UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA Prof. Selvino José Assmann Subsídios de estudo/tradução DIALÉTICA NAS INSTITUIÇÕES. SOBRE A ESTRUTURA HISTÓRICA E SISTEMÁTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO DE HEGEL Manfred RIEDEL (Tradução portuguesa de Selvino José Assmann da versão italiana : Dialettica nelle istituzioni. Sulla struttura storica e sistematica della Filosofia del Diritto di Hegel . In: CHIEREGHIN, Franco (org.) Filosofia e società in He gel . Trento, Quaderni di Verifiche 2, 1977, pp. 35-60) A filosofia do direito segundo a concepção de Hegel não é nem a teoria da ciência positiva do direito, nem a doutrina dos princípios de um direito natural que deva desenvolver um catálogo de direitos individuais da liberdade. O seu objeto não e´, de modo algum, um sistema histórico ou supra-histórico de direitos, mas o direito (no singular), e mais precisamente: o seu "conceito" e o seu "ser-aí" (Dasein) ou "realização"( § 1). Hegel fala da "idéia do direito", pois a filosofia, como se lê no início da obra, tem a ver apenas com idéias e, portanto, não com o que se costuma denominar "puros conceitos" - "ela demonstra antes a unilateralidade e falsidade destes, assim como mostra que o conceito... apenas é o que tem realidade (Wirklichkeit), ou seja, de maneira a dar-se ele mesmo tal realidade". Esta linguagem pressupõe a compreensão de algumas definições terminológicas fundamentais da Lógica. Segundo Hegel, "ser-aí" (Dasein) equivale a "ser determinado", que na determinação das suas respectivas "configurações" e "existências" (Existenzen) não corresponde àquilo que, na linguagem comum, significa "realidade" (Wirklichkeit). Hegel denomina-as formas do imediato que passam a outro. Direitos históricos positivos, por exemplo, as leis de um país ou de um Estado, existem e estão em vigor; diz-se que "existem historicamente". O termo "existência", porém, como o introduz a Lógica, a "unidade imediata do ser e da reflexão", não define a estrutura da realidade, mas do fenômeno. Embora o direito deva também aparecer, embora o "mundo do aparecer do ético" se apresente a um ponto eminente na seqüência conceitual da filosofia do direito, a linguagem do aparecer joga aqui um papel metodicamente secundário. Todo aparecer é imediato, vem do fundamento, na expressão de Hegel, e vai ao fundamento. Só o fundamento que já não é um "passar a outro", "media" o lógico com o histórico. Tal fundamento que possui a forma do mediat(d)o, chama-se na terminologia hegeliana "realidade" (Wirklichkeit): "O real (das Wirkliche) é a posição da unidade, a relação tornada idêntica consigo mesma é portanto subtraída ao passar a ...; o seu ser determinado é apenas a manifestação de si mesmo, e não de um outro" . O objeto da filosofia do direito é a realidade efetiva do direito, e a realidade do direito reside, segundo Hegel, na "idéia da liberdade", que se constitui na unidade das determinações opostas. O que "manifesta" o direito historicamente posto é aquele conceito que se a sua "realidade" e que constitui assim - com referência ao direito natural - sob o princípio normativo da liberdade (da "vontade", que é livre" - & 4), o ponto de partida da "ciência filosófica do direito". O seu novo ponto de partida metodológico consiste, porém, no fato de que esta, a partir daquele princípio normativo do direito, não deduz um sistema de normas jurídicas supra-históricas, mas compreende o caminho para a idéia como o curso dialético-contraditório da configuração histórica de instituições, e compreende esta mais longa via como a condição necessária do conhecimento da dialética do próprio conceito lógico. I A palavra "instituição" não é terminologicamente definida na filosofia do direito, mas é tomada do uso corriqueiro da língua, sendo utilizada em vários contextos. Podemos distinguir um significado mais restrito (a) e um significado mais amplo (b).No sentido mais restrito (a), tem a ver com determinações do direito romano, que Hegel interpreta (errando do ponto de vista histórico) exclusivamente como direito privado. Exemplos de "instituições", segundo o contexto originalmente jurídico da palavra, "a pátria potestade romana, o matrimônio romano", enquanto fundamentos dos conceitos do direito privado romano . No processo sistemático da formação conceitual da filosofia do direito, ele nasce deste contexto de exemplos que compreende o âmbito do "direito abstrato", assim denominado por Hegel (com propriedade e contrato como instituições fundamentais). Para Hegel, a idéia da liberdade é "real" ,antes de mais, apenas após a crítica ao direito historicamente delimitado destas instituições (na seção Moralidade) e após a sua superação no conceito e no ser-aí da eticidade. Também a eticidade como o "bem vivente, que tem na sua autoconsciência a sua realidade, e como tal encontra no ser ético o seu fundamento em si e para si e o fim motor" (§142), tem necessidade da configuração histórica. A linguagem da eticidade nada mais é que um "desenvolvimento das relações que são necessárias no Estado para efeito da idéia da liberdade, e, portanto, reais em toda a sua amplidão". No contexto linguístico da eticidade e da sua relação com o "direito do Estado" - o direito público - o conceito das instituições adquire o seu significado mais vasto (b). Aqui, porém, Hegel não usa mais a expressão latinizante, mas a substitui com o equivalente alemão "Einrichtung" (ordenamento ou instituição). Os "conteúdos consolidados" do ético, as "potências éticas" (§145) que escapam às preferências e opiniões subjetivas de cada um são as "leis e instituições (Einrichtungen) que são em si e para si" . A mediação do lógico com o histórico no direito, conforme se assinalou, passa através do conceito de realidade da Lógica, o qual funda também as relações entre direito natural, direito positivo e ciência do Estado, e portanto, a origem da dialética das instituições, que aqui devemos examinar mais de perto. Infelizmente Hegel deixou de prevenir contra os óbvios mal-entendidos de uma palavra tão ambígua, que aparece familiar a qualquer um e é suscetível de qualquer uso. É verdade que o Prefácio à filosofia do direito, no seu famoso e famigerado dito sobre a racionalidade do real e sobre a realidade do racional havia sido referida ao sentido logicamente definido deste termo, mas, em seguida, a alusões contemporâneas a um uso linguístico