Cultura e sociedade em Raymond Williams GT 30 – Sociologia da Arte e da Cultura Ugo Rivetti1 Resumo: Apresento neste paper alguns dos resultados de minha pesquisa de mestrado, na qual estudei a obra do crítico britânico Raymond Williams. Após oferecer um breve mapeamento das principais análises de sua obra, apresento alguns elementos para uma leitura alternativa focada não tanto na teoria da cultura do autor, mas naquilo que qualifico como sua crítica da modernidade. Procuro mostrar como essa é uma chave de leitura que permite repensar o seu desenvolvimento teórico, além de constituir um ponto de vista privilegiado para acompanhar como Williams desenvolveu alguns dos elementos de sua teoria da cultura. Palavras-chave: Raymond Williams, teoria da cultura, crítica da modernidade. A obra do crítico Raymond Williams (1921-1988) é comumente associada às reflexões sobre a questão da cultura. “Todos os seus comentadores parecem concordar nesse aspecto”, anota Maria Elisa Cevasco (2001, p. 43), um dos principais nomes na recepção da obra do autor no Brasil. O apelo dessa ênfase pode ser detectado naquele que se tornou o enfoque interpretativo dominante do conjunto dessa obra. Segundo essa linha de interpretação, os primeiros textos de Williams (anos 1950) revelariam um autor ainda muito apegado ao quadro de referência e ao repertório da crítica literária levada a cabo em Cambridge – no seio da qual Williams se formou e que dominou o cenário inglês até a segunda metade do século XX. Essa limitação revelar-se-ia de forma patente naquele que é tido como o principal texto desse período, Cultura e sociedade (1958). Embora Williams pretendesse empreender aqui um acerto de contas com essa tradição, ele ainda não se revelava capaz de oferecer um ponto de apoio externo ao quadro de referência e ao vocabulário próprios à essa tradição. Fosse, como argumenta Stuart Hall (1989, p. 58), por Williams mobilizar um método ainda muito apegado aos procedimentos do practical 1 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, Brasil (2012), atualmente é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo (bolsista FAPESP). Contato: [email protected]. 1 criticism até então dominante na crítica literária, segundo o qual a análise detida de fragmentos de textos deveria ser privilegiada, ainda que em detrimento da argumentação teórica;2 fosse, como argumenta Victor Kiernan (1959, p. 77), por Williams assumir os termos da crítica social próprios àquela tradição, isto é, da crítica da modernidade como crítica do “industrialismo” e da “sociedade industrial”. De todo modo, a posição presente em Cultura e sociedade seria ainda muito limitada e incipiente. Segundo as formulações mais extremadas dessa linha de interpretação, não apenas Cultura e sociedade, mas toda a produção de Williams dos anos 1950 seria um momento apenas experimental e já superado da sua formação.3 Segundo essa perspectiva de leitura, o marco inaugural de um projeto teórico próprio e, portanto, o grande momento de ruptura com a tradição então dominante na crítica literária inglesa, localizar-se-ia somente no texto seguinte, The Long Revolution (1961). Segundo Hall (1989, p. 61) – possivelmente o maior responsável pela conformação e difusão dessa leitura –, “uma tentativa difícil, nem sempre bem-sucedida, mas a seu modo heroica de quebrar, finalmente, com o idioma e o método de Cultura e sociedade: e, apoiando-se em um modo de discurso militantemente hostil à própria ideia de generalização, de construir uma teoria cultural”. Esse é o pressuposto fundamental dessa chave de leitura: trata-se de localizar o ponto de partida do projeto teórico de Williams em The Long Revolution porque se trata aqui de rastrear a gênese de uma teoria cultural.4 Sob esse mesmo enfoque que se convencionou ler todo o conjunto da obra de Williams. E, mais do que isso, ler a obra de Williams a partir desse enfoque significava lê-la segundo uma “continuidade teórica fundamental”: os grandes momentos da obra de Williams poderiam – e deveriam – ser pensados em uma relação de continuidade dada pela ênfase na cultura como elemento constitutivo (e não derivado) da vida e do processo social.5 Segundo essas leituras, 2 O que, segundo Hall, revelar-se-ia mais especificamente em uma análise muito presa às citações dos textos analisados. Alan O’Connor (1989, p. 60) segue na mesma linha: “O método do livro é uma extensão da técnica do close reading à escrita em prosa filosófica, crítica e também imaginativa. O método pode ser descrito como imersão em um texto”. 