A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO

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D I R EITO CONSTITUCIONAL
Hélcio Corrêa
A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO
DE PRECEITO FUNDAMENTAL
THE CLAIM OF BREACH OF CONSTITUTIONAL PRECEPT
Débora Soares Guimarães
RESUMO
ABSTRACT
Versa sobre a relativização da coisa julgada inconstitucional e
objetiva verificar o cabimento da arguição de descumprimento
de preceito fundamental como meio para impugnar a coisa
julgada violadora de preceito fundamental.
Demonstra ser possível e necessária a desconstituição da coisa
julgada material nas situações em que se verificar um absoluto
desrespeito aos direitos constitucionais, indicando a ADPF como
instrumento mais eficaz para esse fim, desde que atendidas
certas condições.
The author broaches the issue of the relativization of the
unconstitutional res judicata, aiming at analyzing the
acceptance of the claim of breach of constitutional precept
(ADPF) as a means for contesting the res judicata which
violates constitutional precept.
She shows that it is possible and necessary to undo the res
judicata whenever it is clear that constitutional rights have
been disregarded, indicating the ADPF as an efficient tool for
achieving this goal, provided certain conditions are met.
PALAVRAS-CHAVE
KEYWORDS
Direito Constitucional; relativização; coisa julgada inconstitucional; arguição de descumprimento de preceito fundamental
(ADPF); Constituição; segurança jurídica.
Constitutional Law; relativization; unconstitutional res judicata;
claim of breach of constitutional precept (ADPF),Constitution;
legal security.
Revista CEJ, Brasília, Ano XIV, n. 49, p. 27-41, abr./jun. 2010
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1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tratará da relativização da coisa julgada inconstitucional
e terá por enfoque o estudo da arguição
de descumprimento de preceito fundamental, a fim de verificar a possibilidade
de essa ação ser considerada meio processual hábil e eficaz para viabilizar a desconstituição da decisão inconstitucional.
Cândido Dinamarco (2006, p. 29)
defende justamente que a coisa julgada
não é um efeito da sentença, mas sim
uma qualidade, um elemento imunizador desta, cuja finalidade precípua é assegurar a estabilidade desses efeitos, impedindo que sejam questionados após o
trânsito em julgado da decisão. A coisa
julgada é, por fim, um elemento garanti-
A ADPF também pode ser utilizada para combater lesão a
preceito fundamental decorrente da omissão
inconstitucional, de modo a atingir também hipóteses de
inconstitucionalidade por omissão.
28
Inicialmente, será estudada a relativização da coisa julgada inconstitucional
e se buscará demonstrar que é preciso
manter um equilíbrio entre os princípios
da constitucionalidade e da segurança
jurídica. Após, tratar-se-á da arguição de
descumprimento de preceito fundamental, enfocando seus aspectos procedimentais conferidos pela Lei n. 9.882/99.
E, por fim, serão abordados os diferentes
instrumentos processuais apontados pelos doutrinadores como sendo viabilizadores da relativização da coisa julgada
inconstitucional, indicando-se a ADPF
como o meio mais eficaz para desconstituir sentenças inconstitucionais.
2 DA RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA
INCONSTITUCIONAL
2.1 DA COISA JULGADA
Durante muito tempo discutiu-se
acerca da natureza jurídica da coisa julgada e de seu conteúdo. A coisa julgada era
entendida ora como um dos efeitos da
sentença, ora como uma ficção de verdade, ou, ainda, como uma vontade do
Estado preconizada na decisão transitada
em julgado (PELIZ, 2004, p. 348). Foi a
partir de Liebman que a coisa julgada
passou a ser entendida como uma qualidade da sentença, e não como mero
efeito desta (Idem, p. 353).
Segundo Liebman: Coisa julgada
material consiste na imutabilidade da
sentença, do seu conteúdo e de seus
efeitos, o que faz dela um ato do poder
público portador da manifestação duradoura da disciplina que a ordem jurídica
reconhece como aplicável à relação sobre a qual se tiver decidido (LIEBMAN,
1981, p. 5).
dor da segurança jurídica da relação atingida pela sentença (DINAMARCO, 2006,
p. 29). Esta é, aliás, a posição de Teresa
Arruda Alvim e José Miguel Garcia, que,
ao se referirem ao estudo de Liebman,
defendem que a coisa julgada não pode
ser vista como um efeito autônomo da
sentença, mas como algo que deve indicar a forma como certos efeitos se exteriorizam, a sua força, a sua autoridade
(WAMBIER, 2003, p. 19).
De certo, a coisa julgada traz uma
ideia de imutabilidade, definitividade,
que deve corresponder a uma qualidade que se agrega aos efeitos da sentença, mas sem modificar, pois, a natureza
destes efeitos (LIEBMAN, 1981, p. 5).
Note-se que a sentença pode ter efeitos
de natureza declaratória, constitutiva, ordenatória, mandamental e até executiva,
que não se confundem com a qualidade
da coisa julgada, que pode ou não ser
conferida a eles.
Para Liebman, a imutabilidade da
sentença não se confunde com a sua
eficácia, pois, enquanto a eficácia corresponde ao comando, seja declaratório,
constitutivo, mandamental ou condenatório inserido na sentença, e que não tem
o condão de impedir o reexame da matéria, a imutabilidade, que corresponde à
coisa julgada, tem por função justamente
estabilizar a relação jurídica, impedindo
nova discussão da matéria (LIEBMAN,
1981, p. 50).
Quanto à sua disciplina normativa,
a coisa julgada material foi elevada ao
status de garantia constitucional, na medida em que se encontra disciplinada no
rol do art. 5º da Constituição Federal, o
que faz com que seja considerada uma
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cláusula pétrea, não podendo, portanto,
ser modificada nem mesmo via emenda
constitucional. Mas ressalte-se que esta
não foi uma inovação da Constituição Federal de 1988, na medida em que a coisa
julgada já vem sendo disciplinada desta
forma desde a Constituição do Império
de 1824 (LIEBMAN, 1981, p. 21).
O art. 5º, inc. XXXVI, preconiza que
a lei não prejudicará o direito adquirido,
o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
Na verdade, este inciso prevê o conhecido princípio da irretroatividade da lei no
tempo, além de proteger a coisa julgada
material, tratando-a como corolário do
princípio da segurança jurídica, também
abordado pelo referido inciso.
O CPC de 1973 traz a disciplina infraconstitucional da coisa julgada, preconizando, no seu art. 467, que a coisa julgada material corresponde à eficácia que
torna imutável e indiscutível a sentença,
não mais sujeita aos recursos ordinário e
extraordinário.
Tereza Wambier, ao fazer comentários acerca da disciplina normativa da
coisa julgada, preleciona que o art. 467
do CPC está tecnicamente equivocado, se tomado em vista da posição de
Liebman, na medida em que da leitura do referido dispositivo legal pode-se
extrair a definição da coisa julgada formal, e não da material, tal como esta é
entendida por Liebman. Para este, a coisa julgada material corresponde à qualidade própria da sentença que acolhe ou
rejeita a pretensão, sendo destinada a
agir no futuro, com relação a processos
futuros (LIEBMAN, 1981, p. 86).
Desse modo, como o art. 467 do CPC
parece nos remeter à imutabilidade endoprocessual da sentença, deixando, pois,
de mencionar a imutabilidade referente à
impossibilidade de ajuizamento de nova
ação com as mesmas partes, pedido e
causa de pedir, não podemos deixar de
concordar com a posição de Teresa Alvim,
o que nos leva a considerar que o disposto no referido artigo se encaixa mais no
conceito de coisa julgada formal, se adotarmos, claro, as lições de Liebman.
No que se refere à divisão da noção
de coisa julgada em material e formal,
Cândido Rangel preconiza que não há
dois institutos diferentes ou autônomos
representados pela coisa julgada material
e formal, mas sim dois aspectos do mesmo fenômeno, duas faces do mesmo
instituto (LIEBMAN, 1981, p. 32).
A diferença está em que, enquanto
a coisa julgada material corresponde à
imutabilidade dos efeitos substanciais da
decisão de mérito, a coisa julgada formal é
a imutabilidade da sentença em si mesma,
considerada como ato jurídico do processo. Essa última seria uma manifestação de
um fenômeno processual de maior amplitude e variada intensidade, que é a preclusão; razão pela qual deve ser considerada
como uma preclusão máxima.
E foi justamente o fato de a coisa
julgada material imunizar os efeitos da
decisão, garantindo a estabilidade das
relações jurídicas, que fez com que esta
fosse consagrada como uma garantia
constitucional. Podemos dizer, pois, que
a coisa julgada formal é um fenômeno
interno ao processo, referindo-se à decisão como ato processual, enquanto a
coisa julgada material imuniza os efeitos
da decisão, impedindo qualquer ato estatal que venha a negá-los (DINAMARCO,
2006, p. 23).
Neste trabalho, abordaremos especificamente a coisa julgada material, já que
incide sobre a sentença de mérito, que, por
sua vez, pode denotar violação de preceito
fundamental prescrito na Constituição.
2.2 DA COISA JULGADA
INCONSTITUCIONAL E SUA
RELATIVIZAÇÃO
Coisa julgada inconstitucional, na
visão de Cássio Scarpinella Bueno, deve
ser entendida como a impossibilidade
de determinadas decisões, porque fortemente ofensivas a princípios e valores do
sistema, tornarem-se, por uma ficção jurídica (a coisa julgada) imutáveis (BUENO, 2003, p. 258). Com efeito, a decisão
que contraria os ditames constitucionais
nem mesmo é dotada da imutabilidade
inerente à coisa julgada, já que esta pode
ser desconstituída a qualquer tempo; o
que possibilita a chamada “relativização
da coisa julgada inconstitucional” (DINAMARCO, 2006, p. 35), de modo que, em
termos gerais, podemos dizer que a coisa
julgada inconstitucional equivale à sentença transitada em julgado que afronta
diretamente ou indiretamente o texto
constitucional ou os princípios explícitos
ou implícitos da Lei Maior.
Cândido Dinamarco explicita que se
deve buscar um equilíbrio entre a garantia da coisa julgada material e as outras
garantias constitucionais, não se podendo priorizar a garantia da coisa julgada
em face da justiça das decisões (DINAMARCO, 2006, p. 36). E, para o referido
doutrinador, coisa julgada inconstitucional é a denominação que a doutrina tem
utilizado para se referir à sentença que,
embora existente como ato jurídico, vai
de encontro a um princípio ou garantia
constitucional.
Durante muito tempo, a coisa julgada, ainda que inconstitucional, não
poderia ser desconstituída, a não ser por
meio da utilização da ação rescisória e
obedecido o prazo decadencial de dois
anos para o seu cabimento. Isso porque
era colocado o princípio da segurança
jurídica em uma posição superior a todos os demais princípios consagrados
na Constituição Federal, sendo que, na
atualidade, doutrinadores como Cândido
Rangel, (2006) Teresa Alvim (2003, p.
12) e Carlos Valder (2005, p. 26) explicitam a dicotomia existente entre o princípio da segurança jurídica e o princípio da
constitucionalidade.