vulgar, pré-filosófico, o mesmo provocou um mal-entendido de uma apologia unívoca do positivo, especialmente do Estado historicamente existente (aquele "prussiano") e de uma rejeição igualmente unívoca dos princípios do direito natural. De fato, a concepção hegeliana de um "direito filosófico" tem pouco em comum com a dos seus predecessores no direito natural moderno. Contudo, ela corresponde ainda menos àquele conceito de uma "filosofia do Estado" restaurador, que tanto os seus sucessores quanto seus críticos quiseram deduzir. Segundo as definições dos conceitos da Lógica, "realidade" significa "a unidade imediata, que se produziu, da essência e da existência, ou do interno e do externo" . A este uso linguístico que define a estrutura do real como mediação, correspondem, na filosofia do direito, dois momentos que pertencem à dialética do conceito do direito e, ao mesmo tempo, ao seu ser-aí, à realização nas instituições éticas. Em terminologia que se afasta um pouco de Hegel, chamamo-las os momentos da reflexividade e da positividade do direito. O termo "reflexividade" significa aqui a relação da realidade jurídica com a "base" do direito, ou seja, a relação, que para o direito é constitutiva, de algo, ou seja, do sujeito jurídico, consigo mesmo, que se tem ao mesmo tempo como portador de deveres - a observância e o reconhecimento de normas e leis. A expressão fundamental desta reflexividade é o conceito hegeliano da "livre vontade", que , segundo a dialética de toda a realidade como unidade de "exteriorização" e reflexãoem-si, quer a si próprio no outro de si e, portanto, a "livre vontade" (§27). A "livre vontade" - a capacidade jurídica universal do homem enquanto homem - é o conceito elementar "do direito" no sentido do direito natural moderno, mas, conforme se mostra na reconstrução dialética, os conteúdos desta vontade são configurações históricas de instituições. A filosofia do direito não vê nenhuma possibilidade de deduzir determinados conteúdos do direito a partir de um princípio normativo universal do direito - o pensamento "segundo o qual poderia haver um sistema jurídico e um estado jurídico que fosse puramente racional, apenas racional" é rejeitado por Hegel como um postulado abstrato do direito natural. Os conteúdos do direito numa determinada fase do desenvolvimento das instituições - por exemplo, do direito romano ou do direito feudal medieval são produtos de formação historicamente acidental. Embora estes não devam ser apenas descritos e explicados historicamente, mas também julgados (§3) - segundo o princípio da capacidade jurídica do homem enquanto "livre" - a filosofia do direito exclui consequentemente uma dedução a partir do princípio do direito natural. A chave para a compreensão da dialética do "direito filosófico" encontra-se no conceito de "positividade". Este termo que, como se sabe, joga papel central já nos escritos juvenis de Hegel, deve expressar aqui a relação do conceito de direito com o seu ser determinado em instituições, o positivar-se de normas morais e jurídicas em leis - uma relação que, conforme Hegel, é constitutiva para o "direito em geral". Consegue-se, por assim dizer, analiticamente, partindo do conceito do direito, ser positivo, entrar na exterioridade do ser-aí e da existência, e ter valor como "aquilo que é de direito", a saber, como lei. O direito filosófico e o direito positivo distinguem-se entre si, mas Hegel julga a contraposição entre direito positivo e natural um "grande mal-entendido". Ele compara - de novo em paralelo com o direito romano - a sua relação recíproca com aquela existente entre Instituições e Pandectas (Digesto: decisões de antigos jurisconsultos romanos convertidas em lei por Justiniano - séc. V: nota do tradutor).: ambas pertencem ao Corpus Juris Civilis, à positividade de um sistema de direitos. O direito é necessariamente positivo, seja formalmente, enquanto tem valor apenas no Estado, seja pelos elementos do seu conteúdo ( das peculiaridades nacionais e da fase do desenvolvimento histórico de um Estado e da organização e aplicação de qualquer sistema jurídico) que não podem provir de um princípio jurídico normativo (§3). Da necessidade da positividade do direito deriva a relação, fundamental para a filosofia do direito de Hegel, do "direito natural", com a "ciência do Estado", relação fixada pelo título da obra, que deve ser entendido como programático. Do ponto de vista histórico, ele designa duas disciplinas diversas da filosofia. A primeira disciplina - o direito natural - recebeu a sua formação sobretudo na idade moderna, enquanto a proveniência da segunda remete ao mundo antigo, à teoria grega da polis. A marca sistemática da política clássica consiste, porém, em não separar direito natural e ciência do Estado. A idéia política racional de uma ótima constituição desenvolvida pela República e pelas Leis de Platão ou pela Política de Aristóteles compreende-se como apresentação do direito natural e de uma sociedade juridicamente constituída ("civil") ( politiké koinonia, societas civilis) que é idêntica ao Estado (polis, civitas, res publica). Conectado com esta forma tradicional não atingida por nenhuma contradição, o jovem Hegel concebeu a tarefa de um tratamento científico do "direito natural" antes de mais no fato de um todo político, do "Estado" como instituição fundamental . Mas ele teve que reconhecer o seguinte: que, dada a configuração especificamente histórica do Estado moderno, a aplicação de um conceito nãodialético de política, que afoga o agir de cada um nas instituições e que elimina, portanto, a possibilidade da contradição, não pode senão levar à prática do absolutismo político - à posição de Maquiavel. É em polêmica com isso que se formou, no direito natural de Hobbes até Kant, a posição contrária do individualismo jusnaturalista. É o direito deste direito natural de manter, dentro de limites fixos, as intromissões "ilegítimas" do Estado numa sociedade em si mesma ordenada ("civil"), ou então de superar mediante uma revolução a política do Estado que se enrijeceu na pura função do poder, criando um novo conceito de liberdade e de direito. A antítese entre direito natural e ciência do Estado encaminha assim a inversão de rota na direção do Iluminismo político, e da passagem para a revolução, acompanhando assim, de agora em diante, o seu curso. A dialética conceitual de Hegel pressupõe