XX Encontro Anual da ANPOCS GT 19 “Relações Raciais e

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XX Encontro Anual da ANPOCS
GT 19 “Relações Raciais e Identidade Étnica”
Negritude e Ascensão Social
no Contexto da Salvador Contemporânea
Angela Figueiredo
Caxambu, Outubro de 1996
2
Negritude e Ascensão Social no Contexto da Salvador Contemporânea1
Angela Figueiredo2
Introdução
Os primeiros estudos realizados no Brasil sobre relações raciais e a
inserção dos negros numa sociedade de classe datam dos anos 30. Entre os
estudos pioneiros encontramos as pesquisas de D. Pierson (1971) e Azevedo
(1955). Estas pesquisas tornaram-se clássicas ao tempo em que instauraram
um paradigma no estudo sobre as relações raciais, a saber, a constatação da
democracia racial brasileira. Esta crença advém ao fato de que no Brasil as
diferentes raças convivem harmonicamente, sendo inexistente os conflitos
raciais explícitos. Ainda que estes autores enfatizem a não existência do
preconceito de cor, constatam o mecanismo de embranquecimento
vivenciado pelos negros que ascendem socialmente.
Atualmente, não falamos mais em democracia racial brasileira nos
círculos acadêmicos, embora permaneça a ênfase no embranquecimento
(Souza, 1983; Munanga, 1988). Desse modo, a ascensão social dos negros
ainda tem sido abordada de forma maniqueísta, enfatizando-se sempre a
problemática do “embranquecimento”, ou o “drama psicológico”, a que
estão submetidos os negros que ascendem, sugerindo sempre uma
contradição entre ser negro e ocupar melhores posições na estratificação
social.
1
Neste apresentamos os dados parciais da pesquisa “Novas Elites de cor: estudo sobre ascensão social
entre os negros de Salvador”, desenvolvida no âmbito do mestrado em sociologia da UFBa, com o apoio
do Cento de Estudos Afro-Asiáticos.
2
Angela Figueiredo é Bacharel em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia e aluna do mestrado
em Sociologia na mesma instituição.
3
Neste texto, propomos abordar a problemática do embranquecimento
no contexto contemporâneo. Buscamos, portanto, nesta análise contemplar
não apenas as transformações sócio-econômicas e as mudanças delas
advindas, mas, sobretudo, atentar para valores sociais emergentes.
Destacamos, por exemplo, a tematização sobre ascensão social e identidade,
ou seja, o modo como essa experiência de mobilidade se relaciona com a
assunção de uma identidade negra.
Assim, pretendemos, nesta comunicação, retomar a questão do
embranquecimento com o objetivo de apresentar uma alternativa de
compreensão sobre a ascensão social dos negros. Para tanto, utilizamos os
dados de uma pesquisa ainda em curso, mas cujos resultados parciais
apontam para a necessidade de rever a aparente oposição entre os termos
ascensão e identidade.
Centralizaremos nossa análise na narrativa biográfica de uma
entrevistada, que nos parece extremamente rica em termos analíticos, pois
oferece
uma
“nova”
interpretação
acerca
da
identidade
e
do
embranquecimento. Desse modo, optamos por reconstruir a narrativa
focalizando alguns aspectos centrais: A escolaridade, a percepção sobre a
discriminação racial, o envolvimento com alguns aspectos da “cultura
negra” e o entendimento sobre a identidade e o embranquecimento.
Perfil da amostragem
Para que possamos introduzir nosso argumento, torna-se necessário
apresentar alguns dados relativos ao perfil de nossa amostragem, bem como
delimitarmos o uso específico de alguns conceitos.
A maioria dos estudos clássicos sobre a ascensão social dos negros,
incidiu sobre os “indivíduos de cor” escolarizados que passaram a ocupar
melhores posições na estratificação social, em detrimento de análises sobre
4
a ascensão através de outras trajetórias profissionais. Por isso, optamos por
trilhar o mesmo caminho dos clássicos e privilegiar a trajetória de uma
profissional liberal que ascendeu pelo mecanismo tradicional de
escolaridade3.
