Sobre o Modelo Matemático Navier-Stokes∗ por Luis Adauto Medeiros Introdução Tem-se como objetivo principal fazer uma dedução do modelo matemático para o escoamento de fluidos homogêneos, incompressı́veis e viscosos, por meio de argumentos elementares e intuitivos, dirigido às pessoas interessadas em ciência, em geral. Inicia-se com considerações fı́sicas geométricas, intuitivas para obter o que se entende por fluxo de fluido através de uma superfı́cie, para obter a equação de continuidade que traduz, matematicamente, o princı́pio de conservação de massa. Por meio desta equação, define-se o que se entende por fluido incompressı́vel. Da lei de conservação de quantidade de movimento encontra-se o modelo que se procura, conhecido sob a denominação de equações de Navier-Stokes. Concluindo, descreve-se o método para o estudo matemático do modelo, distinguindo-se os casos em que a dimensão do espaço é n = 2 ou no caso n ≤ 4. Relaciona-se uma pequena bibliografia no final do artigo, refletindo a visão do autor sobre o problema. Observe-se que a bibliografia é excessi∗ Conferência de Divulgação, Instituto de Matemática - UFRJ, 2006 1 vamente vasta e aqui encontra-se uma pequena amostra. 1. Considerações Fı́sicas e Geométricas Considere-se um fluido em movimento. Para fixar idéia, pensa-se em água fluindo em um canal. Represente por Ω um aberto limitado contido no ambiente onde se encontra o fluido. Pensa-se Ω cheio do fluido, com fronteira regular Γ. O espaço onde Ω está imerso é o R3 , construido dos pontos x = (x1 , x2 , x3 ). Represente-se por Γ a fronteira de Ω que é uma superfı́cie do R3 . Com ~n representa-se a normal unitária externa à fronteira Γ de Ω. Denota-se por ~u o vetor de componentes (u1 (x, t), u2 (x, t), u3 (x, t)), denominado a velocidade do fluido, isto é, das partı́culas do fluido. Denotase ~u por ~u(x, t) a velocidade no ponto x no instante t. Considere-se uma porção da dΓ da superfı́cie Γ. Denomina-se fluxo através de dΓ, a massa de fluido que atravessa dΓ, na direção da normal, ~n, na unidade de tempo. Calcula-se, de modo intuitivo, o fluxo, considerando a velocidade ~u das partı́culas. De fato, no instante ∆t uma partı́cula se desloca de ~u∆t, na direção ~u. Considerando os pontos de dΓ, no instante ∆t, o total de partı́culas atravessando dΓ é a massa de fluido contida no prisma de altura u∆t, u módulo de ~u, e base dΓ. Desejando-se este fluxo na direção da normal ~n, projeta-se ~u sobre ~n, obtendo-se un ∆t para altura do prisma, sendo un = proj~n ~u = (~u, ~n), produto escalar no R3 . Portanto o total de partı́culas atravessando dΓ na unidade de tempo ∆t, na direção da normal ~n, mede-se pelo total de partı́culas de fluido contido no prisma de base dΓ e altura un ∆t, isto é, seu volume é dado por dΓ × un ∆t. 2 O fluxo sendo a massa de fluido contida neste prisma, será dado por ρ un ∆t dΓ. Com ρ = ρ(x, t) representa-se a densidade do fluido, massa por unidade de volume. No plano tem-se a visão geométrica na Fig. 1. Convenciona-se que o fluxo é positivo se calculado na direção positiva de ~n e negativo na direção oposta. Portanto, o fluxo através Γ, fronteira de Ω, no instante ∆t = 1, será o somatório dos fluxos elementares ρ un ∆t, isto é: Z (1) ρ(x, t)un (x, t) dΓ, Γ integral sobre a superfı́cie Γ. 2. Equação de Continuidade Admite-se o princı́pio de conservação de massa de fluido: “a variação da massa de fluido no interior de Ω, em