O DISCURSO MIDIÁTICO E A PRODUÇÃO DE IDENTIDADE SOCIAL Ilídio Pereira Doutorando/PPGCOM/UFRGS 1 Resumo: A sociedade contemporânea se caracteriza por uma série de mudanças em to dos os aspectos da vida social. Os discursos que circulam na mídia assumem um papel crucial na construção de identidades uma vez que nossos significados passam a ser prioritariamente construídos pelos discursos midiáticos. Assim, este ensaio à luz da Análi se Crítica do Discurso, tem por objetivo trazer subsídios teóricos que ajudam na reflexão sobre a relevância da mídia na construção de sentidos, focando a construção de identidades no contexto das relações raciais. Palavras-chave: Mídia, Identidade, Análise Crítica do Discurso Introdução A sociedade contemporânea é marcada por uma série de mudanças em todos os aspectos. O dinamismo dos meios de produção e comunicação, o acesso aos estoques mundiais de informação, possibilitados pela era da tecnologia, e xercem grande influência nas novas formas de relações sociais e no processo de construção das identidades sociais. A atividade social passou a transcorrer em grandes distâncias espaço -temporais, onde indivíduos e grupos vivem relações globalizadas em suas praticas locais via mídia. Na ótica de Moita Lopes (2002), um dos objetivos básicos que subjaz à pesquisa nas Ciências Sociais atualmente é dar sentido às mudanças que as sociedades estão experimentando devido aos processos de globalização e de mediação d as experiências através da mídia. Tais mudanças foram centrais na reorganização dos modos de pensar e viver o mundo, como também de ver e experienciar a diversidade humana. Assim, os meios de comunicação social, enquanto estruturas profissionalizadas de di stribuição de mensagens, acabam por profissionalizar a atividade mediadora que se instaura e consolida como uma dimensão constituinte e estruturante da sociabilidade. È a mediação do espaço público, uma vez que, o uso dos meios de comunicação transforma, de forma fundamental, a organização da vida social, criando novas formas de ação e de interação. Na visão de Wolton (1995) o espaço publico contemporâneo pode ser designado por “espaço público mediatizado”, no sentido em que é funcional e normativamente i ndissociável do papel da mídia. Nesse contexto, pensando nas influencias da mídia na constituição de sujeitos contemporâneos, para Martín-Barbero os meios de comunicação surgem como espaços de constituição identitária e de conformação de comunidades. Ness a linha, Thompson (1998) pontua 1 [email protected] 1 que esse papel crucial na construção identitária advém do fato de nossos significados passaram a ser prioritariamente construídos pelos discursos midiáticos, embora existam outros, tais como a escola, família, religião etc. Partindo do pressuposto que o processo de interação social vive dos protocolos de linguagem, concebemos a linguagem como algo que não se limita às estruturas lingüísticas, mas como algo que se insere num permanente processo de criação de sen tidos e significados, que age sobre as pessoas, sobre os seus comportamentos, sobre os seus corpos. Conseqüentemente, identidade aqui também é vista como prática, como algo que se insere em um processo de elaboração constante. Assim, o objetivo deste ensaio consiste em um exercício teórico no intuito de trazer subsídios para refletir sobre a relevância da mídia na construção de identidades, tendo como foco o contexto das relações raciais 2. Partindo destas premissas, vamos tomar o caminho da lin guagem, apropriando para essa finalidade de algumas reflexões empreendidas no campo da Análise Crítica do Discurso (ACD) – linha inglesa de análise. A ACD tem como propósito o debate teórico e metodológico do discurso, na qual a linguagem é vista como prát ica social. Para Fairclough (2001) entender o uso da linguagem como prática social implica compreendê -lo como um modo de ação historicamente situado, que é constituído socialmente, além de ser constitutivo de identidades sociais, relações sociais e sistema s de conhecimento e crença. À luz das breves considerações precedentes, este trabalho está estruturado da seguinte forma: primeiramente fazemos uma breve discussão sobre a contemporaneidade, situando o papel da mídia nas suas transformações abordando a necessidade de se fazer uma reflexão sobre os discursos midiáticos. No segundo momento, guiado pelos pressupostos da Análise Crítica do Discurso discurso, ideologia e hegemonia - , a reflexão é sobre como a linguagem intervem na construção do s discursos e como as ideologias são utilizadas nas lutas pela hegemonia, e trazendo subsídios analíticos para a análise de textos. Na seqüência, abordaremos como o discurso relaciona com a construção de identidades. Depois, discutiremos como o discurso mi diático que constrói identidades, relaciona com a questão racial. 