3 Cf. John Higgins (1999, p. 4). O responsável por uma das formulações mais extremadas dessa leitura é, seguramente, Terry Eagleton (2009, p. 25), para quem, “Cultura e sociedade era, na verdade, um projeto idealista e acadêmico. Ele [Williams] poderia sustentar suas teses apenas pela desconsideração sistemática do caráter reacionário da tradição com a qual ele estava lidando – uma desatenção evidente nas leituras drasticamente parciais e distorcidas de escritores particulares (Carlyle, Arnold e Lawrence em particular), desligados de seu verdadeiro loci ideológico e manipuladas por citações seletivas e equívocos sentimentais pela causa de um ‘humanismo socialista’”. 4 Cf. também Perry Anderson (1994, p. 102). 5 Cf. O’Connor (1989, p. 113). 2 “[…] a ênfase central de Williams permanece a mesma: a insistência na ideia de cultura como um modo de pensar a totalidade social, a recusa da produção cultural como um efeito secundário da base econômica. Ainda que seja certo que o arco de referências à teoria cultural marxista tenha aumentado significativamente, e de que o tom de Williams seja consideravelmente mais receptivo, pouco mudou na substância de seus argumentos. Embora ele seja agora capaz de se referir a um amplo arco europeu de obras no que ele chamou de “tradição marxista alternativa”, o que é mais notável é o modo como os argumentos dessa tradição são vistos como apoiando as ênfases do próprio Williams na importância da cultura para a reprodução social e política, com todas as forças e fraquezas dessa ênfase” (Higgins, 1999, p. 122). O que procurei fazer em minha pesquisa foi ler a obra de Williams a partir de um enfoque alternativo. Mais precisamente, estas foram as perguntas que me orientaram: que crítica da modernidade é levada a cabo por Williams nos diferentes momentos de sua obra? Que diagnóstico do presente ele formula e como ele analisa o processo histórico que conduziu até a sua época? Me refiro aqui a um outro enfoque porque estava interessado em analisar Williams não tanto como um teórico da cultura, mas como um crítico da modernidade. Importa assinalar que, com isso, não se trata de ignorar aquele que é, de fato, o cerne de sua obra – sua teoria da cultura. Trata-se, isso sim, de, ao que me parece, qualifica-la de forma mais concreta e específica, isto é, mostrando como Williams foi aos poucos, e no decorrer de toda a sua trajetória, formulando, com base em análises de formações culturais específicas (o romance, o drama, a televisão etc.), aqueles expedientes que viriam a ser formalizados, posteriormente, como protocolos da sua teoria da cultura.6 Deslocar o foco para a crítica da modernidade não significa jogar de lado a teoria da cultura. Não por acaso, é nesse mesmo enquadramento de uma crítica da modernidade que se inserem as críticas culturais da crítica literária de Cambridge e do marxismo, aquelas que foram as duas grandes influências formativas de Williams. Ao que me parece, que Williams tenha inscrito a sua crítica da cultura em um projeto dessa natureza revela não apenas a força dessas tradições no contexto cultural inglês da época, mas também a disposição de Williams em dialogar criticamente com ambas. Finalmente, esse me parece ser um enfoque bastante coerente com a forma como o próprio Williams concebeu o problema da cultura. 6 O que se deu, basicamente, em textos do final dos anos 1970, notadamente em Marxismo e literatura (1977) e Cultura (1980). 