras, fez. Aí estão as chaves da criação de uma tradução-texto, pois entendo que, para fazer o que o texto faz, é preciso refazer o percurso das mesmas mudanças, passar pelo mesmo processo, e (re)produzi-lo, isto é, recriá-lo. É nesse sentido que é possível compreender e não interpretar, posto que interpretar seria dar uma resposta. Então, para o tradutor, colocar seus passos nos passos do autor, como disse Valéry, seria refazer o caminho genético do pensamento visível e, portanto, poder cotejar pensamento por pensamento, como o intuía e o desejava Guimarães Rosa. Em um segundo momento, a análise dos rascunhos da tradução mostrou que eles apresentam o mesmo aspecto que os rascunhos do prototexto do texto traduzido. Eles revelam o processo atravessado pelo tradutor à procura da textualização, da organização do seu discurso. Evidenciam as dúvidas, os vários caminhos possíveis, as recusas, as tentativas; em outros termos, a própria luta do tradutor com e contra as palavras, o que implica a existência do scriptor do tradutor. Quando traduzir é fazer Enfim, nessa procura de interdisciplinaridade, fiz uma última pergunta: o que um manuscrito faz e de que forma ele faz? Responder constituiria parte do trabalho preparatório ao processo de tradução? O linguista J. L. Austin afirma: Quando dizer é fazer; S. Fish: Quando ler é fazer, e Almuth Grésillon: Escrever é fazer. Analisando o fazer do prototexto, tentei avaliar se e como a abordagem genética prévia poderia interferir no processo tradutório, e, se seria possível dizer: Traduzir é fazer? A análise das rasuras e de outras marcas modificadoras foi minuciosa e detalhada posto que a análise genética prévia constituísse o trabalho preparatório à tradução. Então, precisava estudar toda marca para entender sua função e aproveitar esse saber no processo tradutório. Depois, procurei evidenciar que a análise do terceiro texto 8 do tradutor pode constituir-se em objeto significativo para acompanhar o movimento do processo tradutório e a emergência do texto traduzido. Assim, tendo acesso à cena da escritura-tradutória, é possível, mesmo que parcialmente, entender as escolhas, renúncias, dúvidas e incertezas de quem traduz. Dessa forma, parece-me válido dizer que é na análise desse conjunto de atitudes que se localiza o cerne da avaliação de uma tradução. De fato, quando se trata de avaliar uma tradução literária é preciso delimitar o que será avaliado. Geralmente é aí que ressurge o demônio da norma. Nesse caso, avaliar não passa de um controle de “qualidade” para receber a estampilha “bom francês”, “bom português” etc. Controlar a “qualidade” limita-se a comparar com a norma. Seguindo esse caminho, parece que a avaliação perdeu-se, assim como o texto de partida. Daí a homogeneidade da literatura em tradução e o grito dos tradutores que fazem da ética um critério fundamental. Por outro lado, os próprios autores, quando podem, irritam-se com tal deturpação e criticam os tradutores. É o que faz, por exemplo, Milan Kundera: “Inúmeras vezes fiquei irritado com traduções traiçoeiras sem perceber que os responsáveis não são necessariamente os tradutores” (tradução minha).x Em paralelo, está o testemunho, para não dizer o grito, do tradutor francês Pierre Blanchaud falando por todos os tradutores, nesse depoimento: Escritores estrangeiros criticam os tradutores franceses por edulcorar a expressão — e daí o conteúdo — de suas obras. É preciso que esses autores saibam que essas edulcorações não provêm, forçosamente, dos tradutores: muitas vezes são impostas pelas próprias editoras. (tradução minha)xi Isso leva a perguntar: quem avalia? Geralmente a censura linguística ocorre na editora, na fase de revisão quando o editor exige um texto “elegante”, “bem escrito”, de “fácil leitura”. Nesse caso, o tradutor é sempre culpado e perdedor, ou ele se submete ou seu trabalho não é aceito. No terceiro texto de sua tradução de Memória de mis putas tristes, nas provas voltando da revisão, o escritor/tradutor carioca Eric Nepomucenoxii responde ao revisor, anota as correções sugeridas e explicita suas escolhas. Sobre uma modificação feita pelo revisor querendo trocar: “Em noite de brisa podia-se escutar os gritos...” por “podiam-se escutar”, e justificando que na voz passiva essa mudança estava correta, Nepomuceno, que não concorda, escreve: “não vale o correto, vale o escrito”. Nesse exemplo, correto não equivale à norma; portanto, Nepomuceno situa-se no não-normatizado de sua língua e impõe sua escolha, ele diz: “Ao escritor se permite mais liberdade que ao tradutor. Como reitero de forma até radical que não sou tradutor, mas um escritor que traduz os amigos, eu consigo essa diferenciação”. Essa situação comprova que, de modo geral, o tradutor não é considerado no mesmo patamar que o 9 autor — mesmo pela editora e, sobretudo, pela editora — e que suas escolhas, quando no não-normatizado da língua, são sempre questionadas e não conservadas. Daí a importância