a antítese e é a tentativa filosófico-política de a superar. A filosofia do direito compreende-se como "filosofia do direito" porque busca conciliar na dialética da idéia do direito um direito natural pré-estatal com o direito positivo do Estado. A idéia do direito, diz Hegel (§1, nota), é a liberdade e, a fim de ser concebida de fato, ela deve ser reconhecível no seu conceito e no seu ser determinado, a saber, no apresentar-se da configuração histórica das instituições e da realidade jurídica pertencente a ela. Com a relação histórico-dialética entre o conceito de direito e a existência de instituições, a linguagem do direito natural torna-se problemática. "A expressão direito natural - conforme se lê já na Enciclopédia das Ciências Filosóficas de Heidelberg (1817) - que se tornou ordinária para a doutrina filosófica do direito, contém a equivocidade entre o direito entendido como existente em modo imediato de natureza, e aquele que se determina mediante a natureza da coisa, ou seja, o conceito. O primeiro sentido é aquele que havia ocorrido um tempo: de tal forma junto foi inventado um estado de natureza no qual o direito natural devesse valer". O "conceito" da coisa é para Hegel o direito enquanto funda a si próprio e a todas as suas determinações não sobre a natureza, mas sobre a "personalidade livre" - "uma autodeterminação, que é... o contrário da determinação natural" (§415). A realidade do direito não é natureza; ela é o "mundo do espírito criado por ele mesmo" (Fil. do Direito, & 4) - uma "segunda natureza" que Hegel denomina o "reino da liberdade realizada". Ele constitui-se naquelas instituições representadas pelo esquema da Filosofia do Direito, a começar pelas formas preliminares do direito abstrato, até chegar às configurações históricas da família, da sociedade civil e do Estado. É óbvio que aqui as relações "naturais" um papel em todos os lugares; a pergunta é se elas produzem por si uma lei que domine aquelas configurações. Hegel rejeita decididamente esta pergunta e a linguagem de uma "lei natural" relacionado com a resposta positiva à mesma. A necessidade que cabe, por exemplo, à instituição "Estado" na relação com o indivíduo, já não significa que, para cada um, é uma lei de natureza o fato de dever viver no Estado; a necessidade ética do Estado é antes fundada na lei da liberdade que não é dada por uma "natureza" imutável, mas pelo "conceito" mesmo - dependente, na sua dialética, da realização histórica nas instituições. A auto-realização do conceito - este é para Hegel o princípio jurídico natural da capacidade jurídica universal do homem, que se levanta contra as condições de domínio e de dependência existentes e que rompe a pobreza ("la parvenza") da naturalidade por detrás da qual estava até agora escondido pensamento do direito, a liberdade. II Assim, para Hegel, o "direito filosófico" é diferente tanto do direito positivo do Estado, quanto do direito natural. A filosofia do direito situa-se no meio dos dois extremos contemporâneos: a concepção racional do direito (Kant, Fichte) e aquela "orgânica" (Savigny). Com Savigny e a Escola Histórica, Hegel recusa o Estado de razão do direito natural. Mas nele a explicação histórica não tem apenas o sentido da justificação histórica e da legitimação do direito positivo, mas também o do "desenvolvimento a partir do conceito" (§ 3). O desenvolvimento dialético do conceito é ele próprio histórico - o progresso gradual da liberdade na história do mundo - e a tarefa da filosofia do direito consiste em dar a "legitimação válida em si e para si" (ibid.) ao direito histórico-positivo de uma época. Isso é de importância decisiva para a compreensão da obra e da sua colocação histórica de fundo. Hegel situa-se no âmbito da revolução moderna e da sua constituição e legislação, que o direito natural tornou positivas. A racionalidade do Estado já não é um postulado para ele, mas é antes a realidade da história acontecida aquilo que leva o "direito filosófico" a reconhecê-la. À "filosofia do Estado" em voga no seu tempo e tendo como objetivo projetar uma teoria nova e particular "como se nenhum Estado nem nenhuma constituição (política) houvesse ainda existido no mundo ou hoje existisse, como se se devesse começar tudo agora - e este agora renova-se sempre indefinidamente desde o princípio" , Hegel contrapõe um conceito de filosofia no qual "explorar o racional" se conecta com o "compreender o presente e o real". Dela retoma a tarefa tradicional "de compreender o que é", de ser conhecimento especulativa do ser, para lhe dar uma interpretação que parece invertê-la no contrário: de pensar o ser no horizonte do acontecer do tempo. Assim a filosofia, como conhecimento do que é, é também "o próprio tempo expresso em pensamentos"; ela ultrapassa tão pouco o seu mundo presente quanto o indivíduo, como "filho do próprio tempo" não pode saltar sobre Rodes. É sobre este entrelaçamento entre tempo e ser que está baseada a distinção hegeliana da "idéia do direito" como a unidade entre conceito e ser-aí. Na solução do problema de reconhecer a liberdade como esta idéia, a filosofia do direito evita a dupla unilateralidade do direito natural e do positivismo jurídico, que se atém ou apenas ao conceito abstrato de um direito "natural" ou ao ser-aí do direito positivo. A idéia, "para ser compreendida verdadeiramente, deve ser reconhecível no seu conceito e no seu ser-aí" (§1, nota). Nisso está contida a relação da idéia com a história. A liberdade só pode ser compreendida como idéia do direito sob a condição de que tenha já chegado historicamente à existência e de que seja imanente ao direito positivo. Isso ocorre no Estado do mundo moderno, que recolheu em si o princípio de liberdade da revolução e que tem a tarefa de manter o indivíduo como pessoa livre e capaz de direito. Hegel define o Estado como "realidade" no sentido especulativo da Lógica, como unidade, tornada imediata, da essência interna e da existência externa: ele é "a realidade da liberdade concreta" (§ 260). Desta forma, a idéia do direito, à diferença do direito natural idealista de Rousseau até Fichte, não é para Hegel pura possibilidade de pensamento, mas realidade historicamente mediada, que reivindica da filosofia que esta renuncie à sua posição abstratamente jusnaturalista e "compreenda e represente" o Estado presente como " um em si racional" . É a este Estado do