A criança e a percepção do risco.

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A Criança e a Percepção do Risco
João Barreiros
Faculdade de Motricidade Humana
Universidade Técnica de Lisboa
Em geral, a segurança pode ser entendida como a delimitação de margens aceitáveis de risco para um
indivíduo quando actua num ambiente. Ganhar segurança pressupõe prever condições de risco não
comportáveis por um organismo e conduzir a orientação comportamental para níveis de acção aceitáveis. A
prevenção primária destina-se a remover ou controlar as possíveis fontes de perigo. É nosso propósito abordar
este assunto não a partir da óptica da delimitação e extracção de fontes de perigo, mas da orientação do
indivíduo para comportamentos seguros.
Apesar de em muitos contextos se poder falar de segurança de indivíduos passivos, focando então a segurança
do envolvimento físico em sentido estrito, em situações dinâmicas de jogo ou de actividade física a interacção
entre indivíduo e envolvimento é seguramente o aspecto mais relevante para a segurança. Há evidentemente
uma correlação entre a dinâmica de um corpo e a probabilidade de acidente.
A noção de risco é também variável conforme os actores em presença. Aquilo que constitui risco para um
organismo jovem pode não ser considerado risco para um adulto ou para um organismo mais experiente. Uma
definição operacional de risco deve ser associada á probabilidade de acidente: um contexto torna-se de risco
quando a ocorrência de acidentes ultrapassa significativamente as ocorrência observadas em outros contextos.
O utilizador dos espaços é parte do problema: pelos seus comportamentos, pelas suas características, pelo
nível de compreensão da própria situação de risco.
Para além da prevenção primária, centrada na remoção ou controlo das possíveis fontes de perigo, é também
possível intervir na condução do comportamento individual de modo a reduzir ou eliminar fontes de perigo,
orientando implícita ou explicitamente os indivíduos para comportamentos seguros. Tal modo de actuação deve
ser entendido de modo bem diferente quando se trata de crianças ou de adultos. Cabe aqui recordar que a
acção, a descoberta e o tactear dos limites de risco fazem parte essencial do processo de desenvolvimento
humano.
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Nesta comunicação desenvolveremos a seguinte linha de raciocínio:
1.
O conjunto das acções desenvolvidas num dado ambiente está essencialmente dependente do modo
como esse ambiente é percepcionado.
2.
A percepção e eventual representação central dessa mesma percepção é um processo evolutivo,
basicamente construido na infância.
3.
Existem dois modos distintos de conceber o processo perceptivo: aquilo que designaremos por
percepção directa e o que chamaremos percepção indirecta. A distinção principal reside na
mediatização de mecanismos de representação em memória, teoricamente ausentes na primeira e
obrigatoriamente presentes na segunda.
4.
A acção é essencial na construção e afinamento da percepção, estabelendo-se um ciclo indissociável
entre percepção e acção. O desenvolvimento humano é o desenvolvimento desse ciclo.
5.
A segurança depende das possibilidades individuais de acção, da capacidade de perceber
adequadamente o que é e o que não é possível em determinado ambiente.
6.
Logo, a segurança depende do arranjo ambiental e da sua adequação a capacidades perceptivas e
motoras em constante evolução na criança.
7.
A segurança depende da possibilidade de construir directamente, pela experiência, capacidades
perceptivas e de resposta mais eficientes.
8.
Logo, a segurança depende da margem de prática e experiência concedida a cada criança.
9.
Com base nos enunciados anteriores torna-se necessário priveligiar um design de equipamentos e
contextos de acção, facilitadores da percepção directa dos limites possíveis de acção, e da construção
de representações mais alargadas e realistas sobre as possibilidades de acção individual.
10. Contudo, o único meio seguro para a redução do risco é o afinamento das capacidades de acção,
aquilo que designaremos por consciência do risco. Cria-se assim o paradoxo: para atingir
comportamentos com risco reduzido é necessário permitir comportamentos com margens mais
elevadas de risco.