2 Esta reflexão está vinculada ao meu tema de pesquisa que tem como objetivo principal Investigar através do discurso, de que modo à mídia imprensa apresenta a questão racial no Brasil, no que concerne a política de cotas: que identidades são construídas e como são representados os afrodescendente nas notícias referentes a essas políticas. 2 O discurso midiático na sociedade contemporânea Segundo Fridman (2000), a contemporaneidade é altamente marcada por processos de globalização e comunicação in stantânea, pela volatilidade do capital, pela ação à distância, por novos apartheides sociais, pelo processo de fragmentação do sujeito e pela predominância da mídia na constituição do universo simbólico das grandes massas. Diversas mudanças de ordem econô mica, cultural, institucional, política e social acompanham a caracterização da contemporaneidade. O dinamismo de tais mudanças atinge de tal forma as relações sociais e as subjetividades, que se faz necessário discutir sua natureza e suas conseqüências pa ra a construção das identidades sociais. Refletindo sobre o cenário atual, para Fridman (2000): O declínio da esfera pública e da política nos moldes consagrados, a crise ecológica, o impasse histórico do socialismo, os tribalismos, a expansão dos fundamen talismos, as novas formas de identidade social ou as conseqüências da informatização sobre a produção material e sobre o cotidiano trouxeram à tona a discussão sobre pluralidade e fragmentação pós-modernas. Na ótica de Chouliaraki & Fairclough (1999), os avanços na tecnologia da informação, por exemplo, subjazem tanto as transformações econômicas quanto culturais, abrindo também espaço para novas formas de experiência e conhecimento, e novas possibilidades de relacionamentos com outros distantes via meios de comunicação, tanto impresso quanto eletrônico. Estes autores acrescentam que modernidade fixou -se na transmissão de sinais econômicos e culturais que ultrapassam a barreira do tempo e espaço, tornando possível uma grande circulação e renovação do conhecimento, bem como novas formas de ação e interação à distância. Isso quer dizer que a atividade social passou a transcorrer em grandes distâncias espaço -temporais, onde indivíduos e grupos vivem relações globalizadas em suas práticas locais via mídia. Neste sentido, segundo Thompson (1998) a mídia torna -se um espaço central não só para a difusão da informação renovada, como também para a permanente reconstrução das identidades sociais. Enquanto experiências vividas permanecem fundamentais, há uma crescente s uplementação de experiências mediadas pelos discursos da mídia, que assumem um papel cada vez maior no processo de construção das identidades sociais o que torna esses discursos, entendidos aqui não só como lugar de reprodução, mas também de construção da vida social um importante objeto de estudo se desejarmos entender a vida social. Nesse contexto, para Fairclough (1995) a análise dos textos da mídia deve focalizar como o mundo e os eventos são representados, que identidades são construídas p ara as pessoas envolvidas e que relações são estabelecidas. Isso porque, como pontua Fowler (1993) os textos midiáticos estão 3 sujeitos a processos de seleção uma vez que nem todos os eventos “são dignos de se tornarem notícia”. Estes são selecionados por u m complexo conjunto de critério quanto á aquilo que vale a pena ser noticiado. Portanto, os textos da mídia constituem versões da realidade que dependem de posições sociais, interesses e objetivos daqueles que o produzem. Nestas escolhas é importante que se leva em consideração as motivações sociais e os aspectos ideológicos. Toda a estrutura comercial e industrial da imprensa e suas relações têm um efeito no que publicado como notícia e em como a informação é apresentada. Assim, a análise da construção das relações e identidades nos textos da mídia levanta importantes questões socioculturais (FAIRCLOUGH 1995). Compreender como são construídas na mídia a relação entre o público e aqueles que dominam a economia a política e a cultura é importante para compree nder as relações de poder e dominação na sociedade contemporânea. Na próxima seção focaremos na Análise crítica do Discurso, trazendo subsídios para entendermos como as ideologias são utilizadas na luta pela hegemonia, no sentido de impor determinada visão de mundo. A Análise Crítica de Discurso: discurso, ideologia e hegemonia Este item propõe-se a contextualizar a análise Crítica do Discurso (ACD), uma abordagem da Teoria Social do Discurso desenvolvida por Norman Fairclough, que se bas eia em uma percepção da linguagem como parte irredutível da vida social, dialeticamente interconectada a outros elementos sociais (FAIRCLOUGH, 2003). O destaque da ACD é a contribuição que este pode dar para pesquisas