XX Encontro Anual da ANPOCS GT 19 “Relações Raciais e Identidade Étnica” Negritude e Ascensão Social no Contexto da Salvador Contemporânea Angela Figueiredo Caxambu, Outubro de 1996 2 Negritude e Ascensão Social no Contexto da Salvador Contemporânea1 Angela Figueiredo2 Introdução Os primeiros estudos realizados no Brasil sobre relações raciais e a inserção dos negros numa sociedade de classe datam dos anos 30. Entre os estudos pioneiros encontramos as pesquisas de D. Pierson (1971) e Azevedo (1955). Estas pesquisas tornaram-se clássicas ao tempo em que instauraram um paradigma no estudo sobre as relações raciais, a saber, a constatação da democracia racial brasileira. Esta crença advém ao fato de que no Brasil as diferentes raças convivem harmonicamente, sendo inexistente os conflitos raciais explícitos. Ainda que estes autores enfatizem a não existência do preconceito de cor, constatam o mecanismo de embranquecimento vivenciado pelos negros que ascendem socialmente. Atualmente, não falamos mais em democracia racial brasileira nos círculos acadêmicos, embora permaneça a ênfase no embranquecimento (Souza, 1983; Munanga, 1988). Desse modo, a ascensão social dos negros ainda tem sido abordada de forma maniqueísta, enfatizando-se sempre a problemática do “embranquecimento”, ou o “drama psicológico”, a que estão submetidos os negros que ascendem, sugerindo sempre uma contradição entre ser negro e ocupar melhores posições na estratificação social. 1 Neste apresentamos os dados parciais da pesquisa “Novas Elites de cor: estudo sobre ascensão social entre os negros de Salvador”, desenvolvida no âmbito do mestrado em sociologia da UFBa, com o apoio do Cento de Estudos Afro-Asiáticos. 2 Angela Figueiredo é Bacharel em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia e aluna do mestrado em Sociologia na mesma instituição. 3 Neste texto, propomos abordar a problemática do embranquecimento no contexto contemporâneo. Buscamos, portanto, nesta análise contemplar não apenas as transformações sócio-econômicas e as mudanças delas advindas, mas, sobretudo, atentar para valores sociais emergentes. Destacamos, por exemplo, a tematização sobre ascensão social e identidade, ou seja, o modo como essa experiência de mobilidade se relaciona com a assunção de uma identidade negra. Assim, pretendemos, nesta comunicação, retomar a questão do embranquecimento com o objetivo de apresentar uma alternativa de compreensão sobre a ascensão social dos negros. Para tanto, utilizamos os dados de uma pesquisa ainda em curso, mas cujos resultados parciais apontam para a necessidade de rever a aparente oposição entre os termos ascensão e identidade. Centralizaremos nossa análise na narrativa biográfica de uma entrevistada, que nos parece extremamente rica em termos analíticos, pois oferece uma “nova” interpretação acerca da identidade e do embranquecimento. Desse modo, optamos por reconstruir a narrativa focalizando alguns aspectos centrais: A escolaridade, a percepção sobre a discriminação racial, o envolvimento com alguns aspectos da “cultura negra” e o entendimento sobre a identidade e o embranquecimento. Perfil da amostragem Para que possamos introduzir nosso argumento, torna-se necessário apresentar alguns dados relativos ao perfil de nossa amostragem, bem como delimitarmos o uso específico de alguns conceitos. A maioria dos estudos clássicos sobre a ascensão social dos negros, incidiu sobre os “indivíduos de cor” escolarizados que passaram a ocupar melhores posições na estratificação social, em detrimento de análises sobre 4 a ascensão através de outras trajetórias profissionais. Por isso, optamos por trilhar o mesmo caminho dos clássicos e privilegiar a trajetória de uma profissional liberal que ascendeu pelo mecanismo tradicional de escolaridade3. Em termos de cor, estamos selecionando informantes cujos componentes fenotípicos são evidentes, mais especificamente a cor e o tipo de cabelo. Estes informantes são denominados na linguagem do senso comum como “preto, mulato, moreno escuro ...moreno”. Isso faz-se necessário devido a inexistência de uma