relação ao tempo, é igual ao fluxo de fluido através da fronteira Γ de Ω.” 3 Traduz-se, a seguir, matematicamente, este princı́pio. De fato, sendo ρ(x, t) a densidade do fluido, a massa de fluido contida em Ω é dada por: Z ρ(x, t) dx, M (t) = Ω sendo dx = dx1 dx2 dx3 a medida no Rn . A variação, em relação ao tempo, é: Z dM (t) ∂ρ (2) = dx. dt ∂t Ω Suponha-se a variação devido ao fluido entrando em Ω, isto é, Z (3) − ρ(x, t)un (x, t) dΓ. Γ O princı́pio de conservação de massa diz que as integrais (2) e (3) são iguais, para todo aberto limitado Ω, com fronteira Γ. Note-se que se supõe Ω limitado e do mesmo lado de Γ. Algo como a Fig. 2 Portanto, do princı́pio de conservação de massa, resulta, da igualdade das integrais (2) e (3): Z Z ∂ρ dx + ρ un dΓ = 0, Ω ∂t Γ para todo Ω. Transformando a integral de superfı́cie por meio do teorema da divergência, obtém-se: Z Ω ∂ρ + div(ρ~u) dx = 0, ∂t 4 para todo Ω. Supondo-se o integrando uma função contı́nua, obtém-se: (4) ∂ρ + div(ρ~u) = 0 pontualmente em Ω. ∂t dxi , x = (x1 , x2 , x3 ) vetor do dt R3 , posição da partı́cula x no tempo t, isto é, xi = xi (t), i = 1, 2, 3. Daı́ Note-se, a componente ui da velocidade ~u é obtém-se 3 (5) dρ ∂ρ X ∂ρ ∂ρ ui = = + + (grad ρ, ~u). dt ∂t ∂x ∂t i i=1 Efetuando o cálculo, obtém-se: (6) div(ρ~u) = ρ div ~u + (grad ρ, ~u). Substituindo (5) e (6) em (4), obtém-se: (7) dρ + ρ div ~u = 0 em Ω. dt É claro que (4) e (7) são equivalentes. A (7) ou (4), denomina-se equação de continuidade ou lei de conservação de massa. Diz-se que um fluido é incompressı́vel e homogêneo quando sua densidade é constante ou, equivalentemente, div ~u = 0 em todo Ω, isto é, (8) div ~u = 0 em Ω. 3. Equações de Navier-Stokes É um modelo matemático para descrição do movimento de fluidos homogêneos, densidade ρ constante, incompressı́veis, div ~u = 0 e viscosos. A 5 dedução deste modelo será obtida por meio do princı́pio de conservação de quantidade de movimento. Estamos supondo (9) ρ constante e div ~u = 0 em Ω. Considere-se um prisma de faces ∆x1 , ∆x2 , ∆x3 contido em Ω, cujo volume é ∆x = ∆x1 · ∆x2 · ∆x3 e massa ρ∆x. A quantidade de movimento desta massa, é ρ∆x~u, sendo ~u a velocidade. Da definição de integral tripla, conclui-se que a quantidade de movimento da massa de Ω é dada por: Z ρ~u(x, t) dx. (10) m(t) = Ω O princı́pio diz: “a variação da quantidade de movimento m(t) de Ω, em relação ao tempo, é igual ao somatório das forças aplicadas ao Ω.” A variação da quantidade de movimento de Ω é: Z dm(t) d~u (11) ρ = dx. dt dt Ω As forças aplicadas em Ω, são de dois tipos: −→ i) volumétricas aplicadas a Ω de densidade f (x, t) = (f1 (x, t), f2 (x, t), f3 (x, t)). ii) tensões internas, e viscosidades na fronteira Γ de Ω, cujas componentes admite-se fa forma: Fi (x, t) = 3 X σij (x, t)ηj , j=1 i = 1, 2, 3. Os números reais ηj , j = 1, 2, 3, são as componentes da normal unitária ~n, externa à Γ. Supõe-se as funções σij (x, t), x ∈ Ω e t ≥ 0, contı́nuas e continuamente diferenciáveis em relação a x para todo t ≥ 0. As funções fi (x, t) são 6 supostas integráveis em Ω para todo t > 0. A matriz σij (x, t), i, j = 1, 2, 3, é denominada “tensor de tensões”. Deduz-se, do princı́pio de conservação da quantidade de movimento, a equação seguinte: Z Z −→ Z −→ d~u (12) ρ dx = f (x, t)dx + F (x, t)dΓ dt Ω Ω Γ Escrevendo a (12) para as componentes dos vetores dos integrandos, obtém-se: (13) Z dui ρ dx = dt Ω Z fi (x, t) dx + Z X 