O princípio da segurança jurídica
está previsto no art. 5º, inc. XXXVI da
Constituição, e é em virtude dele que as
sentenças transitadas em julgado ficam
dotadas da imutabilidade, e imunes, pois,
a qualquer discussão posterior. Porém,
como bem afirma Cândido Dinamarco,
esse princípio não pode ser tido como
absoluto, pois há valores constitucionais
que são hierarquicamente superiores
ao da segurança jurídica (DINAMARCO,
2006). Nesse sentido, o referido autor
cita em seu estudo a posição assumida
por Hugo Negro Mazzilli, para quem
diante de uma violação aos valores consagrados na Constituição, há que se ter
uma mitigação da coisa julgada material
(DINAMARCO, 2000, p. 73).
controle relativo a esses atos, não se podendo conceber que estes fiquem imunes ad infinitum em caso de violação dos
princípios fundamentais (CANOTILHO,
1998, p. 271).
Desse modo, é primordial que o Poder Judiciário leve sempre em consideração, ao proferir suas decisões, o princípio da constitucionalidade, implícito
na própria Carta Magna e pelo qual as
decisões proferidas pelo Judiciário, no
exercício da função jurisdicional, devem
ser compatíveis com o texto constitucional. Isso porque a Constituição traz em
seu bojo princípios fundamentais que
não podem ser preteridos em defesa da
segurança jurídica.
É claro que a segurança jurídica é
imprescindível para a manutenção do
Estado democrático de Direito e para a
pacificação social, mas há direitos consagrados constitucionalmente, como os
direitos à vida, à liberdade, à igualdade
e à dignidade da pessoa humana, que
jamais podem ser preteridos, pois se
referem diretamente ao ser humano enquanto célula da sociedade, tal como se
vê no art. 5º, caput e no art. 1º, III, ambos
da CF/ 88.
Segundo Carlos Valder, o direito não
é somente fenômeno normativo, isolado, abstrato, arrancado de vida, mas é
ele mesmo, enquanto convivência humana, co-existência, compreensão compartida (NASCIMENTO, 2005, p. 3). Para
o referido autor, quando for preciso proteger direitos como a liberdade, a igualdade e a dignidade da pessoa humana é
preciso se mitigar o princípio da segurança jurídica (NASCIMENTO, 2005, p. 4).
Esse é também o entendimento de Cândido Dinamarco, que defende não uma
mitigação desenfreada e ilimitada do
princípio da segurança jurídica, mas sim
29
[...] a ADPF não deve substituir outras ações nem saltar os
recursos judiciais, em princípio; mas o caráter subsidiário deve
ser avaliado não apenas em função da existência, mas também
da ineficácia de outros meios de controle judicial [...]
Canotilho ensina, ao tratar do princípio da constitucionalidade, que esse
implica na conformação material e formal de todos os atos com a Constituição,
salientando que, quando se tratar de
atos de jurisdição, a garantia da proteção
jurídica exige que seja feito também o
uma mitigação necessária e dentro dos
limites identificados em cada caso concreto quando, em prol dessa segurança
jurídica, se estiver violando os princípios
da Constituição e as garantias fundamentais consagradas no texto constitucional
(DINAMARCO, 2006, p. 36).
Revista CEJ, Brasília, Ano XIV, n. 49, p. 27-41, abr./jun. 2010
Cândido Dinamarco também nos remete ao pensamento
de Hugo Mazzilli e às lições de Mauro Cappelletti, bem como às
de Jorge Miranda, salientando que os ensinamentos dos referidos juristas convergem a uma mesma premissa, qual seja, a da
necessidade de mitigar a coisa julgada (DINAMARCO, 2006, p.
39), na medida em que essa não é um valor absoluto, devendo,
pois, ser conjugado com outros valores constitucionais. Para o
referido jurista, não se deve levar longe demais a autoridade
da coisa julgada, restando certa a necessidade de se ter uma
relativização da coisa julgada material, para que se consiga um
convívio pacífico entre esta e outros valores constitucionais de
igual ou maior grandeza (DINAMARCO, 2006, p. 39).
Ademais, é mister citarmos o ensinamento de Jorge Miranda,
para quem assim como o princípio da constitucionalidade fica
limitado pelo respeito do caso julgado, também este tem que ser
apercebido no contexto da Constituição (MIRANDA apud DINAMARCO, 2006, p. 40).
[...] a ADPF autônoma aproxima-se muito da
Verfassungsbeschwerde alemã e do recurso
de amparo espanhol, tendo em vista que
estes são instrumentos que, na prática, se
apresentam como mecanismos de
impugnação de decisões judiciais [...]
30
Desse modo, quando o julgador estiver diante de uma sentença protegida pelo manto da coisa julgada material, mas que
viole os dispositivos da Lei Maior, deve ele desconstituí-la em prol
da defesa das garantias fundamentais relativas à pessoa humana.
Humberto Teodoro e Juliana Cordeiro preconizam que, no
Estado democrático de Direito em que vivemos, tem sido uma
preocupação constante a de garantir a supremacia da Lei Maior,
como único meio de assegurar aos cidadãos a certeza da tutela da
segurança e da justiça como valores máximos da organização da
sociedade (NASCIMENTO, 2003, p. 70). E essa ideia de primado
hierárquico normativo da Constituição Federal fez com que os
mais variados ordenamentos jurídicos contemplassem em seus
sistemas mecanismos de controle da constitucionalidade dos atos
emanados do Poder Público (NASCIMENTO, 2003, p. 71).
Porém, na desculpa de se garantir a segurança jurídica,
institucionalizou-se o mito da impermeabilidade das decisões
judiciais, isto é, de sua imunidade a ataques, ainda que fossem
dotadas de inconstitucionalidade, especialmente depois de operado e ultrapassado o prazo para sua impugnação (NASCIMENTO, 2003, p. 72).
Sendo assim, a coisa julgada foi transformada na expressão
máxima a consagrar os valores de certeza e segurança jurídica,
mostrando-se, pois, intocável, ainda que eivada de algum vício
que a tornasse inconstitucional. E essa “supervalorização” da
coisa julgada é resultado da ideia equivocada de que o Poder
Judiciário se limita a executar a lei, sendo, destarte, defensor
máximo dos direitos e garantias assegurados na ordem jurídica e, por conseguinte, da própria Constituição Federal (NASCIMENTO, 2003, p. 72).
Destarte, como ressaltam Juliana Faria e Humberto Theodoro, ao remeterem à posição de Paulo Otero, se outros órgãos
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do Poder Público se submetem ao controle da constitucionalidade de seus atos, também os tribunais devem ter seus atos
sujeitos a esse controle, na medida em que, da mesma forma
que aqueles, os tribunais também podem desenvolver atividades geradoras de situações patológicas, proferindo decisões que
não executem as leis, desrespeitem os direitos individuais ou
cujo conteúdo vão a ponto de violar a Lei Maior (NASCIMENTO,
2003, p. 72).
Não podemos negar que, na esfera do Poder Judiciário, os
recursos exercem a função de controlar a constitucionalidade
dos atos e decisões emanados desse poder. Porém, o trânsito
em julgado da decisão faz com que esta não se sujeite mais à
discussão em grau de recurso; razão pela qual surge a necessidade de relativização da coisa julgada material, mas apenas
nos casos em que esteja configurada efetiva violação do texto
constitucional.
Ora, se os atos emanados do Poder Judiciário podem vir a
contrariar a Constituição, criando uma situação lesiva às partes,
também devem eles, da mesma forma que os atos emanados
de outros órgãos públicos, ser desconstituídos quando trouxerem, em seu bojo, violação à Magna Carta. Esses atos judiciais
devem estar sujeitos, portanto, não só aos recursos, mas também ao controle de constitucionalidade, cabendo ao intérprete
buscar a relativização da coisa julgada, e, consequentemente, a
mitigação do princípio da segurança jurídica, sempre que essa
coisa julgada guardar em seu manto protetivo uma decisão jurídica que viole os elementares direitos do homem garantidos
na Constituição.
O que defendemos neste estudo não é uma banalização da
coisa julgada material, isto é, a possibilidade de desconstituição
em todo e qualquer caso, mas sim a possibilidade de mitigá-la em
situações excepcionalíssimas e, única e exclusivamente quando se
verificar um absoluto desrespeito aos direitos e garantias constitucionais. A mera insatisfação da parte vencida no processo não
pode legitimar a mitigação da coisa julgada material, até porque
esse inconformismo é natural de toda sucumbência. O que pode
legitimar a relativização da coisa julgada é a efetiva violação do
valor justiça; valor este que é tão caro ao Estado democrático de
Direito e à busca pela existência humana digna.
Como veremos adiante, essa relativização não se limita à utilização da ação rescisória e ao prazo decadencial de dois anos,
tendo em vista que alguns doutrinadores, dos quais falaremos
mais especificamente, têm apontado uma série de instrumentos
processuais outros que podem viabilizar a relativização da coisa
julgada e que não trazem consigo a limitação temporal prevista
para o ajuizamento da ação rescisória; havendo, inclusive, quem
defenda a consideração da arguição de descumprimento de
preceito fundamental como meio viabilizador da relativização
da coisa julgada violadora de preceito fundamental.
3 DA ARGUIÇÃO DO DESCUMPRIMENTO
DE PRECEITO FUNDAMENTAL
3.1 DISCIPLINA NORMATIVA: A ADPF E A
CONSTITUIÇÃO FEDERAL
A ADPF integra o sistema de controle de constitucionalidade
do ordenamento jurídico brasileiro, que tem como função precípua zelar pelo respeito à Constituição Federal. Essa proteção se
funda na ideia de que a proteção à Magna Carta corresponde
à proteção do próprio indivíduo-cidadão
(MIRANDA, 1996, p. 33).
Foi buscando a proteção da Constituição Federal e, consequentemente,
dos direitos individuais e coletivos nela
explicitados, que o constituinte originário
trouxe previstos no texto constitucional
vários instrumentos que viabilizam o
controle de constitucionalidade, dentre
eles a ADPF (NOBRE JÚNIOR, 2004, p.
66), de modo que a Lei Maior de 1988
aboliu a legitimação que antes era exclusiva do Procurador-Geral da República
para iniciar o processo de fiscalização
abstrata perante o STF, que também passou a ser chamado de ADIn; além de trazer disciplina acerca da inconstitucionalidade por omissão, por meio da previsão
da ação direta específica (art. 103, § 3º) e
do Mandado de Injunção.
Por fim, a Carta Magna prevê a arguição de descumprimento de preceito
fundamental no seu art. 102, § 1º, e, dos
novos mecanismos incorporados ao sistema pátrio, a ADPF foi o único que não
ganhou operatividade com a promulgação da Lei Maior (NOBRE JÚNIOR, 2004,
p. 76), pois se entendeu que esse dispositivo constitucional, pelo qual a ADPF
deve ser apreciada no STF, na forma da
lei, seria norma de eficácia limitada, e, na
visão de Nobre Júnior, a qualidade de
norma non self-executing, derivada da
expressão “na forma da lei”, inserta na
parte final do art. 102, § 1º, é que respaldou tal entendimento (NOBRE JÚNIOR,
2004, p. 76).
Como se entendeu ser o referido dispositivo uma norma de eficácia limitada,
e, portanto, não autoaplicável, firmou-se
entendimento de que era necessária a
promulgação de uma lei infraconstitucional para regulamentar a ADPF. E essa posição foi consolidada pelo Agravo Regimental em Petição n. 1.140-7, do STF (Relator
Ministro Sydney Sanches, publicado em
31 de maio de 1996, p. 18.803, do Diário
de Justiça), que consagrou definitivamente a necessidade da edição de uma lei que
regulamentasse a ADPF (PAGANELLA,
2004, p. 78).
