A temática espacial no pensamento de Michel Foucault

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A temática espacial no pensamento de Michel Foucault:
diálogos e aproximações geográficas
Ana Paula Nunes Chaves1
Universidade de São Paulo
[email protected]
INTRODUÇÃO
Há algum tempo deparei-me com uma frase de Foucault que fez ressoar alguns
pensamentos acerca do papel e da importância do espaço. Em seu texto Outros
espaços o filósofo afirmou que “a nossa época talvez seja, acima de tudo, a época do
espaço. ” (FOUCAULT, 2009, p. 411)
A conferência radiofônica intitulada As heterotopias, que deu origem ao texto
Outros espaços, foi proferida por Foucault em 21 de dezembro de 1966 a um grupo de
arquitetos franceses no Cercle d'Études Architecturales de Paris. Apesar de
pronunciada no final da década de 1960, a conferência As heterotopias ficou
repousando por quase 20 anos. Foi somente em 1984 que, após uma revisão,
Foucault autorizou a publicação de uma edição reduzida da conferência sob o título de
Des espaces autres2.
O texto Des espaces autres, Outros espaços na tradução brasileira, propõe a
heterotopologia, uma história dos espaços, e faz uso do conceito de heterotopia, que
consideramos uma alavanca que nos conduz a pensar o espaço por outras miradas.
Em Outros espaços Foucault questiona a representação moderna do espaço e do
tempo e demonstra como o conceito de espaço ganha outros significados ao longo da
história. Nele, o autor aponta uma pista fundamental quando diz que estamos vivendo
na época da simultaneidade, em que os espaços se justapõem; na qual ao mesmo
tempo que é próximo e convive lado a lado, por ora pode estar disperso.
Tais sinais não parecem ser tão estranhos na medida em que reconhecemos
que o conceito de espaço hoje parece tomar uma outra conotação além das usuais. A
época em que vivemos está revestida de análises e conotações espaciais. Podemos
pensar que desde nosso cotidiano, com a simples ação de melhor traçar um percurso
para viajar, arquitetar espaços domésticos, planejar e recriar espaços urbanos, até
mesmo ações em escalas mais amplas, como as globais, na estruturação de blocos
1
O presente texto faz parte das discussões teóricas de minha pesquisa de doutorado e conta
com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP.
2
O texto Des espaces autres foi publicado nos Dits et Écrits IV em 1994 pelas Edições
Gallimard.
1
econômicos, nas microterritorialidades da cidade, na mobilidade e vulnerabilidade das
fronteiras nacionais, a compreensão e a análise espaciais são cada vez mais
presentes e imperativas. Todas essas questões nos mostram que a discussão
espacial tornou-se um tema nuclear na contemporaneidade, sejam essas questões de
caráter filosófico, político, social, econômico ou cultural.
De acordo com Massey (2009), essa forma de conceber o espaço requer uma
nova história da categoria espaço que muito difere da organização espacial
característica da Idade Média e da Idade Moderna. Nesses períodos, o espaço era
visto simplesmente como componente físico e natural, ou como um espaço
matemático e cartográfico localizável, ou ainda, como simples suporte para as
realizações humanas. Naturalmente, esses períodos apresentaram um sistema de
interpretação espacial que não mais se sustenta diante do abalo gerado pelas novas
formas de conhecimento e de representação espacial. O que constatamos é que o
próprio conceito de espaço, tão caro à geografia, ainda hoje apresenta múltiplas faces
de interpretação.
A partir da discussão espacial que se evoca, em um primeiro momento
buscamos perspectivar a questão do espaço no pensamento foucaultiano e, em
seguida, mobilizamos os estudos de Edward Soja e de Henri Lefebvre, no intuito de
estabelecer pontes teóricas com os espaços heterotópicos trabalhados por Michel
Foucault.
UM OLHAR ARQUEOGENEALÓGICO SOBRE O ESPAÇO
A tamanha envergadura da obra de Michel Foucault resulta, em grande parte, de
sua constante inquietação e estranhamento pelas verdades instituídas. Mesmo depois
de praticamente três décadas de seus últimos escritos, a demolição de tais evidências
ainda alimenta o debate e reverbera o potencial analítico de seu pensamento na
produção acadêmica brasileira (PARAÍSO, 2004; AQUINO, 2013).
