A lei da anistia, o supremo tribunal federal e o tempo: notas a

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A lei da anistia, o supremo tribunal federal e o tempo: notas a respeito da ADPF n. 153.
A lei da anistia, o supremo tribunal federal e o tempo:
notas a respeito da adpf n. 153.
Rodrigo Valin de Oliveira
RESUMO
O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADPF n. 153, estabelece duas linhas argumentativas.
Em primeiro lugar, a Lei da Anistia deve ser interpretada conforme o contexto em que foi promulgada.
Em segundo lugar, a regra da anistia integra a Emenda Constitucional n. 26, a qual materializa o poder
constituinte originário. Ambas ideias dependem de uma certa compreensão do tempo no Direito.
PALAVRAS-CHAVE
Anistia; Tempo; Poder Constituinte e Direitos Humanos.
ABSTRACT
Supremo Tribunal Federal, in the trial of ADPF No 153, establishes two argumentative lines. First,
Amnesty Law should be interpreted as the context in which it was enacted. Secondly, the rule of the
amnesty is part of Constitutional Amendment No 26, which embodies the Original Constituent Power.
Both ideas depend on a certain understanding of time in Law.
KEY WORDS
Amnesty. Time. Constituent Power. Human rights.
1 INTRODUÇÃO
No labor de interpretação das normas jurídicas, o tempo revela-se um dado crucial. Deveríamos considerar a época em que foi produzida a norma ou o momento em que a mesma deve
ser aplicada? É possível ou desejável que certa interpretação, considerada a mais adequada,
adquira foros de perpetuidade? Tais questões são bem mais do que especulação teórica: as
duas principais linhas argumentativas dos votos vencedores (que julgaram improcedente
a arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 153) têm em comum relativa
resistência ao devir histórico.
A lei ordinária que anistiou determinados delitos, cometidos entre 02 de setembro de
1961 e 15 de agosto de 1979, careceria de generalidade; sendo um diploma de meros efeitos
concretos, entendeu a corrente majoritária do Supremo Tribunal Federal, haveria de ser interpretado consoante os fatos históricos da época em que foi promulgado.
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E mais: o fato de a norma de anistia ter sido reproduzida pela Emenda Constitucional n.
26 (promulgada em 1985 para convocar a Assembleia Nacional Constituinte) conferiria ao
mencionado dispositivo hierarquia constitucional. Desconsidera-se, veremos, a discussão a
respeito da recepção da Lei 6683/79, sob o argumento de que a referida Emenda Constitucional importou exercício do poder constituinte originário.
Em um instigante conto da literatura colombiana 1, o célebre Tomás Carrasquilla
(1858-1940) concebe a fantástica história de Peralta, um homem cuja virtude maior
era a caridade. Tão desapegado à fortuna e ao próprio conforto era Peralta que vivia à beira da miséria. Em certa ocasião, recebe a visita do próprio Jesus Nazareno,
acompanhado de São Pedro. Nosso Senhor concede cinco desejos a Peralta. O mais
curioso, provavelmente, relaciona-se ao tempo: Peralta aprisionou a morte no alto de
uma árvore, de modo que a mesma estivesse impedida de visitar quem quer que seja.
Caridosamente, evitava-se a extinção dos seres humanos, fato que não restou livre de
consequências. Trata-se, em verdade, de uma fábula sobre o nobre (e questionável)
desejo de paralisar o tempo.
O presente trabalho, de forma modesta e reflexiva, analisa os dilemas vividos por uma
instituição em um julgamento crucial. O Supremo Tribunal Federal, em face da legitimidade que pretende preservar, aspira à continuidade dos critérios de gestão de interesses
coletivos. É necessária, como bem assinalou GILES, “a dissociação da autoridade da
pessoa do indivíduo que a exerce”2. Efetivamente, nas instituições, as ideias que inspiram
o exercício do poder mostram-se superiores aos indivíduos que, eventualmente, ocupam
posições de mando. As ideias sobrevivem aos indivíduos.