críticas sobre mudança social. Trata -se de uma proposta teórico-metodológica aberta ao tratamento de diversas práticas na vida social. Os conceitos centrais da disciplina são os de discurso e prática social. Fairclough (2001) usa o termo discurso para se referir ao uso da linguagem como forma de prática social e não como atividade puramente individual ou reflexo de variáveis institucionais. Isso tem pelo menos duas implicações: o discurso é um modo de ação, uma forma como as pessoas agem sobre o mundo e sobre os outros, bem como um modo de repr esentação; segundo, há uma relação dialética entre o discurso e a estrutura social, existindo mais geralmente tal relação entre a prática social e a estrutura social - a última é tanto uma condição como um efeito da primeira. Isso quer dizer que é constituído socialmente, além de ser constitutivo de identidades sociais, relações sociais e sistemas de conhecimento e crença. Uma referência central para a ACD é o trabalho de Foucault (1996) no que se refere à relação entre discurso e poder, ond e este enfatiza a visão constitutiva do discurso em várias 4 dimensões sociais. O discurso constitui objetos de conhecimento, sujeitos, relações sociais e estruturas conceituais. Outro enfoque desse autor é sobre a interdependência das práticas interdiscursivas de uma sociedade: os textos recorrem a outros textos contemporâneos ou anteriores e os transformam; qualquer prática discursiva é gerada a partir de combinações de outras e é definida pelas suas relações com outras práticas discursivas. Para este autor o discurso não é um elemento transparente e neutro: “(…) em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certos números de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigo s, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT, 1996, p.8). Inspirado em Foucault, Fairclough (2001) defende que o discurso é socialmente constitutivo, gerando três efeitos e contribuindo para a construção: do que é referido como identidades sociais e posições de sujeito, para o sujeito social e os tipos de eu; das relações sociais; de sistemas de conhecimentos e crenças. No entanto, a referência de Foucault não é suficiente para considerar o processo de luta s discursivas. Por esse motivo, as noções de ideologia e de hegemonia são trazidas para a ACD. Ideologia e lutas hegemônicas Fairclough (1992) analisa o discurso em relação ao poder e a ideologia e situa o discurso numa perspectiva de poder como hegemonia em que se entende as relações de poder como lutas hegemônicas. Com base na teoria de Gramsci – que vê na hegemonia uma característica fundamental da luta pelo poder nas sociedade capitalistas modernas – segundo Fairclough (1997), duas relações se estabelecem entre discurso e hegemonia. Em primeiro lugar, a hegemonia e a luta hegemônica assumem a forma da prática discursiva em interações verbais, a partir da dialética entre discurso e sociedade – as hegemonias são produzidas, reproduzidas, contestadas e transformadas no discurso. Em segundo lugar, o próprio discurso apresenta-se como uma esfera da hegemonia, sendo que a hegemonia de um grupo é dependente, em parte, de sua capacidade de gerar práticas discursivas e ordens de d iscurso que a sustentem. Uma vez que a hegemonia é vista em termos da permanência relativa de articulações entre elementos sociais, existe uma possibilidade intrínseca de desarticulação e rearticulação desses elementos. De um ponto de vista discursivo, a luta hegemônica pode ser vista como disputa pela sustentação de um status universal para determinadas representações particulares, do mundo 5 material, mental e social (Fairclough, 2003). Nessa perspectiva, uma vez que o poder depende da conquista do consenso e não apenas dos recursos para o uso da força, a ideologia tem importância na sustentação de relações de poder. O conceito de hegemonia, então, enfatiza a ideologia no estabelecimento e na manutenção da dominação, pois se hegemonias são relações de domin ação baseadas mais no consenso que na coerção, a naturalização de práticas e relações sociais é fundamental para a permanência de articulações baseadas no poder (THOMPSON, 1998). Segundo Hall (2003) apesar de Gramsci não ter escrito nada diretamente relac ionado ao racismo, os temas recorrentes na sua obra fornecem linhas teóricas e intelectuais de estreita ligação com os problemas da contemporaneidade, tal como o racismo. Segundo Hall (2003) a obra de Gramsci no campo ideológico fornece subsídios para uma ampla compreensão das relações étnicas, uma vez que vai de encontro a uma visão homogênea e não contraditória de consciência ideológica. O discurso e a construção de identidades Como pontua Moita Lopes (2002) todo discurso é ideológico. Os participantes agem no mundo via linguagem de acordo com seus valores, crenças