REFLEXÕES CONTEMPORÂNEAS SOBRE A COISA JULGADA (MAIO DE 2007). Ministro do STJ. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte. Professor de Direito Público (Administrativo, Tributário e Processual Civil). Professor UFRN (aposentado). Ex-professor da Universidade Católica de Pernambuco. Sócio Honorário da Academia Brasileira de Direito Tributário. Sócio Benemérito do Instituto Nacional de Direito Público. Conselheiro Consultivo do Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem. Integrante do Grupo Brasileiro da Sociedade Internacional do Direito Penal Militar e Direito Humanitário. Sócio Honorário do Instituto de Estudos Jurídicos. Professor convidado do Curso de Especialização em Direito Processual Civil do Centro de Estudos Universitários de Brasília – CEUB. Especialista em Direito Civil. 1. INTRODUÇÃO. A doutrina brasileira continua a discutir, de modo intenso, os fenômenos que, na época contemporânea (maio de 2007), cercam a coisa julgada, com destaque para quando considerada inconstitucional e necessita ser flexibilizada, revista ou relativizada. Os pronunciamentos a respeito têm vinculação com os aspectos seguintes: a) a relativização da coisa julgada tendo em vista a imposição dos princípios constitucionais da Justiça, da moralidade e da legalidade; b) coisa julgada inconstitucional; c) não ser absoluto o princípio da intangibilidade da coisa julgada; d) idem o princípio da segurança jurídica; e) inconstitucionalidade originária da coisa julgada e superveniência da sentença; f) ação declaratória de inexistência da coisa julgada; g) sentença contrária à Constituição Federal e embargos à execução; h) decisões incompatíveis com a ordem constitucional. Cláudio Sinoé Ardenghy dos Santos, com absoluta fidelidade ao analisar a relativização da coisa julgada, afirma, em capítulo intitulado “Breve histórico da revitalização da coisa julgada no Brasil” in “Coisa Julgada Inconstitucional”, Ed. Fórum, p. 21: 1 “Muito se tem estudado sobre o fenômeno da ‘relativização da coisa julgada’. Vislumbra a doutrina casos especiais em que a perenidade do julgado não serve ao direito, mas para contrariá-lo. Sob vários enfoques, deve ser afastada a autoritas rei iudicatae e revistos os comandos ou declarações extraídas da sentença, mesmo além do prazo decadencial dos 2 anos para ajuizamento da ação rescisória. Com maior destaque nos meios acadêmicos, o ponto de partida para a relativização da coisa julgada começou de acordo com o ramo do direito aplicável e os precedentes como meio de manifestação. O Direito de Família teve seu destaque nas ações de investigação de paternidade, onde o objetivo é de ser apurada a verdade real de quem seja o sedizente filho e o indigitado pai. Pela lógica, versando de um direito protegido pela Constituição, tal exemplo não está sobre o manto do prazo da rescisória – não se relativizam, mas se estabilizam as relações parentais de sangue”. 2 – CONCLUSÕES DA DOUTRINA SOBRE A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA O exame das manifestações doutrinárias sobre a flexibilização da coisa julgada, na atualidade (abril de 2007) podem ser apresentadas por via dos enunciados conclusivos seguintes: a) “... a preocupação dos juristas não é tão nova quanto parece ser em relativizar a coisa julgada, no direito lusitano, Lobão já preconizava, em 1825, que: “A sentença nula não tem força de coisa julgada; (...) a sentença dada contra parte não-citada; (...) cuja nulidade não se pode suprir (...); ...” (Cláudio Sinoé Ardenghy dos Santos, in “Breve histórico da relativização da coisa julgada”, capítulo da obra coletiva “Coisa Julgada Inconstitucional”, Editora Fórum, p. 21); b) Carlos Valder do Nascimento, “Natureza da Coisa Julgada: uma abordagem filosófica”, capítulo da obra coletiva “Coisa Julgada Inconstitucional”, Editora Fórum, p. 61, após consistente fundamentação, conclui: “Da exposição feita ao longo do presente estudo, conclui-se que: a) a natureza da coisa julgada