O problema da segurança infantil é um problema particular porque a criança é um organismo com
possibilidades de acção desconcertantes, difíceis de caracterizar e, de um modo geral, substancialmente
diferentes das possibilidades do adulto tomado usualmente como referência. Os ambientes onde as crianças
evoluem são normalmente desenhados para organismos adultos, com maior, menor, ou mesmo nenhuma
margem de adaptação para o caso das infâncias.
O processo de crescimento físico traduz-se em alterações dimensionais e proporcionais muito grandes e
sobretudo muito rápidas. Este processo, essencialmente cumprido na primeira década de vida, considera não
apenas grandes variações inter-individuais mas também flutuações intra-individuais conforme os períodos e
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ritmos de desenvolvimento. Os aspectos referentes á morfologia são normalmente considerados na concepção
e ergonomia de equipamentos para a infância a partir de standards adaptados e adoptados de populações
estudadas (British Department of Education and Science, 1972, 1985) (c.f. Pheasant, 1988, para uma revisão).
Em Portugal são conhecidos valores de referência para a população infantil de Lisboa, com aplicação à
concepção de material escolar (Fragoso, 1992). As questões ligadas á segurança de equipamentos para
actividade lúdica contemplam frequentemente aspectos ligados ao peso corporal, altura, e outras variáveis
morfológicas críticas para um design adequado de equipamentos. É preciso, contudo referir que a segurança de
espaços de jogo não pode ficar limitada ao ajustamento dimensional entre morfologia e equipamento.
Apesar das variações morfológicas serem importantes, a diversidade comportamental é ainda maior. Embora
não existam medidas consistentes de níveis de actividade ao longo da infância, sabemos que são
suficientemente importantes para que tenham que ser tomadas em consideração na concepção de espaços
para crianças. Este domínio de aplicação tem contudo sido especialmente orientado para a concepção de
espaços relativamente estáveis e onde ocorrem comportamentos, senão estáveis, pelo menos razoavelmente
previsíveis (e.g. Clark & Corlett, 1984). Há hoje completíssimas descrições comportamentais em situações
laborais que podem apropriadamente contribuir para a redução do número de acidentes e para a optimização
do rendimento humano em situação laboral. Paralelamente, os estudos efectuados numa base de realismo
ecológico, isto é, em condições reais e com técnicas não intrusivas de estudo, ajudaram á descrição do que é o
comportamento da criança num sentido etológico. Infelizmente as variações culturais e históricas tornam
rapidamente inerte a informação.
Há ainda um terceiro aspecto que é necessário referir. Enquanto crescem, os organismos modificam a forma
como percebem o mundo e, consequentemente, como agem nele. Com o desenvolvimento ocorrerão
modificações sensoriais, alargando o tipo e quantidade de informação que pode ser processada e, sobretudo,
modificações perceptivas e perceptivo-motoras.
O comportamento infantil depende essencialmente das solicitações ambientais e consequentemente, a
segurança deve partir deste ponto de vista. A fundamentação teórica para desenvolver uma abordagem desta
natureza pode ser encontrada na psicologia ecológica, desenvolvida por Gibson (c.f. Gibson, 1979, para mais
detalhe). Esta perspectiva minimiza o papel que as operações cognitivas superiores têm na percepção que um
animal tem do seu envolvimento. Para Gibson e seguidores a percepção está em larga escala dependente das
possibilidades de acção do organismo, consideradas como um a priori da percepção. Um envolvimento não é
pois percebido a partir das suas propriedades físicas primárias, mas da relação entre as suas propriedades e as
características do sujeito actor. A relação entre actor e envolvimento tornou-se indissociável.
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Gibson criou a expressão “affordance” para exprimir o conjunto das possibilidades que um envolvimento
desencadeia num actor. As affordances explicitam ao animal se uma superfície é subível, saltável, trepável,
andável, corrível, equilibrável, etc. No mundo das manipulações explicita se um objecto é agarrável ou
alcançável e ainda de que modo a acção pode decorrer. Muito embora o meio físico externo varie em contínuo,
do ponto de vista do observador-actor ele é discreto, disponibilizando acções preferenciais alternativas, com
níveis distintos de eficiência.
