O combate à pobreza Do Programa Bolsa Família ao Brasil Sem

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Universidade Estadual de Campinas
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Maria de Fátima Pereira
O combate à pobreza
Do Programa Bolsa Família ao Brasil Sem Miséria: a pobreza institucionalizada
na prática de técnicos e gestores públicos
CAMPINAS
2016
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Doutorado composta pelos
Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 21 de
Março de 2016, considerou a candidata MARIA DE FÁTIMA PEREIRA aprovada.
Prof. Dr. Valeriano Mendes Ferreira Costa – IFCH/Ciências Políticas – UNICAMP –
Orientador.
Prof. Dr. Wagner de Melo Romão – IFCH/Ciências Políticas – UNICAMP
Profa. Dra. Luciana Ferreira Tatagiba – IFCH/Ciências Políticas – UNICAMP
Profa. Dra. Carolina Raquel Duarte de Mello Justo – Universidade Federal de São
Carlos – UFSCAR
Profa. Dra. Milene Peixoto Ávila – Universidade Estadual de Santa Cruz-Ilhéus-BA
A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no
processo de vida acadêmica da aluna.
Dedico esta tese aos meus irmãos e aos meus
pais, Maria Grigório Lima e João Pereira Lima,
pela vida, pelo amor, pela dignidade, por tudo
que são e ensinam a mim e ao mundo.
Agradecimentos
À expressão maior de amor e do bem nesta existência, Deus.
Agradeço a força e a serenidade de sempre me reinventar.
Amor maior que se reflete na capacidade de sermos humanos diante do outro.
A todos os meus amigos e amigas que me ensinam tanto em cada gesto.
Ao meu orientador, Valeriano Costa, que me marcou por sua imensa sabedoria e tamanha
simplicidade, qualidades tão raras de andarem juntas.
À Luciana Jaccoud, pelo acolhimento quando precisava de orientação e estímulo.
Ao meu amigo professor, Dr. João Batista, que de maneira tão delicada participou de minha banca,
mesmo que de maneira indireta.
A todos os amigos que fiz enquanto morei em Campinas, uma das melhores fases.
Ao CNPq, por me proporcionar a dedicação ao doutorado.
À Unicamp, por tudo.
Ao Marcos Costa, por tudo: pelo amor e pelo carinho tão recíproco em mim.
Ao Rogério Oliveira, um presente maior de amor em tudo!
À minha família, meu orgulho e exemplo de dignidade.
Resumo
O debate sobre a pobreza e a intervenção estatal mediado pelo discurso de “combate
à pobreza”, configura-se em um tema central na agenda política, econômica e social
no Brasil. A discussão se consolida com a experiência do programa de transferência
de renda condicionada, Bolsa Família, implantado há mais de 13 anos. O objetivo
desta tese foi, por meio da discussão dos processos de institucionalização do
combate à pobreza, descentralizar o foco dos usuários do Programa Bolsa Família
(PBF) para um estudo que priorizasse uma pesquisa com os Street-level bureaucracts
(LIPSKY, 2010) ou os técnicos burocratas de nível de rua do PBF, mais conhecidos
no senso comum institucional como “técnicos que trabalham na ponta”. Trata-se de
atores estratégicos responsáveis pela inferência direta na gestão, execução e
atendimento aos considerados “pobres” nos municípios brasileiros. O olhar analítico
da pesquisa buscou compreender como tais sujeitos, com base na racionalização de
sua prática profissional, constroem suas percepções sobre o PBF, a pobreza e sobre
o “pobre”. Com isso pretendeu-se investigar se a operacionalização cotidiana desses
sujeitos é medida por valorações, julgamentos morais e sociais geradores de
desqualificação social (PAUGAM, 2003) dos usuários atendidos. O recorte da
pesquisa priorizou em sua metodologia trabalhar com entrevistas de roteiro
semiestruturado com representação de técnicos e gestores de todas as regiões
brasileiras, de forma que pudéssemos realizar uma análise comparativa dos dados
sobre as diversas percepções encontradas. Fez parte do campo da pesquisa, a
observação participante em reuniões, conselhos e capacitações voltados aos técnicos
burocratas de nível rua realizados pelo Governo Federal em Brasília durante os anos
de 2013 a 2015. A contribuição dos resultados neste texto final busca
instrumentalizar, sob a ótica das Ciências Sociais, o debate sobre as políticas
públicas de combate à pobreza e reflete a importância de uma abordagem qualitativa
nessa esfera. Afasta-se, assim, de uma análise puramente avaliativa das políticas
públicas e adentra nas interações sociais que ocorrem nos diversos campos das
ações de combate à pobreza. O resultado ratifica o desafio encontrado nas
ressignificações da pobreza, que emergem da relação estabelecida entre os técnicos
burocratas de nível de rua versus pobres a partir de seus espaços de convergência e
divergência. Nessa dinâmica, estão as estruturas normativas do Estado, por meio do
PBF, que permeiam a construção e desconstrução de perspectivas e conceitos sobre
os pobres.
Palavras-chave: Institucionalização da Pobreza. Pobre. Programa Bolsa Família.
Técnicos Burocratas de Nível de Rua.
Abstract
The debate on poverty and state intervention, mediated by the "poverty combat"
discourse is a central theme in the political, economic and social agenda in Brazil. The
discussion is strengthened by the experience of the conditional cash transfer program,
Bolsa Família, established for more than 13 years. The purpouse of this thesis was to
take focus away from BFP users, so that such a study would target specific research
with street-level bureaucracts (LIPSKY, 2010) or the street-level technical
bureaucracts, better known in institutional common sense as "technicians working on
the end", while debating the fight against poverty institutionalization processes. These
are strategic actors responsible for the direct inference in management, execution and
service to those considered "poor" in Brazilian municipalities. The analytical research
prospect sought to understand how these subjects, based on the rationalization of
their professional practice, build their perceptions of the BFP, poverty and the "poor".
Given this premise, the focal point was to investigate whether the daily operation of
these individuals is measured by valuations, moral and social judgments generators of
social disqualification (PAUGAM, 2003) of the enroled population. The research
methodology approach focused on semi-structured interviews with representatives of
technicians and managers from all regions of Brazil, in order to carry out a
comparative analysis of data on the many diverse perceptions encountered throughout
the process. The research field combined participant observation in meetings and
councils, as well as training focused on street-level technichal bureaucrats conducted
by the federal government in Brasilia during the years 2013 to 2015. The contribution
of the results on this final text seeks to instrumentalize the debate on public policies to
combat poverty, under the perspective of Social sciences and, therefore, reflect the
importance of a qualitative approach in this sphere. Hence, the concept allows us to
move away from purely evaluative analysis of public policies and enter in social
interactions that occur in the various fields of anti-poverty actions. The result confirms
the challenge found in poverty reinterpretations, that emerge from the relationship
established between the street-level technical bureaucrats versus the poor, each from
their areas of convergence and divergence. Within these dynamics, are the regulatory
frameworks of the state, through BFP, which permeate the construction and
deconstruction of concepts and perspectives on the poor.
Keywords: Institutionalization of Poverty. The Poor. Bolsa Família Program. Streetlevel Technical Bureaucrats.
Lista de Siglas
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BV
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CIT
Comissão Intergestores Tripartite
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Consolidação das Leis Trabalhistas
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CONSEA
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CRAF
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FMI
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FSE
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FUNDEF
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e
Valorização do Magistério
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Pobreza
GP
Grande Porte
HIV
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IA
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IGD-E
Gestão Descentralizada Estadual
IGD-M
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Imposto sobre Produtos Industrializados
IPVS
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JK
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Legião Brasileira de Assistência
LI
Linha de Indigência
LOAS
Lei Orgânica de Assistência Social
LP
Linha da Pobreza
MDA
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MDS
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
MEC
Ministério da Educação
MG
Estado de Minas Gerais
MP
Médio Porte
MS
Ministério da Saúde
MTE
Ministério do Trabalho e Emprego
NEPP
Núcleo de Estudos de Políticas Públicas
NIS
Número de Identificação Social
NOB
Norma Operacional Básica
ODM
Objetivos de Desenvolvimento do Milênio
OMC
Organização Mundial do Comércio
OIT
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ONGs
Organizações Não Governamentais
ONU
Organização das Nações Unidas
PA
Estado do Pará
PBF
Programa Bolsa Família
PAC
Plano de Aceleração do Crescimento
PAF
Programa Ação Família
PAIF
Serviço de proteção e Atendimento Integral à Família
PBF
Programa Bolsa Família
PEAFI
Serviço Especializado de Proteção Integral às Famílias
PETI
Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
PGRFMM
Programa de garantia de Renda Familiar Mínima Municipal
PGRM
Programa de Garantia de Renda Mínima
PIB
Produto Interno Bruto
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Política Nacional de Assistência Social
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Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PPA
Plano Plurianual
PPI
Pequeno Porte I
PPII
Pequeno Porte II
PR
Estado do Paraná
PRONAF
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
PRONATEC Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego
PSC
Partido Social Cristão
PSDB
Partido da Social Democracia Brasileira
PSF
Programa Saúde da Família
PT
Partido dos Trabalhadores
PTR
Programas de Transferência de Renda
RENMAS
Rede Nacional de Monitoramento da Assistência Social
RIDE
Região Integrada de Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno
RJ
Estado do Rio de Janeiro
RMI
Renevu Minimum D’Insertion
RN
Estado do Rio Grande do Norte
RPF
Rede Pública de Fiscalização do Programa Bolsa Família
RS
Estado do Rio Grande do Sul
SAGI
Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação
SAS
Secretaria de Atenção à Saúde
SC
Estado de Santa Catarina
SECAD
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
SENAI
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial
SENARC
Secretaria Nacional de Renda de Cidadania
SESAN
Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
SESEP
Secretaria Executiva de Superação da Extrema Pobreza
SESEP
Secretaria Extraordinária para Superação da Extrema Pobreza
SESI
Serviço Social da Indústria
SGB
Sistema de Gestão de Benefícios
SIBEC
Sistema de Benefícios ao Cidadão
SICON
Sistema de Condicionalidades do Programa Bolsa Família
SIGPBF
Sistema de Gestão do Programa Bolsa Família
SISVAN
Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional
SLU
Sistema de Limpeza Urbana
SMADS
Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social
SNAS
Secretaria Nacional de Assistência Social
SP
Estado de São Paulo
SUAS
Sistema Único de Assistência Social
SUS
Sistema Único de Saúde
TCU
Tribunal de Contas da União
TMC
Transferências Monetárias Condicionadas
UBS
Unidade Básica de Saúde
UFSCar
Universidade Federal de São Carlos
UNESCO
Organização das Nações Unidas para a Educação
USP
Universidade de São Paulo
Lista de Quadros
1945 no Brasil ....................................................................................
45
Quadro 2 – Governo FHC: Estratégia de Desenvolvimento Social ..
67
Quadro 3 – Tipos de neoinstitucionalismo ........................................
103
Quadro 4 – Programas de Transferência de renda em países da
118
América Latina, América Central, Caribe e México.
Quadro 5 – Tipos de benefícios concedidos pelo Programa Bolsa
Família/Maio 2015 .............................................................................
126
Quadro 6 – Efeitos Gradativos para descumprimento do Programa
Bolsa Família pelas Famílias .............................................................
131
Quadro 7 – PBF e BSM: semelhanças e diferenças eixos e
objetivos .............................................................................................
140
Quadro 8 – Programas e Serviços que compõem as ações do BSM.
141
Quadro 9 – Planos estaduais de superação da extrema pobreza
143
(até ago/2014).....................................................................................
Quadro 10 – Estados que complementam de renda do Bolsa
145
Família (Agosto 2014) .......................................................................
Quadro 11 – Porte de Municípios PNAS (2005)/MDS........................
158
Quadro 12 – Classificação de Municípios por porte (2005)/MDS
159
Quadro 13 – Competências dos entes federativos nos Programas e
169
Serviços da Assistência Social............................................................
Quadro 14 – Competências dos entes federativos no Programa
Bolsa Família.......................................................................................
171
Lista de Tabelas
Tabela 1 – América Latina (18 países) pessoas em situação de
pobreza e extrema pobreza em torno de 2005, 2012 e 2013. (Em
porcentagens) ..................................................................................
111
Tabela 2 – Total de Famílias Cadastradas por Faixa de Renda /
Março 2015 .......................................................................................
127
Tabela 3 – Total por Pessoas Cadastradas por Faixa de Renda/
Março 2015 ........................................................................................
128
Tabela 4 – Total de População por Faixa Etária em Extrema
Pobreza – Critérios CadÚnico/Março 2015 ........................................
128
Lista de Esquema
Esquema 1 – Programas, serviços e o pobre.....................................
176
Lista de Figuras
Figura 1 – Evolução da pobreza e extrema pobreza, 1980-2014 ...
Figura 2 – Divulgação de dados sobre Programa Bolsa
Família................................................................................................
110
205
Sumário
INTRODUÇÃO ......................................................................................................................................... 18
Capítulo I  A constituição da pobreza e do “ser pobre”: o amparo à pobreza, história e transições ..... 31
1.1
De 1850 a 1930: a institucionalização da pobreza no contexto do Regime Escravocrata à
República dos Coronéis ........................................................................................................................... 33
1.2
Aparato filantrópico da pobreza: a igreja e a institucionalização da caridade ............................. 38
1.3
De 1930 a 1980 – Primeira Ruptura: a institucionalização da pobreza, os aptos e não aptos e a
emergência da assistência social como principal intervenção entre os pobres ...................................... 41
1.4 Da década perdida à constituição de direitos (1980-1988) ............................................................... 50
Capítulo II  Constituição de 1988: a transição democrática e políticas sociais ..................................... 56
2.1
Anos 90: o desafio da estabilidade econômica e a focalização das políticas de combate à
pobreza ..................................................................................................................................................... 58
2.2
As intervenções do Estado Democrático pós-ditadura: da eleição de Fernando Collor a Itamar
Franco (1993-1994), a reestruturação do Estado a partir da agenda neoliberal e ajustes estruturais ... 59
2.3
A gestão da pobreza e intervenção estatal na gestão de FHC (1995 – 2002) ............................ 63
2.3.1
Na Educação ............................................................................................................................ 68
2.3.2
Na Saúde ................................................................................................................................. 69
2.3.3
Na Assistência Social ............................................................................................................... 70
2.4
O Fundo de Combate à Pobreza – Ano de 2000 ......................................................................... 73
2.5
A gestão da pobreza e intervenção estatal na gestão de Luis Inácio da Silva – Lula (2003 –
2010) .....................................................................................................................................................75
Capítulo III – A condição social reconhecida de pobreza frente aos técnicos burocratas de rua do
Estado ...................................................................................................................................................... 80
3.1 Base teórica........................................................................................................................................ 80
3.2
A construção social da categoria de pobreza com base na realidade ......................................... 85
3.3
A Delimitação da “pobreza” e do “pobre” ..................................................................................... 89
3.4
Burocratas de rua: atores do Estado no combate à pobreza ...................................................... 92
3.5
A burocracia e os street-level bureaucrats ................................................................................... 94
3.6
As instituições e os indivíduos ..................................................................................................... 98
3.7
Sobre a institucionalização da pobreza ..................................................................................... 106
Capítulo IV – As formas de intervenção institucionalizada no combate à pobreza: o debate sobre os
programas de transferência de renda .................................................................................................... 109
4.1
Uma breve contextualização do debate sobre os Programas de Transferência de Renda
(PTRs)....... ............................................................................................................................................. 112
4.2
Programa de Bolsa Família: sobre características da institucionalização da pobreza pela renda
e das regras de acesso .......................................................................................................................... 122
4.3
Plano Brasil Sem Miséria (BSM): perspectiva do tratamento aos pobres ................................. 136
Capítulo V – O campo de pesquisa........................................................................................................ 148
5.1
O contato com o tema ................................................................................................................ 150
5.2
Percurso metodológico ............................................................................................................... 153
5.3
Delimitação do locus do objeto de estudo ................................................................................. 162
5.3.1 Desafio da prática: a responsabilização do outro ......................................................................... 179
Capitulo VI – Os técnicos burocratas de rua: a percepção sobre o pobre e a pobreza ........................ 109
6.1
A trajetória: quem são os técnicos burocratas de rua que combatem a pobreza ...................... 183
6.2
Diante do pobre: entre o antes e o depois ................................................................................. 193
6.3
Entre o julgamento e a objetividade ........................................................................................... 197
6.4
A pobreza para quem recebe os pobres .................................................................................... 201
6.5
Enfim: “O Programa Bolsa Família é bom, mas precisa melhorar!”. ......................................... 204
VII. Considerações Finais ...................................................................................................................... 214
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................................... 221
18
INTRODUÇÃO
A erradicação da pobreza continua a ser, no século XXI, um dos grandes
desafios para a intervenção estatal. Integrado a esse propósito, após oito anos de
efetivação do Programa Bolsa Família (PBF), o governo brasileiro, por meio do
Decreto nº 7.492, de 2 de julho de 2011, lançou o Plano Brasil Sem Miséria. O Plano
estabeleceu como meta, até o final do ano de 2014, que correspondeu ao final do
primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff, erradicar a extrema pobreza1 no
país. Na oportunidade de lançamento do Plano, segundo dados do governo, mais de
16 milhões de brasileiros viviam com renda per capita inferior a R$ 77,002, ou seja,
em estado de pobreza extrema pelo recorte de renda auferido.
A corrida institucional em busca do “pobre3” ratifica a relevância da temática,
como também mostra as recorrentes investidas na organização do aparato estatal
brasileiro
em
direção
ao
combate
à
pobreza.
Reflete
ainda
o
caráter
multidimensional das construções sociais sobre o que são a pobreza e os pobres e
como elas são ressignificadas nos diferentes momentos históricos. Nas últimas
gestões presidenciais brasileiras, a institucionalização do combate à pobreza se
tornou questão central, sendo, inclusive, incorporada aos slogans de governo nos
dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010),
com o slogan “Brasil, um país de todos”, e no primeiro mandato de sua sucessora
1
O Estado brasileiro cria a definição da pobreza extrema por meio do Decreto nº 7.492, de 2 de junho
de 2011, que considerou em extrema pobreza a população com renda per capita mensal de até R$
77,00 (setenta e sete reais). Mais do que um recorte de renda, em termos operacionais, a designação
da extrema pobreza classifica os “pobres” que não conseguiram ser localizados e cadastrados pelo
governo federal no Programa Bolsa Família. O governo criou a Linha da Extrema Pobreza como
método de classificação e alcance das famílias dentro de tal definição. Para isso, foi mobilizada uma
verdadeira força-tarefa pactuada entre os órgãos do governo federal, estados e municípios para
localizar e cadastrar os “extremamente pobres” caracterizados nesse recorte de renda. O objetivo da
mobilização era deslocar equipes para ir até onde os pobres estivessem, inseri-los na base de dados
(CadÚnico) para que passassem a ser atendidos pelas ações de combate à pobreza existentes.
2
FALCÃO, T.; COSTA, P. V. A linha de extrema pobreza e o público-alvo do Plano Brasil Sem Miséria.
In.: CAMPELLO, T.; FALCÃO. T.; COSTA, P. V. (Org.). Brasil Sem Miséria. Brasília: MDS, 2014.
3
As aspas utilizadas no termo “pobre” é um aporte de singularização para designar a dualidade de percepção
acerca do conceito do que é ser pobre. Essa dualidade acompanhará todo o desenvolvimento da pesquisa
mostrando a diferente percepção entre o conceito institucional do que seja ser pobre e a percepção que os
próprios pobres têm de si mesmos.
19
Dilma Rousseff (2011-2014)4, em que foi adotado como slogan “País rico é país sem
pobreza”. As questões da presente pesquisa se inserem na problematização desse
ousado e árduo desafio do Estado brasileiro de executar políticas públicas com o
objetivo de por fim a pobreza e a extrema pobreza no Brasil.
Diante desse cenário de construção social e institucional para os mais
“pobres”, no caso brasileiro, não se pode negar a contribuição da focalização dos
programas de transferência de renda desde as primeiras experiências com o
presidente FHC, indo até o Bolsa Família, no governo Luiz Inácio Lula da Silva. É
inegável também que a partir da implantação do Bolsa Família, apesar do
enfrentamento das severas críticas, o modelo de intervenção de transferência da
renda consolidou uma nova forma de organização ou uma nova base institucional e
operacional (ROCHA, 2013)5.
No ano de 2006, um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(Ipea) identificou a tendência de queda na desigualdade nos resultados
socioeconômicos do Brasil6 (IPEA, 2007). Pelos dados do Instituto, o grau de
concentração de renda no Brasil caiu 4% entre os anos de 2001 e 2004, passando
de 0,593 para 0,569. Sob o ponto de vista do Ipea, por mais que a taxa possa
parecer modesta, em se tratando de uma medida de desigualdade, ela representou
uma queda substancial no caso brasileiro. E faz uma comparação importante: ao
longo da década de 1990, entre os 75 países para os quais havia informações
4
Um balanço sobre as principais ações que direcionaram os anos dos mandatos de Luiz Inácio Lula
da Silva (2003-2010) e os anos iniciais do primeiro mandato da presidenta Dilma (2011-2014) pode
ser pesquisado no livro destinado a esse objetivo: SADER, E. (Org.). 10 anos de governos pósneoliberais no Brasil: Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo, 2013.
5
Sônia Rocha aponta como fatores que contribuíram para essa nova base: a unificação dos
programas preexistentes sob o BF, a eliminação da superposição de benefícios de diversos
programas nas mesmas famílias, a ampliação da clientela atendida e o aperfeiçoamento de
procedimentos, inclusive no diz respeito ao Cadastro Único (2013, p. 18).
6
Os resultados podem ser pesquisados nos volumes lançados pelo Ipea no ano de 2007 intitulado:
Desigualdade de renda no Brasil: uma análise da queda recente (INSTITUTO DE PESQUISA
ECONÔMICA APLICADA – IPEA. Desigualdade de renda no Brasil: uma análise da queda recente.
Brasília, 2007. v. 1). A Nota Técnica divulgada em 2006 com o mesmo nome da publicação acima,
Recente Queda da Desigualdade de Renda no Brasil, foi disponibilizada em versão eletrônica em:
<www.ipea.gov.br>.
20
relativas à evolução da desigualdade de renda, menos de ¼ apresentou taxas de
redução da desigualdade superiores à então taxa brasileira.
Ainda na análise do Instituto, isso representou, ao longo do período estudado,
que a renda média dos 10% mais pobres cresceu a uma taxa anual média de 7%,
enquanto a renda média nacional declinou 1% ao ano (a.a). Tomando-se o período
como um todo, o crescimento da renda média dos 20% mais pobres foi cerca de 20
pontos percentuais (p.p.) acima do observado entre os 20% mais ricos. Portanto, a
percepção dos mais pobres no Brasil foi a de estarem vivendo em um país com alta
taxa de crescimento econômico, enquanto os 20% mais ricos tiveram a percepção
de estarem vivendo em um país estagnado.
Seguindo o mesmo campo de análise, a pesquisadora Rocha (2013), ao
levantar dados sobre a evolução da pobreza no Brasil entre os anos de 2003 e 2011,
aponta como responsável pelo impacto na redução da desigualdade e pobreza
nesse período o que denominou de os novos programas de transferência.
Os números apresentados pela autora indicam que, entre 2003 e 2011, a
proporção de pobres caiu praticamente à metade, de 22,6% para 10,1%, e que
esses números declinaram sistematicamente ao longo desse período. A autora
ressalta que essa tendência ocorreu, inclusive, no ano de 2009, quando países
considerados desenvolvidos enfrentavam o auge de uma crise financeira
internacional.
Se, por um lado, os dados apresentam o avanço na mobilidade da
desigualdade entre os considerados “pobres” e outros estratos da sociedade, por
outro, oculta dimensões qualitativas e simbólicas que ocorrem como pano de fundo
na operacionalização das relações institucionalizadas pelo Estado. Esse vácuo
também é observado por Cohn (2012), quando avalia que apesar de o Brasil ser
reconhecido pela qualidade dos dados dos seus institutos de pesquisa nos trabalhos
voltados a localizar e identificar os pobres, pouco se sabe ainda sobre a vida e a
vivência desses sujeitos.
Nesse contexto, a questão direcionadora da presente pesquisa foi
compreender como tem se concretizado na prática dos atores sociais o desafio do
combate à pobreza e entender como estão institucionalizadas e operacionalizadas
as ações de combate à pobreza na execução cotidiana de programas de
transferência de renda, como o Bolsa Família e ações de assistência social
ofertadas aos pobres.
21
Assim, o objetivo da pesquisa foi investigar a prática institucionalizada do
combate à pobreza no trabalho e na percepção dos técnicos burocratas de rua – os
street-level bureaucrats (LIPSKY, 2010),7 acerca da pobreza e dos pobres por eles
atendidos. Trata-se de servidores públicos do Estado também conhecidos no senso
comum institucional como “técnicos que atuam na ponta”8. Esses profissionais são
responsáveis por fazer a gestão ou atuar na operacionalização dos programas e ou
no
atendimento
cotidiano
dos
pobres
para
cadastramento,
inserção
e
acompanhamento diversos em programas e serviços. Pretendeu-se, com os
resultados alcançados, analisar a presença ou não de categorizações e valorações
morais construídas no cotidiano desses técnicos em relação aos sujeitos atendidos.
Partimos da hipótese de que a prática desses profissionais é peça chave para
entender as nuances do combate à pobreza norteado pelo Estado brasileiro. Não se
trata de um desafio qualquer, mas de estar diante de um ranço histórico que delega
o lugar dos pobres como sendo o da “caridade” e da “esmola”. Esse fato ganha
relevância analítica se pensarmos que, a partir dos pressupostos do texto
Constitucional de 1988, toda ação do Estado voltada ao sujeito que necessita do
atendimento e assistência deve ser ordenado no direto constitucional. O que está
em pauta nos resultados da pesquisa aqui apresentada é problematizar em que
medida essa orientação legal tem se efetivado na prática do combate à pobreza
desenvolvida atualmente.
7
O conceito de Street-Level Bureaucrats, apresentado nos anos de 1980, pelo autor Michel Lipsky
tem destaque como a referência nas análises sobre as funções e o papel dos técnicos servidores
públicos que trabalham com discricionaridade burocrática e política pública. Em nosso caso, o
objetivo foi imergir esse conceito no universo das ciências sociais. Aproveitar da amplitude do
conceito e mediá-lo para uma análise sociológica atentando para a prática desses sujeitos e as
construções sociais que dela decorre em relação aos atendimentos aos usuários considerados
pobres. Michel Lipsky (2010) conceitua os Street-Level Bureaucrats como trabalhadores do serviço
público que interagem diretamente com os cidadãos no curso do desenvolvimento de suas atividades
e que dispõem de poder discricionário na execução dessas atividades. (Tradução nossa) – texto
original. (LIPSKY, 2010, p. 3).
8
Classificamos dois tipos de técnicos burocratas de rua: os técnicos e os gestores. As duas
categorias denominam o perfil dos técnicos burocratas de rua entrevistados. Os técnicos são os
profissionais que desempenham atividades operacionais como atendimento, cadastramento e
acompanhamento dos “pobres”. Os gestores são os profissionais que desempenham atividades de
ordem gerencial do Programa, o trabalho e ações dos técnicos. Essa diferenciação também é
utilizada formalmente pelo governo federal para identificação das funções dos profissionais nos
municípios. Porém uma das constatações de campo foi a de que a divisão de atribuições é mais
comum em municípios de grande porte e metrópoles, pois em municípios de pequeno porte os
gestores e técnicos dividem e realizam praticamente as mesmas funções, devido ao número reduzido
de servidores.
22
Afinal, de que combate à pobreza estamos falando e concretizando no dia a
dia do atendimento institucionalizado ao pobre? A rotina de interação entre os
técnicos burocratas de rua versus pobres tem contribuído para a reprodução ou
ruptura do ciclo de estigmas e valorações morais sobre os pobres que precisam do
Estado para acessar a busca por assistência?
A motivação para o recorte do tema de pesquisa partiu do percurso
profissional da pesquisadora. Durante mais de dez anos atuando com gestão de
política pública nas três esferas (União, Estado e Município) observou-se a
existência de uma dimensão do microssocial in loco das políticas, programas e
serviços. No entanto esse ainda é um campo preterido e invisibilizado pelos próprios
métodos de intervenção dos programas e serviços. É a essa dimensão que a
presente pesquisa se propôs chegar. Onde o Estado está presente cotidianamente,
porém não consegue “se ver”, “enxergar-se”.
Nesse intuito, a pesquisa e os resultados obtidos conduzem à reflexão de que
o estudo de uma política pública vai além dos estágios formalizados como os passos
preconizados nas referências bibliográficas (agenda, elaboração, formulação,
implementação, execução, acompanhamento e avaliação – ENAP, 2006). Os dados
que serão aqui expostos reforçam a ideia de que a intervenção estatal requer ser
entendida não apenas a partir dos elementos trazidos em macroanálises, mas
também requer uma aproximação com o campo simbólico (BOURDIEU, 2001) dos
agentes humanos (GIDDENS, 2009) que a compõem. Requer, ainda, a
contextualização dos programas como espaços onde as interações acontecem.
Essa contribuição amplia a análise para onde possam ser observadas as diversas
dimensões simbólicas de disputas, conflitos e rearranjos construídos pelos atores
sociais envolvidos.
É na construção cotidiana dos atores sociais que o combate à pobreza é
concretizado, de forma que a interação entre técnicos burocratas de rua versus os
pobres faz inferência na vida social dos sujeitos. É nesse espaço de representação
que estão dispostas as perspectivas construídas em relação à pobreza. Foi assim
que nos deparamos com o outro lado do Programa Bolsa Família. Nesse espaço, as
construções técnicas e normatizadas pelo Programa Bolsa Família têm implicâncias
na maneira como a pobreza é significada socialmente pelo olhar do outro e, a
depender das experiências e contextos, ela é significada e sentida de maneiras
diferenciadas.
23
Por esses motivos, concordamos que as abordagens multidimensionais que
incluem a apreciação dos processos de subjetividade dos sujeitos acerca das
próprias situações são indispensáveis. Em nosso ponto de vista, a pobreza é
configurada, assim, ao mesmo tempo, um fato e um sentimento (SALAMA e
DESTRMAU, 1999).
Partindo desses pressupostos é que o recorte teórico que conduziu a
pesquisa primou pelo diálogo com algumas escolas que podem trazer contribuições
inovadoras, porém nem sempre inéditas, para a análise e compreensão da
intervenção estatal nas políticas públicas de combate à pobreza. A perspectiva de
tradição microinteracionista faz parte do recorte teórico feito, por defender que
nossas conversas e experiências cotidianas são fundamentais na construção da
percepção acerca da realidade social (COLLINS, 2009). Os ensinamentos da escola
construtivista social também se inserem na discussão quando considera como um
dos objetos das ciências sociais o sujeito, conceituado como o “homem de rua”
(BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 12). O “homem de rua” é aquele que interage com
a sua realidade, e o conhecimento adquirido dessa realidade constitui a ação que
ele acredita ser a verdade para sua conduta na relação com as instituições sociais e
demais sujeitos9.
Vale deixar claro que essas influências teóricas não significaram, em
momento algum do trabalho, uma segregação teórica com outras perspectivas. Em
nosso ponto de vista, a arte de pesquisar, por mais que “exija” um ponto de partida
para a inserção na problemática observada, é com a inserção em campo que
descobrimos o quanto a pesquisa se transveste de forma demasiadamente
desafiadora. E, assim, somos apresentados a elementos diversos e inesperados que
nem sempre o nosso “suporte” teórico alcança. É nesse momento que o diálogo com
outras formas de produção do conhecimento é necessário, mesmo que seja como
um contraponto ao que vemos da realidade.
9
Berger e Luckmann (2012) fazem referências sobre a delimitação do papel do pesquisador quando
ele lida com os aspectos da “realidade” e do “conhecimento”. Para os autores o interesse sociológico
nas questões da “realidade” e do “conhecimento” justifica-se inicialmente pelo fato de sua relatividade
social. Por exemplo: o que é real para um monge não pode se real para um homem de negócios
americano; o conhecimento de um criminoso é diferente do conhecimento do criminalista. Assim,
aglomerações específicas da realidade e do conhecimento referem-se a contextos sociais específicos
e estas relações terão de ser incluídas numa correta análise sociológica desses contextos. A
necessidade da sociologia do conhecimento tem de tratar não somente da multiplicidade empírica do
conhecimento nas sociedades humanas, mas também dos processos pelos quais qualquer corpo de
conhecimento que chega a ser socialmente estabelecido como realidade. (Idem, p. 13).
24
Nesse sentido, não seria possível pesquisar os sujeitos considerados pobres
sem contextualizar as teses que inserem a análise da pobreza como consequências
de fatores e transformações macroeconômicos ocorridos em escala global.
Consideramos que não se trata de uma novidade no campo de discussão teórica a
pobreza historicamente ser reconhecida socialmente como uma espécie de
“fracasso social” (PAUGAM, 2003; CASTEL, 1998).
Os fatores para o reconhecimento desse “fracasso” advêm de diferentes
argumentos quase sempre relacionados à economia e à inserção no mundo de
trabalho. Aqui uma questão que não pode ser negligenciada é a não inserção ou
inserção precária dos sujeitos considerados “pobres” nas funções produtivas
formais. Na leitura teórica de Castel (1998), o processo de inserção precária decorre
de uma desmontagem dos sistemas de proteções e garantias que foram fortemente
vinculados ao emprego em determinadas sociedades. Decorre também da
desestabilização na ausência dessas proteções,10 causando um choque em
diferentes setores da vida social, que passam a repercutir para além do mundo do
trabalho.
Castel et al (2008) ainda aponta três fatores que perpassam a discussão
sobre a questão social, incluindo os processos geradores de pobreza: 1) a
irregularidade de acesso à renda, no caso dos indivíduos que ocupam postos
informais de trabalho; 2) o não acesso a direitos trabalhistas assegurados por lei; e
3) submissão a condições precárias na relação de trabalho. Afirma que, diante do
aumento de desempregados e do aumento dos considerados em situação de
pobreza nos últimos anos, cresce a pressão da sociedade para que o Estado adote
medidas de contenção desse processo. Nesse sentido, as políticas e programas
sociais emergem como uma forma de intervir junto aos sujeitos considerados pobres
10
Para a pesquisadora Luciana Jaccoud (2009), o surgimento de programas de transferência de
renda voltados à população pobre faz com que a proteção social brasileira tenha sido objeto de
mudanças nos últimos anos. A autora reconhece a ampliação da cobertura de benefícios e o
movimento de inclusão de novos grupos após os ganhos da seguridade social e a proteção social
brasileira. A pesquisadora avalia ser um momento tensionado por dois motivos: primeiro, a vinculação
ao contexto precário da configuração do mercado de trabalho, e, segundo, as dificuldades em garantir
a articulação entre as políticas de combate à pobreza e a consolidação da seguridade social. A
hipótese da autora é que a extrema pobreza de parcela da população e a desigualdade que marcam
a sociedade impõem dificuldade na coesão social como também da reprodução da estabilidade e
legitimidade do regime democrático.
25
e sobre as novas formas de pobreza que continuam em pauta na agenda das
políticas públicas11.
Dentre os estudiosos aqui citados, tem destaque no corpo analítico do texto
de pesquisa aqui apresentada o sociólogo francês Serge Paugam (2003). O autor
acredita que o entendimento da pobreza como traduzindo uma dualidade que
identifica comportamentos e características entre os “pobres” e os “outros” é
equivocado. Por isso, o propósito de obter uma teoria global que se pretenda ser
universal sobre a pobreza seria um exercício inócuo. Nesse sentido, o pesquisador
defende o estudo científico tendo como base as especificidades da construção social
da pobreza.
Por concordar com tal perspectiva é que trabalhamos em nossa análise o
conceito de pobreza como uma condição reconhecida socialmente e os pobres
como um conjunto de pessoas cujo status social é definido por instituições
especializadas de ação social que assim as designam (PAUGAM, 2003, p. 55)12.
11
Robert Castel (2012), em seu livro As metamorfoses da questão social, traz contribuições sobre
processos sociais e intervenções estatais sobre a pobreza. Na primeira metade do século XIX, nos
primórdios da industrialização, segundo o autor, a questão social era constituída com base na
situação dos proletários que se encontravam na sociedade industrial, presentes nas grandes
concentrações industriais sem estarem integrados. O pesquisador denominou de populações
flutuantes, miseráveis, os indivíduos que tiveram cortados seus vínculos e configuraram-se numa
ameaça a uma ordem social, muitas vezes sendo considerados como uma gangrena. Esse cenário, à
época, apresentava-se sob forma do que o autor intitula de pauperismo (2012, p. 231). Por outro lado,
a questão social hoje não se apresenta sob a mesma forma para Castel. Em nossa opinião, o
argumento defendido pelo autor para o que chama de nova questão social não vai ao encontro da
realidade brasileira. Mesmo considerando que, no caso brasileiro, pouco se pode falar em uma
consolidação de uma plena sociedade salarial, como em alguns países europeus que
experimentaram, de forma consolidada, essa correlação, ainda assim é plausível considerar a
reflexão teórica do autor no que se refere à existência de consequências sociais decorrentes do
processo de desmontagem das garantias conquistadas historicamente vinculadas ao emprego. O
status do desemprego e da incapacidade de manter uma renda mínima de subsistência representa o
público potencial brasileiro para estar nos programas de combate à pobreza. As formas precárias de
acesso ao trabalho formal e suas garantias engendram uma série de fatores que aumentam a
vulnerabilidade dos sujeitos, pois a maioria desses sujeitos, ao perder seu posto no mercado formal,
não consegue mais retornar e, assim, passam a ocupar postos no mercado de trabalho informal,
sofrendo severos impactos econômicos e sociais.
12
A contribuição de Anthony Giddens (2009) também faz parte do suporte teórico na observação da
consciência reflexiva apresentada pelos técnicos burocratas de rua em suas construções cotidianas
em relação aos pobres e à pobreza. Principalmente para entendermos o comportamento desses
sujeitos como agentes humanos. Para o autor, todos os seres humanos são agentes cognoscitivos.
Isso significa que todos os atores sociais possuem um considerável conhecimento das condições e
consequências do que fazem em suas vidas cotidianas. Acredita que essa cognoscitividade inserida
na consciência prática exibe uma extraordinária complexidade que, com frequência, permanece
completamente inexplorada nas abordagens sociológicas, as quais denomina de “ortodoxas”, em sua
maioria aquelas associadas com o objetivismo. O autor reforça que a maior parte da capacidade da
consciência reflexiva se encontra incrustada no fluxo do dia a dia. Essa racionalização discursiva das
razões apenas se converte em uma apresentação discursiva se eles forem solicitados de alguma
forma, para que eles esclareçam por que atuam de tal forma (p. 332).
26
De maneira consistente, o autor entende que se institui socialmente um
descrédito dos sujeitos que não conseguem participar plenamente da vida
econômica e social. Esse movimento Paugam (2003) chama de desqualificação
social. O processo de desqualificação social dos pobres inclui o estudo dos
sentimentos subjetivos acerca da própria situação que os considerados pobres
experimentam no decorrer das diversas experiências sociais. Nesse escopo,
especificamente em nosso caso, interessou um estudo sobre a experiência da
relação institucional13 construída com os pobres que procuram o Estado para serem
inseridos nas ações de combate à pobreza.
Entendemos que o enfrentamento da degradação moral (PAUGAM, 2003)
diante do rótulo de “pobre” socialmente é uma condição desafiadora para os
usuários dos programas de transferências de renda, como também para aqueles
que participam das ações de assistência social. Tanto que os estudos de Lima
(2003, p. 366) apontam que uma das preocupações morais das famílias pobres é
“encaminhar os filhos na vida”, para que eles tenham um “julgamento positivo”
daquilo que os pais não foram capazes de ter.
O desejo expressado por essas famílias não é aleatório. Ele é resultado do
cotidiano de diversas delas para as quais a sociedade “normatiza” tratar com
estigmas e julgamentos valorativos, pelo simples fato de estarem em condição social
de pobreza. Se a família pobre consegue se inserir no mercado de trabalho e
sobrevive sem a assistência do Estado, então ela é “pobre, mas é direitinha”. Porém
se o “pobre” ou sua família precisa da ajuda do Estado para sobreviver ou conviver
com a pobreza instituída socialmente, então eles são “aproveitadores que querem
viver à custa do Estado para sempre”.
A inserção analítica da pesquisa levou a uma diferenciação para compreender
o processo de desqualificação social dos considerados “pobres” no caso brasileiro.
Na abordagem de Paugam (2003) tem ênfase a desqualificação social em que o
sujeito experimenta o julgamento de uma degradação moral pelo próprio sujeito,
incorrendo na fragilização de seus laços sociais.
13
A discussão sobre relações institucionais mediadas pela burocracia, como é o caso dos
programas de combate à pobreza, exigiu uma imersão nos novos modelos institucionais, conduzidos
pelo que a referência bibliográfica chama de reformas administrativas contemporâneas, tendo
destaque para o modelo burocrático do Estado Gerencial (REZENDE, 2009) e o projeto de Reforma
da Administração Pública por Bresser (1995). No capítulo III serão apresentadas as principais
características das escolas, autores e projetos que discutem o tema.
27
No caso da presente pesquisa, os resultados mostraram um processo inverso.
O julgamento da degradação moral do sujeito considerado “pobre” está centrado
mais em um processo de desqualificação exteriorizada pela sociedade e menos
pelos próprios sujeitos pobres. Assim, enquanto os considerados “pobres”
experimentam processos de subjetividade que giram em torno de sentimentos como
empoderamento, autonomia e protagonismo social, de forma contraditória,
socialmente, eles são reconhecidos como “aproveitadores”, “vagabundos” e como
aqueles que “não gostam de trabalhar”.
A inferência da relação institucional por meio da categorização dos técnicos
de nível de rua (LIPSKY, 2010), que trabalham cotidianamente com os considerados
pobres, mostrou a rotina de trabalho cotidiana desafiadora desses profissionais que
retrata a tensão existente entre os níveis de gestão federal, estadual e municipal na
implementação das ações.
Enfim, partilhando do mesmo olhar analítico para a relevância das
problematizações supracitadas é que alguns trabalhos de pesquisa têm se
debruçado numa perspectiva simbólica qualitativa das intervenções dos programas
de transferência de renda (REGO e PINZANI, 2013; ÁVILA, 2013; COHN, 2012;
JUSTO, 2009; PEREIRA, 2007; SPRANDEL, 2004; LIMA, 2003). E foi na busca de
agregar esse viés de produção do conhecimento que se desenhou a pesquisa aqui
desenvolvida.
Como já delimitado, o trabalho de campo da pesquisa optou por uma
abordagem metodológica qualitativa14 (MINAYO, 2007) do objeto de estudo. Ela foi
desenvolvida por meio de entrevista semiestruturada com os técnicos burocratas de
rua que trabalham no Programa Bolsa Família e nas ações de assistência social aos
considerados pobres. Foram entrevistados técnicos das cinco regiões brasileiras
(Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste), e, com isso, tivemos a pretensão de
ampliar a análise para uma perspectiva comparativa. Ao todo, foram 14 entrevistas,
sendo 12 com técnicos burocratas de rua e duas com gestores federais do
Programa Bolsa Família. Assim conseguimos cumprir a organização de campo inicial
14
Entendemos metodologia a partir da abordagem de Minayo (2007) que a compreende como: a
discussão epistemológica sobre o caminho do pensamento que o tema ou o objeto de investigação
requer; a apresentação adequada e justificada dos métodos, técnicas e dos instrumentos operativos
que devem ser utilizados para as buscas relativas às indagações da investigação, e também como a
“criatividade do pesquisador”, ou seja, a sua marca pessoal e específica na forma de articular teoria,
métodos, achados experimentais, observacionais ou de qualquer outro tipo específico de resposta às
indagações específicas (MINAYO, 2007, p. 44).
28
que previa que tivéssemos na seleção dos técnicos todas as regiões brasileiras
contempladas15.
Vale ressaltar que a instrumentalização da pesquisa por meio da entrevista
apresentou-se como um rebuscamento técnico. A escolha fez parte de um estudo da
organização e do caminho a ser percorrido (FONSECA, 2002) considerando os
elementos disponíveis para a realização da pesquisa. A entrevista nos coloca diante
do discurso do outro. Segundo Bardin (apud QUIVY et al., 1995) o discurso não é a
transposição transparente de opiniões, mas um momento num processo de
elaboração com tudo que isso implica de contradições, incoerências e lacunas.
Assim, o discurso é um ato. O entrevistado nesse caso submete a sua palavra a
uma lógica socializada. É desse contexto que o pesquisador observa as
representações reais.
Foi esse o caminho que se buscou no momento das entrevistas. Um limite do
método que pode ser apontado é o fato de as entrevistas terem ocorrido, em sua
grande maioria, no ambiente de trabalho dos técnicos (CRAS ou secretarias
municipais). Com isso, correu-se o risco de um viés distorcido pela possibilidade do
sentimento de censura por parte do entrevistado por estar na presença de outros
colegas de trabalhos.
Consideramos também que fez parte do campo de pesquisa a técnica da
observação participante16, considerando o tempo de “interação” com os profissionais
que exercem funções de burocratas de rua nos estados e municípios brasileiros.
Tendo destaque para exercício do método o que denominamos de eventos
institucionais deliberativos e de capacitação técnica. São eventos promovidos em
Brasília pelo Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) para
os técnicos e gestores das ações pesquisadas.
Os eventos institucionais se revelaram um campo rico de análise por
permitirem observar a interação entre as três esferas – municípios, estados e a
União – na constituição das normas e critérios que devem ser implementados e
executados na prática cotidiana do trabalho dos gestores e técnicos com os pobres.
15
O detalhamento dos critérios da seleção dos estados e cidades em que os técnicos foram
entrevistados estão detalhados no capítulo V, no tópico 5.2 do texto.
16
Como método de pesquisa, Minayo (2003) define observação participante um processo pelo qual
um pesquisador se coloca como observador de uma situação social, com a finalidade de realizar uma
investigação científica. O que fundamenta a técnica é o exercício que todo pesquisador social tem de
relativizar o espaço social de onde provém, aprendendo a se colocar no lugar do outro e, com isso,
apreender o máximo possível dos sentidos e significados da realidade vivenciada.
29
Nessas oportunidades sempre procuramos conversar com esses profissionais sobre
suas trajetórias e concepções sobre o combate à pobreza.
Seguindo esse percurso, a apresentação da pesquisa neste documento darse-á da seguinte forma: o primeiro capítulo faz um levantamento de marcos para a
constituição da intervenção do Estado brasileiro junto aos considerados pobres.
Buscou-se demarcar como se deu a conformação da relação constituída entre o
Estado, as estruturas sociais de “amparo” à pobreza e os pobres. As demarcações
históricas são bases analíticas como meio de compreensão dos processos socais.
O segundo capítulo traz relevantes rupturas para o objeto de pesquisa, a
transição democrática que ocorreu a partir do ano de 1988. A discussão
apresentada remete a como esse momento se refletiu na gestão do Estado em
relação à institucionalização da pobreza. O terceiro capítulo foi dedicado à
apresentação das problematizações de base teórica a partir dos levantamentos
feitos nos capítulos anteriores e demarca o escopo dos conceitos que serão
utilizados nos demais resultados da pesquisa de campo.
O quarto capítulo registra a inserção em campo por meio da pesquisa
bibliográfica e documental sobre as ações de combate à pobreza. Fizeram parte da
pesquisa um levantamento e estudo detalhado das normativas (decretos e leis),
material de orientação técnica e documentos de pactuação entre as três esferas de
governo com objetivo de intervenção junto aos pobres atendidos.
E, finalmente, o quinto capítulo apresenta o resultado das entrevistas
realizadas com os técnicos burocratas de rua que representaram as cinco regiões
brasileiras. Em seguida são apresentadas as considerações finais acerca dos
resultados da pesquisa.
Como todo trabalho acadêmico, deparamo-nos com limites em seu percurso.
Em nosso caso, avaliamos que o número reduzido de referencial teórico que aborde
o recorte aqui apresentado no âmbito das políticas públicas seria um deles. A
maioria das referências encontrada se debruça, de maneira muito apropriada, sobre
processos de avaliação e monitoramento, porém a partir de uma objetividade
estatística e quantitativa por meio dos números alimentados eletronicamente nas
bases de dados do governo. Esse processo cada vez mais utilizado na gestão
pública cria um distanciamento de estudos qualitativos que abordem a interação dos
atores sociais com as políticas públicas, os programas e serviços implantados,
30
restando ao pesquisador lidar com potentes e complexas bases de dados 17 como
fonte.
Observar o pouco conhecimento18 que os atores têm do programa que
executam também pode ser mencionado como um limite para a impossibilidade de a
pesquisadora abordar questões mais estruturais da temática estudada (o combate à
pobreza) durante as entrevistas.
As consequências sociais de valorações de desqualificação social (PAUGAM,
2003), estigmas (GOFFMAN, 1988), discriminação negativa (CASTEL, 2008) e os
preconceitos decorrentes do rótulo social da condição social de “pobreza” pelos
requisitos preconizados pela sociedade moderna parecem seguir invisibilizados na
práxis da política pública.
Por esse motivo, espera-se que o resultado aqui apresentado possa somar e
contribuir não apenas na produção acadêmica, mas para visibilizar as questões
trazidas por esta pesquisa a todos os sujeitos que trabalham na gestão pública
brasileira. São eles que, de maneiras adversas, muitas vezes sem a condição
mínima de desenvolver suas ações, estão nos 5.570 municípios brasileiros
recebendo queixas diárias de quem, por circunstâncias diversas, foi negligenciado e
vivencia condições sociais precárias de sobrevivência, restando como uma das
possibilidades buscar a proteção social do Estado.
17
A referência a potentes e complexas bases de dados diz respeito ao número de variáveis e
capacidade de armazenamento e cruzamentos de informações dos sistemas eletrônicos que o
governo federal tem usado para monitoramento das ações cofinanciadas, a exemplo do Cadastro
Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). O CadÚnico se configurou na maior
base de dados, em volume de informações sobre as famílias consideradas em perfil de “pobreza”
pelos critérios do Programa Bolsa Família. Atualmente, essas informações são utilizadas por outros
programas da esfera federal, estadual e municipal como forma de monitoramento, classificação e
inserção em outros programas e serviços além do Bolsa Família.
18
Essa dificuldade como limite também foi encontrada na Tese de Doutoramento de Ávila (2013), que
trabalhou temática semelhante a proposta nesta pesquisa.
31
Capítulo I  A constituição da pobreza e do “ser pobre”: o amparo à
pobreza, história e transições
Este capítulo traz uma periodização com marcos importantes na constituição
do papel do Estado brasileiro na intervenção junto aos considerados pobres.
Consideraram-se, para isso, processos relevantes ocorridos historicamente, desde
as formas de regimes políticos experimentados nacionalmente e a forma de gestão
executada. Dessa maneira, buscou-se demarcar a relação constituída entre as
estruturas do aparelho estatal e as estruturas sociais no amparo à pobreza e aos
considerados pobres. As demarcações históricas são importantes bases analíticas
como meio de compreensão dos processos socais efetivados, como também pelo
viés metodológico comparativo.
O capítulo se encontra dividido por uma periodização considerando os
seguintes marcos: de 1850 a 1930, um período importante, que demarca a
finalização da escravidão no Brasil e o processo de transição para um novo modelo
de organização estatal, a Primeira República. Logo após, segue-se o período dos
anos 1930 aos anos 1980, fase que engloba a Era Vargas e a Ditadura Militar, que,
no âmbito das políticas sociais, trouxeram o legado histórico de um processo inicial
de lutas e conquistas de direitos civis e sociais, o qual permite novo direcionamento
ao Estado na forma de intervenção aos considerados pobres.
Dos anos 1980 a 1988, tem-se a considerada década perdida, período em
que culmina uma série de mobilizações sociais em prol de temas universais na
perspectiva de direito, tal como o movimento pela melhoria da qualidade de vida e,
com isso, inicia-se um processo de visibilização de fatores relacionados à condição
de pobreza, que aumentava em determinados segmentos sociais. Nesse período,
ocorre também a convocação da quarta Assembleia Constituinte no Brasil, a qual
pretendia fazer uma ruptura com a Ditadura Militar instaurada no Brasil no ano de
1964.
Para finalizar a parte proposta de periodização do capítulo I, trazemos o
ano da promulgação da Constituição Brasileira de 1988, que assegura a Seguridade
Social. Trata-se de um período significativo de ruptura no processo de intervenção
estatal da pobreza, pelo fato de o texto constitucional regulamentar a assistência
32
social como integrante da seguridade social e torná-la direito a todo cidadão
brasileiro.
O teor da proposta da periodização é menos descritivo e mais um esforço
analítico, tendo como pano de fundo o olhar sobre a intervenção social e o
aparelhamento estatal na abordagem da temática pobreza no Brasil. Nesse âmbito,
serão considerados a institucionalização e os processos sociais de ressignificações
estabelecidos nas estruturas sociais inerentes a esse campo, como o Estado e os
atores sociais inseridos nas ações voltadas ao combate à pobreza.
1.1 De 1850 a 1930: a institucionalização da pobreza no contexto do Regime
Escravocrata à República dos Coronéis
As formas de institucionalização da pobreza ocorridas durante o período de
1850 a 1930 deixaram legados centrais na concepção e intervenção junto à pobreza
pela sociedade e suas instituições. Nesse sentido, a escravidão é entendida nesta
reflexão com um fato isolado em si mesmo, caminho quase sempre seguido nas
análises de estudos que associam a pobreza com o legado da sociedade
escravocrata como a causa principal da pobreza. O olhar analítico proposto a
respeito da sociedade escravocrata evidencia um processo que legitimou e
perpassou estruturas sociais durante o período do Império19 no Brasil, em que a
desigualdade social, a dominação e a submissão dos sujeitos considerados pobres,
fossem eles homens livres, escravos, dentre outros segmentos sociais, deu-se de
maneira intensa.
Assim, a escravidão, na perspectiva de um estudo da pobreza, deve ser
entendida como uma instituição plurissecular que deixou legado de práticas sociais,
políticas e econômicas e atitudes morais em relação aos excluídos e dominados
(REGO et PINZANI, 2013). A prática social decorrente da escravidão esteve
19
A escravidão no Brasil tem início em 1500, por meio do processo de colonização dos Portugueses.
Os escravos começaram a ser importados na segunda metade do século XVI e a escravidão
continuou ininterrupta até o ano de 1850, ou seja, 28 anos após a independência do Brasil. Calculase que até 1822 tenham sido introduzidos na colônia cerca de 3 milhões de escravos. Importante
ressaltar que se inclui nesses dados o número de índios. A abolição da escravatura foi feita bem mais
tarde, no ano de 1888, num contexto de pressão por parte de países como a Inglaterra, que, em
1827, como preço do reconhecimento da independência, exigiu que o Brasil assinasse o tratado que
proibia o tráfico de escravos. Porém apenas em 1884 o tema voltava ao parlamento brasileiro, e,
quando o fez, o número de escravos já era pouco significativo (CARVALHO, 2012).
33
presente em todas as classes sociais desde o período colonial (CARVALHO, 2012).
Embora concentradas nas grandes propriedades, a relação social extrapolava essa
fronteira física; os escravos e as relações escravistas estavam presentes em todas
as estruturas sociais.
A presença dos sujeitos na condição de escravidão e de pobreza estava tanto
na esfera privada quanto na esfera pública. Nas cidades, os escravos exerciam
atividades dentro e fora das casas. Nas ruas, os escravos trabalhavam para os
senhores ou eram por eles alugados para desenvolver alguma atividade pontual.
Trabalhavam como vendedores, carregadores, barbeiros, prostitutas, restando a
alguns, inclusive, o papel de ser alugado para mendigar. Assim, a marca das
relações escravistas extrapolava sua legitimação em determinada classe social da
época – ela fazia parte de forte cultura da escravidão arraigada socialmente.
Inclusive, ao serem libertos, os escravos livres, desde que pudessem, adquiriam
escravos para sua propriedade (CARVALHO, 2012).
Dessa forma, a condição de pobreza legitimada durante esse período não
esteve constituída apenas com base na condição de ser escravo ou da escravidão.
O historiador Lapa (2008), em sua pesquisa, com foco na prática da escravidão por
parte das classes populares e, entre os anos de 1850 e 1930, relata sua surpresa ao
verificar o número de pessoas consideradas pobres que eram proprietárias de
escravos. Lapa se defronta com dois cenários que constituem a pobreza no período:
o da pobreza livre e o da escravidão urbana.
Nesse período, a pobreza é delimitada de maneira ostensiva, segundo o
autor. Porém ela ainda não era entendida como objeto de estudos científicos, e as
formas de registros sobre a pobreza se davam apenas em documentos, como
relatos literários e/ou romances de grandes autores para diversão da leitura dos
burgueses. Da mesma forma, a relação institucional do Estado e da pobreza ocorria
de forma precária e era assentada em procedimentos disciplinares voltados para o
controle e o confinamento. Havia, na realidade, um aparato filantrópico institucional
que fazia parceria com o Estado no período em que a pobreza se tornava um
problema social (LAPA, 2008, p. 25).
A institucionalização da pobreza nessa época passava pela articulação entre
o Estado e as instituições privadas (Santas Casas de Misericórdia, creches,
orfanatos, asilos de inválidos, albergues e recolhimentos diversos), que detinham
interesses quase sempre confluentes com os interesses do poder público, relação
34
voltada apenas para um aparato filantrópico institucional aos pobres (LAPA, 2008, p.
25). Nesse momento, tem destaque a igreja, que se fortalece como a instituição líder
e mediadora da rede de instituições privadas direcionadas ao atendimento dos
pobres.
As poucas informações e registros sobre os pobres e as formas de pobreza
geralmente se encontravam nos arquivos hospitalares das Santas Casas de
Misericórdias, que registravam pobres e enfermos atendidos por meio dos arquivos
eclesiásticos que tinham acervo de muitas instituições de caridade. Cabia à
legislação municipal estabelecer as normas de convívio entre a sociedade e a
pobreza e, com isso, as câmaras municipais se destacaram no papel de exercer a
fiscalização dos cidadãos e de regulamentar a maneira como deviam ser tratadas as
situações relacionadas à pobreza no espaço público.
Vale ressaltar que o conhecimento científico na área de ciências sociais não
motivou muitas pesquisas nessa época. No entanto, a literatura de ficção era um dos
instrumentos que dava voz aos pobres por meio de seus personagens, e,
contraditoriamente, esses instrumentos eram escritos para o entretenimento dos
letrados (LAPA, 2008). Os romancistas, em suas obras, registraram a realidade
social dos pobres em seus contornos do aparato sobre a pobreza, o que podia ser
encontrado na leitura dos relatos dos viajantes transcritos para os livros.