3 A história da ideia de cultura – diz ele em Cultura e sociedade – é o registro de nossas reações, no pensamento e no sentimento, às condições transformadas de nossa vida em comum. Nossos sentidos de cultura são a resposta aos eventos que nossos sentidos de indústria e democracia definem mais claramente. Mas as condições foram criadas e modificadas pelo homem. O registro desses eventos repousa também em outro lugar, em nossa história geral. A história da ideia de cultura é um registro de nossos sentidos e definições, mas esses, por sua vez, somente podem ser entendidos no contexto de nossas ações (Williams, 2011a, p. 321). Apresentarei a seguir uma parte dos principais resultados de minha pesquisa – recentemente finalizada –, destacando em que medida o recorte de leitura por mim sugerido constitui um ponto de vista privilegiado para acompanhar como Williams formulou as bases de sua teoria da cultura, notadamente ao oferecer um registro mais pormenorizado de como ele concebeu ao longo de sua carreira o problema, sempre central em suas formulações, da relação cultura-sociedade. Em primeiro lugar, a leitura aqui proposta permite reavaliar o lugar ocupado por Cultura e sociedade no contexto da trajetória intelectual de Williams. Desse ponto de vista, Cultura e sociedade surge como um texto seminal, porque foi nele que Williams enfrentou pela primeira vez a problemática que atravessaria toda a sua obra, em que ele pela primeira vez procurou compreender a relação das objetivações culturais com um processo histórico específico. De fato, esse é o fulcro da análise levada a cabo por Williams nesse texto: com vistas a se contrapor às perspectivas que pensam a arte e a cultura como esferas apartadas da sociedade e da história, Williams mostra como a própria noção de cultura nasce na Inglaterra no bojo de um processo histórico e social concreto: a Revolução Industrial (Williams, 2011a, p. 321). Partindo da constatação desse fato, Williams formula aquela que é a hipótese que orienta toda a análise do livro: a noção moderna de cultura nasce com a Revolução Industrial, porque ela é uma reação geral à mudança geral engendrada por aquele processo. Daí a necessidade de recuperar os dois elementos que marcaram a gênese e o desenvolvimento da ideia moderna de cultura. De um lado, a experiência histórico-social de longa duração inaugurada pela Revolução Industrial e que se estende até o presente; de outro, a tradição do pensamento social inglês formada pelos escritos de “homens e mulheres específicos” que, com vistas a dar sentido à sua experiência, procuraram responder às transformações sociais mais gerais que tiveram lugar nesse contexto histórico extraordinário. Reforçando essa leitura, deve-se reter o fato de que a análise dos autores e das passagens selecionadas está subsumida ao tratamento dessa questão mais geral, de como o advento e o desenvolvimento da ideia moderna de cultura pode ser compreendido como parte do processo de consolidação de 4 um novo tipo de sociedade. Por um lado, isso se revela na ênfase de Williams nas continuidades entre os autores analisados (muitas vezes deixando-se de lado diferenças evidentes e relevantes); por outro, no fato de as citações sempre sucederem a enunciação das teses de Williams. Mais do que a análise detida de passagens, o que se tem aqui é a inserção de passagens como modo de ilustração do argumento. De fato, a própria estrutura da obra revela isso: ou seja, o que confere unidade a esse texto é precisamente a unidade do próprio processo histórico. Não por acaso, cada uma das três partes do livro encerra a análise de cada uma das fases desse processo (século XIX, interregno, século XX). Ainda que apenas de um ponto de vista do método empregado, me parece injusto – e, mais do que isso, incorreto – ler Cultura e sociedade como mera reprodução dos expedientes do practical criticism. É nesse quadro mais geral de preocupações que Williams fixa suas análises do drama e do romance. Assim, em Tragédia moderna (1966), Williams mostra como o analista não se deve apegar a uma definição fechada e estanque de tragédia (geralmente derivada da tragédia em sua forma grega), mas compreender a tragédia contemporânea nos seus próprios termos. E para tanto é necessário, segundo Williams, redefinir a ideia de tragédia, concebendo a tragédia não apenas como forma dramática, mas, sobretudo, como um tipo de