definição objetiva das denominações que compõem a escala classificatória brasileira ( Harris, 1967; Degler, 1972). De acordo com Nogueira (1985), no Brasil os preconceitos são de marca e não de origem, assim sendo, esses indivíduos possuem o maior número de marcas que identificam a sua condição étnicoracial e, provavelmente, estariam sujeitos a serem vítimas do preconceito e da discriminação racial. No que se refere à classe4 tomamos de empréstimo a noção de classe de Bourdieu, a qual inclui os gostos, os valores, os incentivos comuns. O que leva a uma conformação de um estilo de vida indicador de uma determinada classe social. Assim, as classes são construídas relacionalmente, a partir de elementos diferenciadores, a renda por exemplo. Entretanto, esse fator em si não explica a existência de um grupo homogêneo “(...) no sentido de grupo e de grupo mobilizado para a luta; poder-se-ia dizer, em rigor, que é uma classe provável, enquanto grupo de agentes que oporá menos obstáculos objetivos às ações de mobilização do que qualquer outro grupo de agentes’(Bourdieu, 1989; 136). 3 Por ascensão social entendemos, neste caso, o processo através do qual os indivíduos, ou grupos, movimentam-se de uma posição inferior para as camadas médias e altas da estratificação social. Não consideramos, portanto, a mobilidade ocorrida no interior da mesma classe 4 De acordo com os índices adotados pelo IBGE. A posição econômica intermediária percebe uma renda mensal entre 10 e 20 salários mínimos. 5 A classe social é formada por um conjunto de agentes “que ocupam posições semelhantes e que, colocadas em condições semelhantes, têm, com toda probabilidade, atitudes e interesses semelhantes, logo, práticas e tomadas de posições semelhantes”. ( Bourdieu, 1989; 136). Perspectivas teóricas sobre o embranquecimento A díade raça e classe tem se configurado uma tradição nas pesquisas sobre as relações raciais brasileiras. Em que pese a crise das grandes narrativas nas Ciências Sociais, estes conceitos parecem ainda desfrutar de grande poder explicativo quando se pretende analisar a situação social dos afro-brasileiros. Não pretendemos retomar este velho debate, embora seja necessário aludir a alguns trabalhos teóricos sobre o tema, pois, é a partir da referência a estas categorias que começa a ser cunhado o conceito de embranquecimento 5. Pierson (1971), descreve a sociedade brasileira como multirracial e de classe. Ao analisar as relações entre brancos e pretos, o autor revela um olhar permeado pela segregação dos Estados Unidos que o fazia perceber as relações raciais brasileiras de modo bastante ameno, provavelmente bem menos conflituosa do que poderia ser. A ascensão social de um ‘preto’, e a convivência deste no mundo dos brancos, fazia com que ele acreditasse que a ascensão dependia apenas de características e esforços pessoais. O autor conclui que o preconceito no Brasil é de cor e não de classe. Os casamentos inter-raciais ou as “uniões mistas” são utilizados para ilustrar suas conclusões. 5 Existem pelo menos três referência ao conceito de embranquecimento: 1- como uma proposta ideológica da formação do Estado-Nação; 2)- o biológico, através da mestiçagem e 3)- social, relacionados a valores atitudes e comportamentos. É principalmente com relação ao terceiro sentido que centraremos à nossa atenção. 6 Dando continuidade a perspectiva adotada por Pierson, Azevedo (1955) descreve as relações raciais brasileiras com base num estudo também realizado em Salvador O autor propõe-se a analisar os canais de ascensão social para os “indivíduos de cor” escolarizados que ocupam melhores posições na estratificação social. Azevedo descreve a sociedade baiana como uma caso exemplar da existência de um caldeirão “étnico euro-africano brasileiro”. Por ser a cidade brasileira com maior número de pretos e mestiços, Salvador seja um grande modelo de convivência harmônica entre brancos e pretos. Por conseqüência, a sociedade baiana tenderia a anular a existência de antagonismo, tanto de cor quanto de classe, através do processo de acomodação recíproca e pela existência