encontra plena ressonância no âmbito filosófico com supedâneo nas categorias gerais propostas por Aristóteles, tendo como ponto de partida as formulações conceituais de substância e acidente. Dela não se pode dizer que seja parte intrínseca da sentença, embora dela possa se afirmar que apenas revele um dado qualitativo e, portanto, acidental; b) a sentença por sua vez decorre da manifestação de uma das três funções do Estado: a jurisdicional. Desse modo, dentre as categorias, corresponde ao que é substancial bastando a si própria. Disso resulta o fato de que seu liame com a coisa julgada constitui tão-somente uma aproximação determinada pela causalidade; c) no plano jurídico os fatos devem dar o tom a qualquer iniciativa que expresse um enunciado conceitual, considerando que é a partir deles que se busca um ponto de partida para a estruturação das controvérsias postas sob a apreciação do Poder Judiciário. Embora isso seja uma constatação inevitável, ter-se como 2 costumeiro tomar-se o aparente pelo real, no momento em que se empresta ao processo, que instrumentaliza as querelas, a condição de ser o ponto central da aplicação do direito e da justiça; d) nessa linha de raciocínio, é equívoco atribuir-se um caráter de essencialidade à coisa julgada no sistema jurídico brasileiro, tanto sob ponto de vista constitucional quanto processual. Essa postura enviesada, além de desconectada da realidade do processo, revela desconhecer seu fundamento maior. Na verdade, disso pode se inferir que a coisa julgada somente pode ser tratada como mero aspecto acidental da sentença, o que vale dizer, sem existência própria e como tal sujeita às interferências de ordem pessoal, política, ideológica e histórica; e) a natureza intrínseca da sentença não radica no processo nem tampouco na res judicata (potência, vir-a-ser), enquanto problema de potencialidade. Logo, não tem o menor sentido procurar na coisa julgada ou mesmo travesti-la no fundamento da substância (ato) do direito/justiça, pois isso significaria igualar coisas distintas como ato e potência (ou essência e acidente). Melhor dizendo: seria o mesmo que afirmar identidade entre o mutável e o imutável.” c) Gilmar Ferreira Mendes, em “Coisa Julgada Inconstitucional: considerações sobre a declaração de nulidade da lei e as mudanças introduzidas pela Lei nº 11.232/2005”, capítulo da obra coletiva “Coisa Julgada Inconstitucional”, Editora Fórum, pgs. 101/103, afirma: “Tendo em vista o princípio da nulidade da lei inconstitucional e levando em conta a separação de planos entre a nulidade da lei e do ato concreto, a Medida Provisória n° 2.180-35, de 24 de agosto de 2001, introduziu regra segundo a qual, para os fins de execução judicial, “considera-se inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou em aplicação ou interpretação tidas por incompatíveis com a Constituição Federal” (art. 741, parágrafo único, do CPC; art. 836, parágrafo único, da CLT). Previu-se, assim, a possibilidade de se argüir a inexigibilidade do título judicial fundado em lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal ou em interpretação tida por incompatível com a Constituição (pelo Supremo Tribunal). Dessa forma, introduziu-se, no direito brasileiro, mecanismo semelhante àquele previsto no § 79 (3) da Lei orgânica da Corte Constitucional alemã. Embora a Ordem dos Advogados do Brasil tenha proposto a ADI n° 2.418 contra o art. 10 da MP n° 2.101 (a MP sofreu diversas reedições), na parte em que acrescentou o referido parágrafo único ao art. 741 do CPC, argumentando violação ao art. 62 da CF, sob alegação de falta de urgência, o tema não foi objeto de decisão pelo Supremo Tribunal Federal. Observe-se que a regulação prevista na Medida Provisória em apreço ganhou tratamento dogmático diferenciado na Lei n° 11.232, de 23 de dezembro de 2005. Referida lei conferiu a seguinte redação ao § 1º do inciso VI do art. 475-L e ao parágrafo único do art. 741 do Código de Processo Civil: Art. 475-L. A impugnação somente poderá versar sobre: [...] II - inexigibilidade do título; [...] § 1°. Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados 3 inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal. [...] Art. 741. Na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre: [...] Parágrafo único - Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal. Em outros termos, ressalvada a hipótese de uma declaração de inconstitucionalidade com limitação de efeitos (art. 27 da Lei n° 9.868/99), a declaração de inconstitucionalidade (com eficácia ex tunc) em relação a sentenças já transitadas em julgado poderá ser invocada, eficazmente, tanto em ação rescisória como nos embargos à execução, movidos pela Fazenda Pública, ou nas impugnações efetivadas por particulares. Vê-se, pois, que, com a adoção do novo modelo normativo, ampliou-se a possibilidade de impugnação dos atos concretos inconstitucionais, especialmente das sentenças ou decisões judiciais fundadas em leis inconstitucionais ou em interpretação tida por incompatível com a Constituição. É que tais sentenças trânsitas em julgado poderão ter a sua inexigibilidade reconhecida em sede de embargos à execução nas execuções contra a Fazenda Pública ou mediante impugnação proposta nas demais formas de execução judicial. Abriu-se, assim, uma nova perspectiva dogmática para o debate em torno da superação da ‘coisa julgada inconstitucional’ no âmbito do próprio processo de execução judicial. Cuida-se de solução que, respeitando a separação de planos da validade da lei e do ato concreto, concebe fórmula adequada de impugnação, no âmbito do procedimento de execução, da sentença judicial proferida com base em lei inconstitucional ou adotada com lastro em interpretação não compatível com a Constituição.” d) Donald Armelin, em “Flexibilização da Coisa Julgada”, capítulo da obra coletiva “Coisa Julgada Inconstitucional”, Ed. Fórum, pgs. 230/232, alinha as conclusões seguintes: “De todo o exposto supra pode-se concluir que os princípios respaldadores da Justiça e Segurança Jurídica harmonizam-se no sistema jurídico, com prevalência deste último valor no instituto da coisa julgada material. Isto decorre não apenas da relevância da segurança jurídica para a higidez do tecido social como, ainda, da adoção pelo sistema processual da suficiência da verdade formal para lastrear as decisões judiciais. Essa prevalência, contudo, embora seja a regra, não deveria subsistir nas hipóteses macroscópicas de afronta da decisão trânsita em julgado aos demais princípios fundamentais e informativos do sistema, notadamente quando expressamente engastados na estrutura da Constituição Federal. Há extrema dificuldade em estabelecer regras objetivas definindo as hipóteses em que o valor Justiça deve suplantar a Segurança Jurídica na área da estabilidade das decisões judiciais. Ainda mister se faz o exame de cada caso específico, o que 4 pode tornar essa aferição caracterizada por subjetivismos, considerando-se que a Justiça enquanto valor e enquanto realidade tem seu conceito variável no tempo e no espaço. Para evitar que isso ocorra há de se detectar o conflito aberto e induvidoso do decidido com os aludidos princípios fundamentais e informativos, reconhecendo que o valor Justiça é aquele para o qual essencialmente tende o direito. São excepcionais essas situações consoante vêm reconhecendo a doutrina e a jurisprudência. Por isso mesmo, não há como generalizá-la. Nesse particular é acertada a assertiva de Araken de Assis no sentido de que “não é preciso infalível oráculo para prever, abertas as exceções e proposta a flexibilização do instituto, a rápida disseminação desse vírus do relativismo para todo o corpo. Nenhum veto, a priori, barrará o vencido de desafiar e afrontar o resultado precedente de qualquer processo invocando a pretensa ofensa desse ou daquele valor da Constituição. Esta possibilidade multiplicará os litígios, nos quais o órgão judiciário de primeiro grau