Assim, diante da intransigência da
jurisdição constitucional em não abdicar
de lei formal para regulamentar o instituto, tratou o legislador de inserir essa lei
no sistema jurídico pátrio (PAGANELLA,
2004, p. 78). E, quanto à promulgação
de lei ordinária versando sobre a ADPF,
Nobre Júnior ressalta que: O trâmite legislativo destinado à concreção do art.
102, parágrafo 1º da CF, teve um início
tardio com a apresentação, em março
de 1997, do projeto de lei 2872, pela
deputada Sandra Starling, buscando,
sob o rotulo de “reclamação”, permitir
que a parte interessada, mediante requerimento subscrito por um décimo da
Câmara dos Deputados ou Senado Federal, provocasse o STF diante da violação de preceito fundamental, decorrente
de interpretação ou aplicação dos regimes internos de qualquer dos casos do
Congresso Nacional durante o processo
de elaboração das espécies normativas
mencionadas do art. 59 da CF (NOBRE
JÚNIOR, 2004, p. 77).
Podemos notar, portanto, que a primeira preocupação em regulamentar a
ADPF veio com o projeto de Lei n. 2872,
apresentado pela deputada Sandra Starling em 1997, e, somente quase quatro
meses depois, o Governo Federal editou
a Portaria n. 572 (DOU de 7.07.1997), determinando que fosse criada comissão
encarregada de empreender estudos
para elaboração de anteprojeto de lei
que delineasse o regramento da ADPF
(NOBRE JÚNIOR, 2004, p. 77).
O projeto foi sancionado pelo Presidente
da República mediante a promulgação
da Lei n. 9.882, de 3/12/1999, ressalvando os vetos ao inc. II, do parágrafo único,
do art. 1º, ao § 2º do art. 2º, ao § 9º do
art. 5, e aos §§ 1º e 2º dos arts. 8º e 9º;
de modo que, na visão de Fábio Oliveira, esses vetos contribuíram para uma
difícil exegese dos dispositivos da Lei n.
9.882/99 (OLIVEIRA, 2004, p. 84).
3.2 CARACTERÍSTICAS E ASPECTOS
PROCEDIMENTAIS DA ADPF À LUZ DA LEI
N. 9.882/99
3.2.1 CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA
E POSIÇÃO DA ADPF NO SISTEMA DE
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Ao tratar do conceito e da natureza
jurídica da ADPF, Celso Bastos preconiza
que a ADPF é uma medida de caráter judicial que promove o controle concentrado de constitucionalidade das leis e atos
normativos e não normativos, desde que
emanados pelo Poder Público, sendo
que a ADPF significa a complementação
do sistema pátrio de controle de constitucionalidade, correspondendo a uma
medida judicial destinada a corrigir atos
estatais violadores de preceitos fundamentais (TAVARES, 2001, p. 78).
Restringir o uso da ADPF ao controle de atos normativos
seria esvaziar o seu conteúdo, transformando-a em uma
ADIn especializada para casos de violação de preceito
fundamental, o que, seguramente, não foi o objetivo da
constituinte [...]
A comissão foi composta pelos professores Celso Ribeiro Bastos (presidente),
Arnoldo Ward, Ives Gandra, Oscar Côrrea
e Gilmar Ferreira Mendes, a qual, após remeter o anteprojeto ao Ministro da Justiça,
encaminhou-o ao STF (NOBRE JÚNIOR,
2004, p. 77). Porém, quando o trabalho
realizado pela comissão foi divulgado, já
tramitava no Congresso o projeto de Lei n.
2.872, que objetivava também disciplinar
a ADPF sob o nomem júris de reclamação
(MENDES, 2006).
Encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça e de Redação da Câmara
dos Deputados, o referido projeto de lei
foi aprovado, mas na forma do substitutivo proposto pelo deputado Prisco Viana,
cuja redação tem conteúdo muito semelhante ao do anteprojeto apresentado
pela comissão liderada por Celso Bastos.
Para o autor, a configuração que o
legislador atribuiu ao instituto da ADPF
permite a utilização desta como uma
ação autônoma, destinada à declaração
de invalidade de atos do Poder Público
atentatórios a preceitos fundamentais, ou
simplesmente a obstar o Poder Público
de praticar um ato lesivo a tais preceitos
(TAVARES, 2001, p. 115).
Marco Paganella ensina que o termo
“arguição de” significa uma ação judicial
que compõe o sistema de controle de
constitucionalidade e que visa evitar ou
reparar uma lesão a preceito fundamental e que deve ser proposta perante o STF
(PAGANELLA, 2004, p. 44). E, quanto à
natureza jurídica da ADPF, podemos dizer, pois, que essa corresponde a uma
ação judicial que integra o controle de
constitucionalidade brasileiro visando
Revista CEJ, Brasília, Ano XIV, n. 49, p. 27-41, abr./jun. 2010
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à defesa e proteção dos preceitos fundamentais consagrados
constitucionalmente; e que os instrumentos destinados à proteção constitucional são fundamentais, tendo em vista que é a
Constituição que norteia e estabelece a estrutura do Estado brasileiro, e que prescreve os direitos e deveres individuais, sociais,
políticos e econômicos de todos os componentes da sociedade
(PAGANELLA, 2004, p. 45).
A ADPF é, pois, modalidade de controle concentrado de
constitucionalidade cabível quando ato do Poder Público ofender preceito fundamental constitucionalmente previsto; controle esse que também compreende a ADIn interventiva, que é
cabível quando qualquer lei ou ato normativo proferido pelo
Poder Público no exercício de sua competência constitutiva vier
a violar um dos princípios sensíveis constitucionais (MORAES,
2000, p. 6) e a ação declaratória de constitucionalidade, que
pode ser manejada quando houver fundadas controvérsias e se
desejar que uma lei federal seja declarada efetivamente como
sendo constitucional (MORAES, 2000, p. 53).
3.2.2 OBJETO E HIPÓTESE DE CABIMENTO DA ADPF
32
O art. 1º, caput e parágrafo único, da Lei n. 9.882/99 dispõe
o seguinte: A argüição prevista no parágrafo 1º do art. 102
da CF será proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e
terá por objeto evitar ou reparar lesão a preceito fundamental,
resultante de ato do Poder Público. Parágrafo único: Caberá
também argüição de descumprimento de preceito fundamental: 1. quando for relevante o fundamento da controvérsia
constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou
municipal, incluídos os anteriores à Constituição. 2. (vetado).
Do disposto neste artigo podemos extrair que a ADPF serve
tanto para evitar quanto para reparar lesão a um preceito fundamental resultante de ato do Poder Público, podendo, portanto,
ser preventiva ou repressiva, ou utilizada quando for relevante o
fundamento da controvérsia constitucional sobre a lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal (MORAES, 2000, p. 613).
[...] quanto à coisa julgada inconstitucional
que não possa mais ser impugnada via ação
rescisória ou impugnação ao cumprimento de
sentença, vislumbra-se perfeitamente o seu
controle por meio da ADPF [...]
Desse modo, a ADPF objetiva evitar ou reparar lesão a
preceito fundamental resultante de ato do Poder Público, e,
conforme entendimento de Fábio Oliveira, este objeto também
inclui a hipótese em que houver controvérsia sobre lei ou ato
normativo federal, estadual ou municipal, ainda que anteriores
à Constituição (OLIVEIRA, 2004, p. 113).
Mendes (2006, p. 234) alega que a ADPF é dispensável
sempre que a matéria nela vinculada puder ser, de igual modo,
vinculada mediante ajuizamento de ADI, conferindo, pois, a
ADPF posição inferior e subsidiária à da ADI. Mas, segundo
lições de André Tavares, é inegável a congruência em certos
pontos, entre ambas as ações, (TAVARES, 2001, p. 45) principalmente quando se está diante de lei ou ato normativo federal
ou estadual que viole preceito fundamental, mas neste caso,
Revista CEJ, Brasília, Ano XIV, n. 49, p. 27-41, abr./jun. 2010
deve-se utilizar a ADPF, e não a ADI. Isso porque, para o autor, a
argüição é medida tão primordial quanto a ADI, apresentando
mesmo relevância superior, se se quiser (TAVARES, 2001, p. 45).
Assim, para Tavares, a ADPF não é um instituto com caráter
residual em relação à ADI, tratando-se de um instrumento próprio destinado à defesa de determinadas categorias de preceitos
(os fundamentais), sendo esta a razão de sua existência. Daí por
que não se pode admitir o cabimento de qualquer outra ação
para a tutela de tais preceitos, já que a vontade do constituinte
originário foi a de determinar que a arguição seja sempre cabível, o que exclui outras ações e, inclusive, a ADIn (TAVARES,
2001, p. 45). É importante ressaltar, contudo, que, para Ilmar
Galvão, se a impugnação puder ser manifestada por meio de
ADIn não caberá a ADPF em virtude do art. 4º, caput, da Lei n.
9.882/99 (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2001, p. 4).
O art. 1º da Lei n. 9.882/99 fala em lesão a preceito fundamental resultante de ato do Poder Público; mas o que se inclui
na expressão “ato do Poder Público”. Fábio Oliveira entende
que essa expressão reduz a índole ampla da ADPF, e esta limitação não será um óbice especialmente tormentoso caso
ao se aplicar a interpretação conforme a Constituição Federal
seja admitida a violação de preceito fundamental por entidade
particular no desempenho de funções delegadas pelo Poder
Público (TAVARES, 2001, p. 45).
Rothenburg ensina que a expressão “ato do Poder Público”
impede o ajuizamento da ADPF quando a lesão a preceito fundamental decorrer de ato particular que não seja praticado no
exercício de função pública (TAVARES, 2001, p. 217) e ressalta
que a ADPF só será cabível quando atos do Poder Público forem os violadores de preceitos fundamentais (TAVARES, 2001,
p. 217).
Voltando ao significado de ato do Poder Público, Humberto
Pena assere que esta expressão deve abranger todos os atos
resultantes da atividade atribuída ao Poder Estatal de quaisquer
esferas federativas e, sendo concreto, de entidade ou órgão da
administração direta e indireta, ultrapassando, assim, eventual
limitação quanto à normatividade do ato a ser examinado (TAVARES, 2001, p. 217).
Aliás, para Gustavo Binenbojm, o vocábulo “ato do Poder
Público” abarca qualquer ato do Poder Executivo, Judiciário e
Legislativo e do Ministério Público que importe limitação ou
ameaça a preceito fundamental (BINENBOJM, 1968, p. 191).
Esse pensamento contraria os ensinamentos de Celso de Mello,
para quem os atos estatais de efeitos concretos, por serem despojados de qualquer normatização ou generalidade abstrata,
não são passíveis de fiscalização, em tese, quanto à sua legitimidade constitucional (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL).
Celso Ribeiro Bastos ensina que o ato do Poder Público ensejador da propositura da ADPF se refere às leis e atos, normativos ou não, de todas as esferas federativas (BASTOS, 2000, p.
71). Mas é importante salientar que não está englobado neste
conceito o ato político, que, na visão de Nobre Júnior, não é
passível de análise por meio da ADPF (NOBRE JÚNIOR, 2004,
p. 66).