A obra do filósofo francês, desenvolvida ao longo de 30 anos, abrange os livros
escritos de 1954, com Doença mental e psicologia, até os segundo e terceiro volume
de História da sexualidade, de 1984; os 13 cursos ministrados junto ao Collège de
France; e o conjunto de textos esparsos como artigos, entrevistas, prefácios etc.,
compilados nos Ditos e Escritos.
2
Em seu trabalho arqueológico3, é em História da Loucura que vemos os
primeiros ensaios da obsessão foucaultiana pelos espaços.4 Fruto de sua tese de
doutorado, o livro apresenta um minucioso trabalho de arquivo – dentre livros,
tratados, cartas e manuscritos sobre a história da medicina - que retrata a experiência
da loucura medieval e seus correlatos geográfico-espaciais. Os conceitos de exclusão,
margem, limite, cidade, território estão presentes no texto e são associados,
propriamente, aos espaços institucionais, como os leprosários, os hospitais
psiquiátricos, os internatos. Espaços que cumprem com a dupla função de incluir e
excluir. No livro, o autor demonstra como os incômodos personagens, indesejados da
razão ocidental, são agrupados e excluídos espacialmente em um espaço fechado
criado na inclusão para a exclusão, sendo a loucura o motivo principal para a
segregação espacial.
Em seu trabalho genealógico é onde encontramos referências mais explícitas às
análises espaciais. Os cenários apresentados em Vigiar e Punir tornam-se ilustrativos,
uma vez que esta obra deu grande visibilidade ao domínio espacial no nível corporal,
principalmente com o modelo panóptico. Ainda, nesta obra o autor traz a discussão
sobre o corpo e como esse primeiro espaço é controlado, adestrado e vigiado em
virtude de relações de poder que são, sobretudo, espaciais. Corpo que o autor, em
Microfísica do Poder segrega e confina em hospitais, prisões e manicômios, ambientes
especiais para o alojamento dos indesejados.
3
De acordo com Muchail (2004, p. 9-10), os trabalhos de Foucault são agrupados em três
momentos. “O primeiro, conhecido como período da "arqueologia", é voltado principalmente
para questões relativas à constituição dos saberes e inclui os principais livros publicados na
década de 1960: A história da loucura (1961), O nascimento da clínica (1963), As palavras e as
coisas (1966) e A arqueologia do saber (1969). O segundo momento, conhecido como período
da "genealogia", é centrado sobre questões relativas aos mecanismos do poder e inclui os
principais livros da década de 1970: Vigiar e punir (1975) e o volume I da História da
sexualidade, intitulado A vontade de saber (1976). O terceiro momento trata de questões
relativas à constituição do sujeito ético e inclui os volumes II e III da História da sexualidade,
intitulados, respectivamente, O uso dos prazeres e O cuidado de si (1984). A este conjunto
devem ser acrescentadas ainda duas situações ocorridas após a morte de Foucault: a
publicação, em 1994, dos Dits et écrits (são quatro volumosos livros que reúnem textos
dispersos, conferências, artigos, aulas etc. que Foucault produzira e realizara em diversos
países), e, ainda mais recentemente, a gradativa edição dos cursos que Foucault ministrou no
Collège de France entre os anos 1970 e 1984 (foram ministrados treze cursos), cuja publicação
foi iniciada em 1997”.
4
Aqui estamos tratando especificamente do espaço como componente físico; por esse motivo,
não fizemos menção ao trabalho arqueológico de As palavras e as coisas (1966), no qual
Foucault explora o conceito de episteme, que obedece a formas de ordenamento geométrico.
O autor trata o conceito como uma metáfora espacial, topológica, que segue uma lógica na
qual cada elemento da linguagem só faz sentido em um conjunto, uma estrutura que obedece a
uma exigência arquitetônica, e, portanto, espacial.