decidirá, preliminarmente, se obedece ou não o pronunciamento transitado em julgado do seu Tribunal e, até, conforme o caso, do Supremo Tribunal Federal. A intervenção legislativa para estabelecer, previamente, as situações em que a eficácia de coisa julgada não opera na desejável e natural extensão e o remédio adequado para retratá-la, talvez nos termos já esboçados alhures, é o único caminho promissor para banir a insegurança do vencedor, a afoiteza ou falta de escrúpulos do vencido e o arbítrio e casuísmo judiciais”. Entretanto, como o conceito de coisa julgada é relegado à lei ordinária, enquanto esta permanecer como está atualmente vigendo, mister se faria, para o equilíbrio dos valores Justiça e Segurança Jurídica, em casos especiais, reduzir a área dessa excepcionalidade, sendo conveniente flexibilizar a sua rigidez, adotando-se uma disciplina menos limitativa da ação rescisória, com a fixação de termos iniciais para o prazo decadencial a ela imposta, variáveis conforme o tipo de vício que inquina a decisão rescindenda. Assim esse prazo iniciar-se-ia a partir do conhecimento da ocorrência do vício ensejador da rescisão ou do fato que a justificaria. Com isso, sem maior prejuízo para a estabilidade das decisões judiciais, mais amplas possibilidades existirão de serem elas trazidas mais rente à Justiça. Ou então, como de há muito sugeriu Humberto Theodoro Jr., mediante a criação, por lei expressa, de hipóteses adequadas para disciplinar essa matéria. Deve-se, ainda, considerar que, em atenção ao valor segurança jurídica, as formas e hipóteses de desconsideração da coisa julgada serão sempre excepcionais, não podendo ser generalizadas através de uma ótica subjetiva a respeito da violação de princípios constitucionais ou do valor justiça. O tema da coisa julgada material, nem sempre bem explorado pela doutrina nacional recebeu agora, sob a angulação da chamada relativização desse fenômeno processual, considerável incremento, com o surgimento de várias obras a seu respeito. Todavia, é fundamental não entender a possibilidade excepcional de relativização da coisa julgada como uma autorização para a sua desconsideração sob pretexto de simples injustiça, não atendendo à sua função indispensável na manutenção da segurança jurídica e de todas as conseqüências sociais dela defluentes, além daquelas inerentes ao plano exclusivamente jurídico. Independentemente dessa modificação direcionada à ampliação da admissibilidade das ações rescisórias, o sistema processual pode oferecer instrumentos hábeis a afastar a injustiça de determinadas decisões judiciais já trânsitas em julgado e insusceptíveis de serem objeto de ação rescisória. A ampliação do âmbito das ações declaratórias, que não se submetem ao prazo decadencial bienal, como a querela nullitatis insanabilis ressuscitada pela doutrina, bem como das hipóteses em que ocorre erro material sempre que 5 manifesta a incompatibilidade do decidido com a realidade dos fatos provados e do reconhecimento da impossibilidade jurídica do pedido, quando este colide frontalmente com normas ou princípios vigentes no sistema ou quando a sua causa de pedir for flagrantemente ilícita, poderá, se conveniente e dosimetricamente aplicada, reduzir, enquanto não se adota uma disciplina expressa da matéria, o número de decisões judiciais em desarmonia com o valor Justiça. Isto porque, como, em recente artigo publicado em periódico desta Capital, Miguel Reale pondera, se não conseguimos definir a Justiça, não podemos viver sem ela. Não obstante, o afã em atingir a Justiça nas decisões judiciais não deve permitir que a vida social seja conturbada pela eternização de litígios que se renovam. As decisões injustas vêm de longe. Basta atentar-se ao julgamento de Cristo. Nem por isso constituíram-se em fatores de desagregação social, que podem resultar de um alto grau de insegurança jurídica afetando aquela social. O que importa não são soluções individuais para o tema das decisões