Observação: O presente estudo foi desenvolvido em dezembro de 2012, sendo, portanto, anterior à Súmula 527 do STJ. MEDIDAS DE SEGURANÇA EM FACE DA LEI 10.216/2001 RESUMO A proposta central do presente estudo refere-se à defesa de um tratamento mais humanizador àqueles submetidos à medida de segurança. No decorrer de toda a história, o transtorno mental serviu apenas para segregar seus portadores dos demais membros da sociedade, considerados “normais”. A internação, ao invés de ser destinada ao tratamento e cura do enfermo mental, destacou-se por propiciar ainda mais a sua exclusão do convívio social. A Lei 10.216/2001 surgiu com a finalidade de reformular o modelo de assistência à saúde mental, atingindo a todos os doentes mentais, alcançando, inclusive aqueles submetidos à medida de segurança, internados compulsoriamente por determinação da justiça. Programas de ressocialização, como o PAI-PJ e PAI-LI, são frutos concretos do desígnio trazido pela Lei em comento. Palavras – chave: Medidas de Segurança. Internamento. Lei 10.216/2001. Loucura. Tratamento humanizador. 1 INTRODUÇÃO Ao longo de todo o desenvolvimento histórico, o conceito de “loucura” ganhou diferentes contornos e significações. As percepções acerca da loucura sofreram significativas modificações, sendo constantemente repaginadas, conforme o momento social, político e cultural pelo qual passava a sociedade. Se na Idade Média a loucura era vista como um castigo divino, uma espécie de reprovação de Deus, no início do século XXI, a loucura ganhou uma nova conotação, de forma a predominar a expressão “transtorno mental”, como sinônimo de “doença mental”. Por longo período, o internamento foi visto como principal forma de solucionar a grande problemática dos doentes mentais. Contudo, resolvia apenas o problema da sociedade que não admitia um convívio com esses indivíduos, pois para estes servia apenas como uma forma de isolamento, de segregação, sem que qualquer espécie de tratamento lhes fosse dispensada. Como será demonstrado no presente estudo, as internações em hospitais psiquiátricos consistiam em instituições fechadas, caracterizadas como verdadeiros depósitos humanos. Visando modificar essa triste realidade, em maio de 1987, iniciou-se o Movimento da Luta Antimanicomial, o qual consiste na ideia de abolição dos tratamentos realizados em manicômios, devendo estes serem substituídos por procedimentos terapêuticos, a fim de possibilitar o cuidado em liberdade, e, acima de tudo, resgatar a cidadania do enfermo mental, sobretudo o do louco infrator. Em 2001, surgiu a Lei Antimanicomial, a qual dispõe sobre a proteção e os direitos dos doentes mentais, dando novos ares ao modelo de assistência à saúde mental, passando, inclusive, a regulamentar a internação psiquiátrica compulsória – caso da medida de segurança imposta ao louco infrator – e a propor a substituição dos manicômios por outras e novas espécies de tratamento. O presente trabalho possui como escopo contextualizar os aspectos conceituais a respeito do louco infrator e da aplicação da medida de segurança a ele imputada quando diagnosticado como inimputável, dentro da perspectiva do modelo humanizador trazido pela Lei 10.216/2001. Serão mencionados o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental Infrator (PAI-PJ) e o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAI-LI), instituídos nos estados de Minas Gerais e Goiás, respectivamente, como modelos de ressocialização no caso concreto, baseados na aplicação de mencionada Lei às medidas de segurança. 2 A IMPUTABILIDADE 2.1 CONCEITOS E PRESSUPOSTOS Um indivíduo, para ser considerado autor de fato delituoso, deve possuir a capacidade de compreender a ilicitude de seu ato e ainda, determinar-se conforme tal entendimento. Miguel REALE JÚNIOR ensina que a imputabilidade consiste em um pressuposto da ação, tendo em vista que o inimputável não age, ao contrário, pratica fatos. Somente aquele que possui liberdade considera-se imputável. Na sequência, o autor define referida liberdade como sendo a capacidade de impor um sentido aos impulsos, “capacidade de determinar-se de acordo com o sentido” próprio do homem e de suas circunstâncias. O homem livre é aquele que pode interferir no processo dos impulsos, impondo-lhe um sentido. É pressuposto da ação e logo, também da culpabilidade que o agente não seja prisioneiro dos impulsos, que ele possa agir segundo sua autodeterminação racional.1 (grifo do autor) Luiz Regis PRADO entende a imputabilidade como sendo a plena capacidade de culpabilidade, a qual é entendida como sendo capacidade de entender e de querer, e, consequentemente, de responsabilidade criminal, segundo a qual o imputável responde por seus atos. “Essa capacidade possui, logo, dois aspectos: cognoscitivo ou intelectivo (capacidade de compreender a ilicitude do fato); e volitivo ou de determinação da vontade (atuar conforme essa compreensão)”. (grifo do autor).2 Destarte, somente se o agente possui capacidade de compreender o ato praticado, bem como de agir de acordo com tal compreensão, é que se considera imputável, ou seja, culpável. No que tange à inimputabilidade, Eduardo Reale FERRARI aclara a definição trazida pelo Código Penal. Assim, os inimputáveis, previstos no caput do art. 26 do Código Penal, constituem-se nos cidadãos portadores de uma doença mental ou de um desenvolvimento mental incompleto ou retardado que, ao tempo da ação ou da omissão, são inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou de determinarem-se de acordo com esse entendimento.3 Nesse mesmo soslaio, Michel FOUCAULT ao afirmar que aux termes du Code pénal de 1890, aux termes mêmes de ce fameux article 64, où il n’y a ni crime ni délit, si l’individu est en état de démence au moment du crime, l’expertise doit permettre, devrait en tout cas permettre, de faire le partage: un partage dichotomique entre maladie ou responsabilité, entre causalité pathologique ou liberté du sujet juridique, entre thérapeutique ou punition, entre médecine et pénalité, entre hôpital et prison. Il faut choisir, car la folie efface le crime, la folie ne peut pas être le lieu du crime et, inversement, le crime ne peut pas être, en lui-même, un acte qui s’enracine dans la folie.4 1 REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 189. PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. 11. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos tribunais, 2011. v.1. p. 479. 3 FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de segurança e direito penal no estado democrático de direito. São Paulo: Revista dos tribunais, 2001. p. 39. 4 FOUCAULT, Michel. Les anormaux: cours au Collège de France. Paris: Gallimard, 1999. p. 29. 2 acode que não há que se falar em crime, quando o indivíduo está em estado de demência no momento do cometimento do fato delituoso. Assegura que a loucura apaga o crime, não podendo ser o lugar do crime e este, por sua vez, não pode ser, em si, um ato que se enraíza na loucura. Assim, entende-se por inimputabilidade como sendo o instituto que confere ao agente – que não possui a compreensão da ilicitude do ato praticado e/ou que não consegue determinar-se de acordo com esse entendimento – a garantia de que a ele não podem ser imputados fatos típicos e antijurídicos decorrentes de sua ação. 2.2 EXCLUSÃO DA IMPUTABILIDADE 2.2.1 Breve relato histórico Conforme será analisado adiante, o tratamento do doente mental sofreu diversas alterações na legislação brasileira, iniciando-se com a imposição de pena de igual forma que um indivíduo saudável era punido até à atual presunção de periculosidade que apresenta o presente Código Penal. As Ordenações Filipinas não trazem uma referência específica aos loucos. Contudo, no capítulo que trata sobre a responsabilidade penal foi incluído o desenvolvimento mental incompleto. Aos maiores de vinte anos, a pena era aplicada integralmente, ficando ao arbítrio do julgador a redução do castigo no caso de menores de dezessete anos.5 O Código Penal do Império do Brasil, como notadamente lembra FÜHRER, dispunha que os loucos “que cometessem fatos tipificados como crime eram recolhidos para as casas que lhes eram especialmente destinadas ou entregues para as respectivas famílias, como parecesse ‘mais conveniente’ ao juiz”.6 Percebe-se, com isso, que a legislação imperial, de certa forma, já se utilizava de uma espécie de medida de segurança, ficando ao arbítrio do juiz a internação do doente mental ou, então, sua entrega em confiança à família. Para o Código Republicano, a saúde mental também consistia em um pressuposto para que um crime pudesse ser devidamente configurado, com um importante diferencial. “O 5 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Tratado da inimputabilidade no direito penal. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 19. 