mundo moderno - e não àquele prussiano de 1821 - que se refere o dito de Hegel no Prefácio da Filosofia do Direito: "O que é racional é real; e o que é real é racional". Para reconhecer a sua intenção "progressiva" não se deve contrapor a primeira frase à segunda; pois ambas dizem a mesma coisa: no Estado moderno o conceito de direito adquiriu existência, o racional - o pensamento da liberdade - tornou-se real, e o real - o Estado do mundo moderno - tornou-se racional. Isso não exclui uma parcial não-racionalidade. Uma explicação deste dito, que Hegel apresentou na última aula sobre a filosofia do direito (pouquíssimos dias antes da sua morte) diz lapidarmente: "O que é real é racional. Mas nem tudo o que existe é real, o mal é algo partido em si e um não-existente" . Assim, em Hegel, o problema da realização da filosofia situa-se na discussão do princípio de liberdade da revolução. O conceito de direito, que na revolução francesa se dirige contra a realidade do regime feudal, que se tornou isenta de espírito e de razão - a "velha estrutura da injustiça" - e a inverte, nasce do pensamento da filosofia. Este é o unicum e o inaudito deste acontecimento que, para Hegel, tem importância histórica mundial: "Nunca, desde que o sol começou a brilhar no firmamento e os planetas começaram a girar ao seu redor, se havia percebido que a existência do homem está centrada em sua cabeça, isto é, no pensamento, a partir do qual ele constrói o mundo real. Anaxágoras foi o primeiro a dizer que o nous rege o mundo; mas só agora o homem percebeu que o pensamento deve governar a realidade espiritual" . A realização da filosofia não significa, porém, a sua eliminação, o sacrifício do pensamento perante uma realidade historicamente mudada, mas o contrário: para compreender o motivo da mudança é necessária a filosofia. Desta forma, ela se torna - o que, contudo, não era na sua história até Hegel - a teoria do tempo; ela recebe a tarefa de salvar o princípio de liberdade da revolução 1) contra si mesma, contra a sua inversão no despotismo e 2) contra a restauração que se contrapõe de modo antitético ao princípio presente, negando assim a continuidade da história, que ela, por sua vez, gostaria de restabelecer . Neste sentido, a filosofia de Hegel é a filosofia da revolução e não da restauração ou do estado prussiano (R. Haym). Ela enfrentou o tempo e a sua "realidade", não com a vontade de mudar, mas com a vontade de conhecer, que retira seu princípio do fato da realidade do direito. Não por acaso e aludindo a uma frase de Francis Bacon, Hegel declara que metade da filosofia - de que fazem parte também as teorias românticas, restauradoras de Haller e Schlegel, de De Maistre e Bonald - afasta do Estado, enquanto a verdadeira filosofia conduz a ele . Pode acontecer que o defeito também desta "verdadeira filosofia" seja a de que a mesma queira apenas o conhecimento e a "conciliação", em vez da mudança da realidade, graças ao conhecimento. A sua vantagem consiste em primeiro lugar em dar conta de uma realidade mudada, mediante o mesmo conceito que estava imanente à história realizada. III A filosofia do direito é, por conseguinte, uma lição daquela "história conceitual" que o jovem Hegel, na Fenomenologia do Espírito, havia posto como programa da sua filosofia. A fundação dialética do direito sobre o auto-desenvolvimento do conceito, que é para Hegel a vontade humana na sua liberdade - a liberdade expressa a "substância e a determinação" da vontade (§ 4) - refere-se tanto às categorias da política clássica e do direito natural moderno, quanto ao processo de formação da "realidade" histórica espiritual, o qual lhes confere novo conteúdo. Isso resulta a partir das linhas fundamentais do sistema (das instituições do "direito"), da sua tripartição em direito abstrato (I), moralidade (II) e eticidade (III). O direito abstrato é o direito natural (jus naturale absolutum et hypoteticum) do século XVIII, que tratava sobretudo de matérias do direito privado (propriedade , contrato); é o direito do indivíduo abstrato, emancipado de todas as vinculações patronais e corporativas, que Hegel põe, segundo o exemplo do direito natural, no ápice da filosofia do direito e - modificando evidentemente o seu ponto de partida inicial - desenvolve independentemente dos pressupostos da "eticidade substancial" (família, Estado). Não é o "homem apenas, considerado com um status determinado", como cidadão à diferença do escravo, do servo da gleba ou do protetor familiar (Schutzerverwandten) mas a própria "personalidade" juridicamente capaz (§ 40) é, para Hegel, a base do conceito de direito e de propriedade. A Moralidade contém os conceitos e conteúdos que a filosofia escolástica tratava sob o título de Ética - a doutrina das virtudes e dos deveres em sentido mais antigo, na qual Hegel inclui, porém, as máximas da moral da reflexão desenvolvidas após a reviravolta kantiana na direção da subjetividade. Conforme a tradição escolástica, Hegel compreende o direito abstrato (o direito natural) como teoria da "vontade jurídica", a moralidade (ética) como teoria da "vontade moral". Em ambas, realiza-se e articula-se o homem enquanto homem, abandonado a si mesmo após a revolução moderna - aquela filosófica e aquela política - por um lado na relação com a exterioridade, com o mundo natural exterior e com o mundo humano ao nosso redor, nas formas de propriedade (§§ 84-86), do contrato (§§ 72-80) e do dano civil (§§ 84-86), e, por outro lado, na relação com a interioridade, nos modos do propósito e da culpa (§§ 105-118), da intenção e do bem-estar (§§ 119-128), do bem e da consciência moral (§§ 129-141). Embora Hegel reconheça tais categorias e os inclua na sua dedução, trata-se de abstrações para ele, que podem pretender uma validade apenas limitada no sistema da Filosofia do direito. O direito natural tornado direito privado, denominado expressamente "direito abstrato", é o direito da pessoa capaz de direito e de propriedade em geral, e a ética, tornada subjetiva e reflexiva com a filosofia de Kant e de Fichte, é a moralidade da subjetividade reconduzida a si própria. Enquanto se pode fazer facilmente um paralelo entre direito abstrato e moralidade com as categorias modernas de direito natural e moral, há alguma dificuldade na aplicação de comparação à terceira parte da Filosofia do Direito. A dificuldade não diz respeito apenas à