Na constatação do historiador, a intervenção institucional voltada à pobreza
pelo Estado durante o período de 1850 a 1930 era caracterizada pela sua própria
ausência, ou seja, a ausência do Estado se dava de maneira precária. Não havia
intervenções estatais incisivas. A ausência do olhar crítico sobre a complexidade da
pobreza demonstrava o contexto sociopolítico em que ela estava inserida e as
maneiras como as estruturas sociais se constituíam. Nesse sentido, o autor localiza
analiticamente, num período mais adiante do Império (pós-1930), a existência de um
jogo de interesse ideológico elitista de dois dos principais segmentos sociais da
época. Primeiro, os interesses do senhoreado e, logo após, os interesses da
burguesia. Assim, o interesse pela pobreza se dava mais numa perspectiva de
interesses imediatos, do clientelismo político e de uma segurança interna das
oligarquias.
O Estado se encontrava à parte da constituição de um quadro organizacional
forte e centralizador das intervenções voltadas à pobreza, o pouco que articulava se
pautava em procedimentos disciplinares, de controle e confinamento. Eram essas as
35
ações de conhecimento sobre a pobreza que bastavam ao Estado (LAPA, 2008). É
nesse momento que surge a parceria entre o Estado e a iniciativa privada, em que a
pobreza passa a ser reconhecida e se constitui num problema social.
Afinal, quem eram os pobres desse período? Eram considerados
passíveis de assistência do Estado e, assim, pobres: os incapazes de suprirem suas
subsistências por meio do trabalho por sua condição social, velhos, doentes,
mendigos etc. No entanto eram considerados pobres aqueles que desenvolviam
alguma atividade de trabalho em condição subumana, tal como uma condição de
escravos. Dentre os pobres da época estavam os considerados homens livres, que
desempenhavam vários afazeres, desde tarefas que poupavam os escravos até
atividades artesanais e manufatureiras. A condição do homem livre, porém pobre,
passou a constituir uma marca diferenciada da própria condição de liberdade a eles
resguardada, conforme passagem de texto a seguir:
um espaço social próprio para essa massa (homens livres), cuja
qualificação maior era ser livre para poder ser dependente, o que significava
dizer que seu valimento estava em sua disponibilidade, que lhe assegurava
a sobrevivência com o mínimo de decoro, capaz de não confundi-la com os
escravos. (LAPA, p. 28, 2008)
A disponibilidade desses “homens livres” os diferenciava dos escravos, era a
marca que assegurava sua sobrevivência. A citação retrata a diversidade das formas
de classificação da pobreza presentes já no início do século XX. Assim, a
identificação da condição de pobreza vai se constituindo entre as estruturas e
relações sociais de maneira diversa, e não apenas por meio da condição de
escravidão e/ou de escravo.
Vale ressaltar que o contexto brasileiro durante o período da escravidão é
bem distanciado da conjuntura de outros países. Enquanto, na primeira metade do
século XIX, França e Inglaterra introduziam em suas problemáticas sociais
discussões sobre as novas formas de relações de trabalho com o advento dos sinais
da sociedade industrial, o Brasil, até bem próximo do final do mesmo século (século
XIX), mantinha uma sociedade que se dicotomizava sobre abolir ou não a
escravidão a escravidão.
Para Carvalho (2012), a maior herança do período de escravidão para o Brasil
foi a de um país que negava a condição humana da massa de escravos, as grandes
concentrações de propriedade rural que se formaram e um Estado comprometido
36
com o poder privado. Pode-se até suscitar, partindo das contribuições do autor, que
esses seriam elementos de legado da sociedade escravista que incidiram,
fortemente, na maneira de percepção da pobreza no caso brasileiro, o que culminou
no distanciamento do Estado das causas públicas, como a pobreza, e,
consequentemente, na construção de formas de reconhecer como cidadãos aqueles
que necessitassem da assistência estatal, que, durante esse período, ficou pautada
no âmbito do favor e da benevolência, como será visto mais adiante do texto.
O período de 1850 a 1930 configura também a transição de uma sociedade
escravista para uma sociedade que vislumbraria sua organização com base em uma
economia de mercado. Logo após o fim do período da sociedade escravista no
Brasil (1888), constitui-se o período conhecido historicamente como a Primeira
República (1889-1930). A intervenção do Estado, no âmbito social, durante esse
período, insere-se em contexto em que o poder Estatal se encontrava fragmentado e
regionalizado em detrimento do fortalecimento do poder oligárquico e político dos
coronéis. Por essa razão, a Primeira República ficou conhecida como a República
dos Coronéis.
Durante esse período, a economia brasileira foi determinada e dominada
pelas grandes propriedades e pela produção de café, tendo destaque para dois
estados brasileiros que revezariam o mando de poder do Estado – São Paulo e
Minas Gerais. Nesses estados, o coronelismo como sistema político atingiu sua
perfeição (CARVALHO, 2012) e existia por meio de uma forte aliança, estabelecida
entre os comerciantes urbanos e os coronéis, voltada à permanência e à
manutenção do poder destes.
Durante esse modelo político de gestão, pouco se deu a intervenção política
do Estado, seja nas ações dos próprios coronéis, enquanto governantes, ou nas
condições sociais em que se encontravam os seus governados. Nas fazendas e
grandes propriedades, reinava o poder e o mando dos coronéis com os seus
subordinados (escravos e trabalhadores), que, segundo Carvalho, não eram
cidadãos do Estado brasileiro, mas súditos dos coronéis. Mesmo quando o Estado
se aproximava desses cidadãos, ele o fazia de acordo com a vontade dos coronéis.
Configurava-se uma troca de favores entre o Estado e os coronéis. Estes
davam o apoio político aos governadores locais em troca de que pudessem fazer a
indicação de autoridades em suas regiões, como delegados de polícia, agente de
correio, professora etc. Até o final do período da Primeira República, a intervenção
37
do Estado nas questões sociais se pautava nas práticas coronelistas do
paternalismo, corrupção e clientelismo constituídas na relação entre o governo e o
senhoreado. Assim, formava-se uma margem de indivíduos não cidadãos e pobres
destituídos de proteção institucionalizada pelo Estado e, não tendo outra opção,
passavam a se colocar sob a proteção dos coronéis.
Nesse sentido, Lapa (2008) identifica o que denomina de um amplo sistema
de favor que, para o autor, confere status e legitimou a reprodução da pobreza na
época. O sistema de favores seria constituído pelo Estado e outras instituições por
meio de uma rede que se formava, voltada à mediação dos considerados pobres por
meio de trabalhos de filantropia, tais como creches, orfanatos, santas casas,
albergues etc. O sistema de favor, segundo o autor, pode assumir exacerbadas
proporções numa sociedade estamental, como: permite acomodar econômica e,
socialmente, uma população caracterizada como semiociosa ou subempregada,
considerando aqueles não incorporados ao sistema de produção ou ao aparato
filantrópico.
O autor ainda observa que o aparato ao pobre tinha seu preço. Uma forma de
custeio pertencente ao sistema de favor era socializada por meio do trabalho
voluntário dos próprios pobres, meio a donativos e à solidariedade humana motivada
pela igreja. A filantropia cristã é observada como uma peculiaridade social da época,
uma maneira de projeção social que se dava por meio da caridade pública, uma
espécie de apelo ao espírito cristão. Durante toda segunda a metade do século XIX,
durante o período da sociedade escravista, o financiamento de trabalhos
filantrópicos se devia ao senhoreado agrário, que detinha muito interesse na
legitimação de seus valores e controle social por meio da sistemática de donativos.
Com base nas discussões apresentadas até então, alguns pontos podem ser
observados sobre o processo de institucionalização da pobreza. É notório que o
controle e o acompanhamento das situações da pobreza ocorriam mais na esfera da
sociedade civil e menos na esfera estatal. Dessa forma, a marca do Estado na
intervenção junto aos pobres era a sua ausência. As raras inserções do Estado, que
se davam de maneira precária, estavam focadas em perspectivas punitivas e
perigosas da pobreza, ou seja, o pobre tinha que ser disciplinado, controlado e
monitorado. Quando de ações interventivas pelo Estado, a relação era tratada com
base em características paternalistas e de caridade. E, finalmente, esteve presente
na intervenção junto à pobreza desse período a igreja, uma instituição de presença
38
política forte, que pregava a intervenção aos pobres com valores e filantropia cristã.
A igreja liderou as ações de caridade por muitos anos com a rede de instituições
privadas como mediadoras junto ao Estado do aparato à pobreza.
1.2
Aparato filantrópico da pobreza: a igreja e a institucionalização da
caridade
A igreja se insere na história do estudo da pobreza como um das primeiras
instituições a propagar e operacionalizar o conceito de pobreza e institucionalizá-lo
na mediação das ações de assistência aos pobres. Durante as periodizações
analíticas apresentadas neste estudo, a igreja sempre se manteve presente nos
processos que intermediavam a prática e os processos de transformação na
abordagem da pobreza, estando presente, inclusive, como braço da estrutura do
Estado e da sociedade como principal referência do tema. Dessa forma, é uma
instituição que merece atenção especial para compreensão de alguns aspectos que
balizavam a intervenção junto aos pobres.
Castel
(2012),
ao
discutir
os
processos
de
instrumentalização
e
especialização decorrentes da assistência à pobreza, argumenta que a caridade foi
um dos primeiros elementos usados para instrumentalizar os sujeitos e estruturas no
atendimento aos pobres. A pobreza era valorizada como uma espécie de
dignificação humana diante de Cristo, ao mesmo tempo em que era valorizada em
referência a Cristo. A caridade seria o elemento fundamental, quase uma missão
aos predestinados a ajudar os pobres. A caridade estaria relacionada, assim, a uma
virtude Cristã dentro do modelo de sujeitos e homens religiosos cristãos que
souberam despojar-se dos fardos terrestres a fim de se aproximarem de Deus.
Esse despojamento não pôde ser praticado por qualquer um e constituiu um
componente essencial da vocação religiosa. Porém, para o autor, a pobreza
reconhecida pela igreja não era qualquer forma de pobreza, ou seja, “a caridade
cristã não se mobiliza automaticamente para socorrer todas as formas de pobreza”
(CASTEL, 2012, p. 63). A condição social do pobre suscitava uma gama de atitudes
que iriam da comiseração ao desprezo e, com frequência, tinha uma conotação
pejorativa. Assim, a pobreza por opção, enquanto sublimação espiritual, era a
pobreza reconhecida e valorizada como sendo um componente da santidade.
39
Para o autor, essa ambivalência seria uma contradição inerente à intervenção
histórica da pobreza pela representação cristã que procurou ser superada no plano
prático da intervenção por meio de dois modos específicos de gestão da pobreza: a
primeira, na forma inscrita numa assistência denominada por Castel (1998) de
economia de salvação e, a segunda, numa atitude cristã como a caridade e a
economia da salvação, fundamentada na classificação discriminante das formas de
pobreza.
A economia da salvação seria, nessa perspectiva, uma instrumentalização do
pobre, caracterizado como desgraçado e lastimado, enquanto um meio privilegiado
para que o rico praticasse a suprema virtude cristã, a caridade. A prática da caridade
cristã permitia ao rico caridoso a sua salvação. Tal prática foi a responsável, em
grande parte, pelo orçamento medieval da assistência, por meio de esmolas e de
doações às instituições de caridade.
Porém o fato de a pobreza ter sido um instrumento para obtenção da
salvação não significou uma aceitação e gosto pelo pobre como pessoa, nem pela
pobreza. Na verdade, foi estabelecida entre o rico e o pobre uma economia política
da caridade, ou seja, a caridade legitimou-se como um valor de troca que apagava,
num momento em que as especulações financeiras ainda provocavam sentimento
de culpa, o pecado e levava à salvação (CASTEL, 2012).
Por meio dessa correlação, no entanto, entre a caridade e a economia de
troca, ocorreu o que o autor chama de percepção discriminatória dos pobres, ou
seja, eram excluídos todos aqueles pobres que se revoltavam contra a ordem do
mundo desejada por Deus. Revoltar-se contra a condição de pobreza era um ato de
não aceitação da condição de santificação da pobreza diante Deus, o que
representava um ato de heresia por parte do pobre.
O pobre mais digno de mobilizar a caridade seria aquele que exibisse, em seu
corpo, a impotência e o sofrimento humano. Nesses termos, os sinais físicos da
pobreza eximiam e legitimavam o pobre a uma condição de indigência admitida, ou
seja, um passaporte à condição de assistido, da qual necessitaria de uma
exoneração fundamental, a da não obrigação para o trabalho. A incapacidade física,
a velhice, a infância abandonada, a doença, preferencialmente a incurável, as
mazelas insuportáveis que causassem impacto ao olhar, todas essas situações
eram as condições para ser um assistido e demonstravam que os sinais de
40
decadência apresentados que levavam à incapacidade de trabalhar eram
involuntárias.
A esse movimento, Castel chama de derrelição do corpo para o acesso ao
auxílio à assistência. Essa teria sido a herança do cristianismo medieval, uma
versão da exaltação da pobreza baseada na consciência exacerbada da miséria do
mundo (CASTEL, 2012, p. 68), o que o autor denominará de uma referência por
meio de uma teoria da desvantagem. Nesse sentido, o autor dá uma pista analítica
importante a ser retomada mais à frente neste estudo, quando diz que a referência,
por meio da teoria da desvantagem, constitui uma coordenada básica de qualquer
política da assistência.
No caso do Brasil, a igreja católica foi forte aliada do Estado nas práticas de
assistência à pobreza, como liderança inquestionável (LAPA, 2008). Destacava-se
na coordenação de instituições privadas e no recebimento de doações dos
filantropos que, em troca da caridade, esperavam uma projeção social, por meio dos
nomes proferidos em sermões, registros, placas, nomes de ruas, praças etc. As
ações eram estabelecidas, assim, no âmbito de trocas para ascensão política e
legitimação do poder diante da sociedade. A intervenção quase isolada da igreja
durou até que o Estado brasileiro centralizasse em sua estrutura um modelo de
organização burocrática e a coordenação das ações institucionalizadas estatais de
intervenção da pobreza, processo que será iniciado após o ano de 1930.
As demarcações analíticas desse período histórico podem ser descritas com
as formas de assistência aos pobres pautada no âmbito da caridade e benevolência,
tendo, no ato cristão, mediado pela igreja, o grande motivador, seja como moeda de
troca, seja como forma de associação a ascensão social e poder. Ao mesmo tempo,
as transformações sociais foram indicando a necessidade de um aprimoramento e
apoderamento pelo Estado.
A necessidade do fortalecimento do Estado no atendimento aos pobres se
dava em torno da constituição de um campo de intervenções especiais constitutivas
do social-assistencial, ou seja, um campo de especialização particularizado aos
carentes. O atendimento ao carente historicamente foi se constituindo em objeto de
práticas especializadas (CASTEL, 2012, p. 57), o que daria origem, posteriormente,
a estruturas de atendimento assistencial cada vez mais sofisticada, a tendência que
será analisada a partir da segunda metade do século XX no Brasil.
41
1.3
De 1930 a 1980 – Primeira Ruptura: a institucionalização da pobreza, os
aptos e não aptos e a emergência da assistência social como principal
intervenção entre os pobres
O período de 1930 a 1980 pode ser considerado um primeiro momento de
ruptura na configuração de ações institucionalizadas pelo Estado na intervenção da
pobreza no Brasil. Durante esse período, tem início uma transição da noção de
assistência ao pobre conforme dicionário clérigo, ou seja, uma intervenção por meio
da caridade, da benevolência, que predominou no século XIX, para um ensaio de
centralização e incorporação de ações voltadas aos pobres pela estrutura do
Estado. Esse movimento não significou o abandono da perspectiva de ações pela
caridade junto aos pobres, porém a caridade ganharia seus primeiros entornos
institucionais no papel do Estado, com a continuidade do apoio da igreja e de
instituições privadas.
O processo iniciado a partir dos anos de 1930 leva a uma tecnização da
assistência até então praticada, que passa a ser acrescida da especificidade, do
recorte dos pobres inserido no espaço social público, ou seja, aos pobres cabe uma
intervenção que considere a condição social dos sujeitos. Com isso, a forma
legitimada pelo Estado na intervenção da pobreza passa a ser conhecida como
assistencial e social. Anos mais tarde, a institucionalização e a tecnização das ações
de assistência social tornam-se um método de intervenção especializado, dando
origem a uma profissionalização. A prática aprimorada e tecnificada vai instituir o
curso de Serviço Social20 como profissão.
Sposati et al (1998), ao levantar elementos sobre a história da assistência,
analisa que esta sempre foi uma prática antiga na humanidade. Assim, a
solidariedade social foi uma constante diante de público identificado como pobres:
viajantes, doentes, incapazes, mais frágeis, e inscrevia-se sob diversas formas nas
normas morais de diferentes sociedades. Dessa forma, grupos filantrópicos e
religiosos foram conformando práticas de ajuda e apoio.
No contexto brasileiro, alguns marcos históricos e políticos contribuíram para
que fosse iniciado o processo de afirmação da institucionalização da pobreza pelo
20
O Serviço Social foi implantado no Brasil, especificamente em São Paulo, em 1936, por meio do
Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), que era um dos centros de promoção da Ação Católica de
São Paulo (SPOSATI et al. 1998).
42
Estado, tais como: a saída de um modelo de Estado Federalista Oligárquico
(Primeira República de 1889-1930) para um Estado de Modelo Corporativista (1930),
que via na tutela dos mais pobres uma de suas bandeiras; o aumento do número de
desempregados como consequência decorrente da Revolução Industrial (1930); a
experiência da Era Vargas (1930-1934/1934-1937/1937-1945), que introduziu as
primeiras medidas de institucionalização de ações voltadas aos pobres, como
também a institucionalização de direitos trabalhistas; e, por fim, a continuidade,
manutenção e aprimoramento das práticas e ações de assistência social iniciadas
durante o governo de Getúlio Vargas nos demais governos, incluindo o período da
Ditadura Militar, que vai do Golpe de 1964 a 1985.
Ao mesmo tempo em que as transições históricas desse período levaram o
Estado a centralizar as ações voltadas à pobreza, tal inferência era justificável pelo
aumento considerável da pobreza que ocorria. Dois fatores foram significativos
nesse momento: o contexto da Revolução Social no Brasil e a busca pelo
desenvolvimento e pelo progresso.
A transição da sociedade escravista à sociedade de economia industrial
burguesa se configura, no âmbito social, como a consolidação de mais uma frente
de pobreza. A Revolução Industrial de 1930 no Brasil trouxe como consequência a
não integração de milhares de indivíduos às novas exigências dessa sociedade.
Para um país eminentemente de economia agrícola, tendo no final da Primeira
República 70% do PIB nacional em torno da monocultura de café voltada para
exportação (BOSHETTI et al., 2011), por meio das grandes propriedades e do poder
dos coronéis, a transição da sociedade agrária para uma sociedade industrial
representou a ampliação das condições de pobreza da maioria dos trabalhadores
rurais como também de trabalhadores urbanos, pois estes não atendiam aos
critérios exigidos de mão de obra para industrialização.
A chegada do processo de industrialização põe o Brasil no rol da busca pelo
progresso e desenvolvimento. Isso tem consequências diretas na conceitualização e
intervenção junto aos pobres. Nesse momento, a discussão mundial sobre a
pobreza transitava do âmbito da ajuda e se inseria no viés das causas econômicas
estabelecidas com base nas necessidades criadas pela busca do processo de
desenvolvimento dos países.
O progresso social se configurava, assim, numa condição indispensável para
o alcance do desenvolvimento (ILLICH, 2000), o que cabia bem aos interesses da
43
classe intelectual brasileira da época, como também do pensamento nacionalista
emergente Pós-Primeira República. A industrialização trouxe uma nova agenda, o
papel dos países considerados “desenvolvidos” como provedores de ajuda aos
países “subdesenvolvidos”. O desafio consistia em contribuir para que os países
subdesenvolvidos alcançassem o progresso social, e, dentre outras coisas, tal
condição exigia soluções eficazes para minimizar a situação de pobreza da
população. É nesse contexto que a necessidade dos sujeitos vai assumindo um
caráter cada vez mais institucionalizado sob o olhar dos Estados.
Para Illich (2000), esse contexto tem um custo aos sujeitos que estariam
inseridos num ciclo de raciocínio cujo entendimento era de que grande parte das
pessoas seria necessitada, e essas necessidades lhes dariam direitos, os quais
seriam traduzidos em habilitação para receberem assistência, e, por sua vez, a
assistência impunha determinadas obrigações aos ricos e aos poderosos. No caso
do Brasil, o progresso e a industrialização configura um divisor de águas na
abordagem da pobreza também pelas consequências de exclusão trazidas no
mundo do trabalho.
Nem todas as pessoas, antes acostumadas às dinâmicas e práticas rurais se
adaptavam às novas exigências de ocupação dos novos postos de trabalhos vindos
com a sociedade industrial. Assim, essa mão de obra, em sua maioria, não
conseguia ser inserida nas práticas industriais. Formava-se um aglomerado de
indivíduos desempregados e não “qualificados” destinados a serem trabalhadores na
sociedade industrial. Assim, a condição de pobreza desses indivíduos avançou
consideravelmente. A condição para identificação da situação de pobreza dos
sujeitos passa a ser ratificada e legitimada não mais apenas pela presença de
mendicância no espaço público, nem pela derrelição do corpo (CASTEL, 2012), mas
por uma diferenciação fundamental entre os pobres aptos e os pobres inaptos a
ingressar no mundo do trabalho.
Apesar da diferenciação entre pobres aptos e não aptos ao trabalho não ser
inédita, considerando que o aparato aos pobres estabelecido com a filantropia
institucional (LAPA, 2008) dos períodos anteriores já delimitada, é uma demarcação
importante para analisar os processos institucionalizados que passarão a ser
configurados pelo Estado e pelas estruturas sociais nas ações voltadas aos pobres.
Vale ressaltar que os ganhos institucionalizados em direitos sociais (CARVALHO,
2012) advindos a partir da década de 1930 no Brasil teve foco em um tipo específico
44
de pobreza – os pobres que trabalhavam. Para os pobres não aptos ao mercado de
trabalho, que crescia em números consideráveis e inchava os centros urbanos,
continuava o atendimento de articulação entre a rede de atendimento privada, que
articulava o trabalho da igreja com o apoio do Estado. A diferença se encontrava no
fato de o Estado ter um maior controle da rede de atendimento e do olhar técnico
que foi sendo incorporado no atendimento aos pobres.
A tecnificação do olhar estatal sobre a pobreza foi uma perspectiva trazida
com a busca pelo progresso e pelo crescimento considerável da pobreza e sua
visibilidade nos espaços públicos, tais como os centros urbanos. Países como os
Estados Unidos, que vendiam seu modelo de desenvolvimento para os países
subdesenvolvidos, desde os anos 1960, segundo Illich (2000), já indicavam que a
pobreza tinha deixado de ser destino para tornar-se um conceito operacional, ou
seja, o resultado de condições econômicas e sociais injustas, ausência de um
sistema educacional moderno, a prevalência de uma tecnologia atrasada e
inapropriada. Assim, a pobreza passava a ser considerada uma epidemia, curável,
com a terapia adequada, ou seja, um problema a ser solucionado (ILLICH, 2000,
p.161).
A necessidade de aceitar a pobreza como um destino, sorte, providência,
vontade de Deus foi desmistificada e, já nos anos iniciais do século XX, ela perdeu
muito da sua legitimidade na medida em que o progresso passou a ser a luta e a
reivindicação política contra todas as formas de aceitação da necessidade como
naturalizada (ILLICH, 2000).
No entanto, no caso do Brasil, ainda em 1930, o país saía de um modelo de
Estado Federativo Oligárquico da Primeira República em decorrência de inúmeras
revoltas populares que refletiam acontecimentos exteriores e traduziam a
insatisfação interna com o mando dos coronéis. Nesse mesmo ano, o então
presidente da República Washington Luís foi deposto por um movimento armado
dirigido por civis e militares, o que ficou conhecido como Revolta de 1930
(CARVALHO, 2012).
Com isso, em 1934, após um período transitório de um governo
revolucionário, uma constituinte confirmou o nome de Getúlio Vargas para
presidente do Brasil. A bandeira política de Vargas defendia o fortalecimento do
governo central e um Estado intervencionista e propunha reformas econômicas e
sociais. Para Schwartzman (2004), o que houve nos anos 1930 no Brasil foi uma
45
convergência de concepções e tendências positivistas e eugênicas culminando
numa nova visão em que observava a sociedade como um grande organismo em
que cada parte desempenhava suas funções para que todos vivessem em harmonia
sob a tutela de um poder magnânimo e protetor, esse era o modelo corporativista de
Estado.
Destacava-se como intelectual defensor desse modelo de Estado o intelectual
Oliveira Viana, responsável por elencar os eixos norteadores dos grandes problemas
que o governo brasileiro deveria pautar em sua estratégia de intervenção. Dentre os
eixos estava a oficialização da assistência social, elevando-a à condição de um
serviço público, mesmo quando realizada pela iniciativa privada (SCHWARTZMAN,
2004, p. 22). Isso significava que o Estado deveria aprimorar os serviços
organizados pela caridade e pela filantropia, no sentido de submetê-los à sua
disciplina, ao seu controle e à sua orientação. Além disso, deveria entrosar os
serviços para os pobres numa engrenagem das instituições oficiais e administrativas
do Estado para que se estabelecesse assim uma progressiva identificação da
assistência social privada com a assistência social pública.
O cenário de aquisições no âmbito de direitos sociais institucionalizados no
Brasil, a partir do ano de 1930, ocorreu, efetivamente, antes que Getúlio Vargas
assumisse a Presidência e não foi apenas uma delegação do Estado. Nesse
período, surgiam as primeiras organizações sindicais que, diante da sociedade
industrial no Brasil e diante do aumento do número de desempregados, iniciaram
movimentos reivindicatórios de segurança para aqueles que conseguiam ser
trabalhadores na sociedade industrial. Pode-se listar como resultado desse
movimento as aquisições no âmbito do Direito Trabalhista desse período:
Quadro 1: Institucionalização de Direitos Sociais – anos de 1930-1945 no Brasil
ANO
DIREITOS SOCIAIS ADQUIRIDOS
1919
Brasil assina o Tratado de Versalhes (OIT) – Carvalho, 2012, p. 63
1923
Criado Conselho Nacional do Trabalho (permaneceu inativo)
Criação da Caixa de Aposentadoria e Pensão para os ferroviários
1926
Regulamentação do direito às férias de trabalho (regulamentado de
maneira efetiva para bancários, comerciários e industriários entre 1933 e
1934)
Criação do Instituto de Previdência para funcionários da União
46
1930
Criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio
Criação do Ministério da Educação e Saúde Pública
1931
Criação do Departamento Nacional do Trabalho
1932
Decretada jornada de trabalho de 8 horas no comércio e indústria
Regulamentado o trabalho para menores
Criada a Carteira de Trabalho
1933
Criado Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Marítimos (IAPM)
Ampliação das Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs)
1938
Criado Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado
(Ipase)
1940
Instituído o salário mínimo
1941
Justiça do Trabalho entre em funcionamento
1943
Consolidação das Leis de Trabalho
Fonte: dados da pesquisa bibliográfica da autora.
Carvalho (2012, p. 124) considera que, apesar da efervescência do período,
os anos de 1930-1945, que incluem os anos da Era Vargas, foram os anos em que o
grosso da legislação trabalhista e previdenciária e dos direitos sociais foram
implantados. O que veio depois, para o autor, foram apenas aperfeiçoamento e
racionalização. Yazbek et al. (2012) também reconhecem que o Estado brasileiro no
período de 1930 a 1943 passa a assumir um papel de regulação ou de provisão
direta no campos da previdência, educação, saúde etc. Porém o padrão de
cidadania e da constituição dos direitos tinha por base o mercado do Estado
regidamente controlado pelo próprio Estado. Assim, ser cidadão significava ter
carteira assinada, pertencer a um sindicato, ou seja, uma cidadania restrita ao meio
urbano. Seria um processo que o professor Wanderley Guilherme dos Santos (1987)
chama da constituição de uma cidadania regulada.
Como se vê, há um grande aparato que se forma institucionalmente em torno
da temática da pobreza e do processo de cidadania para os pobres aptos ao
trabalho. Porém, nesse contexto, como o Estado institucionaliza as ações voltadas
aos considerados não aptos ao trabalho?
A resposta a essa questão pode ser iniciada com a percepção de que a
bibliografia que trata do período seja sobre assistência social, cidadania ou Estado,
invisibiliza o público até então denominado de pobres que, no fim do século XIX,
47
passa a ter no foco a pobreza decorrente das relações de trabalho da época e a
transição para uma sociedade de modelo urbano-industrial (YAZBEK et al., 2012).
Assim, a institucionalização da pobreza, em suas primeiras medidas de aquisição de
direitos, ocorre, prioritariamente, para os pobres que conseguiam se manter em
postos de trabalho e/ou àqueles que estavam nele e foram excluídos.
As ações da assistência social, nesse momento, começam a ser incorporadas
às práticas institucionalizadas pelo Estado dentro do modelo de Estado paternalista
e clientelista, no período ditatorial, que correspondia ao Estado Novo, golpe de
Estado de Getúlio Vargas, em 1937 (SPOSATI et al., 1998), que teve o apoio dos
militares. Logo após, em 1938, foi instituído o Decreto (Lei nº 525) que criou a
organização do Serviço Social enquanto modalidade de serviço público. Logo na
construção do Serviço Social, existiu uma tensão pelo desejo de que a criação do
serviço negasse a prática da assistência tal qual aquela praticada anteriormente pelo
Estado e pela igreja. Porém parece ter sido uma tensão que esteve presente apenas
nos profissionais que passaram a compor tecnicamente as ações do serviço social
do que uma tensão presente nos objetivos do Estado. Poderia arriscar a hipótese de
que essa tensão entre o modelo de assistência aos pobres pretendido pelo Estado e
o modelo de assistência desejado pelos profissionais de Serviço Social continue até
hoje de maneira ressignificada, fato que a presente estudo pretende abordar com a
continuidade da pesquisa.
A primeira grande instituição de assistência social brasileira foi a Legião
Brasileira de Assistência (LBA), criada em 1942 e reconhecida com o status de
colaboradora do Estado. Ela foi criada para atender às famílias dos pracinhas
envolvidos na Segunda Guerra Mundial, tendo na coordenação a primeira-dama
senhora Darci Vargas. Estatutariamente, o Estado assegurava que a presidência era
restrita às primeiras-damas da República (SPOSATI, et al. 1998), movimento que
deu início ao que historicamente ficou conhecido como Primeiro Damismo.
Para Sposati, a LBA significou a simbiose entre a iniciativa privada e a
pública, como também a relação benefício/caridade e benefício/pedinte, o que
conformava a relação entre Estado e classes subalternas. Há um entendimento de
que existe uma dificuldade de estabelecer marcos em relação à política de
48
assistência social na história do Brasil21 devido ao seu caráter fragmentado,
diversificado, desorganizado, indefinido e instável. Nesse sentido, a LBA
representou a primeira iniciativa das ações de centralização da assistência social no
âmbito federal. Boschetti et al. (2011) avaliam que essas características denotam o
teor de tutela, favor e clientelismo na relação entre Estado e sociedade no Brasil. A
LBA se configurou numa instituição responsável por articular a assistência social e a
rede de entidades privadas por meio de convênios. A marca assistencialista, seletiva
e o Primeiro Damismo continuarão a acompanhar o tratamento aos considerados
pobres pelo Estado brasileiro até os marcos da Constituição Federativa de 1988.
A institucionalização da assistência contou, em 1942, com a criação do
Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e, em 1946, o Serviço Social
da Indústria (Sesi). Esses órgãos foram criados e direcionados para a qualificação
dos trabalhadores. Diante dessas perspectivas aparentemente opostas entre
objetivo da LBA e os Serviços Sociais Sesi e Senai, Sposati et al. (1998) avalia que,
em termos técnicos e científicos, diante dessas instituições, o Serviço Social tomou o
caminho da dicotomia entre uma tendência que desenvolvia processos de promoção
social entre os pobres e a classe trabalhadora e a assistência social que continuava
mais próximas das ações da LBA e das primeiras-damas. Surge, assim, nova
dicotomia na racionalidade do tratamento da pobreza pelo Estado e pela sociedade.
Voltando ao contexto político, em 1945 ocorre a queda do governo de Getúlio
Vargas e seu legado de intervenção nos moldes de Estado corporativista e
paternalista chega ao fim. A partir daí, em 1946, tem início a constituição de um
período de características democráticas no Brasil (CARVALHO, 2012; BOSCHETTI
et al., 2011), em que o voto foi expandido a todo cidadão brasileiro. Mesmo assim
não evitou as intensas turbulências econômicas, políticas e sociais de um país que
já se caracterizava como urbano e com uma indústria de base forte.
Logo após a queda de Vargas, entre 1946 e 1964, ocorre a expansão das
políticas sociais, dentre elas a de atendimento à pobreza, que é considerada lenta e
seletiva, mantendo ainda a característica corporativista da Era Vargas, marcada por
aperfeiçoamentos institucionais e disputas de projetos (BOSCHETTI et al. 2011).
21
Ver: DRAIBE, S.M.; AURELIANO, L.A. Especificidade do “welfare state” brasileiro. In:
MPAS/CEPAL. A política social em tempo de crise: articulação institucional e descentralização.
Brasília: MPAS/CEPAL, 1989. v. 3.
49
Os militares voltam ao poder com o golpe de 1964, e o Estado Nacional
Desenvolvimentista dá vez à perspectiva do Estado Tecnocrático em que a
internacionalização e a modernização foram mecanismos internamente apoiados
pela ação do capital estrangeiro, o que ficou conhecido como o período de uma
ditadura modernizadora conservadora (BOSCHETTI et al., 2011). A tendência do
novo modelo de Estado não trouxe significativas mudanças às intervenções técnicas
junto à pobreza a não ser pela maior racionalidade e sofisticação técnica que buscou
(SPOSATI et al, 1998). A racionalidade foi instrumentalizada no uso da técnica de
planejamento social como forma de “correção” das distorções trazidas pelo
planejamento econômico.
O caráter autoritário do Estado brasileiro pós-64 traz, assim, a forte tendência
de uma intervenção governamental pautada nas políticas sociais de caráter
assistencialista. Os programas governamentais muitas vezes foram usados como
forma de legitimação e desmobilização de setores sociais organizados no regime
ditatorial. Sposati et al (1998) chama esse movimento de um mecanismo de
combinação de repressão-assistência. Ainda nesse período se destaca o Milagre
Brasileiro, uma intensa produção industrial, como a de automóveis e de
eletrodomésticos, fabricados em massa para o consumo interno, o que acontecia
desde o Plano de Metas de JK. Nesse período, houve razoável expansão da
cobertura em política social conduzida sob forma tecnocrática e conservadora em
meio à restrição de direitos civis e políticos.
Muito mais que mudanças no modelo de intervenção estatal, localiza-se uma
nova tensão pautada no que se pode denominar de tensão interior Estado versus
assistência social. Trata-se de duas perspectivas de assistência social diferenciadas
nesse momento – a do Estado e a dos profissionais técnicos que executam a prática
da assistência social para o Estado. Como havia analiticamente apontado
anteriormente, uma das características fundamentais que marca a transição da
institucionalização da pobreza para o Estado é o próprio conflito interno existente na
prática profissional junto ao público da assistência social. O modelo de Estado
concebe uma forma de intervenção, enquanto os técnicos profissionais do Serviço
Social não a reconhecem e defendem outra abordagem. Tal fato pode ser percebido
na fala de Aldaíza Sposati:
a busca da transformação social nessa vertente é considerada incompatível
com a prática institucional. Esta é negada a favor de práticas alternativas
50
pautadas na militância política. Favorece esta negação a compreensão do
Estado como comitê de classe, destinado irredutivelmente à reprodução
ideológica, à manutenção da dominação de forma linear e pronta. As forças
sociais continuam a ser lidas como bloco monolítico. (SPOSATI et al, 1998,
p. 51).
Durante as décadas de 1970 e 1980, ainda sob a orientação do autoritarismo
da Ditadura Militar, Yazbek et al. (2012) avaliam que as políticas sociais refletiam o
binômio também apontado por Sposati (1998), da compensação da repressão frente
aos movimentos sociais, incluindo, nesse sentido, o movimento que ficou conhecido
como o movimento do sindicalismo autêntico.
Ainda na década de 1970, especificamente em 1974, foi criado o Ministério da
Previdência e Assistência e Social incorporando a LBA, a Fundação para o BemEstar do Menor e a Central de Medicamentos. Tempos depois surgem outros
institutos, como INPS, INAMPS, IAPAS. Porém a institucionalização da saúde e da
previdência se deu de maneira diferenciada, pois a institucionalização da assistência
social se deu com menor importância e praticamente foi implementada pela rede
conveniada e de serviços prestados pela LBA.
Em contexto ampliado, o Estado brasileiro se insere, a partir da década de
1980, em período que ficará conhecido como a década perdida, que representará o
reflexo da crise do momento internacional vivida pelo capitalismo e de um processo
quase zero de crescimento interno, de um processo de aumento de endividamento e
recessão. Nesse cenário, a pobreza cada vez mais vai sendo reivindicada como
intervenção e ações mais concretas. A pobreza começa a ser, cada vez mais,
visibilizada nas ruas, as pessoas começam a protestar pelo alto custo de vida.
Diante dos caminhos traçados na economia brasileira na década de 1970, abre-se
um pano de fundo para a próxima década – as ações estratégicas na área social
orquestrada por um novo modelo de políticas, a perspectiva de um modelo
neoliberal (WANDERLEY, 2008).
1.4 Da década perdida à constituição de direitos (1980-1988)
A década referente ao período de 1980 e 1988 foi de mudanças significativas
no Estado brasileiro no que diz respeito às políticas sociais voltadas à intervenção
junto à pobreza. Podem ser apontados dois fatores fundamentais referentes a tais
mudanças: primeiro, o cenário econômico pelo qual passou o país, diante das
51
restrições trazidas no papel do Estado enquanto papel regulador durante a “década
perdida”, e o segundo fator, a agudização das formas de pobreza com o crescimento
das desigualdades sociais.
A “década perdida” (WANDERLEY, 2008; BOSCHETTI et al., 2011) é
considerada a fase em que a inflação brasileira quase sem controle teve índices
elevadíssimos, associado ao fato de a dívida externa atingir níveis alarmantes. O
Brasil saltou de uma inflação de 91,2% em 1981 para 217,9% em 1985. Nesse
sentido,
gerou-se
uma
crise
de
endividamento
que
ocasionou
diversas
consequências. Foram efeitos da crise de endividamento: crise dos serviços sociais
públicos (aumento da demanda em contraposição à não expansão de direitos);
desemprego; aumento da informalidade na economia e um sistema de produção
para exportação em detrimento das necessidades internas (BOSCHETTI et al.,
2011, p. 139).
A saída encontrada diante da crise foi a inserção do Brasil no projeto de
medidas neoliberais, que significou, no âmbito das políticas sociais, ajustes e corte
de gastos na área social. Todo esse movimento esteve orquestrado e monitorado
com base no modelo econômico do Banco Mundial e do Fundo Monetário
Internacional, por meio das regras e indicações do Consenso de Washington22.
Para Wanderley (2008), essa transição, diante da crise deflagrada que
representou o aparente esgotamento do capitalismo de produção, o Estado passou
a ser concebido como o vilão responsável por todos os problemas existentes, o que
socialmente foi entendido como a incapacidade do seu papel regulador. Nesse
sentido, tem início a adesão para uma intervenção em que o mercado é concebido
como potencial regulador, enquanto o Estado vai assumindo um papel mínimo de
regulação. Para os neoliberais, o bem-estar está associado ao mérito individual e
não aos direitos de cidadania social, à produtividade capitalista livre de controles e
22
Consenso de Washington foi um encontro que ocorreu no ano de 1989, em Washington, nos
Estados Unidos. O encontro teve o objetivo de, com a presença de representantes do Fundo
Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID) e do governo norte-americano, pensar reformas econômicas para a América Latina a partir de
uma visão neoliberal de intervenção, diante do cenário de crise e recessão instaurado. Assim, foram
estabelecidas regras que buscavam um ajuste macroeconômico dos países considerados em
desenvolvimento. As conclusões saídas desse encontro iriam condicionar a concessão de crédito aos
países nessa condição. As regras principais do “consenso” estavam pautadas na perspectiva de
abertura econômica e comercial, aplicação da economia de mercado e controle fiscal
macroeconômico.
52
não à redistribuição de bens e serviços coletivos, e à igualdade de oportunidades e
não à igualdade de resultados (PEREIRA, 2004).
No âmbito das políticas públicas, o modelo de Estado neoliberal terá severas
inferências no corte de gastos e controle por meio da concepção de programas de
austeridade de natureza deflacionista e de ajustes estruturais na máquina dos
Estados ( BOSCHETTI et al., 2011). Assim, as políticas públicas sociais voltadas ao
controle da pobreza se inserem num modelo de intervenção mais amplo, ou seja, a
intervenção do Estado junto aos pobres no Brasil passa a seguir o modelo
estabelecido pelo Banco Mundial, que concebe a pobreza como um problema social
que necessita de intervenções estatais focalizadas.
O critério de focalização levará a um método de identificação dos pobres por
meio da contagem dos pobres (LAVINAS, 2003). Assim, a abordagem da pobreza se
instrumentaliza de métodos para calcular e classificar os grupos desfavorecidos.
Isso ocorre com base na adoção de metodologias de organismos internacionais,
desde o fim da década de 1960, que tinha como objetivo a divulgação de formas de
estimar o fenômeno, dentre elas destacou-se, fortemente, a linha da pobreza23.
“Pobreza torna-se sinônimo de carência e, em lugar de pobre, passa a ser
denominada a expressão população de baixa renda. Isso vai permitir identificar e
classificar os pobres com o intuito de focalizar a ação social do no combate à
pobreza” (LAVINAS, 2003, p. 44).
23
A linha de pobreza é uma metodologia de classificação utilizada pelo Banco Mundial que demarca
uma posição da condição de pobreza dos sujeitos com base no recorte de renda apresentado. Assim,
pode-se estar acima ou abaixo da demarcação do valor estabelecido pela linha de pobreza. O valor é
calculado levando em consideração o mínimo (segundo aferição do Banco Mundial) para subsidiar a
sobrevivência de uma família em termos de alimentação, habitação, vestuário, cuidados de saúde
etc. Em outubro de 2015, o Banco Mundial anunciou uma atualização da linha de pobreza para o
valor de US$ 1,90 por dia. Para o BIRD, a “nova” linha preserva o poder aquisitivo real da linha
anterior, que era de US$ 1,25 por dia (valores com ano base de 2005) nos países mais pobres do
mundo. No caso brasileiro, as ações de combate à pobreza passarão, a partir das reformas do
Estado na perspectiva de ajuste econômico a adotar a linha de pobreza para focalizar os grupos
específicos das ações. Outra linha demarcatória da pobreza será utilizada no caso brasileiro: a linha
de extrema pobreza. Tal metodologia foi instituída pelo governo brasileiro (Ipea, IBGE, contribuições
da Cepal), tendo como base o método de constituição da linha de pobreza internacional (Banco
Mundial). O objetivo foi chegar aos grupos considerados no Brasil em situação de miséria, ou seja,
vivendo muito abaixo da linha de pobreza. Essa foi uma proposta de elegibilidade técnica encontrada
pelo governo para propor a expansão da transferência de renda do PBF a grupos que mesmo
recebendo os recursos do referido programa não superavam a linha de pobreza. O valor da linha
demarcatória da extrema pobreza para classificação dos pobres pelo governo brasileiro atualmente é
de R$ 77,00 per capita por mês. Sugestão de consulta para aprofundamento: SOARES, S.; OSORIO,
R; SOUZA, G.F. Erradicar a pobreza extrema: um objetivo ao alcance do Brasil. Brasília: Ipea, 2011
(Texto
para
Discussão,
n.
1619).
Disponível
em:
<http://ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/TDs/td_1619.pdf>.
53
Nos anos 1980, o conceito de pobreza é entendido também como exclusão e
esteve relacionado com a desfiliação dos trabalhadores do mundo do trabalho.
Diante disso, surge uma nova categoria de denominação dos pobres, “novos pobres”
(LAVINAS, 2003). Para a autora, no caso do Brasil, existiu um modelo de exclusão
dos trabalhadores presentes em todas as fases de produção capitalista, o que levou
a um padrão de desigualdade extrema que levou à exclusão de milhares da classe
trabalhadora, que tiveram negada sua cidadania econômica e social. A pobreza é
entendida, assim como consequência da exclusão.
Para Lavinas (2003), a exclusão seria um dos determinantes da pobreza na
segunda metade dos anos 1970, como também ao longo da década de 1980. Isso
ampliaria o olhar sobre a pobreza como um tipo de vínculo, de uma inserção
precária, débil e instável. Apesar disso, Lavinas (2003) considera que pobreza e
exclusão constituem duas categorias associadas, porém diferenciadas, pois a
exclusão é o oposto de integração social, que pode ser dada por dois eixos: inserção
profissional e inserção nas redes de solidariedade e reciprocidade.
Nesse complexo campo de concepções analíticas, políticas, sociais e
econômicas é que se inserem as intervenções Estatais junto à pobreza na década
de 1980. Num cenário em que, cada vez mais, o modelo de Estado neoliberal
responde com agravamento e desencadeamento da desigualdade social. Uma
demarcação fundamental é o distanciamento estabelecido com essa mudança de
paradigma do modelo de intervenção estatal dos anos que se constitui no país das
tendências do Estado protetor, corporativista e tecnocrático até então experimentado
no país desde a presidência de Getúlio Vargas.
Draibe (1993) defende que esteve em constituição no Brasil no intervalo dos
anos de 1930 a 1970 aspectos claros definidores de um Estado de Bem-Estar Social
com as especificidades brasileiras. A autora observa uma tendência no final dos
anos 1970 de um esgotamento e crise no que ela chama de núcleo duro da
intervenção social do Estado brasileiro. Esse esgotamento estaria localizado: 1. no
aparelho centralizado que suporta intervenção social; 2. na identificação dos fundos
públicos e recursos que apoiam, financeiramente, os esquemas de políticas sociais;
e, 3. nas regras de inclusão-exclusão social que marcam o sistema. Assim, em
relação à classificação de Sônia Draibe para o que ela denomina de Estado de BemEstar Brasileiro, o período que inclui 1964 a 1985 corresponde a uma consolidação
institucional e reestruturação conservadora, que é subdividida em:
54
1964-1977  consolidação institucional: faz referência ao quadro geral da
ação social do Estado, como educação, saúde, habitação (DRAIBE, 1993, p. 21);
1977-1981  expansão massiva (associação para denominar o modo de
crescimento econômico e a cobertura da proteção social, como também
características de políticas de massas (Ibidem); e
1981-1985  reestruturação conservadora: referência à reestruturação a
partir de Regime Militar e da Nova República (Ibidem).
De maneira geral, a autora acredita que, desde os fins dos anos 1970, o
crescimento do espaço assistencial de políticas sociais significou o caráter de
reforço da dimensão clientelista, mesmo com a abertura política pós-1985. Seria um
período que ela ratifica na classificação acima como reestruturação conservadora.
Enfim, retomando o fio condutor da análise histórica da formação política do
Estado brasileiro, todo o processo vivenciado com a “década perdida” consolidou
uma deslegitimação dos governos militares e abriu espaço para uma transição
democrática. Por meio do movimento de trabalhadores e dos movimentos sociais, foi
estabelecido um congresso constituinte, em clima de tensões envolvendo interesses
políticos diversos. Ao mesmo tempo, o texto constituinte de 1985 representou
avanços na área de direitos sociais, seguridade social, direitos humanos e políticos e
manteve traços conservadores (BOSCHETTI et al., 2011; DRAIBE, 1993).
A “década perdida” finaliza esse período deixando herança de elementos
fundantes na intervenção junto aos pobres para os anos 1990. Em primeiro lugar,
pela crise da década ter fomentado mobilizações massivas de trabalhadores e
movimentos sociais nas ruas requerendo o olhar da pobreza como direito e não mais
como assistencialismo e/ou clientelismo, o que desencadeará a assistência social,
sendo reconhecida como direito constitucional e, em segundo, porque foram
iniciados os primeiros passos para inserção definitiva do Estado brasileiro no modelo
neoliberal de intervenção, o que irá pautar todo o aparato de políticas e programas
de combate à pobreza dos governos brasileiros posteriores a 1988, fato que será
analisado no capítulo seguinte.
Objetivou-se com esse capítulo realizar um levantamento dos marcos
históricos considerados relevantes para compreender o processo de configuração da
institucionalização da pobreza pelo Estado brasileiro.
55
Com isso, destacamos como conclusão deste capítulo a confirmação da
presença sempre reguladora do Estado em relação à pobreza, mesmo quando ele
esteve ausente tratando-a como caso de polícia, de controle da ordem social. Outro
dado é observar que os processos de institucionalização por via burocrática ocorrem
tardiamente no Brasil, com o atendimento às classes mais pobres mediado pelas
conquistas de direitos trabalhistas. A partir de então os processos foram sendo
aprimorados
às
exigências
decorrentes
dos
fatores
socioeconômicos
transformadores da sociedade brasileira.
Importante destacar ainda que, paralelamente ao processo de racionalização
burocrática ocorrido durante esse período, para a pobreza e para o pobre ainda foi
se mantendo o espaço do “pedinte” e da “esmola”. Por conseguinte, mesmo
chegando a década de 1988 (CF/1988) com a proposta normativa da transição da
“caridade” para o “direito”, precisa ser problematizado se a institucionalização do
combate à pobreza tem conseguido superar esse processo desqualificado das
ações voltadas aos pobres. Esses serão os próximos passos dessa pesquisa.
56
Capítulo II  Constituição de 1988: a transição democrática e políticas sociais
No ano de 1986, o Brasil dá início a mais um processo de transição política no
país. Nesse ano, foi realizada mais uma eleição da Assembleia Nacional
Constituinte na história brasileira, a quarta da República (CARVALHO, 2012) que
teve como objetivo a constituição de minucioso documento, que, mais tarde, após
trabalho de mais de um ano, daria corpo ao texto que, no ano de 1988, promulgaria
a nova Constituição Brasileira. A nova Constituição passou para a história como: a
Constituição Cidadã, em virtude de ter, na sua estrutura, a tentativa de centralidade
na segurança da garantia de direitos a todo cidadão brasileiro. O referido texto
constitucional finalizou um período de ditadura militar no Brasil e iniciou o processo
de redemocratização que refletiu discussões e tendências que giravam em torno do
debate da cidadania e dos direitos universalizados a ser institucionalizados pelo
Estado brasileiro.
Nesse sentido, uma das principais garantias de direitos adquiridos está no
Artigo 194 sobre a Seguridade Social Brasileira. A Seguridade Social “compreende
um conjunto integrado de ações de iniciativas dos poderes públicos e da sociedade,
destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência
social” (CFB, Art.194, Cap. II, 2010). Assim se formam os três pilares da seguridade
social no Brasil, que têm como ponto principal a transferência normativa para o
Estado da responsabilidade de implementação de direitos universais. O acesso aos
direitos, porém, se divide em duas prerrogativas: os direitos contributivos e não
contributivos. Do tripé da seguridade, a previdência social mantém o caráter
contributivo e de filiação obrigatória, enquanto a saúde e a assistência assumem o
caráter universal e devem ser asseguradas pelo Estado de forma gratuita sem
obrigatoriedade de contribuição.
Diante dessas aquisições, a promulgação da Constituição Federal de 1988
representou um marco de ruptura no cenário até então instituído das políticas
públicas no diz respeito à intervenção estatal no combate à pobreza no Brasil. É a
partir do marco da constituição cidadã que se legitimará um conjunto de ações
estatais voltadas ao combate à pobreza no Brasil. Nesses termos, duas
demarcações analíticas se fazem importantes. A primeira refere-se ao processo de
57
institucionalização da pobreza pelo Estado que passa a ser de maneira definitiva
uma marca da intervenção no combate à pobreza nos anos seguintes, tendo como
características fortes a tendência ao fortalecimento de políticas focalizadas,
descentralizadas em que o monitoramento e o controle das ações se configuram na
esfera federal, estadual e municipal.
Dos três entes, a esfera federal assume o papel centralizador das diretrizes
dadas aos demais entes federativos. Por outro lado, a relação entre as instituições
da sociedade civil que trabalham no atendimento aos pobres e o Estado adquire o
formato de parceria, o que significa ir além da execução dos diversos serviços e
programas. Em outras palavras, trata-se de uma parceria presente em todo o trajeto
da concepção da política pública, seja no papel de monitoramento conjunto das
ações pelo Estado e/ou pela sociedade, seja na constituição de conselhos e comitês
deliberativos. É nesse momento que surge fortemente conceitos de participação e
controle social por meio da constituição dos Conselhos Representativos.
Para Jaccoud (2010), a descentralização e a participação popular foram as
duas ideias maiores que atuaram na reorganização da forma de gestão das políticas
sociais a partir de 1988. Nesse sentido, a Constituição facilitou um redesenho do
sistema federal reconhecendo o papel de estados e municípios, esses últimos sendo
considerados autônomos com o mesmo status legal dos outros dois níveis de
governo. A pesquisadora analisa ainda que a descentralização está associada às
políticas sociais por meio do denominado federalismo cooperativo, caracterizado
pelas funções compartilhadas entre as três esferas de governo. Nesse novo formato,
os estados e municípios assumem funções de gestão de políticas públicas, tanto por
iniciativa própria, como por adesão à proposta apresentada pelos outros níveis de
governo (JACCOUD, 2010, p. 76).
Outro fator importante que marca esse período é o lugar assumido pela igreja
diante do novo cenário político de intervenção junto à pobreza. O processo histórico
de institucionalização da pobreza pelo Estado, iniciado a partir dos anos 30 do
século XIX, aos poucos foi distanciando a igreja do papel de mediadora e
interventora junto aos pobres, e, assim, a perspectiva da caridade foi substituída
pela perspectiva do direito e da cidadania. Essa transição retrata bem a
característica de uma segunda ruptura no tratamento da pobreza no Brasil, pela
regulamentação dos direitos trazidos pela Constituição. Analiticamente, observa-se
com o período constitucional de 1988 a continuidade e fortalecimento da assistência
58
social como método de intervenção estatal, porém com marcante diferença, que é a
universalização da Assistência Social. A Constituição prevê que a “Assistência
Social será prestada a quem dela necessitar” (CFB, Art. 203, Cap. II, 2010), e não
apenas aos considerados pobres.
Assim, ultrapassa-se, em termos normativos, o reconhecimento histórico que
delimitava as ações da assistência social às pessoas rotuladas como “pobres” e ou
um direito para aqueles que estivessem inseridos em direitos da assistência social
vinculados ao trabalho formal. Dessa forma, a assistência social como instrumento
de intervenção estatal passa a ser operacionalizada pela universalização em que
todos podem ter acesso.
A Constituição Federal de 1988 além das mudanças significativas no papel do
Estado no campo social, tendo destaque a seguridade social, trouxe a
incrementação do Sistema de Proteção Social. Alargaram-se os direitos sociais e a
esfera da proteção social sob responsabilidade do Estado, com impactos relevantes
no que diz respeito ao desenho políticas públicas e a identificação de beneficiários e
benefícios. (JACCOUD, 2010). Tanto os aspectos relacionados à descentralização
por meio do modelo federativo cooperativo, como a institucionalização dos direitos
sociais pelo Estado trazido pela Constituição Federal serão os norteadores do
tratamento dado à temática da pobreza pelo Estado brasileiro.
Na perspectiva de Telles (2001), o texto constitucional de 1988 acenou com a
promessa de colocar o enfrentamento da pobreza no centro mesmo das políticas
governamentais e de retirar, portanto, os programas sociais de uma espécie de
limbo em que foram, desde sempre, confinados  fora do debate público e da
deliberação política, aquém da representação política e dos procedimentos
legislativos já que se encontravam submersos a uma obscura trama construída
pelas organizações caritativas e filantrópicas.
2.1
Anos 90: o desafio da estabilidade econômica e a focalização das
políticas de combate à pobreza
Os anos 90 marcam o Estado brasileiro por significativas iniciativas na gestão
e no debate do combate à pobreza. Adentrando no debate das transformações
ocorridas na década de 1990, Draibe (1993) classifica o Estado brasileiro da década
que antecede esse período como um Estado de Bem-estar de Reestruturação
59
Conservadora e Reestrutura Progressiva. Isso porque, para a autora, desde o final
dos anos 1970, o crescimento do espaço assistencial de políticas sociais veio somar
e reforçar a dimensão clientelista, fato que se deixou transparecer com a abertura do
sistema político pós-85, em que se teve oportunidade de ver com maior nitidez essa
característica.
A autora situa que o processo de reestruturação ocorrida no Brasil com a
abertura pós-85, considerando o período constitucional esteve contextualizada por
uma crise econômica acentuada, em que as opções de concepções e
encaminhamentos de reestruturação estiveram entre os regimes militares e o
governo civil da Nova República (pós-constituição de 1988).
Para refletir a demarcação de Draibe, serão apontadas no tópico 2.2 as
características edificadas no Estado a partir dos anos 1990, por meio das marcas de
gestão de cada governo na intervenção das políticas socais e combate à pobreza,
Será apresentado o percurso dos anos de 1993 a 2003, período que antecede o
locus que situa o objeto de análise deste trabalho, ou seja, os processos de
institucionalização da pobreza pelo Estado brasileiro a partir do Governo Lula (20032010) com o Programa Bolsa Família até a implantação do Plano Brasil Sem Miséria
pelo Governo Dilma (2011-2014).
2.2
As intervenções do Estado Democrático pós-ditadura: da eleição de
Fernando Collor a Itamar Franco (1993-1994), a reestruturação do Estado a
partir da agenda neoliberal e ajustes estruturais
Em 1989, a gestão do Estado brasileiro passa para o primeiro presidente da
República eleito pelo voto direto pós-constituinte de 1985, Fernando Collor de Melo.
Caracterizado como representante de elites tradicionais, Fernando Collor buscou a
imagem de um Estado de caça à corrupção, de moralidade e de renovação da
política nacional (CARVALHO, 2012). Paradoxalmente, denúncias de esquema de
corrupção em seu governo e a mobilização de milhares de brasileiros nas ruas do
país levaram a seu impedimento (impeachment) no ano de 1992, ocasião em que
subiu à Presidência o seu vice, Itamar Franco.
A gestão do Estado no governo de Fernando Collor foi caracterizada pela
implementação de políticas públicas que geraram processos de desorganização
financeira ao país e uma ampla abertura da economia nacional à economia
60
internacional (CASTRO, 2009). Essa opção teve como consequência a execução de
uma estratégia voltada à realização de um ajuste fiscal com objetivo de estabilização
da economia, de maneira rápida, sem que fosse considerado nesse processo o
contexto das novas demandas que despertavam das políticas sociais. Nesse
sentindo, ainda segundo Castro, a “Era Collor” deixa como herança a redução de
recursos para a área social, que ficou num patamar inferior ao que era executado
pelo Estado antes da aprovação da Constituição de 1988, “gastos que atingiam
cerca de US$ 50,0 bilhões caem para apenas US$ 43,0 bilhões em 1992” (CASTRO,
2009, p. 97). Outra herança da Era Collor foi a caracterização do conjunto de
programas e políticas implementadas pelo Estado sob o traço de fragmentação,
clientelismo, centralização dos recursos em nível federal, com baixo poder de
combate à pobreza e à desigualdade.