do “homem cordial brasileiro”, cujo protótipo é o homem baiano. Ainda de acordo com Azevedo, a sociedade baiana não havia concluído a passagem de uma sociedade de status para uma sociedade exclusiva de classe. As duas formas ainda podiam ser encontradas durante o período de realização do seu trabalho, início da década de 50. O status para os brasileiros como para outros povos está relacionado a condição de nascimento. Entretanto, devido ao passado de escravidão negra, aqui o status também está associado a cor. desvantagens podem ser amenizadas através de Contudo, estas mecanismos de embranquecimento biológicos ou social , como, por exemplo, os casamentos inter-raciais, educação, apadrinhamento e modificação da posição econômica. Nesse sentido, os negros que adquirem status necessitam assimilar a cultura do branco, tornando-se “socialmente branco”. Ainda que tanto Azevedo quanto Pierson enfatizem a não existência do preconceito de cor, constatam o mecanismo de embranquecimento vivenciado pelos negros para ascenderem socialmente. Este 7 embranquecimento, portanto, seria uma forma “consciente” adotada pelos negros para diminuir as desvantagens da cor. Problematizando o mito da democracia racial, Fernandes (1972) nos oferece uma outra abordagem sobre o embranquecimento. Segundo ele, os negros e mulatos que ascendem socialmente pagam um alto preço exigido pela sociedade, pois estes são levados a manterem uma forma de autoafirmação, que significa a negação de si mesmo. Assim, o autor põe em dúvida o próprio equilíbrio destes agentes, lembrando que no cume do processo de ascensão estes negros acabam por tornarem-se brancos, pois, o reconhecimento do seu valor, tanto para os sujeitos em questão quanto para os outros, só se efetivará a este custo. Portanto, o autor considera que entrar no “mundo dos brancos” não é impossível, mas só é possível penetrá-lo passando por um “(...) processo de abrasileiramento que é inapelavelmente, um processo sistemático de embranquecimento”( Fernandes, 1972;16). Nessa direção Bastide ( 1971) propõe a noção do “princípio de corte”, remetendo-se a um drama psicológico que, segundo ele, existiria para os negros que ascendem. De acordo com esse princípio, os negros só conseguiriam vivenciar as práticas culturais e religiosas da “cultura negra” quando esses se encontravam na posição inferior da hierarquia social. Dando continuidade à problemática do embranquecimento, defrontamo-nos com o desconforto que alguns autores negros têm demonstrado ante a abordagem do tema da ascensão social entre os negros, por depararem-se com uma concepção de mundo embranquecida, arraigada, inculcada desde os primórdios de civilizações ocidentais que se desenvolveram em meio ao contato inter-étnico, notadamente entre brancos e pretos. Neusa de Souza (1983), revela o drama psicológico dos negros que ascendem numa sociedade multirracial e racista, e que, ao mesmo tempo, 8 veicula a ideologia da democracia racial. O drama consiste no fato desses negros manterem uma profunda admiração pelos brancos, tentando inclusive imitá-los, ao passo que nutrem um sentimento de inferioridade com relação a si mesmos. A noção de embranquecimento utilizada por esses autores associa embranquecer à adoção de valores da sociedade dominante, ou valores da “cultura branca”. Sendo assim, os negros que ascendiam ou “entravam no mundo dos brancos” eram aqueles que possuíam um bom nível escolar e, provavelmente, compartilhavam de certos valores identificados como pertencentes a “cultura branca”. Estes indivíduos eram identificados como “negros de alma branca”, ou “negros embranquecidos”, por não vivenciarem nas práticas quotidianas os aspectos da “cultura negra”. Aqui, cabe indagar sobre o contexto histórico em que tais trabalhos foram realizados. Os trabalhos de Pierson (op. cit) e Thales (op. cit) certamente referiam-se a uma Bahia pouco urbanizada e industrializada, onde provavelmente a ascensão era mais difícil para todos os grupos sociais emergentes e, talvez, a cultura negra a que eles se referiam fosse exclusivamente adotada pelos negros de classe