Em termos de cor, estamos selecionando informantes cujos
componentes fenotípicos são evidentes, mais especificamente a cor e o tipo
de cabelo. Estes informantes são denominados na linguagem do senso
comum como “preto, mulato, moreno escuro ...moreno”.
Isso faz-se
necessário devido a inexistência de uma definição objetiva das
denominações que compõem a escala classificatória brasileira ( Harris,
1967; Degler, 1972).
De acordo com Nogueira (1985), no Brasil os
preconceitos são de marca e não de origem, assim sendo, esses indivíduos
possuem o maior número de marcas que identificam a sua condição étnicoracial e, provavelmente, estariam sujeitos a serem vítimas do preconceito e
da discriminação racial.
No que se refere à classe4 tomamos de empréstimo a noção de classe
de Bourdieu, a qual inclui os gostos, os valores, os incentivos comuns. O
que leva a uma conformação de um estilo de vida indicador de uma
determinada
classe
social.
Assim,
as
classes
são
construídas
relacionalmente, a partir de elementos diferenciadores, a renda por exemplo.
Entretanto, esse fator em si não explica a existência de um grupo
homogêneo “(...) no sentido de grupo e de grupo mobilizado para a luta;
poder-se-ia dizer, em rigor, que é uma classe provável, enquanto grupo de
agentes que oporá menos obstáculos objetivos às ações de mobilização do
que qualquer outro grupo de agentes’(Bourdieu, 1989; 136).
3
Por ascensão social entendemos, neste caso, o processo através do qual os indivíduos, ou grupos,
movimentam-se de uma posição inferior para as camadas médias e altas da estratificação social. Não
consideramos, portanto, a mobilidade ocorrida no interior da mesma classe
4
De acordo com os índices adotados pelo IBGE. A posição econômica intermediária percebe uma renda
mensal entre 10 e 20 salários mínimos.
5
A classe social é formada por um conjunto de agentes “que ocupam
posições semelhantes e que, colocadas em condições semelhantes, têm, com
toda probabilidade, atitudes e interesses semelhantes, logo, práticas e
tomadas de posições semelhantes”. ( Bourdieu, 1989; 136).
Perspectivas teóricas sobre o embranquecimento
A díade raça e classe tem se configurado uma tradição nas pesquisas
sobre as relações raciais brasileiras. Em que pese a crise das grandes
narrativas nas Ciências Sociais, estes conceitos parecem ainda desfrutar de
grande poder explicativo quando se pretende analisar a situação social dos
afro-brasileiros. Não pretendemos retomar este velho debate, embora seja
necessário aludir a alguns trabalhos teóricos sobre o tema, pois, é a partir da
referência a estas categorias que começa a ser cunhado o conceito de
embranquecimento 5.
Pierson (1971), descreve a sociedade brasileira como multirracial e de
classe. Ao analisar as relações entre brancos e pretos, o autor revela um
olhar permeado pela segregação dos Estados Unidos que o fazia perceber as
relações raciais brasileiras de modo bastante ameno, provavelmente bem
menos conflituosa do que poderia ser. A ascensão social de um ‘preto’, e a
convivência deste no mundo dos brancos, fazia com que ele acreditasse que
a ascensão dependia apenas de características e esforços pessoais. O autor
conclui que o preconceito no Brasil é de cor e não de classe. Os casamentos
inter-raciais ou as “uniões mistas” são utilizados para ilustrar suas
conclusões.
5
Existem pelo menos três referência ao conceito de embranquecimento: 1- como uma proposta ideológica
da formação do Estado-Nação; 2)- o biológico, através da mestiçagem e 3)- social, relacionados a valores
atitudes e comportamentos. É principalmente com relação ao terceiro sentido que centraremos à nossa
atenção.
6
Dando continuidade a perspectiva adotada por Pierson, Azevedo
(1955) descreve as relações raciais brasileiras com base num estudo também
realizado em Salvador O autor propõe-se a analisar os canais de ascensão
social para os “indivíduos de cor” escolarizados que ocupam melhores
posições na estratificação social.
Azevedo descreve a sociedade baiana como uma caso exemplar da
existência de um caldeirão “étnico euro-africano brasileiro”. Por ser a
cidade brasileira com maior número de pretos e mestiços, Salvador seja um
grande modelo de convivência harmônica entre brancos e pretos.