O princípio de que o ambiente disponibiliza ou impede acções supõe a existência de limites ou limiares,
definidores do possível e do modo preferencial de realização: um degrau muito alto impede a técnica de subir
alternado e pode coagir o organismo a utilizar uma técnica de “stepping” ou mesmo a trepar; uma cadeira muito
alta impede o sentar; um muro muito alto limita a sua transposição. Esses limites ou limiares constituem pontos
de transição entre modos discretos de comportamento (categorias de acção) ou, em extremo, a impossibilidade
de ocorrer qualquer acção.
Na teoria é proposto que os limiares são perceptíveis para o actor e determinados a partir do ajustamento entre
propriedades do organismo (morfológicas ou funcionais) e propriedades perceptíveis do meio. Nesta visão, o
que os organismos lêem no ambiente são possibilidades ou impossibilidades de acção.
O conhecimento dos limiares de acção é obtido por via directa, isto é, não necessita do recurso a processos
cognitivos elaborados, e o papel da memória pode ser reduzido para realizar esta função. O mundo animal está
cheio de exemplos de limiares comportamentais (c.f. Michaels, Prindle & Turvey (1985); McFarland, 1993) e a
sua extensão para o comportamento humano tem sido exaustivamente tentada (Warren, 1984; Warren &
Whang, 1987; Barreiros, Silva & Pereira, 1995; Barreiros & Silva, 1995). Os trabalhos efectuados com crianças
demonstram que desde muito cedo se pode observar percepção das affordances e que, consequentemente, a
regulação das acções depende essencialmente desse ajuste mais ou menos directo entre organismo e meio.
Há contudo diferenças importantes entre crianças e adultos no que diz respeito à opção entre categorias de
acção e quanto á clareza das transições entre categorias de resposta. É nestes casos de ambiguidade
comportamental (maior variabilidade da resposta, mais tempo para decidir, ou utilização de categorias
intermédias e pouco eficientes) que frequentemente surgem comportamentos “errados”, i.e., pouco eficientes ou
perigosos. Quando o muro do qual se salta é muito alto o salto é evitado, quando é suficientemente baixo é
promovido, mas existem zonas de indefinição nas quais são por vezes escolhidos comportamentos incorrectos
ou precipitados. As zonas-fronteira são precisamente as mais inseguras.
Uma das consequências do desenvolvimento e da aprendizagem é precisamente o afinamento entre categorias
de acção. Esse afinamento está na sequência de processos maturativos esqueléticos, nervosos e sensoriais, e
de um melhor conhecimento da morfologia e das capacidades funcionais, em suma, do que o organismo pode e
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não pode fazer. Uma noção mais abrangente de segurança tem pois, obrigatoriamente, que incluir uma
estratégia de concepção de affordances a partir das características da criança e do meio.
Uma abordagem alternativa ao problema da percepção parte precisamente do pólo oposto: o organismo recolhe
informação sobre o ambiente e o seu corpo, desprovida á partida de significado funcional, e, através de
operações cognitivas, com recurso á memória e a representações, prepara respostas voluntárias e de base
cognitiva para os problemas com que se defronta. Esta abordagem entende a aprendizagem como o conjunto
de processos elaborados a nível central, guardados em memória e cumulativos, e exclusivamente dependentes
da experiência individual. Assume ainda que o próprio corpo e limites de acção estão internamente
representados, sendo actualizados em função da experiência (Meijer & Roth, 1988). Nesta perspectiva, as
estruturas nervosas centrais são responsáveis pela construção de imagens (esquemas) quer do corpo quer das
acções, e pela reconstrução cognitiva de um mundo exterior que, por si só, nada de imediato informa ao
organismo.
Sem nos alongarmos mais sobre o tópico da percepção, mas com base no que já foi escrito, talvez seja
possível sistematizar quatro estratégias diferentes, embora complementares, para o aumento da segurança em
espaços e actividades infantis:
1. Uma melhoria das características dos materiais e equipamentos reduzindo a perigosidade dos
mesmos (arestas, dimensões, rigidez, deformação, irregularidades, deterioração, etc.). É a estratégia
convencional de fabricantes e legisladores e aponta para a remoção de uma parte dos riscos, precisamente os
inerentes á deficiência dos materiais.