injustas e sim o reflexo destas para a sociedade. Nesta tormentosa questão a respeito da necessidade de se flexibilizar a coisa julgada material, esse deve ser o norte a orientar o Legislador para redisciplinar esse fenômeno jurídico que se constitui em um dos embasamentos mais fortes da segurança jurídica.” e) Ivo Dantas, em “Coisa Julgada Inconsistente: declaração judicial de inexistência”, capítulo da obra coletiva “Coisa Julgada Inconstitucional”, Editora Fórum, pgs. 279/280, conclui: “Diante deste raciocínio, podemos chegar às seguintes conclusões, a partir das quais novos aspectos poderiam ser analisados, desde que aceita a trilogia da Tese, Antítese e Síntese. São elas: a) se a inconstitucionalidade significa inexistência da lei e/ou ato, não se poderá falar em Coisa Julgada, por encontrar-se esta fundamentada em algo que não existe. A expressão Coisa Julgada Inconstitucional, neste caso, a rigor, seria utilizada mesmo reconhecendo-se a contradição intrínseca que representa. Teria, possivelmente, um sentido mais retórico que científico; b) sendo a Coisa Julgada calcada em norma inconstitucional, não se há de falar em relativização ou flexibilização da Coisa Julgada Inconstitucional, razão pela qual os meios processuais utilizáveis para a sua impugnação apenas irão reconhecer, através de novo pronunciamento, que a decisão rescindenda, juridicamente, nunca existiu, por estar calcada em Inconstitucionalidade. Na prática, contudo, sem a rescisão, e como foi dito com base em Pontes de Miranda, “a eficácia da sentença rescindível é completa, como se não fosse rescindível”; c) como a Argüição de Inconstitucionalidade poderá ser feita a qualquer tempo, em qualquer instância ou Tribunal, neste caso não se aplicaria o elemento tempo, ou seja, não se há de falar em Decadência, Preclusão e/ou ainda Prescrição; d) se, por qualquer motivo, a Ação Rescisória for apontada como ilegítima em razão do tempo, a saída seria o uso do Mandado de Segurança ou da Ação Declaratória de Nulidade Absoluta da Sentença, em razão da inconstitucionalidade em que se encontra fundamentada. Vale lembrar que esta última hipótese já foi aceita pelo STF no Recurso Extraordinário n° 97.589, de 17.11.1882, Rel. Min. Moreira Alves (v. u., DJU, 03.06.1983), dentro do prazo da Ação Rescisória; 6 e) não se há de falar neste caso (e a repetição é didaticamente necessária) em atentado à segurança jurídica, vez que esta não se poderá assentar no nada, no inexistente; f) dizendo de forma objetiva: lei ou ato eivados de inconstitucionalidade não geram direitos nem deveres, pelo que o ato judicial inconstitucional não faz coisa julgada, da mesma forma que não faz ato jurídico perfeito ou direito adquirido. Necessário, entretanto, é que o Poder Judiciário, necessariamente provocado pelo interessado, o diga em casos concretos, visto que, só assim, poderão ser desconstituídas as decisões que, pretensamente, geraram Coisa Julgada Inconstitucional.” f) Alexandre Freitas Câmara, em “Bens Sujeitos à Proteção do Direito Constitucional Processual”, capítulo da obra coletiva “Coisa Julgada Inconstitucional”, Editora Fórum, pgs. 298/300, firma as seguintes conclusões: “Conclui-se este ensaio com a reafirmação de uma convicção: a de que é perfeitamente admissível a desconsideração da coisa julgada material (ou, como se tem preferido, sua relativização) corno forma de preservar a supremacia constitucional. Essa desconsideração - pede-se vênia para insistir no ponto - é, porém, de todo excepcional, já que em regra as sentenças judiciais estarão em conformidade com a Constituição da República e, por isso, ao transitar em julgado levarão a que se respeite a imutabilidade do que tenha sido decidido. Não posso, porém, encerrar sem uma breve reflexão sobre um ponto. Respeitável processualista., contrário a tudo o que aqui se sustenta (o que não o torna, evidentemente, menos respeitável, já que as divergências de opinião fazem parte do jogo democrático e da vida