Porém, as características elencadas pelo autor supracitado não se
encontravam em cenário isolado ao restante do mundo. As ações de Estado, no
âmbito das políticas públicas que se efetivaram no governo de Collor de Melo,
estavam ligadas a um contexto maior implantado em países da América Latina no
início dos anos 1980, que ficou conhecido como projeto neoliberal de ajustes ou
programa de ajuste estrutural (CHOSSUDOVSKY, 1999) que teve na figura do
Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Mundial (BIRD) seus principais
agentes. Tratava-se de um conjunto de reformas macroeconômicas que visavam
regular o processo de acumulação capitalista do mundo novo diante da crise dos
anos 1980, desencadeada pelo mercado de dívidas públicas do sistema financeiro
global. Nesse sentido, foi estabelecido um pacote de medidas que deveriam ser
aderidas pelos países endividados para que assim houvesse um processo de
conversão da dívida24.
Sob a égide dos governos nacionais, as medidas de ajuste foram sendo
implementadas em troca da renegociação da dívida externa. São características
presentes em tais medidas: a busca de estabilidade financeira em detrimento de
privatizações de empresas estatais; a privatização parcial de serviços sociais
essenciais ao governo (o que excluiu parte considerável da população que não
podia pagar pelo aceso aos serviços como educação, saúde etc.) e o corte dos
gastos com a área social e de benefícios na área do bem estar social. Assim, o
24
Id. 1999.
61
impacto do ajuste estrutural teve reflexo direto nos direitos sociais, o que culminou
em aumento considerável no número de milhares de pobres em esfera global.
Nesse sentido, estabelece-se uma espécie de nova forma intervencionista
entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento (CHOSSUDOVSKY,
1999). No âmbito social, a estratégia desse projeto tem alguns eixos de intervenção:
focalização, privatização e descentralização nas políticas sociais. Incluem-se a
esses eixos as estratégias de intervenções do Estado focalizadas no alcance dos
considerados pobres, ou nas ações de combate à pobreza. Pode-se considerar que
nesse período houve uma espécie de reorientação do gasto social voltado a
responder a distorções de sua alocação (DRAIBE, 1990).
Na análise de Yazbek (2012), uma das características que se encontra no
início do processo de construção da Seguridade Social Brasileira, no período pós
1988, foi o tensionamento gerado pela consolidação do modelo neoliberal adotado
pelo Brasil por meio das estratégias de mundialização e financeirização do capital,
com sua direção privatizadora e focalizadora das políticas sociais, que enfrentou
uma rearticulação de um bloco considerado pela autora de conservador que veio
com a eleição de Fernando Collor de Mello. Para a autora, a gestão do Estado por
Fernando Collor buscou diversas formas de obstruir a realização dos novos direitos
Constitucionais de 1988. Por isso, naquele momento a emergente proposta da
seguridade social mostrou-se incapaz de se consolidar.
Com o impeachment de Fernando Collor, sobe ao poder o seu vice, Itamar
Franco. No âmbito econômico, o aparelho do Estado deu continuidade à abertura
internacional e ao financiamento externo na busca da redução da inflação cumprindo
as exigências do FMI e do BIRD no pacote neoliberal de reestruturação nacional.
Em termos gerais, o governo de Itamar seguiu a tendência política das reformas
macroeconômicas já apontadas, tendo destaque para a figura de Fernando Henrique
Cardoso (FHC) que ocupou o posto de ministro da Fazenda e, logo após, lançou-se
candidato à Presidência da República governando o Brasil por dois mandatos
consecutivos.
Quanto
à
seguridade
social,
vale
ressaltar
que,
nesse
período,
especificamente no ano de 1993, uma crise no financiamento da saúde,
desencadeada por restrições fiscais e aumento das despesas da previdência social,
fez com que os recursos originários antes utilizados no financiamento da saúde
deixasse de ser repassado ao Ministério da Saúde. A saída para esse problema
62
adotado pelo governo foi criar uma espécie de Fundo de Contribuição Provisória
sobre Movimentação Bancária (CPMF), em 1996, em que os recursos arrecadados
se destinassem aos gastos com a saúde.
Já na área social, o Estado enfrentava grande desafio diante o crescimento
da desigualdade social. Avaliava-se que as vinculações de recurso à área social
eram obstáculos à busca de equilíbrio orçamentário e a estratégia encontrada foi a
flexibilização da alocação de receitas públicas. Dessa forma, no ano de 1994, sob a
liderança de FHC na coordenação econômica, é adotado o Plano Real e a
Instituição de um fundo, o Fundo Social de Emergência (FSE).
Na percepção de Castro (2009), a constituição do FSE não obteve resultado
satisfatório para a política social, pois algumas áreas como a educação e o apoio ao
trabalhador perderam recursos. Como também, na avaliação do autor, os estados e
os municípios passaram a ficar mais dependentes do governo federal via repasse de
recursos. Além do mais, para Castro, o referido Fundo não cumpriu com objetivo de
resolver o problema do déficit público que havia justificado a sua criação.
Durante a gestão do governo Itamar Franco, houve grande mobilização
popular que trouxe ao espaço público algumas pautas como a fome e a miséria. A
reivindicação era de que o tratamento dessas temáticas fosse inserido no debate da
agenda social como responsabilidade e dever do Estado. Ainda no ano de 1992,
teve início a Campanha Nacional da Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria e
pela Vida, ficando conhecida como a Campanha da Fome ou Campanha do Betinho,
liderada pelo sociólogo Herbert José de Sousa, conhecido por Betinho. Em função
da Campanha, foi criado em abril de 1993 o Conselho de Segurança Alimentar
(Consea), com representações do Estado e da Sociedade Civil, com objetivo de
elaborar uma proposta de combate à fome (SPRANDEL, 2004). Mais tarde, a
Campanha da Fome foi incorporada no Governo Itamar Franco, inserida no Plano de
Combate à Fome e à Miséria (SILVA; YAZBEK, GIOVANNI, 2012).
Para Telles (2001), a Campanha da Fome não se tratou de um acontecimento
menor. A autora aponta que, durante os anos de 1993 e 1994, os comitês da
campanha se multiplicaram por todo o território nacional, organizando em torno de
três milhões de pessoas. Além disso, mobilizou cerca de trinta milhões de brasileiros
em alguma forma de apoio e contribuição. Os diversos comitês da ação da cidadania
constituídos nos estados e municípios brasileiros se reuniam para discutir não
apenas a alimentação como bem público e universal, mas também as formas
63
estruturais de superação dessa e de outras situações que ratificavam a pobreza na
perspectiva de intervenção estatal e pregava a implementação de acesso a direitos
tal como preconizava o texto constitucional de 1988 (TELLES, 2001). Assim, a
importância da Campanha do Betinho foi além do cunho solidário e trouxe à tona a
reivindicação da sociedade civil ao Estado sobre a necessidade de superar
alternativas emergenciais até então tomadas para o tratamento da pobreza.
Como visto, pode-se considerar como um dos feitos importantes da
Campanha a projeção da pobreza no centro do debate político da época. Diversos
atores sociais, diversos fóruns constituídos por universidades, ONGs, empresários,
técnicos, funcionários públicos e profissionais liberais se mobilizaram em torno das
pautas centrais do movimento. O debate colocava em pauta a dimensão ética
envolvida no problema da miséria, interpelando a opinião pública no seu senso de
responsabilidade pública e obrigação social.
No mesmo ano, em 1993, outro fato importante se consolidou para a
intervenção estatal junto à pobreza, a sanção da Lei Orgânica de Assistência Social
(LOAS) que regulamentou a Assistência Social como direito e obrigação do Estado
tal como previa o texto constitucional. Foi no governo de Itamar Franco que Castro
(2009) avalia ter início a montagem de legislação social do conjunto de Leis
Orgânicas, além da LOAS, a Previdência Social, como também foram assumidos
alguns compromisso em torno da educação básica.
Todos esses processos abrem espaço para que a gestão seguinte, tida como
continuidade da proposta de intervenção estatal iniciada durante o governo de
Itamar seja consolidado.
2.3
A gestão da pobreza e intervenção estatal na gestão de FHC (1995 –
2002)
As diretrizes estruturais das intervenções do Estado brasileiro no período
Fernando Henrique Cardoso (FHC) não se deram diferenciadas das iniciadas no
governo anterior, ou seja, evidencia-se uma agenda de continuidade da agenda
neoliberal e uma adequação das políticas sociais, incluindo, assim, as políticas de
combate à pobreza aos ajustes. O Estado brasileiro ficou durante o período de dois
mandatos consecutivos (1995-2002) sob a gestão do sociólogo Fernando Henrique
Cardoso. Ex-ministro do presidente Itamar Franco, FHC foi o responsável por
64
conduzir a implantação do plano de estabilização monetária conhecido como Plano
Real, conseguindo uma diminuição do processo inflacionário que, à época,
alcançava alarmantes índices, fato que o legitimou FHC significativamente na
ascensão à Presidência da República.
Num texto que tem como objetivo analisar as inovações e reformas ocorridas
nos dois mandatos presidenciais de FHC na constituição das políticas sociais,
Draibe (2003) associa o processo de mudança ocorrido durante esse período à
reforma ocorrida no modelo de Estado de Bem-Estar Brasileiro, a autora caracteriza
o tipo de Estado de Bem-Estar construído no Brasil como o modelo conservador
pautado na distribuição primária da renda e da riqueza. Para Draibe (2003), o
processo motivador dessas reformas são as transformações ocorridas no sistema
capitalista que incidiram nos sistemas de proteção social contextualizadas
mundialmente, tal como: a insurgência forte do desemprego estrutural, a piora na
distribuição de renda, o aumento e a diversificação da pobreza e a redução dos
recursos fiscais.
Analiticamente, a autora apresenta três linhas de abordagem pelas quais se
podem compreender as mudanças ocorridas no Estado de Bem-Estar Brasileiro
nesse período. A primeira abordagem, uma geração de estudos que examinou as
mudanças pelo viés das relações com os fenômenos da globalização e da
hegemonia do neoliberalismo, declarando-as destrutivas ao Estado de Bem-Estar
Social. A segunda abordagem seria uma geração de estudos que desloca o foco da
discussão anterior, tendo como diretriz a seguinte indagação: em que medida as
alterações ocorridas mantiveram algum padrão e como se comportam os padrões
reformistas ao regime dos tipos de Estado de Bem-Estar até então constituídos, o
modelo liberal, o modelo conservador ou o modelo social democrata.
A autora analisa que as reformas estudadas na segunda linha analítica
atestam que, mesmo diante aos processos de reformas, permanecem as mesmas
instituições da proteção social, sendo escasso o caso em que se efetiva mudança
significativa. Dessa forma, o modelo de Estado de Bem-Estar adotado no Brasil
sofreu poucas interferências diante essas reformas. Com isso, as mudanças
ocorridas nesse período tiveram cunho desenvolvimentista, apoiadas pelos fundos
sociais, pouco inclusivos na perspectiva da autora e não seletivo, ou seja, mal
focalizado nas camadas mais necessitadas.
65
A terceira abordagem seria a vertente que apontou para a compreensão da
relação entre as reformas dos sistemas de proteção social e a política econômica e
política social. O entendimento buscado por esse viés é o lugar e papel reservado às
políticas sociais no modelo de desenvolvimento econômico, ou seja, quais “as
potencialidades e as capacidades da política social em promover e facilitar o
crescimento econômico” (DRAIBE, 2003, p. 65).
Retomando a análise da gestão governamental nesse período, para Castro
(2009), o principal desafio de FHC ficou localizado em seu primeiro mandato (19951998) com a tensa conciliação dos objetivos macroeconômicos da estabilização e as
metas de reformas sociais voltadas à melhoria da eficiência das políticas públicas.
Nesse contexto, a intervenção estatal junto à pobreza no governo FHC se deu no
limite das metas de reformas sociais previstas pelo ajuste estrutural. O autor analisa
que se agravava a crise fiscal do Estado com o entendimento de que, dentre as
causas, estariam os altos gastos públicos sociais “excessivos” causando desperdício
de recursos.
Partindo dessa perspectiva, Castro elenca como problemáticas das políticas
sociais à época: a falta de planejamento e coordenação das ações, superposições
de competências entre os entes da Federação, indefinição de prioridades, pouca
capacidade redistributiva das políticas sociais e carência de critérios transparentes
para a alocação de recursos e de mecanismos de fiscalização e controle mais
modernos (CASTRO, 2009, p.100-101). Foi com base nos pontos identificados como
as problemáticas na política social que o governo de FHC deu curso da reforma na
área social, que teve como diretrizes três focos de intervenção estatal proposta aos
países que adotaram um modelo neoliberal: a descentralização, a focalização e a
parceria com o setor privado.
Draibe (2003) analisa, durante o período de 1985 a 2002, dois ciclos de
reformas das políticas que constituíram o Sistema de Proteção Social Brasileiro. O
primeiro de 1985 a 1988 e o segundo que vai de 1995 a 2002, período este
correspondente à gestão do Estado pelo governo de FHC. Para a autora, no
primeiro ciclo de reformas na proteção social brasileira (1985 a 1988), duas áreas
sofreram reformas significativas, a Saúde com o Sistema Único de Saúde (SUS) e a
Assistência Social com a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS).
Para avaliar as intervenções do Estado brasileiro nas políticas sociais durante
as duas gestões de Fernando Henrique Cardoso (FHC), Draibe analisou o
66
documento de programa de governo do então presidente chamado “Uma estratégia
de Desenvolvimento Social”, publicado no ano de 1996. O documento apontava três
eixos de programas que seria o núcleo para a política social do Estado brasileiro
durante aquele período: 1 os serviços sociais básicos de vocação universal e de
responsabilidade pública; 2 os programas sociais básicos e 3 o programa de
enfrentamento da pobreza.
O primeiro eixo de programa tratava-se de políticas como: previdência social,
educação, saúde, habitação, saneamento básico e assistência social, em que sua
reestruturação é apontada no documento como eixo central e necessário à
estratégia global de mudanças. Elementos como universalização, eficácia e
qualidade, aumento do impacto redistributivo e diretrizes de descentralização faziam
parte da estratégia prevista para o papel do Estado em sua intervenção no âmbito
das políticas sociais.
O segundo eixo apontado pelo documento, denominado programas básicos,
traz quarenta e cinco programas considerados prioritários devido ao caráter
estratégico destes diante a pobreza e a desigualdade social e do novo padrão de
crescimento. Finalmente, o terceiro eixo se articula com o segundo eixo e foi
intitulado de programas de enfrentamento pobreza, no qual esteve estruturada a
liderança do Programa Comunidade Solidária. Os princípios da descentralização e
solidariedade se destacavam como as diretrizes do programa, sendo tidos como
uma articulação inovadora entre as coordenações das ações federais, estaduais,
municipais e sociedade em que se estabeleceu a parceria nas ações. Assim, foi
implementado o Conselho do Programa Comunidade Solidária que materializava o
espaço de diálogo e cooperação entre as três esferas governamentais, e tendo com
uma das finalidades ser o mecanismo da articulação proposta ente governo federal e
a sociedade civil de mobilização e implementação de experiências inovadoras.
Faziam parte das ações que integravam o eixo de enfrentamento da pobreza
como prioridades: redução da mortalidade infantil; desenvolvimento da educação
infantil e do ensino fundamental, geração de ocupação e renda; qualificação
profissional; melhoria das condições de alimentação dos escolares e das famílias
pobres e fortalecimento da agricultura familiar.
A seguir, temos um quadro resumo do projeto de estratégia de
desenvolvimento social descrito no texto de Draibe sobre política social e gestão do
Estado durante o período de FHC:
67
Quadro 2: Governo FHC – Estratégia de Desenvolvimento Social
Objetivos
Condições Necessárias
Desafios
Garantia de direitos sociais
Estabilidade
Crescimento econômico
macroeconômica
Igualdade de oportunidades
Reforma de Estado
Geração de emprego
Proteção aos grupos
Retomada do crescimento
Melhora da distribuição de
vulneráveis
econômico
renda
Reestruturação dos
programas sociais universais
Fonte: Draibe (2003)
Uma grande mudança ocorre no Estado brasileiro para Draibe (2003), durante
o período de 1999 a 2002, que apontará uma nova perspectiva e diretrizes na
execução de política social. A grande mudança ocorre no campo da política de
enfrentamento da pobreza e em relação à ênfase posta agora nos programas de
transferência de renda para famílias pobres (DRAIBE, 2003, p. 75). De maneira
geral, a autora avalia que não houve reformas radicais das políticas sociais nos dois
ciclos reformistas da história brasileira até o ano de 2003. Assim, no período de
FHC, as reformas foram parciais e, inicialmente, introduzidas em áreas como a
educação, inclusão produtiva e programas de combate à pobreza.
O controle das ações e programas voltados à pobreza até então, após
transitar por um processo e esforço de centralização pelas instituições estatais, sofre
um processo de descentralização que converge para um fundamento central da
concepção de política pública do Estado brasileiro nos anos 90, a participação social
que se configura por meio de ações como, a descentralização, a implementação de
práticas de avaliação das ações e democratização de informações (DRAIBE, 2003).
Além desses aspectos, houve um fortalecimento da participação social enquanto
controle por meio da formação e instrumentalização dos conselhos nacionais que
acompanhavam os diversos programas, constituídos com a parceria da sociedade
civil e do terceiro setor. Outros elementos, como o incentivo e a participação dos
68
beneficiários dos programas e da comunidade, também passaram a compor o
controle social.
A sistemática de repasses aos entes federados na alocação de recurso do
Estado no período FHC também teve aspectos relevantes para a configuração de
uma visão tecnicista na intervenção do Estado junto à pobreza. A utilização do per
capita para o cálculo de valor de repasse aos entes federados, associado a margens
de valores que priorizavam, por exemplo, os índices de carência, efetiva uma
mudança que representou uma ruptura nos rumos do financiamento público de
projetos e políticas sociais. Tratado muitas vezes por um traço do mando clientelista
de relações políticas e de poder com a adoção dessas medidas, cada vez mais o
Estado se instrumentaliza rumo a uma intervenção tecnocrata na intervenção no
combate à pobreza, o que representa distanciamento significativo com as práticas
adotadas do início ao final da primeira metade do século XX.
Como forma de sistematizar quais foram os principais arranjos feitos no
Estado brasileiro durante esses anos, diante da nova proposta de intervenção
pública institucionalizada de combate à pobreza, elencaram-se, resumidamente,
quatro áreas das políticas públicas que concentraram a maioria das reformas e
redesenhos que tiveram implicações na maneira como o Estado iria tratar o tema da
pobreza e sua perspectiva de intervenção. São elas as mudanças ocorridas na
política de educação, de saúde e de assistência social.
2.3.1 Na Educação
Destaca-se a experiência do Fundo de Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef), que representou a reforma no
financiamento e na sistemática de gastos do ensino fundamental. O Fundef trouxe
contribuições fundamentais na gestão das políticas públicas para o Estado. Nesse
sentido, podem-se apontar: o fortalecimento da ideia de garantia de recursos
mínimos para a ação desenvolvida, no caso, o ensino fundamental; a tentativa de
diminuição das disparidades de financiamento entre os estados e municípios rumo a
uma meta de equalização; e a transferência dos recursos diretamente para as
escolas. Foram marcas na experiência do Fundef: a descentralização, a
redistributividade e o repasse direto às instituições escolares, ocasionando um
69
processo de autonomia desses atores na gestão local de seus recursos. Esse
formato foi relevante pelo fato de experimentar uma proposta de alterações na
partilha federativa de recursos, proporcionando uma proximidade maior da gestão
municipal e da responsabilização na gestão local das políticas25.
2.3.2
Na Saúde
Na área da saúde, a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) e o
direito universalizado ao acesso à saúde pelos mais pobres trouxe ao Estado a
criação de “capacidades administrativas gerenciais e de prestação de serviço de
saúde em todo o país, especialmente nas regiões mais pobres” (DRAIBE, 2003). As
características
gerenciais
no
âmbito
dessa
intervenção
se
reproduzem:
descentralização, autonomia e redistribuição de recursos, considerando a carência
dos municípios atendidos; diversificação de fontes de financiamento (CPMF em
1996); introdução do per capita individual como um dos parâmetros para
transferência entre os entes federativos.
Nesse contexto, as políticas de combate à pobreza tiveram alguns
indicadores de gestão fortes. O primeiro, a funcionalidade de priorização de público
no atendimento e ações do SUS, tal como ao atendimento ao público infantil,
vislumbrando o combate à mortalidade infantil, como preconizavam as ações de
combate à pobreza previstas no Plano de governo do então presidente FHC, e,
também, a saúde da mulher, a focalização das ações básicas de saúde à população
considerada carente por meio da constituição do Programa Saúde da Família (PSF),
o qual teve grande aceitação, tendo destaque a figura dos Agentes Comunitários de
Saúde.
Nesse período também tiveram início as primeiras medidas relacionadas à
transferência de renda, associada a temáticas específicas, como podemos citar o
exemplo da transferência de renda feita direta às famílias consideradas em risco
25
A referência ao Fundef para o objetivo da presente tese é caracterizá-lo como um dos instrumentos
de gestão, dentre outros, que iniciou um processo de descentralização de responsabilização no
âmbito das políticas públicas entre os entes federados, com isso situando-o como um momento
diferenciado na política pública brasileira. Para aprofundamento da discussão, sugerimos a leitura dos
seguintes textos: DOURADO, Luiz Fernandes. Financiamento da educação básica. Campinas:
Autores associados, 1999. MONLEVADE, João. O Fundef e seus pecados capitais. Ceilândia/DF:
Ideia Editora, 1997. REZENDE, José Marcelino. Os recursos para a educação no Brasil no
contexto das finanças públicas. Brasília: Editora Plano, 2000.
70
nutricional, no ano de 2001, que recebeu o nome de Bolsa Alimentação. Vale
ressaltar, também, a título de informação, que, nessa ambiência de gestão, esteve
presente a constituição das Agências Nacionais Reguladoras, que incrementaram o
cenário de regulação e controle social e institucional do Estado.
2.3.3 Na Assistência Social
A intervenção do Estado na assistência social sofreu grandes mudanças com
a Constituição de 1988. No período entre os anos de 1993 e 2005, especificamente
em 1993, houve a implantação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), que
materializou a assistência social como direito social e alcance universal para todos
os que necessitassem de atendimento, rompendo, assim, um ciclo histórico até
constituído de estigmas da assistência social como uma intervenção assistencialista
aos pobres. Outro marco importante nesse sentido foi a extinção da Legião da Boa
Vontade, a LBA. Como já apresentado no capítulo anterior, a LBA foi fundada no
ano de 1942, com objetivo inicial de prestar assistência às famílias dos pracinhas
que foram à guerra pelo Brasil, transformando-se, em seguida, numa instituição que
consolidou práticas e ações de institucionalização de atendimento aos considerados
carentes e pobres. A LBA representou por muito tempo e foi historicamente
identificada como espaço de prática do primeiro-damismo e do clientelismo que
mediava as suas ações.
No âmbito da intervenção estatal junto aos considerados pobres, a extinção
da LBA significou, assim, uma transição simbólica e institucional das práticas
assistencialistas e clientelistas a um reconhecimento do dever do Estado no
atendimento dos pobres na premissa do direito social e não mais na perspectiva das
esmolas e favores praticados do final do século XIX. Essa transição delimita a
constituição de um Estado que passa a ter uma perspectiva de intervenção junto à
pobreza de maneira tecnificada em busca de padrões de identificação e resultados
focados. Apesar de essa tendência ter sido iniciada no Brasil na gestão anterior a do
sociólogo Fernando Henrique Cardoso, é com FHC que ela começa a tomar forma.
Outro fator importante relativo à intervenção estatal via assistência social
nesse período foi o início de transferência de renda via benefício decorrente da
implantação da LOAS, por meio do Benefício de Prestação Continuada (BPC)
71
destinado a idosos carente e pessoas com deficiência. Em 2002 o referido benefício
atendia a 1,5 milhão de pessoas (DRAIBE, 2003), chegando no ano de 2012 a 3,6
milhões, e no ano de 2015 a 4,2 milhões26. Assim, a assistência social passou a
consolidar instâncias enquanto política pública, e podem-se destacar o Conselho
Nacional de Assistência Social, o Fundo Nacional de Assistência Social e os
diversos conselhos nos municípios e estados.
Cabe destaque, ainda, ao Programa Comunidade Solidária como uma ação
relevante no combate à pobreza iniciado no primeiro período de FHC, criado no ano
de 1995. O Comunidade Solidária representou uma nova abordagem de uma
proposta
de
gerenciamento
de
ações
públicas
de
forma
integradora
e
descentralizada, tendo a sociedade como parceira na busca de soluções mais
adequadas para a melhoria das condições de vida das populações mais pobres no
combate à fome. Com seu desenvolvimento, o Comunidade Solidária sofreu um
redirecionamento de eixo, transformando-se no Comunidade Ativa, criando
programas de desenvolvimento local em município carentes. Outra frente de
combate à pobreza foi liderada pelo Projeto Alvorada, um plano de apoio aos
estados de menor desenvolvimento humano, que focava no IDH dos municípios e
abrangia iniciativas nas áreas de saúde, educação e renda.
O Projeto Alvorada teve continuidade com reorientação para um novo
programa, já no final do mandato de FHC, o Programa Rede Social, anunciado na
proposta de reeleição de FHC, que agrupou os programas de transferência de renda
às famílias mais pobres. Segundo Draibe (2003), havia naquele momento um
contexto que fortaleceu a proposta e ação do Programa Rede Social. Um primeiro
elemento era a renegociação de empréstimo com o BID (Banco Interamericano) no
ano de 1999, em que o programa entrava como negociação, com a proposta de
focar num conjunto de 22 programas selecionados para intervenção no Brasil,
envolvendo o atendimento e a prestação de serviços básicos (educação, saúde,
previdência e trabalho) nas áreas habitadas por grupos de baixa renda. Além dos
serviços básicos, estava prevista a transferência de renda, que mais tarde iria se
configurar em ações como o Bolsa-Escola. Mantendo-se presente, ainda, neste
26
Os números e dados sobre o Benefício Prestação Continuada podem ser acessado em relatórios
descritivos disponibilizados no endereço eletrônico do Ministério do Desenvolvimento Social:
<http://aplicacoes.mds.gov.br/sagi/RIv3/geral/relatorio.php#>.
72
contexto, a tendência antes adotada pelo Estado da intervenção via programas
universais focalizados.
Outro elemento responsável por alavancar a ideia do Programa Rede Social
foi a aprovação do Fundo de Combate à Pobreza, no ano de 2000, por meio da
Emenda Parlamentar de iniciativa do senador do estado da Bahia Antônio Carlos
Magalhães, com o apoio do Partido dos Trabalhadores (DRAIBE, 2003). O Fundo de
Combate e Erradicação da Pobreza foi criado pela Emenda Constitucional 31, de
2000, com o objetivo de “viabilizar a todos os brasileiros acesso a níveis dignos de
subsistência”. Para isso, foram previstas ações suplementares de nutrição,
habitação, educação, saúde, reforço de renda familiar e outras 27. O Fundo de
Combate à Pobreza teve papel fundamental para garantir a consolidação das
primeiras experiências brasileiras de programas de transferência de renda, como
também para garantir a continuidade desse modelo de intervenção do Estado junto
aos considerados pobres, como veremos no tópico a seguir.
Esse é o contexto em que tem início a consolidação do país rumo a um
modelo de focalização e descentralização das políticas de combate à pobreza.
Nesse trajeto está a consolidação, a partir do ano de 2003, do modelo de
transferência de renda
condicionada, Bolsa Família, e sua proposta de
institucionalização da pobreza como ação central de intervenção junto aos pobres.
Antes de tratar dessa temática específica, é importante destacar pontos sobre o
papel do Fundo de Combate à Pobreza.
27
Disponível
em:
<http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/ASSISTENCIASOCIAL/192054-CONGRESSO-PROMULGA-PRORROGACAO-DO-FUNDO-DE-COMBATE-APOBREZA.html>. Acesso em: 9 set. 2013.
73
2.4
O Fundo de Combate à Pobreza – Ano de 2000
O Fundo de Combate à Pobreza foi uma das principais ferramentas que
instrumentalizou o Estado na intervenção junto à pobreza, com base em sua
constituição em dezembro de 2000, período que correspondia à metade do segundo
mandato da gestão de FHC. Como mencionado antes, a proposta de constituição do
Fundo foi apresentada por meio de emenda parlamentar de um senador do estado
da Bahia, Antônio Carlos Magalhães. O documento preconizava o acesso à
população de baixa renda a subsistência mínima por meio de ações consideradas
suplementares, que reuniam habitação, nutrição educação, saúde, reforço de renda
familiar etc.
É oportuno salientar que a criação do Fundo responde ao cenário de inserção
do país numa agenda política mais ampla, que insere a relação e os compromissos
fiscais com países e fundos financiadores do deficits internos Brasileiros. O Fundo
teve papel essencial não apenas para manter o cofinanciamento e as dotações
orçamentárias das ações de intervenção à pobreza do Estado, como também para
que o pacto federativo pudesse ser implementado por meio das ações articuladas
entre a União, estados e municípios.
Com isso, o Fundo de Combate à Pobreza passa a ser incorporado
constitucionalmente no Título IX, que trata das Disposições Constitucionais Gerais,
especificamente no texto do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art.
80.
Art. 81. É instituído Fundo constituído pelos recursos recebidos pela União
em decorrência da desestatização de sociedades de economia mista ou
empresas públicas por ela controladas, direta ou indiretamente, quando a
operação envolver a alienação do respectivo controle acionário a pessoa ou
entidade não integrante da Administração Pública, ou de participação
societária remanescente após a alienação, cujos rendimentos, gerados a
partir de 18 de junho de 2002, reverterão ao Fundo de Combate e
Erradicação de Pobreza.
§ 1º Caso o montante anual previsto nos rendimentos transferidos ao Fundo
de Combate e Erradicação da Pobreza, na forma deste artigo, não alcance
o valor de quatro bilhões de reais, far-se-á complementação na forma do
art. 80, inciso IV, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
§ 2º Sem prejuízo do disposto no § 1º, o Poder Executivo poderá destinar
ao Fundo a que se refere este artigo outras receitas decorrentes da
alienação de bens da União.
§ 3º A constituição do Fundo a que se refere o caput, a transferência de
recursos ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza e as demais
disposições referentes ao § 1º deste artigo serão disciplinadas em lei, não
se aplicando o disposto no art. 165, § 9º, inciso II, da Constituição.
74
Num primeiro momento, as receitas do Fundo de Combate à Pobreza eram
provenientes do índice da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras
(CPMF), equivalente a 0,02% no período de junho de 2000 a junho de 2002. Em
2003 e 2004, esse adicional subiu para 0,08%. Em 2007, com a extinção do CPMF,
o Fundo perdeu sua principal fonte de recursos. As outras receitas previstas para o
Fundo pela Constituição Federal são um adicional de 5% do imposto sobre produtos
industrializados (IPI) incidente sobre produtos supérfluos; toda a arrecadação do
imposto sobre grandes fortunas, quando for criado; e dotações orçamentárias.
Em outubro de 2010, foi promulgada uma nova Emenda Constitucional
67/2010, apresentada por Antônio Carlos Junior, neto do Antônio Carlos Magalhães,
senador do estado da Bahia, que prorrogou por tempo indeterminado o prazo de
vigência do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, que tinha prazo de
finalização para dezembro desse mesmo ano.
No ano seguinte à aprovação do Fundo, ano de 2000, o Programa Rede
Social foi ampliado ainda sob a liderança do Projeto Alvorada e foram criados os
seguintes programas que envolviam transferência de renda: Programa BolsaAlimentação (área da saúde); Programa Agente Jovem (área assistência social);
Auxílio-Gás; Bolsa-Escola Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti).
Draibe (2003) atribui a criação desses diversos programas à origem da Rede
Social Brasileira de Proteção Social, concebida pela autora como um conjunto de
transferências montarias a pessoas ou famílias de mais baixa renda. A Rede
formada teve viés protetivo voltado às distintas circunstâncias de risco e
vulnerabilidade social. Um instrumento facilitador para o Estado na unificação e no
controle da intervenção junto aos pobres pensado nesse período foi a constituição
de um cadastro unificado, proporcionando um controle unificado diante da
diversidade de programas que iam surgindo. Assim, constituiu-se o Cadastro Único
(CadÚnico), que começou a ser implantado nesse período. Porém ele se consolidou
na gestão seguinte, sendo destacado como o Cadastramento Único para Programas
Sociais do Governo Federal, tema que será visto em capítulos posteriores. O
Cadastro Único teve o objetivo de ser um instrumento de unificação e identificação
de todos os beneficiários e para gestão de órgãos governamentais.
75
Finalmente, foi no período FHC que ocorreu a aprovação da Emenda
Constitucional nº 29/2000,28 que estabeleceu patamares mínimos de utilização de
recursos financeiros dos estados, municípios e União na saúde. Esse fato se
destaca pela precedência na discussão para estabelecer patamares mínimos a
outras áreas, significando, assim, uma conquista que culminou na regularidade e na
garantia regulamentada da aplicação de recursos em áreas específicas e essenciais.
O fato assegurou a manutenção do orçamento estatal independentemente da crise
de contenção de despesas enfrentadas pelo Estado. É dessa maneira que a saúde e
a educação constituem-se garantidas, obrigatórias e minimamente orçada pelo
Estado.
2.5
A gestão da pobreza e intervenção estatal na gestão de Luis Inácio da
Silva – Lula (2003 – 2010)
O Estado brasileiro, no período correspondente aos anos de 2003 a 2010,
pode ser caracterizado pela consolidação das ações na área social iniciadas nos
anos anteriores. Durante esse período, tem início o governo de Luis Inácio Lula da
Silva. Vindo de uma trajetória sindicalista como líder do Partido dos Trabalhadores
(PT) desde a década de 1980, vence sua primeira eleição para presidente no ano de
2002. A origem de Lula leva o país, num primeiro momento de sua gestão, a
experimentar o que o professor Wanderley (2008) chama de expectativas
dicotômicas, em que setores expressivos do país, como mídia, partidos de oposição
ansiavam mudanças estruturais no âmbito das políticas sociais, ao mesmo tempo
em que criou um temor sobre a emergência de fortes conflitos com as agências até
então parceiras das gestões anteriores como, Banco Mundial, OMC, BID e FMI. O
28
A Emenda Constitucional nº 29 é datada de 13 de setembro de 2000. Teve como objetivo alterar os
arts. 34, 35, 156, 160, 167 e 198 da Constituição Federal e acrescentar mais um artigo ao Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias. A EC nº 29, de 2000, estabelecia a participação mínima de
cada ente federado no financiamento das ações e serviços públicos de saúde. A pretensão foi
assegurar os recursos mínimos para o financiamento das ações e serviços públicos de saúde. O
documento original pode ser consultado no site do Planalto, no endereço eletrônico
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc29.htm>. Pode ser consultada
também a Nota Técnica elaborada por Núcleo de Saúde da Câmara dos Deputados Federais:
[Câmara dos Deputados. Nota Técnica nº 014/2012: Regulamentação da Emenda Constitucional
nº 29 de 2000 (piso constitucional de aplicação em saúde). Núcleo de Saúde da Consultoria de
Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados (CONOF/CD). Versão Preliminar –
Brasília: 26 jun. 2012.].
76
temor se justificava pelas divergências acaloradas e públicas com a gestão anterior,
do presidente Fernando Henrique Cardoso.
Por outro lado, havia a expectativa da sociedade civil representada
principalmente pelos movimentos sociais, terceiro setor, pastorais sociais e outros
que estavam convictos do processo de mudança que viriam pela gestão que a
eleição de um líder de esquerda traria ao Estado brasileiro. Diante desse cenário de
expectativas, os primeiros resultados foram pessimistas, pois não apontavam para
um novo rumo permeado de mudanças. Para Wanderley, o governo de Lula não
apenas manteve as medidas substantivas e a orientação central da gestão anterior,
como também trouxe novas medidas de sua sustentação e até de potencialização.
Castro (2009), avaliando a política social na gestão do governo Lula, aponta
que, desde o primeiro momento, houve um reconhecimento dos problemas sociais a
serem enfrentados. O destaque foi dado a alguns desafios: o combate à fome e à
miséria; o combate ao racismo e às desigualdades raciais; a preservação e o
aprofundamento dos avanços na área de saúde e de assistência social; o
crescimento da taxa de cobertura da previdência social; maior integração entre as
políticas de desenvolvimento e de mercado de trabalho; a implementação de uma
efetiva política de desenvolvimento urbano; e a contínua melhoria da qualidade do
ensino (p. 102).
Para enfrentar esses desafios, o governo Lula adotou uma série de medidas
político-administrativas que o autor agrupa da seguinte forma: 1 estruturação de
novas políticas ancoradas em novas instituições (política nacional de segurança
alimentar; política promoção e igualdade racial; política de igualdade de gênero etc.);
2 racionalização de recursos públicos por meio da unificação dos programas de
transferência de renda; 3 multiplicação de fóruns democráticos de deliberação
coletiva (convocações de conferências nacionais, como: cidades, segurança
alimentar), a criação do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, o Fórum
Nacional do Trabalho e os Fóruns Estaduais para debater o Plano Plurianual (PPA)
anos de 2004/2007 de governo; e 4 promoção de reformas estruturais, iniciada pela
previdenciária e tributária.
No campo das políticas sociais, a avaliação é a de que o governo esteve
tímido em razão das restrições orçamentárias devido à manutenção da estratégia de
77
geração de superavit fiscal29. Nesse contexto, um dos pontos de maior tensão entre
Estado e sociedade civil se deu durante a reforma previdenciária e tributária prevista
e temida durante o governo de FHC, que se efetivou na gestão de Lula. No âmbito
das reformas tributárias, pode-se apontar como relevante, por suas possíveis
consequências nas políticas sociais, a proposta que previa a adoção de mecanismos
de redução da base de cálculo que incidiam as vinculações constitucionais para a
educação e a saúde adquiridas até então30.
Na análise de Carmelita Yazbek (2012), o enfrentamento da pobreza na
gestão de Lula teve nova abordagem, e aponta como referência desse fato o
Programa Fome Zero, lançado em 2003, com o Cartão-Alimentação. Anos depois, o
que marcaria o governo Lula no combate à pobreza seria lançado com a proposta de
unificação de quatro programas federais: Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, ValeGás e Cartão-Alimentação. É constituído, assim, o Programa Bolsa Família (PBF)
que tinha como objetivo: 1 combater a fome, a pobreza e as desigualdades por meio
de transferência de um benefício financeiro associado à garantia do acesso aos
direitos sociais básicos como: saúde, assistência social e segurança alimentar; e 2
promover a inclusão social, contribuindo para a emancipação das famílias
beneficiárias proporcionando meios para superação da situação de vulnerabilidade
vivenciada. Após unificar os programas de transferência de renda, a relação
intersetorial da ação junto ao usuário incorpora ideias de parceria, e são criados
critérios de condicionalidade de permanência no recebimento para o usuário. Nessa
esfera, entram como intersetorialidade a saúde (cartão de vacinação, pré-natal,
nutrizes) e a educação (frequência escolar)31.
O Programa Bolsa Família é o programa de maior visibilidade na esfera do
combate à pobreza do governo Lula, inclusive sofrendo severas críticas por alguns
setores da sociedade, de ser um programa eleitoreiro diante a legitimação em
massa dos usuários e famílias que recebem a transferência de renda. Apesar das
29
Ibid., p. 102.
30
A proposta fazia referência a patamares mínimos para gastos na saúde e na educação. Setores
das áreas se mobilizaram e a proposta não foi aprovada, ficando a desvinculação de recursos apenas
no âmbito Federal.
31
O tema sobre os programas de transferência de renda será detalhado e retomado a discussão no
Capítulo IV.
78
críticas, estudos de institutos de pesquisa no Brasil32 mostraram que a transferência
de renda realizada pelo programa foi responsável pela mobilidade de milhares de
famílias que saíram do corte da linha de pobreza, considerando o recorte por renda.
A ação proposta pelo programa será a diretriz na área social, apontada pela
sucessora de Lula, a presidenta Dilma Rousseff, que assume o mandato em 2011.
Podemos resumir que a gestão do governo Lula33 se caracterizou pela
habilidade política do governo em alcançar uma agenda de mediação de interesses.
De um lado, contemplando uma ala desejosa da continuidade do modelo econômico
anterior e, de outro, a focalização em ações que atendessem a área social. Dessa
forma a herança da gestão do combate à pobreza no governo Lula se destaca a
consolidação das iniciativas anteriores de programas de transferência de renda que
será a grande marca do seu governo.
De maneira geral, este capítulo esteve dedicado a levantar rupturas que em
nossa análise se destacaram na gestão e diretrizes voltadas às ações de combate à
pobreza nos governos brasileiros entre 1993 a 2003. Por meio da análise,
concluímos que a gestão da pobreza durante esse recorte temporal ocorreu
conforme critérios de institucionalização resultante de uma agenda internacional de
interesses econômicos. A experiência do combate à pobreza, a partir dos anos 1990
não apontou alternativa às exigências dos organismos internacionais (BIRD, FMI
etc.). Isso significa dizer que o combate à pobreza se institucionaliza com a
implantação das medidas previstas por esses órgãos.
Em termos analíticos, podemos afirmar que as ações desse período
sedimentaram o fortalecimento dos programas de transferência de renda como eixo
principal na diretriz da intervenção estatal para a pobreza no Brasil. Isso
representou, no aspecto técnico-burocrático, a tentativa do aparelhamento do
Estado para um modelo de institucionalização da pobreza priorizada na focalização
dos sujeitos classificados como os mais pobres e vulneráveis pelo critério de renda.
32
[IPEA – INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Desigualdade de renda no Brasil:
uma análise da queda recente. Brasília: Ipea, 2007. v. 1.]. A Nota Técnica divulgada em 2006 com o
mesmo nome da publicação acima, Recente Queda da Desigualdade de Renda no Brasil, foi
disponibilizada em versão eletrônica em: <www.ipea.gov.br>.
33
Um balanço sobre as principais ações que direcionaram os anos dos mandatos de Luis Inácio Lula
(2003-2010) e os anos iniciais do primeiro mandato da presidenta Dilma (2011-2014) pode ser
pesquisado no livro destinado a esse objetivo: [FLACSO. 10 anos de governos pós-neoliberais no
Brasil: Lula e Dilma. São Paulo: Boitempo, 2013].
79
Nesse arcabouço, desenvolveu-se um esforço de qualificar para a capacidade
técnica das equipes como forma de garantir o êxito na execução dos programas e
serviços implantados.
Em nossa opinião, o desafio do Estado esteve na organização estrutural
desse aparato diante da proposta qualificadora de uma proteção social aos pobres
sob o ponto de vista da oferta de direitos. Como descrito no texto do capítulo, muitas
iniciativas estiveram em curso, porém isso não significou uma mudança na
percepção ou nas práticas adotadas no atendimento ao pobre pelo Estado nos
equipamentos, como por parte das equipes técnicas, ou seja, os técnicos burocratas
de rua.
Resta problematizar, nas partes seguintes da pesquisa, a discussão sobre as
experiências propostas e implantadas decorrentes do recorte temporal apresentado.
Em que bases conceituais podemos analisar a prática do processo de atendimento
ao pobre no combate à pobreza institucionalizado. Enfim, discutir como se constrói a
percepção técnica do Estado no atendimento aos pobres que buscam os programas
e serviços implantados.
80
Capítulo III – A condição social reconhecida de pobreza frente aos técnicos
burocratas de rua do Estado
3.1 Base teórica
Este capítulo é dedicado à apresentação da base teórica e reflexões que
embasaram o olhar sobre os elementos do combate à pobreza aqui estudados e a
pesquisa de campo. As reflexões foram organizadas a partir das inquietações do
que foi construído na preparação para a inserção na pesquisa, como também do
arcabouço de observações que vieram com o trabalho de campo.
O esforço empreendido será no sentido de dialogar com conceitos e
categorias considerados pela pesquisadora relevantes à compreensão da atuação
dos técnicos que atuam no atendimento aos “pobres” nos municípios brasileiros
visitados. Diante de uma bibliografia vasta sobre o tema pobreza de renda, mas
escassa sobre aspectos mais específicos, tal como os profissionais e técnicos que
operacionalizam o “combate à pobreza”, procurou-se trilhar um caminho teórico que
mediasse autores que, de alguma forma, discutem a temática com olhar relativo e
não absoluto.
O trabalho aborda a discussão sobre pobreza com base em perspectiva
multidimensional de fatores, considerando como resultado de uma construção e de
uma condição social inserida em determinados contextos histórico, econômico,
cultural e social.
Partindo dessa perspectiva, entende-se que a contribuição das ciências
sociais no campo de pesquisa voltado às políticas públicas (especificamente de
combate à pobreza) ocorre pelo distanciamento de um tratamento puramente
técnico e burocrático geralmente dado às políticas. Ao abranger os meandros das
relações entre os atores e as estruturas, o método das ciências sociais evidencia os
processos de conflito, de poder e construções simbólicas inerentes à dinâmica
interna e externa das políticas públicas, na maioria das vezes negligenciada em
trabalhos que privilegiam apenas uma abordagem de teor avaliativo.
Vislumbra-se que a política pública é consequência de inquietudes e questões
sociais na maioria das vezes complexas que, conforme faz referência Wanderley
81
(apud BOGUS et al., 2008), são questões que adquirem um conteúdo de
multidimensionalidade das relações sociais no qual os sujeitos, individuais e
coletivos são determinados pelos processos e estruturas sociais, ao mesmo tempo
em que instituem processos e estruturas.
A interação existente entre os atores que compõem e executam as políticas
de combate à pobreza e os usuários é um fator relevante no que diz respeito à
construção do conceito de pobreza institucionalizado pelas estruturas sociais. Para
compreender os meandros dessa relação, compartilha-se, neste trabalho, das
contribuições de Giddens (2009) em sua teoria da estruturação social em relação ao
comportamento humano não pode ser compreendido como um resultado de forças
que os atores não controlam, mas se relacionar com a natureza da ação humana e
do self atuante no modo como a interação é conceituada na relação com as
instituições.
Para o autor, as propriedades estruturais dos sistemas sociais apenas
existem na medida em que formas de condutas sociais são reproduzidas através do
tempo e do espaço. Assim a estruturação de instituições é entendida em função de
como acontece de as atividades sociais se alongarem. Considerando esses
argumentos, Giddens define o conceito de estrutura como,
o conjunto de regras e recursos implicados, de modo recursivo, na
reprodução social; as características institucionalizadas de sistemas sociais
que têm propriedades estruturais no sentido de que as relações estão
estabilizadas através do tempo e do espaço. (GIDDENS, 2009, p. XXXV).
Quando o autor se refere ao modo recursivo na reprodução social,
acreditamos ser necessário acrescentar a noção motivação da ação e interesse
como forma de impulso das relações institucionalizadas. Tomemos por exemplo a
forma que os atores sociais assumem o papel de agentes na instituição Estado e
como os atores e corpo técnico desse Estado assumem interna e exteriormente a
sua representação e reprodução.
Giddens, em sua teoria da estrutura social, reconhece o poder como conceito
básico das ciências sociais e sua motivação seria a disputa por subdividir recursos
para obtenção de controle. Porém, parece se deter mais no estudo da ação de uma
consciência prática e/ou reflexiva e suas consequências do que aprofundar o conflito
no ato da ação. Em nosso ponto de vista, a dimensão do conflito presente na
82
interação dos atores sociais ou agentes humanos nos diversos campos é
fundamental.
Ainda segundo o autor, os seres humanos são agentes cognoscitivos, ou
seja, todos os atores sociais possuem considerável conhecimento das condições e
consequências do que fazem em suas vidas cotidianas. Assim como eles são
plenamente capazes de dizer, em termos discursivos, o que fazem e as razões por
que o fazem por meio de uma consciência reflexiva.
Se pensarmos a consciência reflexiva, considerando a atuação dos atores
sociais que integram o campo das políticas públicas, o conflito existente é inerente
às próprias regras com os quais os técnicos representantes do Estado exercem suas
atividades cotidianas. O discurso e as razões se apresentam, em geral, por meio de
um cunho ideológico e/ou simbólico, em detrimento da formalidade burocrática.
Muitos dos técnicos burocratas de rua discordam das regras de inserção dos pobres
nos programas de combate à pobreza, poucos têm uma avaliação positiva. São
pontos divergentes com base em mesmo ângulo que tencionam e constituem as
práticas de atendimento dos usuários da política.
Nesse caso a consciência reflexiva se estabelece não na regra estatal, mas
na subjetividade construída na visão particular de cada indivíduo sobre o objeto da
sua função pública, que exercem enquanto ente público. Arriscaria a dizer, pela
experiência de campo, que exercer uma função pública configura nesses atores um
ranço de autoridade sobre os sujeitos atendidos, ainda mais, se esses sujeitos são
de classe social inferior, como os considerados “pobres”.
Giddens trabalha com noção de pontos de transformação. Esses pontos
estariam presentes nas relações rotinizadas das práticas e, no modo como essas
práticas, que acabam sendo institucionalizadas, estabelecem conexão entre a
integração social e a integração do sistema. A pergunta norteadora do autor nesse
caso seria: até que ponto as práticas localizadas e estudadas numa determinada
gama de contextos convergem entre si de modo a ingressarem diretamente na
reprodução do sistema?
A pesquisa com os técnicos burocratas de rua do Estado mostra isso. Ela
demonstrou que a prática cotidiana mantém pontos de interação entre esses atores
é o instrumento significativo para a construção de parâmetros, consequentemente
também de reprodução da ideia sobre a pobreza e o pobre. Na maioria das vezes,
tal concepção pode ser instrumentalizada no sentido de ratificar preconceitos
83
históricos. No caso dos considerados “pobres”, entendimentos como: “eles não
gostam de trabalhar”, “eles querem viver recendo dinheiro do Estado”.
Apesar de relevantes mudanças na instrumentalização das políticas
disponibilizadas pelo Estado no atendimento à condição de pobreza, o pobre
continua a ser visto a partir de olhares pejorativos. Evidencia-se um movimento de
intervenção de políticas de combate à pobreza se construindo, nos termos de
Ervining Goffman (1988), de forma estigmatizadora, de maneira que esse olhar pode
ser encontrado, inclusive, dentre o corpo técnico estatal. A experiência de campo
apontou a possibilidade de encontrar sujeitos com posturas técnicas que reforçam
práticas históricas que o Estado tenta evitar. O que significa um paradoxo para uma
intervenção com base em conquistas de direitos.
Quando Goffmann (1988) trabalha o conceito de estigma social, retrata o
poder que a sociedade, por meio da convivência social, tem de categorizar as
pessoas por meio de atributos. Nesse caso, atribui-se a determinado indivíduo uma
característica considerada como defeito, um descrédito, uma fraqueza, uma
desvantagem.
Nesse sentido, o que se observa, no caso do tratamento da pobreza, é que a
realidade não diverge do período das intervenções do Estado oligárquico quando os
pobres socialmente foram denominados de “vagabundos” e os responsáveis por
onerar de custos à nação. Eram os inúteis e imprestáveis. Esse entendimento
parece ser continuado pelo longo da história do atendimento aos pobres no Brasil.
A herança de uma reprodução depreciativa sobre o pobre e a condição social
de sua pobreza se encontra sem sutilezas arraigada no aparato estatal. Fato que
surpreende diante o projeto de cidadania sonhado para todos os cidadãos que
precisam em algum momento do atendimento de sistema de proteção social no país.
A reflexão levantada neste trabalho é que a visão dos técnicos representantes do
Estado em muitas experiências de combate à pobreza nos municípios brasileiros
compreende com bastante restrição os programas de transferência de renda e as
formas de assistência voltadas aos seus “pobres”, porém sendo uma crítica apenas
depreciativa dos sujeitos atendidos.
Castel (2008) denomina de discriminação negativa o cenário em que os
sujeitos, em determinado contexto social, são discriminados por alguma diferença
considerada “menor” em referência a outras. O autor cita como exemplo os sujeitos
moradores de periferia, diferenças étnicas, religiosas, dentre outros tipos de
84
diferenciações. O autor também aponta a possibilidade de uma discriminação
positiva o seria a motivação oposta ao de discriminação negativa.
Paugam (2003), além de tratar sobre o conceito de desqualificação social que
ocorre com os pobres, defende que, para entender a relação entre os sujeitos
pobres e as instituições públicas que prestam assistência, deve-se partir da crítica a
determinadas escolas teóricas. Cita o autor a escola da cultura da pobreza e a da
abordagem estrutural. A primeira escola, por acreditar na existência de uma cultura
específica da pobreza, numa lógica própria de comportamento incorporado às
experiências vividas pelos pobres.
A segunda escola, de abordagem estrutural, tem tese contrária à cultura da
pobreza. Ela considera que os pobres mantêm a condição social não por uma
estratégia lógica do comportamento no meio social, mas por pressões externas que
fogem ao seu controle. Os comportamentos dos pobres seriam, assim,
consequências e não causas de um conjunto de estruturas e fatores externos
(organização econômica, social etc.).
Apesar de a grande parte dos estudos sobre pobreza se pautarem em uma
dessas duas teorias, ou seja, nos fatores internos (abordagem cultural) e externos
(abordagem estrutural), Paugam traz a crítica de que ambas constroem uma espécie
de “universo dos pobres” dissociado de uma relação com os demais segmentos da
sociedade. Para o autor, os pobres não podem ser vistos como um grupo
homogêneo no qual apresenta limites e fronteiras bem definidas.
O autor defende que o caminho teórico nesse caso consiste em analisar o
processo que conduz à designação e à rotulagem das populações desfavorecidas
em determinada sociedade e meio, explicitando e explicando quais os mecanismos
que participam da construção social da pobreza. Assim, fugimos da armadilha
teórica de “que apenas legitimam no plano intelectual as definições e as
interpretações do senso comum” (PAUGAM, 2003, p. 53).
Em nossa percepção, o arcabouço analítico de Paugam se destaca na
contribuição teórica no estudo das políticas de combate à pobreza por trazer
elementos que trabalham a relação entre os sujeitos e as instituições públicas de
atendimento ao público que necessita de assistência do Estado. Em termos teóricos,
pretende-se, neste trabalho, partilhar do entendimento de Paugam, por compreender
tal como o autor, sob o olhar da sociologia, que o importante não é a pobreza em si,
mas as formas institucionais que esse fenômeno assume em uma dada sociedade
85
ou em determinado meio. Assim, as categorias analíticas resultam da interação
existente na relação instituída (em nosso caso específico, a relação entre técnicos
burocratas de rua do Estado e os pobres atendidos).
As referências de Paugam partem das contribuições de Simmel (1971) e R.
Ogien (1978), pois o autor acredita que ambos trabalham com uma categoria que
para ele marca a transição do status social de um sujeito pobre para um sujeito
reconhecido socialmente como pobre, que é a figura do assistido. Trata-se de
um status específico que a sociedade reconhece. Para os autores, é a partir do
momento em que o pobre passa a ser assistido ou ter direito a assistência do
Estado, que eles se tornam parte formalmente de um grupo caracterizado pela
pobreza.
A condição de ser um pobre assistido não significa dizer que esses pobres
estão unificados em um grupo homogêneo, como refuta Paugam, e sim retrata a
existência de uma atitude coletiva que a sociedade passa a ter em relação a eles. O
trabalho dos técnicos que desempenham funções de atendimento dos considerados
pobres é um desses instrumentos que forma um olhar institucional em relação aos
assistidos, ou seja, de reprodução de definições práticas e julgamentos sobre os
pobres que infere socialmente numa atitude coletiva em relação a esses sujeitos.
3.2
A construção social da categoria de pobreza com base na realidade
O processo de construção social na perspectiva da sociologia do
conhecimento tem no construtivismo social uma forma de refletir sobre a realidade
onde o foco é a vida cotidiana dos atores sociais. Por isso, o diálogo com essa
escola ocorre no sentido de compreender como a realidade social inserida na rotina
do trabalho dos técnicos burocratas de rua que executam os programas e serviços
aqui estudados influencia na construção, instrumentalização e percepção que estes
têm do pobre e da pobreza.
Na perspectiva de Collins (2009), a referida escola recebe críticas por ser
considerada uma abordagem altruísta em que as suas ideias apenas proporcionam
análise de espaços de conflito ou dominação, o que seria entendido por muitos
como um idealismo ingênuo. Contudo, a sociologia do conhecimento não trata
86
somente da multiplicidade empírica do conhecimento nas sociedades humanas, mas
também dos processos pelos quais qualquer corpo de conhecimento chega a ser
socialmente estabelecido como realidade (BERGER; LUCKMANN, 2012).
Argumentam, ainda, os autores que é assim que “os homens da rua” habitam
um mundo real, embora este seja composto por diferenças e graus variáveis de
certeza. Esses homens estariam imersos em um mundo que possui tais ou quais
características.
Nesse intuito, o construtivismo social se afasta de uma perspectiva apenas
epistemológica da ciência da sociologia, para adentrar em uma perspectiva teórica
da sociológica com viés em que a disciplina empírica em seus problemas concretos
não está relacionada somente à pesquisa filosófica dos fundamentos da disciplina.
Em outras palavras, a linha da sociologia do conhecimento ocupa-se daquilo que é
considerado conhecimento na sociedade contraponto a necessidade de focalizar em
tendência mais objetiva.
O conhecimento humano, assim, é dado na sociedade como um a priori à
experiência individual, fornecendo a esta a sua ordem de significação. Essa ordem,
embora relativa a uma particular situação socio-histórica, aparece ao indivíduo como
o modo natural de conceber o mundo. Esse fato Scheler (apud BERGER e
LUCKMANN, 2012) chamou de relativa e natural concepção do mundo.
Acreditamos que uma perspectiva naturalista sobre o conhecimento dos
sujeitos que considera a supremacia das estruturas sociais sobrepondo o poder de
agência dos sujeitos engessa uma dinâmica social inerente ao próprio indivíduo.
Vislumbra-se, antes, um sujeito agente de suas ações que interage com as
estruturas ocasionando um movimento de mão dupla de construção e desconstrução
de conceitos. Sendo todo esse processo decorrente dos sentidos que ocorre ao
meio social sempre a produzir novos arranjos sociais e formas de existência que
direcionam as ações.
Tomemos
como
exemplo
os
sujeitos
pesquisados
que
pensam
e
operacionalizam o combate à pobreza no Brasil. A sua consciência reflexiva
(GIDDENS, 2009) faz com que eles saibam onde e com quem atuam e o que podem
alcançar ou não na interação.
O contraponto latente nesse caso entre o fundamento e a prática da ação é
que esta última discorda sobrepõe ou desafia a primeira. A maneira de ver o mundo,
as construções decorrentes dela fazem com que, em muitos momentos no
87
desenvolvimento de suas atribuições, as normas de conduta e protocolos de
atendimentos sejam tensionados com a opinião pessoal de cada um deles.