divisão em família, sociedade civil e Estado, mas também ao próprio título: Eticidade. De fato, também o direito natural se subdivide, nos sécs. XVII e XVIII, em direito individual e social, quando o primeiro tinha como conteúdo a propriedade e os contratos, e o outro, a família (casa) e a sociedade civil (societas civilis) ou Estado (civitas). Contudo, a teoria hegeliana da eticidade significa a reintrodução na filosofia do direito de uma categoria que remete à política clássica. Para o direito natural moderno, o costume moral não possui o valor de uma forma independente da vida prática, mas é subordinado geralmente à racionalidade do conceito jurídico . Isso vale também para a doutrina jurídica de Kant que é, como se sabe, parte daquela que é por ele chamada Metafísica dos Costumes. Pelo contrário, com a categoria da eticidade, na qual estão relacionadas entre si a descoberta dos "moeurs" (= costumes) por parte dos escritores franceses do século XVIII (Montesquieu), a reconstrução da teoria platônico-aristotélica da polis e a teoria do primeiro romanticismo sobre a unidade "orgânica" do "espírito popular". Hegel reata-se ao ponto de vista da tradição dos costumes. "Eticidade" significa em Hegel a unidade dos indivíduos com as "potências éticas" (§ 145) e as "relações necessárias" (§ 148) de um povo e de um Estado históricos, determinados um de cada vez. Ela representa assim o próprio nexo entre moral e política, o qual era essencial para a doutrina tradicional da constituição ético-jurídica do Estado e da sua unidade com a "sociedade civil" (civitas sive societas civilis). Não é sem motivo que Hegel remete aqui para a identidade da "doutrina dos deveres éticos", constituída "objetivamente" e não "moralmente" (ou seja, no "princípio vazio da subjetividade moral"), com o "desenvolvimento sistemático do círculo da necessidade ética, que segue nesta terceira parte", com as relações e as instituições éticas no interior do Estado (§ 148). Mas a constituição da doutrina das instituições com a tradição dos costumes tem a ver apenas com um aspecto da teoria hegeliana da eticidade. O outro é que a própria categoria do sistema da filosofia do direito, a qual, segundo a forma e o conteúdo, remete por sua vez ao direito natural moderno, registra as mudanças fundamentais que tiveram lugar na construção do mundo políticosocial na passagem do séc. XVIII para o século XIX. Sem dúvida, também aqui a reconstrução sistemática das instituições obedece à dialética do conceito da Lógica, que Hegel pressupõe em todos os lugares da Filosofia do Direito. A triplicidade dos momentos contidos no "conceito", do singular, do particular e do universal, já está posta na base da estruturação da eticidade na Enciclopédia de 1817. Mas ali, a instituição fundamental "povo" é uma unidade estática que não é ainda distinguida de acordo com os momentos do particular e do universal, mas sim representa, enquanto inteiro, a categoria da singularidade . Hegel abandona este ponto de vista na Filosofia do Direito, subordinando pela segunda vez a eticidade substancial do "povo singular" à dialética do conceito: ela divide-se em família (singularidade), sociedade civil (particularidade) e Estado (universalidade). Mesmo esta subdivisão da terceira parte da Filosofia do Direito relaciona-se com uma longa e venerável tradição, que Hegel retoma para a dissolver com os meios da dialética e para a superar no seu pensamento. Motivo dos mais importantes para a dissolução dialética das categorias tradicionais encontra-se na introdução de novo conceito de sociedade, com que Hegel fez época na história da filosofia política. Aquilo de que Hegel nos forneceu a consciência até hoje com este conceito do tempo e do seu presente nada menos era do que o resultado histórico da revolução moderna: o nascimento de uma "sociedade civil", despolitizada e fundada sobre a liberdade e a igualdade dos indivíduos, cujo centro de gravitação se desloca - com a revolução industrial que nasce na Inglaterra - da forma política de organização para a economia. Enquanto o pensamento social do direito natural liberal de modo algum toma em consideração, ou apenas o faz de modo insuficiente, a linguagem da economia política, ela constitui em Hegel o quadro de referência de uma dedução do conceito fundamentalmente mudada. Segundo a concepção do direito natural, todas as "sociedades" são constituídas de pessoas, são associações de pessoas que formam, mediante um discurso racional e um agir determinado pela razão, uma vontade comum, que é para todos obrigatório por força de lei, a vontade de uma "pessoa jurídica". Neste contexto, falar e agir têm relevância pública, acontecem naquele medium (= meio) do público, que constitui toda "sociedade" (e não apenas o Estado) como figura jurídica. Para Hegel, pelo contrário, a sociedade consiste, por definição, em pessoas privadas, que estão ligadas entre si através da necessidade e do trabalho. O trabalho é um modo específico do agir, a necessidade é a base natural do homem como "pessoa privada". A contribuição filosófica de Hegel neste campo consiste sobretudo em ter mediado como público o quadro "privado" de referência da mesma e em ter concebido sua base natural como constante social. O quadro de orientação da teoria da sociedade civil não é o contrato, o acordo de indivíduos racionais, caracterizados pelo falar e pelo agir, mas o "sistema das necessidades" - o entrelaçamento das relações entre "pessoas privadas" resultante da necessidade, do trabalho e do meios de satisfação das necessidades e que se reproduz continuamente na sua atividade (§ 187). A relação recíproca, concebida por Hegel "dialeticamente", entre objetivos privados e públicos como base de um "nexo social" que vai além do agir "pessoal", já havia sido refletida na filosofia moral anglo-escocesa (Hume, Smith, Ferguson) e na teoria do interesse dos Enciclopedistas franceses. Já então o esquema do contrato adquire, ao lado da sua função jurídica formal, um conteúdo pelo fato de seres declaradas questões públicas tanto os objetivos privados, a proteção da vida e da propriedade de cada um. A teoria utilitarista e do interesse domina o pensamento do iluminismo europeu tardio, cujos textos o jovem Hegel estuda. Tais textos proclamam os princípios de uma comunicação entre os privados burgueses isenta de vínculos de castas (ständischen) e de patronato, que regule