científica), fez uma pesada crítica à teoria da relativização da coisa julgada que eu não gostaria de deixar sem resposta. Refirome ao notável professor Nelson Nery Júnior, cujas palavras transcrevo: Adolf Hitler assinou, em 15.7.1941, a Lei para a Intervenção do Ministério Público no Processo Civil, dando poderes ao parquet para dizer se a sentença seria justa ou não, se atendia aos fundamentos do Reich alemão e aos anseios do povo alemão (art. 2° da Gesetz über die Mitwirkung des Staatsanwalts in büergerlichen Rechtssachen [StAMG] - RGB1 I, p. 383). Se o MP alemão dissesse que a sentença era injusta, poderia propor ação rescisória (Wiederaufnahme des Verfahrens) para que isso fosse reconhecido (HANS Popp, Die nationalsozialistische Sicht einiger Institute des Zivilprozeâ-und Gerichtsverfassungsrechts, 1986, p. 200). A injustiça da sentença era, pois, uma das causas de sua rescindibilidade pela ação rescisória alemã nazista. Interpretar a coisa julgada, se justa ou injusta, se ocorreu ou não, é instrumento do totalitarismo, de esquerda ou de direita, nada tendo a ver com a democracia, com o Estado Democrático de Direito. Desconsiderar-se a coisa julgada é ofender-se a Carta Magna, deixando de dar-se aplicação ao princípio fundamental do Estado Democrático de Direito (CF, 1°, caput). De nada adianta a doutrina que defende essa tese pregar que seria de aplicação excepcional, pois, uma vez aceita, a cultura jurídica brasileira vai, seguramente, alargar os seus espectros - vide MS para dar efeito suspensivo a recurso que legalmente não o tinha, que, de medida excepcional, se tornou regra, como demonstra o passado recente da história do processo civil brasileiro -, de sorte que amanhã poderemos ter 7 como regra a não existência da coisa julgada, e como exceção, para pobres e não poderosos, a intangibilidade da coisa julgada. A inversão dos valores, em detrimento do Estado Democrático de Direito, não é providência que se deva prestigiar. Anote-se, por oportuno, que mesmo com a ditadura totalitária no nacional-socialismo alemão, que não era fundada no Estado Democrático de Direito, os nazistas não ousaram “desconsiderar” a coisa julgada. Criaram uma nova causa de rescindibilidade da sentença de mérito para atacar a coisa julgada. Mas, repita-se, respeitaram-na e não a desconsideraram. No Brasil, que é República fundada no Estado Democrático de Direito, quer-se desconsiderar a coisa julgada, isto é, querse ser pior do que os nazistas. Isso é intolerável. O processo é instrumento da democracia e não o seu algoz. Com todo o respeito que me merece o prof. Nery, penso que há algumas falhas no seu pensamento. Em primeiro lugar, vejo em sua exposição um inegável maniqueísmo. Parece ao ilustre jurista que tudo que se faz em um Estado autoritário é imprestável. Longe de mim defender qualquer ditadura. A pior democracia é sempre melhor que qualquer ditadura. Não se pode, porém, ser maniqueísta ou tratar a História com simplificações. Afinal, como disse Raymundo de Lima, “O maniqueísmo é uma forma de pensar simplista em que o mundo é visto como que dividido em dois: o do Bem e o do Mal. A simplificação é uma forma primária do pensamento que reduz os fenômenos humanos a uma relação de causa e efeito, certo e errado, isso ou aquilo, é ou não é”. Ora, o Mundo não é assim, nem o é a Humanidade. Somos muito mais complexos do que o pensamento maniqueísta pode descrever. Basta pensar em um exemplo simples: a primeira lei brasileira a prever a existência de Juizados Especiais de Pequenas Causas foi aprovada em 1984, ainda em pleno regime militar ditatorial. Nem por isso deve-se desprezar essa belíssima e democrática experiência, buscando aperfeiçoá-la (como se tentou fazer com a substituição da Lei n° 7.244/84 pela Lei n° 9.099/95). O próprio exemplo dado por Nery Jr. mostra isso. Cita o professor paulista uma lei aprovada durante o regime nazista que dava ao Ministério Público o poder de atuar em todos os processos civis para