6 Ibidem, p.20. destino do louco criminoso continua a ser determinado pelo juiz, mas a internação passou a exigir fundamentação, com base na doença mental, na periculosidade do agente e na garantia da ordem pública”.7 A Consolidação das Leis Penais, por sua vez, fixou a presunção absoluta de inimputabilidade aos menores de quatorze anos. Nas palavras de FÜHRER, “foi afastada a exceção do intervalo lúcido. Permaneceu inalterada a internação aplicada aos portadores de afecção mental, se necessário fosse para a defesa da segurança do público. A novidade ficou por conta da permissão para que a internação se realizasse nos asilos públicos, nos pavilhões especiais, enquanto os Estados não construíssem manicômios criminais”.8 O Código Penal de 1940 foi o pioneiro a trazer definição de responsabilidade penal, trazendo consigo o nascimento da expressão medida de segurança, até então denominada de internação para segurança do público. O julgador era livre, podendo agir conforme sua conveniência. Caso objetivasse a decretação da internação, fazia-se necessária a existência de uma fundamentação, com base na segurança do público. A aplicação sucessiva de pena e medida de segurança passou a ser adotada, tanto para os imputáveis quanto para os semi-imputáveis perigosos. “Para os inimputáveis, aplicava-se unicamente medida de segurança. A maioridade penal foi fixada em 18 anos, sendo presumida a irresponsabilidade penal antes dessa idade. Admitia-se a medida de segurança também para o ‘quase-crime’ (crime impossível e ajuste, determinação, instigação e auxílio, quando o crime não chegou a ser tentado)”.9 O Código Penal de 1969 inovou ao trazer um aspecto regenerador da pena para a medida de segurança um fim curativo, sendo destinada a internação apenas para os casos de real necessidade, afastando-se as presunções de periculosidade. A pena dos ébrios habituais e dos toxicômanos seria substituída pela internação10. Todavia, muito embora inovador, foi revogado já no período de sua vacatio legis, nunca tendo entrado em vigor, de forma a prolongar a vigência do Código Penal de 1940. Objetivando a extinção do sistema duplo-binário para os semi-imputáveis e imputáveis, o legislador da Reforma de 1984, adotou, para aqueles, o modo vicariante ou unitário. O juiz é quem deve decidir sobre a aplicação da pena, com ou sem redução de um a 7 Ibidem, p.21. Ibidem, p.23. 9 Ibidem, p.25. 10 Ibidem, p.28. 8 dois terços, bem como se deve haver substituição da pena por medida de segurança, no caso de o semi-imputável necessitar de especial tratamento curativo. Em sendo aplicada a medida de segurança, o semi-imputável passa a receber igual tratamento que possuem os inimputáveis.11 Ao ser extinto o sistema duplo-binário, passou-se a adotar a presunção absoluta de periculosidade em relação aos doentes mentais, além de ser aplicada aos inimputáveis a medida de segurança sem a existência de qualquer exame ou juízo de periculosidade. A qualidade da pena (detenção ou reclusão) passou a regular o tipo de medida de segurança que será aplicado. Assim, sem qualquer contato com o caso em concreto e sem notícia da doença que aflige o agente, nem sobre a eventual periculosidade do agente, o legislador impôs internação para os casos de pena de reclusão, admitida a substituição por tratamento ambulatorial apenas nos casos de detenção.12 Conclui-se, assim, que o legislador simplesmente considerou como absoluta a presunção de periculosidade dos portadores de transtornos mentais, sendo a medida de segurança aplicada conforme a modalidade da pena – detenção ou reclusão – e não sobre o grau de periculosidade do louco infrator. 2.2.2 Tratamento no ordenamento jurídico brasileiro Conforme dito anteriormente, consiste a inimputabilidade na impossibilidade de ser responsável penalmente pelo fato típico e antijurídico praticado. A fim de que se afira a inimputabilidade, são adotados diferentes critérios, vez que a compreensão de imputabilidade “reside essencialmente em que se consideram exigíveis no agente certas qualidades pessoais (uma certa idade e a inexistência de perturbações sérias da vida psíquica) para se tornar possível a censura, na medida em que a falta de tais qualidades pode furtar ao agente a capacidade de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com aquela avaliação”.13 São conhecidos três sistemas que definem os critérios fixadores da inimputabilidade. Trata-se o primeiro do critério biológico ou etiológico, o qual, segundo Cezar Roberto BITENCOURT, “condiciona a responsabilidade à saúde mental, à normalidade da mente. Se 11 Ibidem, p.29. Ibidem, p.30. 13 DIAS, José Figueiredo. Liberdade, culpa, direito penal. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 1995. p. 66. 12 o agente é portador de uma enfermidade ou grave deficiência mental, deve ser declarado irresponsável, sem necessidade de ulterior indagação psicológica”.14 Dessa forma, tem-se que o critério biológico somente leva em consideração se o agente é ou não portador de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Em sendo, deve ser considerado como inimputável. Para CAPEZ, “há uma presunção legal de que a deficiência ou doença mental impede o sujeito de compreender o crime ou comandar a sua vontade, sendo irrelevante indagar acerca de suas reais e efetivas consequências no momento da ação ou omissão”.15 O segundo critério denomina-se de psicológico ou psiquiátrico e “tem em conta apenas as condições psicológicas do agente à época do fato. Diz respeito apenas às consequências psicológicas dos estados anormais do agente”.16 Julio Fabbrini MIRABETE considera tal critério como sendo “pouco científico, de difícil averiguação”, mostrando-se “falho na aberrante ‘perturbação dos sentidos’ da legislação anterior ao Código de 1940”.17 O critério, no entanto, adotado pela maioria das legislações, inclusive pela brasileira, diz respeito ao biopsicológico ou misto, o qual “combina os dois sistemas anteriores, exigindo que a causa geradora esteja prevista em lei e que, além disso, atue efetivamente no momento da ação delituosa, retirando do agente a capacidade de entendimento e vontade”.18 Assim, se por um lado exige a presença de anomalias mentais, por outro, o critério biopsicológico determina também a existência de completa incapacidade de entendimento.19 Ressalte-se, no entanto que os menores de 18 (dezoito) anos são tratados como exceção ao referido critério, consagrando-se o princípio da inimputabilidade absoluta por presunção, tendo em conta apenas o critério biológico da idade do agente20, o qual possui previsão constitucional. Conforme o artigo 228 da Constituição Federal, são “penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial” 21 – Lei 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente). O mesmo pode ser aferido no artigo 27 do Código Penal. 14 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 1. p. 359/360. 15 CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2011. v. 1. p. 335. 16 PRADO, Luiz Regis. Op. cit., p. 479. 17 MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal: parte geral. 22. ed. São Paulo: Atlas, 2005. v.1. p. 210. 18 CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 336. 19 PRADO, Luiz Regis. Op. cit., p. 479. 20 Ibidem, p. 481. 21 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 25 set. 2012. Além da menoridade, o ordenamento jurídico brasileiro admite outras duas hipóteses de exclusão da imputabilidade: doença mental ou desenvolvimento mental incompleto e embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, previstos, respectivamente, nos artigos 26 e parágrafo 1° do artigo 28, ambos do Código Penal. No que concerne à causa de exclusão da imputabilidade decorrente de doença mental – a qual deve ser considerada como de maior relevância para o presente estudo -, por não possuir “maior rigor científico, a expressão abrange todas as moléstias que causam alterações mórbidas à saúde mental”.22 Conforme aclara Guilherme de Souza NUCCI, doença mental consiste na “perturbação mental ou psíquica de qualquer ordem, capaz de eliminar ou afetar a capacidade de entender o caráter criminoso do fato ou a de comandar a vontade de acordo com esse entendimento. Compreende a infindável gama de moléstias mentais, tais como epilepsia condutopática, psicose, neurose, esquizofrenia, paranóias, psicopatia, epilepsias em geral etc”.23 O conceito, portanto, deve ser analisado lato sensu, abrangendo-se doenças patológicas e toxicológicas, vez que o sistema vigente, por adotar o critério biopsicológico, não traz um rol taxativo. Ressalte-se que sempre que a dependência patológica de substância psicotrópica, como é o caso das drogas, retirar a capacidade de entender ou querer, deve ser configurada como doença mental.24 Já no que tange à inimputabilidade proveniente de desenvolvimento mental incompleto ou retardado, consiste, conforme os ensinamentos de NUCCI, numa limitada capacidade de compreensão do ilícito ou da falta de condições de se autodeterminar, conforme o precário entendimento, tendo em vista ainda não ter o agente atingido sua maioridade intelectual e física, seja por conta da idade, seja porque apresenta alguma característica particular, como o silvícola não civilizado ou o surdo sem capacidade de comunicação.25 Dessa forma, além dos menores de dezoito anos, possuem desenvolvimento mental incompleto os silvícolas não adaptados à civilização – a condição de silvícola por si só, não 22 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. cit., p. 211. CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 333. 24 Idem. 25 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral, parte especial. 7. ed. rev. , atual. e ampl. São Paulo: Revista dos tribunais, 2011. p. 309. 23 exclui a imputabilidade, na hipótese de o índio estar integrado e adaptado ao meio civilizado26 – bem como os surdos-mudos que não receberam instrução adequada. Há de ser analisado, portanto, em cada caso a real existência da incapacidade do surdo-mudo bem como a do silvícola não adaptado, ou seja, em cada caso concreto, a psicopatologia forense é que deve determinar se a alteração da realidade provocada pela surdo-mudez, assim como a ausência de adaptação social dos silvícolas conduzem à referida incapacidade. BITENCOURT descreve desenvolvimento mental retardado como sendo “aquele que em que não se atingiu a maturidade psíquica, por deficiência de saúde mental. De regra, nas hipóteses de desenvolvimento mental retardado aparecem com alguma frequência as dificuldades dos chamados casos fronteiriços, particularmente nas oligofrenias, onde o diagnóstico não oferece a segurança desejada”.27 (grifos do autor). Nesses últimos casos, o autor acrescenta que o grau de deficiência do desenvolvimento mental retardado do indivíduo somente se detecta por meio da perícia forense, podendo ser diagnosticada a inimputabilidade ou, então, a semi-imputabilidade, a depender de cada caso em concreto. Sobre semi-imputabilidade, entende-se como sendo a gradação existente entre a imputabilidade e a inimputabilidade, abrangendo os “chamados fronteiriços, que apresentam situações atenuadas ou residuais de psicoses, de oligofrenias e, particularmente, grande parte das chamadas personalidades psicopáticas ou mesmo transtornos mentais transitórios”.28 (grifos do autor) Conforme prevê o artigo 26, parágrafo único, do Código Penal, “a pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado, não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.29 A perturbação da saúde mental a que se refere a lei consiste em uma expressão de significado amplo, abrangendo, assim, todas as doenças mentais e outros estados mórbidos. A lei também fala em portadores de desenvolvimento mental incompleto, sendo os silvícolas 26 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. cit., p. 212. BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 471. 