A mudança, contudo, impõe-se também às instituições. Delineia-se, assim, o dilema
que muitas delas experimentam: preservar certo número de dogmas ou sacrificá-los em
prol de um futuro aparentemente melhor. O Poder Judiciário brasileiro, se comparado
aos Poderes Executivo e Legislativo, desfruta de inegável credibilidade. De um lado, a
crise da democracia representativa o afetou de forma menos intensa. De outro lado, a
frustração produzida por demandas sociais não contempladas recai no Executivo. Cumpre
arriscar esta legitimidade no terreno escorregadio da mutação histórica?
En la diestra de Dios Padre.
GILES, Thomas Ranson. Estado, poder, ideologia. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1985. P. 5.
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2 A ADPF 153
Proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a arguição de descumprimento de preceito fundamental n. 153 questionava o § 1º do Art. 1º da Lei n. 6.683/79:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido
entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes
políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus
direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e
Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos
Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e
Complementares.
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de
qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por
motivação política. [Grifei].
Presumivelmente, pretendia o proponente da ação demonstrar não ter existido anistia em
relação a delitos cometidos por agentes públicos, fora do âmbito da conexão, definido pela
dogmática tradicional do Direito Penal, no período assinalado pela Lei 6.683. Assim, a título
exemplificativo, homicídios, desaparecimentos forçados, abusos de autoridade, lesões corporais, roubos, furtos, estupros e atentados violentos ao pudor, praticados contra opositores
do regime militar, seriam considerados puníveis.
Admitida a recepção da Lei n. 6.683/79, sustentavam os proponentes da mencionada ADPF,
caberia interpretar o referido diploma à luz da Constituição Federal de 1988. A regra atacada,
entendeu-se, violaria diversos preceitos fundamentais da Constituição Cidadã.
Se, efetivamente, a anistia aplica-se a crimes comuns, engendrados pelos agentes do regime militar encarregados da repressão, configurar-se-ia violação ao preceito da isonomia
em matéria de segurança. O iluminismo, nesse sentido, propugnaria pela igual punição das
pessoas, reputando-se discriminatória a consideração de status ou condição no que tange à
conformação da sanção.
A aplicação ampla e irrestrita do dispositivo questionado violaria, ainda, o preceito fundamental de não ocultar a verdade, cuja base estaria no inciso XXXIII do art. 5º da Constituição
Federal, o qual estipula que “todos têm direito de receber dos órgãos públicos informações
de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral”. Os governantes não estariam
autorizados a ocultar a verdade do titular da soberania, especialmente no que se refere a
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crimes já cometidos. Na vigência de um Estado de Direito, mostrar-se-ia insustentável a tese
de que os responsáveis por atos criminosos contra opositores do regime autoritário teriam
atuado na preservação da segurança da sociedade e do Estado. A concessão de anistia a
pessoas indeterminadas, afirmam os autores da ADPF n. 153, integra contexto de ocultação
da verdade3.
A Lei 6.683/79, ademais, na compreensão dos autores da ADPF n. 153, ofenderia os princípios democrático e republicano, constitutivos da organização política brasileira. Aprovada
por um Congresso Nacional carecedor de legitimidade democrática, a dita lei teria promovido
a auto-anistia de governantes e de seus agentes.
O alegado acordo de transição para a democracia, materializado na Lei 6.683/79, embasaria
a anistia em moldes amplos, conforme os simpatizantes de sua irrestrita aplicação. Esse pacto,
sustentam os autores da ADPF, não contou com a participação das vítimas que sobreviveram
ou dos familiares de mortos e desaparecidos. Se admitíssemos, para fins de argumentação,
que realmente este acordo existiu, teria instituído um Estado em circunstâncias de grave
desrespeito à dignidade da pessoa humana. No quadro de um sistema universal de direitos
humanos, seria impensável dispor da dignidade de pessoas e de povos, fazendo desses bens
a moeda de acordos políticos.
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, pois, na inicial da ADPF n. 153,
requereu interpretação conforme à Constituição da Lei n. 6.683/79. A anistia, ministrada
pelo mencionado diploma, não se estenderia aos crimes comuns praticados pelos agentes
da repressão.