No que tange à impugnação de atos jurisdicionais violadores de preceito fundamental, Fábio Oliveira aceita, em tese, o
cabimento da ADPF, mas frisa que, nesse caso, ela deverá passar por um rigoroso juízo de admissibilidade no STF, para que
não se transforme em 3º instância recursal, não podendo ser confundida com o
recurso extraordinário (NOBRE JÚNIOR,
2004, p. 124). O recurso extraordinário
distingue-se da ADPF pela necessidade
de haver naquele a existência de um
interesse específico do recorrente, o que
o distancia da qualificação de um meio
idôneo à instauração de um processo
objetivo, observado na ADPF (OLIVEIRA,
2004, p. 128). A esse respeito, partilhamos do entendimento de que é cabível
a ADPF contra ato judicial, sem, porém,
confundi-la com o recurso extraordinário.
A ADPF também pode ser utilizada
para combater lesão a preceito fundamental decorrente da omissão inconstitucional, de modo a atingir também
hipóteses de inconstitucionalidade por
omissão. Esse cabimento veio suprir o
esvaziamento que o STF, com base no
princípio da separação constitucional,
havia trazido à ADIn por omissão e ao
mandado de injunção, de modo que se
conferiu uma exegese progressista em
relação à ADPF para não frustrar a efetividade constitucional em razão do vazio
legislativo (OLIVEIRA, 2004, p. 130).
E é importante frisar que a Lei n.
9.882/99 veio possibilitar o ajuizamento
da ADPF em face não só de ato normativo
federal e estadual, mas também de ato
normativo municipal, preenchendo lacuna
existente no âmbito da ADI, que excluía
tais normas do controle concentrado realizado pelo STF. Desse modo, será cabível
a ADPF quando ato normativo municipal
estiver lesando preceito fundamental previsto na Constituição Federal.
Nesse sentido, concordamos com o
entendimento de Paganella, para quem
o fato de a lei ter trazido a possibilidade
de extensão do controle concentrado a
ato normativo municipal não acarreta
um alargamento da competência do STF,
na medida em que a própria Lei Maior
deixou ao crivo da lei regulamentar a matéria, no sentido de, justamente, abarcar
situações antes não disciplinadas (PAGANELLA, 2004, p. 85).
Por fim, quanto ao cabimento da
ADPF em caso de controvérsia constitucional relevante acerca de lei ou ato
normativo estadual, federal ou municipal
anterior à Constituição de 1988, este é
um ponto que tem causado extrema divergência doutrinária, pois, nestes casos,
não se vislumbra uma inconstitucionali-
dade, mas sim revogação lograda pela
promulgação da Lei Maior (OLIVEIRA,
2004, p. 134).
A esse respeito, Paganella ensina que,
com base no entendimento preconizado
pelo STF de que o conflito entre o direito infraconstitucional pretérito e a nova
Constituição deve ser equacionado por
meio de critério cronológico de resolução
de antinomias e não pelo critério hierárquico, criou-se um vácuo no controle
abstrato da norma, prejudicial à segurança
jurídica; pois a resolução de controvérsia
envolvendo a recepção de norma infraconstitucional deixou de contar com um
instrumento definitivo de pacificação social (PAGANELLA, 2004, p. 85).
os próprios cidadãos.
3.2.3 CONCEITO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL
O termo “preceito fundamental” empregado no art. 102, § 1°, da Constituição
e no art. 1° da Lei n. 9.882/99, não foi
delimitado legalmente, e não há unanimidade doutrinária acerca de seu significado e extensão, conforme se verificará;
o que traz dificuldades no momento
de precisar o que venha a ser preceito
fundamental. Mas, salientamos que essa
omissão proposital do legislador quanto
à designação do termo “preceito fundamental” é positiva, na medida em que
uma enumeração taxativa poderia abre-
Um dos obstáculos que podem ser arguidos, com o intuito
de impedir o manejo da ADPF nos casos de coisa julgada
violadora de preceito fundamental, é o princípio da
subsidiariedade da ADPF
Para Paganella, a Lei n. 9.882/99
veio preencher em boa parte esse vazio,
possibilitando o controle abstrato do direito pré-constitucional e em sintonia,
inclusive, com o Direito alemão, italiano, espanhol e português, que admitem
controle abstrato de constitucionalidade
de direito anterior à Constituição, de
modo que ele não vê nisso qualquer
inconstitucionalidade, já que o art. 102,
§ 1º, da Constituição não contempla
qualquer limitação expressa ou implícita, relativas às normas pré-constitucionais (PAGANELLA, 2004, p. 87).
Desse modo, podemos concluir que
a ADPF será cabível sempre que a lesão
a preceito fundamental provier de ato
normativo municipal, estadual ou federal, ou, ainda, de atos administrativos e
até mesmo jurisdicionais, incluindo-se
também atos normativos anteriores à
Constituição, já que o reconhecimento
expresso da incompatibilidade destes
atos com a Lei Maior viabilizaria uma
maior proteção a ela. É importante frisar que entendemos não ser cabível a
ADPF em face de ato político ou ato
normativo regulamentar, como já dito
anteriormente. Além do que, admitimos
o cabimento da ADPF em caso de omissão do Poder Público que viole preceito
fundamental, para que se possa cercar
a nossa Constituição de toda a proteção
possível, tutelando, em última análise,
viar as aspirações do constituinte diante da natural dinamicidade do direito
(OLIVEIRA, 2004, p. 104), fazendo com
que a definição daquilo que seja preceito
fundamental tivesse sua densidade normativa diminuída no decorrer do tempo
(VELOSO, 2000, p. 295).
Nobre Júnior, ao tratar de preceito
fundamental, assere que a ADPF não colima fiscalização a ofensa a qualquer dispositivo da Lei Maior, mas só àqueles que
correspondam a preceito fundamental,
(2004, p. 102) sendo certo que preceito
fundamental não se confunde com princípio fundamental, pois tem uma amplitude
maior que este (SILVA, 2002, p. 32).
Ivo Dantas ensina que preceito
fundamental, apesar de englobar os
princípios fundamentais contidos nos
arts. 1º a 4º da Constituição, constitui
universo mais vasto, compreendendo todo o dispositivo que daqueles
decorram (DANTAS, 2003, p. 426).
Nesse sentido, Tavares preconiza que
deve ser considerado fundamental o
preceito que se apresentar como imprescindível, basilar ou inafastável, podendo estar presente expressa ou implicitamente na Constituição (TAVARES,
1998, p. 310).
3.2.4 MODALIDADES DE ADPF
A Lei n. 9.882/99, no seu art. 1º, prevê duas modalidades de arguição: a au-
Revista CEJ, Brasília, Ano XIV, n. 49, p. 27-41, abr./jun. 2010
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tônoma, prevista no caput do artigo, e a incidental, prevista no
seu parágrafo único. A ADPF autônoma é uma ação voltada ao
controle de constitucionalidade abstrato, cujo objetivo é evitar ou
reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato, comissivo
ou omissivo, do Poder Público, em todos os níveis federativos
(OLIVEIRA, 2004, p. 151). Já a ADPF incidental transfere para o
STF a competência funcional para apreciação de questão constitucional embasada na controvérsia constitucional sobre lei ou ato
normativo federal, estadual ou municipal.
3.2.5 PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE
34
O princípio da subsidiariedade está previsto no art. 4º, § 1º,
da Lei n. 9.882/99, que preconiza que não será admitida a argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade; e há duas
correntes doutrinárias que procuram determinar o seu conteúdo.
A primeira corrente, à qual se filiam Olavo Ferreira e Rodrigo Fernandes, defende que não será cabível a ADPF quando a
lesividade puder ser sanada tanto pelos instrumentos de controle de constitucionalidade quanto pelos demais meios judiciais
que resguardam os direitos fundamentais (2006). Maria Garcia (2000, p. 14) e Alexandre de Morais (2001, p. 64) também
compartilham desse mesmo entendimento, defendendo o não
cabimento da ADPF caso a matéria nela versada puder ser vinculada por meio de ADI.
Em posição contrária, Tavares defende que a ADPF é medida
tão primordial quanto a ADI, apresentando até mesmo relevância
superior a esta, de modo que, caso se trate de lesão a preceito fundamental, a ação cabível será a ADPF (TAVARES, 2001, p.
21). Gilmar Mendes chama a atenção para uma leitura cuidadosa
desse dispositivo, sugerindo que a subsidiariedade diga respeito apenas ao possível manejo de processos de índole objetiva
(MENDES, 2006). E, a esse respeito, o STF tem entendido que
não é possível a ADPF sempre que houver um outro meio eficaz,
de modo que este pode se referir à possibilidade de processos de
ordem subjetiva ou objetiva (TAVARES, 2001, p. 225).
Rothenburg ensina que, de certo, a ADPF não deve substituir
outras ações nem saltar os recursos judiciais, em princípio; mas
o caráter subsidiário deve ser avaliado não apenas em função da
existência, mas também da ineficácia de outros meios de controle
judicial (TAVARES, 2001, p. 225). Sendo assim, o princípio da subsidiariedade deve ser interpretado não de forma literal, mas dentro
de uma perspectiva sistemática, levando em consideração os objetivos do constituinte originário ao consagrá-lo constitucionalmente.
Ora, como a ADPF tem por foco proteger preceito fundamental, se o caso versar sobre lesão a este, ainda que teoricamente seja
cabível o ajuizamento de ADI, deverá ser utilizada a ADPF, uma
vez que é meio processual mais específico neste sentido. Além do
que, é preciso avaliar não só a existência de outros meios processuais, mas também se estes são eficazes para sanar a lesividade.
Entendemos que, ainda que haja outros meios processuais cabíveis,
sendo a ADPF o mais eficaz, poderá ser utilizada. Pensar de maneira
diversa seria chegar a uma sistematização em que a ADPF nunca
será cabível (FRANÇA JÚNIOR, 2006), reduzindo ao vazio um instrumento tão importante para defesa da nossa Lei Maior.
3.2.6 COMPETÊNCIA E LEGITIMIDADE ATIVA
A competência para conhecer e julgar a ADPF, conforme o
Revista CEJ, Brasília, Ano XIV, n. 49, p. 27-41, abr./jun. 2010
art. 102, § 1º, da Constituição é do Supremo Tribunal Federal,
cuja função precípua é garantir a supremacia da Constituição
e os direitos e garantias fundamentais nela prescritos. O art.
1º, caput, da Lei n. 9.882/99 reitera a competência do Tribunal
Constitucional, que exercerá o controle de constitucionalidade
concentrado.
Quanto à legitimidade para propor a arguição, o art. 2º, inc.
I, da Lei n. 9.882/99 preconiza que podem propor a ADPF os
legitimados para a ADI, que, por sua vez, estão previstos no art.
103, inc. I a IX da Constituição. Assim, têm legitimidade para
propor a ADPF: o Presidente da República, a mesa da Câmara
dos Deputados, a mesa da Assembleia Legislativa ou da Câmara
Legislativa do DF, o Governo do Estado ou do DF, o ProcuradorGeral da República, o Conselho Federal da OAB, partidos políticos com representação no Congresso e a confederação sindical
ou entidade de classe de âmbito nacional (CONSTITUIÇÃO
FEDERAL, 1988).
O art. 2º também continha o inc. II, que permitia a propositura ampla da ADPF por qualquer prejudicado. Porém, esse
inciso foi vetado pelo Presidente da República, sob o argumento
de que a admissão de um acesso individual e irrestrito ao STF
acarretaria a elevação excessiva do número de feitos perante
este, sem a correlata relevância social e consistência jurídica
das argüições propostas. (VELOSO, 2000, p. 302).