28 Ibidem, p. 473. 29 BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 20 ago. 2012. 27 incorporados nesse conceito, assim como os oligofrênicos e os surdos-mudos estão abarcados no conceito de desenvolvimento mental retardado.30 Enquanto que para os inimputáveis há a absolvição, sendo-lhes aplicada medida de segurança de internamento ou tratamento ambulatorial, nos casos de semi-imputabilidade é aplicada uma pena ao agente, com redução de um a dois terços. Ressalte-se que, conforme o artigo 98 do Código Penal, na hipótese de o semiimputável condenado necessitar “de especial tratamento curativo, a pena privativa de liberdade pode ser substituída pela internação, ou tratamento ambulatorial, pelo prazo mínimo de um a três anos”.31 MIRABETE destaca que “substituída a pena pela medida de segurança, porém, o sentenciado passará a sofrer todas as consequências a que está sujeito o inimputável, inclusive quanto à necessidade de perícia médica que comprove a cessação de periculosidade para desinternação do condenado ou cessação do tratamento”.32 Tanto nos casos de inimputabilidade como nos de semi-imputabilidade, deve-se submeter o acusado ao exame médico-legal. Celso DELMANTO [et al] assegura que “a menos que tenha motivação adequada em contrário à perícia médica, não deve o juiz rejeitála”.33 Os casos em que o agente se coloca propositadamente em estado de inimputabilidade, objetivando o cometimento de crime, denomina-se de actio libera in causa. Dessa forma, a embriaguez não acidental jamais exclui a imputabilidade do agente, seja voluntária, culposa, completa ou incompleta. Isso porque ele, no momento em que ingeria a substância, era livre para decidir se devia ou não o fazer. A conduta, mesmo quando praticada em estado de embriaguez completa, originou-se de um ato de livre-arbítrio do sujeito, que optou por ingerir a substância quando tinha a possibilidade de não o fazer. A ação foi livre na causa, devendo o agente, por essa razão ser responsabilizado34. (grifo do autor) Já a embriaguez completa, decorrente de caso fortuito ou força maior, de acordo com o parágrafo primeiro do artigo 28, do Código Penal, isenta o agente que era, “ao tempo da ação 30 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. cit., p. 214. BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 20 ago. 2012. 32 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. cit., p. 215. 33 DELMANTO, Celso [et al]. Código penal comentado. 7. ed. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 105. 34 CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 339. 31 ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.35 Ressalte-se, finalmente que a emoção e a paixão não se constituem em excludentes de imputabilidade, podendo, contudo, serem caracterizadas como circunstâncias atenuantes, como a trazida pela alínea “c”, inciso III, do artigo 65, do Código Penal. 3 MEDIDAS DE SEGURANÇA 3.1 CONCEITO E REQUISITOS Consiste em uma forma de resposta do ordenamento jurídico frente ao caráter de periculosidade criminal revelado pelo autor do fato criminoso. A medida de segurança, para MIRABETE, “não deixa de ser uma sanção penal e, embora mantenha semelhança com a pena, diminuindo um bem jurídico, visa precipuamente à prevenção, no sentido de preservar a sociedade da ação de delinquentes temíveis e de recuperá-los com tratamento curativo”.36 Conforme explanado anteriormente, com a Reforma de 1984, pena e medida de segurança deixam de ser aplicadas simultaneamente, eis que o sistema jurídico brasileiro passou a adotar o sistema vicariante. A tendência moderna “é de buscar uma medida unificada, concluindo-se pela necessidade de adotar o princípio da fungibilidade entre pena e medida de segurança”.37 A fim de seja aplicada a medida de segurança, além de restar constatada a periculosidade, a qual se presume no caso dos inimputáveis e se reconhece pelo juiz no dos semi-imputáveis, o indivíduo deve ter cometido fato típico e antijurídico. Extrai-se, portanto, que, primeiramente, deve-se verificar a prática de fato punível pelo agente. “A prática de um delito como pressuposto de aplicação das medidas de segurança funciona como critério limitativo, com vistas a afastar a imposição de medidas de segurança pré-delitivas por motivos de segurança jurídica”.38 35 BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 20 ago. 2012. 36 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. cit., p.353. 37 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. cit., p.353. 38 PRADO, Luiz Regis. Op. cit., p.789. O segundo requisito determinante para que possa se proceder à aplicação da medida de segurança é a presença da periculosidade daquele que praticou o fato criminoso. Destarte, a periculosidade, a qual consiste na “potencialidade para praticar ações lesivas” 39 , pode ser definida como um estado subjetivo mais ou menos duradouro de antissociabilidade. É um juízo de probabilidade – tendo por base a conduta antissocial e a anomalia psíquica do agente – de que este voltará a delinquir.40 3.2 DIREITOS DOS SUBMETIDOS À MEDIDA DE SEGURANÇA No que tange aos direitos dos submetidos à medida de segurança, o Código Penal brasileiro prevê que, em seu artigo 99, “o internado será recolhido a estabelecimento dotado de características hospitalares e será submetido a tratamento”. 41 O artigo 3°, da Lei de Execução Penal, por sua vez, dispõe que “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”.42 De acordo com os ensinamentos de DELMANTO [et al], além de referido diploma legal trazer a ideia de que aquele a quem deve ser aplicada a modalidade “internação” deve permanecer recolhido, aborda também sobre a garantia de que dispõe esse indivíduo, cujo tratamento deve se dar em estabelecimento hospitalar e com o devido tratamento médico. Para o autor, “não se admite, pois, que o inimputável fique recolhido à cadeia ou presídio comum. Deve receber o tratamento psiquiátrico necessário, em hospital ou, na falta de vagas, em local com dependência médica adequada”.43 O posicionamento majoritário está atrelado à regra de que o recolhimento do doente mental deve se dar em estabelecimento próprio, não o sendo admitido em presídio comum. Na falta de estabelecimento próprio, o artigo 96, inciso I, do Código Penal, permite que a internação seja realizada em outro estabelecimento adequado. No que tange à medida de tratamento, o artigo 101 da Lei de Execução Penal prevê que seja desenvolvida em local outro, desde que com dependência médica adequada. 39 CAPEZ, Fernando. Op. cit., p.467. BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 840. 41 BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 20 ago. 2012. 42 BRASIL. Lei n. 7.210 de julho de 1984. Institui a lei de execução penal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 13 jul. 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210.htm>. Acesso em 25 set. 2012. 43 DELMANTO, Celso [et al]. Op. cit., p. 280. 40 Advirta-se, ainda, a possibilidade de contratação de médico particular para acompanhamento do tratamento destinado ao doente. Nos ensinamentos de DELMANTO [et al], garante-se a liberdade de contratar médico de confiança do paciente ou de seus familiares e dependentes, para acompanhar e orientar tanto a internação como o tratamento. Determina-se, ainda, que havendo divergências entre o médico oficial e o particular, serão resolvidas pelo juiz da execução (LEP, art. 43 e parágrafo único).44 Entretanto, como bem destaca referido autor, não são todos os que possuem condições de se beneficiar de tal privilégio, sendo destinada a medida apenas a “um número reduzidíssimo de internados ou tratados e não a grande maioria de desafortunados”.45 Finalmente, embora adiante será tratada mais pormenorizadamente, visto que objeto do presente estudo, desde logo, mister se faz mencionar a Lei 10.216/2001 (Lei Antimanicomial).46 Referido diploma legal traz um novo modelo assistencial em saúde mental, de forma a garantir a proteção e os direitos dos doentes mentais. 3.3 ESPÉCIES E HIPÓTESES DE APLICAÇÃO Desde a Reforma Penal de 1984 os imputáveis não ficam mais sujeitos à medida de segurança, ficando submetidos a ela os inimputáveis e os semi-imputáveis, estes últimos sempre que não estiverem sujeitos à pena. O Código Penal brasileiro prevê duas espécies de medidas de segurança. A detentiva, que consiste em internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico, ou em sua falta, em outro estabelecimento adequado e a restritiva, a qual compreende a sujeição do autor do delito a tratamento ambulatorial, conforme se verifica na disposição do artigo 97, do Código Penal. No que concerne à internação, “na falta de hospital de custódia e tratamento, pode ser cumprida em outro estabelecimento adequado. A nova terminologia adotada pela reforma não 44 Ibidem, p. 273. Idem. 46 BRASIL. Lei n. 10.216 de 06 de abril de 2001. Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 06 abr. 2001. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10216.htm>. Acesso em: 31 maio 2012. 45 alterou em nada as condições dos deficientes manicômios judiciários, já que nenhum Estado brasileiro construiu os novos estabelecimentos”.47 Referida espécie de medida de segurança possui como características a sua obrigatoriedade quando a pena imposta for a de reclusão. Aplicada sem determinação de tempo, cuja perduração dura até a cessação da periculosidade, a qual deve ser constatada por meio de perícia médica, sendo averiguada após um prazo mínimo que varia entre um e três anos. Ainda, conforme dispõe o artigo 176, da Lei de Execução Penal, mencionada averiguação pode ocorrer a qualquer tempo, mesmo antes do término do prazo mínimo, caso o juiz da execução determine.48 Quanto à obrigatoriedade da internação do artigo 97, do Código Penal, NUCCI acredita ser um preceito injusto, “pois padroniza a aplicação da sanção penal e não resolve o drama de muitos doentes mentais que poderiam ter suas internações evitadas”. Quanto à desinternação, assevere-se de que “será sempre condicional, devendo ser restabelecida a situação anterior se o agente, antes do decurso de um ano, pratica fato indicativo de sua periculosidade (não necessariamente crime)”.49 No que tange ao tratamento ambulatorial, “a grande inovação introduzida no capítulo das medidas de segurança pela reforma penal” 50 , corresponde “às atuais tendências de ‘desinstitucionalização’ do tratamento ao portador de doença mental ou de perturbação de saúde mental”.51 O tratamento ambulatorial é apenas uma possibilidade que as circunstâncias pessoais e fáticas indicarão ou não a sua conveniência. A punibilidade com pena de detenção, por si só, não é suficiente para determinar a conversão da internação em tratamento ambulatorial. É necessário examinar as condições pessoais do agente para constatar a sua compatibilidade ou incompatibilidade com a medida mais liberal. Claro, se tais condições forem favoráveis, a substituição se impõe.52 Dessa forma, tem-se que a determinação de um ou outra medida de segurança corresponde à natureza da pena privativa de liberdade aplicável, que, “se for de detenção, 47 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit., p. 840. CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 468. 49 CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 468. 50 MIRABETE, Julio Fabbrini. Op. cit., p.369. 51 Idem. 52 BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. cit.,p. 841. 48 permitirá a aplicação de tratamento ambulatorial, desde que, é claro, as condições pessoais o recomendem”.53 Quanto ao critério para a fixação do prazo mínimo, será fixado de acordo com o grau de perturbação mental do sujeito, bem como segundo a gravidade do delito. Com relação a este último ponto, deve-se ressaltar que embora a medida de segurança não tenha finalidade retributiva, não devendo, por isso, estar associada à repulsa do fato delituoso, a maior gravidade do crime recomenda cautela na liberação ou desinternação do portador de periculosidade.54 O autor discorre, ainda, sobre a liberação, a qual “será sempre condicional, devendo ser restabelecida a situação anterior se, antes do decurso de um ano, o agente praticar fato indicativo de sua periculosidade (não necessariamente crime)”.55 Ressalte-se que se o juiz julgar necessário, em qualquer fase do tratamento, pode ele determinar a sua conversão em internação, desde que tal providência seja necessária para fins curativos do agente.56 No caso de percepção de superveniência de doença mental do condenado, o condenado deve ser recolhido a hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, em não havendo, a outro estabelecimento adequado. O art. 41 do Código Penal determina (e o art. 183 da LEP permite), nessa hipótese, a substituição da pena por medida de segurança, cujo cumprimento passa a reger-se pelas normas de cumprimento de dita medida e não mais pelas normas de execução da pena (...) a medida de segurança não poderá ter duração superior ao correspondente à pena substituída.57 Assim, sobrevindo enfermidade mental ao condenado, deve este ser transferido a hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, em sua falta, a outro estabelecimento adequado. 4 REFORMA PSIQUIÁTRICA – A LEI ANTIMANICOMIAL 53 Idem. CAPEZ, Fernando. Op. cit., p. 469. 55 Idem. 56 PRADO, Luiz Regis. Op. cit., p. 648. 57 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 17. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo, Saraiva, 2012. v. 1. p. 847. 54 4.1 BREVE RELATO HISTÓRICO ACERCA DA LOUCURA E DAS INSTITUIÇÕES MANICOMIAIS Não é de hoje que grupos de pessoas consideradas “diferentes” são covardemente excluídos pelos demais membros – considerados normais – de uma sociedade. Prontamente são encontrados relatos, ao longo de toda a história, sobre a existência desse sentimento de banimento em relação àqueles que carregavam consigo a marca da diferença. Por longo período, a lepra assombrou o mundo ocidental com sua indesejável presença. Com o fim único de segregá-la, “a partir da alta Idade Média, e até o final das Cruzadas, os leprosários tinham multiplicado por toda a superfície da Europa suas cidades malditas”.58 Não possuíam eles, portanto, o objetivo de cura ou mesmo de tratamento de indivíduos portadores de tal enfermidade. Muito pelo contrário, esses lugares tiveram sua criação calcada na ideia de isolamento daqueles tidos como doentes em relação à população considerada saudável. A exclusão da lepra comportava em uma prática de divisão e distanciamento, uma regra de não contato entre um indivíduo e outro. Tratava-se da rejeição desses indivíduos num mundo exterior, para além dos muros da cidade, fora do alcance da comunidade. Essa exclusão do leproso acabava por implicar na sua desqualificação moral, jurídica e política. Ils entraient dans la mort, et vous savez que l’exclusion du lépreux s’accompagnait régulièrement d’une sorte de cérémonie funèbre, au cours de laquelle on déclarait morts (et, par conséquent, leurs biens transmissibles) les individus que étaient declare lépreux, et qui allaient partir vers ce monde extérieur et étranger. Bref, c’était em effet dês pratiques d’exclusion, dês pratiques de rejet, des pratiques de “marginalisation”, comme nous dirions maintenant.59 Quer isso dizer que os leprosos entravam numa espécie de “morte”, haja vista que regularmente a exclusão desses indivíduos era acompanhada de uma cerimônia fúnebre, no curso da qual eram declarados mortos, sendo levados para o mundo exterior e estrangeiro. Nesse viés, Horácio RIQUELME lembra que 58 59 FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. p. 3. FOUCAULT, Michel. Les…, p. 40. Esses hábitos de isolamento começaram na chamada época clássica da seguinte maneira: Primeiro os leprosários importantes na Idade Média (lugares para confinamento de leprosos; as epidemias de lepra na Idade Média eram uma consequência das Cruzadas), são mantidos na sua função como lugar de isolamento geográfico e são transformados para internamento de marginalizados.60 Foi, no entanto, no final da Idade Média, que o Ocidente viu erradicada a doença mais antiga do mundo. . Estranho desaparecimento, que sem dúvida não foi o efeito, longamente procurado, de obscuras práticas médicas, mas sim o resultado dessa segregação e a consequência, também, após o fim das Cruzadas, da ruptura com os focos orientais da infecção. A lepra se retira, deixando sem utilidade esses lugares obscuros e esses ritos que não estavam destinados a suprimi-la, mas sim a mantê-la a uma distância sacramentada, a fixá-la numa exaltação inversa.61 Denota-se, contudo, que o desaparecimento houve apenas para a doença em comento, pois as estruturas e instituições em que seus portadores eram reclusos continuaram a existir. Nesse sentido, FOUCAULT destaca o seguinte: Desaparecida e lepra, apagado (ou quase) o leproso da memória, essas estruturas permanecerão. Frequentemente nos mesmo locais, os jogos da exclusão serão retomados, estranhamente semelhantes aos primeiros, dois ou três séculos mais tarde. Pobres, vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” assumirão o papel abandonado pelo lazarento (...). Com um sentido inteiramente novo, e numa cultura bem diferente, as formas subsistirão – essencialmente, essa forma maior de uma partilha rigorosa que é a exclusão social.62 Com o desenvolvimento econômico europeu e seu respectivo processo de urbanização, começaram a ser exigidas maneiras de contenção populacional, sendo a abertura de manicômios a principal delas. Diante dessa perspectiva, observou-se que “os alienados tinham muito mais um papel de álibi, legitimando a existência do Hôpital Général do que usufruindo se sua função”.63 (grifo do autor). 60 RIQUELME, Horácio. A tradição do manicômio na Europa. Jornal brasileiro de psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 36, n. 1/6, p. 119-134, mar./abr. 1987. p. 120. 61 FOUCAULT, Michel. História…, p. 4. 62 Ibidem, p. 6. 