2. Uma facilitação perceptiva (visual, táctil, cinestésica, acústica) de modo a que a “coisa” imperceptível
para um organismo pouco descriminante seja tornada perceptível. Esta estratégia supõe a aplicação do
conhecimento clássico da psicologia da percepção como o contraste figura-fundo, a sensibilidade cromática,
etc., mas também a experiência com modificações de relevo ou de forma das superfícies para as tornar mais
inteligíveis. Nesta estratégia aposta-se que um organismo capaz de detectar melhor os seus próprios limites de
acção, perante certas condições do meio, é um organismo com menor probabilidade de incorrer em
comportamentos de risco.
3. Um ajustamento do ambiente (objectos, pisos, declives, escadas, apoios, etc.) às possibilidades de
acção dos utilizadores e à affordance suscitada. Baseia-se no princípio de que o comportamento é, pelo menos
em parte, externamente determinado e que organismos mesmo muito jovens são capazes de distinguir o que é
e o que não é possível numa dada condição ambiental e, de acordo com isso, escolher comportamentos
compatíveis com essas condições. Neste caso pretende-se que o suporte físico da acção seja ele próprio
limitador de acções com margens inaceitáveis de risco.
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4. Uma educação comportamental da criança, que obriga a maiores investimentos por parte, em
primeiro lugar, da família, mas também de educadores e outros adultos com responsabilidade no processo de
socialização. Pressupõe a modelação de normas de conduta que não podem ser auto-adquiridas nem
imediatamente compreendidas pela criança por não lhe serem perceptivamente nem cognitivamente acessíveis.
Quer a modelação comportamental directa quer a modelação comportamental através da acção disponibilizada
pelo contexto são aspectos decisivos para a segurança de espaços de actividade da criança. Exigem um
domínio maior das técnicas de modificação de comportamento por intervenção directa e um conhecimento
muito mais extensivo das affordances do contexto e, sobretudo, a sua verificação em crianças. É, em todos os
sentidos, uma abordagem perfectível mas também inevitável. Como disse Gibson: “ Why has man changed the
shapes and substances of his environment ? To change what it affords him. He has made more available what
benefits him and less pressing what injuries him”.
Referências:
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Barreiros, J., Silva, P. & Pereira, F. (1995). Bases perceptivas da organização da acção: affordances,
constrangimentos e categorias de acção. In J.Barreiros e L. Sardinha (Eds.), Percepção & Acção (pp. 939). Lisboa: Edições FMH.
Clark, T.S., & Corlett, E.N. (1984). The Ergonomics of Workspaces and Machines: a Design Manual. London:
Taylor & Francis.
Department of Education and Science (1972). British School Population Dimensional Survey, Building Bulletin,
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Department of Education and Science (1985). Body Dimensions of the School Population. Building Bulletin, 62,
Department of Education and Science. London: HMSO.
Fragoso, I. (1992). Normas antropométricas para a população infantil de Lisboa. Câmara Municipal de Lisboa.
Gibson, E.J., & Walk, R.D. (1960). The visual cliff. Scientific American, 202, 64-71.
Gibson, J.J. (1979). The ecological approach to visual perception. Boston: Houghton Mifflin.
McFarland, D. (1993). Animal behavior (2ª ed.). New York: John Wiley.
Meijer, D., & Roth, K. (Eds.) (1988). Complex movement behavior: The motor-action controversy. Amsterdam:
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Michaels, C.F., Prindle, S., & Turvey, M.T. (1985). A note on the natural basis of action categories: the catching
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Pheasant, S. (1988). Bodyspace: Anthropometry, Ergonomics and Design. London: Taylor & Francis.
Warren, W.H. (1984). Perceiving affordances: visual guidance of stair climbing. Journal of Experimental
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Warren, W.H., & Whang, S. (1987). Visual guidance of walking through apertures: body scaled information for
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