Mais do que isso, a interação social mediada por todo o conhecimento
empírico da realidade se aproxima da representação existente em cada papel, de
um lado o técnico, do outro o pobre. Tal discussão assenta-se nas discussões de
Goffmann (1988) em relação aos sentidos dados na metáfora teatralizada na
construção social da realidade. Cada sujeito atua em seu papel em que o jogo é a
tentativa de convencer ou ser convencido dos interesses em questão. Para o autor,
na vida real, “o papel que um indivíduo desempenha é talhado de acordo com os
papéis pelos outros presentes e, ainda, esses outros também constituem...”
(GOFFMAN, 1985, p. 9).
O Estado espera que, para a atuação do papel de técnico burocrata de rua, o
entendimento desses profissionais seja instrumentalizado pelas orientações técnicas
produzidas nacionalmente pelo MDS, órgão gestor dos programas em que atuam.
Muitos dos técnicos acreditam e defendem que a pobreza é um problema
social e do Estado, que deve ser combatida com acesso a direitos, tais como a
transferência de renda, inserção em políticas sociais etc. Por outro lado, uma grande
maioria acredita que o Estado faz um papel paternalista ao produzir políticas
públicas que concedem “benefícios” em troca de nenhum trabalho produtivo. Essa é
uma visão comum, principalmente dentre a equipe técnica nos municípios que é a
responsável pela execução direta dos programas e serviços.
Há uma constante tensão para os sujeitos nesse processo entre defender o
que os cadernos e normativas orientam e a defesa do que o técnico pessoalmente
acredita. Esse fato acaba por influenciar no desenvolvimento das ações orientadas.
Como forma de amenizar os impactos gerados por essa realidade, há um
esforço do Ministério responsável pelas ações, no caso estudado neste trabalho, em
manter em seu planejamento anual encontros de qualificação dos técnicos que
atuam nas políticas. Os encontros são voltados à capacitação sobre as orientações
técnicas e manuais produzidos pelo Ministério. Na oportunidade, são formados
grupos de no máximo 30 a 40 técnicos, geralmente durante cinco dias, oito horas
diárias.
O objetivo durante as capacitações consiste em buscar o nivelamento no
entendimento dos técnicos sobre os objetivos e normas e, dessa forma, proporcionar
a qualificação na execução dos programas e serviços, no que diz respeito às
88
orientações, ao tratamento dado ao usuário em todos os atendimentos realizados,
para, assim, evitar qualquer resquício de subjetividade e pessoalidade nos
procedimentos e, assim, habilitá-los plenamente na operacionalização dos
programas e serviços.
A recorrente utilização da experiência particular de cada um dos técnicos na
construção da maneira como compreende e determina a concepção de pobreza não
anula a realização dos procedimentos normatizados para o seu cotidiano. A rotina
de trabalho dos técnicos é direcionada pelas orientações técnicas publicadas e
disponibilizadas pelo governo federal.
Vale ressaltar que a condição de trabalho dos técnicos nos municípios
também tem influência para que eles possam ou não implantar as ações previstas
nas orientações. Dentre as condições mais incidentes estão: excesso de demanda
para o número de técnicos; a precariedade da instrumentalização dos equipamentos
(falta de computadores acesso à internet, impressora etc.); rede intersetorial não
suficiente para encaminhar casos mais graves etc.
O limiar entre a percepção pessoal dos técnicos e os procedimentos
normatizados também tem reflexos na forma que os casos são encaminhados.
Quando julgam uma situação prioritária de atendimento em que a instrumentalização
disponibilizada pelo Estado não supre o necessário para atendimento do sujeito.
Para esse tópico, o importante é concluir dois aspectos: que todos esses
processos preenchem o cotidiano desses profissionais construindo o que pensam
sobre a pobreza. A pobreza e a concepção do ser pobre nesse caso estão
intrinsecamente ligadas à condição social de ambos os atores: os pobres atendidos
e dos técnicos burocratas de rua que atendem.
89
3.3
A Delimitação da “pobreza” e do “pobre”
Partindo das reflexões teóricas expostas até o momento, abordar-se-ão, na
análise desta pesquisa, a pobreza como uma condição social reconhecida e o
pobre como um conjunto de pessoas cujo status social é também definido por
instituições especializadas de ação social que assim as designam (PAUGAM, 2003,
p. 55).
Trata-se de um caminho coerente para conduzir a análise de forma a
observar o conceito de pobreza sob o olhar de quem o constrói socialmente, ou seja,
o olhar de atores e segmentos sociais estudados (técnicos da burocracia estatal nas
três esferas de governo) em relação ao pobre e a pobreza.
Com a responsabilização no processo de institucionalização das ações
voltadas aos pobres, o conceito de pobreza utilizado pelo Estado como porta de
entrada às políticas passa a ser aquele institucionalizado pela burocracia estatal.
Consequentemente, o sentido e a compreensão dados pelos técnicos burocratas do
Estado devem ter como parâmetro a aplicabilidade e a reprodução de tal conceito.
Esse fato demonstra que a relação de técnicos e pobres transfigura-se em campo
prático e cotidiano em que se edifica a constituição social do conceito de pobreza
conforme resultado dessa interação.
Desde o planejamento até a execução de programas e serviços de
atendimento aos pobres, constituem-se espaços de intervenção, construção e
reprodução de conceitos normativos. É o que foi definido no tópico anterior como um
processo de institucionalização da pobreza pelo Estado.
É sabido que o critério para inserção dos pobres nas políticas públicas
executadas no Brasil está relacionado ao recorte de renda dos sujeitos. Porém, o
que está subliminar nessa inserção é que a renda constitui apenas uma ponte inicial.
O acesso às outras políticas, tal como assistência social, educação, saúde, inclusão
produtiva, qualificação profissional, faz parte do rol previsto em toda a trajetória
institucional do pobre. Essa é a dinâmica no maior programa em número de
beneficiários de transferência de renda, o Programa Bolsa Família34.
34
O conceito de pobreza do Programa Bolsa Família será tratado em tópico específico, mais à frente.
90
A descentralização do tratamento da renda como conceito de pobreza deve
ser considerada como um esforço de mudança da construção do lugar do pobre na
sociedade. No momento em que as políticas públicas incluem em suas metas a
inserção das famílias em políticas estruturais como educação, saúde, assistência,
vê-se uma perspectiva de construção social surgindo em torno do entendimento da
pobreza.
Rego e Pinzani (2013), pesquisadores do PBF com usuárias do programa de
transferência de renda, o Bolsa Família, trazem grande contribuição em seus
estudos, que é desmistificar o papel “passivo”, muitas vezes atribuído ao pobre. Em
sua pesquisa, retrataram os resultados sobre o processo de autonomia e
protagonismo de usuárias a partir da inserção no Programa.
Ao incluir o beneficiário no corpo dos cidadãos, promove nele um sentimento
de identificação com a nação, devido ao reconhecimento de sua pessoa por parte
das instituições políticas de Estado (REGO; PINZANI, 2013, p. 75).
No caso, Rego e Pinzani (2013) mostram que a inserção no referido programa
proporciona acessos a direitos, a uma condição de cidadã com que as usuárias
superam muitas condições perversas de sua condição social de pobreza antes de
ingressar no programa. As entrevistadas apresentaram um ganho no processo de
autonomia nas relações de gênero, de domínio e submissão tão presente na
condição das mulheres relacionada ao contexto histórico. Assim, para os autores,
existe um nível de autonomia que pode ser atingido pelos sujeitos atendidos no
referido programa que diz respeito não somente à dimensão estritamente individual,
mas também à vida social e à dimensão política em geral.
Os apontamentos trazidos pelos autores não se diferenciam do que se
encontrou em campo em pesquisas anteriores. Considerando a experiência de
grupos de usuários, os sujeitos experimentam um processo de qualificação social
(PEREIRA, 2007) dentre os seus iguais. Nesse caso a qualificação social advém do
processo positivo de protagonismo e afirmação social e individual do pobre diante
um estigma social pejorativo decorrente de sua condição anterior de pobreza.
Protagonismo este percebido por meio da superação de uma condição social
precária de submissão, violência simbólica, baixa autoestima e não afirmação de
sua identidade social.
Resta saber se na relação com o outro representado por aqueles que não são
usuários do programa, o processo de qualificação também ocorre.
91
As instituições estatais têm papel fundamental no reconhecimento da
condição social de pobreza dos cidadãos pobres. Nesse sentido, a capacidade
técnica na rotinização de atendimento é estruturante na efetivação do modelo
esperado pelo Estado no tratamento do pobre como cidadão.
Se fizermos uma análise comparativa retomando o contexto do século XIX
sobre o pobre, será visto que vários símbolos continuam arraigados na prática de
reconhecimento e identificação do pobre. Robert Castel (2012), em seu livro As
metamorfoses da questão social, retrata o tratamento dado aos pobres pelas
instituições cristãs. Ele destaca a existência de um conjunto de imagens da pobreza
e afirma que, à época, o pobre mais digno de mobilizar caridade é o que exibe no
corpo a impotência e o sofrimento humano. A piedade e esmolas aos pobres eram
elementos de barganha uma vez que eles rendiam o bom lugar nos céus.
Atualmente, os instrumentos da burocracia das instituições estatais tomaram
o lugar das chagas escritas no corpo e a caridade ao pobre nem sempre pode
significar a salvação, mas sim uma contribuição para viciar o cidadão em seu ciclo
de pobreza. Porém, ao certo, não se conseguiu inibir de todo a visão e estereótipo
do conceito de pobreza construído historicamente. Na sociedade moderna de regras
burocráticas, de identificação da pobreza, os pobres ainda são denominados de
“desocupados”, que “não querem trabalhar”.
No centro do aparato burocrático de institucionalização da pobreza no Brasil,
o grande desafio do pobre é provar-se pobre. Pelas contribuições de Castel (2012),
percebe-se que a busca de sinais nos pobres atendidos sempre foi um procedimento
utilizado pelos profissionais envolvidos no trabalho pelas diversas instituições.
É o olhar do Estado que julga e regulamenta a meritocracia do pobre a ser
pobre. Assim, o acesso à transferência de renda ou a assistência social está
condicionado ao crivo de um olhar técnico, treinado para identificar a veracidade dos
sinais de pobreza apresentados pelos candidatos a serem usuários dos programas e
serviços.
O cotidiano dos técnicos do Estado constrói, assim, mecanismos de
racionalização da prática do trabalho que reproduz regras próprias dos técnicos que
inferem em julgamentos e reprodução sobre o merecimento ou não merecimento de
inserção dos usuários nas ações de assistência social e/ou transferência de renda.
Esse processo acaba por ameaçar a legitimação das políticas públicas na
perspectiva de autonomia e cidadania que buscam proporcionar aos seus usuários.
92
Nessa perspectiva, fomos buscar na teoria de Michael Lipsky (2010) a
contribuição e suporte analítico para compreender a atuação e papel desses
técnicos que, na burocracia estatal, desempenham funções estratégias na
estruturação, execução e concretização das políticas públicas estado junto aos
pobres.
3.4
Burocratas de rua: atores do Estado no combate à pobreza
Como forma de conceituar objetivamente os sujeitos pesquisados, encontrouse no cientista político Michel Lipsky grande contribuição. Como o autor, partilha-se
da opinião de que os resultados das organizações públicas e o desenvolvimento dos
programas e serviços envolvem o controle e o desempenho dos burocratas de rua
nos serviços (LIPSKY, 2010).
Busca-se na contribuição teórica lapidar o olhar para compreender a
inferência dos street-level bureaucrats no contexto das políticas brasileiras de
combate à pobreza partindo de um olhar analítico relacional. Assim, não está em
foco a ação do burocrata de rua em si, mas a percepção e interação que esses
sujeitos estabelecem com programas e serviços que acompanham usuários.
Lipsky, em seu livro Street-Level Bureaucracy, dilemmas of the individual in
public services, trabalha a tese sobre os dilemas individuais enfrentados na prática
de servidores públicos na execução de políticas públicas no nível de rua. A obra
aponta quais os desafios, as estratégias, as formas de racionalização e a
operacionalização que constituem a função de street-level bureaucracy ou
“burocracia de rua” ao desempenhar suas atividades.
Os street-level bureaucracy são servidores públicos, tais como professores,
assistentes sociais, policiais, dentre outros que interagem regularmente com
cidadãos no desenvolvimento de suas atividades cotidianas. O poder discricionário
na execução de programas e serviços exercidos por esses sujeitos, na análise do
autor, se efetiva meio a construção de uma racionalidade cotidiana na ação que
ocorre por meio da prática e dos recursos a eles disponibilizados.
Lipsky traz para a literatura a importância do papel desses burocratas nas
políticas públicas no nível de rua e também demonstra quais os limites de sua
função e seus dilemas. Para o autor, os referidos profissionais nem sempre
93
conseguem realizar suas funções com excelência tal como previsto. Fato esse que
não tem relação com a capacidade ou responsabilidade dos burocratas de rua. Essa
observação é chave para compreender a atuação dos técnicos. Lipsky defende em
sua análise que as dificuldades enfrentadas pelos técnicos burocratas de rua diante
a escassez dos recursos necessários faz com que eles passem a assumir
responsabilidades com os casos dos usuários o que ocasiona dilemas pessoais no
trabalho.
the jobs typically could not be performed according to the highest standards
of decision making in the various fields because street-level works lacked
the time information, or other resources necessary to respond properly to the
individual case. Instead, street-level bureaucrats manage their difficult jobs
by developing routines of practice and psychologically simplifying their
clientele and environment in ways that strongly influence the outcomes of
their efforts. (LIPSKY, 2010,xii).
Quando o autor associa a ação dos profissionais na relação com o outro na
prática cotidiana e com a realidade instrumentalizada no que lhe é possível,
percebe-se um diálogo com o conceito de Serge Paugam que fala da condição
social construída para determinada conduta. Ou seja, constrói-se, também, uma
condição social de atuação desses técnicos, pela qual ele será identificado e
reconhecido socialmente na interação com o outro.
Essa perspectiva remete também ao conceito proposto na filosofia da ação de
Bourdieu (1996), quando o autor trata da propriedade relacional na interação entre
indivíduos por meio de uma exterioridade mútua associada ao espaço que ocupam.
Para Bourdieu, o espaço em que se dá o encontro das ações dos sujeitos seria
um conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores umas às
outras, definidas umas em relação às outras por sua exterioridade mútua e
por relações de proximidade ou de distanciamento e, também, por relações
de ordem, como acima, abaixo e entre. (BOURDIEU, 1996, p. 18-19).
Ocupando
um
mesmo
espaço
desenhado
por
uma
burocracia
institucionalizada de regras e condutas, tanto os burocratas de rua e seus
interlocutores (em nosso caso os “pobres”) experimentam suas diferenças e
contradições. Paradoxalmente, o espaço inter-relacional, nesse caso, não deveria
ser permeado de objetivos diferenciados, pois se trata de um interesse da burocracia
estatal, por meio do papel dos burocratas de cadastrar, atender e acompanhar,
94
incluir o pobre em suas políticas. Porém, em diversas vezes a mutualidade dos
atores nessa interação acaba por adquirir teor de opositores, em seus interesses.
Em Lipsky, temos que o termo Bureaucracy significa o conjunto de regras que
estruturam uma autoridade na ação, enquanto Street-level significa o locus do nível
de rua, ou seja, o local em que os serviços públicos concretizam as suas ações. É
na articulação entre a burocracia e o que se encontra na realidade do nível de rua
que se constrói um espaço da exterioridade mútua preconizado por Bourdieu. Nas
políticas de combate à pobreza, os burocratas de rua e os pobres travam uma
disputa de desafios e simbologias. Por um lado, tem-se que provar-se pobre e, por
outro, há o olhar inquisidor do burocrata, que julga pautado nas regras burocráticas
do mérito que constitui característica da burocracia do Estado gerencial.
Vale ressaltar que a preocupação está voltada apenas para processos
burocráticos isoladamente. A preocupação é compreender as reformas e inferências
das políticas públicas tendo assim mais uma perspectiva de respostas pragmáticas
às situações cotidianas do que uma dimensão epistemológica sobre o conceito de
burocracia.
Nesse sentido, será utilizada a pesquisa sobre o conceito de burocracia com
o intuito de observar o que os preceitos conceituais de burocracia esperam do papel
do servidor público ou dos burocratas em suas ações.
3.5
A burocracia e os street-level bureaucrats
Max Weber é autor de referência na discussão conceitual de burocracia. Na
teoria de Weber, a burocracia surge como um modelo ideal de funcionamento do
Estado meio à exigência da modernidade na busca da racionalidade como centro de
suas ações e funções. A burocracia está diretamente relacionada a uma conduta
pautada em regras legais que compõem um processo de hierarquia e disciplina no
interior da instituição pública.
Em seu texto, Weber (1982), à época, caracterizou o surgimento da
burocracia moderna por meio dos seguintes pressupostos:
I.
rege o princípio de áreas de jurisdição fixas e oficiais, ordenadas de
acordo com regulamentos, ou seja, por leis ou normas administrativas;
95
II.
os princípios da hierarquia dos postos e dos níveis de autoridades
significam um sistema firmemente ordenado de mando e subordinação, no qual
há uma supervisão dos postos inferiores e superiores;
III.
a administração de um cargo moderno se baseia em documentos
escritos (“arquivos”), preservados em sua forma original ou em esboço;
IV.
a administração burocrática, pelo menos toda a administração
especializada

que
é
caracteristicamente
moderna

pressupõe
habitualmente um treinamento especializado e completo;
V.
Quando o cargo está plenamente desenvolvido, a atividade oficial exige
a plena capacidade de trabalho do funcionário, a despeito do fato de ser
rigorosamente delimitado o tempo de permanência na repartição, que lhe é
exigido; e
VI.
O desempenho do cargo segue regras gerais, mais ou menos estáveis,
mais ou menos exaustivas, e que podem ser aprendidas.
Dentre essas reflexões, Max Weber também pensou o papel dos funcionários
públicos na efetivação da prática cotidiana por meio do tipo ideal da ação racionallegal do Estado moderno. Para o autor, o funcionário que serve ao governo público
deve estabelecer um vínculo de fidelidade aos pressupostos estruturais no Estado
burocrático, priorizando a especialização e o treinamento rígido de suas funções.
O cargo assumido pelo funcionário, na teoria de Weber, deve ser tido como
uma profissão, ou seja, uma relação pautada no aparato jurídico e não baseado no
mando e submissão. Assim, segundo o autor, o funcionário público não é e nem
deve se comportar como um servo do Governo. Na burocracia do Estado moderno,
a postura do servidor público, na teoria de Weber, detém-se, prioritariamente, na
impessoalidade e funcionalidade operacional das ações de caráter racional-legal.
É decisivo para a natureza específica da fidelidade moderna ao cargo que,
no tipo puro, ele não estabeleça uma relação pessoal, como era o caso da
fé que tinha o senhor ou patriarca nas relações feudais ou patrimoniais. A
lealdade moderna é dedicada a finalidades impessoais e funcionais.
(WEBER, 1982, p. 232).
Toda forma de atribuição de usufrutos, tributos e serviços devido ao senhor
pessoalmente, ou ao funcionário para a exploração pessoal, significa
35
sempre uma derrota do tipo puro da organização burocrática.
35
Id,, p. 241.
96
Os pressupostos básicos pensados por Weber continuam sendo alicerce na
compreensão do papel do servidor público. Ao mesmo tempo, outras contribuições
foram surgindo decorrentes da transformação dos modelos de Estados e a atuação
dos burocratas. No caso brasileiro, pode-se apontar mais recentemente que coincide
com as primeiras políticas do discurso do combate à pobreza, a reestruturação
burocrática proposta do Plano Diretor da Reforma do Estado, escrito pelo então
ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), Luiz Carlos
Bresser Pereira, no governo do presidente da República Fernando Henrique
Cardoso.
No referido documento, Bresser (1995) relembra a tentativa do Estado
brasileiro, em 1936, de modernizar a administração pública por meio da criação do
Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP). Nesse período, a tentativa
se pautou na administração científica proposta pelo engenheiro americano Frederick
Taylor, que recomendava a racionalização mediante simplificação, padronização,
aquisição racional de materiais, revisão de estruturas e aplicação de métodos na
definição de procedimentos.
O DASP, sob o ponto de vista de Bresser Pereira, com relação aos servidores
públicos, representou a tentativa de formação da burocracia nos moldes weberianos,
baseada no princípio do mérito profissional. Para o autor, apesar da tentativa, não foi
obtido resultado satisfatório. Isso porque resquícios da administração pública
patriarcal, o contraponto que estimulou a criação do modelo burocrático racionallegal, ainda tinham força no quadro político público brasileiro. Para Bresser, apenas
havia uma transição do formato da submissão, nas palavras do autor “o coronelismo
dava lugar ao clientelismo e ao fisiologismo” (BRESSER, 1995, p. 19).
Na crítica feita por Bresser, esse modelo de burocracia implantado no Brasil a
partir de 1930, por ele denominado de modelo burocrático tradicional, privilegiou o
formalismo no excesso de normas e rigidez burocrática. Isso tudo sob ao argumento
de garantir a impessoalidade. Porém para Bresser, esse procedimento seria mais
um dificultador da transparência administrativa, inibindo o controle social, pois a
excessiva regulamentação é expressão da ênfase nas normas e processos e ocorre
em detrimento dos resultados.36
36
Id., p. 241.
97
As mudanças que passou a exigir uma postura diferenciada na atuação do
servidor público na burocracia vieram com a proposta de implantação do modelo de
um Estado Gerencial com o Plano de Reforma do Estado de 1995. Esse modelo
pensado por Bresser tinha como objetivo levar a técnica gerencial burocrática para o
Estado. O foco do modelo gerencial era flexibilizar a rigidez burocrática tradicional,
descentralizar competências, todo esse processo orientado por planejamentos
estratégicos voltados a necessidade do cidadão e a busca de resultados.
Algumas características básicas definem a administração pública gerencial.
É orientada para o cidadão e para a obtenção de resultados; pressupõe que
os políticos e os funcionários públicos são merecedores de grau limitado de
confiança; como estratégia, serve-se da descentralização e do incentivo à
criatividade e à inovação; e utiliza o contrato de gestão como instrumento de
controle dos gestores públicos. (BRESSER,1998, p. 28)
Enquanto a administração pública burocrática é autorreferente (satisfaz
seus próprios interesses) a administração pública gerencial é orientada para
37
o cidadão .
Para Abrúcio (2010), o modelo proposto por Bresser não teve força suficiente
para ser implementado devido a alguns elementos como: o legado deixado por
governos anteriores (fazendo referência à gestão de Fernando Collor de Melo) e,
segundo, pelas mudanças propostas não se alinharem ao ajuste fiscal ocorrido nos
anos de 1990. Para o autor, a necessidade de uma nova gestão pública, à época,
trazia uma série de detalhe que retratava a urgência de ter novos instrumentos
gerenciais e democráticos para combater os problemas do Estado contemporâneo.
Ao mesmo tempo, se o formalismo e a rigidez burocrática deviam ser atacados como
males, alguns alicerces do modelo weberiano poderiam constituir-se numa alavanca
para a modernização, em prol da meritocracia, que seria e clara separação entre o
público e o privado (ABRUCIO, 2010, p. 543).
Nesse sentido, a ação dos street-level bureaucrats pode ser entendida com
maior proximidade de uma abordagem da perspectiva gerencial de burocracia do
que com a burocracia clássica tradicional weberiana. Em nossa perspectiva, Lipsky
apresenta uma flexibilidade da ação burocrática representada na margem de
liberdade existente no poder de discricionariedade desses sujeitos. Isso parece claro
quando no estudo do autor ele aponta os dilemas sofridos pelos servidores públicos
diante de situações práticas que, instrumentalmente, não tem como resolver e
37
Id., p. 21.
98
mesmo assim eles são exigidos a tomar uma decisão. Nesse sentido é observado
um processo de responsabilização individual dos burocratas de rua com relação aos
cidadãos atendidos.
A discricionariedade pode ser definida como a margem de liberdade de um
funcionário público para escolher um curso de ação ou inação,
fundamentada na lei. A discricionariedade está envolvida pelos códigos
legais e não se trata de ação ilegal, mas de liberdade para agir ou deixar de
agir que um funcionário público tem diante do cidadão comum. (DAVIS;
GALLIGAN apud ARANHA; FILGUEIRAS, 2011, p. 352).
Essa tomada de decisão muitas vezes implica consequências significativas
para a vida dos usuários, que é não ter suas necessidades atendidas da forma
adequada, suprimindo, assim, o seu direito de acesso às políticas públicas. Por essa
razão, o autor atribuir que estes momentos de tomada de decisão significam uma
“densidade” e carga emocional cotidiana na prática diária desses sujeitos.
Sob o olhar das Ciências Sociais, o objeto aqui proposto é abordado na
relação social entre os técnicos burocratas de rua que atendem os pobres. No caso
brasileiro, observa-se um misto entre discricionariedade (dentro da racionalidadelegal estabelecida) e de uma categoria denominada na burocracia gerencial que
seria a confiança, ou seja, a possibilidade de o servidor público ser motivado em seu
poder criativo de tomada de decisão na resolução de problemas relacionados ao seu
cotidiano de trabalho, porém usando sempre de critérios racionais como os
princípios da impessoalidade e razoabilidade.
3.6
As instituições e os indivíduos
Dando continuidade à discussão sobre os elementos que constroem o
universo da institucionalização e das ações dos burocratas de nível de rua, serão
apresentadas algumas que escolas discutem hoje o referido conceito partindo do
tipo de relação constituída pelos sujeitos no interior dessas instituições. Discutem,
também, a forma como as instituições normatizam suas regras, e as diversas
maneiras como elas são assimiladas e exteriorizadas por esses sujeitos. Elementos
como interesses, processos políticos, normativos, poder, atores, mecanismos
institucionais permeiam essa temática.
99
A institucionalização não pode ser um processo irreversível a despeito do fato
das instituições, uma vez constituídas, perdurar a rigidez de seus conceitos e
normas. Partilha-se, assim, do ponto de vista de Berge e Luckman (2012) de que as
instituições variam historicamente por uma multiplicidade de fatores. No cenário
atual, seria um pensamento equivocado se deter, apenas, na perspectiva linear e
coercitiva do conceito de instituição como algo que sobrepõe o indivíduo. Ampliar o
entendimento da instituição social foge ao padrão de controle, de programação da
conduta individual imposta pela sociedade.
Berger e Luckman (2012), ao estudarem a relação entre institucionalização e
conhecimento social, apontam que a atualização do conhecimento sob o ponto de
vista do processo de institucionalização, pode ser encontrada no desempenho e
significações institucionais relacionados à experiência individual trazida pelos
indivíduos.
O acervo inteiro do conhecimento social acha-se atualizado em cada
biografia individual. Todos fazem tudo e sabem tudo. O problema da
integração dos significados (isto é, da relação, dotada de sentido, entre as
diversas instituições) é um problema exclusivamente subjetivo. O sentido
objetivo da ordem institucional apresenta-se a cada indivíduo como dado
natural e certo enquanto tal. Se há algum problema, deve-se a dificuldades
subjetivas que o indivíduo pode ter na interiorização de significados a
respeito dos quais existe acordo social. (BERGER; LUCKMAN, 2012, p.
110).
Um marco nas ciências sociais inicial sobre o conceito de instituição veio com
o sociólogo Émile Durkheim em um dos primeiros tratados sobre o objeto científico
das ciências sociais, As regras do método Sociológico. O autor trouxe o conceito de
instituição como categoria das ciências sociais. Ele denominou de “instituição todas
as crenças e todos os modos de conduta instituídos pela coletividade” (DURKHEIM,
2007, p. XXX).
Em relação ao pensamento durkheimiano, a reprodução e representação de
práticas sociais dos indivíduos passam pelo processo de coerção social, em que a
maneira coletiva de pensar e de agir socialmente tem uma realidade exterior
sobreposta ao indivíduo. Ao ingressarem nos processos de socialização, os
indivíduos, encontram um mundo com regras codificadas com base em uma
exterioridade dos fatos que exige uma conduta pautada nos valores já existentes.
Assim, constituem-se instituições como a família, o Estado etc.
100
Com base nas contribuições durkheimianas, o conceito de instituição passou
a ser objeto de estudo de outras escolas. Mais recentemente têm destaque,
considerando-se o âmbito de organização e interação institucional, as escolas da
Teoria Institucional (Velho Institucionalismo) e a escola Neoinstitucionalista (Novo
Institucionalismo). Para o estudo da relação dos técnicos burocratas de rua e os
pressupostos construídos pela instituição Estado, o diálogo com essas escolas
merece atenção especial. De forma cada vez mais recorrente, a forma de
organização do Estado para pensar, estruturar e executar o rol de políticas públicas
busca, no âmbito da racionalidade corporativa, modelos para monitorar e avaliar as
metas e resultados do trabalho dos seus burocratas de rua.
A Teoria Institucional surge no final do século XIX, assentada na tradição
sociológica (Durkheim e Weber), direcionada a explorar o conceito de instituição no
âmbito das instituições e corporações (CARVALHO; VIEIRA, SILVA 2012. Os
institucionalistas
trabalham
categorias
como
os
elementos
regulativos
da
normatização, mudança de comportamento, padrões ordenadores, com maior
ênfase no processo de institucionalização pelo Estado, como também no campo
organizacional e de controle das demais organizações. Para Silva, Fonseca e
Crubellate (2005), seria como uma “teoria das organizações”, que preconizava que a
maior sensibilidade aos elementos regulativos corresponde uma base legal, ou seja,
as organizações se legitimam mediante a conformação a leis estabelecidas em seu
âmbito da atuação. Esses elementos provêm predominantemente do Estado. A
ênfase normativa indica uma base essencialmente moral e a legitimidade
organizacional é definida em termos de sua adesão a normas definidas como
padrões de comportamento. As fontes dessas normas são preferencialmente, as
profissões e seus mecanismos de controle. (CARVALHO; VIEIRA; SILVA, 2012, p.
486).
Para a Teoria Institucional, ou Velho Institucionalismo, são os elementos
reguladores e normativos que regem o comportamento dos indivíduos na relação
com as organizações/instituições. Essa perspectiva interpreta as organizações como
uma expressão estrutural da ação racional que ao longo do tempo estão sujeitas às
pressões do ambiente social, podendo se transformar em sistemas orgânicos. A
transformação ocorre pelo processo de institucionalização, ou seja, quando os
valores substituem os fatores técnicos na determinação das tarefas organizacionais
(PECI, 2006).
101
As instituições, a racionalidade, os atores e a tomada de decisão configuramse nos objetos de estudo da denominada escola. O foco se detém nos arranjos, na
cultura organizacional e institucional, nas mudanças e no comportamento dos
indivíduos no interior de corporações e organizações (RUA; ROMANINI, 2013).
Os primeiros estudos organizacionais adotam o conceito de instituição de
modo prescritivo, preocupados com as formas como uma organização pode
torna-se uma instituição; ou seja, ganhar legitimidade perante a sociedade e
tornar-se permanente, sobrevivendo ao ambiente de negócios. Desenvolvese, então, a chamada corrente de desenvolvimento institucional (ou
institucional building), que causou grande impacto nos estudos
organizacionais, especialmente, devido a seu caráter aplicado. (PINTO
apud PECI, 2006).
Mais tarde, na década de 1970, o Neoinstitucionalismo faz uma releitura da
Teoria Institucional. Assim, as pesquisas sobre institucionalização passam a ser
classificadas por dois viés: o velho institucionalismo, que faz referência à teoria
institucional, e o novo institucionalismo, que se refere à teoria Neoinstitucionalista.
O Neoinstitucionalismo, ou Novo Institucionalismo, parte de uma alternativa
teórica ao funcionalismo e ao behaviorismo (RUA; ROMANI, 2013) com forte
influência da Teoria Cognitiva (CARVALHO; VIEIRA; SILVA, 2012). Essa nova
releitura da escola institucionalista desloca o foco do estudo do conceito de
instituição dos elementos normativos e reguladores até então trabalhados para os
elementos cognitivos. Dessa forma, o processo de interação entre instituição e
indivíduo passa a considerar que a cognição como base para legitimação das
normas constituídas.
Quando a ênfase recai sobre os elementos cognitivos, valoriza-se na teoria
institucional, a representação que indivíduos fazem dos ambientes
configuradores de suas ações, incluindo as interpretações subjetivas que
fazem. Sob esse ângulo, são os significados atribuídos pelos indivíduos à
realidade em que se acham inseridos que se conformam seu contexto
institucional de referência, ou seja, que definem estruturas e orientam ações
organizacionais. A interpretação dos elementos institucionais é mediada por
indivíduos, grupos e organizações que selecionam aqueles que mais se
38
coadunam com sua lógica interior .
Algumas críticas são direcionadas ao
Neoinstitucionalismo. Segundo
Immergut (2007), durante o surgimento dessa perspectiva, houve certo ceticismo por
parte da comunidade científica ao questionar o que ela trazia de novo, uma vez que
as instituições têm sido o foco das ciências políticas desde o seu nascimento. Sob o
38
Id.
102
ponto de vista da autora, as variedades dos novos institucionalistas trazem e tratam
de um conjunto comum de problemas que podem ser considerados apenas como
uma perspectiva unificada.
As três premissas básicas do novo institucionalismo para a autora são: 1 as
preferências ou os interesses expressos em ações que não devem ser confundidos
com “verdadeiras” preferências; 2 os métodos de agregação de interesses
inevitavelmente trazem distorções; 3 as configurações institucionais podem
privilegiar conjuntos específicos de interesse e, portanto, poderão necessitar de
reformas.
Ainda segundo a autora, a discussão trazida pela teoria de tradição
institucionalista é voltada para a ação, as escolhas e as preferências do ser
indivíduo e como elas se relacionam com as instituições políticas, sociais etc. Os
institucionalistas, ao partirem da crítica ao movimento behaviorista, por esses
pressuporem
que
as
preferências
são
dados
subjetivos
revelados
pelo
comportamento, acreditam em outro viés. Assim, as preferências manifestadas pelo
comportamento dos sujeitos são as verdadeiras preferências dos sujeitos
(IMMERGUT, 2007). Para os institucionalistas, o interesse se distinguir entre as
preferências expressas e as reais, ou seja:
pode haver inúmeras razões para que, dado um conjunto particular de
circunstâncias, uma pessoa faça uma escolha política daquela que ela
mesma faria, com as mesmas preferências, em outras circunstancias. Por
exemplo, por acreditar que o resultado que deseja ver alcançado não seja
factível, um indivíduo pode votar numa alternativa que não seja a sua
primeira opção, mas que tenha a vantagem de poder realizar-se. Os
institucionalistas visam analisar os motivos que levam esses atores a
escolher uma definição particular de seus interesses, e não outra plausível.
As definições de interesses são vistas como resultados políticos que devem
ser analisados, e não como pontos de partida para ações políticas, a serem
aceitas de per si. Dessa forma, a teoria institucionalista visa expor e analisar
a discrepância entre os interesses “potenciais” e aqueles que se expressam
no comportamento político. (IMMERGUT, 2007 p.157).
A
escola
Neoinstitucionalista
pode
ser
dividida
em
três
tipos
de
institucionalismo. O quadro a seguir apresenta resumidamente cada um dos tipos,
permitindo observar as semelhanças e diferenças entre eles.
103
Quadro 3: Tipos de Neoinstitucionalismo
Escolha racional
Interesses
Fatores
estratégicos
levam atores racionais
a escolher equilíbrios
subótimos.
Processo político
Sem
regras
para
ordenar, não consegue
alcançar o interesse o
público; regras para a
sequência de votação
no Congresso, divisão
em jurisdições etc.
afetam os resultados.
Normativo
*Os
fins
substancialmente
racionais são inúteis,
sem
meios
formalmente racionais;
*Maximizar a eficiência
por meio da regra de
unanimidade e compra
de votos;
*Vontade
popular
insondável,
a
democracia
é
controlada por efeito e
contrapesos.
Atores
Poder
Racionais
Capacidade de
unilateralmente.
agir
Teoria da organização
Institucionalismo
histórico
Os atores não conhecem
seus interesses; limites de
tempo
e
informação
levam-nos a depender de
sequências
e
outras
regras de processamento
(racionalidade limitada).
As interpretações
dos atores de
seus
interesses
são moldadas por
organizações
coletivas
e
instituições
que
carregam traços
da
própria
história.
Os processos inter e
intraorganizacionais
moldam os resultados,
como no modelo lata de
lixo, o trabalho para
alcançar a reorganização
administrativa
e
a
implementação
de
políticas.
Processos
políticos
estruturados por
Constituições e
instituições
políticas,
estruturas de
Estado, relações
entre Estado e
grupos de
interesse, redes
de políticas e
contingências de
timing.
Implicações do poder
burocrático
e
da
racionalidade limitada.
Democracia
jurídica baseada
no fortalecimento
do
Congresso,
deliberação sobre
regras e não com
base
em
resultados
específicos,
necessidade
de
filosofia pública.
Cognitivamente limitados
Autorreflexivos
(normas sociais,
culturais
e
históricas,
mas
reinvenção
da
tradição).
Depende de posição na
hierarquia organizacional.
Depende
do
reconhecimento
pelo Estado, do
acesso à tomada
de decisões, da
representação
política e das
104
construções
mentais.
Mecanismos
institucionais
Estruturação
das
opções por meio de
regras
(dependência
de
normas
controversas).
Estruturação das opções
e
dos
cálculos
de
interesse por meio de
procedimentos,
rotinas
roteiros, quadros (implica
normas).
Estruturação de
opções,
cálculo
de interesses e
formação
de
metas por regras,
estruturas,
normas e ideias.
Fonte: Immergut (2007).
Em nosso ponto de vista, os elementos encontrados na tradicional e na
neoteoria institucional se complementam no campo prático de execução da
estruturação e avaliação dos sujeitos que atuam nas políticas de combate à
pobreza. A ação desses sujeitos da relação normatizada pelo Estado, porém não
fogem de um comportamento em que os indivíduos fazem dos ambientes em que
executam suas ações, incluindo para tanto as suas interpretações subjetivas.
A interpretação das normativas institucionalizadas toma distância de uma
concepção pura, ou seja, tal como idealizada apenas nos critérios institucionalizada
pelo Estado. No campo de atuação dos técnicos, em determinado momento do
poder discricionário de que dispõem, prevalecem mais a interpretação que os
burocratas de rua fazem das situações e da política do que a técnica normatizada.
Os processos subjetivos dos sujeitos de tais políticas no momento do
atendimento aos pobres são tão determinantes quanto aos demais fatores. Os
valores interiorizados pelos técnicos (burocratas de rua), os desafios e dificuldades
cotidianas no trabalho (LIPSKY, 2010) constroem responsabilidades individualizadas
dos sujeitos em relação aos usuários e às políticas. Isso significa dizer, por mais
paradoxo que seja para um Estado que busca racionalidade nos procedimentos
normatizados, as perspectivas subjetivas de construção dos sujeitos representam e
integram o conjunto das políticas públicas e a maneira como elas chegam aos
usuários.
Por essas influências, observa-se um importante movimento relacionado à
potência de ação dos sujeitos na interação e nas escolhas racionais no interior das
instituições sociais, especificamente nas políticas públicas de combate à pobreza
elaboradas pelo Estado. Ao mesmo tempo em que a instituição Estado busca a
legitimação social de seus conceitos normatizados na prática dos técnicos que
105
trabalham com a pobreza, a prática também estabelece seus processos de
institucionalização, num movimento de duplo sentido entre instituição e sujeito.
Nesse sentido Carvalho, Vieira e Silva (2012) acreditam que existe
significativa
contribuição
do
enfoque
sociológico
no
campo
das
escolas
instuticionalistas envolvendo as políticas públicas. O olhar sociológico valorizou as
propriedades simbólico-normativas das estruturas, abrindo novas possibilidades na
pesquisa empírica para compreensão das dimensões do ambiente e as relações
interorganizacionais.
Sobre a relação entre sujeito, ação e estrutura, Giddens (2009), considerando
a contribuição de Durkheim, de que as propriedades estruturais se constituíram
apenas nas influências coercitivas sobre a ação, propõe outra perspectiva sob o
ponto de vista da teoria da estruturação, uma releitura de tal perspectiva inferindo a
ela que a estrutura tanto é facilitadora como também coercitiva. Em outras palavras,
Giddens defende que a associação das categorias como o tempo-espaço, que
decorrem nas estruturas, fecha algumas possibilidades de experiência humana, ao
mesmo tempo em que traz outras. O teor facilitador das estruturas advém da relação
inerente entre a estrutura e agência.
Na teoria da estruturação, o essencial desse ponto pode ser assim
apresentado. As sociedades humanas ou os sistemas sociais, não
existiriam em absoluto sem a agência humana. Mas não se trata de que os
agentes, ou autores, criam sistemas sociais: eles os reproduzem ou
transformam, refazendo o que já está feito na continuidade da práxis.
(GIDDENS, 2009, p. 201).
Partilha-se neste trabalho com o que preconiza a Teoria da Estruturação de
Giddens de que as mudanças ocorridas nas estruturas acontecem com base em um
sujeito agente, em relação às representações coletivas e sociais da agência dos
indivíduos sobre sua realidade aos aspectos simbólicos cotidianos das relações
sociais estabelecidas. Atualmente mais do que compreender a coerção das
estruturas sobre o indivíduo, exige-se investigar sobre o poder de agência dos
atores no interior das estruturas e instituições como integrante ativo num movimento
de construção e desconstrução, transformando os sentidos e regras por meio do
sentido que eles constroem de suas ações e na interação com demais sujeitos.
106
3.7
Sobre a institucionalização da pobreza
As formas de institucionalização da pobreza se aprimoraram conforme as
necessidades de intervenção do Estado em decorrência das transformações sociais
ocorridas historicamente, o que vem desde a prática da caridade à necessidade de
exclusão e isolamento dos mendigos pobres. Considerando um passado mais
recente, a Revolução Industrial associada às mudanças ocorridas no mundo do
trabalho e a explosão da urbanização em massa inicia um ciclo que incrementaram
o quadro de políticas de combate à pobreza. Após esse processo, com a discussão
do Estado de Bem-Estar e Direito passa a valer uma intervenção junto aos pobres a
partir do discurso do direito e da cidadania.
É nesse momento que emergem diversas formas racionalizadas e normativas
de institucionalização da pobreza para conter o número crescente de pobres e
mendigos que se acumulavam nos centros urbanos. O levantamento histórico feito
pelo capítulo I trata do breve relato histórico sobre os modos de intervenção no
atendimento aos pobres, nas diferentes formas de governo que passaram pelo
Estado brasileiro, aponta que no Governo de Getúlio Vargas, na década de 1930,
ocorreram
as
primeiras
iniciativas
para
regulamentações
de
ações
institucionalizadas direcionadas ao público denominado pobre.
A maioria dessas iniciativas dos anos de 1930, época da Revolução Industrial,
no caso brasileiro, concentraram-se em conceder alguns direitos trabalhistas como
forma de que a inserção no mundo do trabalho superasse a condição de pobreza de
muitos trabalhadores que se acumularam nas grandes cidades. Porém, isso não era
o suficiente, uma vez que o acesso aos “benefícios” apenas eram alcançados pelos
que conseguiam postos de trabalho, excluindo os demais. Restava aos que não
conseguiam trabalho buscar ajudar das entidades prestadoras de assistência social
aos pobres ainda sob o título de caridade social.
Uma das mais significativas formas de controle é a criação dos conceitos e
critérios para classificação ou tipificação dos sujeitos pobres entre aptos e não aptos
a serem inseridos nos programas e serviços de combate à pobreza. A prática do
controle pelo Estado e seu corpo de técnicos sempre esteve e está ligado ao
processo de institucionalização da pobreza. A institucionalização ocorre sempre que
há uma tipificação recíproca de ações habituais por tipos de atores, dito de maneira
107
diferente
qualquer
uma
dessas
tipificações
é
uma
instituição
(BERGER;
LUCKMANN, 2012, p. 77).
As tipificações institucionais seriam a reciprocidade e um caráter típico não
apenas na constituição das ações habituais, mas também nas ações dos atores
inseridos nos processos de instituições. Elas são acessíveis a todos os membros de
um grupo social particular em questão, que trabalha com determinadas concepções.
É o processo de formação de hábito, ou seja, a experiência biográfica do sujeito em
um mundo de instituições sociais, que precedem seu estado de solidão que
precederá a institucionalização.
A institucionalização ocorre sempre que há uma tipificação recíproca de
ações habituais por tipos de atores, dito de maneira diferente qualquer uma
dessas tipificações é uma instituição. (BERGER; LUCKMANN, 2012, p. 77).
Implicam a construção das ações institucionalizadas a historicidade e o
controle social. Assim, para se compreender a construção de uma conduta
institucionalizada, é mister considerar o contexto social em que ela foi constituída. É
nesse
sentido
que
as
questões
apresentadas
abordarão
o
conceito
de
institucionalização. Será estabelecida a relação sobre o que se denominará
institucionalização do conceito de pobreza pelos “gestores locais” ou burocratas de
rua que executam, em alguns estados e municípios, os programas de atendimento
aos considerados pobres e suas implicações no cotidiano da prática profissional
desses sujeitos.
Assim como a biografia histórica dos sujeitos é elemento fundamental na
institucionalização dos processos em que ele vive, no campo das políticas públicas
de combate à pobreza isso também acontece. Ou seja, os profissionais pesquisados
utilizam das referências de hábitos e significados sobre pobreza para inserir na sua
inserção cotidiana no trabalho.
A prática de determinadas categorias que envolvem a pobreza e o pobre
passam por um processo de institucionalização necessário para qualificação das
políticas públicas de combate à pobreza. Nesse sentido, o Estado conta com a
operacionalização da pobreza por meio de sua equipe técnica, os técnicos streetlevel bureaucrats, para implementar tais regras. Os recursos técnicos de
institucionalização da pobreza produzidos pelo Estado, tais como leis, portarias,
decretos, manuais de orientações técnicas, capacitações etc. são os recursos
108
utilizados como parâmetros para a execução das políticas de combate à pobreza
pelos técnicos.
Diante dos argumentos expostos neste capítulo, cabe delimitar que, para fins
analíticos, tratar-se-á neste trabalho de institucionalização da pobreza para
denominar o processo de intervenção do poder público, no caso o Estado, na
normatização, regulamentação e controle de ações voltadas à pobreza e aos
considerados pobres. Processo este mediado pela constituição de um arcabouço de
conceitos, critérios, definições e regras voltadas à identificação dos pobres para
inclusão nos programas e serviços que compõem as políticas públicas de combate à
pobreza.
Este capítulo objetivou delimitar o escopo conceitual do objeto de pesquisa, o
que denominamos de “pobreza”, de “pobre” e de “institucionalização da pobreza”.
Fizemos opção por um recorte teórico conceitual que conduzisse a análise numa
perspectiva construtivista social por acreditar que o nosso objeto constrói sua
condição de atuação a partir da prática.
Mesmo diante de tantas possibilidades de suporte analítico sobre implantação
de políticas públicas, sempre tivemos claro que a imersão da pesquisa seria por
situar o sujeito no interior de uma ação pública estatal, por isso em nosso arcabouço
teórico não estamos trabalhando diretamente com análise de política pública, mas
do poder de agência, do poder simbólico e das formas de institucionalização
constituídas pelos sujeitos que a compõem.
Por isso vimos nos conceitos de desqualificação social relacionado a
processo sociais decorrentes da condição dos sujeitos classificados ou atendidos
pelas instituições estatais, do sociológico Serge Paugam (2003) e de street-level
bureaucrats, de Lipsky (2010), que elucida a atuação dos técnicos burocratas de
nível de rua que trabalham diretamente com os sujeitos atendidos pelo Estado um
diálogo frutífero para chegar em nossa proposta de estudo.
Nesse percurso, o aspecto primordial foi nos instrumentalizar para analisar no
presente trabalho como atualmente se institucionaliza a pobreza no principal eixo de
ação do combate à pobreza, concretizado no programa de transferência de renda
condicionada, o Programa Bolsa Família.
109
CAPÍTULO IV – As formas de intervenção institucionalizada no combate à
pobreza: o debate sobre os programas de transferência de renda
O capítulo quatro inicia a inserção nos resultados da pesquisa empírica.
Inicialmente serão apresentadas as discussões acerca das iniciativas das ações de
transferência de renda, como se deram e, a partir daí, como se contextualiza o
debate entre os autores brasileiros. O objetivo é ter contato com as ideias iniciais
sobre os propósitos da transferência de renda, as suas tendências e objetivos. Com
isso, pretende-se obter subsídios para compreender a experiência da transferência
de renda no Brasil, via programa Bolsa Família e, consequentemente, o papel
esperado dos atores envolvidos na sua execução, com destaque para o papel os
técnicos burocratas de rua que realizam o atendimento aos pobres.
O processo de redemocratização ocorrido em vários países latino-americanos
na década de 1980, dentre eles o Brasil, associado a uma nova ordem econômica
que surgia internacionalmente, fez com que os países mais pobres reordenassem
suas economias internas para dar respostas ao crescimento elevado dos índices de
pobreza no mundo. O endividamento elevado dos países latino-americanos com o
Fundo Monetário Internacional (FMI) na referida década junto aos interesses
econômicos e quase metade da população desse continente na linha de pobreza
suscitaram o debate para a reestruturação das políticas sociais. De acordo com os
números, na América Latina, no ano de 1990, 48% dos habitantes estavam abaixo
da linha de pobreza e 22,6% viviam na extrema pobreza (THOMÉ, 2012).
O relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal),
Panorama Social da América Latina 2014, revela que a situação da pobreza
manteve-se estável entre os anos de 2012 e 2013, chegando a 28,1% da população.
Em 2014, a estimativa foi de que a pobreza entre a população seria em torno de
28%, significando em números absolutos de 167 milhões de pessoas 39.
Tal fato significa como um processo de estabilidade nos números da pobreza
na população da América Latina, o que para o relatório vem ocorrendo desde o ano
de 2012. Por outro lado, a ocorrência de um processo de desaceleração econômica
39
Disponível em: <http://www.cepal.org/pt-br/comunicados/reducao-da-pobreza-e-da-extremapobreza-se-estanca-na-maioria-dos-paises-da-america>. Acesso em: 7 maio 2015.
110
aponta os dados de que a extrema pobreza ou indigência aumentou de 11,3% em
2012 para 11,7% em 2013, o que supõe um aumento de 3 milhões para 69 milhões
de pessoas. As projeções apontam que em 2014 se registraria um novo aumento,
até 12%, ou seja, dos 167 milhões de pessoas em situação de pobreza no ano de
2014, 71 milhões se encontravam em condição de extrema pobreza ou indigência40.
O gráfico abaixo traz um comparativo da evolução da pobreza na América
Latina entre as décadas dos anos de 1980 a 2014.
Figura 1: Evolução da pobreza e extrema pobreza, 1980-2014
Fonte: banco de dados da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal):
Panorama Social Para a América Latina, 2014.
Num cenário de comparação mais amplo, ao final da década de 1990,
especificamente no ano 2000, o Brasil, pelos dados de Pochmann (2006) era a 13ª
economia do mundo, o desemprego atingia cerca de 11 milhões de pessoas. O
rendimento do trabalho respondia por 39% da renda nacional enquanto, na década
de 1980, ou seja, em vinte anos antes, a economia brasileira era a 8ª do mundo,
tendo a renda advinda do trabalho representando 50% da renda nacional.
A mesma década ainda representou a inserção do Brasil na economia
mundial rumo a um padrão de competitividade para concorrer no cenário da
economia globalizada. Para Silva, Yazbek e Giovanni (2012), esse fato representou
a prioridade para dinamização de setores econômicos em detrimento de
40
Disponível em:< http://www.cepal.org/pt-br/comunicados/reducao-da-pobreza-e-da-extremapobreza-se-estanca-na-maioria-dos-paises-da-america>. Acesso em: 7 maio 2015.
111
investimentos que considerassem a dinâmica interna do país. Na discussão sobre
consolidação de um Sistema de Proteção Social brasileiro, Draibe (1990)
denominará a esse processo de uma construção de um Estado de Bem Estar Social
marcado por uma base meritocrática com traços corporativistas e clientelistas.
Como uma forma de não andar na contramão das reformas e ajustes
econômicos da década de 1990, que aprimoravam o processo de globalização da
econômica, organismos internacionais passaram a focar em financiamento e
incentivos nos países em desenvolvimento voltado à implantação de políticas sociais
compensatórias. O objetivo era minimizar o impacto que a internacionalização do
capital trazia a esses países. O aumento considerável do desemprego, o avanço da
desigualdade social e as formas de pobreza faziam parte do cardápio de
consequências desse processo. A Tabela 1 apresenta a situação da pobreza entre o
Brasil e demais países da América Latina após a década de 1990, considerando os
anos de 2005, 2012 e 2013.
Tabela 1 – América Latina (18 países) pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza em torno
de 2005, 2012 e 2013. (Em porcentagens)
Segundo Silva, Yazbek e Giovanni (2012), o arcabouço de políticas públicas
surgidas no Brasil, a partir do ano de 1990, esteve pautado nas regras da agenda da
112
política neoliberal. Isso fez com que as marcas das intervenções de proteção social
tivessem teor compensatório e residual, direcionadas pela agenda de reforma dos
programas
sociais
na
América-Latina
sob
a
orientação
dos
organismos
internacionais iniciados nos anos de 1980.
É nesse contexto de aumento do número de pobres na América Latina meio a
intervenções de organismos internacionais “preocupados” com as mudanças
estruturais econômicas, que o Estado brasileiro inicia a intervenção de seu combate
efetivo à pobreza. Isso por meio de diversas políticas públicas, tendo destaque para
as iniciativas de transferência de renda focalizadas na pobreza e extrema pobreza.
Os programas, Bolsa Família, na gestão do presidente Lula, e o Brasil Sem Miséria,
na gestão de Dilma Rousseff passam a integrar inúmeros atores sociais no processo
de institucionalização das ações de programas e serviços para os pobres.
4.1
Uma breve contextualização do debate sobre os Programas de
Transferência de Renda (PTRs)
O Programa Bolsa Família (PBF) faz parte do grupo de iniciativas
caracterizadas como transferência de renda condicionada direcionada às famílias
consideradas pobres ou extremamente pobres criado no início dos anos 2000. No
Brasil, configura-se atualmente, em número de usuários, no maior programa
brasileiro de combate à pobreza. Os atores sociais entrevistados para esta pesquisa
entre técnicos e gestores, de maneira direta ou indireta trabalham no atendimento
em nível de rua dos “pobres” inseridos no PBF. Esses profissionais lidam
cotidianamente em suas funções com o conceito constituído e institucionalizado
sobre o combate à pobreza por meio dos objetivos da transferência de renda de
pobreza.
Algumas reflexões de teor estruturais relacionadas à concepção do combate à
pobreza na sociedade contemporânea associada ao modelo de estrutura dos
programas de transferência de renda são responsáveis por normatizar o conceito de
pobreza assimilado pelas equipes técnicas do Estado.
Para alguns estudiosos, nem sempre as medidas adotadas para combate à
pobreza são compreendidas como formas eficazes para afetar causas estruturais da
pobreza e desigualdade, pois, algumas causas que ocasionam processos de
113
precarização da condição social da população mais pobre são decorrentes das
readequações ou transformações do sistema capitalista. Um exemplo disso é o
crescente índice de desemprego entre os sujeitos em idade ativa para estar no
mercado de trabalho.
Para Antunes e Pochmann (2007), isso decorre de forças destrutivas do
trabalho vivo que emergiram no último quartel do século XX. Com a intensificação do
processo de acumulação pós-fordista, constatou-se uma inversão das bases de
garantia da segurança do trabalhador. Passou-se a assistir ao retorno do
desemprego estrutural, que logrou mais força à medida que ganhou maior dimensão
a globalização neoliberal. Esse fato se transformou numa realidade generalizada nas
economias centrais, enquanto que na periferia do capitalismo mundial, em que o
grau de seguridade social não havia avançado tanto durante os anos dourados,
ocorreu uma ampliação ainda mais intensa nos níveis de precarização e
desemprego.
Diante de tal realidade, os autores reconhecem que o avanço no gasto social
com ações voltadas ao público mais vulnerável, frente à crise da precarização de
trabalho e o alto índice de taxa de desemprego foi fundamental para o não
agravamento da situação.
Desde a década de 1990, a queda na proporção de pobres no total da
população tornou-se somente possível com o avanço do gasto social,
estimulado fundamentalmente pela Constituição Federal de 1988. Não há
dúvida de que a estabilização monetária contribuiu para aliviar a situação de
pobreza, mas, em frente ao desempenho desfavorável do mercado de
trabalho, o segmento ativo da população tornou-se bem mais vulnerável ao
rebaixamento das condições de vida e trabalho. Mesmo assim, a taxa de
pobreza no País declinou. Mas isso se deveu principalmente ao papel
ampliado das políticas sociais de atenção tanto aos inativos de mais idade
(previdência social, LOAS, entre outros), como aos inativos de menos idade
(PETI e programas de transferência de renda vinculada à educação). Dessa
forma, os inativos deixaram de responder pela maior participação no total
dos pobres do País, a qual se concentrou na população ativa, em especial
nos desempregados e ocupados precariamente no mercado de trabalho.
(ANTUNES; POCHMANN, 2007, p. 208).
Alguns
analistas
que
estudam
os
alcances dos programas
de
transferência de renda na experiência dos países da América Latina, como o Brasil
(los alcances de los programas de Transferências Monetarias Condicionadas (TMC)
– CLACSO), avaliam que os programas trabalham de forma residual alguns quesitos
da Segurança Social e ocultam problemáticas estruturais.
114
Esas propuestas de acción son mecanismos de promoción y legitimación de
un esquema residual de seguridad social, en la medida que esconde los
conflictos de redistribución de la riqueza, favoreciendo La disociación entre
protección vía mercado de empleo y obtención de bienestar. Planteado de
otra forma, este tipo de acciones estatales garantiza mínimos sociales,
desactiva la acción colectiva y por ende el conflicto capital-trabajo. En
consecuencia “dualiza” artificialmente La estructura social, entre pobres,
perdedores y destinatarios de la asistencia pública, y no pobres y
ganadores, desconociendo que la actual estructura de vulnerabilidades
trasciende a la extrema de pobreza. (CLACSO, 2013, p. 21).
Outras tendências intermediárias acerca do alcance das iniciativas de
transferência de renda conseguem visualizar avanços e restrições nesse processo.
Assim, defendem que tal formato de intervenção junto aos pobres representa uma
reestruturação de componentes estratégicos da assistência na proteção social em
países que a adotam.
esas medidas sociales, pese al reducido gasto público que insumen, el que
se ubica en menos del 1% del PIB nacional, igualmente abren
oportunidades para reestructurar componentes estratégicos de asistencia
en el marco de los incompletos sistemas de protección regional. Asimismo,
luego de casi quince años de ajuste y recorte de la intervención pública, la
estabilización de los TMC parece indicar un reposicionamiento del Estado
en materia social y más aún, de responsabilidad política en relación a la
pobreza, que no se reduce mecánicamente a partir del crecimiento
económico, sino que se requiere de políticas públicas, entre las que figuran
41
estos programas. .
Como afirma Sen (2000), a pobreza deve ser entendida como
experiências de privação de liberdades que vai além da ausência de renda. O autor
acertadamente argumenta que os sujeitos experimentam situações de “pobreza” ao
ter limitada a sua liberdade de estar inserido em determinadas realizações sociais
importantes para si.