3 σij (x, t)ηj dΓ, Γ j=1 Ω para i = 1, 2, 3. Do Lema de Gauss, obtém-se: 3 Z 3 Z X X σij (x, t)ηj dΓ = j=1 Γ j=1 ∂ σij (x, t) dx, Ω ∂xj que substituido em (13), resulta: Z X Z Z 3 ∂σij dui fi (x, t) dx + ρ dx, dx = (14) dt Ω j=1 ∂xj Ω Ω para i = 1.2.3. Para fluidos homogêneos, incompressı́veis e viscosos encontra-se que σij (x, t) tem a representação: (15) σij (x, t) = −p(x, t)δij + ν ∂ui ∂uj + ∂xj ∂xi p(x, t) número positivo e ν > 0 dita viscosidade do fluido, cf. LandauLifschitz [5]. Sendo div ~u = 0, obtém-se 3 X ∂σij j=1 3 3 X X ∂p ∂ ∂ui ∂uj =− δij + ν + . ∂xj ∂x ∂x ∂x ∂x j j j i j=1 j=1 7 Note-se que δij = 0 se i 6= j e δij = 1 se i = j. Logo, restando (16) ∂p δij = 0 se i 6= j ∂xj ∂p , portanto: ∂xi 3 X ∂p ∂p − δij = − · ∂x ∂x j i j=1 Tem-se: div ~u = 0 em Ω, logo 3 X ∂ui ∂uj ∂ + = ν∆ui . (17) ν ∂x ∂x ∂x j j i j=1 Substituindo (16) e (17) em (4) obtém-se: Z Z Z ∂ui ∂p ρ − (18) fi (x, t) dx + + ν∆ui dx dx = ∂t ∂x i Ω Ω Ω i = 1, 2, 3, para todo Ω imerso no fluido, resultando, devido a continuidade dos integrandos em (18): ∂p dui + ν∆ui em Ω = fi − (19) ρ dt ∂xi i = 1, 2, 3. A (19) denomina-se sistema de Navier-Stokes, para fluidos dui é a aceleração do homogêneos, incompressı́veis viscosos. Note-se que dt fluido. Modifica-se (19), observando-se que ~u(x, t) = (u1 (x, t), u2 (x, t), u3 (x, t)) para x = (x1 , x2 , x3 ). Portanto, a velocidade das partı́culas é uj (x, t) = dxj , obtendo-se: dt 3 dui ∂ui X ∂ui uj , = + dt ∂t ∂x j i=1 que substituida em (12) resulta: 3 (20) X ∂ui ∂p ∂ui = fi − em Ω, − ν∆ui + uj ∂t ∂x ∂x j i j=1 8 com i = 1, 2, 3, para t ∈ (0, T ), T > 0. Note que supõe-se ρ = 1, pois ela é constante. Trata-se de um sistema de três equações diferenciais parciais nas incógnitas (u1 , u2 , u3 ) e na pressão p. O problema matemático consiste em saber se um problema de valor inicial e de contorno, para (20), é bem posto no sentido de Hadamard. Isto significa: existe solução, é única e depende continuamente dos dados do problema. De fato, dado Ω aberto limitado, não vazio do Rn , com fronteira Γ de classe C 2 , define-se o cilindro Q = Ω × (0, T ), T > 0, do Rn+1 = Rx × Rt , com fronteira lateral Σ = Γ × (0, T ). O problema matemático consiste em determinar ui : Q → R, para i = 1, 2, . . . , n, isto é, o vetor ~u(x, t) = (u1 (x, t), u2 (x, t), . . . , un (x, t)), solução do problema de valor inicial e de fronteira seguinte: n X ∂ui ∂p ∂ui = fi − em Q uj ∂t − ν∆ui + ∂x ∂x j i j=1 ui = 0 em Σ (21) div ~u = 0 em Q ui (x, 0) = u0i (x) em Ω. ∂p ∂p ∂p , ,..., Represente-se o vetor ~u(x, t) por u(x, t); grad p = ∂x1 ∂x2 ∂xn por ∇p e ∂u ∂un ∂u1 ∂u2 = , ,..., ; ∆u = (∆u1 , ∆u2 , . . . , ∆un ). ∂t ∂t ∂t ∂t Daı́ obtém a notação: n X ∂u uj = ∂x j j=1 n X n n X ∂u1 X ∂u2 ∂un , ,..., uj uj uj ∂xj j=1 ∂xj ∂xj j=1 j=1 9 ! . Com esta notação, escreve-se o sistema de Navier-Stokes (21) sob a forma: n X ∂u ∂u = f − ∇p em Q − ν∆u + u j ∂t ∂x j j=1 div u = 0 em Q (22) u = 0 em Σ u(x, 0) = u0 (x) em Ω. Para investigar existência e unicidade e dependência contı́nua, aplica- se o método de Faedo-Galerkin. Precisa-se de um breve resumo sobre os espaços a serem empregados. 