experiência. A apropriação consagrada do drama não vê tragédia no presente porque o que ela faz é sondar o presente em busca da forma da tragédia antiga, entenda-se, a tragédia da “crise pessoal no âmbito da crença”. Em outras palavras, Williams procura fazer com a ideia de tragédia aquilo que ele fizera com a ideia de cultura em Cultura e sociedade: pensar essa ideia não como um conceito fixo e estático, mas como parte da experiência concreta e histórica. Mais precisamente, compreender a tragédia contemporânea em seus próprios termos significa buscar a “experiência trágica contemporânea”, isto é, a tragédia que tem lugar não no âmbito individual, mas no social. Não a tragédia do indivíduo se defrontando com – e sendo esmagado por – forças desconhecidas e onipotentes, mas a tragédia da Guerra Fria, da bomba atômica, do stalinismo, da fracassada Revolução Húngara: a “profunda crise social de guerra e revolução, no meio da qual todos nós temos vivido” (Williams, 2002, p. 89 e ss.). Da mesma forma, Williams dirá em The English Novel from Dickens to Lawrence (1970) que a referência também na análise do romance não deve ser uma suposta tradição (a própria ideia de tradição sempre deve ser problematizada em seu caráter seletivo), mas a história na qual as obras tiveram lugar: o contexto social ao qual a forma construída no romance procura responder; a experiência histórica da qual o romance é uma 5 concretização formal (Williams, 1974, p. 10). E, na via de mão dupla tão característica de seu método, trata-se para Williams de mostrar não apenas como o enfoque histórico permite compreender o romance, mas também como a análise deste ilumina aspectos centrais e muitas vezes desconsiderados do desenvolvimento histórico. No fundo, trata-se aqui de problematizar a própria ideia de escrita. Contra a tendência dominante na crítica literária que toma a escrita como mera questão de estilo e função de uma capacidade individual – associando as qualidades da escrita às propriedades e capacidades daquele que escreve –, Williams procura reter a escrita enquanto atividade com dimensão histórica e social (Williams, 2014, p. 4). A própria consideração da escrita como um processo autônomo e direto, assinala Williams, só se tornou possível nas “sociedades industriais modernas”, dada a expansão da alfabetização. Ademais, atentar para a dimensão social é especialmente relevante nesse caso por causa das singularidades dessa atividade: pois, ao contrário de outras formas de comunicação (como a fala), as habilidades básicas da escrita não são resultado necessário de um “processo básico de crescimento em uma sociedade”. Elas são, isso sim, habilidades que têm de ser ensinadas e aprendidas, de modo que os próprios estágios de desenvolvimento da escrita revelam, intrinsecamente, novas formas de relação social. Esse esforço por demonstrar a natureza histórica e social das formas de escrita é uma das bases das análises de Williams do romance. Posto que a prosa é uma forma de comunicação, uma transação entre escritores e leitores organizados em determinadas relações sociais, Williams estará interessado em explorar as relações entre diferentes modos de vida e diferentes modos de alocução. Trata-se, portanto, de tomar o estilo não como uma qualidade abstrata, cuja apreciação seria uma função de educação e de bom gosto, mas como índice do tipo de relação que se estabelece entre escritor e público. É com base nisso, inclusive, que se torna possível compreender a relação do romance com uma sociedade em transformação, segundo Williams uma das questões centrais na história do romance inglês do século XIX. Por fim, gostaria de apontar para outro desenvolvimento importante, que revela a constituição de um elemento central da teoria de Williams e que, ao que me parece, reforça a hipótese aqui enunciada de que o recorte de leitura proposto constitui uma alternativa produtiva. Como assinala Williams em Marxismo e literatura (2009, p. 109), uma nova abordagem da cultura deveria ter como base o conceito gramsciano de hegemonia, e isso porque, segundo ele, esse conceito supera tanto a ideia de cultura