3
E em seus últimos trabalhos, traduzidos no Brasil a partir da década de 1990, o
que seria seu momento ético, Foucault coloca em evidência a noção de cuidado de si
que
prevalece
juntamente
com
outras
temáticas
como
a
biopolítica,
a
governamentalidade e os processos de subjetivação. Temas que, apesar de não
abordarem explicitamente o espaço, como acontece no momento genealógico, não
deixam de estar relacionados a ele.
Outros elementos que chamam a atenção é o fato de Foucault apontar, além do
espaço, diversos conceitos que também são centrais ao pensamento geográfico. A
obra foucaultiana está repleta de implicações e percepções sobre espaço e
espacialidade. Naturalmente, a utilização de tais conceitos mobiliza uma série de
outros conceitos que a geografia faz uso em suas análises: análises sobre urbanismo
e saúde urbana, os espaços de bibliotecas, arte e literatura, os outros espaços
heterotópicos, as sugestivas discussões sobre a arquitetura de asilos, presídios e
hospitais, até mesmo a própria distribuição espacial do conhecimento. Ao longo de sua
obra, trabalhou com variados conceitos e metáforas geográficas ao tentar
compreender espacialmente as relações de poder e as práticas discursivas. São
recorrentes em seus textos reflexões sobre lugar, território, paisagem, horizonte,
região, domínio, arquipélago, governo, Estado, geopolítica etc. Ao fazer uso desse
vocabulário geográfico, Foucault tentou “pensar a história e as sociedades em termos
de relações, tensões, conflitos, que levam a constituição e ao desmanchamento de
dadas configurações ou desenhos espaciais. ” (JÚNIOR; VEIGA-NETO; FILHO, 2011,
p. 10)
Embora os principais textos foucaultianos tenham sido escritos entre 1961 e
1984, ainda hoje despertam muitas críticas, mas, por outro lado, têm atraído cada vez
mais um número maior de geógrafos. Prova disso é o livro Space, knowledge and
power: Foucault and geography, lançado em 2007, com foco exclusivo na discussão
sobre geografia, espaço e poder. De acordo com Crampton e Elden (2007), as
primeiras ondas de apropriação e crítica aos trabalhos de Foucault, no que diz respeito
a questões geográficas, partiu da geografia anglófona no final da década de 1980:
Derek Gregory, Felix Driver e Chris Philo, na Universidade de Cambridge, e o
controverso livro Geografias pós-modernas (1989), de Edward Soja. No Brasil, o
primeiro trabalho que referencia Foucault e a geografia foi escrito por Antônio Carlos
Robert Moraes, em 1988.5
5
Outros trabalhos também são significativos na expansão da discussão espacial na obra
foucaultiana, ainda que não façam menção exclusiva a análises geográficas: Espacio y poder:
el espacio en la reflexión de Michel Foucault, lançado em 2006 pela professora María Inés
García Canal, da Universidad Autónoma Metropolitana, no México; La cuestión del espacio en
la filosofía de Michel Foucault, lançado recentemente, em 2013, pelo professor Adrián
4
Embora realcemos o quanto a obra de Foucault pode servir como estímulo e nos
conduzir a pensar o espaço geográfico por outras miradas, há um ponto importante
que merece esclarecimento, é preciso deixar claro que Foucault em nenhum momento
em seus textos teve a intenção de discutir geograficamente cada conceito. O que para
alguns autores acaba por mostrar certa fragilidade no trato com os conceitos
geográficos. Casey (1998), em seu livro The fate of place, é um desses exemplos.
Para o autor, um dos problemas diz respeito a inexistência clara e rigorosa de
determinados conceitos. Ora Foucault apresenta o termo lugar, ora espaço, ora
localização, ora local. Acredita que a falta de rigor e maior esclarecimento dos termos
acabam por confundir e até mesmo gerar incompreensões no que Foucault está
afirmando a respeito de determinado espaço.