3 A DECISÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
No mérito, a ADPF foi julgada improcedente pela maioria dos ministros de nosso Supremo
Tribunal Federal, com dois votos vencidos4 5. Os argumentos do relator, Ministro Eros Grau,
O direito à verdade, no pensar de Dimoulis, “não se encontra proclamado no ordenamento brasileiro ou em convenções internacionais a
ele incorporadas”. Haveria, indica o autor, fragilidade na fundamentação jurídica do referido direito, que certos doutrinadores sustentariam
a partir de interpretações extensivas de princípios de baixa densidade normativa. DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Antonio; SWENSSON JR.,
Lauro Joppert. Justiça de transição no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2010. P. 102-3.
4
O Ministro Lewandowki considerou não estarem os agentes do Estado automaticamente abrangidos pelo benefício da anistia, cabendo ao
intérprete analisar caso a caso os fatos, lançando mão dos critérios da preponderância e da atrocidade dos meios, com o fito de caracterizar
o enquadramento de crimes comuns, excluídos da órbita dos delitos políticos ou delitos conexos.
5
O Ministro Ayres Britto pretendeu excluir, do âmbito de incidência da Lei de Anistia, os crimes mencionados no artigo 5º, inciso XLIII, da
Constituição Federal de 1.988.
3
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pela improcedência da ADPF, serão decisivos.
Conforme o relator6, os proponentes da ADPF ignorariam o significado da Lei 6.683/79,
momento mais importante da luta pela redemocratização e autêntica batalha pela anistia.
Estariam à procura dos sujeitos da História, fato que conduz à incompreensão da mesma.
Padeceriam, por conseguinte, de uma visão marcadamente intimista no que tange ao desenrolar dos fatos históricos. Tal perspectiva desprezaria os limites materiais da realidade. Os
homens fazem a história sob circunstâncias pré-definidas, e não sob circunstância de sua
livre eleição.
Os textos normativos, afiança o relator, são obscuros até o momento de sua interpretação.
Texto normativo e norma jurídica constituem, a propósito, realidades diferentes. O fenômeno
jurídico apresenta uma dimensão textual e uma dimensão normativa. A norma é produzida
pelo operador jurídico, que soma textos e realidade. Neste quadro, a interpretação do direito
possui caráter constitutivo, deslocando-se do universal ao particular.
O significado dos textos depende, em síntese, do dinamismo da vida, sendo impossível
ignorarmos, aduz Grau, o processo contínuo e inesgotável de alteração da realidade. Tal
asserção, porém, só seria aplicável às leis dotadas de generalidade e abstração (leis em
sentido material); as denominadas leis- medida, ao disciplinarem diretamente interesses,
revestem-se de inegável concretude, assumindo a feição de um ato administrativo especial.
As leis- medida deverão, assevera Grau, ser interpretadas segundo o momento histórico em
que foram editadas. Caberá ao Poder Legislativo, sustenta o relator, se for o caso, revisar a
Lei de Anistia.
A Emenda Constitucional n. 26, de 27 de novembro de 1985, assumiu, consoante o voto
do relator, a natureza de poder constituinte originário, rompendo com a ordem anterior e
inaugurando nova ordem jurídica. O preceito de anistia reproduzido no art. 4º da emenda,
assim, integraria a nova ordem jurídica, consubstanciando verdadeiro dispositivo constitucional, cuja hierarquia seria a mesma do texto da Constituição de 1.988. Constitucionalizada a anistia dos crimes conexos aos crimes políticos, qualquer debate sobre recepção
perderia o sentido.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 153/DF. Arguente: Conselho Federal da
Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. Arguidos: Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Ministro Eros Grau. Brasília, 6
de agosto de 2010. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=612960>
6
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4 CONCLUSÃO
As constituições, se elaboradas para governar as gerações futuras, têm visto seu intento
frustrado7. Pretender fixar, de uma vez e para sempre, determinada interpretação constitucional produz rupturas graves do ponto de vista da ordem democrática. A experiência histórica
portuguesa, sobretudo, demonstra que os supostos valores fundamentais de uma ordem
constitucional, inseridos na cláusula pétrea, podem (e devem) sofrer revisão. Com efeito, os
limites materiais ao poder de reforma da constituição provocam, não raro, as rupturas
que a previsão do poder de emenda ou reforma da Constituição almejou evitar. As teorias
relativas aos distintos processos de mutação constitucional demonstram, ao fim e ao cabo,
que a construção do ordenamento jurídico é um processo contínuo e inesgotável8. Paralisar a
interpretação da Constituição, isolando-a de novos contextos históricos, consubstancia uma
visão hegeliana e determinista da História.