da crítica literária inglesa como a ideia de ideologia do estruturalismo. Respectivamente, ao relacionar o “processo social total” a distribuições específicas de poder e influência e ao 6 focar não apenas o sistema consciente de ideias e crenças, mas também o processo social total tal como organizado por significados específicos e dominantes. Em resumo, somente o conceito de hegemonia poderia explicar como diferentes classes podem compartilhar uma mesma cultura e esta, ainda assim, refletir interesses de uma classe específica. Vejamos como Williams chegou a essa formulação. Quando se foca a obra de Williams a partir da sua crítica da modernidade, é possível constatar um contraste bastante marcante entre dois textos. Assim, em Cultura e sociedade salta aos olhos o fato de Williams aderir à crítica da modernidade tal como ela fora consagrada pela crítica inglesa conservadora na primeira metade do século XX. Tradição crítica que desenvolveu o diagnóstico segundo o qual as condições espirituais e físicas engendradas pela Revolução Industrial implicaram em um empobrecimento da vida cultural de uma grande parte da população, rompendo os seus vínculos com o passado tradicional. Ainda que Williams não reproduza o julgamento reacionário e conservador aí implícito, os contornos da crítica são os mesmos: na medida em que toma a Revolução Industrial como marco do surgimento não apenas de novos métodos de produção, mas, sobretudo, do nascimento de novos tipos de relações pessoais e sociais. Diagnóstico bastante semelhante ao da crítica conservadora, que via no presente a época de uma “civilização industrial” que teria na máquina a sua característica distintiva. Ademais, embora Williams critique em Cultura e sociedade as abordagens que concebem uma relação mecânica entre o cultural e o econômico, não há como não deixar de notar aqui uma forma de conceber a sociedade moderna apoiada na suposição de uma correspondência direta e mecânica entre as técnicas de produção e as relações sociais. Apenas a suposição de que mudanças no primeiro nível produzem mudanças no segundo autorizam Williams a concluir que mudanças desencadeadas pela expansão da indústria poderiam ensejar um novo tipo de sociedade. Desse ponto de vista, Williams desenvolve uma abordagem bastante diferente em O campo e a cidade. Ainda que adote aqui o mesmo enfoque empregado em Cultura e sociedade – afinal, assim como a ideia de cultura, as ideias de cidade e campo devem ser relacionadas às experiências históricas nas quais tiveram lugar – agora Williams inscreve seu objeto não no contexto da emergência da “sociedade industrial”, mas na história do capitalismo. É isso o que, inclusive, permite a ele fazer frente à perspectiva histórica abraçada pela crítica conservadora: o que a história da sociedade moderna coloca, diz Williams, não é a decadência de uma sociedade rural e orgânica do passado, mas a história da emergência de uma nova ordem – capitalista – que determinou a história tanto do 7 campo como da cidade (Williams, 1967, p. 631). Embora associado à indústria, na Inglaterra o capitalismo foi um fenômeno antes de tudo rural, surgindo no início do século XVI e criando, nos dois séculos seguintes, uma agricultura altamente produtiva e moderna, na qual a Revolução Industrial teve uma de suas principais bases. E, mais do que isso, Williams define o capitalismo como aquilo que mais decisivamente determinou “o caráter global do que denominamos sociedade moderna” (Williams, 2011b, p. 480). Daí a forma como as ideias de campo e cidade devem ser enfocadas: como “posicionamentos em relação a um sistema social global”, como ideias que revelam os “processos sociais concretos de alienação, separação, exterioridade e abstração”. Ora, é na sua descrição do capitalismo que Williams formula, pela primeira vez e de forma mais substancial, a abordagem que, como ele viria a formalizar posteriormente, deve ser a base, da teoria cultural. Porque ao mesmo tempo em que se trata de uma ordem que determina “o caráter global do que denominamos sociedade moderna”, o capitalismo consiste também em uma ordem que admite