todas as relações sociais mediante "l'interêt personnel" (Diderot, Helvetius, Holbach), ou seja, o "self-interest" (Franklin, Bentham). Mas a sua imagem harmonicista da sociedade é agora interpretada como modelo de conflito. A posição hegeliana relativa aos problemas lógico-históricos daquele sistema de ação, já não sinônimo de outros conceitos (Estado, sociedade civil), é ambivalente. Por um lado, a "sociedade" é uma conformação jurídica, o direito é o ser-aí da vontade racional ("livre"). Por outro, a vontade se concretiza no contrato apenas sob o aspecto jurídico privado - a sociedade enquanto instituição natural histórica, como se realiza na família, na sociedade civil e no Estado, não está baseada em obrigações legais do contrato . Mesmo que a "sociedade civil" apareça também como conformação jurídica, Hegel, na justificação e legitimação dialética da mesma, a partir da idéia da vontade racional("livre), tende exatamente a demonstrar que tal instituição fica fora da gênese tradicional da sociedade baseada no direito natural, enquanto por um lado supera amplamente, do ponto de vista sistemático e histórico, a instituição "família", e por outro, não atinge jamais a instituição "Estado". A vontade racional, universalizada por Hegel como "idéia do direito" e inserida na dialética do espírito (objetivo), "particulariza-se" neste plano em uma multiplicidade heterogênea de pessoas que "como tais não têm por sua consciência e por sua meta a unidade absoluta, mas a sua própria particularidade e o seu ser para-si - o sistema da atomística" . O que se constitui na dialética desta instituição é um entrelaçamento de relações entre "pessoas privadas", que se distingue do "Estado", nasce da necessidade e do trabalho, e se reproduz continuamente na sua eficácia - a "sociedade" no sentido moderno da palavra. Ela, como sociedade "civil", entra no centro da filosofia do direito e da sua teoria política, e nesta posição desfaz as categorias tradicionais da política clássica e do direito natural moderno. Isso mostra-se em primeiro lugar no fato de não ficar no lugar que lhe cabe, mas se estender a outros âmbitos institucionais. E isso porque, para Hegel, a sociedade civil é tanto o "ser-aí" do direito abstrato (§§ 209 ss.), quanto o campo de ação (para a esfera da pobreza) da moralidade subjetiva (§ 242), quanto também o terreno substancial e o poder da família (§ 238), e, por fim, a diferença do Estado (§ 182). Ela tornou-se, de maneira historicamente determinada, o "centro" na construção da eticidade. Aqui ela se constitui em termo de ligação entre as instituições "família" e "Estado, o qual não existia na tradição da política clássica e do direito natural moderno. O "centro" da sociedade civil provoca não apenas a mediação no sentido de acomodação e de conciliação de opostos. Constitui sim um campo magnético que atrai todas as instituições na sua esfera de influência e que transforma a sua estrutura tradicional. Isso começa com a instituição "família", o elemento fundamental da "sociedade civil" que, segundo a concepção tradicional do direito natural e da ciência do Estado, media a sua constituição no Estado político. Hegel nega-lhe esta função mediadora, não só porque a sociedade civil e o Estado são separados, mas porque ela, segundo o seu "conceito", não pode ser membro da união estatal. A sua relação com o Estado limita-se a ser "material" (§ 262), ou seja, a preparar seja os indivíduos seja a "massa" na reprodução natural da vida, e a imediatidade do sentimento e da consciência éticos na educação (§ 173-175). Em poucas palavras: se antes de Hegel a instituição "família" enquanto "toda a casa", era parte do conjunto estatal, agora é-o o indivíduo crescido e educado na esfera privada de uma família. A isso corresponde uma dialética historicamente paralela na estrutura das instituições. Enquanto, por um lado, a relação com o Estado passa da família para o âmbito das instituições da sociedade civil inserido novamente por Hegel no sistema da eticidade, por outro, a sociedade civil e a família devem "pôr-se" numa relação institucional mudada. Para Hegel, a família não é uma "sociedade" com um estado diverso dos membros, nem consiste sequer em "sociedades menores" (marido/mulher, pais/filhos, patrão/servo), mas sim representa uma "pessoa" que tem sua realidade exterior "em uma propriedade", mas não na unidade jurídico-econômica da casa (§ 169). O caráter originariamente "econômico" do conceito de família foi perdido em Hegel, e foi substituído por aquele sentimental moderno, o qual, baseado inteiramente em relações e sentimentos "privados", começa a formar-se no final do século XVIII. "A família - assim aparece a definição do conceito no § 158 - como substancialidade imediata do espírito determina-se pela sensibilidade de que é uma, pelo amor, de tal modo que o sentimento fundamental correspondente é a consciência de ter a própria individualidade nessa unidade que é a essência em si e para si e de nela existir, não como pessoa para si, mas como componente". É o conceito moderno de família, já não ligado à célula econômica da união da casa, que é articulada por Hegel, consciente das transformações que a posição fundamental da sociedade civil no sistema da filosofia do direito prepara para a figura tradicional da economia. A família, de fato, comparada com a teoria tradicional da societas civilis na política e no direito natural, segundo a qual a sociedade civil estava baseada naquela "familiar", é, na "sociedade civil" tematizada por Hegel, algo subordinado e lança apenas as bases: não é mais de uma "atividade tão global". Nas condições do processo econômico de reprodução da sociedade moderna, que foi além dos limites da "casa inteira", o indivíduo é "extraído" destes (limites) e torna-se "filho da sociedade civil", conforme declara Hegel; enquanto esta assume a função da economia, "no lugar da natureza inorgânica externa e do patrimônio onde o indivíduo obtinha sua subsistência, coloca a sociedade civil o seu próprio terreno, e submete a subsistência da família inteira à sua dependência, à acidentalidade" (§ 238). Porque o conceito hegeliano da sociedade civil remete por um lado à mudada estrutura da família, relaciona-se, por outro, à posição do Estado também modificada. Comparando-se a terceira seção da teoria hegeliana da eticidade com a teoria tradicional da política, constatar-se-á