baixa, maioria da população negra. Além disso, o acesso a escolarização certamente era muito mais difícil, o que impossibilitava maior contato entre os universos negros e brancos. Na ordem tradicional como sugere Fernandes (1978),”ser gente” era sinônimo de “ser branco “. Tratava-se, portanto, de oposições fundamentais na própria estrutura social, o que impossibilitava uma maior compatibilidade entre os termos identidade e ascensão. Uma série de mudanças ocorreram na sociedade brasileira, a industrialização associada a democratização e a massificação do ensino público contribuem para a mudança do contexto social. Talvez, por tais 9 fatores, hoje um número maior de negros ascendem ou vislumbram ascender socialmente, o que lhes permite um contato mais próximo com a cultura dominante ou com o universo sócio-cultural identificado como branco. Mais uma vez, indagamos sobre a distinção cultural que norteia estes valores, ou seja, quais são os aspectos da cultura negra ou da cultura branca neles embutidos. A cultura negra6 é quase sempre identificada através da religião, da culinária, da música e da dança, enquanto a cultura branca é associada aos aspectos mais gerais, como a educação formal, a informação, a política, a tecnologia, enfim, a todos os aspectos da vida social. Nesse sentido, parece impossível não vivenciar quotidianamente os aspectos da “cultura branca”, ou melhor, embranquecer é, aparentemente inevitável. Assim, arriscaríamos afirmar que todos nascem embranquecidos, visto que há uma predominância dos aspectos da cultura branca - se é que assim podemos denominá-la - em nossa sociedade, e só enegrecem ou tornam-se negros ao longo dos anos, quando optam por incluir em suas vidas os aspectos identificados com a “cultura negra” e se tornam curiosos em conhecer o seu passado e a sua história. Argumentação e Hipótese A constatação do processo de embranquecimento vivenciado pelos negros que ascendem é recorrente nos estudos sobre a mobilidade destes indivíduos. Muitos trabalhos que versam sobre esta questão têm considerado o embranquecimento como um dado imutável ou inevitável no processo de 6 Conforme Sansone (1995) a cultura negra é uma subcultura específica das populações de origem africanoamericana, que destaca a cor ou a descendência de cor como critérios importantes; b- força específica da cultura dos negros é um sentimento de um passado comum, na condição de escravos ou de desprivilegiados. A África é usada como um banco de símbolos, sacados de forma criativa . A cultura negra é por definição sincrética. Também é específico da cultura negra, em certa medida, o alto grau de interdependência em relação em relação à cultura urbana ocidental. Por causa disso, a cultura negra não goza do mesmo tipo de reconhecimento oficial conferido às outras minoria étnicas estabelecidas (Sansone, 1995;66). 10 ascensão. Assim, pouco tem sido dito e pesquisado sobre o seu significado atual nas experiências quotidianas. Além disso, há uma tendência a enfatizar o fundamento étnico das expectativas e dos estilos de vida entre os negros, não sendo enfocado a influência e a determinação da classe. Neste contexto, as estratégias e os estilos de vida adotados pelos negros são vistos como produto do embranquecimento, mais do que um fenômeno criado pelos grupos de classe em ascensão. A nossa hipótese é de que a maior utilização e comercialização de símbolos, e produtos da denominada cultura afro-brasileira, assim como o surgimento de uma nova identidade negra7 nas últimas duas décadas, estão atingindo os negros de classe média, criando, provavelmente, as condições para pensar na diminuição da distância entre ser negro e ocupar posições mais valorizadas na hierarquia social. Argumentamos que, ao contrário da contradição pretensamente inerente entre a ascensão social a partir da escolarização e a assunção da identidade negra, pode está ocorrendo um processo inverso, pois a escolarização e o conhecimento sobre a história da escravidão no Brasil, bem como a situação sócio-econômica atual, possibilita maior reflexão e conseqüentemente uma valorização