O que se apreende com políticas públicas e usuários de programas de
combate à pobreza no caso Brasileiro é que proporcionar meios de liberdade de
acesso, seja de direitos ou de elementos básicos como material escolar, enxoval
recebido pela adolescente grávida, uma vaga de alfabetização de adulto, enfim, de
um mínimo vital, seja ele qual for, representa no universo social desses sujeitos a
ruptura com privações sociais antes rígidas. O acesso a “liberdades” traz a sensação
41
Id., p. 21.
115
de “pertencimento” de fazer parte de um todo em que as tomadas de decisões e
merecimentos faz parte da condição social do cidadão. A transferência de renda,
nesse caso, torna-se uma porta de entrada que proporciona aos outros tipos de
experiências e sensações aos usuários dos programas voltados ao pobre.
Para Sen (2000), várias foram as tentativas conciliatórias para a avaliação
das realizações sociais, considerando as funções agregativas e distributivas. O autor
cita como exemplo a busca pela renda equivalente e igualmente distribuída. E que
essa noção é guiada e determinada em cada sujeito por escolhas de parâmetro que
refletem nosso juízo ético.
Nesse sentido, para compreender as nuances analíticas, o autor
apresenta categorias denominadas de “escolha de espaço” ou “variável focal”. Elas
direcionam a análise para compreender o estudo da condição social de pobreza,
como o fato de os sujeitos “pobres” e suas necessidades serem multifacetárias.
Nos juízos sobre a desigualdade comparam-se aspectos específicos de
uma pessoa com aspectos semelhantes de outra pessoa; a variável que
“focaliza” os aspectos que embasam as comparações é a “variável focal” ; a
escolha da variável focal especifica um domínio de valores (um espaço de
avaliação) que servirão como parâmetro para pesar as vantagens e
desvantagens relativas de diferentes pessoas. (SEN, 2000, p. 116).
Com isso o autor, quer afirmar que a desigualdade de rendas pode diferir
substancialmente em diversos outros “espaços” (ou seja, em função de outras
variáveis relevantes), como bem-estar, liberdade e diferentes aspectos da qualidade
de vida (incluindo saúde e longevidade). As realizações agregativas assumem
formas diferentes dependendo do espaço no qual a totalização é feita. Ele
exemplifica casos em que o ranking das sociedades que tem como base a renda
média pode diferir de outros em que o ranking é baseado nas condições médias de
saúde, por exemplo.
A substancial contribuição das reflexões de Sen para nossa análise é o fato
de a pobreza ou de o pobre, assim como todos os atores envolvidos em programas
e serviços de erradicação da pobreza, constituir um objeto complexo de análise pela
diversidade com que se constituem. Isso ocorre pela existência de aspectos
conjunturais exteriores, como também aspectos intrínsecos, simbólicos à experiência
de cada realidade local.
116
É inegável que as iniciativas das políticas públicas de combate à pobreza
alicerçam o atendimento aos pobres. Um exemplo são mesmo os programas de
transferência de renda e serviços complementares. O impacto que eles
proporcionam no alívio imediato da pobreza é uma das vantagens de sua aceitação.
Como ressaltado antes, os programas de combate à pobreza por meio da
transferência de renda é uma continuidade à tendência dos Estados no final dos
anos de 1990 na América Latina. Faz parte da plataforma do pacto pela implantação
de políticas sociais e ações focadas no combate à pobreza nos países em
desenvolvimento.
Porém, a proposta de um abono universal foi pensada, pela primeira vez, no
final do século XIX, no Alasca no ano de 1981. Em meados dos anos 80, o debate
passa a ser pauta consolidada de discussão em toda a Europa chegando depois a
outros países. A experiência tratava do Fundo Permanente do Alasca. Funcionava
da seguinte forma, anualmente, com base no volume do Produto Interno Bruto, era
transferida uma renda para a conta bancária dos moradores (SUPLICY, 2002).
Em seu texto, Suplicy traz uma análise das iniciativas de renda mínima ao
redor do mundo e aponta que nos países da Europa essa discussão inicia em 1930
e nos Estados Unidos, em 1935. No caso da Europa, as ações estavam
direcionadas à garantia de benefícios a famílias, desde que com presença de
crianças dependentes, de suporte de renda aos idosos, aos inválidos, aos que
tinham poucos rendimentos de seguro-desemprego, ou de complexos sistemas de
seguridade social. (SUPLICY apud Silva, Yazbek e Giovanni., 2012).
Nos Estados Unidos a experiência foi criada no governo de Franklin
Roosevelt, com o Social Security Act, que instituiu o Aid for Families with Dependent
Children. O objetivo era complementar a renda de famílias cujas mães com baixa
renda eram viúvas, ou tinham dificuldade de cuidar ou oferecer educação aos seus
filhos. Mais tarde, no ano de 1974, também foi criado o Eamed Income Tax Credit
(EITC – Crédito Fiscal por remuneração Recebida). Essa iniciativa se destinou às
famílias que trabalhassem e tivessem crianças na sua composição. No caso, foi
constituído um corte de renda e abaixo desse valor as famílias recebiam uma
complementação de renda variável conforme a renda e o número de filhos.42
42
Idem.
117
O debate trouxe ainda uma dicotomia de posições, uns favoráveis e outros
contrários. Os argumentos se estruturavam em questões como: a implicação da
iniciativa proposta no funcionamento da economia dos países, chegando até ao
questionamento sobre os valores que devem compor o funcionamento da sociedade.
Assim, formaram-se duas frentes: uma que acredita que o abono universal pode
amenizar algumas problemáticas sociais como pobreza, desemprego e outra que
defende que tal medida implica em inviabilidade econômica e agrega elementos de
concepção ética (VANDERBORGHT; PARIJS, 2006 p. 30).
O debate internacional sobre Programas de Transferência de Renda se firma
na década 1980, contextualizado meio a significativas transformações na economia
com consequências no mundo do trabalho. Dentre as consequências mais
marcantes estão
maior
número
de
desempregados,
postos
de
trabalhos
precarizados para todas as faixas etárias, principalmente entre os jovens.
Coloca-se então a necessidade de reformas sociais e, nesse âmbito, os
programas de transferência de renda são destacados como possibilidade
para o enfrentamento do desemprego e da pobreza, ampliada na sua face
estrutural e pelo que se convencionou denominar de a nova pobreza.
(SILVA; YASBEK; GIOVANNI, 2012).
Para os autores, tomando como base a América Latina, as experiências de
transferência de renda estiveram condicionadas ao incentivo à complementação de
renda por consequências do mercado de trabalho escasso e como forma de garantir
a qualificação educacional, em primeiro momento, principalmente das crianças. Esta
seria uma das formas encontradas para romper o ciclo de pobreza nos países latinoamericanos.
No ano de 2012, havia implementados cerca de mais de vinte programas de
transferência de renda em países da América Latina, América Central, Caribe e
México. Dentre as diversas experiências existentes nos países latino-americanos,
têm destaque (SILVA et al., 2012; CUNHA, 2008; IPEA, 2013) conforme Quadro:
118
Quadro 4: Programas de Transferência de renda em países da América Latina, América Central,
Caribe e México.
Países
Programas
Brasil
Programa Bolsa Família
México
Programa Oportunidades
Argentina
Assignación Familiar por Hijo para el Bem Estar Social
Uruguai
Nuevo Régimen de Assignaciones Familiares
Costa Rica
Avancemos
Chile
Chile Solidário
Colômbia
Más Familias em Acción
Equador
Bono de Desarollo Humano
Peru
Programa Juntos
Nicarágua
Mi Família
República
Dominicana
Solidariedade
El Salvador
Rede Solidária
Panamá
Programa Bono Alimentario
Paraguai
Programa piloto: Tekoporã
Honduras
Programa Asiginación Familiar
Guatemala
Mi Família Progresa
Fonte: Elaboração da pesquisadora a partir da revisão bibliográfica.
No caso do Brasil, o debate sobre renda mínima é suscitado de maneira
efetiva e nacionalmente pela apresentação (Abril/1991) e aprovação no Senado
Federal do Projeto-Lei nº 80, de dezembro de 1991, do Programa de Garantia de
Renda Mínima (PGRM). A proposta é apresentada pelo então senador do Partido
dos Trabalhadores de São Paulo (PT-SP) Eduardo Suplicy. O projeto propôs a
implementação de taxação negativa como forma de distribuição de renda e,
consequentemente, o enfrentamento da pobreza.
119
A ideia do imposto negativo previa a constituição de um patamar de renda, tal
como a linha de pobreza. Quem ganhasse acima desse piso pagaria imposto de
renda e aqueles que ganhassem abaixo desse piso teriam uma renda mínima em
dinheiro. A ideia de taxação negativa que inspirou Suplicy teve como base os
trabalhos do economista Norte Americano Milton Friedman43.
Resumo da proposta segundo Silva, Yasbek e Giovanni (2012):
 por meio do imposto negativo beneficiar todos os residentes no país
maiores de 25 anos que auferissem menos de, à época, 2,25 salários mínimos.
Haveria correção duas vezes ao ano sempre que a inflação atingisse 30% que
seria igual ao crescimento real por habitante do PIB do ano anterior;
 o benefício seria uma complementação de porcentagem de 30%
visando manter o incentivo para o trabalho;
 previa a complementação e criação de programas e projetos que
visassem à ampliação da oferta de serviços e bens de consumo popular tendo
em vista o aumento da demanda;
 estava previsto para ser implantado gradualmente entre os anos de
1995 e 2002. Iniciando pelos sujeitos maiores de 60 anos e finalizando no
último ano com todos os indivíduos no perfil pensado, ativos e inativos maiores
de 25 anos de idade;
 o financiamento do programa viria do Orçamento da União, porém o
custo não poderia ultrapassar 3,5% do PIB. A ressalva neste item é que as
ações do Programa não poderiam substituir as ações governamentais básicas
na área de saúde;
 a transferência do benefício seria intermediada pela fonte pagadora ou
por devolução de imposto de renda. Entre os atores que efetuariam tais
trâmites estariam a Rede Bancária e a Empresa de Correios e Telégrafos.
Após o ano de 1991, a discussão sobre renda mínima se expande por todos
os estados e municípios. O projeto do senador não passou no Congresso Nacional,
porém pequenas iniciativas foram implantadas de maneira isolada em estados e
municípios brasileiros. Foram pioneiros nesse modelo de programas, o Programa
Bolsa Escola (1995-DF – Governo Cristóvão Buarque); o Programa de Garantia de
43
FRIEDMAN, M. Capitalism and freedom. Chicago: University of Chicago Press, 1962.
120
Renda Familiar Mínima (PGRFM, de 1994 - Prefeito de Campinas-São Paulo José
Roberto Magalhães Teixeira (JUSTO, 2009).
Nesse contexto, a discussão sobre ações de transferência de renda pode ser
dividida em cinco momentos (SILVA; YASBEK; GIOVANNI, 2012). O primeiro
momento, em 1991, quando foi aprovado Projeto-Lei do senador Eduardo Suplicy,
propondo a instituição de um Programa de Garantia de Renda Mínima em nível
Nacional.
O segundo momento ocorreu a partir dos acontecimentos de 1992, com o
Movimento Ética na Política, impeachment do presidente Fernando Collor, trazendo
a temática da fome e da pobreza para a agenda pública do país. Nesse momento,
tem destaque a Campanha Nacional da Ação da Cidadania Contra a Fome, a
Miséria e pela Vida, liderada pelo sociólogo Herbert de Sousa. A campanha foi
realidade no governo do presidente Itamar Franco, que em 1993 idealizou o Plano
de Combate à Fome e à Miséria.
O terceiro momento da discussão ocorreu em 1995 (início do primeiro
mandato de FHC), com o desenvolvimento das experiências municipais dos
programas de transferência de renda (Campinas, Brasília, Ribeirão Preto, Santos
etc.). Com isso, a proposta política de renda mínima aponta para possibilidade de
concretude.
O segundo mandato do Presidente Fernando Henrique (1999-2002)
representa, para os autores, o quarto momento que caracteriza a discussão de
programa de transferência de renda no Brasil. Essa conjuntura é marcada pelo
aumento de programas por iniciativa do Governo Federal por meio de gestão
descentralizada para os municípios brasileiros. Foram criados o Bolsa Escola, o
Bolsa Alimentação, dentre outros. Vale ressaltar, também, a expansão de
programas, como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) e Benefício
de Prestação Continuada (BPC), ambos instituídos em 1996.
E, finalmente, houve quinto momento que se deu com a eleição do presidente
Lula a partir do ano de 2003. Para os autores, o momento foi marcado por
mudanças quantitativas, porém tendo maior ênfase na fase qualitativa das ações de
política de transferência de renda com abrangência nacional. Vale destaque para
algumas
mudanças
importantes
ocorridas
nesse
momento
histórico
compreender o direcionamento dos referidos programas no momento atual.
para
121
Assim, são aspectos importantes de mudanças para destaque: 1. anúncio da
prioridade do Governo para enfrentamento da pobreza e da fome com a estratégia
do Programa Fome Zero; 2. iniciação de projeto de unificação de programas
nacionais de transferência de renda – Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Vale-Gás,
Cartão-Alimentação (julho de 2003) para constituição de um novo programa
(Outubro/2003), o denominado Programa Bolsa Família; 3. com base no Projeto-Lei
apresentado anteriormente pelo senador Eduardo Suplicy, foi sancionada pelo
presidente Lula em janeiro de 2004 a Lei de Renda Básica de Cidadania para
implementação a partir de 2005; 4. Criação, em janeiro de 2004, do Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, que representou o momento e esforço
de unificação de dois ministérios existentes anteriormente, o da Assistência Social e
o Ministério Extraordinário de Segurança Alimentar e Combate à Fome.
Em suma, Silva, Yazbek e Giovanni (2012) apresentam três vieses teóricos
de discussão dos Programas de Transferência de Renda. O primeiro viés advém de
uma perspectiva denominada pelos autores de liberal-neoliberal. Essa perspectiva
considera os PTRs como mecanismos compensatórios e residuais eficientes no
combate à pobreza e ao desemprego e enquanto uma política substitutiva dos
programas e serviços sociais e como mecanismos simplificador dos Sistemas de
Proteção Social.
A segunda perspectiva progressista/distributiva considera os PTRs como
mecanismos de distribuição de riqueza socialmente produzida e política de
complementação aos serviços sociais básicos existentes e voltados para a inclusão
social. E, como terceira, a perspectiva em que os PTRs são vistos como
mecanismos provisórios de destinados a permitir a inserção social e profissional de
cidadãos em dada conjuntura com problemáticas como pobreza e desemprego44.
A seguir aprofundaremos a análise do formato da transferência de renda no
caso brasileiro. E, dessa forma, poder-se-á entender em qual desses vieses se
encontra a inserção do PBF.
44
Perspectiva referenciada pelos autores como a tese defendida pela professora Dra. Maria Ozanira
Silva e Silva, registrada na obra: SILVA, Maria Ozanira da. Renda Mínima e reestruturação
produtiva. São Paulo: Cortez, 1997.
122
4.2
Programa de Bolsa Família: sobre características da institucionalização
da pobreza pela renda e das regras de acesso
O campo das políticas de combate à pobreza constitui suas próprias regras
de classificação dos “seus” pobres. Dessa forma não basta se autointitular pobre
para estar nos programas e serviços. Essa conceitualização é dada, na maioria das
vezes, pelo Estado em suas orientações técnicas e normativas. Assim, a condição
de pobreza deve ser provada e comprovada pelos sujeitos que se consideram
pobre. Por sua vez, cabe ao Estado “julgar” se o indivíduo está apto ou não a ser
“pobre” conforme os critérios por ele constituídos.
Nesse preâmbulo, existe o papel primordial dos técnicos burocratas de rua
que atendem diretamente os pobres. Esses técnicos têm a função de avaliar se os
indícios apresentados pelos sujeitos são verdadeiros, coerentes ou não ao esperado
para estar na condição de pobreza estabelecida pelo Estado. O desafio nesse caso
é o aprimoramento na atuação desses profissionais para que os processos
individualizados de subjetividade não interfiram na sua função de avaliação dos
casos. Com tal intuito é que são construídas burocracias meritocráticas, ou seja, em
que se busque a total imparcialidade nos “julgamentos”.
No caso do Bolsa Família não é diferente. Como um programa voltado ao
combate à pobreza no rol das políticas públicas brasileiras, algumas regras foram
criadas e partilhadas com objetivo de classificar e ter foco no público “pobre”, que
necessitam da assistência do Estado.
O Programa Bolsa Família foi criado por Medida Provisória 45 no primeiro
mandato do presidente Luis Inácio Lula da Silva, no ano de 2003, e tornou-se lei
federal no ano de 200446. O PBF representou a unificação dos programas de
transferência de renda condicionada até então existentes. Tais programas, em
primeiro momento, foram implementados em alguns municípios e estados e, em
seguida, passaram a ser implementados nacionalmente pelo então governo de FHC.
Porém eram executados em categorias diferenciadas. O Bolsa Família unificou os
45
Medida Provisória nº 132, de 20 de outubro de 2003. Disponível
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/mpv/Antigas_2003/132.htm >. Acesso em: 5 maio 2015.
em:
46
em:
Lei
nº
10.836,
de
9
de
janeiro
de
2004.
Disponível
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/lei/l10.836.htm>. Acesso em: 5 maio 2015.
123
seguintes programas: Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cartão-Alimentação e
Auxílio-Gás.
Em números, o Programa Bolsa Família possui em maio de 2015, 13.732.79
famílias inseridas, que recebem transferência de renda. O valor médio do repasse foi
de R$ 167,95. O valor total transferido pelo governo federal em benefícios às
famílias atendidas alcançou R$ 2.306.454.411,00 ao mês.
Art. 18. O Programa Bolsa Família atenderá às famílias em situação de
pobreza e extrema pobreza, caracterizadas pela renda familiar mensal per
capita de até R$ 154,00 (cento e cinquenta e quatro reais) e R$ 77,00
(setenta e sete reais), respectivamente. (Decreto nº 8.232 de 30 de abril de
2014).
Para que as famílias se candidatem a receber a transferência de renda, elas
têm de estar cadastradas em um banco de dados, o Cadastro Único para Programas
Sociais do Governo Federal (CadÚnico). Esse banco de informações é o
instrumento que caracteriza uma das principais classificações para identificação das
famílias pobres, denominadas também de famílias de baixa renda.
São consideradas famílias de baixa renda pelas regras de cadastro no
CadÚnico aquelas que têm renda mensal de até meio salário mínimo por pessoa ou
renda mensal total de até três salários mínimos. Famílias com renda superior a meio
salário mínimo também podem ser cadastradas, desde que sua inserção esteja
vinculada à inclusão e/ou permanência em programas sociais implementados pelo
poder público nas três esferas do governo.
O Cadastro Único é coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e
Combate à Fome (MDS), deve ser obrigatoriamente utilizado para seleção de
usuários de programas sociais do governo federal, como o Bolsa Família. Trata-se
de um banco de dados que acumula informações sobre a realidade socioeconômica
das famílias inseridas, trazendo dados sobre a formação do núcleo familiar, tais
como características do domicílio, formas de acesso a serviços públicos essenciais
e, informações sobre cada membro da família. Assim, o governo federal47 formula e
47
O CadÚnico é regulamentado pelas seguintes normativas: pelo Decreto nº 6.135/2007,
pelas Portarias nº 177, de 16 de junho de 2011, e nº 274, de 10 de outubro de 2011, e Instruções
Normativas nº 1 e nº 2, de 26 de agosto de 2011, e as Instruções Normativas nº 3 e nº 4, de 14 de
outubro de 2011. Ressalta-se também que atualmente pode ser considerado o maior banco de dados
para consultas das famílias consideradas pobres, em extrema pobreza e baixa renda. Devido à
articulação e ao número de informações, o CadÚnico extrapolou a utilização do órgãos do governo
federal, passando a ser bastante utilizado pelos governos estaduais e municipais com objetivo de
124
implementa políticas específicas, que visam contribuir para a redução das
vulnerabilidades sociais das famílias atendidas nos diversos programas a partir do
conhecimento detalhado de cada família.
Para estar apto a ser inserido no programa, os sujeitos devem se “enquadrar”
em uma das duas linhas de classificação, a linha de pobreza ou a de extrema
pobreza. Pelos critérios do programa, considera-se que a família é pobre quando
ela se encontra na linha de pobreza, quando apresenta renda mensal por pessoa
entre os limites de extrema pobreza e pobreza, ou seja, uma renda mensal per
capita entre R$ 77,01 e R$ 154,00, desde que possuam crianças e/ou adolescentes
de 0 a 17 anos na sua composição.
É considerada uma família extremamente pobre ou em situação de
extrema pobreza quando a renda mensal por pessoa é menor ou igual ao limite de
extrema pobreza, ou seja, uma renda per capita mensal de até R$ 77,00. Além
desses, existem vários outros conceitos importantes na institucionalização da
pobreza. Todos constituídos na tentativa de criar parâmetros niveladores de
entendimentos e práticas de execução em todo país, com objetivo de chegar a uma
racionalidade tecnocrata na conduta de todos os atores, ou seja, das equipes
técnicas e gestores que atuam na operacionalização das ações dos programas e
serviços.
Conforme Decreto nº 6.135 de 26 de junho de 2007 (dispõe sobre o Cadastro
Único para programas sociais do governo federal) e Portaria nº 177, de 16 de junho
de 2011 (define procedimentos para a gestão do Cadastro Único para Programas
Sociais do governo federal, revoga a Portaria nº 376 de 16 de outubro de 2008), os
principais conceitos norteadores para inserção no CadÚnico e PBF são:
Família: unidade nuclear composta por uma ou mais pessoas, eventualmente
ampliada por outras que contribuam para o rendimento ou tenham suas despesas
atendidas por ela, todas moradoras de um mesmo domicílio.
Morador: a pessoa que: a) tem o domicílio como local habitual de residência
e nele reside na data da entrevista; b) embora ausente na data da entrevista, tem o
domicilio como residência habitual ou c) está internada ou abrigada em
estabelecimento de saúde, instituições de longa permanência para idosos,
obter o diagnóstico socioeconômico das famílias cadastradas, possibilitando o desenvolvimento de
políticas sociais locais.
125
equipamentos que prestam serviço de acolhimento, instituições de privação de
liberdade, ou em outros estabelecimentos sumulares, por um período igual ou
inferior a 12 meses, tomando como referência a data da entrevista.
Responsável pela unidade familiar (RF): um dos componentes da família e
morador do domicílio, com idade mínima de 16 anos e, preferencialmente, do sexo
feminino.
Família de baixa renda: a) aquela com renda familiar mensal per capita de
até meio salário mínimo, ou b) a que possua renda familiar de até três salários
mínimos.
Renda familiar mensal: a soma dos rendimentos brutos auferidos por todos
os membros da família, não sendo incluídos no cálculo aqueles percebidos de
programas: PETI, Programa Bolsa Família e os programas remanescentes nele
unificados, programas emergencial financeiro e outros de transferência de renda
destinados à população atingida por desastres residentes em municípios em estado
de calamidade pública ou situação de emergência, e demais programas
condicionada de renda implementados por estados, Distrito Federal e municípios.
Os conceitos decodificam a classificação dos pobres e o determina a
meritocracia do direito que deve ser verificada dentre os pobres que se apresentam
como candidatos a serem inseridos nos programas e serviços. Para estar no banco
de acesso, é necessário passar por alguns procedimentos, como o cadastramento.
Este, por sua vez, deve ser composto por: 1 identificação do público/famílias a ser
cadastrado; 2 coleta de dados previstos; 3 inclusão dos dados no sistema
informatizado de cadastramento; e 4 atualização e revalidação dos dados cadastrais
que normalmente ocorre no intervalo de dois em dois anos.
Após a identificação do perfil da família cadastrada é que se efetivará ou não
a elegibilidade para ser inserido na transferência de renda ou como também o
acesso a outros serviços. Tudo vai depender do perfil de renda e composição
familiar. No caso da transferência de valores, denominada na estrutura do PBF de
“benefício”, ou seja, o valor em dinheiro repassado pelo programa às famílias. O
benefício é composto por vários fatores que combinados irão somar o montante a
que as famílias terão direito a receber. Os valores repassados consideram o número
de integrantes, o total de crianças e adolescentes de até 17 anos e a existência de
gestantes de nutrizes no grupo familiar. A regulamentação do programa estabelece
126
os seguintes tipos de benefícios com seus respectivos valores, que podem ser
deferidos para as famílias:
Quadro 5: Tipos de benefícios concedidos pelo Programa Bolsa Família / maio 2015
Tipo do Benefício
Valor do Repasse
Pago para quem?
Benefício Básico
R$ 77,00
Famílias extremamente
pobres (renda mensal
por pessoa menor de
até
R$
77,00)
independentemente de
sua composição.
1 benefício por família
Benefício Variável de 0
a 15 anos (BV)
R$ 35,00
Famílias com crianças
e/ou adolescentes de
até 15 anos de idade.
Até 5 por família
R$ 35,00
Famílias que tenham
gestantes
em
sua
composição;
Pagamento em nove
parcelas consecutivas,
a contar da data do
início do pagamento do
benefício, desde que a
gestação tenha sido
identificada até o nono
mês;
A
identificação
da
gravidez é realizada no
Sistema Bolsa Família
na Saúde. O Cadastro
Único
não
permite
identificar as gestantes.
Entre no limite do BV
de até 5 benefícios por
família
Benefício Variável à
Gestante (BVG)
Benefício Variável
Nutriz (BVN)
Benefício Variável
Vinculado ao
Adolescente (BVJ)
R$ 35,00
R$ 42,00
Famílias que tenham
crianças com idade de
até 6 meses em sua
composição;
Pagamento em seis
parcelas mensais
consecutivas, a contar
da data do início do
pagamento do
benefício, desde que o
nascimento tenha sido
informado até o sexto
mês de vida.
Famílias que tenham
adolescentes de 16 e
17 anos pago até o
mês de dezembro em
que o jovem completa
18 anos.
Quantidade
Entre no limite do BV
de até 5 benefícios por
família
Até 2 por família
127
Benefício para
Superação da Extrema
Pobreza (BSP)
Calculado caso a caso
até que a família em
sua renda per capita
ultrapasse o valor de
R$ 77,01.
Famílias que mesmo
tendo os benefícios que
faz jus listados acima
continuam em extrema
pobreza. Passam a
receber o valor que
falta para garantir que
as famílias ultrapassem
o limite de renda da
extrema pobreza.
(Renda mensal por
pessoa de acima de R$
77,01).
1 benefício que leva em
conta todos os
membros da família
Fonte: dados disponíveis em <www.mds.gov.br/bolsafamília>.
Tendo como base os critérios do CadÚnico, que estabelece o perfil de renda
para classificar o nível de pobreza das famílias cadastradas no CadÚnico, o quadro
das famílias brasileiras cadastradas que se encontram na faixa de renda prevista
para o programa seria o seguinte:
Tabela 2: Total de Famílias Cadastradas por Faixa de Renda / março 2015
48
Nº de
Famílias
Mês
Referência
Total de famílias cadastradas
27.037.471
03/2015
Famílias cadastradas com renda per capita mensal de R$ 0,00 até
R$ 77,00
13.149.251
03/2015
Famílias cadastradas com renda per capita mensal entre R$ 77,01
e 154,00
4.423.204
03/2015
Famílias cadastradas com renda per capita mensal entre R$
154,01 e ½ salário mínimo
5.710.123
03/2015
Famílias cadastradas com renda per capita mensal acima de ½
salário mínimo
3.754.893
03/2015
Fonte: SAGI/MDS/Relatórios de Programas e Ações-informações sociodemográficas. Disponível em:
<www.mds.gov.br/sagi>.
48
A estimativa de famílias de baixa renda no perfil para o CadÚnico foi calculada com base nos
dados do Censo IBGE de 2010 e em coeficientes de volatilidade de renda. O referido valor serve
como referência para a quantidade de famílias que devem estar inscritas no Cadastro Único. A
estimativa de famílias pobres com perfil de estar no cadastro de baixa renda foi feita a partir da
combinação da metodologia de Mapas de Pobreza do IBGE, elaborados a partir do Censo
Demográfico 2000, da PNAD 2006 e de outros indicadores socioeconômicos, levando em
consideração a renda familiar per capita de até meio salário mínimo. (Disponível em:
<www.mds.gov.br/bolsa família>. Acesso em: 25 maio 2015.)
128
Os números pelos mesmos critérios considerando pessoas cadastradas seria
o seguinte:
Tabela 3: Total por Pessoa Cadastradas por Faixa de Renda / Março 2015
Nº de pessoas
Total de pessoas cadastradas
81.500.052
Pessoas cadastradas com renda per capita mensal de
R$ 0,00 até R$ 77,00
42.156.931
Pessoas cadastradas com renda per capita mensal entre
R$ 77,01 e 154,00
15.456.313
Pessoas cadastradas com renda per capita mensal entre
R$ 154,01 e ½ salário mínimo
17.334.556
Pessoas cadastradas com renda per capita mensal
acima de ½ salário mínimo
6.552.252
Mês referência
03/2015
03/2015
03/2015
03/2015
03/2015
Fonte: SAGI/MDS/Relatórios de Programas e Ações-informações sociodemográficas. Disponível em:
<www.mds.gov.br/sagi>.
Como pode ser observado na tabela a seguir, das 81.500.052 pessoas
cadastradas, de acordo com a renda declarada, os índices de pobreza extrema se
encontram nas faixas etárias de crianças/adolescentes (5 a 14 anos) jovens/adultos
em idade de inserção no mercado de trabalho (20 a 39 anos), conforme dados:
Tabela 4: Total de População por Faixa Etária em Extrema Pobreza – Critérios CadÚnico / março
2015
Quantidade de Pessoas
Total de pessoas cadastradas
0a4
5 a 14
81.500.052
1.953.646
4.533.901
15 a 17
1.173.007
18 a 19
605.638
20 a 39
4.496.268
40 a 59
2.681.884
65 ou mais
Total
822.853
16.267.197
Fonte: SAGI/MDS/Relatórios de Programas e Ações-informações sociodemográficas. Disponível em:
<www.mds.gov.br/sagi>.
129
Visando diminuir o índice de pobreza nas diversas faixas etárias atendidas
pelo programa, o Bolsa Família foi pensado com três eixos de atuação. Com esse
objetivo, as normativas regulamentam os atendimentos aos pobres prevendo ações
articuladas entre os eixos por meio de rede intersetorial. Os três eixos previsto na
formação do PBF são:
o Bolsa Família possui três eixos principais: a transferência de renda
promove o alívio imediato da pobreza; as condicionalidades reforçam o
acesso a direitos sociais básicos nas áreas de educação, saúde e
assistência social; e as ações e programas complementares objetivam o
desenvolvimento das famílias, de modo que os beneficiários consigam
49
superar a situação de vulnerabilidade .
Dentre os três eixos, em nossa perspectiva, a dinâmica principal do programa
se dá por meio do eixo das condicionalidades. As condicionalidades são condutas
ou deveres exigidos pelo Estado aos usuários do programa como condição de que
eles permaneçam recebendo a transferência de renda. Para isso, foi constituído
meios de controle dessas condicionalidades visando ao acompanhamento e
monitoramento das obrigações que devem ser seguidas. As exigências estão
relacionadas à obrigatoriedade de frequência nos seguintes serviços públicos: de
educação, de saúde e de assistência social, conforme o perfil e a vulnerabilidade de
cada família atendida.
O conceito institucional criado pelo órgão responsável pela gestão nacional do
programa PBF, Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, para
definir condicionalidade é:
as condicionalidades são os compromissos assumidos tanto pelas famílias
beneficiárias do Bolsa Família quanto pelo poder público para ampliar o
acesso dessas famílias a seus direitos sociais básicos. Por um lado, as
famílias devem assumir e cumprir esses compromissos para continuar
recebendo o benefício. Por outro, as condicionalidades responsabilizam o
poder público pela oferta dos serviços públicos de saúde, educação e
50
assistência social.
São exigidas pelo PBF as seguintes condicionalidades principais para os
usuários:
49
50
Disponível em: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia>. Acesso em: 26 maio 2015.
Idem.
130
Na área de saúde. As famílias beneficiárias assumem o compromisso de
acompanhar o cartão de vacinação e o crescimento e desenvolvimento das
crianças menores de 7 anos. As mulheres na faixa de 14 a 44 anos também
devem fazer o acompanhamento e, se gestantes ou nutrizes (lactantes),
devem realizar o pré-natal e o acompanhamento da sua saúde e do bebê.
Na educação. Todas as crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos devem
estar devidamente matriculados e com frequência escolar mensal mínima
de 85% da carga horária. Já os estudantes entre 16 e 17 anos devem ter
frequência de, no mínimo, 75%.
Por meio de uma logística que envolve cruzamento de banco de dados e
geração de relatórios de informações acerca da frequência e acesso aos serviços
previstos é que se avalia a permanência da família ou não no programa. Se as
regras de condicionalidade forem prescindidas, ocorre um ciclo de sanções que vão
de uma simples advertência à suspensão do valor da renda transferida repassado a
família. Porém, existe um longo e gradativo caminho até que seja providenciado o
bloqueio do repasse. O objetivo do monitoramento é que a família siga no programa
e que não haja necessidade de bloquear o “benefício”.
Segundo orientação do MDS51, o poder público tem o deve de fazer o
acompanhamento gerencial para identificar os motivos do não cumprimento das
condicionalidades. Após do descumprimento da condicionalidade, é implementado
um plano de ação de acompanhamento que tem o objetivo de promover a superação
da vulnerabilidade enfrentada pela família que faz com que ela esteja em
descumprimento. São exemplos de descumprimento mais frequentes: ausência dos
filhos em idade escolar da escola, frequência escolar abaixo da porcentagem
exigida, não atualização do cartão de vacinação52 etc.
O descumprimento gera repercussões no repasse financeiro da transferência
de renda, porém de maneira gradativa. Esgotadas todas as chances da família voltar
a cumprir regularmente as condicionalidades, o benefício pode ser bloqueado ou
cancelado como pode ser visto nas possibilidades a seguir, após ser verificado o
descumprimento:
51
É orientado pelas equipes do PBF que as famílias que encontra dificuldades em cumprir as
condicionalidades devem, além de buscar orientações com o gestor municipal do Bolsa Família,
procurar o Centro de Referência de Assistência Social (Cras), o Centro de Referência Especializada
de Assistência Social (Creas) ou a equipe de assistência social do município. Todas as informações
relacionadas às condicionalidades das famílias podem ser encontradas no Sistema de
Condicionalidades do Programa Bolsa Família (Sicon).
52
Vale ressaltar que o descumprimento das condicionalidades gera também a necessidade do
acompanhamento da família. Esta ação é feita em articulação com a Assistência Social, por meio da
equipe de Assistência Social dos equipamentos públicos, Cras e Creas. Essas equipes geralmente
são compostas por assistentes sociais, psicólogos, pedagogos, advogados etc.
131
Quadro 6: Efeitos gradativos para descumprimento do Programa Bolsa Família pelas Famílias
Nº
1º
2º
3º
4º
Famílias BFA e BVJ
Descrição dos efeitos de
condicionalidades
Advertência
A família é notificada sobre o
descumprimento da condicionalidade.
Esse efeito fica registrado no histórico
de descumprimento da família durante
seis meses. Após esse período, se a
família tiver um novo descumprimento,
o efeito será uma nova advertência.
Nenhum
benefício
Bloqueio (30 dias)
Se, no período de seis meses da última
advertência, a família tiver um novo
descumprimento, o efeito será o
bloqueio.
O benefício é bloqueado
por 30 dias, podendo ser
sacado junto com a
parcela do mês seguinte.
Suspensão (60 dias)
Se, no período de seis meses após o
efeito de bloqueio, a família tiver um
novo descumprimento, o efeito será a
suspensão.
Se a família continuar descumprindo as
condicionalidades dentro do período de
seis meses após a última suspensão,
ela receberá novo efeito de suspensão
e, assim, sucessivamente — ou seja, a
suspensão será reiterada.
Se a família passar seis meses sem
descumprir as condicionalidades e,
depois
desse
tempo,
tiver
um
descumprimento, o efeito será uma
nova advertência.
O número de suspensões reiteradas da
família será monitorado no Sistema de
Condicionalidades
(Sicon)
e
representará um indicativo de que a
família
está
em
situação
de
vulnerabilidade, necessitando de uma
ação da Assistência Social.
O benefício é suspenso
por 60 dias e não poderá
ser sacado após esse
período. Passados os
dois meses, a família
voltará a receber o
benefício do PBF.
Cancelamento
O benefício somente poderá ser
cancelado se a família:
Estiver na fase da suspensão (período
de seis meses após o último efeito de
suspensão);
For acompanhada pela Assistência
Social, com registro no Sicon; e
Continuar
descumprindo
as
condicionalidades por um período maior
do que 12 meses, a contar da data em
que houver a coincidência de registro
dos dois itens anteriores.
Cancelamento
benefício
Fonte: Disponível em: <www.mds.gov.br/bolsafamilia>.
Ação no benefício
efeito
no
do
132
Sob a perspectiva de Pereira (2014), as políticas sociais contemporâneas
vivem um momento de ortodoxia política e moral constituindo uma ética da
proteção social básica. Essa ética estaria baseada numa autorresponsabilização dos
indivíduos atendidos nas políticas e traz consigo alguns objetivos concretos que,
Visa a esvaziar o Estado de seu papel de garante de direitos e de provedor
de bens e serviços públicos. Ou melhor, construíram-se ortodoxias
baseadas na velha doutrina do darwinismo social, concebida no século 20,
segundo a qual os pobres devem autossatisfazer as suas necessidades; ou,
então, pagarem pelos auxílios públicos recebidos. (PEREIRA, 2014, p. 20).
Uma das consequências do momento de ortodoxia moralista nas políticas
sociais
vividos
atualmente,
(especuladores
do
capital
em
processo
de
enriquecimento em detrimento da negação da proteção social pública aos
trabalhadores) segundo Pereira (2014), seria vincular a assistência pública ao mérito
individual em oposição ao direito social; o uso da política social como um
instrumento de ativação compulsória do pobre para qualquer atividade laboral, por
meio de condicionalidades ou contrapartidas que, na maioria das vezes, revelam-se
autoritárias e punitivas.
Sob o olhar do governo federal, a estratégia utilizada pelas condicionalidades
não têm caráter punitivo e sim de acesso a direitos sociais. Antes se trata de uma
oportunidade de o Estado acompanhar os casos em que as famílias em maior
situação de vulnerabilidade não conseguem superar a sua condição social que a faz
distanciar de serviços básicos como educação, saúde e assistência social.
Pode-se avaliar que a conduta condicionada exigida tem teor coercitivo para
que as famílias experimentem um processo de “cidadanização”. Isso significa incutir
um habitus nas famílias e sujeitos, quando este não existente. Com isso, busca-se
fortalecer o conhecimento sobre e a inserção nos serviços públicos básicos
(educação, saúde e assistência social etc.). O ponto de vista da maioria dos técnicos
entrevistados nessa pesquisa é o de que as condicionalidades fomentam um
processo de cidadania antes não experimentado pelas maiorias das famílias.
Percebe-se no papel do Estado um via de mão dupla. Por um lado, existe o
objetivo de que os sujeitos tenham uma reparação socioeconômica por meio de
contrapartida e, assim, justificar a permanência no programa de combate à pobreza.
Por outro, propor condicionalidades que consigam contribuir com índices de
133
diminuição da defasagem escolar e analfabetismo nas classes mais vulneráveis;
elevar o número de acompanhamento de pré-natal; manter cartão de vacinação
atualizado; faz com que o Estado trabalhe em necessidades concretas apresentadas
pelas famílias e dessa forma melhorando os índices sociais por meio de uma
agenda preventiva.
Rego e Pinzani (2013) acreditam que o modelo do PBF está ligado com uma
ideia de responsabilidade social pela qual os indivíduos darão algo em contrapartida
à comunidade. Para os autores, a contrapartida tem caráter republicano e contribui
para o processo de formação de cidadãos e indivíduos responsáveis perante sua
comunidade política.
Distribuir renda monetária aos indivíduos visa precisamente emancipá-los
não somente da miséria ou da pobreza, mas também de um ambiente social
que pode ser causa ulterior de sofrimento. (REGO; PINZANI, 2013, p. 71).
Concordamos que, além da condição do acesso cidadão aos “pobres”
atendidos no programa, devem ser consideradas questões estruturais, às quais as
famílias continuarão a ter contato mesmo inclusas no programa.
Draibe (2014) afirma que desde o final dos anos 1970 o desemprego de longa
duração, a pobreza e a desigualdade voltaram à agenda social sob diferentes
formas e intensidades, e desafiam desde então os sistemas nacionais de bem-estar
social. Para a autora, os programas de inserção e reinserção produtiva e os
programas de renda mínima fazem parte das respostas institucionais a tais desafios,
tal como o exemplo utilizado no Brasil com os programas de renda mínima sob o
modelo de conditional cash transfer programes ou os programas de transferência de
renda com condicionalidades.
Para Draibe, as alternativas institucionais programáticas têm sido variadas e
insuficientes, muito embora tenham quase sempre deslocado o eixo da proteção
social em direção a programas e serviços focalizados e a formas assistencialistas,
nem sempre condizentes com cidadania social.
Concordamos com os argumentos da autora, de que as iniciativas de
transferência de renda são caminhos iniciais meio a problemáticas estruturais que
envolvem a discussão sobre um modelo de estado de bem-estar social. Por mais
que se trate de um cenário distante de uma perspectiva universalidade das políticas
sociais, a implantação de ações como o Programa Bolsa Família representa um
134
mínimo que aponta na direção de assegurar alguma perspectiva de direito aos
considerados pobres diante a ausência do referido modelo de Estado.
A opção pela focalização não é isenta, ela traz consigo grandes desafios à
implementação da política no alcance dos mais pobres. Por exemplo, a diversidade
territorial e o processo de fragmentação das ações. Esses fatores concretizam a
variação da qualidade e efetividade dos programas e serviços no momento de sua
concretização. Sob o ponto de vista do regime de bem-estar, um novo desafio,
segundo Draibe (2014), seria o sentido da introdução de regras e resultados
desiguais onde anteriormente predominava uma orientação universalista própria do
respeito à cidadania.
Jaccoud (2014), numa perspectiva relativizadora, destaca a relação positiva
que pode ser observada na agenda social brasileira na relação entre as políticas
universais e as políticas seletivas. A autora acredita que é por meio do
aperfeiçoamento contínuo dessa relação, com predomínio das políticas universais e
apoio das demais políticas, é que a pauta da redução das desigualdades poderá se
consolidar. Assim, essa combinação não apenas tem garantido a oferta de atenções
primarias, mas também vem permitindo avançar em termos de resultados,
favorecendo a igualdade, a desconcentração de renda e de oportunidades, além de
apoiar a dinamização de um modelo inclusivo de desenvolvimento. A articulação
entre o teor universal e seletivo das intervenções dependerá,
assim, tanto dos instrumentos e metas especificas para garantir o acesso e
a resolutividade da ação pública junto aos públicos marcados por mais
expressivas desigualdades, quanto da continua qualificação das ofertas
públicas universais. Assim, o prosseguimento na evolução dos indicadores
sociais neste que ainda e um dos mais desiguais países do mundo sugere a
operação do princípio da universalidade sem desprezar ações e políticas
voltadas à equidade. (JACCOUD, 2014, p. 637).
Como reflete Sposati (2010), a diferença entre ricos e pobres ocorre em
decorrência da imensa desigualdade social existente na sociedade brasileira. A
pesquisa do centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV) nos anos
iniciais do programa, entre 2001 a 2008, mostraram que a renda per capita dos 10%
mais ricos cresceu 11,2% e a dos 10% mais pobres, 72%. Para a autora, cabe aos
programas como o PBF o fortalecimento das capacidades das famílias mais
vulneráveis.
135
Para além dos imensos desafios que a experiência de combate à pobreza por
meio da política de proteção social no Estado brasileiro apresenta, a transferência
de renda se configura socialmente como o instrumento de maior alcance ao público
considerado pobre. É notório que, nesse contexto, as políticas sociais engendram
um arcabouço de autovalorização do capital (MEZÁROS apud PEREIRA, 2014)
quando a concretização do pleno emprego e a universalização do direito social na
sociedade cedem espaço ao interesse do mercado cada vez mais privativo exige um
elevado grau de competitividade e responsabilização dos indivíduos.
Se o valor da sociedade do capital gira em torno do poder aquisitivo para
obter o passaporte de pertencimento a determinado meio social, esse processo não
ocorre de maneira diferenciada com aqueles que se encontram em condição social
de pobreza. Na conjuntura dessa proposta é que estão alicerçados os acessos à
cidadania pelos eixos estruturantes do PBF para os pobres, de forma que os pobres
experimentem a sensação de estarem inseridos socialmente, inicialmente, por meio
da obtenção de uma renda regular. Na prática cotidiana dos usuários do programa
Bolsa Família, ter uma renda se constitui numa indiscutível diferença na qualidade
de vida e identidade dos considerados pobres diante os seus iguais.
Pereira (2014) acredita que a perspectiva e as mudanças propostas no âmbito
da proteção social culminam na utilização das políticas sociais nos interesses das
mudanças econômicas de determinados setores que especulam o capital como
forma de gerar lucro e riqueza. A autora denomina esse movimento de inversão
econômica privada.
Segundo esse ponto de vista, as políticas sociais (e demais ações
decorrentes desta) têm colaborado para “trabalhar” o capital humano de maneira
que os sujeitos venham a atender os interesses do mercado. Em outras palavras,
para que eles sejam mais competitivos, laboriosos e eficientes; ampliem o consumo
e o livre mercado. Com isso se estabelece a tendência de diminuir os custos do
Estado com proteção social, ou com atividades consideradas economicamente não
lucrativas. Tudo isso compõe, para a pesquisadora, um panorama de mudanças de
cunho predominantemente econômico.
Todas essas reflexões, independentemente de que viés defendam, remetem
à discussão de uma nova perspectiva no tratamento dado a institucionalização da
pobreza que teve início na década de 1980. Naquele momento as mobilizações para
136
a redemocratização e uma nova Constituição para o país exigiam os anseios
populares diante do agravamento das problemáticas sociais, dentre elas a pobreza.
O objetivo consistiu em inserir o tema da pobreza e/ou os considerados
pobres numa agenda de acessos a direitos e não mais numa agenda
estigmatizadora de favores e caridade aos “vagabundos”, “imprestáveis” etc. Isso
preconizava diretrizes para uma ruptura importante com o estigma voltado aos
pobres. Criou-se um contexto político favorável à discussão de políticas estatais e
universalização de direitos que culminou em ações como a transferência de renda
como um início de combate à pobreza.
Assim, as ações tiveram continuidade após a implementação do Programa
Bolsa Família no Governo Lula. A gestão seguinte, apoiada politicamente pelo
referido presidente, faz o lançamento de um plano com o extraordinário desafio de
erradicar a extrema pobreza no país, considerando também todos aqueles que,
mesmo com a transferência de renda do PBF, não conseguiram sair da linha de
pobreza. Esse Plano foi denominado de Plano Brasil Sem Miséria.
4.3
Plano Brasil Sem Miséria (BSM): perspectiva do tratamento aos pobres
O governo Lula deixou como marca de seu combate à pobreza o Programa
Bolsa Família. Após sua gestão, o governo seguinte continua dando prioridade à
mesma temática. A presidenta Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT),
eleita para suceder Lula (primeiro mandato de 2011-2014)53 adota como slogan de
seu governo “país rico é país sem pobreza”. Assim, a bandeira de seu governo será
a erradicação da extrema pobreza no país.
No ano de 2011, é lançado pela presidenta o Plano Brasil Sem Miséria (BSM)
por meio do Decreto nº 7.492. O governo federal assume compromisso de erradicar
a extrema pobreza no Brasil até o final do ano de 2014, que configura o final do
mandato presidencial. Para tal objetivo, foi instituída, por meio do Decreto nº 7.493,
de 2 de junho de 2011, mesma data do Decreto nº 7.492, que criou o Plano Brasil
Sem Miséria, a Secretaria Extraordinária para Superação da Extrema Pobreza
(Sesep), ligada ao Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
53
Nas eleições presidenciais ocorridas no Brasil no ano de 2014, a presidenta Dilma Rousseff é
reeleita para um segundo mandato, período de 2015-2018. O slogan em seu segundo mandato será
“Brasil, pátria educadora” cuja proposta é ter a educação como prioridade do seu governo.
137
O foco na continuidade do combate à pobreza com o BSM veio com a
avaliação do governo federal de que, mesmo com os avanços obtidos com a
transferência de renda proporcionada pelo PBF durante o período de 2003 a 2010,
ainda persistisse um número elevado de brasileiros que viviam em extrema pobreza
(linha de extrema pobreza  renda mensal per capita de até R$ 70,00). Segundo
consta em dados do MDS, eram mais de 1 milhão de pessoas54 que não se
encontravam no banco de dados para programas sociais do governo federal, no
CadÚnico.
Com base nesse diagnóstico, o governo federal constituiu um plano de
articulação ampla, mobilizando parcerias nacionais entre os três níveis de gestão
com estados, municípios, sociedade civil e as mais diversas áreas. Constitui-se uma
verdadeira força-tarefa intersetorial, tecnicamente denominada de busca ativa, com
o objetivo de alcançar o “núcleo duro da pobreza”. Nas palavras da ministra Tereza
Campelo, trata-se da
parcela para a qual era mais difícil garantir mobilidade social e acesso à
cidadania. Nem sempre as barreiras que impediam a melhoria da qualidade
de vida eram visíveis ou transponíveis por meios tradicionais de
enfrentamento a pobreza. Teríamos que nos dedicar a pobreza mais
resistente, e isto exigiria um esforço redobrado do Estado brasileiro. O
desafio de um Plano que trazia na sua insígnia o Fim da Miséria era ainda
maior dados os resultados da trajetória de avanço das políticas sociais
iniciada em 2003 (CAMPELO et MELLO, 2014, p. 34).
54
Segundo pesquisa em documentos do MDS, a base das informações do número de pessoas que
se encontravam em situação de extrema pobreza foi construído a partir de informações sobre a
pobreza brasileira contidas em três referencias: o Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), os dados do Cadastro Único para Programas Sociais do MDS e as ações setoriais
apresentadas pelo conjunto dos ministérios. O Censo 2010 apresentava um diagnóstico recente
sobre o perfil dos 16,2 milhões de extremamente pobres distribuídos por todo o país. Segundo seus
dados, a extrema pobreza era majoritariamente negra (71%), concentrada na Região Nordeste (60%)
e composta por um percentual significativo de crianças e adolescentes de 0 a 14 anos (40%).
Homens e mulheres estavam distribuídos de forma semelhante, embora as mulheres representassem
um pouco mais da metade (51%). Além disso, a distribuição entre rural e urbano também
apresentava percentuais próximos: 47% no meio rural e 53% no urbano. Ao ser observada a
incidência da pobreza, a situação do campo chamava a atenção, porque, de cada quatro brasileiros
que viviam no meio rural, um era extremamente pobre. Isso significava que, enquanto 5% da
população urbana podiam ser caracterizados como extremamente pobres, 25% da população do
campo encontravam-se nessa situação. Dessa forma, de posse do diagnostico oferecido pelo Censo
2010, cada um dos ministérios que fez parte do esforço de formulação do Plano trouxe para compor a
proposta inicial do governo federal ações de sua competência, e foi construído o Plano.
138
O depoimento da presidenta Dilma Rousseff no ano final de seu primeiro
mandato (2014) sobre o Plano Brasil Sem Miséria deixa claros os objetivos que
motivaram a meta da erradicação da extrema pobreza,
o compromisso que assumi em meu primeiro mandato foi o de mobilizar
todas as forças e os instrumentos para a superação da miséria no país,
tendo como sólido alicerce os avanços já conquistados. Nascia assim o
Plano Brasil Sem Miséria, que criou, renovou, ampliou e integrou vários
programas sociais, articulando ações do governo federal com estados e
municípios. Por entender a pobreza como um fenômeno que vai além da
renda, o Plano Brasil Sem Miséria foi concebido e implementado em uma
perspectiva multidimensional, com estratégias articuladas entre si e
diferenciadas para cada contexto, como o campo e a cidade, e para cada
público, como os adultos e as crianças, para citar apenas alguns exemplos.
O Plano criou oportunidades de inclusão para jovens, mulheres, negros,
população em situação de rua, pessoas com deficiência, povos e
comunidades tradicionais e vários outros grupos vulneráveis. (MDS, 2014,
p. 17).
Como poder ser lido no depoimento acima, a pobreza no BSM remete a um
determinado segmento da população considerada pobre, porém uma pobreza
invisibilizada. Segundo Campelo (2014), a maioria dos extremamente pobres
apresentava endereço, local e cara. Eram eles nordestinos, negros e crianças. Com
o objetivo de alcançar esse público, o Estado aponta ter sido necessário partir de
cinco pontos que demarcaram um novo momento nas diretrizes de enfrentamento 55
da pobreza.
As cinco “grandes inflexões” consideradas para o Plano Brasil Sem Miséria,
enumeradas pelo MDS foram, a saber: a primeira delas, o estabelecimento de uma
linha de extrema pobreza (per capita de até R$ 70,00 mensais), que passou a
organizar a priorização que o Estado faria para incluir e apoiar a população
extremamente pobre. A renda foi avaliada como um forte indicador da pobreza como
referência para eleger o público, mas a ação do Brasil Sem Miséria foi organizada
sob várias outras dimensões, em especial ampliando o acesso a bens, serviços e
oportunidades.
A segunda inflexão esteve relacionada à meta de universalização das
políticas voltadas para a pobreza, como no caso do Bolsa Família, que já havia
chegado à grande maioria do público pobre e extremamente pobre, mas que ainda
não tinha alcançado a todos que tinham perfil e direito de estar no programa. A
55
Durante o Plano Brasil Sem Miséria, a denominação “combate à pobreza” não é mais tão utilizada
nos discursos e textos oficiais. Passa a ser proferida a denominação de “enfrentamento da pobreza”.
139
terceira foi adotar a compreensão de que os mais pobres, exatamente pelo nível de
exclusão, abandono, desinformação e isolamento, eram os que tinham menos
condições de exigir seu direito a ter direitos.
Assim, para o Estado não bastava informar sobre as possibilidades de acesso
ao Plano, passou a ser responsabilidade do Estado ir aonde a população pobre
estivesse. Esse ato de deslocamento foi considerado pelo Estado um novo conceito
de abordagem da pobreza naquele momento. Teve início, assim, a Busca Ativa.
Dessa forma, o Estado chamou para si a responsabilidade de ir até o “pobre”,
localizar, cadastrar e incluir as famílias no conjunto de ações que seriam ofertadas.
A quarta mudança apontada na constituição do Plano foi a constatação de
que muitos beneficiários, mesmo recebendo Bolsa Família, continuavam com renda
familiar abaixo da linha de extrema pobreza. Com isso, no ano de 2012 foi
estabelecido um novo desenho para o repasse do PBF, passou-se a complementar
a renda das famílias de forma a garantir que todos os sujeitos inseridos no programa
(considerando a renda familiar mais o Bolsa Família) ficassem acima da linha de
extrema pobreza.
E, finalmente, a quinta mudança apontada nos rumos do combate à pobreza
por meio da transferência de renda e demais ações: foi criada uma estratégia
voltada para ampliar a inclusão produtiva dos adultos em situação de pobreza e
extrema
pobreza,
baseada
na
criação
de
oportunidades de
emprego
e
empreendedorismo, que teve no fortalecimento do Pronatec56 a maior ação.
Nesse novo cenário de “enfrentamento” à pobreza, o Programa Bolsa Família
passa a ser um dos instrumentos utilizados pelo Plano Brasil Sem Miséria 57.
Resumidamente, ao BSM foi atribuído o papel de articular todas as ações de
combate à pobreza até então.
56
O Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) é uma ação do BSM do
eixo Inclusão Produtiva. É uma ação em parceria com o Ministério da Educação (MEC). Oferta cursos
de formação inicial e continuada voltados para a inserção no mercado de trabalho, com duração
mínima de 160 horas. Os cursos são ofertados em instituições de ensino técnico e tecnológico, como
as unidades do Senac, Senai, Sesc, Sesi, Senat ou os Institutos Federais. A oferta é gratuita e os
beneficiários recebem alimentação, transporte e todos os materiais escolares. Para participar, o
jovem deve ter idade mínima de 16 anos e estar cadastrado ou em processo de cadastramento no
CadÚnico. O candidato não precisa ser beneficiário do Programa Bolsa Família ou do Benefício de
Prestação Continuada (BPC). Adolescentes de 16 e 17 anos de idade não poderão se matricular em
cursos de qualificação relacionados a atividades econômicas vedadas a menores de 18 anos, de
acordo com o Decreto nº 6.481/2008, de 12 de junho de 2008. O Pronatec não oferece bolsa aos
participantes.
57
Informação disponível em: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia>. Acesso em: 29 maio 2015.
140
Abaixo será apresentado um quadro comparativo entre a estrutura de
“combate” à pobreza do PBF e o “enfrentamento” da pobreza pelo BSM.
Quadro 7: PBF e BSM: semelhanças e diferenças, eixos e objetivos
PROGRAMA BOLSA FAMILIA
EIXOS
58
PLANO BRASIL SEM MISÉRIA
EIXOS (Decreto nº 7.492 de 2/7/2011)
Eixo 1. Transferência de renda: promove o
alívio imediato da pobreza;
Eixo 1. Garantia de renda: para alívio imediato
da situação de extrema pobreza;
Eixo 2. Condicionalidades: reforça o acesso a
direitos sociais básicos nas áreas de educação,
saúde e assistência social;
Eixo 2. Acesso a serviços públicos: para
melhorar as condições de educação, saúde e
cidadania das famílias;
Eixo 3. Ações e programas complementares:
objetiva o desenvolvimento das famílias, de
modo que os beneficiários consigam superar a
situação de vulnerabilidade.
Eixo 3. Inclusão produtiva: para aumentar as
capacidades e as oportunidades de trabalho e
geração de renda entre as famílias mais
pobres do campo e das cidades.
OBJETIVOS (Decreto nº 5.209 de 17/9/2004)
OBJETIVOS (Decreto nº 7.492 de 2/7/2011)
Objetivo 1. Promover o acesso à rede de
serviços públicos, em especial de saúde,
educação e assistência social;
Objetivo 1. Elevar a renda família per capita
da população em situação de extrema
pobreza;
Objetivo 2. Combater a fome e promover a
segurança alimentar e nutricional;
Objetivo 2. Ampliar o acesso da população em
situação de extrema pobreza aos serviços
públicos;
Objetivo
3.
Estimular
a
emancipação
sustentada das famílias que vivem em situação
de pobreza e extrema pobreza;
Objetivo 3. Propiciar o acesso da população
em situação de extrema pobreza a
oportunidade de ocupação e renda por meio de
inclusão produtiva.
Objetivo 4. Combater a pobreza;
Objetivo 5. Promover a intersetorialidade, a
complementaridade e a sinergia das ações
sociais do Poder Público.