Peixoto (2011), leitor de Foucault e Casey, segue o mesmo raciocínio e assinala
outros pontos
no
que
diz respeito
às interpretações teórico-metodológicas
relacionadas à geografia. Para este historiador, um problema diz respeito à
inexistência de uma crítica da ideia de local,
embora grande parte da pesquisa de Foucault possa ser
caracterizada como um investimento em torno da exploração de
temas que contextualizem a perspectiva poder-conhecimento a partir
de uma definição do que poderíamos chamar de contralocais. (p. 355356)
Portanto, reafirmamos, ainda que os trabalhos de Foucault façam frequentes
alusões às categorias geográficas, observamos que a apresentação dos conceitos
feita pelo filósofo é uma preocupação distinta da própria conceitualização utilizada e
exigida pela ciência geográfica. O próprio autor estava ciente desta conduta e a
justificativa foi por ele mesmo explicitada em uma entrevista dada em 1976 à revista
Hérodote, a qual naquele momento tinha como diretor Yves Lacoste, e posteriormente
publicada na obra Microfísica do Poder.
No texto Sobre a geografia Foucault deixa claro esse posicionamento e
esclarece que esmiuçar os conceitos geográficos não é a sua intenção. Reafirma sua
obsessão pela arquitetura dos espaços, pelas figuras espaciais quando descreve
dadas instituições, mas pontua: “reprovaram−me muito por essas obsessões
espaciais, e elas de fato me obcecaram. Mas, através delas, creio ter descoberto o
que no fundo procurava: as relações que podem existir entre poder e saber”
(FOUCAULT, 2010, p. 90). Acreditava que decifrar o discurso através de “metáforas
Acevedo, da Pontificia Universidad Javeriana, na Colômbia; e a tese de doutorado Michel
Foucault y la visoespacialidad: análisis y derivaciones, defendida por Rodrigo Hugo
Amuchástegui na Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires, no ano de 2008.
5
espaciais, estratégicas, permite perceber exatamente os pontos pelos quais os
discursos se transformam em, através de e a partir das relações de poder” (idem).
OUTROS ESPAÇOS ... OUTRAS ESPACIALIDADES ...
O conceito de espaço ocupou a mente de diversos teóricos, escolas de
pensamento e segmentos da sociedade, de filósofos a intelectuais, de governantes a
militares, de geógrafos a engenheiros. Os sinais da importância do espaço na
literatura podem ser vistos nas obras de Braudel e Foucault, ao relacioná-lo com a
história; na esfera política, nos trabalhos de Lefebvre e Massey; na poesia com o
trabalho de Bachelard; na configuração espacial urbana, com os trabalhos de Soja; na
desterritorialização, discutida por Deleuze e Guattari; e na experiência espacial, a
partir do lugar apontado em Foucault, Tuan, Soja e Massey.
Interessante que pensadores contemporâneos, e que não consideram
necessariamente o espaço como objeto de estudo, muito menos o espaço geográfico,
servem como esboço inicial para pensarmos o binômio espaço-espacialidade.
Os espaços que queremos colocar em voga são espaços marcados pela
diferença, espaços de exclusão, espaços segregados, espaços marginais, espaços de
resistência, justamente os espaços que permeiam a obra foucaultiana. “Foucault
sempre olhou para a história não em busca do que é central, mas do que foi jogado
para as margens, das práticas e discursos em ruptura com a norma, com o
hegemônico, com o majoritário” (JUNIOR, 2011, p.100). O olhar espacial de Foucault
estava preocupado em dar visibilidade e fazer uma leitura das fronteiras, das margens,
do que é jogado para fora dessas margens e fronteiras, daquilo que está na periferia.
Isso fez na medida em que apresentava os anormais, a loucura, o corpo, a
sexualidade, elementos que a racionalidade moderna tentou excluir, expulsar e
ocultar. Para tratar sobre esse espaço do outro, esse espaço que fica de fora, esse
espaço da diferença, esse espaço da resistência, esse espaço outro, Foucault fez uso
do conceito de heterotopia.
De acordo com o autor, as heterotopias são esses espaços diferentes, lugaresoutros que não estão nem aqui, nem lá, que estão fora de todos os lugares, mas que
possuem sua posição localizável na realidade. Buscando exemplificar um pouco mais
as heterotopias o autor as definiu em seis princípios básicos (FOUCAULT, 2009):
1. Todas as culturas existentes formam e criam heterotopias que separam
determinados grupos da sociedade;
2. As heterotopias variam em função do tempo e da cultura;
6
3. As heterotopias podem unir múltiplos espaços incompatíveis entre si;
4. As heterotopias podem conectar diferentes períodos de tempo;
5. As heterotopias são locais separados da sociedade e com regras limitando a entrada
e saída;
6. As heterotopias tem uma função relacionada ao espaço ao redor.
Outros espaços, espaços subversivos que evidenciam em sua existência a
suspensão e inversão da ordem social, que contestam a norma, as estruturas sociais e
políticas hegemônicas. Outros espaços que, ademais excludentes e segregados,
enunciam a resistência aos diferentes tipos de poder, lutas em vigor de uma
espacialidade.