Segundo Lênio Streck, esse veto frustrou as expectativas
doutrinárias que viam na ADPF um acesso direto do cidadão
ao STF para suscitar o controle abstrato de constitucionalidade
(STRECK, 2001, p. 97). Restou ao art. 2º da Lei n. 9.882/99 também o seu § 2º, que somente permite ao lesado que não pertence ao rol de legitimados uma interposição da ADPF pela via
indireta. Isso porque, pelo § 2º, aquele que sofreu um prejuízo
pelo descumprimento de um preceito fundamental, se quiser
reparar tal lesão, ficará a mercê e na dependência da vontade
do Procurador-Geral da República (PAGANELLA, 2004, p. 88).
4 A ADPF COMO MEIO PROCESSUAL ADEQUADO PARA
DESCONSTITUIR A COISA JULGADA VIOLADORA DE PRECEITO
FUNDAMENTAL
4.1 OS INSTRUMENTOS PROCESSUAIS APONTADOS PELA
DOUTRINA PARA VIABILIZAR A DESCONSTITUIÇÃO DA COISA
JULGADA INCONSTITUCIONAL
Para Cândido Rangel, uma vez admitida a possibilidade
de relativização da coisa julgada inconstitucional, vários são os
meios processuais que se apresentam para viabilizá-la, sendo
que o menor dos problemas estaria em definir qual o remédio
processual mais adequado para desconstituir a coisa julgada
inconstitucional (DINAMARCO, 2006). Porém, a indicação dos
remédios processuais adequados para impugnar a sentença inconstitucional é de extrema relevância para o presente trabalho,
na medida em que constitui o seu problema central.
A ação rescisória apresenta-se como o primeiro e principal meio processual hábil a desconstituir a coisa julgada inconstitucional. Isso porque a ação rescisória tem a função de
rescindir a sentença transitada em julgado que violar literal
disposição de lei, conforme o art. 485, inc. V, do CPC, estando
inserida na expressão “lei” a Constituição Federal, já que esta
é entendida como a Lei Maior do ordenamento jurídico (DINAMARCO, 2006, p. 42).
No entanto, a ação rescisória só é cabível nas hipóteses taxativas do art. 485
do CPC e dentro do prazo decadencial
de dois anos, de modo que os tribunais
brasileiros têm interpretado de forma
extremamente restritiva as hipóteses de
admissibilidade da ação rescisória (DINAMARCO, 2006). E o que tem levado
a essa interpretação restritiva é o emprego pelo art. 485, inc. V, do CPC, da
expressão “literal disposição de lei”, que
conduz os tribunais a entender em que
a ação rescisória só é cabível quando a
decisão violar o texto positivado na lei.
Nesse sentido, o STF emitiu a Súmula 343, segundo a qual não cabe ação
rescisória por ofensa a literal disposição
de lei, quando a decisão rescindenda se
tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos Tribunais; consagrando, pois, o entendimento de que
não viola literal disposição de lei a sentença que decorrer de sua interpretação
razoável, ou seja, daquilo que se pode
auferir da norma nela explicitada, ainda
que a interpretação, a esse tempo, fosse
controvertida (PELIZ, 2004, p. 348).
Albino Zavascki ressalta que a expressão “violar literal disposição de lei”
contida no art. 485, inc. V, do CPC, não
remete apenas à possibilidade de desconstituir sentença que violar disposição
explícita na lei, mas também à possibilidade de desconstituir sentença que violar disposição implícita na lei (ZAVASCKI,
2003, p. 122).
O autor sustenta ainda que, quando
a matéria for constitucional, o enunciado
da Súmula 343 do STF não pode prevalecer, devendo a sentença de mérito ser
rescindida sempre que violar dispositivo
explícito ou implícito na Lei Maior (2003,
p. 127), não importando se, ao tempo de
sua prolação, a interpretação era controvertida. Mas ele também ensina que a
Súmula 343 não pode ser afastada em
qualquer caso, sob pena de se transformar a ação rescisória em recurso ordinário, salientando ser rescindível a sentença
fundada em lei declarada posteriormente
inconstitucional pelo STF ou que contrariar lei declarada constitucional, ainda
que essa declaração ocorra após o seu
trânsito em julgado, bem como a que
violar precedente do STF declarado após
o seu trânsito em julgado (ZAVASCKI,
2003, p. 134).
Com um ponto de vista mais amplo
que a de Albino Zavascki, Teresa Arruda e
José Miguel defendem que, para que se
consiga evitar a permanência de decisões
que afrontam o sistema jurídico deve-se
entender que o art. 485, inc. V, do CPC,
permite a rescisão não só de decisões
que afrontam texto escrito de lei, mas
também de decisões em que se tenham
feito incidir princípios, que deveriam ter
sido afastados, ou em que se tenham
afastado princípios, que deveriam necessariamente ter sido aplicados na
busca da solução normativa (WAMBIER,
2003, p. 175).
Quanto às sentenças fundadas em
lei posteriormente declarada inconstitucional por decisão com efeito ex tunc,
o Pleno do STF afirmou que lei inconstitucional não produz efeito, nem gera
direito, desde o seu início, (SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, RE 89.108-60.
Relator: Cunha Peixoto, Ac. 2808 1980,
RTJ. 101/209), de modo que as sentenças nela fundadas seriam perfeitamente
rescindíveis via ação rescisória (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, RE 89.108-60.
Relator: Cunha Peixoto, Ac. 2808 1980,
RTJ. 101/209). Esse também é o entendimento de Alfredo Buzaid, para quem
são rescindíveis as sentenças prolatadas
com fulcro em lei que posteriormente
é declarada inconstitucional (BUZAID,
1958, p. 137).
Teresa Arruda e José Miguel compartilham do mesmo entendimento, ressaltando que, como a regra é a de que
a declaração de inconstitucionalidade
proferida pelo Supremo em ADIn tenha
efeito ex tunc, a despeito do que dispõe
o art. 27 da Lei n. 9.868/99, as sentenças
inconstitucionais são inexistentes, sendo
cabível, portanto, a ação rescisória. Porém, esta não se faz necessária, na medida em que, como se trata de inexistência,
é suficiente o ajuizamento de ação declaratória dessa inexistência (WAMBIER,
2003, p. 42).
Nesse caso, como a decisão está baseada em lei que não é lei, Teresa Arruda
e José Miguel defendem que é desnecessário o ajuizamento da ação rescisória,
bastando à parte interessada propor uma
ação de natureza declaratória, a fim de
gerar um maior grau de segurança jurídica à sua situação, sendo que o interesse
de agir, nestes casos, nasceria não da necessidade, mas da utilidade da decisão,
que tornaria a questão da inexistência in-
discutível (WAMBIER, 2003, p. 43). Mas
eles alertam que, quando a declaração
de inconstitucionalidade tiver efeito ex
nunc, deverá incidir a Súmula 343 do STF
(WAMBIER, 2003, p. 43).
Desse modo, para Teresa Arruda e
José Miguel, o meio processual mais adequado para desconstituir as sentenças
que violam diretamente a Constituição,
e que se mostram inexistentes, é a ação
declaratória de inexistência, não sendo
necessário o manejo da ação rescisória.
Nesse caso, as sentenças que acolhem
pedidos inconstitucionais são inexistentes, e não nulas, na medida em que se
encontrar ausente alguma condição de
ação ou qualquer dos pressupostos de
existência, sendo suficiente para sanar a
lesividade o manejo de ação declaratória,
que não está restrita ao prazo do art. 495
do CPC, já que não há nada para se desconstituir, mas apenas para se declarar.
Mas, não sendo caso de inexistência, eles
alertam que deverá ser ajuizada a ação
rescisória no prazo decadencial de dois
anos (WAMBIER, 2003, p. 43).
Outro meio processual adequado
para desconstituir a coisa julgada inconstitucional é a impugnação ao cumprimento de sentença, que veio substituir
os embargos à execução quando se tratar de título executivo judicial, já que se
considera inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo tido como
inconstitucional pelo STF ou no qual se
adotou interpretação de lei ou ato normativo incompatível com a Constituição.
Teresa Arruda e José Miguel ensinam, porém, que não se deve atribuir
à impugnação uma função rescindente,
pois se a decisão na qual se funda a execução for inexistente, à execução faltará,
consequentemente, o título executivo,
sendo caso de declaração de inexistência, e não de desconstituição, devendo o
órgão jurisdicional manifestar-se de ofício acerca dessa inexistência, indeferindo a execução ante a ausência de título
executivo; e, se este não o fizer, caberá
ao executado provocá-lo por meio da exceção de pré-executividade (WAMBIER,
2003, p. 73).
Teresa Arruda e José Miguel alertam
ainda que, como não pode ser atribuída
a impugnação ao cumprimento da decisão à rescindibilidade eles só serão cabíveis quando a sentença for baseada em
lei declarada inconstitucional por decisão
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do STF com efeito ex tunc e quando a sentença exequenda tiver
se baseado em certo texto legal interpretado ou aplicado de
um modo a respeito do qual o STF já se tenha manifestado,
considerando-o como sendo inconstitucional (WAMBIER, 2003,
p. 75), de sorte que, nos demais casos, será necessário o manejo da ação rescisória.
Juliana Cordeiro e Humberto Theodoro dão uma aplicabilidade maior à impugnação ao cumprimento da decisão, defendendo sua utilização em dois casos: quando o título executivo
for sentença fundada em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo STF e quando o título executivo corresponder à sentença que tenha lei ou ato normativo de forma incompatível com a Constituição (NASCIMENTO, 2003, p. 112). Nestes
casos, a impugnação ao cumprimento de decisão poderia ser
utilizada ainda que transitada em julgado a sentença correspondente ao título executivo (NASCIMENTO, 2003, p. 112).
Nesse momento, surge-nos outra questão: depois de ultrapassado o prazo decadencial de dois anos para o ajuizamento
da ação rescisória, e não sendo caso de impugnação ao cumprimento de sentença, será que existem outros meios processuais
adequados para desconstituir a coisa julgada inconstitucional?
Doutrinadores como Cândido Rangel (2006), Humberto Theodoro (2002, p. 32), Teresa Arruda (2003, p. 73), Carlos Valder
(2003, p. 12) e outros têm respondido que sim. E a resposta mais
comum tem sido a utilização da querela nullilatis insanabilis,
também chamada de “ação declaratória de nulidade absoluta”,
para desconstituir as sentenças com vício de inconstitucionalidade
(PELIZ, 2004, p. 348).
Segundo Melissa Peliz, a querela nullitatis insanabilis, que
é, em geral, utilizada quando ocorre a inexistência ou nulidade
de citação acompanhada da revelia, tem sido vislumbrada também como um meio para expurgar do ordenamento jurídico a
coisa julgada inconstitucional, já que não há como convalidar
sentença eivada de tal nulidade (PELIZ, 2004, p. 395).
Nesse sentido, Carlos Valder sustenta que, se a sentença
inconstitucional é nula, e quando contra ela não for mais cabível
a ação rescisória, a parte poderá se valer, sem observância do
lapso temporal, da ação declaratória de nulidade da sentença,
já que essa não teve o condão de perfazer a relação processual
em virtude do vício que a contaminou, ficando inviabilizado o
seu trânsito em julgado (NASCIMENTO, 2003, p. 19). Ele ensina que a ação declaratória de nulidade tem origem na querela
nullitatis insanabilis, que ainda persiste no Direito brasileiro e
que, por sua vez, é o remédio voltado para a impugnação de
erros graves cometidos no âmbito da jurisdição (NASCIMENTO, 2003, p. 19), podendo ser utilizada contra vícios que não
são sanados com a preclusão temporal e [que] sobrevivam à
formação da coisa julgada (MACEDO, 2000, p. 50).