étnico-racial Nesse sentido, é oportuno lançar mão dos dados provenientes da biografia da entrevistada: “ (...) depois que eu entrei na faculdade e me tornei profissional de nível superior, é que eu fui realmente (...) tomar consciência da minha etnia no mundo. Até determinado momento você pensa que o mundo te vê como você ver o mundo. A partir de determinado momento você vai perceber o quanto a sociedade classifica, estereotipa e discrimina. Então, foi quando 7 eu fui para a universidade em 70 que eu fui perceber que Ver Bacelar, 1989; Agier, 1994 e Sansone, 1993., 11 realmente todos os arranjos sociais e como as coisas se dão, foi quando praticamente eu despertei para essa questão da etnia (..), o discurso da discriminação, das relações de poder e por aí vai”. Cristina, 1996. 8 Neste caso, os efeitos da escolarização parecem não confirmar o embranquecimento. Inversamente, é só a partir do conhecimento de sua própria história de vida que a entrevistada passa a contestar os valores sociais presentes em seu universo. A identidade surge como uma contestação, uma forma crítica de ver o mundo para melhor situar-se nele. Indagada sobre o significado da expressão embranquecimento e termos correlatos, ela responde: “(...) O embranquecimento na verdade é todo uma negação do desejo, é a negação de uma etnia que não seja branca, que passa pela questão da cultura e das coisas do quotidiano. Eu vejo que a primeira questão é negar a ancestralidade, para mim é o desejo profundo de ruptura, é o desejo de não pertencer ou nunca ter pertencido”. Em seguida, tentamos entender de um modo mais direto quais eram as questões quotidianas a que a entrevistada se referia. Estariam elas relacionadas ao gosto, à música e ao comportamento de um modo geral. “(...) Eu quero ter a liberdade de usar roupa africana, roupa chinesa, porque eu estou no mundo, eu vivo num mundo completamente aberto, Graças aos Orixás, antigamente eu dizia graças a Deus. Eu quero ter opção de me vestir como eu quiser...” 8 A necessidade de manter o anonimato dos entrevistados tem nos obrigado a utilizar nomes fictícios. No nosso caso, não apenas o nome deve ser fictício, mas também os dados sobre profissão, escolaridade e área de trabalho, visto que, é pequeno o número de negros que alcançam uma elevada posição social . Poderíamos apenas informar que esta entrevistada tem o curso superior ,54 anos de idade e tem uma faixa salarial acima de 20 sm. 12 Neste caso, parece não existir um único modo de ser negro, este sentimento de pertencimento parece não anular as outras curiosidades acerca da diversidade do mundo. Por outro lado, existe também entre os negros uma necessidade de sentir-se livre, um indivíduo no mundo, sem os limites impostos pela cor ou pela classe. Relatando uma experiência recente, a entrevistada oferece dados interessantes para entender o sentido ideológico e, talvez, perverso desta expressão. “Um dia desses eu fui fazer uma conferência em São Paulo (...) Então, depois que eu falei, um indivíduo veio falar comigo, inclusive um professor, falou assim, olha, eu vou lhe dizer uma coisa, eu não vi você negra, eu vi branca. Então eu falei, você não entendeu nada do que eu disse. (...) Para mim é uma puta negação, como é que uma pessoa olha para mim e não me vê negra? Ele estava se negando a reconhecer uma negra com os meus conhecimentos (...)”. Aqui, o embranquecimento ganha nova roupagem, pois desloca-se de posição. Queremos dizer, já não se configura como um mecanismo através do qual os negros buscam legitimar-se, mas, passa a ser um instrumento manejado pelo Outro na tentativa de obscurecer o negro, “colocá-lo no seu lugar”, de tentar negar a sua capacidade intelectual, diante, é claro, da dificuldade de reconhecê-lo como um par. Afinal, reconhecimento traduz-se em legitimação. A trajetória profissional da entrevistada começou como professora primária, desenvolvendo-se até alcançar a posição de professora universitária Este fato ratifica a nossa hipótese de que houve uma trajetória ascensional, tanto em termos de renda como de status. Por outro lado, foi através da escolarização que a entrevistada galgou sua ascensão. 