63 RIQUELME, Horácio. Op. cit., p. 120. Sabe-se que durante o período Inquisitório os hereges passaram a ser perseguidos, muitos deles tendo sido torturados e até mesmo queimados vivos em fogueiras dispostas, sem pudor algum, em plenas praças públicas. Gradualmente, através de observações muitas, os hereges da Inquisição passaram a ser considerados como mentalmente doentes. A partir de então, deixaram de ser perseguidos como bruxos. Porém, “o resultado foi a substituição de um movimento religioso por um movimento médico de massa, e a perseguição dos doentes mentais substituiu a perseguição dos heréticos”.64 O nascimento dos asilos manicomiais europeus data o período do Renascimento e Iluminismo. Contudo, ressalte-se que sua existência já podia ser observada no mundo árabe desde o século VII.65 Durante o século XV, puderam ser observadas as mais estarrecedoras formas de segregação, exclusão, confinamento e isolamento dos portadores de doenças mentais. Sobre as formas de internação desse período, RIQUELME elucida que no século XV se promoveu o embarque de elementos sociais inquietos e incômodos na esperança de que impressões diferentes e a mudança de hábitos fossem trazer à razão o “espírito perturbado que vagava livremente”, em seguida ocorreu o isolamento deste tipo de pessoas em centros, para sua internação através de acomodações em “ilhas da loucura”, num panorama cada vez mais bem organizado.66 Foucault, nesse contexto de Renascença, traz à barca a composição literária, conhecida como Narrenschiff de Brant, a fim de descrever, com maior propriedade, como consistia o tratamento dispensado aos doentes mentais da época, ao serem lançados na maior de suas viagens sem volta: A Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles existiram, esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma existência errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos (...). Eram frequentemente confiados a barqueiros: em Frankfurt, em 1399, encarregam-se marinheiros de livrar a cidade de um louco que por ela passeava nu.67 64 SZASZ, Thomas Stephen. A fabricação da loucura. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. p. 20. ALVIM, Rui Carlos Machado. Uma pequena história das medidas de segurança. São Paulo: IBCCrim, 1997. p. 65. 66 RIQUELME, Horácio. Op. cit., p. 120. 67 FOUCAULT, Michel. História…, p. 9. 65 O autor cita ainda a cidade de Nuremberg como sendo uma grande acolhedora desses loucos trazidos pelas naus, os quais passaram a ser por ela mantidos sem que, no entanto, obtivessem qualquer espécie de tratamento, sendo simplesmente jogados numa prisão. Advirta-se que, ao encomendarem seus loucos para que os marinheiros os desembarcassem nos lugares mais distantes, os cidadãos que se consideravam “normais” tinham como objetivo único o cumprimento da função social de sua cidade, ou seja, despejando seus detritos insanos em qualquer outro local, nada mais faziam do que limpá-la, constituindo-se, assim, um lamentável pensamento. Quanto ao desenvolvimento observado no século XVI, Michael STONE, realça que o início do século XVI foi marcado tanto pelo auge da Inquisição quanto pelo ressurgimento de pensamentos racionais e humanísticos com relação à vida mental – um movimento encabeçado por filósofos – que abriram caminho para um tratamento mais racional, empírico e compassivo do doente mental.68 Observa-se, com isso, determinada evolução concernente ao modo como o doente mental é tratado, o qual passou a não mais ser perseguido e escorraçado, mas sim a ser qualificado como individuo necessitado de atenção e tratamento especiais. Destacou-se o século XVII, por sua vez, por ter se revelado como sendo o auge da criação de casas de internamento. Para Rui Carlos Machado ALVIM, as prisões seculares inicialmente denominaram-se casas de correção: tal designação simboliza com justeza a natureza destes estabelecimentos, cunho a reforçar-se na atenção de que surgiram para abrigar compulsoriamente e com trabalhos forçados todos os tipos de deserdados sob um único estatuto. Os vagabundos, os mendigos, as prostitutas, os loucos, os criminosos.69 Assim, referidas casas de correção se destinavam, ao mesmo tempo, aos pobres, aos desempregados, aos correcionários e aos insanos, sem que se fizesse qualquer espécie de distinção entre eles, como se possuíssem as mesmas necessidades e apresentassem as mesmas dificuldades. 68 STONE, Michael. A cura da mente: A história da psiquiatria da antiguidade até o presente. Porto Alegre: Artmed, 1999. p. 41. 69 ALVIM, Rui Carlos Machado. Op. cit., p. 99. É bem sabido que o poder absoluto fez uso das cartas régias e de medidas de prisão arbitrárias; é menos sabido qual a consciência jurídica que poderia animar essas práticas. A partir de Pinel, Tuke, Wagnitz, sabe-se que os loucos, durante um século e meio, foram postos sob o regime desse internamento, e que um dia serão descobertos nas salas do Hospital Geral, nas celas das “casas de força”; percebe-se também que estavam misturados com a população das Workhouses ou Zuchtäusern.70 Para FOUCAULT, o Hospital Geral “não se assemelha a nenhuma ideia médica. É uma instância da ordem, da ordem monárquica e burguesa que se organiza na França nessa mesma época”.71 Essas novas casas de internamento, muitas das vezes estabelecidas nos antigos leprosários, desempenhavam um papel ao mesmo tempo de assistência e de repressão, esses hospícios destinavam-se a socorrer os pobres, mas comportam quase todas as células de detenção e casernas nas quais se encerram pensionários pelos quais o rei ou a família pagam uma pensão.72 Ressalte-se que nessas instituições, nesses grandes hospícios, não raras as vezes viamse serem misturados o privilégio que possuía a Igreja no que tangia à assistência fornecida aos pobres e a preocupação que tinha a burguesia em, na medida do possível, organizar o mundo miserável. O mesmo implexo podia ser observado quanto ao desejo de ajudar e a necessidade de reprimir; o dever de caridade e a vontade de punir; toda uma prática equívoca cujo sentido é necessário isolar, sentido simbolizado sem dúvida por esses leprosários, vazios desde a Renascença mas repentinamente reativados no século XVII e que foram armados com obscuros poderes.73 Durante muito tempo, ainda, as casas de correção serviram como locais de depósitos de desempregados e vagabundos, dada a crise econômica que assolou o mundo ocidental durante o século XVII, crescendo cada vez mais a pobreza, apesar das providências tomadas contra o desemprego, bem como a queda dos salários. Contudo, nos momentos em que crise desaparecia, o internamento passava a adquirir sentido diverso. FOUCAULT, Michel. História…, p. 48. Ibidem, p. 50. 72 Ibidem, p. 52. 73 Ibidem, p. 53. 70 71 Não se trata mais de prender os sem trabalho, mas de dar trabalho aos que foram presos, fazendo-os servir com isso a prosperidade de todos. A alternativa é clara: mãode-obra barata nos tempos de pleno emprego e de altos salários; e em período de desemprego, reabsorção dos ociosos e proteção social contra a agitação e as revoltas. 74 Com a finalidade, portanto, de se impedir o crescimento da mendicância bem como da ociosidade, tidos como fonte de desordens e revoltas, tornou-se imperativo o trabalho entre os internos dessas instituições. O fato de os loucos terem sido envolvidos na grande proscrição da ociosidade não é indiferente. Desde o começo eles terão seu lugar ao lado dos pobres, bons ou maus, e dos ociosos, voluntários ou não (...). Nos ateliês em que eram confundidos com os outros, distinguiram-se por si sós através de sua incapacidade para o trabalho e incapacidade de seguir os ritmos da vida coletiva. A necessidade de conferir aos alienados um regime especial, descoberta no século XVIII, e a grande crise da internação que precede de pouco à Revolução estão ligadas à experiência da loucura que se pôde ter como a obrigação geral do trabalho.75 Destaque-se que foi no final do século XVIII em que foram feitas e analisadas várias experiências com a loucura a partir de uma perspectiva médica. “Le fou est celui chez qui la délimitation, le jeu, la hiérarchie du volontaire et de l’involontaire se trouve pertubée”.76 Como pode se observar, o século XVII foi marcado pela criação institucional da internação, cuja amplitude não se permite ser comparada com a prisão medieval, possuindo um valor de invenção, eis que medida econômica e precaução social. Mas na história do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento a que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade. As novas significações atribuídas à pobreza, a importância dada à obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados determinam a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o sentido.77 Foi no século XIX que a figura da loucura ganhou um novo panorama. Philippe Pinel (1745 – 1826), renomado médico francês, após tomar ciência do fim trágico que seu amigo tivera, o qual, em meio a um estado de loucura, adentrara uma floresta e lá fora atacado por lobos selvagens, passou a se interessar pelo mundo da doença mental. FÜHRER descreve que 74 Ibidem, p. 67. Ibidem, p. 73. 76 FOUCAULT, Michel. Les..., p. 100. 77 FOUCAULT, Michel. História…, p. 78. 75 em meio à tragédia, acabou percebendo que o louco também era um ser humano e assim deveria ser tratado. Providenciou a libertação dos doentes mentais que estavam encarcerados, encontrado alguns que estavam acorrentados havia décadas. Colocou fim aos espancamentos e aos tratamentos violentos e cruéis, como as sessões de tortura e os vomitórios aplicados compulsoriamente.78 Pinel promoveu um grande avanço no estudo das doenças mentais durante o século XIX, colocando fim à superstição bem como ao exorcismo, haja vista que até então, torturas e maus tratos consistiam nas únicas formas de terapia, por se imaginar que eram os loucos seres possuídos por malignas entidades sobrenaturais. O médico francês deu um passo significativo para a evolução da compreensão do que realmente consistia a doença. “Pouco a pouco, evoluímos para o conceito de saúde mental atual, com a abordagem psicossocial da doença e com a tendência de manter o doente, sempre que possível, no seu próprio meio, via controle ambulatorial ou em ‘internação aberta’”.79 Como grande revolucionário do estudo das doenças mentais, Pinel atraiu diversos seguidores, os quais deram continuidade à sua tradição. “Embora reconhecessem a importância central das “paixões” – a maior preocupação dos psiquiatras românticos alemães – seu principal efeito sobre a história do desenvolvimento psiquiátrico reside em sua precisa execução clínica da reforma hospitalar”.80 Contudo, há de observar que, muito embora Pinel houvesse revolucionado a medicina manicomial, o tratamento disponibilizado aos internos ainda consistia em práticas torturantes. Ferrus, um dos discípulos de Pinel, como havia se tornado diretor do Bicêtre em 1826, e também estudava cuidadosamente seus pacientes, tentou implantar seus princípios. Nessa perspectiva, pacientes capazes de trabalhar cuidavam de animais ou participavam de várias oficinas. Embora criminosos e insanos ainda fossem freqüentemente alojados nas mesmas instalações, Ferrus procurou melhorar também o cuidado dos internos criminosos, assegurando-se de que não escapariam, mas exigindo que as autoridades lhes dessem um trabalho significativo para fazer. A despeito das reformas de Pinel, a política de não restrição era freqüentemente violada: muitos pacientes ainda eram acorrentados às paredes, uma prática que Ferrus tentava abolir.81 78 FÜHRER, Maximiliano Roberto Ernesto. Op. cit., p. 34. Idem. 80 STONE, Michael. Op. cit., p. 190. 