Por
conseqüência, a sociedade baiana tenderia a anular a existência de
antagonismo, tanto de cor quanto de classe, através do processo de
acomodação recíproca e pela existência do “homem cordial brasileiro”, cujo
protótipo é o homem baiano.
Ainda de acordo com Azevedo, a sociedade baiana não havia
concluído a passagem de uma sociedade de status para uma sociedade
exclusiva de classe. As duas formas ainda podiam ser encontradas durante o
período de realização do seu trabalho, início da década de 50.
O status para os brasileiros como para outros povos está relacionado
a condição de nascimento. Entretanto, devido ao passado de escravidão
negra, aqui o status também está associado a cor.
desvantagens
podem
ser
amenizadas
através
de
Contudo, estas
mecanismos
de
embranquecimento biológicos ou social , como, por exemplo, os casamentos
inter-raciais, educação, apadrinhamento e modificação da posição
econômica. Nesse sentido, os negros que adquirem status necessitam
assimilar a cultura do branco, tornando-se “socialmente branco”.
Ainda que tanto Azevedo quanto Pierson enfatizem a não existência
do preconceito de cor, constatam o mecanismo de embranquecimento
vivenciado
pelos
negros
para
ascenderem
socialmente.
Este
7
embranquecimento, portanto, seria uma forma “consciente” adotada pelos
negros para diminuir as desvantagens da cor.
Problematizando o mito da democracia racial, Fernandes (1972) nos
oferece uma outra abordagem sobre o embranquecimento. Segundo ele, os
negros e mulatos que ascendem socialmente pagam um alto preço exigido
pela sociedade, pois estes são levados a manterem uma forma de autoafirmação, que significa a negação de si mesmo. Assim, o autor põe em
dúvida o próprio equilíbrio destes agentes, lembrando que no cume do
processo de ascensão estes negros acabam por tornarem-se brancos, pois, o
reconhecimento do seu valor, tanto para os sujeitos em questão quanto para
os outros, só se efetivará a este custo. Portanto, o autor considera que entrar
no “mundo dos brancos” não é impossível, mas só é possível penetrá-lo
passando por um “(...) processo de abrasileiramento que é inapelavelmente,
um processo sistemático de embranquecimento”( Fernandes, 1972;16).
Nessa direção Bastide ( 1971) propõe a noção do “princípio de corte”,
remetendo-se a um drama psicológico que, segundo ele, existiria para os
negros que ascendem.
De acordo com esse princípio, os negros só
conseguiriam vivenciar as práticas culturais e religiosas da “cultura negra”
quando esses se encontravam na posição inferior da hierarquia social.
Dando
continuidade
à
problemática
do
embranquecimento,
defrontamo-nos com o desconforto que alguns autores negros têm
demonstrado ante a abordagem do tema da ascensão social entre os negros,
por depararem-se com uma concepção de mundo embranquecida, arraigada,
inculcada desde os primórdios de civilizações ocidentais que se
desenvolveram em meio ao contato inter-étnico, notadamente entre brancos
e pretos.
Neusa de Souza (1983), revela o drama psicológico dos negros que
ascendem numa sociedade multirracial e racista, e que, ao mesmo tempo,
8
veicula a ideologia da democracia racial. O drama consiste no fato desses
negros manterem uma profunda admiração pelos brancos, tentando inclusive
imitá-los, ao passo que nutrem um sentimento de inferioridade com relação
a si mesmos.
A noção de embranquecimento utilizada por esses autores associa
embranquecer à adoção de valores da sociedade dominante, ou valores da
“cultura branca”. Sendo assim, os negros que ascendiam ou “entravam no
mundo dos brancos” eram aqueles que possuíam um bom nível escolar e,
provavelmente, compartilhavam de certos valores identificados como
pertencentes a “cultura branca”. Estes indivíduos eram identificados como
“negros de alma branca”, ou “negros embranquecidos”, por não vivenciarem
nas práticas quotidianas os aspectos da “cultura negra”.
Aqui, cabe indagar sobre o contexto histórico em que tais trabalhos
foram realizados.