13 “(...) eu sempre gostei de estudar, sempre fui primeira aluna na escola, tudo isso, sem que eu soubesse já dava um tom diferente, mas, eu tive os primeiros empregos. Eu comecei como professora primária, depois eu fui fazer faculdade, quando na verdade, eu fui a primeira professora negra no SESI, as pessoas diziam que eu não entrava, eu fui lá fiz o concurso tirei o primeiro lugar e fui a primeira prof. negra do SESI. Para mim aquilo não era nada, eu não fiz nenhum esforço para isso. Depois eu achei que aquilo não ia dar em nada, ser professora. primária, e partir para a universidade”. É importante observar que a entrevistada é a única pessoa da sua família que possui nível universitário, apesar de ser a penúltima filha de uma família numerosa. Embora houvesse incentivo da família, seus irmãos não seguiram o mesmo caminho. Isso significa que a trajetória escolar da entrevistada esteve associada a motivações pessoais. “Éramos 12, mas quatro são falecidos (...) somente eu tenho o nível superior, os outros são, mestre de obras, costureira, auxiliar de enfermagem Minha mãe estimulou muito à estudar, havia muito estímulo, tanto que mudamos para a capital, porque no interior não tinha ginásio. Eles compraram uma casa na capital para os mais novos estudarem. Embora o meu pai fosse um homem que foi alfabetizado em casa, ele lia e escrevia, ele era um homem muito inteligente. (...) Estudar não era valor, o valor era ficar adulto, ir trabalhar na roça e ganhar seu dinheiro, e na região onde eu morava estudo não era valor (...) eu sou uma das únicas pessoas que seguiu uma carreira”. Em que pese as diferenças das experiências pessoal e familiar, a prática da religião católica durante a infância tem sido a regra na vida de quase todos os entrevistados, só ocorrendo o interesse pela religião afro- 14 brasileira na fase adulta9. Assim, a religião parece ser um indício da mudança de comportamento, demostrando ser uma campo fértil para procedermos à análise, vejamos o trecho desta entrevista: “(...) Eu estou sem religião e estou buscando compreender a religião afro (...) Eu era católica e tal ...e agora, nos últimos anos, é que eu me afastei definitivamente, quando eu vi realmente o que foi o cristianismo para o negro no Brasil. Até então, eu não tinha conhecimento, quando eu passei a entender qual foi o papel da igreja de Roma para os negros no Brasil, aí foi decisivo. Nos últimos anos, com os estudos independentes que eu venho fazendo sobre toda essa história da escravidão, da história dos meus ancestrais no Brasil. Aí não dá mais, não faz sentido, eu estaria me violentando. Tentamos perceber qual era a interpretação oferecida pela entrevistada sobre o fato mencionado, a busca da compreensão da religião afro-brasileira. Indagávamos sobre a possibilidade de ter ocorrido um reencontro. Ela responde: “(...)Não é reencontro porque eu nunca estive, (...) a minha formação foi católica mesmo, aquela coisa(...) meu pai também. Eu entendo, ele tinha que proteger a família dele, ele não queria nada de mal para os filhos. Então, hoje, eu entendo, ele tinha que dá o braço com a igreja, eu entendo perfeitamente e isso foi importante porque hoje eu conheço os dois lados”. Representação de classe Uma das maiores dificuldades dessa pesquisa diz respeito à classe social com a qual os entrevistados se identificam, pois, a despeito das suas rendas serem consideradas elevadas com relação aos padrões nacionais, não há um 9 Com isso não estamos afirmando que os entrevistados não recorressem a práticas terapêuticas da religião afro-brasileira, apenas salientamos que esta atividade não significava a adoção ou a identificação com a religião. 