fundamental do recurso ao terceiro texto, prova irrefutável do trabalho criativo e penoso do tradutor. Todavia, o terceiro texto, por si só, não sustenta uma crítica. Ele deve fazer parte de um conjunto, formado do texto de partida e do texto de chegada, ocupando o espaço vazio que mencionou Ricœur. Nele, no terceiro texto, estaria concentrado o critério absoluto da tradução por excelência, isto é, a perenização do sentido. Ricoeur diz: “Esse critério absoluto seria o mesmo sentido, escrito em algum lugar, acima e entre o texto de partida e o texto de chegada. Esse terceiro texto seria portador do sentido idêntico que, supostamente, circula do primeiro para o segundo” (2004, p. 60) (tradução minha).xiii Relembrando Eco, em Quase a mesma Coisa (2007), esse sentido idêntico absoluto não existe, pois não se pode dizer a mesma coisa em outra língua, somente “quase” a mesma coisa. Que seja. No terceiro texto, portanto, se dá a gênese do quase. Por outro lado, o terceiro texto desmistifica a facilidade da tradução e a revela em todo o seu complexo processo, da mesma forma que o prototexto desmistifica as “musas” soprando a inspiração e revela o suor no rosto do escritor burilando seu texto. Voltando à análise do prototexto, almejei estudar seu aspecto performativo. Na primeira etapa genética, procurei cingir a intentio operis no prototexto como uma fase preparatória para a segunda etapa da pesquisa, a tradução do conto a partir do texto fixado. No entanto, percebi que, apesar de ter realizado essa análise genética antes de fixar o texto, o texto fixado já não portava mais fisicamente as marcas de sua gênese, de modo que equivalia a traduzir um texto publicado. Contudo, podia identificar nele o lugar das rasuras por estar imbuída desse processo criativo longamente estudado. A gênese do processo da tradução “oferece ao crítico um critério de realidade cuja eficácia revela-se decisiva e o liberta, ou pelo menos deveria, da especulação”, diz Louis Hay.xiv É possível aplicar ao terceiro texto essas palavras de Hay que, por outro lado, salienta que o recurso ao prototexto permite evidenciar o porquê e o como do ato escritural que sustenta o escrito publicado. Dois pontos fundamentais na crítica da tradução para comprovar que o tradutor produz a partir de uma reflexão, de uma negociação, de tentativas, e não de forma aleatória, ou de “qualquer forma”, e que ele atravessa e é atravessado pela criatividade; e, consequentemente, que sua escritura decorre de um movimento, complexo e trabalhado, idêntico ao do escritor. Assim, podese descobrir, via terceiro texto, que a tradução não reflete o texto que ela traduz. Ela o significa, isto é, o coloca em significantes de outra língua, feito terceira língua, cuja 10 mobilização, pela leitura, provoca efeitos. Portanto, faço minha a declaração do tradutor alemão de Guimarães Rosa quando ele comenta seu processo de tradução de Grande Sertão: Veredas e diz: “acima de tudo estava à exigência: como devo me expressar para alcançar o mesmo efeito?” (ROSA, 2003, p.153). Esse “como” está no manuscrito ou terceiro texto, em que se vê a face invisível do tradutor-escritor, portanto do criador. A comprovação da existência de um “como” atesta que houve um fazer; dessa forma, parece-me alcançada a possibilidade de dizer que traduzir é fazer. Um fazer singular, renovado a cada tradução e por cada tradutor. A escolha da crítica genética como guia começou no intuito de desvendar mistérios, segredos, pois pensava que me faria penetrar o pensamento do autor. Não se penetra pensamento. Seguem-se rastros dele. Não se descobre o que o autor quis dizer. Descobre-se o que ele disse de fato, e como ele disse. Portanto, o manuscrito é a cena da escritura, ficcional ou tradutória, onde, segundo Valéry, assistimos à passagem do descontínuo do pensamento interiorizado ao também descontínuo do pensamento exteriorizado. Na perspectiva valeriana, é somente no manuscrito, e na sua “leitura” que é possível aproximar-se da “instância singular do discurso”. Contudo, ao ler com os olhos só se capta a inércia do escrito, é preciso ler com o ouvido. Nesse ponto, Valéry encontra Meschonnic. Ler com o ouvido, ou seja, ativar o ouvido interno do leitor para escutar a voz do escrito. De certa forma, é procurar uma voz enunciativa para fazer reviver a linguagem tal a viveu o escritor no seu ato escritural. Entendo que, para Meschonnic, é esse movimento, essa oralidade, que deve ser traduzida. Entendo, também, que somente o manuscrito pode abrir esse mundo. Ao longo desta pesquisa, constatei que existe uma relação de dependência entre a tradução (o processo do ato tradutório) e a escritura (o processo do ato escritural) atestada na frase de Serge Bourjea citada no início. Portanto, tradução e escritura remetem à reescritura. Escrever já seria um ato de tradução segundo as citações conhecidas de Valéry e outros; e, também, segundo Proust, que parece responder a Valéry quando diz: “Percebia que esse livro essencial, o único livro verdadeiro, um grande escritor não tem, no sentido comum, de inventá-lo posto que já exista em cada um de nós, mas tem de traduzi-lo. O dever e a tarefa de um escritor são os de um tradutor” (tradução minha).xv E, respondo a essa frase: Sim, já que os belos livros são escritos em uma sorte de língua estrangeira. Referências bibliográficas 11 AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer. Trad. de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. BERMAN, A. L’épreuve de l’étranger. Essai. Paris: Gallimard. 