A tese de que a regra de anistia, proclamada na Emenda Constitucional n. 26, integra,
hodiernamente, nossa ordem constitucional merece sérios reparos. Vivemos, como a maior
parte das democracias de nosso continente, um processo acentuado de constitucionalização
do direito internacional, especialmente no que respeita à proteção dos direitos humanos.
O caráter expansivo dos direitos humanos, assim, demonstra-se pela progressiva universalização dos mesmos e pela transferência de suas garantias e categorias conceituais de um
sistema jurídico a outro9. Em nosso atual ordenamento constitucional, inexiste fundamento
para permanência da regra de anistia, presente na Emenda Constitucional n. 26, seja ou não
a mesma a expressão do poder constituinte originário. Entre poder constituinte derivado e
poder constituinte originário, na lição de CONTINI, a diferença é puramente temporal10. A
possibilidade de punição dos delitos comuns, praticados sob a égide de regimes autocráticos,
reforça o sistema de proteção dos direitos humanos.
A interpretação da denominada lei-medida conforme o contexto histórico de sua elabo-
Na defesa desse papel, confira-se: SAGÜÉS, Néstor Pedro. La interpretación judicial de la Constitución. 2 ed. Buenos Aires: LexisNexis,
2006. P. 144.
8
“A mutação constitucional em razão de uma nova percepção do Direito ocorrerá quando se alterarem os valores de determinada sociedade.
A idéia do bem, do justo, do ético varia com o tempo.” Cf. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo:
Saraiva, 2010. P. 137.
9
Cf. SANTAGATI, Claudio Jesús. Manual de derechos humanos. Buenos Aires: Ediciones Juridicas, 2006. P. 61.
10
Cf. CONTINI, Giuseppe. La revisione costituzionale in Italia. Milano: Giuffrè, 1971. P. 279-327.
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ração indica, igualmente, o intento de sacralização de um período histórico conturbado. No
limite, as leis dotadas de tais características seriam aquinhoadas com uma rigidez superior
à encontrada em outras espécies normativas.
O caridoso Peralta, ao paralisar a morte, esvaziou o céu e o inferno. Os homens, sem temer
a morte, deixaram de temer as consequências dos próprios atos. Será assim tão proveitoso
ao Direito paralisar a morte de alguns institutos?
REFERÊNCIAS
BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
n. 153/DF. Arguente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB. Arguidos:
Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Ministro Eros Grau. Brasília,
6 de agosto de 2010. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.
jsp?docTP=AC&docID=612960>
CONTINI, Giuseppe. La revisione costituzionale in Italia. Milano: Giuffrè, 1971.
GILES, Thomas Ranson. Estado, poder, ideologia. São Paulo: Editora Pedagógica e
Universitária, 1985.
DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Antonio; SWENSSON JR., Lauro Joppert.
Justiça de transição no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2010.
SAGÜÉS, Néstor Pedro. La interpretación judicial de la Constitución. 2 ed. Buenos Aires:
LexisNexis, 2006.
SANTAGATI, Claudio Jesús. Manual de derechos humanos. Buenos Aires: Ediciones Juridicas,
2006.
RODRIGO VALIN DE OLIVEIRA
Submissão: 26/09/2011
Aprovação: 15/10/2011
OLIVEIRA, Rodrigo Valin de. A lei da anistia, o supremo tribunal federal e o tempo: notas
a respeito da adpf n. 153. Revista da Faculdade de Direito UniRitter, Porto Alegre, n. 12, p.
73-79, 2011.
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