que, por causa das suas premissas, já não poder mais ser a exposição da "sociedade civil" e a constituição política (governo) da mesma, mas é uma "ciência do Estado" separada dela. Estado e sociedade civil, que na tradição estavam unidos pelo conceito de relação da societas civilis, em Hegel devem antes "pôr-se" em relação, ou seja, na da separação, da "diferença" (§ 182, nota). Assim Hegel recusa a "antiga divisão das constituições" por reconhecer que "a unidade substancial", que lhe subjaz, de constituição e política, em base ao pressuposto da "diferença, não é "racional", ou seja - o que significa o mesmo segundo as premissas da Filosofia do Direito de Hegel - não é mais "real". Ela reduz-se a fenômeno histórico, adequado unicamente ao ponto de vista do "mundo antigo": "a antiga divisão das constituições em Monarquia, aristocracia e democracia tem por base a unidade substancial ainda indivisa, a qual ainda não atingiu a sua distinção interna (uma organização desenvolvida em si) e, assim, a profundidade e racionalidade concreta. Para aquele ponto de vista do mundo antigo, esta divisão é, portanto, verdadeira e justa..." (§ 273). Contudo, a ruptura da filosofia do direito com a tradição não se manifesta apenas no fato de os conceitos e os conteúdos da política precedente terem se tornado irracionais e terem sido historicamente superados após a diferença entre Estado e sociedade civil. Ela provém muita mais da relação recíproca entre Estado e história, fundamental para a teoria hegeliana da eticidade. O conceito do Estado, que, retrospectivamente, tem como pressuposto a dissolução da "unidade substancial" da velha sociedade e a diferença ocorrida com a moderna sociedade civil, se relaciona perspectivamente com outra esfera - a da história universal. A subordinação da sociedade civil ao Estado dá-se numa relação complementar ao domínio da história. Considerando o lugar que a história ocupa nas precedentes teorias sobre a política e o direito natural, pode-se afirmar que ambas concordam ao dissolverem o problema do direito ou da "boa vida" no problema da "melhor constituição", ou seja, da instituição do "Estado" (civitas), que coincidia, conforme o ponto de vista tanto antigo quanto moderno, com a instituição da "sociedade civil" (societas civilis) , da vida juridicamente constituída e que permitia o exercício da virtude. Com este fim, bastava apenas recorrer às ciências "precedentes", como a metafísica, a antropologia, a psicologia, e também a ética como doutrina das virtudes e dos deveres; mas todas estas ciências constituíam apenas o início, a base da doutrina do Estado como sociedade civil. A coesão destas ciências na filosofia prática dissolve-se no século XVIII, quando nascem novas disciplinas como a economia política e a filosofia da história. Kant, que estabelecia a primeira ligação entre o problema de uma doutrina do direito e do Estado com o de uma filosofia da história, formula ainda o problema na maneira jusnaturalista tradicional: como problema do "alcance de uma sociedade civil que administra em geral o direito" . Diversamente o faz Hegel, para o qual a filosofia da história se separou, com a teoria da "sociedade civil", do contexto do direito natural. A idéia geral do Estado cai do ápice da sua perfeição para a particularidade dos "muitos Estados" que se enfrentam no jogo da história. A idéia do Estado é a idéia "como gênero e poder absoluto contra os Estados individuais, o espírito que, no processo da história mundial, se dá a sua realidade" (§ 259). Em Hegel, o Estado não é mais o conceito de status político da tradição, nem o modelo da natureza ou do contrato isento de movimento e de história da política clássica e do direito natural moderno, mas, para além dele como nova instância da filosofia prática - há a história, na qual o "o próprio ético inteiro, a autonomia do Estado, é de novo exposto à acidentalidade" (§ 340) - conforme devemos completar Hegel, tendo em consideração a mesma sorte que sofre o conjunto ético da família. A dimensão da história, que Hegel introduz no final da Filosofia do Direito, é a realidade daquela idéia do estado de natureza que os teóricos do direito natural colocavam no início dos seus sistemas. O movimento que neles se dá partindo do estado de natureza para chegar à sociedade civil (no sentido de societas civilis) e que pára por aí, começa em Hegel quando o Estado não se relaciona mais com a sociedade civil, mas com outros Estados. Este estado de natureza é estado real e não fictício - o movimento da história que a Filosofia do direito absorve em si e pelo qual se liberta outra vez da abstrata teoria natural do direito e da sociedade. O elemento do ser-aí do "espírito universal", do qual desemboca e no qual acaba o autodesenvolvimento do conceito de direito, é, na história mundial, a "realidade espiritual", na qual a "natureza" do homem e das coisas não é uma "lei" fixa, mas o conceito concebido por Hegel como liberdade, o qual se cumpre "em todo seu alcance de interioridade e exterioridade". Antes da universalidade deste movimento, que coincide com o fim do sistema do direito natural e com o início da filosofia da história, a família, a sociedade civil e o Estado são "apenas como ideal... e o movimento do espírito neste elemento consiste em representá-lo" (§§ 341342). IV Considerando sumariamente a estrutura da Filosofia do Direito de Hegel poder-se-á afirmar que, na base dos princípios lógicos, há formas conceituais historicamente situadas. As instituições do ético, particularmente o conceito de "sociedade" e o conceito conclusivo de "história mundial", constituem paradigmas lógico-históricos. Ambos transformam contemporaneamente a constituição de família e de Estado, que eram representados durante séculos de maneira semelhante pela política clássica e pelo moderno direito natural. Assim como a família está entre o indivíduo, que lhe pertence como membro, e a sociedade civil, o Estado move-se entre a sociedade civil e a história. É este salto na estrutura das instituições políticas tradicionais que provoca em Hegel o desenvolvimento dialeticamente intrincado do conceito de direito e a estrutura engenhosa do seu sistema. É a partir daqui que a Filosofia do direito conquista, não por último, a riqueza da substância histórica que lhe é própria e que a distingue fundamentalmente das obras do direito natural moderno. Os novos