1995. BERMAN, A. Pour une critique des traductions: John Donne. Paris: Gallimard,1995a (coll. Tel). BERMAM, A. La traduction et la lettre ou l’auberge du lointain. Essai. Paris: Seuil, 1999. BLANCHAUD, P. Du problème que pose la révision des traductions littéraires par les éditeurs. L'Atelier du Roman, n. 4, mai 1995, [s. p.]. BOURJEA, S. (ed.) Génétique et Traduction. Paris: L'Harmattan, 1995. ECO, U. Quase a mesma coisa. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007. FISH, S. Quand lire c'est faire. L'autorité des communautés interprétatives. Traduit de l'anglais par Étienne Dobenesque. 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Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003a. 12 VENUTI, L. Escândalos da tradução: por uma crítica da diferença. Tradução de Laureano Pelegrin, Lucinéia Marcelino Villela, Marileide Dias Esqueda e Valéria Biondo. Bauru, SP: EDUSC, 2002. WILLEMART, P. Universo da criação literária. Crítica genética, crítica pósmoderna? São Paulo: EDUSP, 1993. WILLEMART, P. Bastidores da criação literária. São Paulo: Iluminuras, 1999. i Tese de doutoramento defendida em dezembro de 2008, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com o título: Da crítica genética à tradução literária: o caminho da (re)criação e da (re)escritura. Anotações para uma estória de amor, de Caio Fernando Abreu. ii Traduire n'est traduire que quand traduire est un laboratoire d'écrire . iii Traduire la littérature comme tenter de la comprendre génétiquement à partir de ses premières empreintes ou de ses balbutiements, c'est nécessairement et en bien des sens la récrire. iv O acervo Caio Fernando Abreu é conservado no DELFOS – Espaço de Documentação e Memória Cultural, situado no sétimo andar da Biblioteca Central Irmão José Otão, na PUCRS, em Porto Alegre. v Defini essa versão como sendo a terceira, por ser a mais elaborada, a menos rasurada e por apresentar um texto incorporando as diversas modificações efetuadas na versão 01 e na versão 02. Por outro lado, é visível que ela foi "formatada", pois o título ocupa a primeira folha, fazendo ofício de capa, e a última página apresenta a assinatura do autor. v Termo cunhado a partir de prototexto. vii Parce qu'il n'existe pas de critère absolu de la bonne traduction; pour qu'un tel critère soit disponible, il faudrait qu'on puisse comparer le texte de départ et le texte d'arrivée à un troisième texte qui serait porteur du sens identique supposé circuler du premier au second. [...] Mais il n'y a pas de texte tiers entre le texte source et le texte d'arrivée. viii No intuito de interligar tradução, escritura e criação, tentei, como o fez Meschonnic com o sintagma traduire-écrire, reunir os três processos. Então, posto que estamos no campo da criação, para expressar essa simbiose, proponho uma ousadia à la Haroldo de Campos, a palavra: traduscrever. ix O scriptor é o escritor no seu gesto escritural. Conceito desenvolvido por Philippe Willemart. x Artigo do jornal Le Monde, 1996. Da mesma forma, no seu livro Les testaments trahis, no capítulo: “Une phrase”, ele critica com virulência as traduções de Kafka. Por sua vez, no seu livro, Escândalos da tradução, L. Venuti dirige uma critica ácida a Kundera acusando-o de querer controlar as interpretações dos tradutores de seus livros, e de ter a visão ingênua de que "a intenção do escritor estrangeiro pode cruzar de forma não adulterada uma fronteira lingüística e cultural" (2002, p. 17). xi Des écrivains étrangers critiquent les traducteurs français d'édulcorer l'expression – et donc aussi le contenu – de leurs œuvres. Il faut que ces auteurs sachent que les édulcorations ne viennent pas forcément des traducteurs: elles sont très souvent imposées par les propres maisons d'édition xii Respondendo um questionário que enviei por e-mail em julho de 2005. xiii Ce critère absolu serait le même sens, écrit quelque part, au-dessus et entre le texte d'origine et le texte d'arrivée. Ce troisième texte serait porteur du sens identique supposé circuler du premier au second. xiv Disponível em: <http://www.item.ens.fr/atelier/cr/222.php>. Acesso em: 03 de junho de 2007. xv Je m'apercevais que ce livre essentiel, le seul livre vrai, un grand écrivain n'a pas, dans le sens courant, à l'inventer puisqu'il existe déjà en chacun de nous, mais à le traduire. Le devoir et la tâche d'un écrivain sont ceux d'un traducteur. 13