81 Ibidem, p. 100. 79 Notório, portanto, que no decorrer de toda a história, as formas de tratamento dispensadas ao doente mental estiveram sempre em constante transformação. Atualmente, tem-se percebido o crescimento da contribuição das ciências humanas a fim de entender a loucura como fazendo parte de uma categoria social, em seus mais variados sentidos, de acordo com o contexto cultural e histórico em que se encontra inserida. Trata-se, pois, de uma especial tendência em considerar a institucionalização dos manicômios, assim como a exclusão do doente do convívio social, como sendo práticas históricas apenas, não sendo mais viável considerá-los como formas de tratamento disponibilizadas ao portador de doença mental. 4.2 A REFORMA PSIQUIÁTRICA COMO MODELO HUMANIZADOR DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE MENTAL Como ora demonstrado, os portadores de alguma enfermidade mental, ao longo de todo o desenvolvimento histórico, sempre sofreram e foram obrigados a conviver com alguma espécie de segregação promovida pelos demais entes da sociedade em que se encontravam inseridos. De forma a confirmar mencionada exclusão, a existência da instituição psiquiátrica contribuiu expressivamente para a retirada do direito à existência pública daquele que nela se achava aprisionado. Durante os longos anos de clausura, por estarem reduzidos ao anonimato tanto quanto à miséria, esses indivíduos acabaram privados de tudo de bom que a humanidade, através de sua evolução permanente, foi capaz de produzir. Privados ficaram também de aderirem às lutas pela construção por um mundo melhor para todos, especialmente, para eles próprios82. Rosani GAMBATTO e André Luiz Picolli da SILVA lembram que os pacientes internados em hospitais psiquiátricos eram submetidos a internações fechadas, em instituições que se caracterizavam como verdadeiros depósitos humanos. Os pacientes eram ‘despejados’ de sua identidade e os tratamentos massificados se limitavam a altas doses de medicamentos que visavam fundamentalmente a ‘fazer calar’ os sintomas. Essa situação fez com que esse modelo de entendimento e tratamento do transtorno mental fosse transferido para fora do hospital psiquiátrico e o tratamento dos indivíduos portadores desses transtornos limitado quase que exclusivamente à farmacoterapia.83 82 GAMBATTO, Rosani; SILVA, André Luiz Picolli da. Reforma psiquiátrica e a reinserção do portador de transtorno mental da família. Psicologia argumento, Curitiba, v. 24, n. 45, p. 23-33, abr./jun. 2006. p. 29. 83 Idem. Objetivando mudar essa realidade, no final dos anos 70, o psiquiatra italiano Franco Basaglia trouxe para o Brasil a ideia de um movimento a favor da humanização do tratamento psiquiátrico. Destarte, após uma revolução realizada em Gorizia, na Itália, o psiquiatra tornouse o mentor também do movimento de Reforma Psiquiátrica Brasileira. O movimento questionava o modelo de assistência, além de apontar fortes críticas às legislações inapropriadas, referente aos direitos humanos e à cidadania dos pacientes psiquiátricos.84 Foi, portanto, no dia 18 de maio de 1987 que se iniciou o Movimento da Luta Antimanicomial. A proposta abordada pelo movimento consistia na abolição dos tratamentos realizados aos pacientes psiquiátricos nos manicômios85, passando a serem substituídos por procedimentos terapêuticos capazes de proporcionar um cuidado em liberdade, de forma a recuperar a cidadania do portador de doença mental. A Luta Antimanicomial foi essencial para o nascimento de uma nova perspectiva86 acerca dos enfermos mentais, os quais, por meio de uma abordagem terapêutica – projetos terapêuticos individuais e/ou grupais –, passam a ser vistos e respeitados em suas diferenças e singularidades, com a preservação de seus vínculos sociais e familiares. O Movimento Antimanicomial tem por objeto a extinção das instituições manicomiais, como forma de combate à exclusão dos indivíduos que nelas passaram algum tempo de suas vidas, bem como daqueles que sofrem de algum transtorno mental. Amanda Márcia dos Santos REINALDO e Margarita Antonia Villar LUIS vislumbram que traçar as origens de um movimento social como foi o Movimento da Reforma, não é uma tarefa fácil. Os doentes mentais, assim como os grupos e comunidades que compartilham uma situação de desvantagem, desigualdade social, opressão ou discriminação sistemática, têm nos princípios universalistas, como a defesa da liberdade, da igualdade, dos direitos do homem, da justiça, da solidariedade, temas que estabelecem um nexo direto entre o ator social e o programa político.87 Destaque-se que o modelo que ainda predomina no Brasil, no que tange à assistência psiquiátrica, tem por base a legislação de 1934, a qual propõe a hospitalização e o asilamento do doente mental, cuja preocupação destina-se a assegurar a ordem e a moral públicas. 84 LUIS, Margarita Antonia Villar; REINALDO, Amanda Márcia dos Santos. Reforma psiquiátrica, reabilitação psicossocial, psiquiatria comunitária: alguns aspectos da literatura. Enfermagem Brasil, Diamantina, v. 4, n. 6, p. 356-361, Nov./dez. 2005. p. 358. 85 GAMBATTO, Rosani; SILVA, André Luiz Picolli da. Op. cit., p. 29. 86 Idem. 87 LUIS, Margarita Antonia Villar; REINALDO, Amanda Márcia dos Santos. Op. cit., p. 358. Entretanto, muito embora este modelo ainda seja predominante, a comunidade científica voltada para a área da Saúde o vem considerando ultrapassado, falido em si mesmo. “Um novo modelo é edificado a partir da contribuição de vários segmentos da sociedade e implica a desconstrução literal do modelo psiquiátrico”.88 A Lei Antimanicomial (também denominada de Paulo Delgado ou ainda, Lei da Reforma Psiquiátrica), sancionada em 2001, surgiu a fim de promover a proteção dos portadores de transtornos mentais, redirecionando o modelo assistencial em saúde mental. Muito embora seu objetivo principal consistisse na regulamentação da internação psiquiátrica compulsória e a propositura da substituição dos manicômios por outras espécies de tratamento, tais como hospital-dia, ambulatórios, centros de atenção psicossocial, lares protegidos e leitos psiquiátricos em hospitais gerais, a Lei 10.216/01 recebeu diversas sanções que acabaram por descaracterizar, de certa forma, o texto original.89 Ulysses Rodrigues de CASTRO aclara que a Reforma Psiquiátrica no Brasil surgiu para mudar os modelos de gestão e atenção nas práticas de saúde, a defesa da saúde coletiva, a equidade na oferta dos serviços, assim como a participação dos trabalhadores e usuários no serviço de saúde nos processos de gestão e produção de tecnologia de cuidado.90 O autor conclui, defendendo que “a reforma psiquiátrica brasileira então é entendida como um conjunto de transformações de práticas, saberes e valores sociais e culturais, isto é, o processo da reforma psiquiátrica que se dá no cotidiano da vida das instituições, dos serviços e relações interpessoais marcados por impasses, tensões, conflitos e desafios”.91 Trata-se a reforma psiquiátrica no Brasil em um movimento que provoca diferentes entendimentos por parte dos profissionais e da sociedade. Para GAMBATTO e SILVA, ao propor a inserção dos ditos loucos no território da sociedade geral, os saberes psi abrem mão do poder do controle, historicamente a eles delegado, de gestão da vida do louco ou do controle dos distúrbios de uma população. Abrem mão do status de mantenedores da ordem pública, abdicando da condição de instrumentos de promoção da segurança pública. O território deixa de ser um lugar distante, estático, inacessível ou mesmo para delimitação geográfica, para ser visto e considerado como e espaço da vida em suas possibilidades, saídas e desafios.92 88 GAMBATTO, Rosani; SILVA, André Luiz Picolli da. Op. cit., p. 29. LUIS, Margarita Antonia Villar; REINALDO, Amanda Márcia dos Santos. Op. cit., p. 358. 90 CASTRO, Ulysses Rodrigues de. Reforma psiquiátrica e o louco infrator: novas ideias, velhas práticas. Brasília: Hinterlândia, 2009. p. 72-73. 91 Ibidem, p. 73. 92 GAMBATTO, Rosani; SILVA, André Luiz Picolli da. Op. cit., p.30. 89 Nos últimos anos, o Brasil começou a presenciar um movimento consistente na territorialização da Saúde Mental, com metas antimanicomiais definidas, com novos serviços que objetivam o desenvolvimento de formas de tratamento mais humanizadas, de modo que se respeite a individualidade dos pacientes, as suas histórias, bem como as crenças e valores que carregam consigo. Sobre o significado que ganha a saúde mental, REINALDO e LUIZ investem o que se segue: Saúde mental passa a significar, nos programas do Ministério da Saúde e das Secretarias de Saúde, atenção aos egressos de hospitais psiquiátricos, num primeiro momento, e combate aos mecanismos de exclusão social dos pacientes psiquiátricos posteriormente. Uma política é implantada, elegendo prioridades e sustentando, no campo da Saúde Mental, uma posição sobre onde investir o dinheiro público em tratamentos psiquiátricos.93 Dessa forma, tem-se que o Movimento de Luta Antimanicomial surge a fim de resgatar o doente mental para o convívio social. Através de parâmetros políticos, jurídicos e sociais, faz nascer nas relações do portador de enfermidade mental a esperança e o desejo de cidadania perante os demais membros da sociedade, ao mesmo tempo que no mundo do direito. 