Foi Edward Soja, em sua proposta de Geografia Crítica discutida em Geografias
pós-modernas e em Thirdspace, que recuperou as ideias foucaultianas sobre os
espaços heterotópicos. Mais recentemente, o geógrafo suíço Claude Raffestin (2011)
atualiza o pensamento foucaultiano em direção a uma análise geográfica do espaço,
porém de modo diferente daquela proposta por Soja, pois não trata diretamente dos
espaços heterotópicos, mas tece relações entre geografia e poder. Em sua obra mais
conhecida, Por uma geografia do poder (1980), fica evidente a influência do
pensamento foucaultiano quando traz para discussão o conceito de poder no conceito
de território. Mais recentemente, o autor expressou a importância e atualidade do
pensamento de Michel Foucault em entrevistas à EspacesTemps (RAFFESTIN, 2005)
e à Revista Formação (RAFFESTIN, 2008).
Durante as últimas duas décadas, temos notado um crescente reconhecimento e
apropriação do conceito de espaços heterotópicos por vários autores, na tentativa de
explicitar a subjetividade espacial. Diversos geógrafos e teóricos sociais (SOJA, 1993;
LEFEBVRE, 2000; SMITH, 2002; MARTIN, 2002; HARVEY, 1998, 2007; SHEEHY,
2009; VALVERDE, 2009; JACKSON, 2013) têm se valido do conceito de heterotopia,
enxergando nele uma possibilidade de reflexão das lógicas de ordenamento espacial
e, principalmente, de superação dos limites analíticos estabelecidos pela geografia
moderna.
Os trabalhos de David Harvey representam essa tentativa. Em Espaços de
esperança, Harvey (2000) traz a reflexão sobre a globalização e nos convida a pensar
por meio de uma imaginação utópica. A imaginação utópica seria uma maneira de
pensar por meio da força política da mudança, propondo alternativas que se
contraponham
contemporânea.
à
lógica
Harvey
destrutiva
discute
inerente
múltiplas
ao
processo
possibilidades,
de
dentre
globalização
elas
uma
outraneidade-espacializada, e, para isso, acentua em diferentes momentos a
7
importância do pensamento espacial foucaultiano. Em destaque, a parte que trata Dos
Corpos e das Pessoas Políticas no Espaço Global, e a parte que discorre sobre O
Momento Utópico, fazendo menção diretamente ao conceito de heterotopia. De acordo
com Harvey (2000, p. 184),
Foucault assegura-nos abundantes espaços em que a ‘outraneidade’
[otherness], a alteridade, e, daqui, as alternativas puderam ser
exploradas não como meros produtos da imaginação mas através do
contato com processos sociais que já existem. É dentro destes
espaços que as alternativas podem tomar forma e, a partir destes
espaços, que uma crítica de normas e de processos existentes pode
o mais eficazmente ser montada.
Já em La condición de la posmodernidad: investigación sobre los orígenes del
cambio cultural (1998), acredita que o conceito de heterotopia, desenvolvido por
Hetherngton, permite avançar na compreensão da heterogeneidade espacial ao
possibilitar o estudo da história dos espaços nos quais a vida é apropriada de modo
distinto. Para ele, são espaços fomentadores de alternativas. Para tanto, Harvey faz
uso do conceito de heterotopia de uma maneira curiosa. Ao tratar dos espaços
heterotópicos, o autor conduz sua mirada para os espaços múltiplos, justapostos,
impossíveis. Para exemplificar tal atmosfera, faz uso do cinema. Em menção ao livro
de McHal, Postmodernist fiction (1987), elenca dois filmes para ilustrar a ficção pósmoderna com a questão do outro e de outros mundos. Em sua descrição cita o
clássico filme de 1941, Cidadão Kane, em que um jornalista busca desvendar o
mistério da vida do personagem Kane reunindo múltiplas recordações e perspectivas
daqueles que o conheceram. E em um formato mais pós-modernista de cinema
contemporâneo, cita o filme Veludo Azul, em que
el personaje central se debate entre dos mundos incompatibles: el de
un pequeno pueblo norteamericano de la década de 1950, con su
escuela de estudios secundários, la cultura dei kiosco, y un
submundo sexual delirante de drogas, demencia y perversión sexual.