Fonte: elaboração da pesquisadora a partir de pesquisa bibliográfica.
Fazendo uma análise do quadro 7, percebe-se que os objetivos e eixos do
BSM reforçam a continuidade aos eixos já previstos na transferência de renda do
PBF. A intenção parece que se deu no sentido de investir de maneira significativa
58
Os eixos do PBF estão dispostos nas orientações técnicas do programa, e não na Lei e no Decreto.
As orientação podem ser acessadas no site do programa: <http://www.mds.gov.br/bolsafamilia>.
141
nas múltiplas formas que a pobreza persistia em se apresenta para as famílias,
mesmo aquelas que já estão inclusas no programa Bolsa Família.
Assim, a força-tarefa de busca aos considerados pobres, pactuada para
execução do Brasil Sem Miséria, tem uma amplitude de ações para que nenhuma
família cadastrada no CadÚnico apresente uma renda mensal per capita abaixo de
R$ 70,00 (corte de renda para a linda de extrema pobreza). Além da insuficiência de
renda, a execução do programa apresenta o foco em insegurança alimentar e
nutricional, baixa escolaridade, na pouca qualificação profissional, fragilidade de
inserção no mundo do trabalho, acesso precário à água, à energia elétrica, à saúde
e à moradia são algumas delas.
No quadro 8 encontram-se registrados os programas cada eixo de ação do
BSM.
Quadro 8: Programas e Serviços que compõem as ações do BSM
Eixo
Programas e Serviços
Eixo 1. Garantia de renda
.
.
Programa Bolsa Família
BPC
Eixo 2. Acesso a Serviços
.
.
.
.
.
.
Brasil Alfabetizado
Brasil Sorridente
Olhar Brasil
Programa Mais Educação
Brasil Carinhoso – Ampliação do Acesso à Creche
Brasil Carinhoso – Primeira Infância
Eixo 3. Inclusão Produtiva
Urbana
.
.
.
.
.
.
Catadores de material reciclável
Institucional
Mega Feirão de Emprego
Programa Crescer
PRONATEC
Programa Mulheres Mil
Eixo 3. Inclusão Produtiva
Rural
.
.
.
.
.
.
.
Água para Todos
Assistência Técnica e Extensão Rural
Bolsa Verde
Fomento
Luz para Todos
PAA
Sementes
Fonte: Elaboração da pesquisadora a partir de pesquisa bibliográfica.
Pelos dados disponibilizados pelo Ministério, no ano de 2013, os brasileiros
do PBF que ainda se encontravam em situação de miséria transpuseram a linha da
142
extrema pobreza. Em números, totalizaram 22 milhões de pessoas que haviam
superado tal condição desde o lançamento do Plano. Com esse número, é
considerado pelo governo federal que o objetivo do BSM, qual seja o alcance da
erradicação da extrema da pobreza, foi atingido. Segundo o governo federal, foi o
fim da miséria, do ponto de vista da renda, no universo do Bolsa Família.
A articulação federativa na pactuação de ações intersetoriais foi uma das
marcas forte no desenvolvimento do BSM. O plano celebrou Pactos Regionais entre
o governo federal e os 27 gestores governamentais com objetivo de selar o
compromisso e a responsabilidades para cada um, de forma coordenada na atuação
dos eixos previstos, principalmente de Garantia de Renda, Inclusão Produtiva e
Acesso a Serviços. A celebração desses compromissos em caráter regional trouxe
consigo a ideia de que a pobreza se manifesta de diferentes maneiras em todo o
Brasil e, para combatê-la, é necessário ter ações de enfrentamento que sejam
adequadas às realidades locais.
Uma das novidades ocorridas nos estados brasileiros após assinatura do
Pacto Regional de superação da extrema pobreza foi a construção dos seus planos
de superação da extrema pobreza localmente, tendo como referência o BSM. Dentre
os 26 estados e o Distrito Federal, 20 lançaram planos para a superação da pobreza
e extrema pobreza. Pelos dados pesquisados, mesmos os estados que não
formalizaram a constituição do plano local contaram com outras estratégias para
superar a pobreza.
143
Quadro 9: Planos estaduais de superação da extrema pobreza (até ago./2014)
Estado
Planos
REGIÃO NORTE
Acre
Plano Acre Sem Miséria
Amapá
Programa Família Cidadã
Rondônia
Plano Futuro
Tocantins
Plano Tocantins Sem Miséria
REGIÃO NORDESTE
Piauí
Programa Mais Viver
Bahia
Programa Vida Melhor
Paraíba
Plano Paraíba Sem Miséria
Maranhão
Programa Viva Oportunidades
Rio Grande do Norte
Programa RN Mais Justo
Sergipe
Programa Sergipe Mais Justo
REGIÃO CENTRO-OESTE
Goiás
Programa Renda Cidadã
Mato Grosso
Plano Mato Grosso sem Miséria
Distrito Federal
Plano DF Sem Miséria
REGIÃO SUDESTE
Minas Gerais
Programa Travessia
São Paulo
Programa São Paulo Solidário
Espírito Santo
Programa Incluir
Rio de Janeiro
Plano Rio Sem Miséria
REGIÃO SUL
Santa Catarina
Plano Santa Catarina Sem Miséria
Rio Grande do Sul
Programa RS Mais Igual
Paraná
Programa Família Paranaense
Fonte: Readaptado pela pesquisadora a partir de quadro disponibilizado Sesep/MDS.
144
Antes do lançamento do Plano Brasil Sem Miséria, alguns estados criaram
seus próprios programas de transferência de renda. Com a constituição do BSM,
esses estados passaram a funcionar na lógica de complementação da diferença do
hiato de extrema pobreza dentre as famílias atendidas, ou seja, da diferença de
renda necessária para superar a linha da de extrema pobreza estabelecida por
esses estados. A estratégia funciona assim: o estado complementa o valor pago
pela União entre a renda mensal per capita da família  calculada após o
recebimento do benefício do Bolsa Família  e o piso que o estado definiu como
sua própria linha de extrema pobreza.
Em muitos casos, foi estabelecida uma linha de extrema pobreza estadual ou
distrital mais alta que os R$ 70,00 previstos na linha do Brasil Sem Miséria inicial
(reajustada para R$ 77,00 em junho de 2014). Em outros casos, optou-se pela
mesma linha do Plano. Tendo como referência o mês de agosto de 2014, sete
estados mantinham complementações ao Bolsa Família. Os estados são: Espírito
Santo, Mato Grosso, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, e
o Distrito Federal.
145
Quadro10: Estados que complementam de renda do Bolsa Família (Agosto 2014)
Voltando ao objeto de pesquisa aqui proposto, o Plano Brasil Sem Miséria
não trouxe muitas novidades para a atuação dos burocratas técnicos de nível de rua
que trabalham com a pobreza. As ações continuaram eminentemente as mesmas.
As mudanças preconizadas com a nova diretriz federal de combater a pobreza
dizem mais respeito à caracterização da prioridade de perfil de pobreza que se
pretendia atingir do que à maneira a qual eles deveriam ser atendidos.
Com isso, as instruções técnicas de campo continuaram as mesmas, exigindo
um pouco mais nas articulações das redes locais na busca dos extremamente
pobres invisibilizados pela dificuldade de serem localizados ou visibilizados para as
políticas sociais.
146
O capítulo IV fez a inserção na discussão do campo empírico da pesquisa. As
principais contribuições dessa parte do documento foram apresentar a inserção do
Brasil na principal estratégia utilizada pelo governo no combate à pobreza, sendo
esta estratégia a transferência de renda por meio do Programa Bolsa Família.
Contextualizamos a emergência dos programas de transferência de renda na
América Latina como uma tendência das políticas sociais no início da década de
1990, pautada em experiências anteriores de outros países. No caso brasileiro, fezse a opção por estruturar uma experiência de transferência de renda condicionada a
contrapartidas das famílias, relacionadas à saúde e à educação, com a intervenção
do acompanhamento da assistência social nos casos necessários.
Avaliamos que esse é um dos pontos positivos do desenho do programa por
induzir a superação de índices de desigualdade social que culminam geralmente
com o maior agravamento da situação de pobreza das famílias, tais como as taxas
de crianças fora da escola, o não acompanhamento das gestantes no pré-natal e
cuidado aos recém-nascidos. Nesse sentido, as condicionalidades apontam
resultados estruturais na vida dos sujeitos e ganhos para o país.
A crítica à estrutura apresentada da transferência de renda (PBF) no Brasil
pode ser feita à concretização dos eixos de ações pensados para o programa. Não
pondo em dúvida a relevância, mas pelo desafio da concretização do eixo de ações
e programas complementares. Isso devido às disparidades municipais presentes nas
regiões brasileiras e, mais grave, pela precariedade de funcionamento e do alcance
dos equipamentos estatais disponíveis.
Vale ressaltar que os dados apresentados neste capítulo reforçam a ideia de
completude e continuidade entre as ações do PBF e do Plano Brasil Sem Miséria. A
crítica que fazemos nesse caso vem do risco de sobreposições da agenda de
institucionalização do combate à pobreza. No quadro 7 (PBF e BSM: semelhanças e
diferenças eixos e objetivos), verifica-se a semelhança apresentada nas metas.
Ficam os desafios dos níveis de gestão local, os estados e municípios, de ter clareza
da estruturação de cada eixo do programa praticado.
Para concluir as observações sobre o capítulo, ratificamos que a experiência
de institucionalização da pobreza instrumentalizada pelo programa de transferência
de renda Bolsa Família traz um marco na história das intervenções voltadas ao
público pobre no país. Não apenas por ser o maior programa em número de
usuários “pobres” atendidos, mas, dentre muitos outros fatores, destacamos a
147
popularidade e o impacto qualitativo em relação à melhoria de qualidade de vida dos
considerados “pobres”. É quase certo que, ao indagar alguém sobre as ações para
os “pobres” no contexto brasileiro, uma das referências mencionadas seja o
“Programa Bolsa Família”.
Descartadas para o objetivo desta pesquisa foram as causas, as polêmicas
políticas e as diversas formas da popularidade do programa. Vale ainda reforçar a
tese de que os programas de transferência de renda constroem uma dimensão
qualitativa e simbólica das relações sociais. E, que elas são constituídas e resultam
dos atores que compõem a interação no campo do combate à pobreza. E,
principalmente, que esse aspecto é invisibilizado aos olhos do Estado, como
também pela maioria dos estudos que tratam de políticas públicas. Apontamos este
fato como um dos limites a ser superado na experiência da política de combate à
pobreza no caso brasileiro.
148
Capítulo V – O campo de pesquisa
Neste capítulo, serão apresentados os resultados do trabalho de campo. A
pesquisa teve como objeto os atores sociais conceituados como burocratas técnicos
de nível de rua (LIPSKY, 2010) que trabalham, compõem, executam e concretizam
as ações de programas e serviços de combate à pobreza em nível de rua. São eles:
gestores e técnicos estaduais e municipais. Fez-se tal recorte por esses profissionais
serem
servidores
públicos
legitimados
como
representantes
do
Estado,
responsáveis por atuar cotidianamente no atendimento e acompanhamento direto
dos usuários considerados pobres nos programas de transferência de renda e de
assistência social nos diversos estados e municípios brasileiros.
Apesar de ponto focal na efetivação do combate à pobreza, estudos sob o
ponto de vista desses sujeitos representam uma abordagem peculiar e pouco
comum na literatura sobre os pobres e as políticas sociais.
O olhar dos técnicos burocratas de rua representa cotidianamente o Estado
no combate à pobreza. São profissionais chaves na execução das políticas sociais
que visam à ruptura do ciclo de pobreza tal como previsto na intervenção
institucionalizada no atendimento ao pobre. A prática desses sujeitos articulada à
sua função pública é a ponta do iceberg, a forma como o Estado chega, de fato, ou
como tem se concretizado junto aos pobres o combate à pobreza na experiência das
políticas sociais.
Nesse sentido, a pergunta que direcionou a pesquisa foi: qual a concepção
dos técnicos burocratas de nível de rua que trabalham diretamente no atendimento e
acompanhamento dos pobres sobre os programas em que atuam (programas de
transferência de renda e ações de assistência social) e sobre os pobres atendidos?
Com base nesse recorte analítico, procurou-se entender as concepções e as
categorias construídas presentes na prática da interação social burocratas de rua. E,
consequentemente, em que medida o trabalho desses técnicos está configurado em
um movimento de reprodução ou de ruptura com estigmas históricos no tratamento
dos pobres.
A pesquisa com os técnicos demonstrou ser um ângulo analítico diferenciado
para compreender, sob o ponto de vista das ciências sociais, a relação estabelecida
149
entre os pobres e o Estado brasileiro. Contribui, também, para pensar um paradoxo:
se as políticas de combate à pobreza atualmente se constituem de fato e de direito
em um marco na promoção do acesso a direitos para os pobres, o que significaria,
assim, uma ruptura com estigmas e preconceitos. Ou, se, por outro lado, tal relação
é uma reprodução social de uma velha novidade no que diz respeito ao trato
institucionalizado das ações do Estado no atendimento aos usuários de políticas de
transferência de renda e assistência social.
Diz-se uma “velha” novidade, por se compreender que a discussão sobre
pobreza como problemática social, em regra, esteve arraigada em processos de
desqualificações social dos sujeitos pobres. Com isso, simbólica e culturalmente,
passou-se a edificar preconceitos e estigmas de que os pobres representam o “erro
social”, aquilo que não deu certo socialmente. Em outras palavras, são os sujeitos
“imprestáveis” que não conseguiram progredir e prover sua própria existência, nem
ser útil às tecnologias do mundo do trabalho, consequentemente não conseguindo
se adaptar às “regras” de inclusão social etc.
Nesse sentido, a superação da ideia do pobre como “coitado” ou “necessitado
da caridade” é desenhada por um movimento de reestruturação do papel do Estado
diante dos novos cenários econômicos e sociais. A proposta institucionalização da
pobreza com a emergência do Estado de Direito vem na perspectiva de um caminho
na relação Estado versus pobres, que surge com ações afirmativas no arcabouço de
políticas sociais. Por sua vez, sendo estas garantidoras de direitos constitucionais
previstos a todos os cidadãos que necessitarem da proteção social do Estado em
algum momento.
O debate trazido nesta pesquisa sobre o papel dos atores sociais
representantes do Estado que compõe as políticas de combate à pobreza analisa
um novo momento em que se busca um atendimento ao pobre pautado no direito e
não em estigmas. Dessa forma, cabe saber quais significados acerca dos pobres
estão sendo escritos nessa relação e se eles emancipam a condição de cidadão dos
pobres tal como previsto nas normativas.
Em nossa perspectiva, essas questões mostram a complexidade do tema da
pobreza que, mesmo recorrente, não passa despercebido pela academia. A
desigualdade social é um dos maiores desafios debatidos hoje em países de todo o
mundo e a garantia de direitos assistenciais aos mais pobres é uma bandeira
mundial. Elevar os pobres ao status de cidadãos é, antes de tudo, uma exigência
150
democrática condicionada do fazer político. Significa estar incluso no topo das
discussões das grandes agendas econômicas e políticas mundiais.
5.1
O contato com o tema
O interesse pela temática das políticas públicas de combate à pobreza surgiu
a partir do percurso de experiência profissional da pesquisadora no serviço público.
O início da motivação e contato efetivo com a temática veio durante um estágio na
Secretaria de Ação Social do Estado do Ceará, no final dos anos de 1990. Na
oportunidade, a atuação se deu em um equipamento social de atendimento às
comunidades de alto índice de vulnerabilidade social e pobreza criado ainda no
formato de assistência social preconizado no governo dos militares, o Centro
Comunitário Luiza Távora.
O equipamento ficava localizado em um dos bairros mais violentos e pobres
na periferia de Fortaleza. O Centro Comunitário tinha o papel de prestar múltiplos
atendimentos, tais como: assistencial social, geração de emprego e renda,
capacitação
profissional,
lazer,
orientações
e
encaminhamentos
diversos,
distribuição de benefícios como cestas básicas, vale transporte etc. O Centro
Comunitário era procurado pelos moradores como referência para todos os
problemas, sem exceção. Tal como um suporte “existencial” para todas as
dificuldades enfrentadas pelas famílias. O trabalho realizado contemplava grupos de
todas as faixas etárias.
A rotina de trabalho no estágio permitiu ter contato com o complexo universo
em que se constrói a relação social entre os considerados pobres e o Estado. Como
ponte dessa interlocução, estavam as políticas sociais desenvolvidas no
equipamento. Minha função como estagiária consistiu em acompanhar a execução
dos programas e serviços financiados pelos governo federal e estadual para
atendimento aos pobres. A partir daquele momento, a minha percepção sobre a
pobreza e sobre os pobres ganharia novos olhares.
Dentre
as
experiências
marcantes
do
trabalho,
destacou-se
o
acompanhamento ao atendimento individualizado feito às famílias. As motivações
que levavam os sujeitos a procurar o atendimento individual com a assistente social
eram diversas.
151
Curiosamente, a maioria dos atendimentos mediava-se pelo verbo “pedir”, “eu
estou aqui para pedir”. Sobressaía o pedido por cesta básica. Os pedidos eram em
números bastante elevados e, para otimizar e atender o máximo de famílias, foi
criado pela profissional do serviço social um processo de racionalização com regras
para seleção das famílias que teriam prioridade para receber as cestas.
Uma segunda maior demanda era de pais e/ou responsáveis que se
deslocavam até o equipamento para “pedir” a inserção de filhos menores,
geralmente envolvidos com drogas e tráfico, em alguma atividade que os “tirassem
da rua”. Nesse caso, procuravam por um posto de trabalho ou curso
profissionalizante para os filhos, o que nem sempre era possível, devido à
indisponibilidade dos cursos e de encaminhamentos para postos de trabalho.
E, finalmente, outra demanda recorrente se referia ao processo de inserção
no mercado de trabalho dos responsáveis pelas famílias. Para os casos que
envolviam a inserção no mundo do trabalho quase não havia resolução. A atitude
que se tomava era informar sobre outros possíveis postos em que o sujeito pobre
pudesse se cadastrar e esperar vagas. Essas negações institucionalizadas eram
causa de muitas frustrações àqueles que procuravam o Centro Comunitário.
Todo esse contexto deixou claro que a presença de um equipamento ou de
profissionais representando o Estado em determinado território de áreas de alto
índice de pobreza representava para os sujeitos uma porta de resolução para toda
adversidade de problemas que enfrentavam, sejam eles econômicos, sociais,
culturais etc. Isso devido à escassez de redes de equipamentos estatais nas áreas
de alta vulnerabilidade, restando ao equipamento localizado no território receber
todas as demandas.
Diante da vulnerabilidade ou quase ausência de acesso a elementos básicos
para sobrevivência, como alimentação, saúde, educação, ter a presença do Estado
ao “lado de casa” representa uma referência que traz um pouco de esperança de
conseguir algo para aliviar a condição social de pobreza vivida.
Para além das dificuldades e precariedade do equipamento estatal em que
atuei, presenciar os atendimentos ocorridos significou entender como o considerado
pobre se representava diante o Estado para buscar aquilo de que precisava. Pela
limitação da “maturidade acadêmica”, não pude, naquele momento, ter dedicação
àquele objeto de pesquisa que inquietava: o fato de, em nenhum momento durante o
estágio, presenciar um sujeito se apresentando como cidadão, mas sim como
152
“pedinte” diante do Estado. Por isso o uso incisivo do verbo “pedir” utilizado pelos
considerados pobre durante os atendimentos pelas assistentes sociais.
Essa experiência estaria latente durante toda a minha trajetória, e retornaria
com todo vigor, muitos anos após, quando me deparei com o desafio profissional, da
experiência de trabalho na gestão do governo federal.
No ano de 2009, o passaporte para um salto de conhecimento sobre as
estruturas do Estado na concepção, implementação e execução das políticas de
combate à pobreza veio com a minha aprovação numa seleção pública para prestar
consultoria técnica ao Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome
(MDS) do governo federal. A partir do ano 2000 até o presente momento, o MDS é o
Ministério responsável por coordenar duas das principais ações consideradas de
combate à pobreza no Brasil, são elas: a Política Nacional de Assistência Social e
Gestão das Ações de Transferência de Renda, o Programa Bolsa Família, e o
Benefício de Prestação Continuada (BPC).
Na oportunidade, trabalhei na Secretaria Nacional de Assistência Social
(SNAS), na Coordenação-Geral de Serviços Socioassistenciais às Famílias
(GGSSF). A CGSSF, por sua vez, tem a responsabilidade de coordenar, orientar e
monitorar nacionalmente a implantação dos Centros de Referência de Assistência
Social (Cras) em todos os municípios brasileiros.
Os Cras são equipamentos estatais de execução da política de assistência
social nos municípios. Faz parte das normativas de implantação dos Cras que eles
estejam localizados nas áreas de alto índice de vulnerabilidade social e risco, de
forma a facilitar o acesso dos considerados mais pobres ao equipamento. O público
atendido, em sua grande maioria, é o mesmo dos programas de transferência de
renda, benefícios socioassistenciais e outros que procuram por assistência do
Estado.
Por meio desses momentos, meu percurso acadêmico ganhou contornos
claros. Inquietava-me compreender a complexidade do debate sobre a pobreza, mas
por um ângulo diferenciado, o dos sujeitos que nela habitam, ou seja, os atores
sociais que estruturam a dinâmica interna dos programas de combate à pobreza no
Brasil.
A atuação no MDS permitiu ampliar o olhar analítico de um extremo a outro.
Vislumbrar a outra face da política de combate à pobreza, o lado de lá. O espaço de
“institucionalização da pobreza” que pensa, concebe e decide sobre a intervenção
153
na vida de milhares de sujeitos e famílias. Dessa forma, oportunidades diversas
vieram, como a participação em espaços de deliberação das diretrizes nacionais,
reuniões e encontros com gestores e equipes técnicas de todo o país, conferências
nacionais, câmaras técnicas temáticas e atendimento presencial a prefeitos,
secretários, gestores e lideranças locais de todas as regiões brasileiras.
A prática profissional ratificou a complexidade do campo de pesquisa. Foi a
partir de então que os atores sociais que exercem o papel de representante das
instituições públicas executando serviço público se destacaram como um locus
privilegiado de observação da pesquisa, fecundo pelas reproduções que esses
atores têm sobre os pobres e a pobreza. São percepções mescladas entre uma
racionalidade adquirida na prática conduzida no dia a dia e por julgamentos
valorativos dela decorrente.
No aparato de proteção social de Estado que se propõe a um atendimento
aos pobres por meio da cidadania e do direito é instigante ainda subsistir relações e
tratamentos balizados por valores subjetivos e percepções individualizadas dos
pobres e da pobreza. Esse nos pareceu um caminho investigativo importante por
contribuir para compreender a estruturação das concepções sobre a pobreza e
sobre o pobre na experiência atual de combate à pobreza no Brasil.
5.2
Percurso metodológico
Duas diretrizes guiam a organização metodológica de investigação de campo
aqui adotada: a realização de uma análise qualitativa sobre a atuação de atores
estratégicos no combate à pobreza no Brasil, que são Street Level-Bureaucrats
(LIPSKY, 2010), os burocratas de nível de rua (ou ainda os “técnicos que atuam na
ponta”). E, concomitantemente, observar como as ressignificações e tensões
envolvendo a prática cotidiana, o que eles pensam sobre o conceito de pobreza e do
ser pobre, contribuem ou não para a reprodução ou ruptura de um ciclo de
preconceitos e estigmas nos programas e serviços estatais de atendimento ao
“pobre”.
Como recorte da pesquisa, consideram-se dois tipos de burocratas de rua. O
primeiro, os técnicos burocratas de nível de rua, que são os profissionais que
realizam atividades operacionais no atendimento direto e ou compõem equipes de
154
intervenção junto aos usuários considerados pobres de programas e serviços de
combate à pobreza. São a esses técnicos que cabe desempenhar atividades de
atendimento, cadastramento ou acompanhamento individual ou familiar dos pobres.
O segundo tipo são os gestores burocratas de rua que ocupam cargo de
chefia nas funções burocráticas de gestão das ações do combate à pobreza nos
municípios, nos estados e no nível federal, tais como coordenadores, diretores e
secretários municipais. Os gestores, mesmo que de maneira mais rara e indireta,
mantêm contato com os usuários considerados pobres.
Não foram encontrados, durante o período da pesquisa, grande número de
trabalhos acadêmicos que tratem do conceito de burocratas de rua nas políticas
sociais de combate à pobreza. Os estudos encontrados tratam de abordagens
específicas, por exemplo: a contribuição dos assistentes sociais no programa Bolsa
Família; a atuação dos agentes de saúde na política de assistência social e outros.
Em campo, eles são identificados por suas diferenciadas categorias profissionais ou
pela política em que atuam. A forma de atuação bastante fragmentada desses
profissionais pode justificar tal ausência. As investigações nessa área costumam
realizar análises sobre os beneficiários dos programas.
Além de técnicos que trabalham nos municípios, fizeram parte da seleção
para as entrevistas técnicos e gestores das equipes federais e estaduais. Essas
esferas têm como responsabilidade na gestão da política pública o planejamento,
monitoramento, avaliação e controle dos programas e serviços. Mesmo não tendo
contato regular e direto com os “pobres”, eles acompanham, de maneira regular, as
ações dos técnicos e gestores municipais.
Considerando
esse
contexto,
buscamos
uma
instrumentalização
metodológica que pudesse falar também sobre a caracterização do perfil dos
entrevistados. O esforço foi apreender as percepções de técnicos e gestores
imersas no processo de racionalização da rotina de trabalho, como também a
subjetividade de atuar como profissionais frente à interação com os usuários
considerados pobres e em uma estratégia ampla de combate à pobreza.
Acreditamos que, por meio das observações da pesquisa de campo
diretamente com técnicos e gestores, pode-se distanciar das tendências de
trabalhos científicos que dizem mais de quem fala do que de quem se fala, num
mecanismo que Sarti (2005) chama de projetivo, de ciências sociais que em suas
diversas imagens dos pobres trabalha em cima de uma identificação por contraste,
155
fazendo do pobre um outro. Compreender a estrutura e a operacionalização do
conceito de pobreza é tratar suas ressignificações e implicações nas interações
sociais presentes nas políticas de combate à pobreza.
Vislumbrando tal perspectiva, dois momentos fizeram parte do trabalho. O
primeiro, uma pesquisa documental abordando as diferenças e interfaces da
proposta de combate à pobreza do governo brasileiro entre a instituição do
Programa Bolsa Família, no governo Lula, e o Plano Brasil Sem Miséria, no primeiro
mandato da presidenta Dilma Rousseff, apresentado no capítulo IV. O segundo
momento, uma pesquisa qualitativa de campo com os burocratas de nível de rua
(LIPSKY, 2010), técnicos e gestores estaduais e municipais responsáveis por pensar
e executar a ação das políticas de combate à pobreza.
A problematização que guiou a pesquisa foi compreender como técnicos de
nível de rua do Programa Bolsa Família e ações de Assistência Social elaboram
suas representações sobre o pobre e a pobreza. Interessou observar em que
medida a prática cotidiana desses atores sociais é um indicador para verificar a
hipótese de que a execução das políticas sociais voltadas aos sujeitos pobres não
têm conseguido romper com um passado de estigma social em relação à condição
social de pobreza e pobres, construído histórica e socialmente.
Trilhando esse objetivo, optou-se pelo desenvolvimento de um campo
representativo da diversidade das cinco regiões brasileiras, dessa forma podendo
realizar uma análise das perspectivas se elas guardam alguma especificidade de
olhares conforme características das regiões em que atuam.
Num primeiro momento, esse caminho não poderia ser percorrido devido ao
custo deslocamento da pesquisa. Restava uma alternativa: realizar as entrevistas
nos eventos nacionais que ocorrem em Brasília. Nesta opção algumas perdas para o
campo ocorreriam, por exemplo, os longos intervalos entre um evento e outro. Outro
limite seria a impossibilidade de entrevistar os técnicos de nível de rua que atendem
cotidianamente os pobres. Isso porque na maior parte as representações em Brasília
são feitas pelos secretários e coordenadores, e não por técnicos. O cenário mudou
quando surgiu a oportunidade de integrar um trabalho pelo Ministério de
Desenvolvimento Social (MDS) que culminou num planejamento de viagens a todas
as regiões brasileiras durante o ano de 2014. Dessa forma, a perspectiva de incluir
na pesquisar as entrevistas com técnicos localmente foi possível.
156
Diante do novo cenário, passamos a delimitar os critérios metodológicos para
compor a seleção do campo. Os critérios utilizados foram os seguintes: 1. as
entrevistas conterem representação de técnicos das cinco regiões brasileiras; 2. de
cada região brasileira ter pelo menos dois estados59 representados nas entrevistas;
3. contemplar na seleção de campo a classificação por porte dos municípios. A
amostra final para análise contou com entrevistas realizadas com representação de
técnicos e gestores do Programa Bolsa Família e Assistência Social de todas
regiões do país.
Após a aplicação desses critérios, o campo de pesquisa ficou assim
representado: Região Norte: Pará; Região Nordeste: Bahia e Ceará; Região CentroOeste: Distrito Federal60; Região Sudeste: Rio de Janeiro, São Paulo e Minas
Gerais; Região Sul: Paraná e Santa Catarina. Ao todo, foram realizadas 14
(quatorze) entrevistas, sendo 13 (treze) com gestores e técnicos trabalhadores
responsáveis por coordenar e/ou executar ações nos estados e ou municípios no
combate à pobreza (especificamente dos programas e serviços da assistência social
e transferência de renda – Programa Bolsa Família) e 2 (duas) entrevistas com
gestores federais.
O desenvolvimento da pesquisa também levou a outros campos de
observação do objeto, como o que categorizamos analiticamente de eventos
coletivos representativos. São encontros de nível nacional promovidos pelo
Ministério de Desenvolvimento Social, que podem ter objetivos diversos. Eles podem
ter caráter deliberativo, consultivo, de pactuação e ou de capacitação. Neles se
encontram representados os estados brasileiros por meio das equipes técnicas e
secretários municipais, gestores e técnicos estaduais, a depender do objetivo do
encontro. A oportunidade foi utilizada na realização das entrevistas e para a da
observação participante em campo61.
59
A Região Norte se destaca como aquela em que não conseguimos manter o critério de seleção de
dois estados. A justificativa é o alto custo de deslocamento até a região, como também porque nem
sempre nos eventos em Brasília a região é representada pelos seus diversos estados.
60
No Centro-Oeste, por sua configuração política diferenciada, optamos por realizar as duas
entrevistas em cidades diferentes do Distrito Federal, sendo contempladas, assim, Brasília e a cidade
satélite de Sobradinho.
61
“A técnica de observação participante se realiza através do contato direto do pesquisador com o
fenômeno observado para obter informações sobre a realidade dos atores sociais em seus próprios
contextos. O observador, enquanto parte do contexto de observações estabelece uma relação face a
face com os observados. Nesse processo, ele, ao mesmo tempo, pode modificar e ser modificado
157
A riqueza analítica dos eventos coletivos deliberativos de gestores e técnicos
de combate à pobreza está no fato de reunir, no mesmo espaço, técnicos e gestores
dos três níveis federativos – União, estados e municípios. Em regra, a discussão
nesses eventos fica sob a coordenação do MDS e trata dos rumos da execução das
principais ações de combate à pobreza. Resulta dos encontros a constituição dos
parâmetros institucionais e conceituais que dão diretrizes a gestão de programas e
serviços nos estados e municípios.
A metodologia empregada para obtenção dos dados de campo teve
abordagem
qualitativa,
com
utilização
do
instrumental
de
entrevistas
semiestruturadas com roteiro aberto. Buscou-se explorar eixos como nas
entrevistas: a qualificação dos técnicos e gestores entrevistados; a trajetória
profissional que os levaram ao serviço público; campo de atuação profissional e
atividades desenvolvidas; conhecimento e concepção sobre os programas e/ou
serviços que acompanham; concepção sobre as políticas de combate à pobreza no
Brasil atualmente; concepção sobre os pobres que atendem; e, finalmente a
concepção que cada um tem sobre a pobreza.
Durante as viagens, as entrevistas foram realizadas no expediente de
trabalho dos técnicos nos equipamentos em que atuam, o que oportunizou uma
observação do equipamento onde as atividades são desenvolvidas. Mesmo que em
curto espaço de tempo, tornou-se um momento relevante da pesquisa por propiciar
o contato com a rotina de trabalho dos técnicos localmente.
O esforço metodológico priorizou, além das entrevistas, o olhar do esforço
técnico da observação participante, reforçou a maximização do microssocial como
instrumento de investigação. Assim, os resultados apresentados neste trabalho
perpassam aspectos simbólicos e culturais peculiares ao território de cada estado e
região. O mesmo rigor ocorreu nos momentos de contato e entrevistas com os
demais atores nos eventos nacionais.
Um dos critérios para compor o campo foi a classificação dos municípios por
porte. Esta é uma metodologia utilizada pelo MDS para planejar as suas ações de
intervenção. A classificação por porte de municípios apresenta o recorte por número
de habitantes. É uma ferramenta que, na gestão federal, tem objetivo de unificar
parâmetros e conduzir processos de organização para implantação, monitoramento
pelo contexto. A importância dessa técnica reside no fato de podermos captar uma variedade de
situações ou fenômenos que não são obtidos por meio de perguntas[...]”.(MINAYO, 1993).
158
de programas e serviços nos municípios. Assim, para cada porte se espera um nível
de organização. Este critério foi adotado pela Política Nacional de Assistência Social
(PNAS/2004), reforçada na Norma Básica do Sistema Único da mesma política. Ela
também é aplicada também na gestão do Programa Bolsa Família.
Quadro 11: Porte de Municípios PNAS (2005)/MDS
Porte de classificação dos
Municípios
Número de habitantes
Pequeno Porte I  PPI
Com população até 20.000 habitantes
Pequeno Porte II  PPII
Com população entre 20.001 a 50.000 habitantes
Médio Porte  MP
Com população entre 50.001 a 100.000 habitantes
Grande Porte  GP
Com população entre 100.001 a 900.000 habitantes
Metrópoles
Com população superior a 900.000 habitantes
Fonte: PNAS/2005.
O cofinanciamento federal para as ações da proteção básica, que inclui a
assistência social, considera o número Cras (Centros de Referência da Assistência
Social) implantados conforme o porte do município. Outra exigência é o número de
técnicos disponibilizados para prestar atendimento e acompanhamento aos
considerados em vulnerabilidade social e risco, dentre estes os considerados
pobres.
Nas ações da assistência social para cada porte de município, estão previstos
as seguintes condições como forma mínima de organização para atendimento aos
usuários.
159
Quadro 12: Classificação de municípios por porte
Porte de
classificação
dos municípios
Pequeno Porte
I-PPI
Pequeno Porte
II- PPII
Médio Porte-MP
Grande PorteGP
Número de
habitantes
até 20.000
habitantes
Com
população de
20.001 a
50.000
habitantes
Com
população de
50.001 a
100.000
habitantes
Com
população de
100.001 a
900.000
habitantes
Número de
Cras previsto
Equipe técnica
esperada
1 Cras para
até 2.500
famílias
referenciadas
2 técnicos de
nível
superior,
sendo
um
profissional
assistente social
e
outro
preferencialmente
psicólogo.
2 técnicos de
nível médio
1 Cras para
até 3.500
famílias
referenciadas
3 técnicos de
nível
superior,
sendo
dois
profissionais
assistentes
sociais
e
preferencialmente
um psicólogo.
3 técnicos nível
médio
2 Cras para
até 5.000
famílias
referenciadas
4 técnicos de
nível
superior,
sendo
dois
profissionais
assistentes
sociais,
um
psicólogo e um
profissional que
compõe o Suas.
4 técnicos de
nível médio
4 Cras para
até 5.000
famílias
referenciadas
4 técnicos de
nível
superior,
sendo
dois
profissionais
assistentes
sociais,
um
psicólogo e um
profissional que
compõe o Suas.
4 técnicos de
nível médio
Número de
famílias
referenciadas
Até 2.500
famílias
Até 3.500
famílias
A cada 5.000
famílias
A cada 5.000
famílias
160
|Metrópoles
com
população
superior a
900.000
habitantes
8 Cras para
até 5.000
famílias
referenciadas
4 técnicos de
nível superior,
sendo dois
profissionais
assistentes
sociais, um
psicólogo e um
profissional que
compõe o Suas.
4 técnicos de
nível médio
A cada 5.000
famílias
Fonte: PNAS/2005.
Para além das orientações normativas, o campo demonstra uma relação
intrínseca entre assistência social e transferência de renda. Porém, essa articulação
é um dos pontos nevrálgicos existentes na prática dos técnicos burocratas de rua,
como veremos mais adiante.
A maioria dos profissionais entrevistados desempenha suas funções na
organização institucional supracitada, sejam os atendimentos de assistência sejam
os do PBF. No caso do Bolsa Família, diferentemente dos serviços e programas da
assistência social, não há legislação específica regulamentando o número mínimo
de técnicos ou em qual equipamento devem ser desenvolvidas as ações do
programa. Tal decisão é um ato discricionário de responsabilidade do gestor
municipal. Por esse motivo, em muitos casos, os técnicos de nível de rua dos Cras
exercem, além das ações de competência prevista na assistência social, as ações
do Programa Bolsa Família.
Nos municípios visitados, principalmente os de pequeno porte, devido à
escassez de mão de obra, foi comum gestores otimizarem as equipes técnicas já
efetivas para realizarem as ações do Bolsa Família. Nem todos os municípios
possuem uma equipe técnica específica para atendimento dos usuários do Bolsa
Família. Geralmente, os atendimentos são realizados no Cras pelos técnicos que
trabalham na assistência social.
Sobre as regras exigidas para implantação do PBF, o Decreto nº 5.209, de 17
de setembro de 2004, que regulamenta a Lei do PBF, preconiza dois critérios para
adesão dos estados e municípios ao Programa Bolsa Família: 1 existência formal e
o pleno funcionamento de instância de controle social na respectiva esfera
federativa, na forma definida no art. 29; e (incluído pelo Decreto nº 7.332, de 2010);
2 indicação de gestor municipal do Programa Bolsa Família e, no caso dos estados
161
e do Distrito Federal, do coordenador do programa (incluído pelo Decreto nº 7.332,
de 2010), não existindo, assim, nenhuma referência à obrigatoriedade de equipe
técnica específica de atendimento apenas aos considerados “pobres” pelo Bolsa
Família.
A tendência de atendimento unificado pelas equipes técnicas aos pobres
retrata uma das tensões encontradas na prática dos burocratas de nível de rua.
Apesar de estar prevista nas normativas a articulação das ações nas entrevistas
com os gestores e técnicos entrevistados, não haver equipe específica para cada
ação (atendimento aos usuários do Programa Bolsa Família) foi apontado como
causa de sobrecarga de trabalho para as equipes que desenvolvem outras ações,
devido ser a grande demanda recebida nos postos de atendimento.
Com esse dado, percebemos o desafio da institucionalização na prática
ocorrer de maneira articulada resguardando a característica de cada uma das
políticas, sem sobreposições. Essa dificuldade foi um aspecto comum na gestão das
ações de combate à pobreza, assistência social e transferência de renda. A tensão
da articulação se encontra nos extremos: ou não existe uma articulação satisfatória
das ações, tal como previsto nas normativas orientadoras, ou há sobreposição de
uma ação sobre outra.
Essa observação é importante, pois a dificuldade acima relatada é um dos
elementos que compõem a construção social que os técnicos burocratas de nível de
rua têm de seu trabalhado e de suas responsabilidades relacionadas ao atendimento
aos pobres. Existe uma tendência entre os técnicos de qualificar as ações num nível
de hierarquia diferenciado. Os técnicos de nível de rua que atuam na assistência
social teriam “simbolicamente” uma obrigação profissional de estar à disposição das
atividades gerenciadas pelos técnicos e gestores do Programa Bolsa Família,
ficando num patamar inferior e de submissão a essas ações.
Do ponto de vista metodológico, a dinâmica de organização do trabalho para
o atendimento dos considerados pobres encontrada nos municípios (a mesma
equipe responsável por atender Bolsa Família e Assistência Social) facilitou a
entrevista com os técnicos e gestores. Isso porque os profissionais entrevistados
trabalham e atendem ambos os públicos, tanto da assistência social quanto de
transferência de renda.
162
5.3
Delimitação do locus do objeto de estudo
Na delimitação do campo de pesquisa, cabe a demarcação metodológica do
“locus” de atuação dos técnicos burocratas de rua meio à organização pensada para
o combate à pobreza. Isso se faz relevante na temática discutida, para que
possamos analisar as tensões, os conflitos e os dilemas do aparato institucional em
que os técnicos atuam cotidianamente no atendimento aos pobres. A forma como se
constituem as disputas nesses espaços institucionais retrata nada mais do que a
estrutura da política que o Estado denomina de ações governamentais de combate à
pobreza.
Ao fazermos a opção por apresentar essa delimitação metodológica, situamos
e contextualizamos a realidade que insere os profissionais entrevistados e, dessa
forma, podemos ter maior clareza ao analisar de onde vem a fala de quem nos diz
algo sobre a pobreza, sobre as suas percepções e sua prática profissional.
O locus de atendimento ao pobre nas políticas públicas brasileiras de
combate à pobreza é normatizado com a previsão de rede de ações intersetoriais
interligadas. Porém, o desafio encontrado na prática é a sua característica de
segmentação. Como consequência, a gestão dos programas e serviços nem sempre
ratificam o percurso normatizado das ações racionais-legais pensadas no modelo
burocrático da eficiência gerencial proposta.
Faz parte do cotidiano dos técnicos burocratas de rua lidar com conflitos
relacionados à velada disputa de delegação de responsabilidades entre os entes
federados no que diz respeito ao trabalho com os sujeitos pobres usuários de
programas e serviços. Faz parte do cotidiano que a busca pela proteção integral do
sujeito em condição social de pobreza gere uma sobreposição de entendimentos e
compreensões entre as três gestões: federal, estadual e municipal.
Considerando o modelo de responsabilização federativo brasileiro, pode-se
ser problematizada a seguinte questão: a quem pertence o pobre? Como está
construída a gestão da pobreza no Brasil hoje? E como essas questões inferem na
prática cotidiana de gestores e técnicos burocratas de rua que operacionalizam as
ações de combate à pobreza?
A Constituição de 1988, em seu art. 18, diz que a organização políticoadministrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os estados, o
Distrito Federal e os municípios. Todos são autônomos nos termos da Constituição.
163
Assim, os estados regem-se por suas Constituições e Leis, observados os princípios
da Constituição Federal vigente. Os municípios e o Distrito Federal regem-se por
suas respectivas Leis Orgânicas, de forma que atendam aos princípios
estabelecidos na Carta Magna.
Como aponta Abrúcio (2010) a Constituição traz três grandes marcos, em se
tratando do Federalismo. O primeiro, a democratização do Estado com o
fortalecimento do controle externo da administração pública, como o papel conferido
ao Ministério Público. O segundo marco, a descentralização, que, segundo o autor,
rompeu com a centralização política, financeira e administrativa e abriu a
oportunidade de maior participação dos cidadãos, com inovações no campo da
gestão pública.
Um terceiro e último elemento apontado por Abrúcio é a reforma do serviço
civil responsável pelo processo de profissionalização da burocracia, que trouxe,
dentre outras mudanças, a seleção por meritocracia. Meio a essa discussão, em
1986 foi criada pelo Poder Executivo a Escola Nacional de Administração Pública
(Enap), com objetivo de capacitar os processos burocráticos no nível de gestão
federal do governo.
Em seu trabalho, Abrúcio (2005) aponta que a descentralização na
redemocratização
de
1988
não
esteve
acompanhada
por
um
plano
intergovernamental de coordenação capaz de estimular as mudanças propostas.
Com isso, na relação dos estados e municípios ainda prevalecia ranços da velha
cooptação das elites locais. O autor argumenta que ocorreu uma considerável
indefinição no papel dos estados federados e a forma que estes se relacionariam
com os outros níveis de governo.
Todo esse movimento arregimentou na opinião de Abrúcio uma conformação
de um federalismo compartimentalizado, ou seja, cada nível de governo procurava
encontrar o seu papel específico e não havia incentivos para o compartilhamento de
tarefas e a atuação consorciada. Esse tipo de federalismo seria mais perverso no
âmbito das políticas públicas, decorrendo disso, nas palavras do autor, um jogo de
empurra entre as esferas de governo (2005, p. 49).
Nesse cenário, as mudanças ocorridas, para o autor, vieram com o governo
de FHC que trouxe avanços no sentido de superar as limitações do federalismo
compartimentalizado.
164
A Era FHC teve um papel importante na mudança de alguns padrões
federativos construídos ao longo da redemocratização. Em especial, teve
grande êxito no ataque ao modelo predatório vinculado ao estadualismo,
reduzindo as formas de repasse de custos financeiros entre os entes e
colocando fortes limites à irresponsabilidade fiscal de governadores e
prefeitos. Destaque deve ser dado também para outros quatro elementos
positivos: o reforço do controle social vinculado à descentralização; a
adoção de políticas de coordenação intergovernamental nas políticas de
saúde (com o PAB) e de educação (com o Fundef); criação de programas
nacionais de transferência direta de renda, com importantes impactos
redistributivos e, em menor medida, montou programas de avaliação dos
gastos públicos e dos resultados das políticas, fornecendo um feedback
essencial à União para coordenar a descentralização. (ABRÚCIO, 2005, p.
49).
O governo Lula, pós-FHC, tenta consolidar e unificar um modelo de
articulação e combate à pobreza que perdura no modelo federativo brasileiro
atualmente. Nesse sentido, algumas atitudes são consideradas por Abrúcio como
ações positivas para o fortalecimento da articulação intergovernamental, tais como:
o revigoramento de alguns órgãos do governo federal que atuam nessa direção; o
revigoramento da Secretaria de Assuntos Federativos e a criação do Ministério das
Cidades. Este último, por unificar todas as políticas urbanas em um só local. E,
finalmente, a reestruturação da política regional, com o Ministério da Integração
Nacional.
Em nosso ponto de vista, as mudanças trazidas sobre a descentralização com
a Constituição e com seus respectivos governos trouxeram ganhos e desafios.
Assim, a descentralização no formato federativo brasileiro não apenas baliza o
processo político, mas também repercute no desenho das políticas públicas
brasileiras. Principalmente no que diz respeito à descentralização dos programas e
serviços. A realidade impõe muitos limites para prática da autonomia e
descentralização dos entres federados, especialmente nas responsabilidades
esperadas das gestões locais na implantação, qualificação e continuidade dos
programas e serviços previstos na política pública.
No depoimento de uma das gestoras entrevistadas, que teve a experiência de
trabalhar na gestão nos três entes federativos, exercendo cargo na gestão nacional
do MDS, logo após assumindo cargo de gestão no estado do Rio de Janeiro,
podem-se perceber os pontos nevrálgicos ao falar da relação federativa e da
autonomia existente na prática da execução de políticas de combate à pobreza.
165
Por mais que se diga que os municípios e os estados são entes federados
autônomos, mas não é bem assim. Quando você está trabalhando a lógica
de um “sistema único” acaba gerando sempre movimentos e debates que
se traduz muito em alinhamento. Então, assim, é sempre uma perspectiva.
Por mais que se permita o debate, a busca, o objeto final é sempre de um
alinhamento conceitual, de um alinhamento estratégico, de um alinhamento
de agenda. Eu acho até que esse é o espírito de um “sistema único”, mas
de alguma forma – e isso se repete muito nas falas dos gestores sobre suas
perspectivas locais – que é muito difícil. Difícil aplicar (as normativas) nas
realidades, porque se está em outro movimento, em outro local. É como se
na instância federal estivesse o modelo ideal e na esfera municipal e
estadual o real que aí não se traduz nem mesmo nessas normativas e
preceitos. (Ex-gestora federal e atual gestora estadual, mar. 2013).
A fala da gestora retrata bem o distanciamento entre as normativas pensadas
no nível federal para implementação no nível local quando sugere que na instância
federal está um modelo ideal e na esfera municipal e estadual o real. É uma situação
que, como explica Abrúcio (2005), expande-se para além do embate entre o governo
federal e os demais entes por meio das políticas e estruturas de poder. Ela traz
como o foco para um momento que o autor chama de complexificação das relações
intergovernamentais.
É preciso acrescentar outro vetor analítico, pouco explorado no Brasil [...]
trata-se da análise do problema da coordenação intergovernamental, isto é,
das formas de integração, compartilhamento decisão conjunta presentes nas
federações. Essa questão torna-se bastante importante com a
complexificação das relações intergovernamentais ocorrida em todo o mundo
nos últimos anos. (ABRÚCIO, 2005, p. 49).
Essa complexificação se deu na perspectiva do autor pela convivência de
tendências conflituosas e de intrincada solução, onde se destacam três aspectos
relevantes: 1 a manutenção de um modelo de Welfare State que convive com maior
escassez relativa de recursos, com fortes pressões por economia como cortes de
gastos e custos e efetividade; 2 um aumento das demandas por maior autonomia de
governos locais e/ou grupos étnicos, levando à luta contra a uniformização e a
excessiva centralização, o que acontece ao mesmo tempo em que governos e
coalizões nacionais tentam evitar problemas causados pela fragmentação, como a
elevação da desigualdade social, o descontrole das contas públicas de entes; e, por
último, 3 a interconexão dos governos locais com outras estruturas de poder que
não os governos centrais, tais como o empresas e organismos internacionais e,
concomitante a isso as parcerias com a sociedade civil.
166
Por outro lado, na visão de Arretche (2014), a divisão de responsabilidades e
autonomia não foi algo tão simples. Para a autora, não se deve considerar que a
descentralização das políticas públicas no caso brasileiro significou apenas a
retirada da União para que os estados e municípios passem a assumir as novas
prerrogativas fiscais e políticas de modo espontâneo ou por competência de gestão.
A descentralização das políticas sociais não seria simplesmente um subproduto da
descentralização fiscal, nem das novas disposições constitucionais derivadas da
Constituição de 1988. Sob o ponto de vista da autora, ela ocorreu nas políticas e nos
estados em que a ação política deliberada operou de modo eficiente.
Os desafios da descentralização federativa apontados pela autora ocorrem
pela diferença da herança de centralização dos anos anteriores a 1988 e também
pelo fato de o formato de articulação que as políticas públicas passaram a adotar, o
processo de Adesão62 às políticas públicas. O problema não estaria na adesão
simplesmente, no processo que a autora chama de necessidade de estratégia eficaz
e de incentivo para que os governos locais possam aderir às propostas pensadas
nacionalmente. Para Arretche, existe uma dificuldade de a União induzir as diretrizes
das políticas públicas pelo método da adesão, e esse movimento se configura com
maior dificuldade do que antes.
No Estado federativo, tornam-se essenciais estratégias de indução capazes
de obter a adesão dos governos locais. Ou, dito de outro modo, as
dificuldades para que a União — ou um governo estadual — delegue
funções a um nível de governo menos abrangente são maiores hoje do que
sob o regime militar. (ARRETCHE, 2014, p. 115).
Por mais que o exercício federalista deixe rastro de dificuldades de rejeição e
de adesão aos programas e serviços de abrangência nacional, nota-se no caso
brasileiro que o exercício da racionalidade burocrática exigida com a autonomia
federalista contribuiu para afastar a concessão de financiamento dos programas e
serviços das históricas posturas clientelistas entre os entes. Porém, isso não
significa que tenha sido eliminada de tal prática qualquer disputa simbólica de
interesses inerente ao jogo político e existente localmente a partir de seus projetos
políticos.
62
A Adesão significa a forma pela qual, atualmente, os governos locais (estados e municípios) se
vinculam às políticas criadas e propostas no âmbito federal. A marca da adesão no modelo atual é o
voluntarismo. Não existe obrigatoriedade dos entes federativos participarem das políticas nacionais.
Uma vez que aderem aos programas eles assinam termo de aceites de adesão com as regras
previstas para a participação.
167
O campo de pesquisa retrata bem esse fato: observa-se que o pacto de
responsabilidade assumido pelos entes diante da adesão aos programas de
combate à pobreza se associa aos diversos fatores locais, culminando em uma
diversidade de arranjos e formatos de execução da adesão aos programas. Existe
um jogo político de responsabilidades inerente a este processo, uma espécie de
subconjunto de articulações de interesses entre estados e municípios próprios ao
campo político que circunda. A lógica seria de quando mais o ente apresenta um
baixo
grau
de
articulação
ou
cooperação
intergovernamental,
mais
as
responsabilidades de gestão (principalmente com ações de combate à pobreza) são
atribuídas “ao outro”. No senso comum, traduz-se num jogo do “empurra, empurra”
na busca de definições de responsabilidades mediadas pelas relações políticas
existentes localmente.
As visitas de campo contribuíram para identificar alguns elementos
determinantes para a configuração de arranjos nas divisões de responsabilidades
entre os municípios: o porte do município; a relação custo-benefício da ação para o
ente; recursos financeiros disponibilizados na parceria; a prioridade dada a cada
ação pelos programas dos governos locais; a estrutura de equipamentos estatais de
atendimento presente no território; capacidade técnica e de gestão; e, muito
importante, o nível da articulação política existente entre as gestões dos entes.
Retomando a referência das reflexões de Arretche, temos que
No caso brasileiro, a responsabilidade pública pela gestão de políticas
sociais passou a ser um dos elementos da barganha federativa. Dadas as
dimensões da pobreza brasileira e, portanto, da população-alvo dos
programas sociais, a gestão de políticas sociais em nosso país tende a ser
simultaneamente cara e inefetiva, na medida em que tende a consumir um
elevado volume de recursos e apresentar baixos níveis de proteção efetiva.
Neste caso, nas situações em que os custos políticos e/ou financeiros da
gestão de uma dada política forem avaliados como muito elevados, a
barganha federativa consiste em buscar atribuí-los ou imputá-los a um outro
nível de governo. Tais custos serão tanto maiores quanto mais elevados
forem os recursos exigidos pela engenharia operacional de uma dada
política e na medida direta da extensão legal do escopo de beneficiários.
(ARRETCHE, 2014, p. 115).
Abrúcio (2005) chamará esse movimento de “jogo federativo”, a depender de
barganhas, negociações, coalizões e induções das esferas superiores de poder, que
para o autor é natural em uma federação democrática. Assim, o sucesso da relação
federativa estaria diretamente relacionado aos processos de coordenação
intergovernamental.
168
No caso da definição das responsabilidades entre as ações de gestão do
combate à pobreza, os entes seguem as prerrogativas constitucionais da Federação
administrativa de autonomia com prevalência das diretrizes do âmbito federal. Cabe
à União propor diretrizes nacionais, orientar e monitorar nacionalmente. Cabe aos
estados monitorar e apoiar as execuções das ações nos municípios de seu território
e, finalmente, cabe aos municípios implementar e executar as ações conforme
diretrizes acordadas nacionalmente.
Na assistência social, a gestão é pautada na Norma Operacional Básica de
2012- NOB/Suas (Resolução CNAS nº 33, de dezembro de 2012). Segundo esse
documento, a responsabilidade de gestão é fundamentada na cooperação entre os
entes federados, considerando competências e responsabilidades comuns e
específicas. O § 1º do art. 8º, do capítulo II, da NOB/Suas, prevê como
responsabilidades para os entes:
As responsabilidades se pautam pela ampliação da proteção
socioassistencial em todos os seus níveis, contribuindo para a erradicação
do trabalho infantil, o enfrentamento da pobreza, da extrema pobreza e das
desigualdades sociais, e para a garantia dos direitos, conforme disposto na
Constituição Federal e na legislação relativa à assistência social. (MDS,
NOB/SUAS, 2012, p. 19).
O quadro 13 traz apontamentos sobre a divisão de responsabilidades para
implementação de programas e serviços no caso dos usuários atendidos (incluindo
os considerados pobres) nas ações previstas na política de assistência social.
169
Quadro 13: Competências dos entes federativos nos Programas e Serviços da Assistência Social
Ente Federado
.
.
.
União
.
.
.
.
.
.
.
.
.
Estado
.
.
.
.
.
Assistência Social
Regulamentar e cofinanciar, em âmbito nacional, por meio de transferência
regular e automática, na modalidade fundo a fundo, o aprimoramento da gestão,
dos serviços, programas e projetos de proteção social básica e especial, para
prevenir e reverter situações de vulnerabilidade social e riscos;
Realizar o monitoramento e a avaliação da política de assistência social e
assessorar os estados, o Distrito Federal e os municípios para seu
desenvolvimento;
Regular o acesso às seguranças de proteção social, conforme estabelecem a
Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e esta NOB SUAS; VII – definir as
condições e o modo de acesso aos direitos socioassistenciais, visando à sua
universalização; VIII – propor diretrizes para a prestação dos serviços
socioassistenciais, pactuá-las com os estados, o Distrito Federal e os municípios
e submetê-las à aprovação do CNAS;
Orientar, acompanhar e monitorar a implementação dos serviços
socioassistenciais tipificados nacionalmente, objetivando a sua qualidade;
Apoiar técnica e financeiramente os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
na implementação dos serviços, programas, projetos e benefícios de proteção
social básica e especial, dos projetos de enfrentamento da pobreza e das ações
socioassistenciais de caráter emergencial;
Coordenar em nível nacional o Cadastro Único e o Programa Bolsa Família.
Destinar recursos financeiros aos municípios, a título de participação no custeio
do pagamento dos benefícios eventuais de que trata o art. 22, da Loas, mediante
critérios estabelecidos pelo Conselho Estadual de Assistência Social (Ceas);
Cofinanciar, por meio de transferência regular e automática, na modalidade fundo
a fundo os serviços, programas, projetos e benefícios eventuais e o
aprimoramento da gestão, em âmbito regional e local;
Estimular e apoiar técnica e financeiramente as associações e consórcios
municipais na prestação de serviços de assistência social;
Realizar o monitoramento e a avaliação da política de assistência social em sua
esfera de abrangência e assessorar os Municípios para seu desenvolvimento;
Apoiar técnica e financeiramente os Municípios na implantação e na organização
dos serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais;
Apoiar técnica e financeiramente os Municípios para a implantação e gestão do
Suas, Cadastro Único e Programa Bolsa Família;
Municipalizar os serviços de proteção social básica executados diretamente pelos
Estados, assegurando seu cofinanciamento, com exceção dos serviços
socioassistenciais prestados no distrito estadual de Pernambuco, Fernando de
Noronha, até que este seja emancipado;
Instituir ações preventivas e proativas de acompanhamento aos Municípios no
cumprimento das normativas do SUAS, para o aprimoramento da gestão, dos
serviços, programas, projetos e benefícios socioassistenciais pactuados
nacionalmente;
Participar dos mecanismos formais de cooperação intergovernamental que
viabilizem técnica e financeiramente os serviços de referência regional, definindo
as competências na gestão e no cofinanciamento, a serem pactuadas na CIB;
Elaborar plano de apoio aos Municípios com pendências e irregularidades junto
ao Suas, para cumprimento do plano de providências acordado nas respectivas
instâncias de pactuação e deliberação;
Prestar as informações necessárias para a União no acompanhamento da gestão
estadual;
170
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
.
MUNICÍPIO .
.
.
.
.
.
.
.
.
DISTRITO .