elementos que a Filosofia do direito como sistema da dialética institucional introduz na teoria política do mundo moderno tornaram-se porém, também o ponto de partida daqueles teoremas que, após a morte de Hegel, deveriam mover o sistema e romper as suas mediações. A crítica à Filosofia do direito iniciou exatamente dos pontos que provocaram o próprio Hegel a conciliar o lógico com o histórico na reconstrução filosófica da realidade jurídica: 1) na relação entre Estado e história e 2) na relação entre sociedade civil e Estado. Para Eduard Gans, o primeiro curador da Rechtsphilosophie (1833), o seu valor mais importante consiste no "espetáculo prodigioso" que Hegel nos apresenta no final da obra: ele faz "precipitar" o Estado no "oceano da história". Não sem motivo, Gans sublinha que o breve esboço de Hegel da passagem à história "contém apenas o pressentimento a respeito de interesses mais importantes", que se apresentam neste terreno . Com isso, Gans antecipa a futura crítica que o historicismo faz à filosofia que domina o século XIX, e ele mesmo (e mais tarde o discípulo hegeliano, Ferdinand Lassale) paga já ao modo de pensar histórico o seu tributo com o seu Erbrecht in weltgeschichtlicher Entwicklung (1824-1835). É a essência do historicismo compreendendo o Estado não mais como uma realidade própria, mas como produto da história. Sob este aspecto, situa-se também a crítica de Arnold Ruge ((1842) à filosofia do direito hegeliana. Segundo Ruge, ela não se interessa pelo movimento progressivo do tempo e da história, porque define o Estado no sentido supra-indicado. Mas então o Estado seria na verdade, não uma realidade universal, e sim existência histórica individual - como é o caso do Estado prussiano de 1840, que Ruge não deixa de criticar também historicamente. O Estado da Filosofia do direito lembraria sim, "aquele atual", Hegel inclusive o chamaria pelo nome, porém não o faria emergir do "processo histórico", por isso ficaria sem influência sobre o desenvolvimento da consciência política da vida e do tempo . O segundo ponto de partida da crítica é a relação da sociedade civil com o Estado, que o jovem Marx (1841-1843) tematizou no seu comentário aos parágrafos 261-313 da Filosofia do Direito. A sua mediação é anulada por Marx enquanto ele reverte a interpretação especulativa hegeliana desta relação: o Estado é o fenômeno da sociedade civil e esta, que Hegel podia ainda degradar em "mundo do aparecer do ético" (§ 818 - sic!), é a realidade, muito mais dura porque entendida de modo completamente não-especulativo, da economia política, que, para Marx, oferece a chave para a compreensão do Estado e da história. Também aqui o Estado é degradado de realidade a produto o produto da economia. O problema da Crítica da economia política não consiste mais na mediação do princípio "privado" da sociedade civil com o princípio político do Estado, mas exatamente na crítica desta sociedade e do seu princípio privado-individualista. O abandono da Filosofia do direito e a aceitação da economia política dos Ingleses e dos Franceses não impediu a Marx de dirigir a sua crítica àquela dialética de pobreza e riqueza que emerge no horizonte da teoria hegeliana da sociedade civil (§§ 243-245). Enquanto ele torna autônomos tais extremos e a sua base - a esfera da sociedade civil descoberta por Hegel - a dialética assume em Marx um movimento que vai além do movimento conceitual da Filosofia do direito - do indivíduo singular, ultrapassando a família e a sociedade civil, até o Estado. O Estado é, segundo o modo de pensar da sociologia que une Marx a Saint-Simon e Augusto Comte, John Stuart Mill e Herbert Spencer, produto do movimento social e não a realidade da "idéia" ética que Hegel lhe havia conferido. Neste sentido, a Filosofia do direito atingiu, de fato, um fim, e o pensamento que desembocava do primeiro estágio da sociedade industrial - o pensamento do "Estado moribundo" - não é o seu. Esta apenas preparou tal pensamento - separando o Estado da sociedade civil - sem, contudo, pode tomálo em consideração. Tal impossibilidade é dada pelo conceito hegeliano de filosofia, que inclui ainda a sabedoria da limitação. A filosofia nem quem ensinar ao mundo como deve ser, nem pode profetizar como ele será. Como pensamento do mundo, para Hegel, aparece no tempo só quando o processo histórico de formação está realizado e " concluído". Desta maneira, a Filosofia do direito atém-se a uma antiga "figura" da vida, que é, sim, possível de reconhecer, mas que não se pode rejuvenescer ou transformar. Esta é a tarefa do conhecimento que liga a filosofia ao limite da própria época. A coruja de Minerva - declara Hegel no final do Prefácio à Filosofia do direito levanta o vôo somente ao anoitecer. Isso não significa, porém, que ela mesma tenha se tornado passada para nós e ela mesma "histórica". Se a obra é hoje estudada com igual intensidade seja no oriente quanto no ocidente, isso se deve não por último ao fato de que a realidade da sociedade industrial não realizou aquele pensamento de Saint-Simon e de Marx que antecipava o seu desenvolvimento, mas o converteu antes em seu contrário. No processo de formação da sociedade moderna, o Estado tornou-se ser mitológico que reúne em si poder e sabedoria e que, conjuntamente com a possibilidade da contradição, tira a liberdade do indivíduo, a qual, segundo Hegel, é a origem do pensamento. A era das ideologias e das grandes profecias não impediu a mitologia do domínio político contra a qual ela se voltava, mas a favoreceu. O retorno do Leviatã é provocação com relação à filosofia que ela deve aceitar para poder reencontrar a sua vocação clássica: a destruição do mito mediante a força da razão. É desta força que a Filosofia do direito dá testemunho, e não por acaso que a discussão sobre a relação entre liberdade, direito e Estado em base a uma sociedade "em si" emancipada de um domínio político tenha começado mais uma vez com Hegel.; o esclarecimento desta relação é hoje mais urgente do que nunca. ___________________________________________________ (Título original: Dialektik in Institutionen. Zur historischen und systematischen Struktur von Hegels Rechtsphilosophie. Tradução italiana de Magda Oschwald di Felice) ____________________________________________________________ Tradução portuguesa de Selvino José Assmann - Depto. Filosofia UFSC - Florianópolis - Agosto de 2001