4.3 A REFORMA PSIQUIÁTRICA NO CONTEXTO DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA Conforme preceitua o artigo 97 do Código Penal, no caso de o agente ser inimputável, o juiz deve encaminhá-lo à internação. Contudo, se o fato previsto como crime tiver como punição a detenção, o juiz pode submeter o agente inimputável a tratamento ambulatorial. Diante disto, observa-se que referido artigo obriga a internação do inimputável toda vez que este praticar fato típico e antijurídico, cuja pena em abstrato corresponde à reclusão. Entretanto, mencionada obrigatoriedade não parece possuir razão de ser, sendo notoriamente injusta, vez que força a uma padronização da aplicação da sanção penal 94, não solucionando o drama de inúmeros doentes mentais, os quais poderiam ter suas internações evitadas. O alicerce das medidas de segurança diz respeito à periculosidade do autor do fato criminoso. Isto quer dizer que a medida de segurança se preocupa com a probabilidade que 93 94 LUIS, Margarita Antonia Villar; REINALDO, Amanda Márcia dos Santos. Op. cit., p. 358. NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 579 tem esse indivíduo de voltar a delinquir futuramente. Por essa razão, devem estar baseadas na periculosidade do agente, a qual deve ser aferida mediante laudos periciais devidamente fundamentados, conforme artigo 93 da Constituição Federal, e não à gravidade dos delitos por ele praticados. Deste modo, a periculosidade do agente, a qual se constitui como fundamento da aplicação das medidas de segurança, tem-se que é prevista pelo CP em dois casos: a. Periculosidade quando o sujeito for inimputável nos termos do CP, art. 26 caput,. b. Periculosidade quando o agente for semiresponsável (CP, art. 26, parágrafo único), mas necessitar de especial tratamento médico psiquiátrico. Evidentemente que, em ambos os casos, a perigosidade haverá de ser real (devidamente fundamentada em laudo pericial), não se admitindo a sua presunção, em face do princípio favor libertatis e do reconhecimento da dignidade do ser humano, que fundamentam todo Estado Democrático de Direito95. (grifos do autor) PRADO defende um Direito Penal organizado em um sistema de medidas de segurança “desvinculado e independente da culpabilidade e não limitado pelas exigências do princípio de culpabilidade”96, haja vista que pode ser de pouca gravidade o fato criminoso praticado, ao passo que a probabilidade de práticas futuras de delitos seja grande. NUCCI exemplifica, trazendo o caso hipotético de um inimputável que comete uma tentativa de homicídio, acarretando lesões leves na vítima. O autor defende que não existe qualquer razão de internamento desse inimputável, sempre que possuir uma família que o abrigue e o ampare, de modo a dispor de todo o suporte necessário para a sua recuperação.97 O autor, ainda, enuncia a discordância existente entre os especialistas da área da psiquiatria forense no concernente ao critério adotado pelo artigo 97 do Código Penal, o qual baseia a aplicação da medida de segurança conforme o crime praticado. Defende, ao contrário, que a fixação de medida de internação ou de tratamento ambulatorial deve estar baseada na natureza e gravidade de transtorno psiquiátrico segundo critérios médicos.98 Assim, a internação não pode ser vista como regra geral, devendo ser aplicada apenas quando o agente imputável ou semi-imputável necessitar de especial tratamento curativo, quando impossível a fixação de medida de tratamento. 95 DELMANTO, Celso [et al]. Op. cit., p. 272. PRADO, Luiz Regis. Op. cit., p. 791. 97 NUCCI, Guilherme de Souza. Op. cit., p. 579. 98 Idem. 96 ZAFFARONI e PIERANGELI, acerca da natureza das medidas de segurança, esboçam que não se pode considerar “penal” um tratamento médico e nem mesmo a custódia psiquiátrica. Sua natureza nada tem a ver com a pena, que desta diferencia por seus objetivos e meios. Mas as leis penais impõem um controle formalmente penal, e limitam as possibilidades de liberdade da pessoa, impondo o seu cumprimento, nas condições previamente fixadas que elas estabelecem, e cuja execução deve ser submetida aos juízes penais.99 (grifo do autor) Os autores refletem que, ficando a liberdade dos doentes mentais ao arbítrio dos peritos e dos juízes, essas pessoas acabam por sofrer maiores privações de direitos em relação àquelas submetidas às penas. Como se isso já não bastasse, encontram-se ainda mais comprometidas as garantias individuais, diante da rara atenção dispensada às medidas de segurança. Concluem, por fim, que “a própria lei penal dedica poucas disposições acerca das medidas de segurança, algumas das quais devem ser preenchidas mediante regras interpretativas complementares”.100 Embora as medidas de segurança possuam como objetivo o reingresso do doente mental infrator à sociedade, constituindo-se em uma forma de proteção à sociedade e como método de tentativa de cura, parece que o sistema não possui condições de fazê-lo, de forma que, no caso concreto, isso acaba não ocorrendo. Afim, portanto, de regulamentar essa situação, surgiu a Lei Federal n° 10.216 de 06 de abril de 2001, a qual dispõe acerca da proteção e dos direitos dos portadores de transtornos mentais, de modo a redirecionar o modelo assistencial em saúde mental, alcançando a hipótese da internação determinada pela justiça. Nesse sentido, Paulo Vasconcelos JACOBINA destaca que a lei não excepciona do seu texto os portadores de transtornos que tenham cometido crime, de modo que também esses são atingidos por ela. Não há motivos para excluílos da aplicação desse diploma, sem promover uma discriminação que não tem o menor suporte na Constituição Federal. Ao contrário, seu art. 1º determina que os direitos ali assegurados aos portadores de transtornos mentais devem ser garantidos sem qualquer forma de discriminação, incluída a discriminação pelo fato da passagem 99 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Op. cit., p.809. Ibidem, p.810. 100 ao ato, vale dizer, do cometimento de fato previsto na lei como crime.101 (grifos do autor) Quer dizer isso que, referido diploma legal trouxe um novo modelo de assistência à saúde mental, destinado a todos os indivíduos portadores de alguma espécie de transtorno mental, incluídos aqueles a quem, por haverem praticado fato previsto como crime, a justiça determina a internação. As diretrizes e as orientações do SUS, bem como os princípios específicos abordados pele Lei Antimanicomial, são de aplicação integral e imediata aos manicômios judiciários, locais em que se acham os loucos infratores, assim como à relação entre o mundo jurídico e eles próprios.102 Muito embora a Lei em comento não tenha expressamente determinado a revogação de disposições em contrário, tem-se discutido sobre a derrogação da Lei de Execução Penal no trato das medidas de segurança, tendo em vista aplicar-se aos pacientes cometedores ou não de fatos tidos como crimes. As discussões travadas durante o Seminário Nacional para Reorientação dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, diante das noções de que a aplicação da medida de segurança fere os princípios constitucionais da reserva legal e da proporcionalidade da pena, apontaram para a necessidade de formulação de novos paradigmas jurídicos, além de novos paradigmas assistenciais no cuidado ao louco infrator. A Comissão Técnica constituída pelo Seminário para propor mudanças na Lei de Execuções Penais (LEP) certamente não será o único fórum dedicado a essa questão.103 Dentre as principais questões trazidas pela mencionada Lei, ganham destaque as seguintes: Garantia de acesso ao melhor tratamento disponível; garantia de tratamento humanizado, respeitoso, livre de abusos e realizado por meios menos invasivos; foco na recuperação, reinserção na família, na comunidade e inserção na esfera do trabalho; garantia de privacidade e sigilo sobre os casos; garantia de atendimento interdisciplinar; garantia de acesso aos meios de comunicação, garantia de acesso à 101 JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Direito penal da loucura e reforma psiquiátrica. Brasília: ESMPU, 2008. p.104. 102 Ibidem, p.106. 