FEDERAL .
.
.
.
Zelar pela boa e regular execução dos recursos da União transferidos aos
Estados, executados direta ou indiretamente por este, inclusive no que tange à
prestação de contas;
Aprimorar os equipamentos e serviços socioassistenciais, observando os
indicadores de monitoramento e avaliação pactuados;
Alimentar o Censo do Sistema Único de Assistência Social (Censo Suas);
Destinar recursos financeiros para custeio dos benefícios eventuais de que trata o
art. 22, da Loas, mediante critérios estabelecidos pelos Conselhos Municipais de
Assistência Social (CMAS);
Efetuar o pagamento do auxílio-natalidade e o auxílio-funeral;
Executar os projetos de enfrentamento da pobreza, incluindo a parceria com
organizações da sociedade civil;
Atender às ações socioassistenciais de caráter de emergência;
Prestar os serviços socioassistenciais de que trata o art. 23, da Loas;
Cofinanciar o aprimoramento da gestão e dos serviços, programas e projetos de
assistência social, em âmbito local;
Realizar o monitoramento e a avaliação da política de assistência social em seu
âmbito;
Aprimorar os equipamentos e serviços socioassistenciais, observando os
indicadores de monitoramento e avaliação pactuados;
Organizar a oferta de serviços de forma territorializada, em áreas de maior
vulnerabilidade e risco, de acordo com o diagnóstico socioterritorial;
Organizar, coordenar, articular, acompanhar e monitorar a rede de serviços da
proteção social básica e especial;
Alimentar o Censo Suas;
Assumir as atribuições, no que lhe couber, no processo de municipalização dos
serviços de proteção social básica;
Participar dos mecanismos formais de cooperação intergovernamental que
viabilizem técnica e financeiramente os serviços de referência regional, definindo
as competências na gestão e no cofinanciamento, a serem pactuadas na CIB;
Gerir, no âmbito municipal, o Cadastro Único e o Programa Bolsa Família, nos
termos do § 1º do art. 8° da Lei nº 10.836 de 2004;
Prestar informações que subsidiem o acompanhamento estadual e federal da
gestão municipal;
Zelar pela execução direta ou indireta dos recursos transferidos pela União e
pelos Estados aos Municípios, inclusive no que tange à prestação de contas;
Viabilizar estratégias e mecanismos de organização para aferir o pertencimento à
rede socioassistencial, em âmbito local, de serviços, programas, projetos e
benefícios socioassistenciais ofertados pelas entidades e organizações de acordo
com as normativas federais.
Destinar recursos financeiros para custeio dos benefícios eventuais de que trata o
art. 22, da Loas, mediante critérios e prazos estabelecidos pelo Conselho de
Assistência Social do Distrito Federal (CASDF);
Efetuar o pagamento do auxílio-natalidade e o auxílio-funeral;
Executar os projetos de enfrentamento da pobreza, incluindo a parceria com
organizações da sociedade civil;
Atender às ações socioassistenciais de caráter de emergência;
prestar os serviços socioassistenciais de que trata o art. 23, da Loas;
Cofinanciar o aprimoramento da gestão, dos serviços, programas e projetos de
assistência social em âmbito local;
171
.
.
.
.
.
.
.
.
Realizar o monitoramento e a avaliação da política de assistência social em seu
âmbito;
Aprimorar os equipamentos e serviços socioassistenciais, observando os
indicadores de monitoramento e avaliação pactuados;
Organizar a oferta de serviços de forma territorializada, em áreas de maior
vulnerabilidade e risco, de acordo com o diagnóstico socioterritorial, construindo
arranjo institucional que permita envolver os Municípios da Região Integrada de
Desenvolvimento do Distrito Federal e Entorno (Ride);
Organizar, coordenar, articular, acompanhar e monitorar a rede de serviços da
proteção social básica e especial;
Participar dos mecanismos formais de cooperação intergovernamental que
viabilizem técnica e financeiramente os serviços de referência regional, definindo
as competências na gestão e no cofinanciamento, a serem pactuadas na CIT;
Gerir, no âmbito do Distrito Federal, o Cadastro Único e o Programa Bolsa
Família, nos termos do § 1º do art. 8° da Lei nº 10.836, de 2004;
Instituir plano de capacitação e educação permanente do Distrito Federal;
Zelar pela boa e regular execução, direta ou indireta, dos recursos da União
transferidos ao Distrito Federal, inclusive no que tange à prestação de contas;
Por sua vez, os eixos de responsabilidade e execução relacionados às ações
de transferência de renda do Programa Bolsa Família, conforme decreto que
regulamenta a lei do programa (Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004),
Art. 11. A execução e gestão do Programa Bolsa Família dar-se-á de forma
descentralizada, por meio da conjugação de esforços entre os entes
federados, observada a intersetorialidade, participação comunitária e o
controle social. (Decreto nº 5.209 de 17 de setembro de 2004).
Sobre as competências e responsabilidades da União, dos estados, do
Distrito Federal e dos municípios na execução do Programa Bolsa Família, o referido
decreto traz o seguinte:
Quadro 14: Competências dos entes federativos no Programa Bolsa Família
Ente Federado
.
União (MDS)
Bolsa Família
(Decreto nº 5.209 de 17 de setembro de 2004)
Cabe ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome coordenar, gerir
e operacionalizar o Programa Bolsa Família e, em especial, executar as seguintes
atividades (Incluído pelo Decreto nº 7.332, de 2010):
I – realizar a gestão dos benefícios do Programa Bolsa Família;
II – supervisionar o cumprimento das condicionalidades e promover a oferta dos
programas complementares, em articulação com os Ministérios setoriais e demais
entes federados; III – acompanhar e fiscalizar a execução do Programa Bolsa
Família, podendo utilizar-se, para tanto, de mecanismos intersetoriais;
IV – disciplinar, coordenar e implementar as ações de apoio financeiro à qualidade
172
da gestão e da execução descentralizada do Programa Bolsa Família; e
V – coordenar, gerir e operacionalizar o Cadastro Único para Programas Sociais do
Governo Federal.
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Estados
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Municípios
e Distrito
Federal
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Constituir coordenação composta por representantes das suas áreas de saúde,
educação, assistência social e segurança alimentar, quando existentes,
responsável pelas ações do Programa Bolsa Família, no âmbito estadual;
Promover ações que viabilizem a gestão intersetorial, na esfera estadual;
Promover ações de sensibilização e articulação com os gestores municipais;
Disponibilizar apoio técnico institucional aos Municípios;
Disponibilizar serviços e estruturas institucionais, da área da assistência social, da
educação e da saúde, na esfera estadual;
Apoiar e estimular o cadastramento pelos Municípios;
Estimular os Municípios para o estabelecimento de parcerias com órgãos e
instituições municipais, estaduais e federais, governamentais e não
governamentais,
para oferta dos programas sociais complementares; e
Promover, em articulação com a União e os Municípios, o acompanhamento do
cumprimento das condicionalidades.
Constituir coordenação composta por representantes das suas áreas de saúde,
educação, assistência social e segurança alimentar, quando existentes,
responsável pelas ações do Programa Bolsa Família, no âmbito do Distrito Federal
(item específico do DF);
Designar área responsável pelas ações de gestão e execução do Programa Bolsa
Família e pela articulação intersetorial das áreas, entre outras, de saúde,
educação, assistência social e segurança alimentar, quando existentes; (Redação
dada pelo Decreto nº 7.852, de 2012);
Proceder à inscrição das famílias pobres do Município (ou Distrito Federal) no
Cadastramento Único do Governo Federal;
Promover ações que viabilizem a gestão intersetorial, na esfera municipal;
Disponibilizar serviços e estruturas institucionais, da área da assistência social, da
educação e de saúde, na esfera municipal;
Garantir apoio técnico institucional para a gestão local do programa;
Constituir órgão de controle social nos termos do art. 29;
Estabelecer parcerias com órgãos e instituições municipais, estaduais e federais,
governamentais e não governamentais, para oferta de programas sociais
complementares; (No caso do DF apenas com o DF e União);
Promover, em articulação com a União e os Estados, o acompanhamento do
cumprimento das condicionalidades. (No caso do DF apenas com a União).
Fonte: Levantamento bibliográfico da autora.
De maneira geral, analisando as competências trazidas nos quadros acima,
as quais incluem as responsabilidades nas ações de combate à pobreza, cabe à
União o papel de conduzir o processo de diretrizes nacionais, disponibilizando o
suporte de orientações e apoio técnico aos estados e municípios, assim como o
financiamento das ações. Para os estados, cabe o apoio técnico e institucional local,
articulado a ações de monitoramento na implementação e execução dos programas
e serviços nos seus respectivos municípios. E, finalmente, aos municípios, fica o
173
papel de executar, como também de promover articulações para garantir a
efetividade do previsto. É nessa instância que se encontra a concretização do
combate à pobreza.
É também no meandro dessas competências que se apresenta a real
construção das políticas públicas que torna complexa a indagação: a quem pertence
o pobre? Entram em cena assim elementos outros que fogem aos limites da
responsabilidade individual. Neste quesito, o jogo federativo (ABRÚCIO, 2005) ou a
barganha federativa (ARRECTHE, 1999) ficou evidente em campo, a começar pela
prioridade que os municípios e estados estabelecem. Dito em linguagem clara, as
“preferências” dos gestores locais por determinados programas e ou serviços mais
adequados para combater a pobreza.
Foi perceptível no campo de pesquisa a prevalência dos programas de
transferência de renda em detrimento das demais ações de combate à pobreza. A
ideia de que em curto prazo se obtêm resultados mais efetivos pode ser apontada
como causa desse fato. Os programas que oferecem retorno em longo prazo, no
caso da pobreza, não costumam ser prioridade nas gestões. Em se tratando de
políticas sociais, os gestores costumam pesar o custo-benefício decorrente da
implantação dos programas antes de realizar a adesão. Entra em jogo a barganha
federativa de obter um programa de transferência de renda no município.
Para se compreender a lógica das “prevalências” utilizada na escolha das
prioridades pelos gestores, pode-se apontar o exemplo do Bolsa Família. O PBF é,
na visão dos gestores, o que podemos denominar de uma espécie de programa
“limpo”, “enxuto”, ou seja, traz mais bônus do que ônus aos municípios para tê-lo
implantado e funcionando.
Contribui para isso o fato de ter um formato que estabelece fases de uma
relação direta, entre gestão federal e beneficiários, sem a necessidade da
intermediação da gestão municipal, tampouco uma estruturação física e logística
para tal. O aumento da promoção de meios de acesso à renda aos seus habitantes
é o maior atrativo. Com isso, é arregimentado um impacto quase imediato na
diminuição da pobreza relacionada à renda e, com consequências na dinamização
econômica para os municípios mais pobres, que não contam com a presença de
setores geradores de empregos em seus territórios.
A adesão e a implantação dos programas e serviços da política da assistência
social, que também tem como prioridade o atendimento aos sujeitos e famílias em
174
situação de vulnerabilidade e pobreza, seguem, no entanto, um percurso de maior
morosidade e menos prioridade nas opções da gestão municipal. Em termos de
investimento, a implementação dos serviços e programas da assistência social
acarreta para a gestão local ônus superior ao do PBF, a saber.
Na assistência social, a gestão local fica responsável por: implantar e
construir o equipamento público estatal onde se executa os serviços e programas, o
Centro de Referência da Assistência Social (Cras); contratar a equipe mínima de
referência prevista na PNAS, preferencialmente por concurso público, e ter parte no
financiamento dos serviços. Como forma de incentivo, deliberou-se que até 60% dos
recursos recebidos pelos municípios podem ser utilizados para pagamento de
trabalhadores dos serviços e programas.
Apesar da predileção pelas ações de transferência de renda, as orientações
normatizadas de ambas as ações (assistência social e PBF) preconizam que elas
são complementares. Não deve haver sobreposição ou qualquer tipo de hierarquia
entre ambas. Porém as entrevistas com os técnicos burocratas de rua retratam o
oposto, são muitos relatos de insatisfações entre aqueles que atuam nos Cras e
aqueles que atuam no PBF. Há uma percepção dos técnicos que trabalham nos
Cras de que eles são utilizados pela gestão local para desempenhar prioritariamente
as ações relacionadas ao Bolsa Família, em detrimento de suas funções originárias.
Nesse caso, o processo simultâneo de articulação entre a implementação do
Bolsa Família e das ações da assistência social, por meio do Suas, pode ser
analisado em um duplo sentido para Jaccoud (2014). O primeiro, enquanto parceria
no enfrentamento da pobreza e das situações de mais grave vulnerabilidade social,
e o segundo, enquanto construção institucional, integrando e fortalecendo ambas as
iniciativas.
Fortalecida nos anos 1990, a inferência de consolidação de uma agenda
política para eliminação da pobreza em busca da igualdade social já preconizava a
existência de uma expectativa para um reordenamento das políticas sociais de modo
a fazer com que a democracia política pudesse ser acompanhada de uma base
indispensável, pautada na democracia social fundada em maior equidade. Para o
conjunto do sistema de proteção social, tal demanda se deu por meio da ampliação
dos direitos sociais que se traduziu em metas de elevação dos graus de
universalismo, extensão da cobertura dos programas e melhoria da efetividade
social do gasto (DRAIBE, 1997).
175
Em nosso ponto de vista, com essa reflexão, depreende-se que, se por um
lado a expansão da democracia das políticas sociais ocorreu, por outro, as
capacidades de gestão e de instrumentalização do acesso a esses direitos não
avançaram da mesma forma. O que torna em certa medida, justificável a dificuldade
de execução e de articulação intersetorial sentida pelos técnicos burocratas de rua
diante das agendas para atendimento aos indivíduos e famílias considerados
pobres.
Os atendimentos voltados aos considerados pobres englobam uma vasta
agenda intersetorial de programas e serviços, o que, consequentemente, acarreta
sobreposições cotidianas nas responsabilidades e atividades cotidianas, e de
maneira mais ampla na organização das gestões locais. De maneira prática, ao
fazer adesão ao Programa Bolsa Família ou às ações de assistência social, o gestor,
indiretamente, passa a integrar um conjunto de outros programas e serviços. Faz-se
uma rede de articulação por vezes desconhecida pelo próprio gestor.
No centro da articulação se encontra o sujeito “pobre”, que é o foco prioritário
das políticas. O esquema a seguir retrata os principais programas e ações que estão
ou devem estar interligados no atendimento aos pobres, quando os usuários buscam
ações da assistência social (Cras) ou o Bolsa Família. Mostra também a
complexidade que está presente no cotidiano dos gestores e técnicos que executam
o combate à pobreza.
176
Esquema 1: Programas, serviços e o pobre
Fonte: Elaboração da pesquisadora.
177
Como pode ser visualizado no esquema, o aumento da oferta de serviços e
programas representa o fortalecimento no dever do Estado em levar proteção social
aos pobres, mas também representa o risco de uma proteção fragmentação do
sujeito pobre quando não se efetiva intersetorialidade meio a tantas variações de
ações. Os programas e serviços se apresentam de forma descentralizada entre
vários órgãos, entidades ou instituições. Assim, temos que um mesmo sujeito e/ou
família pode estar inserido em várias ações, sendo acompanhado por diversas
instituições ao mesmo tempo.
Dessa forma, concluímos que ser um pobre inserido nos programas e
serviços de combate à pobreza necessita de tempo e dedicação para cumprir uma
agenda “puxada” de contrapartidas exigidas para se manter neles. Todos os entes
querem e precisam da presença dos “pobres” para atingir metas e ter sucesso em
seus eventos. É comum os coordenadores de programas pactuar datas e horários
para suas ações de forma que os pobres possam estar em todas elas sem prejuízo
para
nenhuma.
Como
garantir
a
presença
dos
“pobres"
em
todos
os
acompanhamentos? Essa pauta é uma das dificuldades constantemente relatada no
cotidiano dos técnicos burocratas de rua que atendem aos pobres.
Nesse ínterim, as competências relacionadas aos pobres envolvem algumas
direções. Um percurso vindo da esfera federal até o sujeito pobre que representa a
centralidade de tudo, e um percurso inverso, do sujeito pobre até a esfera federal.
Ambos buscam a mesma finalidade, porém com olhares, tempos e percepções
diferenciadas,
que
levam
a
uma
disputa
simbólica
de
delegações
e
responsabilizações. O que pode ser visto nos relatos dos técnicos pertencentes às
três instâncias (União, estado e município) a seguir.
Afinal a quem pertence o pobre?
Gestora do PBF MDS – Brasília sobre gestores estaduais e municipais:
O programa é um programa complexo. Tem muita coisa para se entender.
Então a gente percebe que, por vezes, por eles (os gestores estaduais e
municipais) não dominar direito a legislação e as nuances do programa,
eles orientam as famílias errado. Acaba que o reflexo é muito grande para a
família. Então a gente pensa nisso, de atuar de maneira pontual (nas
capacitações) para que esse gestor possa trabalhar. Dar ferramentas para
que ele trabalhe melhor.
A gente (MDS/Senarc) não vai até o gestor municipal. A gente não tem
pernas. São apenas seis pessoas (na coordenação, aptas a capacitar) e a
Senarc tem um pouco mais de 100 servidores, nem isso. Então a gente não
consegue chegar até o gestor municipal. A gente monta estratégia de
178
parceria com os gestores estaduais para que essas ações cheguem até os
gestores municipais e técnicos.
Técnica do estado de São Paulo – sobre gestão da União:
Então, uma coisa que a gente coloca muito lá (referência à discussão na
gestão do estado de São Paulo) é que essa política que veio pensando os
Cras da forma como eles estão para atender município de Pequeno Porte I
não funciona, não tem como. Tanto é que a gente tá sofrendo uma pressão
grande do MDS para implantar mais Cras, que é o correto, está nas metas
de atingir, que em todo Brasil cada município tenha pelo menos 1 Cras. Mas
como a gente vai pedir para um município de 2 mil habitantes, não tô
falando nem de Porte I, tô falando até 10 mil (Porte II) para que ele tenha 1
Cras se ele nem tem um assistente social lá? Daí é uma responsabilidade
muito grande do gestor de assumir uma coisa e não poder pagar o salário.
Daí é uma coisa que a gente sempre foca: nossa, o MDS vai ter que
repensar novas forma para o Pequeno Porte I, isso aí (referência às regras
para ter um Cras) comporta para municípios de Pequeno Porte II, Médio,
Grande Porte, mas não para Porte I. A gente tá tentando dar um apoio, tá
gravando um material, vai lá dar apoio, mas são realidades muito distintas,
mas não pelo fato de ser o estado de São Paulo a princípio, mas sim pelo
fato de ser município de Pequeno Porte I.
Gestora estadual do PBF – estado Pará (Região Norte) sobre gestão
dos municípios e União:
Eu mudaria a questão do conhecimento do gestor da assistência sobre o
que é política de assistência, pois a gente não tem gestor que conhece.
Tem que haver capacitação do Suas para os técnicos. Informação pra mim
é tudo. O próprio acesso e conexão de internet. Os municípios não
conseguem acesso por falta da internet. O Ministério não vê o fator
amazônico na questão de alimentação dos sistemas e prazos dos sistemas.
O município não consegue nem cadastrar a senha. As equipes são
mínimas.
Gestor Municipal de Mesquita-RJ sobre gestão da União (MDS):
Creio que o PBF deveria dialogar mais intersetorial. Por exemplo, pontos
além da educação e saúde. É a qualidade de ensino, a condição do
professor na sala de aula também. Daí vem de cima pra baixo e não de
baixo para cima, daí não consegue (o êxito com o programa). Tem coisas
que tem que trazer pra problematização. Não é aqui em cima (referência às
diretrizes do MDS) resolver o que é bom pra eles (para os usuários do
programa), e eles (os pobres e usuários) o que eles acham que é bom pra
eles?
Apesar da existência formal dos fóruns de debate, construção coletiva de
diretrizes e entendimentos de serviços e programas, a fala dos gestores e técnicos
de nível de rua permite a visualização de um movimento que reproduz a perspectiva
da hierárquica dualizada de delegação, monitoramento e controle. Isso aparece
claramente nas falas dos entrevistados em expressões como “de cima para baixo e
não de baixo para cima”, “lá eles têm a realidade ideal e aqui temos a realidade real”
etc. Esses elementos perpassam todas as esferas, federais, estaduais e municipais
e variam conforme poder político de cada ente e sujeito político. Quanto menor
179
poder de barganha política, maior a sensação de submissão. Quanto maior esse
poder, maior a sensação de controle das ações.
No nível de rua, tal fato pode ser entendido pela exigência de respostas
imediatas que se impõe aos técnicos e gestores que trabalham na linha de frente do
combate à pobreza nos municípios. Na gestão municipal, a realidade bate à porta
nua e crua, as demandas são diversas e, na maioria das vezes, compostas por
situações que exigem resoluções ou encaminhamentos rápidos. A característica dos
problemas que chegam para ser atendidos como demandas dos usuários são casos
de emergência. São necessidades como fome, extrema pobreza, abandono, casos
de violência, abusos sexual na família, dentre outros.
Os técnicos de nível de rua são os atores sociais que, no jogo de
competência e responsabilização, lidam diariamente com tal cenário que envolve os
usuários dos programas e serviços de combate à pobreza e as políticas públicas.
Cabe a eles a função de atender e qualificar as ações de atendimento aos
considerados pobres de maneira que proporcione uma ação pautada nos direitos
sociais
desses
sujeitos,
distanciando-se,
assim,
da
perspectiva
histórica
estigmatizadora do atendimento ao pobre como esmola e favor. A indagação que se
faz nesta pesquisa é como tem se configurado esse cenário de atendimento e qual a
contribuição desses atores, pela importância que eles têm na concretização do
combate à pobreza.
5.3.1 Desafio da prática: a responsabilização do outro
Este tópico apresenta a parte conclusiva dos dados apresentados neste
capítulo, que delimitou o campo de pesquisa e a estrutura encontrada para a
articulação dos entes federativos na execução do combate à pobreza. Essa
estrutura significa também o locus de atuação dos técnicos burocratas de rua que
combatem a pobreza.
Em termos conclusivos vislumbramos que o locus de atuação dos técnicos
burocratas de rua e as suas implicações culminam numa tensão da deficitária
articulação e coordenação da rede intersetorial de equipamentos estatais
pertencentes
aos
três
níveis
de
governo
quando
se
trata
das
ações
institucionalizadas do combate à pobreza. A tensão não se encontra na construção
180
de espaços plurais e deliberativos onde sejam pensadas e planejadas ações
conjuntas entre governo e sociedade civil. Esses espaços existem funcionando com
regularidade, tal como os conselhos locais que acompanham o desenvolvimento dos
programas e serviços.
A estruturação prática da coordenação intersetorial das ações do combate à
pobreza no PBF vista no campo de pesquisa apresenta elementos identificadores da
dificuldade de materialização das ações integradas conforme as diretrizes tomadas
nos espaços coletivos deliberativos.
Os dados de campo apontam para uma institucionalização da pobreza
composta por uma “disputa” da não responsabilidade. Nas falas dos técnicos, antes
apresentadas,
a
responsabilidade
pelo
“pobre”
é
sempre
atribuída
à
responsabilidade do outro. Na prática, esse “outro” se configura desde a
responsabilização da categoria profissional técnica mais próxima do cotidiano de
trabalho, podendo ir até instâncias como equipamento estatal ou ao outro nível de
gestão de governo.
A responsabilização do outro é configurada na prática em um jogo de
cobranças e delegação de responsabilidades entre os níveis hierárquicos de gestão,
neste caso o elemento delimitador perpassa quem detém maior poder político. Em
resumo: a União apoia e monitora os estados, que, por sua vez, apoiam e
monitoram os municípios, que, por sua vez, buscam dentre os seus iguais, ou seus,
“vizinhos”, os municípios que apresentem uma melhor estrutura e que possam
receber as suas demandas.
Nesse caso, as oposições político-partidárias têm forte peso na divisão de
responsabilidades. Pode ocorrer que um município fique isolado e tenha que buscar
parcerias em outros municípios mais distantes de seu território de atuação, caso não
pertença à mesma linha política de seus “vizinhos” mais próximos.
A maneira prática encontrada pelos técnicos burocratas de rua para lidar com
esse cenário é realizar um movimento de instrumentalização da gestão. Faz parte
dessa capacidade técnica: dispor de uma forte articulação interna entre órgãos das
prefeituras; forte articulação com municípios vizinhos para que se tenham
viabilizados encaminhamentos e os atendimentos dos casos enviados, dentre
outras.
Sobressai, nesse caso, além da capacidade técnica de gestores e técnicos do
nível de rua, o conhecimento pessoal com sujeitos que tenham significativa
181
influência meio a esses órgãos. Seria o poder de acionar, nos casos mais críticos de
atendimento ao usuário, uma rede pessoal de conhecimento para resolução das
problemáticas que chegam aos equipamentos. É a esse movimento que uma das
gestoras entrevistadas chama de “a forma de aprimorar o jeito de gerir a coisa”.
Cada gestão aprimora uma maneira de gerir a coisa né? Apesar de ter uma
orientação nacional, uma diretriz nacional, de ter tudo para fazer
corretamente, o município tem a sua estratégia, ele tem a sua autonomia,
né, para fazer da forma que acha, né? (Gestora municipal de assistência
social de Ananindeua – Pará).
Assim, o êxito dependerá da experiência e conhecimento dos trâmites do
serviço público, como também da articulação política e do seu poder de barganha.
Aqueles que têm longos anos de experiência terão facilidade de se inserir nesse
cenário, enquanto os menos experientes apresentarão maior dificuldade.
É notório que o poder de barganha na estruturação prática da política não se
encontra somente entre as instituições, mas também passa pela sociedade civil. Um
fato curioso foi relatado na situação exposta pela mesma gestora municipal citada
acima, e ocorreu quando moradores de uma das áreas mais pobres do município
usaram da mesma estratégia de barganha política dos gestores locais para
conseguir a implantação de suas reivindicações. Os moradores, organizados,
impuseram como barganha ao prefeito  que tinha um projeto de implantar um
equipamento público (Centro de Referência da Assistência Social – Cras) no local 
a condição de que apenas aceitariam o Cras se antes recebessem o asfalto no
bairro.
O Distrito fica próximo ao Sairé. É uma área de extrema precariedade, que
não tem equipamento público existente. Lá já foi colocada uma escola nova,
foi colocado o Cras. Agora vai passar a via de asfalto lá porque as famílias
lá já estão mobilizadas que só vai ficar o Cras se passar o asfalto. Eu acho
isso ótimo, porque movimenta com o município a criar estratégia de
mobilização mesmo dos serviços. Só vão deixar inaugurar o Cras se asfaltar
a rua. Então, como o prefeito quer inaugurar, ele vai asfaltar a rua. (Gestora
municipal de Assistência Social de Ananindeua – Pará).
Assim, podemos afirmar que, no campo da coordenação das ações
intergovernamentais no combate à pobreza, cada experiência de diálogo entre as
gestões, como disse a entrevistada, “aprimora um jeito de gerir a coisa”. Esse
espaço de “aprimoramento” ou “esse jeito” é a instrumentalização prática para driblar
182
as dificuldades encontradas, pois as expectativas e diálogos entre as diversas
gestões e os considerados pobres se constroem a partir de suas necessidades reais
e cotidianas.
Concluímos, assim, que no âmbito da estruturação prática do combate à
pobreza nem sempre a forma de gestão acontece conforme o trâmite formal previsto
e institucionalizado. Ela escapa ao campo burocrático. Assim, os acordos não
decorrem de reuniões deliberativas, de planejamentos estratégicos. Pelo campo com
os entrevistados, pode-se inferir que os meandros cotidianos da prática técnica,
quando não julga a responsabilidade do outro para justificar ausências em sua
estrutura de gestão, trabalha com articulações diversas, muitas vezes, pactuadas
em uma esfera da informalidade de acordos em detrimento de uma burocracia
formalizada de procedimentos prevista na competência de cada ente federativo.
183
Capítulo VI – Os técnicos burocratas de rua: a percepção sobre o pobre e a
pobreza
6.1
A trajetória: quem são os técnicos burocratas de rua que combatem a
pobreza
No caso de um tema com histórico de estigmas e desqualificações como a
pobreza, identificar o perfil dos atores que operacionalizam cotidianamente as
atividades direcionadas aos pobres pelo Estado traz elementos esclarecedores.
Esse recorte analítico que envolve a atuação dos técnicos de nível de rua requer
que identifiquemos quem são esses profissionais, qual percurso os levam às
funções que exercem, quais construções sociais trazem consigo ao assumir a
função pública de trabalhar com os pobres.
O resultado da pesquisa de campo mostra que as trajetórias dos burocratas
de rua que combatem à pobreza são os mais diversos, como verificamos nos
depoimentos:
Sou estudante de Serviço Social, gestor do PBF, do Cadastro Único. Eu
estou há um ano e meio lá. Entrei na gestão no início do ano e no meio do
ano ingressei no curso de Serviço Social. Estou há um ano e meio atuando
nessa área de combate à pobreza, nas áreas mais vulneráveis no município
de Mesquita no Rio. (Coordenador do PBF, Mesquita-RJ).
Não sou concursada, aqui a gente trabalha por contrato. Foi um amigo de
meu pai que me conseguiu a vaga, na época ele era vereador (amigo do
pai) e aí eu consegui através dele. (Técnica do PBF, Feira de Santana-BA).
Sou formado em educação física (Universidade de Ribeirão Preto-SP) vim
para cá a trabalho. Trabalhei em área competitiva esporte e rendimento até
prestar o concurso da Secretaria para Educador Social e daí entrei como
educador social na área de esporte e lazer. Eu fui lotado durante quatro
meses no almoxarifado, aí fiz o que pude para ajudar lá até que se
achassem as lotações certas. Aí vim direto para Sobradinho e fui convidado
pela atual diretora de convivência. Trabalhei aqui no Serviço de Convivência
em 2009, 2010, 2011 como educador social na área de esporte e lazer, fui
criando uma relação com a diretoria em 2011, mostrando meu trabalho do
serviço através de relatório qualitativo que nós fazíamos, não era uma
obrigação, mas a unidade tinha uma vontade de tá mostrando, então essa
gestão que entrou em 2010 veio com uma perspectiva muito boa de
qualidade e não de quantidade e eu era uma pessoa que acabei me
tornando um pouco líder aqui, porque eu era muito contra essa questão de
quantidade. E aí eu comecei esse trabalho de coordenação que aqui que
eles chamam de chefia, o cargo é chefe de centro de convivência. (Técnico
da Assistência Social, Sobradinho-DF).
Tem cinco anos e meio que tô no programa. Antes eu só trabalhei em
comércio. Sempre trabalhei com mercado da família. Aí eu estava
184
desempregada quando fui convidada para trabalhar. (Técnica do PBF-,
Simonésia-MG).
Os técnicos burocratas de rua municipais entrevistados, em sua maioria, eram
sujeitos que procuravam o ingresso no mercado de trabalho e conseguiram chegar
às suas funções por meio de indicação, com vínculo de contratação considerados
precarizados (contrato temporário, terceirização de mão de obra etc.), em outros
casos, por aprovação em concurso público. Para a maioria deles, trabalhar no
atendimento aos pobres foi o primeiro emprego formal. Esse fato se explicitou para a
pesquisadora tanto no depoimento quanto na dificuldade de os entrevistados
apresentarem nas suas falas experiências anteriores de trabalho e na falta de
conhecimento da área específica dos programas em que atuam.
Quando eu cheguei no Bolsa eu não tinha experiência e nem sabia na
verdade o que era o Bolsa Família. Eu trabalho atendendo ao público,
atualizando cadastro, lançando o cadastro no Sistema [...]. Foi muito fácil
para mim aprender, porque eu sempre gostei de trabalhar. [...] Para mim é
muito gratificante trabalhar com esse público do Bolsa Família, porque a
gente vê vários tipos de famílias, vários problemas diferentes. (Técnica
PBF, BA-Região Nordeste).
A mesma condição de falta de experiência foi identificada no depoimento
da gestora de um município de pequeno porte no interior do estado de Santa
Catarina na Região Sul do país.
Na verdade eu fui chamada só para resolver os problemas do Programa
Bolsa família. E quando cheguei lá eu vi que era bem mais que resolver
uma dúzia de problemas como o prefeito falava. Então agora ele me
chamou para outro cargo, sou gestora de projetos, porém continuo com a
gestão do Bolsa. Eu não tinha experiência nenhuma com isso. Já havia
trabalhado em cargo efetivo na prefeitura, porém nunca na parte de
assistência. (Gestora do PBF – SC- Região Sul).
Um dado relevante é a predominância nos municípios de um corpo técnico
com faixa etária jovem, apresentando uma média de idade em torno de 20 a 35
anos. A maioria deles estando em seu primeiro emprego, recém-formados ou
cursando faculdade. Também não apresentam experiência de trabalho com política
pública. Esse dado tem consequência direta na perspectiva que os técnicos
185
burocratas de rua nesse perfil lidam e observam a prática com os pobres que
atendem.
O percurso dos técnicos estaduais se diferencia dos municipais. Em sua
maioria são servidores efetivos concursados de muitos anos. Quando não
concursados, ainda assim apresentam currículo com nível de qualificação
profissional elevado, como podemos ver no exemplo da trajetória da técnica da
secretaria de desenvolvimento social do estado de São Paulo.
Minha formação é em ciências sociais, fiz mestrado em sociologia urbana
na área de violência na USP, graduação e pós. Entrei na secretaria de
desenvolvimento social do estado em 2009, depois de um concurso público
feito em 2007, estou há 5 anos na secretaria, na área de proteção social
básica, na coordenadoria de ação social. Mas a minha vontade de entrar
(no serviço público) foi que desde que cheguei em são Paulo, porque sou
de Guaratinguetá, eu via pessoas na rua aí eu pensava “como que eu vou
trabalhar em outra área que não seja essa, ligada a isso?”. Aliás, eu nem
sabia da existência da secretaria de estado que trabalhava na área de
assistência social. Eu nem sabia que tinha virado política nacional, porque
na sociologia a gente não aprende as políticas públicas: SUS, Suas, o que é
um absurdo em nossa formação. Daí o que aconteceu: dentro da USP fiz
ciências sociais, depois trabalhei no núcleo de estudo e pesquisas, que é o
NEEP, que estuda violência, daí fiz o mestrado orientada pelo Sergio
Adorno. Quando eu concluí tudo, eu falei: “e agora? Para onde eu vou?”
Cheguei no topo da montanha e olhei o horizonte e pensei: “vou fazer
concurso público? Vou para a área de pesquisa? Vou dar aula?” Daí fui
prestar concurso público.
Outras gestoras apresentam a qualificação pelo tempo de trabalho e atuação
na área de políticas públicas sociais e acompanham o percurso de combate à
pobreza no Brasil durante os anos.
Com cargo de gestão desde 2009 para cá (ano de 2014), porém tenho 31
anos de serviço público [...] passei a trabalhar na assistência social, passei
a trabalhar nos programas a partir de 2006. Tive a oportunidade de
trabalhar na implantação de um restaurante popular e desde então passei a
trabalhar nos programas. (Gestora na Secretaria Estadual do Pará).
Sou formada em Serviço Social, tenho pós-graduação em gestão pública e
trabalho há 9 meses como técnica da Secretaria de Renda e Cidadania do
estado do Paraná. Anteriormente tive experiência no Ministério Público do
Paraná, na promotoria de direitos humanos, onde se trabalha
principalmente com políticas de assistência. (Técnica de assistência social
do estado do Paraná).
Estou trabalhando há 14 anos na gestão pública da política de assistência.
Inicialmente eu trabalhei na gestão pública em Brasília, no âmbito Federal,
no Ministério de Assistência Social em 2003 e, a partir de 2004 a janeiro de
2011, no atual MDS. Na sequência eu fui convidada a assumir trabalho na
gestão estadual no Estado do Rio de Janeiro. No Rio eu estou há três anos.
(Gestora estadual do Rio de Janeiro.).
186
Dentre os desafios que a prática do combate à pobreza traz aos técnicos e
gestores, está um eixo comum que perpassa todos os profissionais que trabalham
com os pobres, qual seja: desenvolver habilidades para enfrentar situações que
requerem resoluções rápidas. Assim, a pesquisa ratifica que a noção de política
pública de pobreza como espaço do alívio imediato das urgências não é
ultrapassada quando se considera a prática desses profissionais.
O combate à pobreza, prioritariamente, no nível municipal exige um perfil
técnico dos burocratas de nível de rua que esteja preparado para lidar com
situações de urgências e emergência no dia a dia. Esse é um dos principais
balizamentos conceituais da prática de trabalho com os pobres desses sujeitos, e
independe das características regionais, dos territórios de atuação e da qualificação
de cada técnico.
Os termos emergência e urgência63 são denominações utilizadas nos
protocolos de atendimento previstos na área dos serviços da Saúde. Na política de
assistência social e no Programa Bolsa Família inexistem protocolos metodológicos
empregando o uso dos termos. Porém, cabe adequadamente à realidade vivenciada
pelos técnicos que atendem aos pobres, e desse aspecto decorrem consequências
significativas.
Tal realidade faz com que predomine entre os técnicos o sentimento de
impotência, desânimo e descrédito no próprio trabalho que executam pelo fato de
não conseguirem resolver adequadamente os casos mais críticos que atendem pela
falta de infraestrutura ou articulação da rede intersetorial necessária. Na visita ao
município de Feira de Santana-BA, a conversa com técnicos da equipe de
atendimento do Cras localizado em área de alta vulnerabilidade e pobreza trouxe
relatos sobre a complexidade dos casos que chegam até eles:
63
Emergência é todo caso em que há ameaça iminente à vida, sofrimento intenso ou risco de lesão
permanente, havendo necessidade de tratamento médico imediato. Alguns exemplos de emergências
são a parada cardiorrespiratória, hemorragias volumosas e infartos que podem levar a danos
irreversíveis e até ao óbito. Urgência é uma situação que requer assistência rápida, no menor tempo
possível, a fim de evitar complicações e sofrimento. São exemplos de urgência: dores abdominais
agudas e cólicas renais. A avaliação sobre o que é emergência e o que é urgência é feita no
momento da triagem médica, quando se avalia o quadro, os potenciais riscos, a dor e o sofrimento do
paciente.
187
CASO 1: uma mãe que no ano de 2013 teve um filho de 17 anos
assassinado. O filho de 16 anos cometeu um assassinato em fevereiro de 2014 e
está detido. O filho de 12 anos já se encontra envolvido no tráfico. Desesperada e
sem saber o que fazer, quando a mãe sai para ir ao Cras, deixa o filho de 12 anos
acorrentado em casa, pois ela não sabe como fazer para “segurar” o filho viciado.
CASO 2: uma adolescente de 16 anos foi deixada pela mãe no orfanato aos 4
anos. Saiu do orfanato aos 12 anos, engravidou de um rapaz usuário de drogas e,
no momento atual, tem um segundo filho que ela deu para outro familiar cuidar. O
pai da criança soube da doação e ameaçou matá-la. Ela vive com as duas crianças
e não tem para onde ir, dorme de favor na casa que aceita que ela passe a noite.
CASO 3: uma mãe com sete filhos mora à margem de uma lagoa existente no
local. O marido, pai de seis dessas sete crianças, encontra-se no presídio. Ela
recebeu uma casa de um programa de habitação, mas se recusa a mudar de
moradia, porque gosta de morar próximo à lagoa e teme que no outro local não
exista infraestrutura necessária (vizinhos, comércio etc.). Ela faz tratamento no
CAPs (Centro de Atendimento Psicossocial) e cuida dos filhos sozinha. Em
determinados dias, devido à dosagem alta de medicação que toma, ela não
consegue acordar. Diante da situação, as filhas de 14 e 15 anos são as cuidadoras
dos outros irmãos menores e, dessa forma, não frequentam a escola.
Em alguns casos outros, o que está posto na prática cotidiana desses
profissionais é o limiar da vida ou morte de um ser humano.
Houve um caso de uma líder comunitária aqui da comunidade que chegou
na frente do Cras, me chamou e abriu a porta do carro para eu ver. Era uma
senhora que tinha HIV e ela estava quase morrendo para que pudéssemos
ajudar o caso. Essa senhora morreu há quinze dias. (coordenadora do
CRAS/ Feira de Santana).
Operacionalmente, o cotidiano de trabalho com essas demandas faz com que
os técnicos racionalizem suas ações de duas maneiras principais: 1. Com a
apropriação e responsabilização pessoal pelos casos; e, 2. desencadeando um
processo de descrédito na efetividade dos programas e serviços que executam. O
primeiro modo ocorre nos casos complexos, em que os técnicos articulam sua rede
de contatos pessoais, como amigos, familiares ou conhecidos que trabalham em
188
órgãos e instituições que geralmente são articulados para resolução dos problemas
atendidos. Esse mecanismo informal de mobilização de recursos para viabilizar o
atendimento dos usuários em casos graves demonstrou ser uma prática muito
presente na operacionalização cotidiana dos profissionais na execução do combate
à pobreza.
A segunda alternativa esteve presente em quase todas as equipes visitadas.
A constatação de que os burocratas de rua são, em sua maioria, desacreditados nas
ações que executam é um dado de pesquisa. Acreditam os burocratas de rua que
dificilmente contribuem ou serão capazes de dar viabilidade necessária aos casos
complexos atendidos. Esses sujeitos têm o ponto de vista de que não são
detentores do poder político relacionado ao capital político de mobilização no
território da rede de articulações. E dessa forma, sentem-se impotentes diante
algumas situações, como a ausência dos equipamentos estatais necessários para
um encaminhamento adequado aos usuários.
Assim, constatamos que a adequação da racionalidade na hora de agir no
combate à pobreza com o público atendido surge da realidade posta aos atores, de
maneira que a construção dos conceitos de pobreza emerge da práxis cotidiana.
O processo de responsabilização das situações remete a um dos traços
característicos do trabalho dos burocratas de rua nos programas e serviços de
combate à pobreza, que é a flexibilidade de exercer o seu poder discricionário tanto
de maneira formalizada quanto por iniciativa pessoal. A responsabilização é uma
tentativa de atender aos casos de maneira mais igualitária, mesmo quando não há
instrumentalização necessária.
Isso ocorre como forma de alcançar a resolução e encaminhamento de
questões repentinas que surgem no decorrer da rotina e exigem solução imediata
em decorrência da urgência do caso. A tomada de decisão nesses casos é uma
forma comum de lidar com o inesperado nos equipamentos públicos que trabalham
com pessoas em situações de vulnerabilidade social. Nesse momento de lidar com
as adversidades, a classificação de prioridades é realizada pela racionalização
pautada num social stereotypes, como relata Lipsky (2010).
At best, street-level bureaucrats invent modes of mass processing that more
or less permit them to deal with the public fairly, appropriately, and
thoughtfully. At worst, they give in to favoritism, stereotyping, convenience,
and routinizing all of which serve their own or agency purpose. (LIPSKY,
2010, p. 29).
189
Os limites relacionados ao poder de decisão, à maneira como veem a
responsabilidade e as expectativas, também foram verificados na teoria de Lipsky
(2010) na atuação dos burocratas de rua. Para o autor, lidar com a incerteza é um
dos maiores desafios para esses profissionais que partilham de uma rotina
constantemente desafiada pelo limite do tempo hábil e das informações corretas
para tomadas de decisões.
Bureaucratic decision making takes place under conditions of limited time
and information. Decision makers typically are constrained by the costs of
obtaining information relative to their resources, by their capacity to absorb
information, and by unavailability of information. However, street-level
bureaucrats work with a relatively high degree of uncertainty because of the
complexity of the subject matter (people) and the frequency or rapidity with
which decisions have to be made […]. (LIPSKY, 2010, p. 29).
No entanto, além dessas situações, desenha-se em campo a exigência do
perfil do burocrata de rua que os usuários pobres atendidos esperam. Um exemplo
interessante foi encontrado no município de Davinópolis, de pouco mais de dois mil
habitantes, localizado no estado de Goiás. Segundo relato da gestora entrevistada,
não existia morador do município com nível superior para ser contratado e atuar no
Cras. A solução encontrada foi buscar profissionais do município vizinho.
No referido município pelo pequeno porte que apresenta, ainda permanecem
as relações sociais de vizinhança e parentesco como a principal forma de
sociabilidade local. De maneira que todos conhecem todos. Com isso, ocorreu uma
espécie de “rejeição” às técnicas burocratas de rua contratadas do outro município
para atender no Cras. Os moradores passaram a não frequentar o Cras por “não se
sentirem à vontade”, nem queriam partilhar sobre suas questões com as pessoas
“estranhas” ou “desconhecidas” que trabalham por lá (no Cras).
O exemplo é claro para demonstrar que, na experiência atual da relação
estabelecida do atendimento às pessoas pobres nos programas e serviços, há uma
construção para além de dados meramente objetivos e materiais. Existe, sim, uma
expectativa, por parte dos usuários, de estabelecer uma relação de subjetividade e
acolhimento em que ele (o usuário pobre) seja entendido na sua integralidade de
sujeito. É o esperado que o “foco” seja na sua biografia de vida mediada pelas
dificuldades enfrentadas na vida e não que ele seja apenas atendido e contabilizado
como previsto nos procedimento formais dos manuais.
190
Pela multidimensionalidade da pobreza e sua complexidade, não se espera
que o atendimento seja considerado sem traços reconhecimento das situações
vividas pelos pobres. Cada vez mais a relação prática cotidiana do combate à
pobreza tem exigido uma interação que ultrapassa o caráter burocrático e material
das ações e dos atendimentos.
Por mais paradoxal que seja sob o ponto de vista do objetivo burocrático,
quando os moradores de Davinópolis não utilizam os serviços do Cras por achar que
as pessoas que atendem são “estranhas” ou “desconhecidas” demonstra que os
usuários dos programas e serviços de combate à pobreza buscam no atendimento
um estabelecimento de vínculos entre as partes. Seria uma forma de aproximação e
sensibilização que significa um reconhecimento de suas necessidades e sofrimentos
e angústias por parte dos técnicos ou da equipe com os quais vai interagir.
Nessa perspectiva analítica, pesquisas sobre beneficiárias de programas de
transferência de renda (MELLO JUSTO; 2009; REGO; PINZANI, 2013; ÀVILA, 2013)
apontam que a inserção em tais programas significa adentrar em processos
subjetivos dos sujeitos. Dentre estes estão o fortalecimento de autoestima, a busca
pela autonomia e a valorização e constituição de vínculos.
Se o papel das técnicas (referência da autora aos profissionais que aqui
nesta pesquisa são denominados burocratas de rua) para o
desenvolvimento do programa se mostrou bastante importante, como foi
indicado até agora, por outro lado não se pode negligenciar a participação
das beneficiárias como tal, figuram como personagens centrais do PGRFM,
sendo em si responsáveis pelos resultados do programa [...] as mudanças
de caráter subjetivo e político-cultural que começaram a surgir entre as
beneficiárias não poderiam existir se não houvesse por parte delas uma
reelaboração de tudo o que é falado e passado pelas técnicas. (JUSTO,
2009 – grifos nossos).
Porém, vale problematizar que essa “nova” configuração exige dos técnicos
burocratas de rua um perfil cada vez mais qualificado para lidar cotidianamente com
o aspecto da “subjetividade” no atendimento aos pobres e suas famílias. Apesar da
tendência encontrada em campo do crescimento da presença de profissionais com
nível superior compondo as equipes, isso não significa conhecimento ou qualificação
191
adequados64. Esse fato foi retratado pelos responsáveis que monitoram ou apoiam
as execuções em outros níveis de gestão:
Todo dia aqui na secretaria (secretaria estadual) atendemos gestores e
técnicos dos municípios, viajamos para monitoramento e notamos que
houve um retrocesso nos trabalhos. Muitos gestores com formação mínima
para ter discernimento dos processos de trabalho, as equipes de trabalho
absorvendo profissionais recém-formados sem ainda a experiência
necessária. Porque também a política é muito dinâmica e daí não dá conta
de acompanhar os conhecimentos. [...] A gente fica refletindo como vamos
atender, porque, assim, o município pequeno ele tem um assistente social e
um psicólogo. Isso quando consegue contratar. Mas e aí? É porque o
município não quer contratar? Não. É porque o psicólogo não quer ir para
esse município porque é longe. Na maioria das vezes ficam apenas dois
técnicos de nível superior para dar conta de toda demanda do município.
(Gestora estadual de Assistência Social, Pará – 2014).
Sob o ponto de vista da gestão federal, na opinião do técnico responsável por
viagens de capacitação dos gestores estaduais e municipais do Programa Bolsa
Família em todo o país, existe uma defasagem no conhecimento e na qualificação,
Pelo que a gente viaja, pela capilaridade que é o país e pela forma que são
escolhidos os gestores, a gente vê que, às vezes, são pessoas de nível
médio que não têm conhecimento profundo de assistência social como um
todo. Às vezes têm (conhecimento), mas não são todos que têm. Os
gestores costumam ser assistentes sociais, mas não é necessário que seja.
Eles têm conhecimento das normas que a gente passa. Quer dizer, tem
conhecimento que existem documentos, informes de gestores etc.
Conhecem muito pouco da legislação específica do Programa Bolsa
Família. Eles conhecem, sabem que existe, mas têm dificuldade de leitura,
de compreensão mesmo. Então são pessoas que têm capacidade, têm
muito interesse, fazem ótima gestão, têm ótimas ideias, mas muitos,
realmente, também precisam ser capacitados. (Gestor no PBF/MDS, 2013).
Apontamos dois pontos de análise importantes a partir dos depoimentos. O
primeiro, a expectativa e centralidade nos técnicos burocratas de rua municipais
64
Vale ressaltar algumas singularidades sobre a tendência encontrada no aumento do número de
profissionais de nível superior atuando nos municípios de pequeno porte I (até 20.000 habitantes). A
hipótese é de que o aumento da presença nos estados e municípios de universidades que trabalham
por meio do formato EAD (educação a distância) venha impactando esse dado. Alguns cursos podem
ser feitos 100% por meio virtual, em outros casos podendo ser realizados com encontros presenciais
(1 vez por mês, quinzenalmente etc.). Assim é significativo o número de profissionais encontrados
nos municípios que conseguiram concluir o curso superior por meio de estudo a distância. É um
procedimento recorrente serem firmadas parcerias/acordos com as prefeituras locais com objetivo de
“qualificar” o “corpo técnico”. Foi raro um município durante as visitas que não tivesse em sua área de
abrangência a prestação de serviço de uma faculdade que ofertasse esse tipo de formação às
equipes técnicas.
192
como sendo uma peça chave para sucesso das ações. Em que a ausência desses
profissionais ou a falta de conhecimento e qualificação para o trabalho configura um
fator que põe em risco o desenvolvimento das ações de combate à pobreza
localmente. Recai, assim, sobre esses sujeitos um processo de responsabilização e
exigência de qualificação para o êxito das ações.
Confirma-se também, como um segundo ponto, a hierarquia estabelecida nas
relações federativas aqui já tratadas. Apesar da existência de um pacto de
integração no apoio mútuo e reconhecimento da autonomia dos entes, os municípios
parecem ser o foco do sucesso ou insucesso da ação. No momento em que a
técnica do estado identifica a “desqualificação” dos técnicos municipais, fala-se da
incapacidade de gestão ou da responsabilização do outro, que na maioria dos
discursos é tida como sendo uma responsabilidade do município.
Pontos como a “desqualificação” ou “falta de conhecimento” dos técnicos de
nível de rua acaba sendo um discurso recorrente ouvido no depoimento das equipes
estaduais para justificar a baixa otimização dos resultados dos programas e serviços
nos municípios. A responsabilização do outro da atuação dos burocratas de rua na
implementação de uma política pública é um ponto de tensão no cenário de combate
à pobreza.
Outro dado analítico relevante é o alto rodízio de profissionais nas gestões.
Isso causa implicâncias diretas na atuação dos técnicos burocratas de rua. Em
algumas regiões visitadas, observou-se dentre as queixas dos gestores e técnicos
entrevistados a dificuldade de encontrar técnicos para ocupar as vagas nos
municípios com distância geográfica maior. A Região Norte do país se destaca pela
grande dificuldade de quadro dos profissionais burocratas de rua 65. Nas demais
65
A diversidade territorial Amazônica foi um dos fatores para a pesquisadora mais desafiadores para
atuação dos técnicos na execução e concretização do combate à pobreza, tendo destaque para as
condições de deslocamento disponibilizadas. Segundo relato dos técnicos, para o deslocamento aos
municípios de Regiões de Ilhas, comunidades indígenas e área de fronteira quase sempre é
necessário a utilização dos três meios de transporte: carro, balsa e avião. Os voos têm custo alto
para as secretarias do estado, dessa forma, na maioria das vezes, os técnicos se deslocam em
balsas e, quando possível, de carro. As estradas não apresentam boas condições. Na grande parte
dos territórios não existe acesso terrestre. As viagens de balsa para um acesso de distância média,
duram em torno de 3 a 10 horas atravessando rios, e em alguns casos duram dias. O estado não
dispõe de transporte aéreo oficial para deslocamento de suas equipes. Algumas vezes, em situações
urgentes, é solicitado reforço e apoio logístico do exército. O receio das situações de risco durante as
viagens fez com que reduzisse o número de técnicos da equipe da Proteção Social Básica que fazem
visita aos municípios. No ano de realização da pesquisa no estado do Pará (2014), um avião de
pequeno porte que fazia o deslocamento com uma equipe da Secretaria de Saúde do estado, que
viajava a trabalho ao município de Jacareaganca, localizado a 900 km de Belém, desapareceu na
floresta, sem sobreviventes. Conviver com essas situações, segundo depoimento da técnica
193
regiões, os municípios afastados da capital e área metropolitana também sofrem a
dificuldade de manter equipes completas nas suas ações de atendimento aos
pobres.
O nível de habilidade e conhecimento que o técnico terá do território em que
atua é fator relevante para lidar com os elementos decorrentes do contexto social,
cultural, simbólico e econômico dos indivíduos. Nesse sentido, é preconizado nas
orientações técnicas dos programas de combate à pobreza que, partindo desse
conhecimento, haja por parte dos técnicos melhor desempenho das suas funções
como também do controle das situações de risco e vulnerabilidade enfrentados
pelos considerados pobres.
O fato de o técnico não ter familiaridade ou não conhecer a realidade social
vivenciada pelo “pobre” no território causa um desconhecimento dos principais
fatores de vulnerabilidade social existentes dentre os considerados pobres, como
consequência disso podendo ocasionar uma falta de habilidade de lidar com as
situações que chegam até os equipamentos sociais de atendimento.
Diante desses fatores, de exigências e responsabilidades, a performance dos
burocratas de rua se apresenta rodeada de limitações devido à escassez de
recursos para desenvolvimento dos trabalhos e suas limitações de conhecimento e
qualificação pessoais. O que eles pensam e reproduzem sobre os pobres que
atendem e os programas vem imerso em sua realidade diária.
6.2
Diante do pobre: entre o antes e o depois
Na discussão sobre processos e políticas públicas, Vaistsman et Paes-Sousa
(2011) argumentam que, no trabalho articulado, a cooperação e confiança,
pressupõem, dentre outras coisas, que as pessoas acreditem na relevância daquilo
que estão implementando, ou seja, significa a legitimidade e adesão dos membros
da organização, os trabalhadores.
entrevistada, faz parte da rotina de deslocamento dos técnicos burocratas de rua nas visitas de
monitoramento e atendimentos as famílias vulneráveis e “pobres”. Esse exemplo demonstra o quanto
as especificidades regionais não podem ser desconsideradas na constituição das políticas públicas.
Por curiosidade, um departamento da assistência do estado fez os cálculos dos custos de
deslocamento que um município realiza dentro de seu território para ir até as famílias realizar visita
domiciliar e/ou acompanhamento familiar e chegou à conclusão de que os recursos, mesmo
agregando o cofinanciamento federal, não cobriam, minimamente, o custo necessário para o
deslocamento. Esse é outro dado que deve ser lavado em consideração.
194
Conforme observado em campo, nem sempre foi possível verificar a
credibilidade ou identificação dos técnicos com a atividade desenvolvida, de maneira
que trabalhar com os pobres causa várias percepções aos burocratas de rua. Nesse
sentido, a primeira demarcação analítica relevante foi observar que o olhar que
esses sujeitos têm sobre o pobre e a pobreza está focado num processo de
transição temporal entre o antes e o depois.
A opinião sobre os pobres e a pobreza na experiência dos técnicos segue
uma demarcação temporal diretamente relacionada à sua prática profissional. O
contato profissional com os “pobres” e suas problemáticas é o que vai estruturar a
percepção.
Antigamente eu tinha uma visão bem distorcida, até mesmo da assistência
como um todo, principalmente do Programa Bolsa Família. Eu avaliava
totalmente errado pela concepção que eu tenho hoje. Eu achava que era
uma transferência de renda indevida, que era feita “ao léu”... E hoje eu já
tenho uma concepção totalmente diferente. Me sensibilizou muito trabalhar
na assistência. (Gestora do PBF – SC- Região Sul).
A mesma gestora faz questão de frisar que “sempre foi sensível” tal como um
movimento de autodefender-se de sua posição anterior sobre a percepção do pobre.
A “sensibilidade” a que a gestora municipal faz referência veio com o contato
cotidiano com os diversos problemas trazidos pelos usuários e aos ensinamentos de
uma colega de trabalho.
Eu sempre fui uma pessoa sensível, mas me sensibilizou mais depois de ter
trabalhado na assistência, porque os problemas são latentes, e a gente que
tenta fazer de conta que eles (os problemas) não existem. Então mudou
minha perspectiva a respeito disso. Quem me ajudou muito foi a própria
assistente social que trabalhou comigo, porque tudo que eu tinha de dúvida
sobre a assistência ela me ensinou. (Gestora do PBF – SC- Região Sul).
O mesmo processo de construção foi observado no percurso de um jovem
servidor público concursado, educador físico, técnico de nível de rua que coordena
programas e serviços de atendimento da assistência social na Região Centro-Oeste,
na cidade de Brasília. No centro coordenado pelo técnico, são desenvolvidas ações
da assistência social nas quais o público são usuários considerados pobres que se
encontram em elevado grau de vulnerabilidade social e econômica. O equipamento
fica localizado em uma cidade satélite do Distrito Federal, recorte territorial
correspondente à área considerada de alto índice de violência e baixa renda.
195
Tal como a gestora do PBF do município do estado de Santa Catarina, a
delimitação de tempo também está presente na trajetória do referido técnico. O
coordenador de ações da assistência social, antes de ingressar no cargo, não tinha
conhecimento do que se tratavam as ações de combate à pobreza.
O antes,
Olha, antes de vir trabalhar, eu achei que era um público que não
trabalhava. Eu tinha muito isso na cabeça, né? Um público que só dependia
da assistência social. Mas o que eu vi é que esse público é nossa grande
mão de obra, mão de obra de trabalhos, de obra civil, quase todas as mães
são servidoras da SLU (Sistema de Limpeza Urbana), são mães de alunos
nossos.
