O Supremo Tribunal Federal e a fidelidade partidária Miguel Calmon Dantas1 São trinta minutos do segundo tempo e os jogadores de um dos times resolve trocar de camisa, aumentando o número de jogadores do time que está vencendo; ou, num jogo de xadrez, decide-se alterar a cor dos peões para aumentar o número daqueles controlados por um dos jogadores; ou, numa prova de concurso público, após o seu início, algumas questões têm o seu enunciado alterado, de modo a não se saber se continuam com a resposta que anteriormente já se houvera marcado, ou se teriam se modificado. Tais situações denotam que, a determinado tempo de um processo, as posições ocupadas não podem ser alteradas, sob pena de comprometer a seriedade do próprio processo, quer se trate de um jogo, quer se trate de um concurso, quer seja uma licitação, quer seja o próprio processo político. Na contingência e fluidez da sociedade contemporânea, em que se vive muito mais isolado e preso às limitações do individualismo do que resguardado pela proteção e segurança da vida comunitária, as recentes decisões do Tribunal Superior Eleitoral e, principalmente, do Supremo Tribunal Federal são expressão da existência de uma necessidade de mínima permanência ou estabilidade no processo político. O Tribunal Superior Eleitoral apreciou a Consulta 1.398/DF e definiu que os parlamentares eleitos pelo sistema proporcional não podem cancelar a filiação ou transferir-se para outra legenda, no exercício do mandato, se não houver um justo motivo para tanto, devidamente comprovado; se ocorrer o cancelamento ou a transferência, ao livre alvedrio do parlamentar, opera-se a perda do mandato, na medida em que pertence ao partido e não ao eleito. 1 Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia, Professor de Direito Constitucional da Faculdade Baiana de Direito e de Direito Constitucional e Direito Econômico da Universidade Salvador (Unifacs). Procurador do Estado da Bahia. Advogado. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, preservando a sua condição de guardião da Constituição e, no caso, da credibilidade, higidez e legitimidade do processo políticoeleitoral, ao julgar os mandados de segurança nos 26602/DF, 26603/DF e 26604/DF, reconheceu que, a partir da decisão do Tribunal Superior Eleitoral, têm os partidos políticos o direito de reaver o mandato dos parlamentares cuja conduta de alteração da legenda partidária denote contrariedade à fidelidade partidária, princípio não apenas com sede constitucional, mas também com sentido e valor independentemente da disciplina partidária que venha a regular mais pormenorizadamente a fidelidade. Essas decisões são da mais alta relevância, em especial diante da crise que se abate tanto sobre o sistema representativo, como sobre os próprios partidos políticos, cuja credibilidade numa proposta político-programática e identidade ideológicas têm sido consistentemente desvalorizadas por um fenômeno que se pode considerar como fordismo político-partidário. Ora, os partidos políticos deixam de representar uma forma de canalizar os anseios e os valores de determinados segmentos sociais e expressá-los em programa que visa a ser o de um melhor governo e passam a explorar as expectativas de consumo dos eleitores; ou seja, buscam angariar votos como se busca vender um produto, sem um aprofundamento de um projeto político, preocupando-se mais com o marketing político. Assim, há, também, um desencantamento com a política e, em especial, com a política partidária, potencializada pelos escândalos de corrupção, sendo imprescindível o resgate da relevância, função e noção de representatividade que um partido político possui, por força de expressa previsão constitucional. Conforme previsão constitucional, ninguém pode aceder ao exercício de cargo eletivo sem estar filiado a partido político; igualmente, os eleitos pelo sistema proporcional dependem do desempenho eleitoral do partido para serem eleitos, inferindo-se o relevo do partido político na estrutura constitucional do Estado Democrático de Direito, matizado pelo princípio republicano. A decisão do Supremo Tribunal Federal pode ter o condão de resgatar no espaço político as noções de responsabilidade e dos deveres de lealdade, confiança e verdade – ao menos dos eleitos para com os partidos – imperativos para resistir à fugacidade e fluidez dos vínculos e laços sociais nas condições das sociedades contemporâneas. Esses deveres se apresentam como valores que devem nortear a política e a atuação partidária, substituindo o marketing e o fordismo político pelo retorno à identidade programática e ideológica, pressuposto para que sejam resgatados e reforçados os vínculos dos representantes eleitos para com os representados eleitores. Antes de responsabilidade para com os partidos, os eleitos têm um dever de fidelidade e de verdade com os eleitores, com o povo, em função tanto da soberania, como da noção de república, exigente de uma virtude cívica que se encontra diluída pelos interesses sectários que permeiam e obscurecem o debate política. E ao prezar pelos deveres dos eleitos para com os partidos, o Supremo Tribunal Federal está não apenas resguardando ideais e valores republicanos e democráticos, mas indicando que os representantes nada mais dispõem do que um mandato, cujo exercício apenas se justifica por uma prestação de contas aos eleitores que importe na demonstração de que há responsabilidade, lealdade e higidez no desempenho do exercício do poder político. Nesse sentido, a Constituição Federal se estende ao âmbito da política-partidária, não se podendo considerar que o Supremo Tribunal Federal tenha adentrado em questão política; em verdade, resgatou o Tribunal a noção essencial e imprescindível de que o eleito não é individualmente irresponsável no exercício do mandato, devendo prestar contas não apenas ao partido, mas ao povo em geral, inclusive àqueles que nele não depositaram a sua confiança. Não se pode esquecer, entretanto, que a decisão em comento não é suficiente, por si só, para o resgate da política ou da política partidária, devendo os partidos políticos, internamente, sufragarem a democracia interna e ao caráter programático e ideológico. O Supremo Tribunal Federal desincumbiu-se, portanto, da condição de guardião dos valores mais caros numa República Constitucional, do que se evidencia a legitimidade da decisão proferida, em especial no atual contexto sócio-político brasileiro. E isso é o que se espera da Corte.