4. Espaços Funcionais Com D(Ω) representa-se o espaço das funções φ : Ω → R, com suporte compacto em Ω, infinitamente continuamente diferenciáveis. Denota-se por (D(Ω))n o produto cartesiano de n cópias iguais a D(Ω). Considere-se o espaço de Sobolev H01 (Ω) e o produto cartesiano (H01 (Ω))n munido do produto escalar: ((u, v)) = n X ((ui , vi ))H01 (Ω) . i=1 e norma: 2 ||u|| = n X ||ui ||2H01 (Ω) . i=1 Resulta que (H01 (Ω))n é um espaço de Hilbert. A desigualdade de Poincaré implica considerar-se em (H01 (Ω))n , a norma equivalente: 2 ||v|| = n X i=1 10 |∇vi |2L2 (Ω) para todo vetor v = (v1 , . . . , vn ) de (H01 (Ω))n . Note-se que |∇vi |2L2 (Ω) 2 n Z X ∂ui = dx, ∂x j j=1 Ω sendo dx = dx1 dx2 . . . dxn a medida de Lebesgue no Rn . Considere-se o subespaço de Hilbert V de (H01 (Ω))n definido por: V = {v ∈ (H01 (Ω))n ; div v = 0 em Ω}. Representa-se por (L2 (Ω))n o produto cartesiano de n fatores iguais a L2 (Ω), munido do produto escalar: (u, v) = n Z X ui vi dx. Ω i=1 A norma em (L2 (Ω))n é: 2 |v| = n Z X i=1 Ω vi2 dx. Representa-se por H a aderência de V = {ϕ ∈ (D(Ω))n ; div ϕ = 0 em Ω} em (L2 (Ω))n . Demonstra-se que V é denso em V . 5. Formulação Matemática do Sistema de Navier-Stokes Considere-se o sistema (22) e procura-se dar sentido ao que se entende por solução. Para u, v ∈ V , define-se a forma bilinear: n Z X ∂ui ∂vi dx. a(u, v) = ν ∂x ∂x j j Ω i,j=1 Demonstra-se que a(u, v) é bilinear, contı́nua e V -elı́tica. 11 Motivado pelo termo não linear em (22), define-se a forma trilinear em V: b(u, v, w) = n Z X Ω i,j=1 Lema 1. uj ∂vi wi dx. ∂xj b(u, v, w) + b(u, w, v) = 0. Demonstração: De fato, tem-se: b(u, v, w) − b(u, w, v) = n Z X i,j=1 = n X i,j=1 Ω uj ∂vi ∂ui wi + vi dx = ∂xj ∂xj n Z X ∂uj ∂ (vi wi )dx = dx = 0, uj ∂xj ∂x j Ω Ω i,j=1 Z para u, v, w ∈ V , pois o traço em Γ é zero e a divergência é zero. Problema 1. Dados f ∈ L2 (0, T ; H −1 (Ω)), u0 ∈ H, (23) determinar u e p, sendo p ∈ D′ (Q). de modo a obter: u ∈ L2 (0, T ; V ) ∩ L∞ (0, T ; H), (24) n (25) X ∂u ∂u = f − ∇p em D′ (Q), − ν∆u + uj ∂t ∂xj j=1 (26) u(x, 0) = u0 (x) em Ω. Problema 2. Dados (27) f ∈ L2 (0, T ; H −1 (Ω)), u0 ∈ H, 12 determinar u ∈ L2 (0, T ; V ) ∩ L∞ (0, T ; H), (28) satisfazendo (29) (u(t), v) + a(u(t), v) + b(u(t), u(t), v(t)) = (f (t), v) em D′ (0, T ) para toda v ∈ V . (30) u(x, 0) = u0 . Demonstra-se: toda solução do Problema 1 é solução do Problema 2. A demonstração de que a solução do Problema 2 é solução do Problema 1 é a parte difı́cil do método. Ela envolve a caracterização das formas lineares contı́nuas L pertencentes ao espaço (H −1 (Ω))n , H −1 (Ω) dual de H01 (Ω), que se anulam em V , isto é, vetores com divergência nula. De modo preciso, o resultado afirma: “Se L ∈ (H −1 (Ω))n e L(v) = 0 para todo v ∈ V , existe uma função p ∈ L2 (Ω) R, tal que Z p div v dx. ” L(v) = Ω Tendo-se em mente a equivalência dos dois problemas, resolve-se o segundo por técnicas de Análise Funcional. Adota-se o método de aproximação de Faedo-Galerkin e resultados de compacidade. O segundo problema denomina-se formulação variacional do sistema de Navier-Stokes. Note-se, todavia, que a formulação variacional é bem posta no caso n = 2, isto é, no plano R2 . Neste caso, por meio do teorema de Aubin [1] e desigualdade de Sobolev, obtém-se as convergências das aproximações de Faedo-Galerkin e a unicidade, restringindo-se a dimensão a n = 2. Para 13 o caso n ≤ 4 não foi demonstrada a unicidade. Para a existência quando n ≤ 4, há um teorema de compacidade de J.L. Lions [9] permitindo obter convergências das aproximações de Faedo-Galerkin. A unicidade não foi demonstrada. Bibliografia [1] J.P. Aubin - Un théorème de compacité. C.R. 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