O depois,
Então, assim, a grande maioria trabalha de doméstica nas casas ou tem
trabalho fora e não consegue ter o acompanhamento dos filhos. No caso,
sair da escola, almoçar e depois tem o outro período contraturno. Então é
um público com alguns filhos. A grande maioria trabalha, são beneficiários
do Bolsa Família de alguma maneira, têm o cadastro, não sei se recebem
transferência de renda, mas são todas beneficiárias, e as crianças naquela
área bem vulnerável. A situação de risco social pela proximidade do tráfico,
pela falta de esgoto, saneamento básico, asfalto, falta de moradia bem
estruturada. Daí as crianças vão ficando nas ruas sozinhas. Pelos
prontuários que eu leio, vejo que quase todos aqui, entre 13 e 14 anos,
quando tinham entre 8 e 9 anos a mãe era chamada em conselho tutelar
por abandono, existem muitos desses registros. Às vezes por violência
doméstica, às vezes muitas crianças ficam com uma pessoa que não podia
cuidar. Então, eu vejo que quase todas têm esse histórico lá atrás né.
(Técnico da Assistência Social – coordenador do Centro de Atendimento da
Assistência Social – Brasília – Região Centro-Oeste).
O entrevistado conclui,
E, sinceramente, não sabia o que era Cras, não sabia o que era um serviço
de convivência, e vejo que outros amigos meus que ainda estão lá fora
(referência ao ciclo social de amigos próximos que não são profissionais da
área) ainda desconhecem completamente o sistema. Quando fazem a
pergunta: “com o que você trabalha?” Eu falo: “olha, senta que vai demorar”.
Mas eu procuro explicar, procuro informar e todo mundo acha maravilhoso.
Eu não conheço ninguém que fala: “Ah isso é um absurdo!”, falam que isso
é um trabalho maravilhoso, é por aí. E eu explico exatamente como a gente
faz e como acontece. (Técnico da Assistência Social – coordenador do
Centro de Atendimento da Assistência Social – Brasília – Região CentroOeste).
A análise que pode ser feita a partir dos depoimentos é que a percepção
moral e valorativa que reproduz o estigma negativo da pobreza como “vagabundo”,
196
“aqueles que não querem trabalhar” é o ponto de partida desses profissionais
quando chegam para executar suas funções. É relevante observar que em nenhum
momento os entrevistados fazem referência a palavras como: direitos sociais ou
garantias de direitos em suas falas.
Uma diferença pode ser demarcada, nesse caso, nas entrevistas realizadas
com os técnicos que faziam parte de equipes de municípios de médio a grande
porte, pertencentes às regiões mais populosas do país. Os profissionais que atuam
nos municípios de grande porte apresentaram uma percepção contextualizada com
objetivos estruturais das ações que executam. A seguir, o gestor de um município de
médio porte do estado do Rio de Janeiro apresenta o seu ponto de vista sobre o
atendimento dos considerados pobres em uma das ações e a inclusão no cadastro
único.
Na questão do cadastro (CadÚnico) tem duas questões. Tem o estigma que
elas têm (as pessoas-usuários pobres que procuram o cadastro) e tem
também o papel do entrevistador nessas ações, então um influencia no
outro. Porém é muito subjetiva essa questão da pobreza, né? Você vai me
dizer que a pobreza é uma questão de renda, outro diz outra coisa. Eu
acredito que é uma questão mais estrutural. E isso influencia na hora de
estar estruturando as ações, na hora que está identificando a família.
Porque se não for por questão da transferência de renda, pode ser para
acessar outros programas, outras ações. Você faz esse cadastro e daí você
pode identificar que ela (a pessoa-usuário) não tem um posto de saúde
próximo, que não tem uma escola, o acesso que ela teve ao ensino também
em determinadas áreas, você consegue ver isso. Os que são mais
vulneráveis na área da saúde, questão do saneamento. Então tem que
trabalhar e ter muito cuidado. Acho que é como porcelana mesmo, pode
quebrar e você afasta o público e o usuário do seu trabalho, então fica
difícil. E tem a questão de você julgar a pessoa, né? (Gestor do Programa
Bolsa Família Município de Mesquita-RJ).
A nuance observada entre os técnicos que atendem aos pobres em
municípios de pequeno porte e de portes maiores pode ser entendida pela condição
territorial em que trabalham e pelas complexidades problemáticas que se
apresentam no dia a dia. Mostra também que a equidade de posturas e atuações
dos técnicos não pode ser considerada uma variável constante e regular, mesmo
que a burocracia busque isso. Apesar de as diretrizes nacionais dos programas e
serviços buscarem um ponto de partida minimamente nivelado em relação aos
procedimentos, qualidade e compreensão das ações, sobressai a realidade local, o
entendimento de quem executa.
Como
conclusão
deste
tópico,
pelos
apontamentos
das
falas
dos
entrevistados analisamos que a percepção dos técnicos é mediada pela busca da
197
objetividade das normativas técnicas, porém associando a isso os fatores sociais e
subjetivos que constroem as percepções dos sujeitos antes de chegar a sua função.
Como vimos, existe uma opinião anterior que pode ser mudada ou não com o
decorrer da prática.
Assim, os técnicos apresentam um estágio de percepções até que a prática
conduza a uma construção dos seus próprios conceitos sobre o que é o pobre e a
pobreza atendida cotidianamente.
6.3
Entre o julgamento e a objetividade
Este tópico retrata um dos resultados da pesquisa de campo de maior
relevância na edificação da tese aqui proposta sobre a maneira institucionalizada do
combate à pobreza pela prática dos burocratas de rua. Trata-se da conduta
encontrada na atuação dos técnicos em que tem destaque o exercício do
“julgamento” e do “olhar inquisidor” como uma das técnicas de trabalho dos
burocratas de rua para o atendimento aos pobres.
Os “critérios” de julgamento não ocorrem de maneira aleatória. Eles partem
de impressões racionalizadas pela experiência prática. Esse processo é uma
espécie de instrumentalização na tentativa de obter objetividade e proporcionar
“justiça” no julgamento de quem merece ou não ser inserido nos programas de
combate à pobreza, no caso aqui específico, o programa de transferência de renda.
Essa prática constrói juízo de valor no ato do atendimento dos sujeitos que
apresentam a sua condição de pobreza ao técnico. Nas entrevistas com técnicos
burocratas de rua durante a pesquisa, ficou clara a evidência do julgamento moral e
de merecimento que adotados como procedimentos para exercer suas funções
técnicas:
A gente percebe as pessoas, quem realmente vive em vulnerabilidade. A
gente percebe aqueles que querem se aproveitar para poder receber o
programa. (Técnica PBF, BA – Região Nordeste).
Ao ser indagada sobre os procedimentos utilizados para identificar quais eram
as famílias e usuários que procuravam atendimento com o objetivo de “se aproveitar
do programa” a técnica argumenta:
198
É porque, com o passar do tempo, a gente aprende a perceber quando uma
pessoa tá sendo mais sincera ou está tentando omitir alguma informação.
Até o curso ajuda a gente a perceber isso (referência ao curso de
graduação em serviço social). A gente consegue perceber quando uma
pessoa está sendo sincera ou não, de uma certa forma, né? E tem alguns
que, realmente, quando a gente percebe que precisa de uma visita para
averiguar se aquela informação é verdadeira. Quando a gente pede que a
assistente social vá à casa daquela pessoa, muitas vezes a gente vê que a
pessoa não tava falando a verdade.
Tipo assim, como tem hoje muitos programas voltados para habitação, aí
alguns tentam ver se consegue receber a casa, a esposa e o esposo, sabe?
Omitem informações para que eles consigam obter duas casas e não só
uma. Aí a gente consegue perceber isso. Às vezes omite a gente pergunta:
cadê o documento do esposo? “Ah, eu não tenho esposo”. Aí a gente vai
apertando, apertando até que descobre que a esposo existe. (Técnica PBF,
BA-Região Nordeste).
Analiticamente podemos denominar a tentativa de racionalizar por meio de
um “crivo próprio” os usuários dos programas que os técnicos burocratas de rua
desenvolvem em sua pratica de “juízo do merecimento da pobreza” ou “julgamento
do mérito da pobreza” sobre os pobres atendidos. O que pode ser entendido como
uma emissão de um julgamento valorativo adquirido por meio de processos de
racionalidade prática de percepções adquiridas com a experiência com os
atendimentos dos usuários “pobres”.
O julgamento do mérito é, em sua maioria, direcionado aos usuários de
programas de transferência de renda ou em outros programas em que o usuário
procura o atendimento com o objetivo de receber algum bem material.
O julgamento do mérito da pobreza dos técnicos que atuam no atendimento
direto aos pobres desenvolvido é aprimorado com a experiência cotidiana para
identificar se o sujeito é ou não pobre. Tais parâmetros se consolidam com base nas
referências da realidade em que esses profissionais atuam. Envolve, nesse sentido,
valores pessoais e culturais que fizeram ou fazem parte da vida dos técnicos sobre o
que é pobreza. É um procedimento que não é previsto nos critérios estabelecidos
nos manuais de orientação do programa.
Partindo de tal pressuposto, foi possível compreender no dia a dia de trabalho
dos burocratas de rua o compartilhamento sobre concepções dos usuários que
frequentam os equipamentos públicos de atendimento. Na maioria dos municípios
visitados, nas cinco regiões brasileiras, os técnicos pesquisados, em algum
momento da entrevista, embasam na sua fala a importância de acertarem no
199
julgamento dos sujeitos e sua pobreza, ou seja, no merecimento de o sujeito ser ou
não atendido em programas de transferência de renda e ações de assistência social
conforme os critérios de julgamento que eles acreditam ser o que classifica a
pobreza.
Ao pesquisar processos de humilhação moral no dia a dia de um grupo de
beneficiárias do PBF na periferia do Rio de Janeiro, Marins (2014) traz dados
relacionados à postura dos técnicos burocratas de rua no atendimento aos “pobres”.
A pesquisadora observa o que denomina de experiências de preconceito e
humilhação. Pode-se verificar a seguir que, dentre as humilhações encontradas
durante a pesquisa, está a trajetória institucional desses sujeitos.
Como ao se tornarem beneficiários de um programa de transferência de
renda, as pessoas passam a vivenciar experiências de humilhação e de
preconceito, que marcarão suas trajetórias no âmbito institucional
(relacionadas, de modo geral, ao Programa Bolsa Família) e na vida social
do bairro. Aqui se torna importante mencionar que a função do
cadastramento do PBF não e eleger beneficiários, mas somente incluir os
candidatos a Bolsa no sistema federal chamado CadÚnico. (MARINS, 2014,
p. 547).
Para Jaccoud (2014), nos últimos dez anos, houve um avanço nas políticas
sociais com a construção de sistemas integrando e fortalecendo iniciativas em
termos institucionais e de gestão, incluindo desde mecanismos de financiamento e
instâncias e procedimentos de pactuação federativa até a expansão de
equipamentos, recursos humanos e financeiros.
Dentre os desafios das políticas sociais apontados pela autora, alguns deles
se encontram no campo político. Jaccoud (2014) avalia que a constância dos
julgamentos morais desde a implementação sobre os beneficiários do Bolsa Família
é um dos desafios. Esse fato expressa, ainda segundo a autora, a influência limitada
de um ideário republicano tencionando a proteção social no sentido da igualdade.
Da mesma forma, o volume de resistências que em pleno século XXI ainda
se levantam contra o Programa revela que a leitura neutralizadora da
miséria e da desigualdade ainda se encontra operante na sociedade
brasileira, com impactos também no formato e legitimidade das ofertas de
serviços e benefícios sociais. (JACCOUD, 2014, p. 642-643).
200
Dentre os aspectos instigantes do recorte de pesquisa pelos burocratas de
rua foi perceber que a resistência e leitura naturalizadora da pobreza é reproduzida
dentro dos aparatos estatais. Presenciar depoimentos carregados de estigmas
ratificadores de preconceitos vindos de gestores municipais, estaduais de programas
da política de Assistência Social, do Bolsa Família etc. causa profunda inquietação.
Um exemplo desse fato ocorreu durante a fala do então secretário da
Secretaria Extraordinária para Superação da Extrema Pobreza (Sesep), do
Ministério de Desenvolvimento Social (MDS), sobre o Programa Brasil Sem Miséria
(BSM) no Encontro Nacional de Novos Prefeitos, realizado em janeiro de 2013, em
Brasília. Enquanto o secretário descrevia o objetivo do eixo de inclusão produtiva
dos usuários dos programas de combate à pobreza, foi interrompido e questionado
por diversas vezes pelos gestores estaduais e municipais que relatavam sobre o não
interesse dos “pobres” de seus municípios em serem inclusos no mercado de
trabalho.
O olhar analítico, nesse caso, recai não no ato de contrariedade de ideias ou
do questionamento em si, mas nos sujeitos do ponto de partida onde surgem os
questionamentos:
[...] Senhor secretário, no meu município houve um curso do Pronatec para
todos os usuários do Bolsa Família, para trabalhar numa fábrica que estava
instalada lá próximo. Quando terminou o curso, nenhuma delas quis ir
trabalhar, com medo de perder o Bolsa Família. Como a gente deve lidar
com essa situação? Eles não querem trabalhar, não adianta!. (Intervenção
de gestora municipal de programas e serviços de combate à pobreza
durante o Encontro Nacional de Novos Prefeitos, realizado em Brasília, em
janeiro de 2013, Diário de Campo da Pesquisadora).
Repetidas vezes a questão veio à tona dentre o público de gestores durante o
evento.
Com isso, não seria equívoco concluir, pelos exemplos registrados neste
tópico, que a reprodução de estigmas sobre a percepção da pobreza e dos pobres
se encontra presente dentre os responsáveis pela gestão e execução dos
programas de combate à pobreza. A gestão de políticas que busca a ruptura do ciclo
da pobreza guarda ranço histórico de estigmas sobre o pobre e a pobreza. Mesmo
entre integrantes da gestão federal, há apreços valorativos sobre que ao homem
deve-se “ensinar a pescar” e “não dar o peixe”. Diante dessas constatações, resta
201
saber o que seria a pobreza no universo de perspectiva criado pelos técnicos
burocratas de rua.
6.4
A pobreza para quem recebe os pobres
O entendimento predominante sobre o conceito de pobreza para os técnicos
burocratas de rua entrevistados responsáveis pelo atendimento aos pobres é a
pobreza como falta ou ausência de acesso. A demarcação analítica nesse caso é
que a falta não está relacionada ao acesso dos sujeitos direto aos bens e serviços,
mas a um estágio anterior a esse acesso. Pobreza seria, assim, a falta de acesso a
informações necessárias que habilitem os sujeitos à condição de conhecedores de
seus direitos em todas as áreas, de forma que os instrumentalize a reivindicá-los e
buscá-los durante o curso de suas vidas, sempre que necessitar.
Eu acredito que pobreza é um conjunto de várias ausências. Ausências de
renda, de acesso aos serviços e programas, ausência de
conhecimentos, ausência de perspectiva, ausência de autonomia.
Acredito que a pobreza não é apenas financeira é toda uma conjuntura que
a pessoa vive. (Técnica da Gestão Estadual do PBF – Paraná).
Pobreza é, além de a pessoa não ter como se manter, como sobreviver, não
ter como pagar os custos da sua alimentação, sua saúde e tudo o mais, é
também a pobreza no sentido de ela não ter acesso, não ter como e não ter
acesso. Porque ela tendo algum acesso a algum tipo de informação, ela
pode não estar inserida nesse contexto de pobreza. Mas pobreza pra
mim é não ter como se manter e sobreviver e não ter nem acesso a isso.
(Técnica da Gestão PBF – Santa Catarina).
Essa demarcação se diferencia do entendimento da pobreza como falta
presente nos anos 1980 até início dos anos 1990, quando se discutia pobreza como
falta materializada no acesso direto aos bens ou elementos mínimos vitais à
sobrevivência, tais como alimentação, moradia, assistência etc.
Essa concepção não foi de todo descartada nos discursos dos técnicos,
porém, em nosso ponto de vista, a ela foi acrescentada um dado novo, que seria o
elemento da privação do sujeito a algo. A falta como privação de subsistência
mínima se transforma na falta como ausência ou acesso à informação, que leva o
sujeito a uma desqualificação para ser protagonista do seu papel de cidadão em
sociedade.
202
Num primeiro momento, os sujeitos considerados pobres eram os “assistidos”,
os “descamisados”, necessitando de uma proteção em curto prazo. No contexto das
políticas atuais, a pobreza encontrada no discurso dos burocratas de rua configura
que os pobres saindo do status de “descamisados” e “desprotegidos” e iniciando
outro patamar para a institucionalização da pobreza, ou seja, o locus da autogestão
sobre suas vidas, da proatividade, do “não esperar pelo Estado”, do “não dar o
peixe, e sim ensinar a pescar”.
Nesse sentido, observou-se como exigência clara por parte dos técnicos
burocratas de rua que os pobres devem ter capacidade e proatividade diante da
condição social da sua pobreza. Isso significa dizer que eles devem ter acesso aos
conhecimentos necessários dos caminhos de seus direitos. É isso que os técnicos
burocratas de rua esperam que todos os programas e serviços proporcionem aos
“pobres”.
Eu acredito que pobreza é um conjunto de várias ausências. Ausências de
renda, de acesso aos serviços e programas, ausência de conhecimentos,
ausência de perspectiva, ausência de autonomia. Acredito que a pobreza
não é apenas financeira, é toda uma conjuntura que a pessoa vive. (Gestora
estadual no PBF  Paraná).
Os profissionais entrevistados esperam que o Estado atue não apenas
permitindo o acesso a benefícios e/ou renda, mas que “instrumentalize”, “ensine”,
“capacite” os “pobres” com conhecimento suficiente para que eles possam ser
protagonistas em qualquer momento de suas vidas na busca de seus direitos.
A pobreza como falta de acesso à informação encontrada em campo
guarda relação com a ideia emergente do sujeito bem informado, uma sociedade em
que os sujeitos estão postos aos múltiplos acessos aos conhecimentos, às múltiplas
possibilidades de estar no mundo. Não se admite, assim, o não conhecer como
condição social.
Nesse modelo, a acesso às múltiplas informações se configura em uma
condição legitimada socialmente de um sujeito emancipado. Essa visão se afasta de
uma pobreza atribuída apenas à condição financeira ou de renda do cidadão,
passando a ter foco na multidimensionalidade de fatores que levam a pobreza,
incluindo a inserção.
203
É a ausência ou escassez de qualquer coisa. Eu não gosto de colocar a
ideia de pobreza ligada ao fator econômico, e quando você incorpora a ideia
do que é pobreza, você já incorpora a ideia da ausência de direito de tudo
aquilo que prover o cidadão. Então como a ideia de pobreza tá muito ligada
à renda, então é complicado você trabalhar o técnico de Cras que tem
sempre um lugar muito enviesado à questão econômica: “então ele é pobre”
(o técnico classificando o usuário) e é isso. Não que a pobreza que ele tá
envolvido envolve toda a escassez que ele tá envolvido, mas porque é a
única que pode encaixar em qualquer coisa, inclusive na pobreza de espírito
(pode ser qualquer coisa). (Técnica São Paulo – Assistência social).
Diante de suas multifaces, a “pobreza pode ser qualquer coisa”, chega-se a
questionar se os critérios de recorte de inclusão nos programas são legítimos, uma
vez que comparada a condição social de determinados segmentos sociais sobre
alguns tipos de acessos em detrimentos de outros, os sujeitos podem se ver na
mesma condição de privação, como foi o caso do depoimento da assistente social
coordenadora de um Cras na cidade de Fortaleza,
acho que isso está tão relativo porque algumas vezes eu me vejo como
usuária do Cadastro Único. Eu digo isso no meu trabalho e as pessoas
acham graça. Eu pergunto: por que vocês estão achando graça? Eu estou
no perfil do Cadastro Único. Eu e minha família estamos no perfil de
Cadastro Único. Daí elas perguntam: por que você não se cadastra? Porque
eu tenho dignidade. Eu sou servidora pública, eu acho que eu não posso
estar lá. (Técnica de Cras, Fortaleza-CE).
Para além da imposição do limite moral de achar desonesto, a presença de
uma servidora pública no CadÚnico é apresentado e questionado o conceito de
pobreza,
assim, eu me olho e me pergunto “então qual o conceito de pobreza? Então
eu sou pobre?” Eu não estou em vulnerabilidade social realmente, mas esse
conceito dado pelo Cadastro Único, eu acho meio relativo. O que é
pobreza? Pessoas que não têm acessos mínimos ou pessoas que têm
acessos, mas o acesso é limitado? Eu tenho acesso limitado a muitas
coisas. Eu gostaria de fazer muitas outras coisas, inclusive viajar, mas não
posso. Eu gostaria de ter acesso a uma pós-graduação e muitas vezes em
alguns meses volto atrás, porque não sobre grana e a pós-graduação é
caro. O mestrado é caro, um doutorado profissional ainda é mais caro.
Então o que é pobreza? É realmente ter o mínimo ou ter algo limitado e se
limita a fazer muitas coisas. É muito complexa essa questão. (Técnica,
CRAS, Fortaleza-CE).
Como servidora pública, a técnica identifica nos usuários que atende algumas
situações que ela também enfrenta, principalmente na perspectiva da pobreza como
ausência ou falta de acesso. Dessa forma, ela se sente legitimada à identidade de
pobre que é atribuída aos cadastrados no CadÚnico como forma de suas privações.
204
Assim, o conceito de pobreza presente nas falas revela a complexidade de
interpretação que pode ser a ele dado. A perspectiva dos técnicos em relação à
pobreza é a de autorresponsabilização do indivíduo sobre sua própria pobreza. O
Estado é visto apenas como um instrumentalizador da condição de emancipar, e não
de proteger. Emancipar os pobres para sua autossuficiência por meio da
autossustentabilidade, de forma que rompa sua dependência com benefícios
recebidos pelo Estado.
6.5
Enfim: “O Programa Bolsa Família é bom, mas precisa melhorar!”.
Todas as entrevistas e observações com os técnicos e gestores
resguardaram um tom crítico relacionado ao Programa Bolsa Família. O pensamento
é de que o programa não ajuda em proporcionar autonomia aos pobres, mas, sim,
em viciá-los no próprio ciclo da pobreza, pois “eles não querem trabalhar, querem
viver do Bolsa Família”. O anseio dos técnicos é que o governo federal conseguisse
ser, nas palavras dos entrevistados, mais “duro”, “firme” e “criterioso”, de forma que
conseguisse induzir e inserir os usuários no mercado de trabalho.
Diante dos constantes questionamentos da opinião pública, como também
dos técnicos e gestores que trabalham no programa, a Secretaria de Avaliação e
gestão da Informação (Sagi/MDS)66 realizou uma pesquisa para investigar a máxima
de que o usuário do Bolsa Família não trabalha ou larga o trabalho para ficar no
programa. Como resultado, constatou-se que entre os beneficiários do Bolsa
Família, em idade ativa para o mercado de trabalho, aqueles com mais de 18 anos,
cerca de 75% trabalham ou estavam procurando trabalho. Segundo informações do
Ministério, no ano de 2015, essa taxa é semelhante à taxa da população que está na
mesma renda e não beneficiária do Bolsa. Ainda na mesma temática, segundo o
Censo 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)67, 75,4% dos
beneficiários do Bolsa Família trabalham. Outro dado relevante é que, desde o
lançamento do programa, em 2003, 1,7 milhão de brasileiros deixaram de receber o
benefício por não precisar mais da ajuda do governo.
66
Informações disponíveis em: <http://mds.gov.br/assuntos/bolsa-familia>. Acesso em: 21 dez. 2015.
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/05/bolsa-familia-75-4-dosbeneficiarios-estao-trabalhando>. Acesso em: 12 jan. 2016.
67
205
Para além da tentativa científica, o MDS investiu em peças de campanhas de
publicidade sobre o tema. O cartaz abaixo é uma das ferramentas como forma de
desconstruir a ideia de que pobre do Bolsa Família não trabalha. Na mídia 68 são
atualizados números das pesquisas realizadas e usuários que trabalham, além do
índice de afastamento do programa por uma autoavaliação de que não precisam
mais da renda recebida do programa.
Figura 2: Divulgação de dados sobre Programa Bolsa Família
Fonte: Disponível em: <www.mds.gov.br>.
Conforme concordam vários autores (COHN, 2015; MARINS, 2014; JUSTO,
2009; PEREIRA, 2007), o julgamento moral dos pobres que participam do programa
é uma das principais marcas dessa experiência de política pública. O curioso da
pesquisa neste documento apresentada foi constatar que o julgamento moral não
parte apenas da sociedade ou daqueles que não conhecem a estrutura do
programa, mas se encontra presente no interior e nas práticas das estruturas do
Estado e, muito significativamente, entre os técnicos de nível de rua que trabalham e
fazem atendimento aos usuários do Bolsa Família nos diversos municípios
brasileiros.
Na pesquisa desenvolvida por Marins (2014), com usuária da área de periferia
do estado do Rio de Janeiro, pode-se acompanhar por meio de um depoimento de
68
Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/05/bolsa-familia-75-4-dosbeneficiarios-estao-trabalhando>. Acesso em: 21 dez. 2015.
206
uma usuária como ela vê e retrata a forma como se deu o atendimento com os
técnicos burocratas de rua.
Uma beneficiária [...] afirma que, no momento de realização do cadastro,
viveu a experiência da humilhação.“Naquele dia ali eu me senti humilhada.
Tem muita gente que desiste por isso, né? Falei que estava passando
necessidade e eles já te tratam com desconfiança, acha que você está
mentindo”. (MARINS, 2014, p. 547).
Outra usuária, segundo a pesquisadora, também afirma ter sofrido
constrangimento exercido pelos “atendentes”, ou seja, os técnicos burocratas de rua,
Afirmando sofrer constrangimentos, outra beneficiaria [...] salienta que a
humilhação sofrida foi exercida, sobretudo, pelas atendentes do setor de
cadastramento no âmbito da coordenação do Bolsa Família:
Elas dizem: “É só isso mesmo, querida”. “O Governo não vai dar mais nada
não!”. “Vocês têm que trabalhar!”. “Não tem mais nada não!”. Aí eu nem vou
mais lá na casa amarela, porque não quero ser maltratada. Elas lá ficam
falando para qualquer um ouvir: “Vocês ficam na farra e não querem nada,
só ganhar dinheiro fácil!”. (MARINS, 2014, p. 548).
O depoimento da maioria dos técnicos entrevistados na presente pesquisa
ratificam os trechos acima registrados nas falas das usuárias do PBF, conforme
abaixo:
Não acredito no programa. Eu acho totalmente assistencialista e paliativo.
(Técnica Coordenadora de Cras – Fortaleza-CE).
Tem pessoas que não querem que assine a carteira para não perder o PBF,
então, acho que tem que se encontrar um meio para fazer com que essas
pessoas entendam que o Bolsa é uma ajuda por um tempo determinado,
mas que eles também precisam de alguma forma se engajar,
financeiramente falando, numa área de trabalho. Se não tem como assinar
carteira, mas que faça um bico, que tenha um sustento. Que não viva só
disso. (Técnica PBF – Feira Santana-BA).
Para a maioria dos burocratas de rua, os usuários estabelecerem um círculo
vicioso com o programa. Eles acreditam que muitos usuários deixam de trabalhar
para viver apenas da transferência de renda numa situação de acomodação que
gera inércia no processo de emancipação esperado pelo programa.
[...] Ao meu ver, ele teria que dar o peixe, mas também a vara para pescar...
tem pessoas que enxergam o Bolsa Família como um salário fixo que tem
que viver daquilo ali, então como recebe o Bolsa não percebe que precisa
viver de outra coisa, então: “eu não preciso fazer bico, eu não preciso
trabalhar”, sabe? (Técnica PBF – Feira Santana-BA).
207
[...] ele traz no seu aspecto, que não é muito positivo, a acomodação.
Porque as pessoas acabam se acomodando nessa zona de conforto por ser
um mínimo, sem perspectiva de melhorar. Então ele está lá na terra dele e
“... não... eu vou receber o Bolsa e vou dando meu jeito aqui...”. Tem o lado
positivo, que faz com que essa pessoa minimamente tenha acesso a uma
aquisição. Mas pela nossa cultura ainda está muito longe dessa
emancipação. (Técnica Coordenadora Proteção Social Básica – PA).
O apontamento dos técnicos é que a gestão federal tem que ser mais criteriosa
e firme na indução e inserção dos usuários no mercado de trabalho. O principal
argumento é de que: “eles não querem trabalhar, querem viver do Bolsa Família.” Os
gestores levam esse entendimento também para os espaços públicos, nos eventos
em que participam, como foi visto anteriormente no exemplo da interrupção da fala
do secretário do Brasil Sem Miséria e Erradicação da Pobreza do MDS.
Um dado relevante é o monitoramento sobre o que faz o pobre com a renda
recebida pelo Bolsa Família. Em uma experiência de capacitação de técnicos
municipais, a técnica do estado do Paraná relatou que outros técnicos questionavam
o porquê de algumas usuárias fazerem “chapinha” no cabelo para ir aos encontros
regulares de acompanhamento do Programa Bolsa Família.
“Porque que ela faz esmalte? Porque ela faz chapinha de cabelo?”... Então
a gente vê situações bem extremas assim, mas você viu que ela veio de
chapinha no cabelo? (Técnica do programa Bolsa Família – estado do
Paraná).
A mesma técnica atribui a falta de conhecimento e de qualificação sobre os
programas à alta rotatividade de técnicos nos municípios.
Isso também ocorre pela alta rotatividade de profissionais que a gente não
consegue dar conta de todas as capacitações no estado. Por conta dessa
alta rotatividade também que acaba prejudicando o acompanhamento dos
fluxos. E também acredito que isso é um reflexo da má gestão no município,
não só a gestão do Cadastro e do Bolsa, mas a má gestão da política de
assistência no município. Por não querer proporcionar qualificação
profissional para os técnicos, não estimulá-los, pela importância que eles
têm, não só pela assistência, mas enquanto cadastro e demais políticas
públicas. Então isso é um problema gradativo, não é só da “ponta”
(referência os profissionais), mas da gestão também. (Idem).
Dissensos existentes e o olhar estigmatizador dos atores que trabalham no
atendimento dos considerados pobres do Programa Bolsa Família geram, na rotina
desses profissionais, uma “ação de caça às bruxas”. Assim, soma-se a isso
208
responsabilidade de atendimento, cadastro e ações com os usuários, a necessidade
de desenvolver o que pode ser denominado de “expertise” para saber se o “pobre”
está mentindo ou não sobre sua pobreza. As tentativas de “fraudes” também se
apresentam como uma constante no depoimento sobre o programa.
Se o programa existe pra ter este cruzamento de dados, como que é feito
este cruzamento de dados? Eu queria saber isto. E se ele não está sendo
feito corretamente tinha que melhorar. Porque se você chega aqui, me fala
que você não mora com seu marido, ou melhor, fala que seu marido
trabalha o dia a 20 reais, aí eu pergunto se tem carro, se gasta com
combustível e tal e ela diz que não tem. Mas na real ele tem lá um
caminhão, um carro de passeio, está no nome dele, como é que não cruza.
Isto aí eu acho assim que deveria ser aperfeiçoado. (Técnica e
coordenadora do PBF Simonésia-MG).
Omitir informações é outro traço atribuído aos “pobres” do PBF pelos técnicos,
é quase unanimidade falar que uma das principais características dos atendimentos
é que os usuários “mentem” para entrar e estar no programa. A gestora estadual que
capacita os técnicos municipais de seu estado faz referência ao fato.
Em muitas capacitações isso fica evidente na fala dos técnicos quando eles
questionam que as informações (do CadÚnico) são autodeclaratórias, que
todos omitem informações. Eles (os técnicos) acabam generalizando que
todos fazem de má-fé, que todos querem ganhar mais. E a gente percebe
que isso é muito negativo até porque eles não levam em consideração as
diretrizes, os princípios e os objetivos os quais eles deveriam estar
dispostos. (Técnica do programa Bolsa Família – estado do Paraná).
Mesmo quando o técnico relata ser a favor do programa e defende os
objetivos da transferência de renda, são observadas restrições ao usuário, por
exemplo: fazer crítica à forma como os usuários gastam a renda recebida no
programa. Nesse caso, geralmente eles apresentam regras para a maneira “correta”
com que o usuário deveria gastar os recursos para aliviar a sua situação de pobreza,
eu vejo essa pobreza querendo melhorar, as pessoas adquirindo mais
renda e aí vem a diminuição da pobreza, mas não sabendo o que fazer com
essa renda. Eu (referência aos usuários) poderia tá melhorando o sistema
de esgoto da minha casa eu poderia tá melhorando uma geladeira, alguma
coisa, mas não, eu prefiro comprar um carro. Então a pobreza tá em
movimento sim. Estão saindo da pobreza muitas pessoas, mas sem
qualidade. Eu acho que elas podem voltar facilmente, por exemplo, com a
perda do emprego, a perda de um benefício por algum motivo, ela vai
facilmente voltar àquela situação de pobreza. (Técnico coordenador da
Assistência Social – Brasília-DF).
209
Para o técnico burocrata de rua acima, o Estado se empoderou, mas não
orienta para o consumo.
A gente empoderou, mas falta um pouco da orientação, mas eu acho que
existe programa, a informação taí. Mas, ao mesmo tempo, a velocidade da
indústria do comércio de forçar o consumismo por consumismo. Eu não sei
o que esses meninos (referência aos adolescentes e crianças com quem
trabalham) veem num tal de chinelo Kenner, R$ 90,00 esse chinelo. Todos
aqui, os servidores, usam chinelo de R$ 10,00 e R$ 15,00, que é havaiana.
Eles só usam o tal do kenner de R$ 90,00. E tem mãe que vem aqui e fala –
“pelo amor de Deus eu não tenho dinheiro, mas ele quer!”. Então, assim, eu
vejo as crianças das classes mais favorecidas, assim também as classes B,
C nesse consumismo, às vezes, deixando de comprar coisas que seriam
mais essenciais dentro da casa para ter aqueles acessórios que estão na
moda, essas coisas assim. (idem).
Quando indagados sobre o que poderia ser aprimorado diante das críticas
feitas ao PBF e a relação com os considerados pobres, as principais sugestões dos
técnicos burocratas de nível de rua guardam estreita relação com o papel de
fortalecer o julgamento do mérito da pobreza.
A perspectiva de efetivar meios de controle mais precisos é a principal
reivindicação, tais como: maior controle dos sistemas como o CadÚnico; inserção de
outras variáveis na pontuação geral recebida pelas famílias; mudar tipos de metas e
estratégias sobre as regras de permanência no programa; definir melhor o público,
ter mais controle, critério e monitoramento; avaliar melhor o real desenvolvimento
das famílias etc.
A partir dos dados apresentados no capítulo VI sobre a percepção do pobre e
da pobreza pelos técnicos burocratas de rua entrevistados, temos as seguintes
ponderações conclusivas.
Os conceitos para os técnicos burocratas de rua são construídos no campo
de racionalização da prática e ações desenvolvidas, em decorrência das demandas
de atendimentos rotineiros aos usuários. Esses profissionais não detêm um
conhecimento conceitual detalhado sobre o Programa em que atuam, e sim
apresentam um saber básico que subsidia a execução das suas funções.
Sobre o resultado da maioria das falas acerca do que é a pobreza: “pobreza é
estar em uma condição de não saber, de não ter acesso à informação, não saber
como conseguir as coisas” vale frisar algumas observações relevantes.
210
Percebe-se que os elementos definidores de pobreza para os técnicos vêm
da “prática”, e não dos “manuais de orientação” da política. Os fatores citados, “o
acesso”, “não saber como acessar” e a “falta de informação” são a motivação
cotidiana da demanda que atendem. A maioria dos usuários “pobres”, quando
atendidos, vai em busca de ter acesso ou obter informações sobre que “benefícios”
pode obter para “aliviar” a situação de pobreza apresentada.
Ao conceber pobreza como falta de acesso e informação, está incutida nesse
critério uma exigência própria do entendimento desses técnicos sobre qual é o papel
do Estado como gestor que institucionaliza o combate à pobreza. A inserção em
ações estatais como o PBF pressupõe que o indivíduo será fortalecido em suas
capacidades para obter uma liberdade substantivas (SEN, 1999) de sua autonomia e
protagonismo em seus processos sociais. Ou seja, ao se desligar do Estado, os
pobres teriam que estar aptos a tocarem suas vidas de maneira proativa.
Os depoimentos dos técnicos demonstram que os burocratas de rua têm uma
visão cética e pouco otimista sobre o Programa Bolsa Família. Todos os
entrevistados veem o programa com ressalvas, para não dizer com descrédito. Eles
não acreditam que o programa proporcionará a autonomia dos indivíduos, muito pelo
contrário, acreditam que o programa vicia, traz dependência e propicia uma postura
passiva de viver a expensas do Estado. O conceito comum que os técnicos têm
sobre os “pobres” do Bolsa Família pode ser apontado como: “não gostam de
trabalhar”, “querem viver do dinheiro do Estado”, “não encontram emprego por medo
de perder o benefício” e outros.
Três fatores, em nossa análise, levam os sujeitos a construírem tais
percepções: 1. o fato de os profissionais não terem conhecimento suficiente do
programa e da política em que atuam – o conhecimento que adquirem é prático e
operacional, sem um alcance aprofundado que auxilie a contextualizar o locus do
programa dentro de uma estrutura política maior; 2. o processo de reprodução de
preconceitos inserido e presente na prática profissional dos técnicos; 3. a defesa de
uma lógica de autorresponsabilização individual pelos processos de superação das
adversidades, em que o Estado tem responsabilidade mínima e o sujeito (no caso o
pobre) tem que “se virar” para dar conta de superar sua pobreza.
Uma sutil diferença foi observada, sob esse ponto de vista, entre os técnicos
estaduais e municipais entrevistados. Os primeiros apresentam uma percepção mais
contextualizada sobre o programa, o que é justificável. Em regra, o técnico estadual
211
é o responsável por monitorar e apoiar as ações nos municípios do seu território.
Compete a eles participar das capacitações realizadas pelo nível de gestão federal
que acontecem em Brasília e serem multiplicadores de informações para os
municípios. Dessa forma, eles se aproximam de uma discussão de teor mais
estrutural em que o programa é apresentado de maneira contextualizada, inserida
em um projeto geral, ressaltando que esse fato não isentou que, dentre os técnicos
estatais,
também
fossem
encontradas
durante
a
pesquisa
menções
desqualificadoras, de preconceito e descrédito sobre os pobres, porém em menor
número.
Temos, entretanto, que registrar em termos analíticos que a competência dos
técnicos municipais de pôr a “mão na massa”, ou seja, operacionalizar o programa
cotidianamente é tarefa árdua. Eles são os que se encontram diante do que se
configura como a pobreza real. As situações batem à sua porta tal como são
vivenciadas na realidade e eles precisam ter resposta para resolvê-las. Essa “lida”
diária, em regra, não permite intervalos para se deter em questões estruturais sobre
o que fazer com aquela família que chega a sua unidade de atendimento sem
apresentar condição mínima de subsistência.
A convivência com essas situações desafiadoras aponta, para nossa
conclusão, a apresentação de uma categoria presente nos depoimentos dos
técnicos entrevistados, o tempo. Na função desempenhada no PBF, o tempo se
destacou como uma dimensão que divide a avaliação de atuação dos burocratas de
rua por eles próprios. Isso quer dizer que o “flerte” com o PBF não ocorre assim que
chegam para trabalhar no programa. É necessário um tempo de maturação para ter
início um processo mínimo de experimentação.
Podemos definir, analiticamente, que a linha demarcatória da categoria
tempo, nesse caso, seria a aproximação ou distanciamento do preconceito moral em
relação ao programa: “antes eu tinha preconceito, depois de trabalhar no programa
eu penso diferente”. Assim, na maioria dos casos, percebemos que o primeiro
exercício realizado pelos técnicos foi a tentativa de demarcar o preconceito adquirido
em suas percepções pessoais com o antes de entrar para o serviço público e depois
de trabalhar no Bolsa Família.
Aqui se apresenta, em nosso ponto de vista, um paradoxo dos resultados da
pesquisa que surgiram durante o campo. Se, por um lado, o ranço de preconceito
trazidos do senso comum em relação àquilo que, pejorativamente, costuma-se ouvir
212
no meio social sobre o Programa Bolsa Família é demarcado por esses técnicos
como uma necessidade de ser descontruída com o tempo, por outro lado, em
movimento inverso, conclui-se que a percepção preconceituosa sobre os “pobres”
atendidos parece aumentar quando os técnicos passam a realizar os atendimentos.
Isso demonstra umas das principais problemáticas observadas em campo – a
tensão entre o que seria o entendimento de uma conduta profissional técnica
gerencial burocrática versus uma conduta técnica conduzida por critérios subjetivos
no exercício da função pública.
Dito de outra maneira, o paradoxo seria o técnico “problematizar” a
necessidade da desconstrução do preconceito sobre a visão geral que tem referente
ao PBF, porém não achar o mesmo sobre a necessidade de desconstruir estigmas
que tem em relação ao pobre por ele atendido.
Outro apontamento conclusivo é o que categorizamos chamar de julgamento
do mérito da pobreza. Trata-se do ato de uma autoatribuição constituída pelos
técnicos burocratas de rua a partir da racionalização da prática cotidiana em que
acreditam desenvolver um conhecimento aprimorado com o tempo para identificar
se o pobre atendido manipula ou omite informações para ser inserido no programa.
Diante da comprovação ou não da “manipulação”, há o julgamento se o usuário
merece ou não estar no programa.
Os elementos usados para compor o “julgamento” são pautados na
observação que ocorre durante o atendimento ao “pobre”. Para isso, o técnico
considera: o comportamento; o modo como o usuário está vestido; o depoimento
sobre a trajetória de sua pobreza; as contradições de informações, dentre outros
fatores. Pelos depoimentos dos burocratas de rua entrevistados, as “técnicas” que
aprimoram tal capacidade vão sendo aperfeiçoadas de acordo com o tempo de
experiência na função.
Nos casos em que o técnico “desconfia” e “evidencia” indícios de
“manipulação” ou “mentira” constatada por meio do julgamento do mérito da
pobreza, ele pode solicitar visita domiciliar de uma assistente social ou atendimento
por psicólogo, a depender da situação para verificar se o fato ou a situação relatada
é verídico. E apenas após as averiguações o cadastro do “pobre” poderá ser
finalizado. Pelos dados levantados em campo foi possível deduzir ser comum os
técnicos partirem do pressuposto de que a maioria dos “pobres” mente para entrar
no Bolsa Família.
213
Porém, vale ressaltar que, com a criação de banco de dados informatizados,
no caso, o CadÚnico, a seleção do perfil das famílias que serão “beneficiárias” do
PBF passou a ser automática e sistematizada pelo sistema de informações. Os
critérios, para ser elegível ao programa dependem da inserção de dados
alimentados no CadÚnico e do recorte de renda exigido. Uma das funções dos
técnicos burocratas de rua, que seria a força do trabalho humano presente no
processo de seleção, é serem os responsáveis pelas entrevistas para obter os
dados e cadastrá-los no banco de informações.
Nos primeiros anos do PBF, os formulários eram preenchidos manualmente e
os técnicos emitiam parecer indicando se o “pobre” apresentava os requisitos
necessários e estavam aptos para a inserção no programa. Curiosamente, mesmo
com a informatização do processo, os técnicos ainda requerem para si a
autolegitimidade de julgamento sobre as situações.
Essa situação é, de fato, complexa para a gestão do programa, pois, não há
diretrizes ou orientação técnica do PBF que reconheça ser competência dos
técnicos desempenhar tal “julgamento” como função em suas práticas. Como
principal consequência desse dado, há a desmotivação de muitos usuários, que
desistem de obter o benefício pelo empecilho encontrado no atendimento dos
técnicos, assim como a ausência desse técnico que, em regra, deveria ser visto
como referência e apoio no acompanhamento da situação do usuário, pois, durante
todo o percurso institucional, os técnicos de nível de rua são os seus interlocutores.
214
VII. Considerações Finais
A proposta central desta tese consistiu em, por meio da discussão dos
processos de institucionalização do combate à pobreza, descentralizar o foco dos
usuários para um estudo que priorizasse a investigação de atores, por vezes
preteridos, porém estratégicos por serem responsáveis pela gestão, execução,
operacionalização e atendimentos diretos aos considerados “pobres” nos municípios
brasileiros. No senso comum institucional, são conhecidos como “técnicos que
atuam na ponta” ou “técnico da ponta”, conceituados no percurso da pesquisa como
os Street-level bureaucrats (LIPSKY, 2010), em nossa tradução, “técnicos
burocratas de nível de rua”. Para o trabalho de campo, decidiu-se investigar os
técnicos que atuam com o público do Programa Bolsa Família, por esta ser, em
números de usuários, a maior ação de atendimento aos considerados pobres
atualmente no Brasil.
A análise desenvolvida teve o objetivo de compreender como tais sujeitos,
com base na racionalização de sua prática profissional, constroem suas percepções
sobre o programa em que atuam, sobre a pobreza e sobre o “pobre”. Nessa direção,
buscou-se pesquisar se os argumentos, os dilemas e a institucionalização da
pobreza presente na atuação cotidiana apontam analiticamente para vislumbrar
processos de ruptura ou de reprodução do histórico de valorações, julgamentos
morais e sociais desqualificadores em relação ao pobre e à pobreza.
O aporte metodológico-teórico orientou-se com base nas reflexões de Serge
Paugam (2003) quando discute a perspectiva da pobreza como uma condição
reconhecida socialmente construída, em muitos casos mediada pela intervenção
institucionalizada do Estado. Na visão de Paugam, um processo que pode culminar
numa abordagem valorativa de desqualificação social para os sujeitos que procuram
os programas e serviços de assistência estatais. Nessa perspectiva, insere-se a
teoria de Michael Lipsky (2010) sobre os dilemas enfrentados na prática dos
burocratas de nível de rua. A contribuição teórica de Lipsky lapidou o olhar para
compreender o papel dos técnicos burocratas de nível de rua que inserem, atendem
e cadastram os pobres nas ações de combate à pobreza.
Feitas as considerações iniciais, partiremos para a retomada das principais
questões construídas ao longo do texto, direcionando a exposição para um viés
215
conclusivo. Ressalta-se que se optou por uma organização textual em que os
capítulos também trouxessem reflexões de mesmo teor. Assim, as considerações
finais apresentadas nesta seção terão abrangência de uma análise ampliada e
articulada com o objetivo geral da pesquisa e sua tese.
Os marcos históricos considerados durante o texto tiveram o objetivo de
apresentar pistas relevantes para compreender como se configurou e se configura o
combate à pobreza institucionalizado pelo Estado brasileiro.
Em termos conclusivos, nesta questão, as análises levantadas ratificaram que
a inserção moral e estigmatizadora que envolve o universo da pobreza e do “pobre”
está historicamente registrada nas experiências das intervenções voltadas a esse
público. Partindo de uma análise comparativa, confirma-se ainda que o ranço
histórico não ficou no passado, e, sim, trata-se de um processo continuado e
contemporâneo. O que foi constatado no campo de pesquisa tem intrínseca relação
com a afirmativa de Rego e Pinzani (2013), de que, no caso brasileiro, o debate
acerca do Bolsa Família é um bom exemplo da repetição histórica do preconceito e
da força de estereótipo.
Inferimos ainda que o Estado sempre se apresentou como regulador da
pobreza até mesmo quando foi expectador, tratando-a como caso de polícia, de
controle da ordem social ou de isolamento urbano. Naquele momento, a sociedade
civil era a protagonista e a responsável por tutelar a pobreza. Os pobres eram
assistidos pela caridade da igreja, que liderava um amplo sistema de favor (LAPA,
2008) tendo destaque para o papel dos homens ricos de “bom coração”. Com isso,
arregimentava-se uma espécie de economia da salvação (CASTEL, 2012) como o
locus da institucionalização da pobreza.
Como a maioria das ações ocorriam fora do aparato estatal, não havia, assim,
um processo de procedimentos institucionalizados efetivos da intervenção do Estado
voltado para a pobreza.
Outro fator relevante a ser abordado sobre o processo de institucionalização
refere-se ao fato de que, no momento em que ocorre a transição da “caridade” e da
“esmola” exercida pela tutela da igreja e da sociedade civil para a responsabilização
política do Estado sob forma de direitos conquistados, isso parece não ser
legitimado. Permanece um entendimento na maioria dos técnicos e gestores
burocratas de rua entrevistados de que a intervenção do Estado nas políticas de
216
combate à pobreza, por exemplo, no caso da transferência de renda, é uma “ajuda”,
uma “bondade”, tal como uma “esmola”.
A caracterização do direito como “ajuda” é um dado analítico que tem
implicância direta na relação cotidiana institucionalizada entre os técnicos burocratas
de rua e os pobres. Nos relatos desses profissionais, o pobre costuma assumir o
lugar de “pedinte”, enquanto o técnico tem o papel de “inquisidor” sobre o
merecimento ou não do pobre em receber a “ajuda” do Estado. Evidencia-se ainda,
com as observações de campo, o caráter pejorativo que desqualifica socialmente
aquilo que é direcionado ao pobre, persistindo a visão de que o que é acessado pelo
“pobre” é “esmola” e não direitos.
A partir da promulgação da Constituição Federal do Brasil de 1988
consideramos que, se por um lado, houve avanços nas legislações garantindo ao
pobre o direito como cidadão e no número de programas e serviços disponibilizados
a esse público, por outro, ainda não conseguimos retratar o mesmo na
institucionalização prática das equipes estatais no atendimento aos pobres. Um dos
grandes desafios do Estado brasileiro com relação às ações do combate à pobreza
se traduz em efetivar e garantir o acesso de forma digna a esses direitos.
Com isso constatamos que a experiência do acesso às ações do combate à
pobreza no Brasil está longe de ter como consequência um retorno meramente
material. A inserção no Programa Bolsa Família proporciona aos atores
experimentações diversas que podem ser de processos de estigmas (GOFFMAN,
1988); desqualificação social (PAUGAM, 2003); humilhação (MARINS, 2014;
ARAÚJO, 2007) até um status de qualificação social entre seus iguais (PEREIRA,
2007). A construção dessas percepções pode partir da sociedade civil, mas também,
de forma recorrente, dos técnicos e gestores que fazem parte da rotina institucional
dos “pobres” atendidos nas ações que institucionalizam a pobreza.
Por todas essas análises é que a exploração dos dados da pesquisa de
campo foi guiada pela seguinte questão que consideramos a centralidade da
presente pesquisa: como tem se configurado a institucionalização do combate à
pobreza na prática dos técnicos burocratas de rua e se a política de combate à
pobreza, por suas experimentações locais, tem institucionalizado a pobreza que ela
mesma tenta combater.
A partir dos dados da pesquisa de campo, que trabalhou a percepção dos
técnicos burocratas de rua sobre o pobre e a pobreza, articulada à questão central
217
da tese aqui proposta, que trata da institucionalização da pobreza por meio do
combate à pobreza na prática desses profissionais, apontamos a análise conclusiva.
Um primeiro apontamento conclusivo é que a institucionalização da pobreza
na atuação dos técnicos pesquisados ocorre mais por intermédio de elementos da
prática e da rotinização experimentada no dia a dia, e menos por modelos formais
de implantação das orientações técnicas elaboradas no nível de gestão do governo
federal.
Dessa forma, concluímos que os técnicos e gestores estabelecem consensos
(em torno de pressupostos formais), dissensos (relacionados à prática) num senso
comum institucionalizado pelo que eles observam na prática. Essa percepção é o
balizador da forma institucionalizada de ver a pobreza e os pobres em suas ações.
Paradoxalmente, nem sempre os consensos e dissensos representam o que
evidenciam as normativas pactuadas em nível federal. Percebemos uma inferência
direta da construção social que os técnicos vivenciam e partilham na estrutura do
que chamamos hoje de políticas de combate à pobreza.
Nesse sentido se constitui o que podemos denominar de antagonismo ou
tensão entre os níveis gerenciais da política, pois a orientação do nível de gestão
federal nem sempre se traduz no que é executado na prática dos técnicos de nível
de rua. Um exemplo disso é trazido nas falas transcritas sobre a percepção de quem
é o usuário “pobre” do PBF para os técnicos. O pobre atendido pelos técnicos é
retratado nas falas como àquele que nem sempre precisa de assistência do Estado,
por isso ele “mente”, “omite informações”, “não quer trabalhar”, tudo isso para não
romper um “círculo vicioso de dependência” de receber o “Bolsa Família” do
governo.
Na visão dos técnicos burocratas de rua a pobreza é a “falta de acessos” e a
“falta de acesso à informação”, diferentemente do Estado que classifica a pobreza
pelo método do corte de renda. Sobre o ponto de vista desses profissionais
concluímos que institucionalizar a pobreza significa “ensinar”, “capacitar” o “pobre”
para que ele supere a condição de dependência do Estado. O caminho que deve ser
trilhado pelo governo para esses técnicos e gestores seria realizar a inserção dos
“pobres” no mercado de trabalho, ou melhor, “dar um trabalho” para que eles
possam manter sua própria subsistência e não “dar dinheiro”.
Contraditoriamente, o Estado qualifica o sujeito pobre que busca se inserir no
Bolsa Família e, em condição de pobreza, como um público que, em sua maioria
218
trabalha e tem renda (mesmo que de maneira informal) independentemente do
programa, mas que ainda não é suficiente para suprir as necessidades de
sobrevivência.
Sobre o ponto de vista de o Estado institucionalizar a pobreza passa pela
garantia do direito de o “pobre” receber uma transferência de renda para que
alcance um patamar mínimo de superação da sua pobreza. Essa assistência do
Estado é prevista por um período temporal até que ele supere a sua condição de
vulnerabilidade econômica e social e assim possa retomar a sua autossubsistência.
Considerando esse contexto de perspectivas, a partir dos dados da pesquisa,
visualizamos dois projetos de institucionalização da pobreza em pauta, de um lado o
Estado que institucionaliza a pobreza qualificada pela porta de entrada de ações do
combate à pobreza pelo PBF. De outro lado, a pobreza institucionalizada na prática
dos técnicos burocratas de rua, onde o critério de institucionalização se pauta no
julgamento do mérito da pobreza (ver tópico 6.3, entre o julgamento e a
objetividade), isto é, pelo julgamento moral e valorativo dos indivíduos que procuram
os equipamentos estatais se eles merecem ou não ser inseridos nas ações do
combate à pobreza.
Defendemos que não seja parte de um exercício científico tomar partido do
certo ou do errado, mas de compreender os fatores que podem apontar as causas
dessa dicotomia. Nessa direção podemos apontar que a condição de trabalho e a
exigência de respostas rápidas e práticas faz com que os técnicos burocratas de rua
busquem meio de fazer seu melhor e seu pior (LIPSKY, 2010) ao exercer suas
funções públicas. Ao racionalizar o critério de classificação pelo merecimento e não
pelo direito, por meio de um julgamento moral e valorativo, a tentativa desses
técnicos talvez seja de priorizar, diante do número elevado de demanda que chega
aos equipamentos públicos, aqueles que “mais precisem dentre os que precisam”.
Entretanto o caráter do julgamento do merecimento por eles assumido,
normatiza a institucionalização da pobreza na perspectiva estigmatizadora e
desqualificadora socialmente do pobre e da pobreza.
Por outro lado, fazemos a crítica de que essa postura não é condizente com o
conhecimento das diretrizes da Carta Constitucional quando se refere à assistência
e à proteção do Estado a todos que dele precisar (CF, 1988). Uma das
consequências dessa tensão dicotômica para a política é a não efetivação do projeto
219
político do governo de proporcionar aos sujeitos considerados em condição social de
pobreza um acolhimento via política pública na perspectiva do direito.
Avaliamos que a perspectiva adotada na prática dos técnicos burocratas
entrevistados reforça a implicação de uma afirmação negativa de reprodução de um
ciclo de estigma e desqualificação social dos sujeitos “pobres” que procuram os
equipamentos estatais em busca da inserção nos programas de combate à pobreza
amplamente divulgado pelo governo federal.
E, por fim, em relação à questão central da pesquisa aqui proposta sobre o
processo de combate à pobreza na institucionalização da prática dos street level
bureaucrats (LIPSKY, 2010), os técnicos e gestores burocratas do nível de rua,
concluímos que o Estado hoje tem institucionalizado, por meio das percepções e
práticas aqui pesquisadas, o modelo de pobreza que ele mesmo deseja combater.
Ou seja, a pobreza entendida como um ônus ao Estado, um favor, uma esmola e
não uma condição social de pobreza vista como direito à assistência e à proteção
social do Estado.
Cabe ainda contextualizar como ponderações finais situar o fato de os
técnicos burocratas de rua pesquisados fazerem parte de um aparato de
instrumentalização de modelo de políticas sociais proposto com a implantação
neoliberal
de
reestruturação
econômica
dos
países
considerados
em
desenvolvimento. Nesse sentido, muito de sua prática se deve à referência de
atuação desses projetos.
Certamente não cabe culpabilização nem responsabilização pela condição
estrutural da política em que esses profissionais executam a sua função pública.
Mas não se pode negar que a postura autoatribuída, de um papel de inquisidor ao
institucionalizar o mérito da pobreza dos usuários, mesmo na ausência de uma
consciência reflexiva (GIDDENS, 2009), sobre a consequência do ato contribui para
a persistência de processos de desqualificação social, estigmas e preconceitos com
aqueles que precisam da assistência do Estado em algum momento. De forma que
procurar assistência para conseguir a inserção em um programa de transferência de
renda como o PBF pode se transfigurar num ato indigno.
O que ocorre no Brasil com a experiência de institucionalização da pobreza,
via PBF, e a inferência dos técnicos burocratas de nível de rua, pode ser entendido
como a configuração de um projeto que reconhece o pobre mais como uma
autorresponsabilização pessoal e moral de sua condição imediata de pobreza e
220
menos como um cidadão de direitos. Assim, esse projeto comete um equívoco por
não reconhecer ou vincular a condição de “pobre” a fatores estruturais que edificam
a condição social de pobreza experimentada pelos sujeitos.
Insere-se nessa discussão a especificidade da história brasileira da
desqualificação social da pobreza e do pobre. Assim, a particularidade do objeto de
pesquisa aqui apresentado foi ratificar, por método qualitativo, que esse ranço se
encontra constituído não apenas no senso comum da esfera social, mas também
nas estruturas de institucionalização do Estado, nos atos de intervenção voltados
aos considerados “pobres”.
Reconhecemos, indubitavelmente, o impacto e o papel fundamental na
melhoria de qualidade de vida que programas como o Bolsa Família proporcionaram
e continuam proporcionando às pessoas em condição de pobreza. Articular tais
ações a saídas estruturantes e universalizadas pela garantia de direitos e da
proteção social regular e não de maneira pontual associada ao empoderamento dos
“pobres” para que, ao buscarem a assistência do Estado, apresentem-se por sua
condição de “cidadãos” no acesso a direitos, e não no papel de “pedintes” é
primordial. Pensamos que ao Estado é necessário conhecer melhor suas políticas e
seus atores e como eles constroem o mundo real. Essa é uma condição que o
conhecimento das ciências sociais pode causar. Esse “desvendar dos olhos”
permitirá processos menos desiguais e mais estruturantes da condição humana de
todos que o contexto socioeconômico condena a viver de maneira intensa a sua
condição de pobreza.
221
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