e interesses, e sua posição e relações sociais com os co participantes em contextos específicos. Isso quer dizer que o tipo de relação social estabelecido em determinado momento, assim como a maneira como o sujeito social é reconhecido podem mudar a cada interação e no curso de várias interações. A esse respeito Chouliaraki & Fairclough (1999, p. 41) afirmam, “em uma comunicação interativa as pessoas não representam o mundo abstratamente, mas sim de acordo com suas relações sociais com outros e sua construção das identidades sociais”. Dentro da nossa proposta, é essencial o conceito de identidade ou identidades (no plural) como preferem alguns autores, uma vez que um dos questionamentos é sabe r que identidades são construídas para os negros e seus descendentes pela mídia. O conceito de identidade é entendido por Silva (2000, p.74) como “simplesmente aquilo que se é”, ela se estabelece principalmente por meio de diferenças, pois, para o autor, os conceitos – identidade e diferença – têm relação direta, são inseparáveis, além de serem conceitos sociais e culturalmente construídos por meio de atos de linguagem. A afirmação da identidade é parte de uma cadeia de negações, de diferenças; e afirmaçõe s sobre a diferença também dependem de uma cadeia de negações sobre identidades. Identidade e diferença são, então, conceitos mutuamente determinados. 6 Na perspectiva dos Estudos Culturais ( HALL, 2000; SILVA, 2000), tanto a identidade quanto a diferença são atos de criação lingüística, ou seja, são criaturas do mundo social produzidas ativamente no discurso, em textos e interações. Por se tratar de construções simbólicas e sobretudo discursivas, identidades e diferenças são instáveis, sujeitas a relações de poder e a lutas por sua (re)definição. A afirmação da identidade e da diferença no discurso traduz conflitos de poder entre grupos assimetricamente situados. Castells (1999, p. 23) aponta que toda e qualquer identidade é construída, e para ele a principal questão acerca da construção da identidade é “como, a partir de quê, por quem e para quê isso acontece”, uma vez que isso é determinante do conteúdo simbólico da identidade. Refletir sobre como a mídia se relaciona com a questão das minoria s, criando determinadas identidades, é o foco da próxima seção. A relação da imprensa com as minorias Como foi constatada, a imprensa figura como uma instituição fundamental na construção e na reprodução do consenso político que mantém a s ociedade. Conseqüentemente, é relevante examinar a relação entre imprensa e minorias, seja pelo baixo número de notícias sobre as minorias no conteúdo das notícias, seja pelo viés desfavorável de muitas delas. Essa relação entre imprensa e minorias fortemente marcada por interesses ideológicos, contribui para a construção e a fixação entre os leitores, e na sociedade em geral, de sentidos e imagens sobre minorias que contribuem para a manutenção do racismo. Em seu trabalho sobre racismo e imprensa, van Dijk (1991) desvenda um fenômeno presente nas sociedades contemporâneas, mas enfaticamente negado, qual seja, a articulação de um discurso racista por parte das elites dominantes e a participação da imprensa nesse processo. O autor sugere: 1) um país ou uma so ciedade é tão racista quanto suas elites dominantes o são; 2) como representante da estrutura de poder dos brancos, a imprensa – de modo consciente – tem limitado o acesso tanto na contratação quanto na promoção ou veiculação e pontos de vista de grupos ét nicos minoritários. Ele demonstra que as minorias, assim como os imigrantes são apresentados como um problema ou uma ameaça e são retratados preferencialmente em associação com crime, violência, conflito, diferenças culturais inaceitáveis ou outras formas de desvio. Segundo van Dijk (1991) no racismo vigor na imprensa e em outros âmbitos da sociedade predominam estratégias de atenuação. Deste modo, é comum observar pessoas com comportamentos racista, mas que, no entanto, buscam apresentar -se a si mesmas , por um lado, como pessoas 7 tolerantes e que defendem uma igualdade diante de um sistema político pluralista, mas por outro lado, não são anti-racistas de modo consistente. Assim, o papel da imprensa na reprodução do poder, afirma, não é passivo, uma vez que “ela pode veicular interesses conflitantes, representar grupos legítimos de oposição ou ainda falar sobre pessoas” (van Dijk, p. 41). Em relação às sociedades contemporâneas, van Dijk atribui á imprensa um controle quase exclusivo sobre os recursos simból icos com as quais se produz consenso popular, especialmente no que diz respeito às relações étnicas. Law (2002) nota um papel chave dos textos da mídia tanto em desafiar identidades fixas e as perspectivas a elas relacionadas como em propor e transmitir i déias e imagens que influenciam e formam