Segundo Moacyr Amaral Santos, a querela nullitatis foi
criada com o objetivo de atacar a imutabilidade de sentença
convertida em coisa julgada, mas que contenha algum vício de
nulidade (SANTOS, 1970, p. 443). Complementando esse ensinamento, Carlos Valder salienta que é cabível o ajuizamento da
querela nullitatis contra sentença ou acórdão inconstitucional,
pois não se pode permitir a permanência de sentença que contrarie a Constituição e prejudique uma das partes da relação
processual, de sorte que a função fundamental da querela nullitatis é justamente a de possibilitar a anulação de sentença de
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mérito que fez coisa julgada inconstitucional (SANTOS, 1970,
p. 443).
Cândido Rangel ensina que a coisa julgada não pode servir de embaraço à declaração de inconstitucionalidade de uma
sentença, simplesmente porque o vício de inconstitucionalidade
impede a formação da coisa julgada material, de modo que a
sentença não adquire a característica da imutabilidade (DINAMARCO, 2006, p. 35).
Para ele, o reconhecimento da ineficácia ou invalidade da
coisa julgada inconstitucional pode se dar a qualquer tempo e
mediante a utilização de qualquer meio processual ao alcance da
parte (DINAMARCO, 2006); sendo que ele adota, dentre outras,
as possibilidades sugeridas por Pontes de Miranda, que são: a)
a propositura de nova demanda igual a primeira, desconsiderando a coisa julgada; b) a resistência à execução, por meio de
impugnação ou alegações incidentes no processo executivo; c) a
alegação incidenter tantum em algum outro processo, inclusive
em peças de defesa (DINAMARCO, 2006, p. 36).
Cândido Rangel também defende a utilização da ação
rescisória e, ainda, da ação declaratória de nulidade absoluta
e insanável de sentença, chamada de “querela nullitatis”, para
viabilizar a impugnação de sentenças que violam a Lei Maior.
O mesmo autor cita em seu artigo casos em que o STJ admitiu a propositura de nova ação autônoma pela parte, a fim de
afastar o absurdo da coisa julgada inconstitucional decorrente
de processo anterior, sendo um desses casos o de um menino uruguaio que, vítima de um processo de investigação de
paternidade fraudulento, simplesmente se limitou a repetir a
demanda, desconsiderando a coisa julgada anterior (DINAMARCO, 2006, p. 37).
Nesse sentido, Teresa Arruda e José Miguel ensinam –
como para eles essas sentenças inconstitucionais são inexistentes – que pode a parte, para obter maior segurança jurídica,
propor uma ação declaratória para simplesmente declarar essa
situação de inexistência, estando segura para, posteriormente,
repetir a demanda (WAMBIER, 2003, p. 42).
Já Humberto Theodoro e Juliana Cordeiro discordam da
tese segundo a qual a sentença inconstitucional é inexistente.
Para eles, a sentença inconstitucional contém o vício de nulidade e, por isso, está sujeita à ação rescisória (NASCIMENTO,
2003, p. 89). Ressaltam, porém, que a admissão da ação rescisória não significa a sujeição da declaração de inconstitucionalidade da coisa julgada ao prazo decadencial de dois anos,
a exemplo de que ocorre quando a sentença contempla algumas nulidades absolutas, como, por exemplo, o vício de citação
(NASCIMENTO, 2003, p. 95).
Segundo Humberto Theodoro e Juliana Cordeiro, a decisão
transitada em julgado, ainda que contaminada com o vício da
inconstitucionalidade, possui os elementos materiais de existência, e sua impotência em alcançar os efeitos jurídicos decorre
da situação de contraposição entre seu conteúdo e o mandamento constitucional; de sorte que essa decisão contém o vício
da nulidade, e não o da inexistência. E é justamente por isso
que compete à parte prejudicada ajuizar a ação rescisória, e não
uma ação anulatória (NASCIMENTO, 2003, p. 89).
Mas essa ação rescisória não está limitada ao prazo decadencial de dois anos, podendo ser ajuizada a qualquer tempo.
Isso porque, segundo Humberto Theodoro e Juliana Cordeiro,
não se pode dar à ação rescisória referente à coisa julgada inconstitucional o
mesmo tratamento conferido àquela referente à coisa julgada ilegal na medida
em que, diferentemente da coisa julgada
ilegal, cuja arguição está submetida a um
prazo, a coisa julgada inconstitucional
não pode subsistir de maneira alguma
no ordenamento jurídico; o que faz com
que ela se submeta ao mesmo regime
de inconstitucionalidade dos atos legislativos, para o qual não há prazo (NASCIMENTO, 2003, p. 95).
Sendo assim, apesar de Juliana Cordeiro e Humberto Theodoro não concordarem com a tese de inexistência da
decisão inconstitucional, concordam com
a utilização da ação declaratória para reconhecimento do vício de nulidade constante dessas sentenças; e, ao mesmo tempo,
alertam para a utilização da ação rescisória
como instrumento de prestígio aos princípios da instrumentalidade e da economicidade (NASCIMENTO, 2003, p. 95).
No que concerne à nulidade da sentença inconstitucional, somos partidários
do entendimento de Juliana Cordeiro e
Humberto Theodoro, porém discordamos destes no que tange ao manejo da
ação rescisória após o decurso do prazo
de dois anos, pois, a nosso ver, depois
de decorrido o prazo de dois anos, será
cabível a ADPF.
Desse modo, além de todos esses
instrumentos processuais que têm sido
apontados por doutrinadores como os
mais adequados para impugnar a coisa
julgada inconstitucional, um outro instrumento, talvez o mais eficaz, tem sido
vislumbrado, porém, de maneira muito
mais tímida pela doutrina. Esse instrumento é a arguição de descumprimento
de preceito fundamental, do qual passamos a falar no tópico que se segue.
4.2 A ADPF COMO INSTRUMENTO
ADEQUADO PARA DESCONSTITUIR A
COISA JULGADA VIOLADORA DE PRECEITO
FUNDAMENTAL
Todos os instrumentos processuais
que vimos no tópico anterior são adequados para desconstituir a coisa julgada
inconstitucional. Seja qual for o instrumento processual utilizado pela parte, o
importante é que a coisa julgada inconstitucional seja expurgada do ordenamento jurídico.
Porém, os meios até aqui apresenta-
dos para impugnar a sentença inconstitucional apresentam um inconveniente: a
sujeição da parte prejudicada a um novo
processo que pode demorar anos até ser
julgado com ânimo definitivo, tendo em
vista os inúmeros recursos que podem
ser utilizados com o intuito de protelar
o processo.
Os arts. 102, inc. I, al. j; 105, inc. I, al.
e; e 108, inc. I, al. b, da Constituição, bem
como o art. 494 do CPC estabelecem que
a ação rescisória será julgada por tribunal,
sendo que compete às Cortes de 2º grau
processar e julgar as ações rescisórias
proferidas pelos juízes de 1º grau, assim
como das próprias decisões, cabendo ao
STJ e STF processar e julgar, originalmente, as ações rescisórias relativas a seus
próprios julgados, e quanto ao STJ, as
decisões prolatadas pelos juízes federais
(SOUZA, 2004, p. 770). Isso quer dizer
que a parte prejudicada, depois de anos
na Justiça, terá, diante de uma coisa julgada inconstitucional, de se submeter a um
novo processo, que poderá ter duração
até mesmo maior que a do primeiro, a
fim de ver desconstituída a sentença inconstitucional.
O mesmo ocorre quando vislumbramos outros instrumentos processuais,
como a querela nullitatis e a repetição da
demanda que, via de regra, terão de ser
ajuizados perante juiz de primeiro grau;
o que faz com que a parte tenha de esperar anos para obter a satisfação de sua
pretensão. Isso nos parece injusto na medida em que a parte não pode ser prejudicada por um erro do Poder Judiciário,
cuja função deve ser a de tutelar seus
direitos e garantias. É por isso que nos
parece mais adequado para desconstituir
a coisa julgada inconstitucional e, consequentemente, tutelar o direito da parte
prejudicada, um instrumento processual
que ultrapasse, senão todas, grande parte das instâncias recursais, impedindo
que uma das partes utilize os inúmeros
recursos para protelar o processo.
Esse instrumento processual capaz
de superar várias instâncias recursais
existe e corresponde à arguição de descumprimento de preceito fundamental
que, por ser vista por parte da doutrina
como meio de controle constitucional
abstrato de atos exclusivamente normativos, dificilmente vem à tona quando
falamos de instrumentos viabilizadores
da relativização da coisa julgada.
Como vimos, a Constituição determina que é da competência do STF o
julgamento da ADPF, devendo ser esta
regulada pela legislação infraconstitucional (Constituição Federal, de 05.10.1988,
art. 101, inc. I). Em atendimento ao comando constitucional, a Lei n. 9.882/99,
em seu art. 1º, veio prever duas espécies
de ADPF: a ADPF autônoma, cuja função
é a de evitar ou reparar lesão a preceitos fundamentais perpetrada por ato do
Poder Público; e a ADPF incidental, que
será cabível quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional
sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à Constituição.
Dessas duas espécies de ADPF, a
que se vislumbra como meio processual adequado para impugnar decisões
inconstitucionais violadoras de preceito
fundamental é a ADPF autônoma, visto
que a lei determina seu cabimento contra lesão a preceito fundamental advinda
de ato do Poder Público, sendo necessário, para seu cabimento, a comprovação
da concreta violação a preceito constitucional considerado fundamental (BERNARDES, 2004, p. 99).
Segundo Juliano Bernardes, a expressão “ato do Poder Público” deve ser
entendida no seu sentido amplo, pois,
como a Constituição e o caput do art.
1º da Lei n. 9882/99 não fazem qualquer restrição quanto aos tipos de atos
do Poder Público, a ADPF é cabível em
face de todos eles: sejam omissivos ou
comissivos, sejam os que devem ser considerados inválidos ou inexistentes (BERNARDES, 2004, p. 190). O autor ensina
que o objeto da ADPF autônoma deve
ser considerado no sentido amplo, sendo o objetivo imediato desta consistente
justamente em impugnar o ato do qual
partiu a concreta lesão ao preceito fundamental, a saber, a decisão inconstitucional (BERNARDES, 2004, p. 190).
Para Bernardes, a expressão “ato do
Poder Público”, aliada ao princípio da
subsidiariedade, bem como à ampla garantia de acesso ao controle judicial (art.
5º, inc. XXXV, da Constituição), demonstra que a ADPF terá sempre por alvo uma
decisão judicial, identificada, aqui, como
o ato do Poder Público do qual emana
a lesão a preceito fundamental ou ato
que não tenha sido capaz de afastar essa
lesão praticada por meio de outro com-
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portamento (BERNARDES, 2004, p. 186).
Nesse sentido, podemos dizer que a ADPF autônoma aproxima-se muito da Verfassungsbeschwerde alemã e do recurso
de amparo espanhol, tendo em vista que estes são instrumentos que, na prática, se apresentam como mecanismos de impugnação de decisões judiciais (WAMBIER, 2003, p. 19).