Parece imposible que estos dos mundos existan en el mismo espacio,
y el personaje central se mueve entre ellos, sin saber a ciencia cierta
cuál es la realidad, hasta que los dos mundos se chocan en una
terrible catástrofe. (HARVEY, 1998, p. 66)
A ação que traz em destaque ao relacionar os enredos cinematográficos com o
conceito de heterotopia é justamente o exercício de pensar o espaço como outro além
do instituído, comportando diferentes dimensões, um conjunto de “mundos posibles
fragmentarios o, más simplemente, espacios inconmensurables que se yuxtaponen o
superponen entre sí” (p.66).
Soja (1997) segue o desenvolvimento desta ideia ao explanar sobre o conceito
de terceiro espaço. Para desenvolvê-lo, busca inspiração em Borges e, em especial,
no conto El Aleph. Nas palavras do escritor, o Aleph é “un espacio que contiene a
8
todos los espacios simultáneamente, y que pueden verse con claridad al mismo
tiempo” (p.71).
No Brasil, os trabalhos que salientam a questão do espaço, diante das
abordagens apresentadas, vão desde os estudos culturais, mais especificamente a
crítica feminista e pós-colonial, com destaque para as discussões sobre classe, raça e
gênero, aos estudos sobre território e microterritorialidades, que apontam para um
conjunto de práticas espaciais resultando em distintas disputas por conquista de
espaço, que traduzem não só a ocupação do mesmo, mas o próprio controle e
governamento dos cidadãos. Como é o caso do texto Sobre espaço público e
heterotopia, no qual o professor Rodrigo Valverde (2009) faz uso do conceito
foucaultiano de heterotopia para questionar o papel da dimensão social dentro da
teoria dos espaços públicos. E mais recentemente, o evento acadêmico-científico El
control del espacio y los espacios de control, realizado em maio deste ano em
Barcelona, com destaque para o eixo La ocupación del espacio y el control de los
indivíduos, talvez demonstre a investida mais atual no intuito de ampliar a discussão
sobre o tema em pauta.
Pode-se postular, portanto, que a evolução do pensamento sobre o espaço tem
posto em tela imagens que reafirmam o complexo processo de produção e ocupação
espacial. Uma análise mais apurada das relações espaciais expressaria não somente
como o espaço está organizado, mas traduziria a articulação de interesses de
diferentes ordens, dimensões subjetivas que apontam anseios, ideologias e utopias
daqueles que dele fazem uso. Desse modo, compreender os processos de produção e
organização do espaço nos ajuda a pensar o complexo jogo pelo qual se produz
coletiva e subjetivamente o mundo que nos rodeia. Isso significa conceber que as
relações sociais estão imbuídas de poderes que produzem e constroem espaços por
seus sujeitos transformadores, ativos e inventivos, os quais forjam novas e distintas
formas espaciais.
Nesse sentido, vemos que as heterotopias propiciam uma recontextualização do
espaço quando trazem à tona interstícios para novas interpretações a respeito do
mesmo. Confrontar a produção e a utilização dos espaços à noção de heterotopia
formulada por Foucault parece ser um caminho promissor para a compreensão dos
vínculos que se estabelecem entre espaço, governamento, resistência e criação
espaciais. Notamos, sobretudo, que o conceito de heterotopia pode ser uma das
possibilidades que reoriente a compreensão daquela análise proposta inicialmente por
Soja e, quiçá, ajude a alimentar o debate para que outros espaços e outras
espacialidades possam encontrar um posto de destaque nas discussões geográficas.
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