15 sentimento de pertencimento à classe média. Talvez, pela perda de poder aquisitivo, haja uma tendência a enfatizar o desaparecimento da classe média. Os entrevistados argumentam que no Brasil só existem pobres e ricos, ou, quando se fala de classe média, tendem a acentuar padrões de consumos muito altos, provavelmente impossíveis de serem adquiridos com os níveis salariais atribuídos à classe média brasileira. “Eu diria com toda a segurança que eu me identificaria com a classe pobre, é uma autocrítica que eu estou fazendo (...)numa sociedade como a brasileira, nordestina, que convive com um falso poder aquisitivo, aí eu me boto na classe média, mas no íntimo mesmo, eu me considero pobre (...) Em termos de valores é claro que eu me identifico com a classe média, entendeu, eu estou falando em termos de bolso. Classe média na minha cabeça é aquela classe que recebe 100 e guarda 40, isso é classe média, quem é capaz de sobreviver um ano, com a poupança, isso é claro na minha cabeça, essa sim é classe média, inclusive são aqueles que não precisam vender a sua força de trabalho, que vive dos seus bens, é aquela que consegue religiosamente comprar, (...) agora o que eu não sou é miserável, consigo ter um carro, consigo ter uns livros”. Ainda que discorde do poder aquisitivo estabelecido como um possível indicador da classe média, existe a identificação com certos valores, com o estilo de vida e aspiração de consumo de bens materiais que podem ser indicadores de determinada classes social, por exemplo, automóveis, locais de moradia, as escolas freqüentadas pelos filhos, etc. Negritude O conceito de negritude, assim como o de embranquecimento, ambos tomados enquanto discurso, é operacional para esta análise, pois é a partir 16 da contraposição entre os termos que pretendemos situar a emergência de novas formas de identidade. Embora tenha sido introduzido no léxico brasileiro em períodos recentes, provavelmente na década de 70, com o surgimento dos movimentos negros, o termo negritude goza de relativa popularidade em círculos sociais determinados. Conforme Munanga (1988) o conceito de negritude surgiu como o resultado de um movimento específico de intelectuais negros dos países do novo mundo, que necessitavam retomar a cultura negra que fora por eles rejeitada. Existem pelo menos três acepções para o termo negritude. Uma de caráter biológico e racial, na qual a negritude está associa a tudo que tange à raça negra, entendida enquanto um sentimento de um passado comum; outra de caráter psicológico que relaciona a negritude ao comportamento, aos traços psicológico e a personalidade; e uma terceira definição segundo a qual valoriza-se a cultura (Munanga, 1988). Para Bernd (1988), a negritude é a tomada de consciência de uma situação de dominação e discriminação e a conseqüente reação pela busca de identidade negra. Neste sentido, os termos negritude e identidade fazem parte de um mesmo processo na busca da identidade social. A noção de pertencimento, um passado comum e o compartilhamento de elementos culturais e sociais de natureza simbólica tem sido central para compreendermos o processo de construção da identidade. No que se refere a identidade étnica10, ela é relacional e contrastiva, pois é através do contato inter-étnico que emergem as diferenças . Disso resulta o conhecimento do nós em oposição aos “outros”. Nesse caso, o “outro” é apreendido como um não-grupo, e os sinais diacríticos funcionam como demarcadores de diferenças. Desse modo, podemos inferir que o conceito identidade negra 17 comporta elementos próprios às duas categorias, identidade étnica e identidade social . Aqui, introduziremos, mais uma vez, trechos da fala da entrevistada. São depoimentos permeados pelo conhecimento e reflexão sobre conceitos que lançamos mão para interpretar sua própria história. Nesse universo de pesquisa, portanto, há o entrecruzamento entre as categorias nativas e analíticas, que exige do pesquisador maior esforço analítico. “(...) No meu entendimento, o mundo negro fora das comunidades africanas não existe, para mim isso não passa de um discurso vazio. Quando eu me refiro ao mundo negro, ou quando alguém utiliza a expressão mundo negro, eu estou entendendo que é aquele mundo cujo cotidiano é permeado por elementos da cultura negra, para mim é isso, fora disso é um discurso inconsistente, tá? (..) O japonês, o judeu, eles vivem em qualquer parte do mundo, porque para eles está muito claro, ele