Juliano Bernardes salienta, em seu estudo, que, em matéria
de atos impugnáveis na sede do controle abstrato ou concentrado
de constitucionalidade, a regulamentação da ADPF trouxe várias
inovações ao possibilitar que atos de caráter não normativo se
submetessem ao referido controle (BERNARDES, 2004, p. 186).
Ele alerta que o fato de a ADPF autônoma poder ter por
objeto atos que não atendam aos requisitos de abstração e
generalidade não faz com que ela deixe de integrar o rol de
ações viabilizadoras do controle de constitucionalidade abstrato, seja porque o ato tem um conteúdo concreto ou porque
tem por destinatário pessoas predeterminadas. Isso porque o
caráter abstrato do controle de constitucionalidade nada tem
a ver com o seu objeto, de modo que abstrata deve ser a via
de fiscalização, e não uma característica do ato a ser fiscalizado
(BERNARDES, 2004, p. 186).
Desse modo, a coisa julgada inconstitucional não corresponde apenas a um possível ato que pode ser impugnado
pela via da ADPF, mas ao principal objeto da ADPF autônoma,
na visão de Juliano Bernardes (BERNARDES, 2004, p. 190) ao
ensinar que: [...] não possuindo a ADPF autônoma natureza
recursal, a observância do princípio da subsidiariedade faz
com que se converta o novo instituto processual, de regra, em
instrumento de impugnação de decisões judiciais transitadas
em julgado, à semelhança do que ocorre com a Verfassungsbeschwerde alemã e o amparo espanhol. [...] a inovação reside
em que também questões de natureza não-criminal, quando
implicarem descumprimento de preceito fundamental, ainda
que decididas definitivamente pela jurisdição ordinária e já
ultrapassado o prazo da rescisória, poderão ser revistas pelo
STF, desde que preenchido o requisito da ‘relevância objetiva’
(BERNARDES, 2004, p. 187).
Bernardes, porém, preconiza que a intromissão na esfera da
coisa julgada deve estar baseada em interesse genuinamente
objetivo, que não se confunde com o interesse da pessoa lesada, na medida em que a função principal da ADPF autônoma
não é o afastamento da lesão individual, mas a depuração abstrata do ordenamento jurídico; removendo qualquer inconstitucionalidade (BERNARDES, 2004, p. 189).
O autor salienta que, para cabimento da ADPF autônoma,
são imprescindíveis a comprovação da lesão concreta ao preceito fundamental tido por violado e a presença da “relevância objetiva”, que, por sua vez, significa a necessidade de afastamento
da lesão, tendo em vista a própria depuração do ordenamento
jurídico, e não simplesmente o atendimento de um interesse
individual (BERNARDES, 2004, p. 188).
Com relação à tese da lesão concreta, Bernardes não tece
uma explicação pormenorizada em seu livro, porém, em atendimento a nosso pedido, ele explica, via e-mail, que foi o legislador, e não o constituinte, quem inseriu o problema dos termos
“lesão” e “lesividade” em sede de ADPF. Segundo Bernardes,
estas expressões constam dos arts. 1°, caput, 4°, § 1° e 5°, §
1° da Lei n. 9882/99, além de fazerem parte do art. 2°, inc. II
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da mesma lei, que, por sua vez, foi vetado pelo Presidente da
República (BERNARDES, 2007, Anexo I, p. 97).
Juliano Bernardes ensina que há duas diferentes teses acerca
do significado dos termos “lesão” e “lesividade”. Para a tese da lesão abstrata, a “lesão” de que trata a Lei n. 9882/99 se refere, em
tese, à de algum preceito fundamental da Constituição, de modo
que o legislador teria considerado a lesão em um aspecto abstrato
ou objetivo, sem preocupar-se com casos concretos.
Bernardes explica que esta tese é defendida por Gilmar Ferreira Mendes, para quem a lesão a preceito fundamental ocorre
num sentido dissociado do plano concreto, e o risco dela aparecerá, no plano abstrato das relações jurídicas, a partir da simples
possibilidade de incongruências hermenêuticas e confusões
jurisprudenciais decorrentes dos pronunciamentos de múltiplos
órgãos. Para a tese da lesão abstrata, a mera ameaça abstrata
ao princípio constitucional da segurança jurídica, em virtude do
risco da multiplicação de ações, já configura autêntica lesão a
preceito fundamental (BERNARDES, 2007, Anexo I, p. 97).
Já para a tese da lesão concreta, defendida por Bernardes,
a “lesão” – e a “lesividade” – de que trata a Lei n. 9.882/99 é
do tipo concreta, ou seja, manifesta-se pelo descumprimento
de um preceito fundamental no plano das relações concretas, e
não num plano abstrato, de tal modo que a lesão é entendida
como a vulneração concreta a direito subjetivo reconhecido a
alguém num preceito fundamental da Constituição (BERNARDES, 2007, Anexo I, p. 98). Segundo o autor, as justificativas
desta tese são as seguintes: Onde o constituinte usou as expressões “lesão”, “ato lesivo” ou “atividades lesivas” (incisos
XXXV e LXXIII do art. 5º; o § 2º do art. 72; e o § 3º do art. 225),
quis sempre aludir a violações concretas do direito tutelado, e
não a uma infração objetiva das normas constitucionais. Logo,
numa exegese da Lei 9.882/99 à luz da Constituição, os termos
“lesão” e “lesividade” também estão relacionados a alguma
violação concreta a preceito fundamental; o projeto em que se
converteu a Lei 9.882/99 referia-se mesmo a lesões concretas,
pois tinha o intuito original de identificar efetivo interesse de
agir por parte daquelas pessoas cuja legitimidade ativa era
reconhecida no inciso II do art. 2º (“qualquer pessoa lesada
ou ameaçada por ato do Poder Público”). A proposta parlamentar afeiçoava-se, nitidamente, ao regime das queixas constitucionais alemã e espanhola, instrumentos processuais que
podem ser ajuizados por qualquer um, desde que patenteada
a ocorrência de lesões concretas que alcancem determinado
grau de repercussão social a justificar a intervenção do Tribunal Constitucional; somente a exigência de uma lesão concreta
justifica a eleição, como requisito da petição inicial, da “prova
da violação” do preceito fundamental (inciso III do art. 3º da
Lei 9.882/99) (BERNARDES, 2007, Anexo I, p. 97).
Bernardes também salienta que a adoção da tese da lesão
concreta faz com que o regime da ADPF se aproxime mais
do originalmente concebido pelo legislador, além de valorizar
o controle difuso e a sociedade aberta dos intérpretes da Lei
Maior, já que não há como ingressar com ADPF sem que a
questão constitucional tenha sido antes debatida em processos
subjetivos (BERNARDES, 2007, Anexo I, p. 99).
Desse modo, a “lesão” a que se refere a Lei n. 9882/99 é
de natureza concreta, e não abstrata; porém, aqui, é importante
salientarmos que, apesar de a lesão que motiva o ajuizamento
da ADPF autônoma dever ser concreta,
o objetivo principal da ADPF, como ação
integrante do controle concentrado de
constitucionalidade, é a depuração objetiva do ordenamento jurídico.
Para Fausto de França, a ADPF
apresenta-se como meio adequado para
desconstituir a coisa julgada viciada pela
nódoa da inconstitucionalidade, devendo ser utilizada quando não for mais
possível valer-se, no caso concreto, dos
meios expressos na lei; o que ocorrerá
depois de ultrapassado o prazo de dois
anos para ajuizamento da ação rescisória
e quando já tiver sido executada a sentença viciada, porque aí, neste último
caso, não serão mais cabíveis a impugnação ao cumprimento de sentença nem
os incidentes processuais (FRANÇA JÚNIOR, 2006, p. 23).
A ADPF corresponde ao meio mais
adequado para impugnar a coisa julgada
violadora de preceito fundamental; uma
vez que deve ser proposta diretamente
perante o STF, o que dá celeridade ao
processo e simplifica a tutela dos direitos
individuais e a depuração objetiva do ordenamento jurídico.
Ora, um dos grandes problemas do
Estado como um todo é a burocratização, que também se encontra arraigada
no Poder Judiciário, impedindo a obtenção de uma decisão que seja, ao mesmo tempo, justa e célere, de modo que,
ao propormos o manejo da ADPF para
desconstituir a coisa julgada violadora
de preceito fundamental, estamos, em
última análise, vislumbrando um recurso
para atenuar a burocratização e possibilitar o alcance dessa decisão justa e célere.
Poder-se-ia alegar que, em termos
de celeridade e desburocratização, o
meio que se mostraria mais eficaz para
desconstituir a coisa julgada inconstitucional seria a simples repetição da
demanda, conforme defende Cândido
Rangel (2006). Realmente esta seria,
inicialmente, a solução mais célere, porém, no nosso entender, a declaração
prévia da inconstitucionalidade da decisão mostra-se, caso não necessária,
ao menos útil, para fins de garantia da
segurança jurídica e do próprio direito
da parte, na medida em que assegura
que a desconsideração da coisa julgada
só ocorra nos casos em que realmente
esteja configurada violação à Constituição e obsta que o andamento do novo
processo seja prejudicado em virtude de
divergências de entendimento entre as
instâncias recursais.
O art. 1º da Lei n. 9882/99 reza que
a argüição prevista no parágrafo 1º do
artigo 102 da Constituição Federal será
proposta perante o STF, e terá por objeto
evitar ou reparar lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público. O ato do Poder Público a que alude
este artigo não é apenas o normativo;
de modo que, como salienta Fausto de
França, a ADPF não possui como objeto
apenas o ato normativo, mas qualquer
ato do Poder Público, ou seja, os atos
emanados dos três poderes (Legislativo,
Executivo e Judiciário) (FRANÇA JÚNIOR,
2006, p. 28). Restringir o uso da ADPF ao
controle de atos normativos seria esvaziar o seu conteúdo, transformando-a em
uma ADIn especializada para casos de
violação de preceito fundamental, o que,
seguramente, não foi o objetivo da constituinte (FRANÇA JÚNIOR, 2006, p. 29).
Nesse sentido, Juliano Bernardes
salienta que, quando se dirige a ADPF
contra atos não normativos, ao contrário
do que poderia ocorrer nas ações diretas,
é pequeno o risco de haver conflito com
a jurisdição comum, na medida em que
o ajuizamento da ADPF está condicionado ao esgotamento dos meios judiciais
eficazes (BERNARDES, 2004, p. 190). André Ramos Tavares, no entanto, entende
que a ADPF não é cabível para impugnar
sentenças inconstitucionais, e ensina que
a tendência do STF, verificada nas ADIns
842 e 769, é a de não admitir o cabimento da ADPF para impugnação de atos
estatais de efeitos concretos (TAVARES,
2001, p. 120).
Em sentido contrário, Fausto de
França diz que é perfeitamente possível
a ADPF em face de atos concretos, e não
apenas de normativos, restando apenas
saber se o ato jurídico é um ato do Poder Público (FRANÇA JÚNIOR, 2006, p.
30). A expressão “Poder Público” é utilizada para designar o Estado brasileiro,
de modo a englobar, por conseguinte,
os três poderes que o compõe, quais sejam, o Executivo, Legislativo e Judiciário.
Tendo em vista esta premissa, podemos
dizer que, como ato do Poder Judiciário
é ato do Poder Público, ele estaria sujeito,
portanto, ao controle por meio da ADPF.