significados, valores, opiniões e atitudes alternativos, em suma, “sentidos alternativos de mundo” (as contra hegemonias). É nesses termos que Williams mobiliza o conceito de totalidade social: não nos termos estruturalistas de uma estrutura com sua lógica impessoal e “em termos da qual a consciência humana ela própria pouco mais é do que um efeito da estrutura” (Jameson, 1992, p. 99), mas como um conjunto de “práticas sociais que formam um todo social concreto”, totalidade que, portanto, sempre envolve as intenções dos homens e mulheres que integram essa totalidade.7 Nisso reside a complexidade da totalidade social tal como enfocada por Williams: porque complexo de práticas que envolve, também, uma organização e estrutura específicas, presididas por intenções sociais regidas por uma classe particular. Em suma, compreendendo a totalidade social em termos do “caráter de classe da sociedade”. Se a totalidade é simplesmente concreta, se é simplesmente o reconhecimento de uma grande variedade de práticas diversas e contemporâneas, então ela é em essência vazia de qualquer conteúdo que poderia ser chamado de marxista. A intenção, a noção de intenção recupera a questão-chave, ou melhor, a ênfase central. Pois embora seja verdade que qualquer sociedade é um todo complexo de tais práticas, também é verdade que toda sociedade tem uma organização e uma estrutura específicas, e que os princípios dessa organização e estrutura podem ser vistos como diretamente relacionados a certas intenções sociais, 7 O que consiste, ao que me parece, em uma sobrevivência da ênfase culturalista (sobretudo em sua característica ênfase na experiência concreta), marca dos textos de Williams dos anos 1950 e especialmente evidente na análise empreendida em Cultura e sociedade. 8 pelas quais definimos a sociedade, intenções que, em toda a nossa experiência, têm sido regidas por uma classe particular (Williams, 2011c, p. 50). Williams afirmou na introdução a Marxismo e literatura (2009, p. 6) que “toda posição [neste livro] foi desenvolvida a partir do trabalho prático detalhado que eu realizei previamente”. Procurei destacar aqui, a partir de um recorte de leitura específico, os passos percorridos por Williams em alguns desses trabalhos (sem dúvida, os mais relevantes), com vistas a, por um lado, assinalar como se deu o desenvolvimento de sua teoria e, por outro, advogar a favor da validade do enfoque de leitura aqui proposto. Me parece que quando se tem em vista esse percurso no seu pormenor, se torna possível apreciar de modo mais proveitoso as declarações de Williams em defesa de uma sociologia da cultura que destaque a “ordem social global no seio da qual uma cultura específica, quanto a estilos de arte e tipos de trabalho intelectual, é considerada produto direto ou indireto de uma ordem primordialmente constituída por outras atividades sociais” (Williams, 1992, pp. 11-2); ou por uma sociologia que supere a divisão entre cultura e sociedade, insistindo na existência de um processo social total, que integre as dimensões social e cultural da vida (Williams, 1992, p. 14). Ou a sua afirmação de que toda teoria da cultura “produtiva” consistiria precisamente em questionar as categorias pressupostas de cultura e sociedade, interessando-se não nessas categorias, mas nas relações entre as atividades sociais nelas agrupadas, tanto histórica quanto teoricamente, e, ademais, explorando-as como relações dinâmicas e específicas a certas situações históricas, isto é, como práticas sociais. Bibliografia ANDERSON, Perry (1994). English Questions. London, New York: Verso. CEVASCO, Maria Elisa (2001). Para ler Raymond Williams. São Paulo: Paz e Terra. EAGLETON, Terry (2009). Criticism and Ideology. A Study in Marxist Literary Theory. London: Verso. HALL, Stuart (1989). “Politics and Letters”. In: Eagleton, Terry (Ed.). Raymond Williams: critical perspectives. Cambridge: Polity Press. 9 HIGGINS, John (1999). Raymond Williams. Literature, Marxism and Cultural Materialism. London, New York: Routledge. JAMESON, Frederic (1992). “Periodizando os anos 60”. 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