103 BRASIL. Ministério da Saúde. Ministério da Justiça. Reforma psiquiátrica: relatório final do seminário nacional para a reorientação dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. Brasília: Ministério da saúde, 2002. p. 27-28. informação sobre a doença e o tratamento; garantia de que o tratamento seja feito preferencialmente em serviços comunitários.104 Além das questões supramencionadas, maior ênfase dá-se ao fato de que a lei recomenda que a internação somente deve ocorrer no caso em que os recursos extrahospitalares não forem suficientes. Lembre-se que para que alguém sofra alguma espécie de sanção penal, faz-se necessário que seja considerado culpado por sentença penal condenatória transitada em julgado, conforme aponta o inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal. JACOBINA, a respeito da aplicação das medidas de segurança, traz à barca alguns questionamentos. Vislumbra que não há como encontrar alguma espécie de culpabilidade naquele que é legalmente irresponsável. Além do mais, não há como efetivamente garantir um devido processo legal àquele que sequer consegue compreender seus termos, ou então, garantir o princípio da pessoalidade da pena se o enfermo mental deve ser absolvido e, em seguida, apenado. Assim, como ninguém pode ser considerado culpado até sentença condenatória transitada em julgado, pena alguma deve ser aplicada àquele que tenha sido absolvido. O fato é que, compelir alguém a uma internação manicomial sem prazo definido e independentemente de sua vontade consiste em um sancionamento penal, ainda que sob a denominação de sanção terapêutica. Como explanado anteriormente, a pedra angular da medida de segurança é a periculosidade do agente e não a sua culpa. Deste modo, “ou a medida de segurança, como medida ou restritiva de liberdade individual, tem seu fundamento em outro mandamento constitucional, ou é simplesmente inconstitucional, pois nenhum mandamento constitucional autoriza a aplicação de restrição ou privação de liberdade sem sentença penal condenatória transitada em julgado – o que não existe, no caso da medida de segurança”.105 No que tange ao princípio constitucional do devido processo legal, previsto no artigo 5º, LIV, da Constituição Federal, tem-se a garantia de que nenhum cidadão será processado sem a observância dos referidos ditames processuais. Faz-se necessário que o réu tenha conhecimento ou, ao menos, seja possibilitado plenamente de tomar conhecimento das razões 104 105 CASTRO, Ulysses Rodrigues de. Op. cit., p.90. JACOBINA, Paulo Vasconcelos. Op. cit., p.126. pelas quais se está sendo processado, bem como as conseqüências que poderão advir do não exercício de seu ônus de defesa etc.106 JACOBINA destaca que impedido de entender, efetivamente, qual o teor da acusação, de produzir prova efetiva contra a acusação, de compreender as consequências do seu silêncio ou mesmo o objetivo e o sentido do processo ao qual responde, como se admitir, portanto, que ele seja considerado inimputável pelo respectivo incidente de insanidade e possa contra ele transitar um processo penal? O acompanhamento por curador é apenas uma ficção: não é o curador quem será sancionado posteriormente. Constatada, portanto, a presença de transtorno mental incapacitante, deveria o réu imediatamente ser declarado como processualmente incapaz – em respeito ao devido processo legal – para fins processuais penais.107 (grifos do autor) Diante disto, depreende-se que o princípio do devido processo legal não é observado quando tramita um processo contra um réu impossibilitado de tomar qualquer conhecimento acerca da ação, bem como dos motivos pelos quais está sendo processado, dentre outros. A fim de melhorar essa realidade, desde os movimentos antimanicomiais, vem ocorrendo Conferências Nacionais de Saúde Mental, as quais trazem propostas para a problemática existente com relação ao louco infrator, em que se discutem mudanças e transformações nos atendimentos direcionados à saúde mental. CASTRO tece comentários acerca da III Conferência Nacional de Saúde Mental, ocorrida em Brasília, em 2002. Destaca como sendo o objetivo principal de tais discussões a garantia dos direitos dos doentes mentais infratores no que se refere à sua responsabilização, bem como à sua reinserção no meio social e ao atendimento que deve estar lastreado pelos princípios do SUS. Ressalta que as discussões sugerem, dentre outros a criação, dentro das Varas Criminais, de programas de assistência aos pacientes internos para que facilite sua reinserção na família e na comunidade, incluindo acesso ao lazer, à vida sexual, além de saídas periódicas planejadas; propõe que o Ministério Público se articule com os Ministérios Públicos Estaduais, por meio de convênios, com o intuito de facilitar o processo de curatela; aponta também o questionamento quanto ao tratamento jurisdicional ao doente mental, sendo condenadas as reclusões em quaisquer ambientes, a fim de garantir seus direitos, além de discutir o conceito de inimputabilidade.108 106 Ibidem, p.127. Ibidem, p.128. 108 CASTRO, Ulysses Rodrigues de. Op. cit., p.93. 107 No mesmo sentido, destaca que a Carta de Brasília, a qual foi composta na X Conferência Nacional de Direitos Humanos no ano de 2006, menciona que os indivíduos enfermos mentais que cometeram delitos e foram considerados inimputáveis, devem possuir mesmo tratamento dispensado na reforma psiquiátrica, isto é, em hospitais gerais e serviços substitutivos. Nesse contexto, visando modificar a triste realidade e o destino do louco infrator, os Estados de Minas Gerais e Goiás criaram, respectivamente, programas de ressocialização, o Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental Infrator (PAI-PJ) e o Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAI-LI). O PAI-PJ foi implantado em março de 2000 e trata-se de uma parceria entre o Tribunal de Justiça de Minas Gerais e o Centro Universitário Newton Paiva. O foco do programa destina-se a assistir aos infratores suspeitos de portarem insanidade mental ou que já estejam em cumprimento das medidas de segurança. CASTRO define que “a equipe do PAI-PJ tanto auxilia os juízes a definir as medidas a serem adotadas como acompanha os pacientes visando sua inserção social”.109 O autor acrescenta que diferentemente do manicômio ou do presídio – incentivadores e multiplicadores da violência contra o próximo e contra si, ao propor com seus muros a ruptura dos laços de convivência – , o PAI-PJ aposta que cada um pode construir um projeto de vida com entrada na rede social. Desde que esse paciente tenha acesso aos recursos para projetá-lo na cidade, produzindo uma redução da violência como resposta à emergência da falha em qualquer variação de estrutura psíquica. Parece ser esse o caminho para a reconstrução do lugar que o indivíduo ocupa na relação consigo e com os outros, para a retomada da cidadania, transformando seu sintoma numa forma de laço social.110 Com conotação semelhante, o PAI-LI, criado em 2006, possui como propósito a promoção de atenção integral à saúde dos enfermos mentais submetidos à medida de segurança e àqueles que manifestarem sofrimento mental no transcurso da execução penal em Goiás.111 Dentre outros objetivos do PAI-LI, destacam-se a produção de relatórios “para a justiça, sugerindo Projeto Terapêutico adequado à singularidade do caso, definindo a 109 Ibidem, p.95. Ibidem, p.97. 111 Ibidem, p.98. 110 instituição onde a pessoa será acompanhada e outros procedimentos terapêuticos”; o acompanhamento do “tratamento do infrator em cumprimento de medida de segurança”, de forma a informar a autoridade judicial quanto à sua evolução com o tratamento; o acompanhamento de processos judiciais a fim de auxiliar as autoridades judiciais na verificação de cessação de periculosidade; a garantia de “acesso ao tratamento na rede pública de saúde, possibilitando ao paciente recursos que garantam sua circulação pelo espaço social”; o estabelecimento de parcerias “com instituições afins, buscando a acessibilidade, a cidadania e a inserção social do louco infrator”.112 Tem-se, portanto, que a determinação da aplicação das medidas de segurança dentro desses programas de ressocialização continua nas mãos do magistrado. Contudo, há de se observar que a determinação do tratamento mais eficaz dispensado a cada paciente deve ser estabelecida pelo médico habilitado a fazê-la. 5 CONCLUSÃO Diante de todo o exposto, constata-se que durante todo o desenvolvimento histórico da humanidade, os portadores de transtornos mentais sempre sofreram alguma forma de segregação, sendo excluídos pelos demais membros da sociedade considerados “normais”. A existência da instituição psiquiátrica só serviu para contribuir ainda mais para a mencionada exclusão, eis que grande colaboradora da retirada do direito à existência pública de seus internados. A Lei 10.216/2001 surgiu com a finalidade de tratar sobre a proteção e os direitos inerentes a estes indivíduos, de modo a lhes proporcionar uma outra direção ao modelo assistencial de saúde mental, inclusive àqueles a quem, por haverem praticado fato previsto como crime, a justiça determina a internação – caso das medidas de segurança. Observa-se, no presente estudo que, apesar de as medidas de segurança visarem ao reingresso do doente mental infrator à sociedade, constituindo-se em uma forma de proteção à sociedade e como método de tentativa de cura, parece não possuir o sistema condições de fazê-lo. Por conseguinte, no caso concreto, isso acaba por não ocorrer. Sabe-se que o modelo de assistência psiquiátrica ainda predominante no Brasil consiste no embasamento hospitalar e asilamento do doente mental. Contudo, tem-se 112 Ibidem, p.98-99. demandado, cada vez mais, uma necessidade de mudança desse paradigma, vez que o doente mental deve ser tratado, acima de tudo, como ser humano. Para tanto, faz-se imperativo que na prática haja um progressivo movimento de mudança e transformação, atingindo os profissionais da saúde, os quais ficam incumbidos de transmitir o conceito inovador para o próprio paciente e sua família, estendendo-se, assim, para o restante da população. Como bem salienta GAMBATTO, “é preciso coragem, competência e audácia, é preciso uma mudança não só nos sistemas de saúde, mas, e principalmente, nos conceitos, mentalidades e ações da sociedade, para que sejam capazes de realmente proporcionar a inserção do portador de transtorno mental, o que até agora somente tem se configurado como um idealismo ou uma utopia”.113 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVIM, Rui Carlos Machado. Uma pequena história das medidas de segurança. São Paulo: IBCCrim, 1997. BRASIL. Constituição de República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 25 set. 2012. BRASIL. Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 20 ago. 2012. BRASIL. Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a lei de execução penal. Diário Oficial de União, Brasília, DF, 13 jul. 1984. 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