É evidente, porém, que a ADPF não
será cabível quando o ato judicial (no
caso, a sentença) puder ser impugnado
por aqueles meios processuais expressos
na legislação, como a via recursal, a impugnação ao cumprimento de sentença
e a ação rescisória (estes dois últimos só
sendo cabíveis após o trânsito em julgado). (FRANÇA JÚNIOR, 2006). No entanto, quanto à coisa julgada inconstitucional que não possa mais ser impugnada
via ação rescisória ou impugnação ao
cumprimento de sentença, vislumbra-se
perfeitamente o seu controle por meio
da ADPF, até porque contra ela não cabe
mandado de segurança, conforme entendimento pacífico preconizado na Súmula 268 do STF (SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL).
Ainda que se adote o posicionamento de Humberto Theodoro e Juliana
Cordeiro (NASCIMENTO, 2003, p. 68),
no sentido de que a ação rescisória pode
ser proposta além do prazo de dois anos,
pensamos que, após este prazo, como
deixa de existir a indicação expressa na
lei do meio cabível para impugnar a
sentença inconstitucional, o instrumento
mais eficaz e que deverá ser utilizado é a
ADPF. Além do que, a ADPF não será cabível em todo e qualquer caso de inconstitucionalidade, mas só quando houver
lesão ou ameaça de lesão concreta a preceito fundamental (NASCIMENTO, 2003,
p. 68), a respeito do qual já explanamos
no segundo capítulo desta pesquisa.
Nesse ponto, é importante lembrarmos que a ADPF integra o controle concentrado de constitucionalidade. Apesar
de ser cabível contra atos não normativos, a ADPF tem por finalidade precípua
a depuração objetiva do ordenamento
jurídico; e o reconhecimento da lesão a
preceito fundamental deve estar presente na parte dispositiva do acórdão, de
modo a permitir que surta efeitos erga
omnes e vinculantes. Por isso que o art.
10, caput, da Lei n. 9.882/99 determina
que, julgada a arguição, deve-se proceder à comunicação das autoridades ou
órgãos responsáveis pela prática dos atos
questionados, fixando-se as condições e
o modo de interpretação e aplicação do
preceito fundamental.
Um dos obstáculos que podem ser
arguidos, com o intuito de impedir o
manejo da ADPF nos casos de coisa
julgada violadora de preceito fundamental, é o princípio da subsidiariedade da
ADPF, previsto no § 1º do art. 4º da Lei
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n. 9.882/99, que preconiza que a ADPF não será cabível quando houver qualquer outro meio eficaz para sanar a lesividade.
Fausto de França salienta que a referida norma tem por objetivo
obstar a miscigenação entre o processo objetivo representado
pela ADPF e uma lide em discussão na via difusa, evitando-se
o uso da ADPF como apenas um recurso a mais (FRANÇA JÚNIOR, 2006).
O CPC determina que contra sentença transitada em julgado que viola literal disposição de lei é cabível a ação rescisória,
porém, somente no prazo decadencial de dois anos (art. 495),
findo o qual não se pode mais valer-se da referida via processual. Esse é o entendimento da doutrina majoritária, apesar de
Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria defenderem o seu cabimento mesmo depois de decorrido o prazo
decadencial de dois anos (THEODORO JÚNIOR, 2002, p. 3).
Mas, partindo-se do entendimento de que a ação rescisória só é cabível no prazo de dois anos, findo este, as portas
estariam abertas para a ADPF, restando saber, contudo, se o
cabimento da chamada “ação declaratória de nulidade absoluta” teria ou não o condão de obstar a ADPF, à luz do princípio
da subsidiariedade.
Para Fausto de França, parece evidente que contra a sentença inconstitucional transitada em julgado caberá a ação declaratória de nulidade absoluta, até porque ela é sempre cabível
em virtude do princípio constitucional da inafastabilidade do
controle jurisdicional (Constituição, art. 5º, inc. XXXV). (FRANÇA
JÚNIOR, 2006, p. 32). Porém, o cabimento desta ação não pode
obstar a via da ADPF para corrigir violação a preceito fundamental, porque senão estar-se-ia dando ao princípio da subsidiariedade um conteúdo que conduziria à conclusão de que a ADPF
nunca seria cabível (FRANÇA JÚNIOR, 2006, p. 32).
Além disso, o princípio da subsidiariedade fala em meio
que seja eficaz para corrigir a lesividade a preceito fundamental,
e nenhum instrumento nos parece mais eficaz que a ADPF, pois
esta, ao ser ajuizada diretamente perante o STF, tem o condão
de expurgar, com maior eficácia, rapidez, credibilidade e alcance, a inconstitucionalidade do nosso ordenamento jurídico,
estando em consonância com os princípios da celeridade e do
acesso à Justiça. Ora, garantir aos cidadãos o acesso à Justiça
não significa apenas possibilitar-lhes uma tutela jurisdicional,
mas principalmente garantir-lhes uma tutela justa e segura a fim
de que seu direito seja preservado, não se podendo admitir, em
hipótese nenhuma, a permanência de uma inconstitucionalidade no mundo jurídico.
É notório o fato de que muitos processos demoram anos
para ser julgados em virtude da burocracia, da carência de
recursos humanos e, principalmente, das várias instâncias recursais que compõem o Poder Judiciário, de modo que não
seria justo impor à parte prejudicada a espera de mais anos
e anos na Justiça, em virtude de um erro advindo do próprio
Poder Judiciário.
Mas, se o que se busca é a celeridade, então por que a parte
simplesmente não ajuíza outra ação idêntica à anterior, desconsiderando a coisa julgada? Essa solução seria cabível, porém não
condiz com a realidade em que estamos vivendo, pois os tribunais ainda se encontram muito vinculados à ideia de que a coisa
julgada, ainda que eivada de inconstitucionalidade, é imutável, só
podendo ser impugnada pelas vias positivadas na lei. Até porque
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se faz necessária, para efeitos de segurança jurídica, uma decisão
que ao menos declare a inconstitucionalidade da sentença e a
expurgue do ordenamento jurídico.
Além do mais, o ajuizamento da ADPF impede que novas
inconstitucionalidades da mesma natureza da constante na decisão desconstituída sejam praticadas, pois a decisão proferida
pelo STF, em sede de ADPF, terá eficácia contra todos e efeito
vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público
(Lei n. 9.882, de 04.12.1999).
Contudo, retornando à questão do princípio da subsidiariedade, vê-se que, para Juliano Bernardes, o termo “eficaz” diz
respeito aos meios judiciais disponíveis à reparação da lesão
concreta que, por sua vez, deve ser comprovada no ajuizamento da ADPF, sendo que deve ser entendido como meio eficaz
aquele que possa evitar ou remover a lesão concreta (NASCIMENTO, 2003, p. 89).
Bernardes ensina que o princípio do subsidiariedade é requisito necessário para a preservação da natureza excepcionalíssima da ADPF e ressalta que este princípio, em vez de obstar
o uso do ADPF, a caracteriza como meio próprio para a impugnação de decisões judiciais, na medida em que estas, diferentemente do que ocorre com outros atos estatais, cuja constitucionalidade é controlada de maneira mediata, com a alegação de
que o ato judicial falhou, não contam com meio próprio para
sua impugnação, depois de decorrido o prazo da ação rescisória
e não sendo caso de impugnação ao cumprimento de sentença
(NASCIMENTO, 2003, p. 190).
Desse modo, como a ADPF aparece como o meio mais
eficaz para desconstituir a coisa julgada violadora de preceito
fundamental, tem-se que a existência de outros meios hábeis
a essa função não têm o condão de impedir sua utilização. Porém, cabe ressaltar que os demais meios, apesar de não serem
os mais eficazes, também têm o poder de desconstituir a coisa
julgada inconstitucional, podendo a parte valer-se de qualquer
um deles de acordo com a sua conveniência. Como foi vetado
o artigo que estendia o rol de legitimados para a propositura da
ADPF, caberá à parte lesada que quiser se valer desta ação recorrer ao Procurador-Geral da República, submetendo-se, contudo, a um juízo de valor e importância emitido por este; o que
é uma pena, já que esse fato pode levar a parte a utilizar meio
que esteja ao seu alcance direto, mas pouco eficaz em termos
de celeridade e credibilidade.
Por fim, resta-nos uma última questão a enfrentar: a da
constitucionalidade do uso da ADPF como meio para impugnar
a coisa julgada violadora de preceito fundamental na medida
em que se poderia alegar que essa utilização da ADPF acarretaria um alargamento da competência do STF, o que só pode ser
feito pelo próprio texto constitucional e uma ofensa à garantia
da coisa julgada.
No entender de Juliano Bernardes, e também no nosso,
não há qualquer inconstitucionalidade na utilização da ADPF
autônoma para impugnar decisões transitadas em julgado,
se entendermos que o uso da ADPF para tal fim acarreta um
alargamento da competência do STF. Também deveremos compreender que foi a própria Constituição que determinou esse
alargamento, quando conferiu ao STF o poder de julgá-la, e à
lei o poder de regulamentá-la. Também não é cabível a alegação de ofensa ao art. 5º, inc. XXXVI, da Lei Maior, pois este diz
respeito apenas ao direito intertemporal,
o que não impede a criação de novos
instrumentos voltados à desconstituição
da coisa julgada (NASCIMENTO, 2003,
p. 187).
Para fechar a nossa discussão, ainda
nos resta uma questão: a discussão acerca da possibilidade de o STF, em sede
de ADPF ajuizada em face de decisão inconstitucional, declarar não só a inconstitucionalidade desta, mas também decidir, desde logo, a causa originária, em
virtude da qual as partes estão litigando.
A este respeito e sem nos aprofundarmos no assunto, já que sua discussão
não corresponde ao foco deste trabalho,
podemos dizer, preliminarmente, que o
STF, em sede de ADPF, pode não só declarar a inconstitucionalidade da decisão
inconstitucional, mas também julgar a
causa decidida pela sentença desconstituída. Mas isto só é possível, ressaltamos,
quando se tratar de ADPF autônoma, já
que esta pressupõe o esgotamento das
instâncias recursais anteriores, e quando
a questão constitucional for o foco do litígio, ou seja, quando a causa girar em
torno do preceito constitucional como
sua questão principal.
5 CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto, entendemos que a relativização da coisa julgada inconstitucional se mostra não só
possível, mas também necessária para
se garantir a segurança da realização da
justiça, pois o que dá segurança ao sistema jurídico pátrio e a todos os cidadãos
que a ele se submetem não é a certeza
de que, após o trânsito em julgado, a
decisão proferida em determinada ação
será dotada de imutabilidade, mas a certeza de que, ainda que haja uma decisão
transitada em julgado, não será admitida
pelo Poder Judiciário qualquer espécie
de violação aos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição, de
modo a garantir, em última análise, os
ditames da justiça e da dignidade da pessoa humana.
Adotando-se esse pressuposto, o
instrumento que se mostra como o mais
eficaz para esse intento é a arguição de
descumprimento de preceito fundamental, nos limites em que esta se apresenta
como a medida mais condizente com o
princípio da celeridade e da segurança
jurídica, garantindo a eficácia na des-
constituição de sentenças violadoras de
preceitos fundamentais consagrados
constitucionalmente e, em última análise, a supremacia da Constituição Federal.
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Artigo recebido em 11/5/2009.
Artigo aprovado em 8/1/2010.
Débora Soares Guimarães é advogada
e professora universitária, em Brasília-DF.
Revista CEJ, Brasília, Ano XIV, n. 49, p. 27-41, abr./jun. 2010
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