defender a justiça das decisões. Ora, um jurista brasileiro cujo compromisso com a democracia é notório defendeu tese análoga, sustentando a necessidade de se determinar a intervenção do Ministério Público em todos os processos de natureza civil. Outros exemplos podem ser aqui referidos: a CLT foi aprovada durante a ditadura Vargas e até hoje, em plena democracia, regula as relações de emprego. O Código Civil português foi aprovado durante o regime salazarista. O Código de Processo Civil foi aprovado durante o regime militar. O Código Civil italiano foi aprovado durante o regime fascista de Mussolini. O mero fato de uma lei ter sido aprovada durante um período ditatorial, portanto, não pode ser suficiente para que se considere que nada do que ali consta é compatível com a democracia. Aliás, há uma contradição na crítica de Nery Jr., que afirma que é pior do que ser nazista defender a relativização da coisa julgada, mas diz também que os nazistas não admitiram tal relativização. Ora, não seria então o caso de considerar nazista quem é contra a relativização, já que os nazistas não a admitiram? É claro que isso seria tão maniqueísta quanto defender a posição oposta. Além disso, faz o autor um exercício de futurologia ao tentar prever que o que hoje é exceção acabará por se tornar regra geral. A cultura democrática já alcançada pelo Brasil (que dá mostras disso quando mantém em perfeito funcionamento as instituições estatais ainda quando se atravessa grave crise política) permite prever exatamente o oposto (se é que alguma previsão é legítima ou mesmo possível). 8 Concluo, pois, convencido de que a desconsideração da coisa julgada material é perfeitamente compatível com o Estado Democrático de Direito e é absolutamente essencial para a preservação da supremacia constitucional, tão importante para essa mesma democracia que tanto custou para ser conquistada, e que deve agora ser preservada a todo custo.” g) Teori Albino Zavascki, em “Embargos à execução com eficácia rescisória: sentido e alcance do art. 741, parágrafo único do CPC”, capítulo de obra coletiva “Coisa Julgada Inconstitucional”, Editora Fórum, pgs. 343/344, apresenta a suma conclusiva do teor seguinte: “Em suma, a eficácia rescisória dos embargos à execução, prevista no parágrafo único do art. 741 do CPC, está submetida aos seguintes pressupostos: (a) que a sentença exeqüenda esteja fundada em norma inconstitucional, seja por aplicar norma inconstitucional (2ª parte do dispositivo), seja por aplicar norma em situação ou com um sentido tidos por inconstitucionais (1ª parte do dispositivo); e (b) que a inconstitucionalidade tenha sido reconhecida em precedente do STF, em controle concentrado ou difuso, independentemente de resolução do Senado, mediante declaração de inconstitucionalidade com redução de texto (1ª parte do dispositivo), mediante declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto ou, ainda, mediante interpretação conforme a Constituição (2ª parte). Estão fora do âmbito material dos referidos embargos, portanto, todas as demais hipóteses de sentenças inconstitucionais, ainda que tenham decidido em sentido diverso da orientação do STF, como, v.g, quando o título executivo: a) deixou de aplicar norma declarada constitucional (ainda que em controle concentrado); b) aplicou preceito constitucional que o STF considerou sem autoaplicabilidade; c) deixou de aplicar preceito constitucional que o STF considerou autoaplicável; d) aplicou preceito normativo que o STF considerou revogado ou não recepcionado, deixando de aplicar ao caso a norma revogadora. Também estão fora do alcance do parágrafo único do art. 741 do CPC as sentenças, ainda que eivadas da inconstitucionalidade nele referida, cujo trânsito em julgado tenha ocorrido em data anterior à da sua vigência. O dispositivo, todavia, pode ser invocado para inibir o cumprimento de sentenças executivas lato sensu, às quais tem aplicação subsidiária por força do art. 744 do CPC.” 9