sai, estuda, e quando eles voltam, eles têm os elementos de sua cultura. No meu entendimento quem dá vida são os elementos da tua cultura, é o que emana energia é o elemento de sustentação que assegura sua identidade, você não se perde. O que acontece com o elemento negro, é minha leitura, ele se perdeu, ele não encontrou o espaço na vida, na sociedade, ele não assegurou, de um modo geral, os elementos de sua própria cultura Para a entrevistada, a identidade é construída e reafirmada a partir da cultura, assim como para os autores que mencionamos acima. Isso demonstra como algumas das categorias analíticas são reapropriadas pelos sujeitos sociais. Conclusão As questões levantamos ao longo do texto, tem um caráter muito mais reflexivo que conclusivo. 10 É sabido que o debate sobre a identidade étnica é mais complexo e aprofundado. Não obstante, o 18 Como demonstramos, é absolutamente necessário problematizar a noção de embranquecimento e as conseqüências delas advindas. Ainda que seja um conceito recorrente nas análises sobre ascensão social não temos atentado para a sua significação no contexto atual. Como vimos, as análises maniqueístas que permeavam as interpretações sobre a ascensão social não dão conta do modo através do qual os indivíduos interpretam sua próprias experiência de mobilidade, que não são apenas informada pela cor ou pela classe. Embora detenha suas próprias representações sobre o processo de embranquecimento, a entrevistada não se identifica com essa experiência de vida. Nos seus discursos o termo embranquecimento só é utilizado quando se trata de referir-se ao Outro, e nunca para falar de suas próprias experiências. Portanto, é um conceito excludente 11 Gostaríamos de observar que assim como a noção de raça é construída historicamente, sendo o resultado da conjunção de forças políticas, econômicas e sociais operantes em determinadas sociedades (Marx, 1996). O embranquecimento não deve ser entendido como um dado imutável, mas, sim, como o resultado de uma interpretação histórica. Taylor (apud Marx, 1996; 10) observa que “A raça não é encontrada, mas feita. Assim, precisamos deixar de descrever a raça ‘como ferramenta de análise’, passando a considerá-la “com ‘objeto de análise’”. Do mesmo modo, o embranquecimento não deve ser considerado como uma ferramenta de análise, mas ele próprio um objeto da pesquisa. O conceito de embranquecimento, assim como o de negritude, usados por autores como Pierson, Azevedo, Souza e Munanga (op. cit) devem ser lidos como modos de interpretação opostos, mas complementares. Ambos estão investidos da crença na inadequação do negro na sociedade ocidental. retomaremos na dissertação de mestrado. 19 As duas formas de interpretação devem ser vistas como o resultado de um processo dialógico que tendem devolver ao negro, em quanto tal, o seu lugar de origem. O discurso da negritude é um discurso político e ideológico que objetiva reestruturar e resgatar o que os movimentos negros entendem como verdade histórica do povo negro. Inversamente, o discurso do embranquecimento objetiva a manutenção do negro nas margens do sistema social, pois, ao aproximar-se do centro do poder político, econômico e social, os negros descaracterizam-se, tornando-se “brancos”. 11 Embora trate-se de um estudo de caso, esta referência tem sido recorrente em todas as entrevistas. 20 Bibliografia AGIER, Michel. Etnopolítica: A dinâmica do espaço afro-baiano In.: Estudos Afro-Asiáticos, n.22, 1992 AZEVEDO, Thales de. As Elites de Cor: um estudo sobre a ascensão social. São Paulo: CIA. Editora Nacional, 1955. BACELAR, Jeferson. Etnicidade: ser negro em Salvador: Ianamá Penba, 1989. BERND, Zilá. O que é negritude. São Paulo, Brasiliense, 1988 CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil: mito, história e etnicidade. São Paulo: Brasiliense; Editora da Universidade de São Paulo, 1989. DEGLER, Carl N. Nem Preto nem Branco: escravidão e relações raciais no Brasil e no EUA. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976 FERNANDES, Florestan. 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