novas visões de mundo. No exame das ferramentas conceituais disponíveis apara aferir a caracterização racial negativa da mídia, Law observa quatro métodos predominantes: Essas ferramentas envolvem tanto a medida de atribuição negativa das minoras em relação á branquitude, a avaliação de representação racial e cultural em comparação à vida ‘real’, avaliação sobre privilegiamento e o silenciamento de diferentes vozes culturais em relação a normas eurocêntricas, e, o p rivilegiamento das percepções de atribuição negativa mantida pelos próprios racializados (Law, 2002, p.158) Segundo Entman (1990) o investimento racista por pare da imprensa não é algo cristalino, de fácil percepção ao cidadão comum, uma vez que fenômenos como a presença de ancoras negros nos programas televisivos ajudariam a construir a imagem do racismo como algo do passado. Para Campbell (1995), existe pesquisas que indicam uma forte tendência entre os jornalistas a se conformarem a valores nas redações como forma de socialização. Como o Brasil tem tratado a questão racial e que ações têm sido adotados no sentido de criar uma sociedade mais justa, no âmbito racial, é o foco da seção a ser tratado na seqüência. Racismo e ações afirmativas Investigar o funcionamento do racismo no Brasil é tratar de uma situação bem peculiar no contexto mundial. Isso não simplesmente por assumirmos que cada realidade social guarda sua própria especificidade, mas sim porque a peculiaridade brasileira reveste -se de uma relevância ímpar, seja pela reconhecida característica de ser o país com o maior número de negros fora do continente africano, seja pelo fato de ser o último país a abolir a escravatura, seja pela decantada harmonia nas relações raciais – tese que vigorou nos círculos acadêmicos até por muito tempo e que ainda parece ter peso na opinião pública – e pela imagem que o país construiu em volta disso. 8 Pesquisas sobre o racismo no Brasil apresentados por Schwarcz (2000) convergem no ponto que “ninguém neg a que exista racismo no Brasil, mas ele é sempre um tributo do ‘outro’”. A dificuldade não se daria, portanto, quanto ao reconhecimento oficial do preconceito, mas sim quanto a admiti-lo na intimidade. Este conjunto de argumentos demonstra como estamos dia nte de um tipo particular de racismo; um racismo sem cara, que se esconde atrás de uma suposta garantia da universalidade das leis e que lança para o terreno do privado o jogo da discriminação. Faz-se necessário fazer algumas considerações sobre a questão da ação afirmativa que pode ser vista, sob uma perspectiva mais abrangente, como políticas públicas voltadas para a reparação de injustiças cometidas contra minorias raciais como para a promoção de grupos minoritários – aqui incluindo as do tipo racial, pa ra favorecer negros e outras minorias étnicas, as relacionadas ao gênero, em prol das mulheres, e as que beneficiam outros segmentos, como portadores de deficiência ou militares veteranos de guerra (MARTINS, 2003). No Brasil a reserva de vagas nas univers idades federais para alunos negros e descendentes de indígenas egressos do ensino público está prevista no Projeto de Lei 3627, de 2004, que, de acordo com o Plano Nacional de Educação, objetiva a implantação de políticas diferenciadas de acesso à Educação Superior para grupos socialmente prejudicados. Nesse contexto que a ação afirmativa tem a ver – não simplesmente com uma postura passiva de não discriminação, mas sim com medidas ativas, com vistas a aumentar, de modo significativo, o recrutamento e a p romoção de minorias Ezorsky (1991). A autora destaca o impacto positivo dos programas de ação afirmativa. Negros em posição de prestígio na sociedade servem como modelo para crianças negras, o que é um reforço à auto -estima da criança e da comunidade. Considerações finais Ao término destas reflexões, é pertinente dizer que se objetivou construir um arcabouço teórico que nos permite ter condições de refletir e, num próximo momento, analisar as identidades que construídas aos afrodescendentes na mídia no qu e concerne a políticas afirmativas. Apenas um discurso de resistência com poder de desnaturalizar preconceitos, crenças e tabus, poderá construir uma nova identidade pra os negos. Essa deve ser a meta futura na luta pela igualdade de direitos e de oportunidades. O debate sobre questões raciais na imprensa revela -se um momento promissor na conjuntura nacional. Sua emergência traz à esfera pública questões que até recentemente estavam 9 excluídas das agendas social e político: o racismo institucionalizado na so ciedade brasileira e a necessidade de se adotar políticas publicas para enfrenta -lo. Referências BENTO, M. A. S. 2003. A cor do silêncio. In: Ashoka empreendedores sociais e Takano cidadania (orgs.) 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