Os trabalhos de Pierson (op. cit) e Thales (op. cit)
certamente referiam-se a uma Bahia pouco urbanizada e industrializada,
onde provavelmente a ascensão era mais difícil para todos os grupos sociais
emergentes e, talvez, a cultura negra a que eles se referiam fosse
exclusivamente adotada pelos negros de classe baixa, maioria da população
negra. Além disso, o acesso a escolarização certamente era muito mais
difícil, o que impossibilitava maior contato entre os universos negros e
brancos.
Na ordem tradicional como sugere Fernandes (1978),”ser gente” era
sinônimo de “ser branco “. Tratava-se, portanto, de oposições fundamentais
na
própria
estrutura
social,
o
que
impossibilitava
uma
maior
compatibilidade entre os termos identidade e ascensão.
Uma série de mudanças ocorreram na sociedade brasileira, a
industrialização associada a democratização e a massificação do ensino
público contribuem para a mudança do contexto social. Talvez, por tais
9
fatores, hoje um número maior de negros ascendem ou vislumbram ascender
socialmente, o que lhes permite um contato mais próximo com a cultura
dominante ou com o universo sócio-cultural identificado como branco.
Mais uma vez, indagamos sobre a distinção cultural que norteia estes
valores, ou seja, quais são os aspectos da cultura negra ou da cultura branca
neles embutidos.
A cultura negra6 é quase sempre identificada através da religião, da
culinária, da música e da dança, enquanto a cultura branca é associada aos
aspectos mais gerais, como a educação formal, a informação, a política, a
tecnologia, enfim, a todos os aspectos da vida social. Nesse sentido, parece
impossível não vivenciar quotidianamente os aspectos da “cultura branca”,
ou melhor, embranquecer é, aparentemente inevitável.
Assim, arriscaríamos afirmar que todos nascem embranquecidos, visto
que há uma predominância dos aspectos da cultura branca - se é que assim
podemos denominá-la - em nossa sociedade, e só enegrecem ou tornam-se
negros ao longo dos anos, quando optam por incluir em suas vidas os
aspectos identificados com a “cultura negra” e se tornam curiosos em
conhecer o seu passado e a sua história.
Argumentação e Hipótese
A constatação do processo de embranquecimento vivenciado pelos
negros que ascendem é recorrente nos estudos sobre a mobilidade destes
indivíduos. Muitos trabalhos que versam sobre esta questão têm considerado
o embranquecimento como um dado imutável ou inevitável no processo de
6
Conforme Sansone (1995) a cultura negra é uma subcultura específica das populações de origem africanoamericana, que destaca a cor ou a descendência de cor como critérios importantes; b- força específica da
cultura dos negros é um sentimento de um passado comum, na condição de escravos ou de desprivilegiados.
A África é usada como um banco de símbolos, sacados de forma criativa . A cultura negra é por definição
sincrética. Também é específico da cultura negra, em certa medida, o alto grau de interdependência em
relação em relação à cultura urbana ocidental. Por causa disso, a cultura negra não goza do mesmo tipo de
reconhecimento oficial conferido às outras minoria étnicas estabelecidas (Sansone, 1995;66).
10
ascensão. Assim, pouco tem sido dito e pesquisado sobre o seu significado
atual nas experiências quotidianas.
Além disso, há uma tendência a enfatizar o fundamento étnico das
expectativas e dos estilos de vida entre os negros, não sendo enfocado a
influência e a determinação da classe. Neste contexto, as estratégias e os
estilos de vida adotados pelos negros são vistos como produto do
embranquecimento, mais do que um fenômeno criado pelos grupos de classe
em ascensão.
A nossa hipótese é de que a maior utilização e comercialização de
símbolos, e produtos da denominada cultura afro-brasileira, assim como o
surgimento de uma nova identidade negra7 nas últimas duas décadas, estão
atingindo os negros de classe média, criando, provavelmente, as condições
para pensar na diminuição da distância entre ser negro e ocupar posições
mais valorizadas na hierarquia social.
Argumentamos que, ao contrário da contradição pretensamente
inerente entre a ascensão social a partir da escolarização e a assunção da
identidade negra, pode está ocorrendo um processo inverso, pois a
escolarização e o conhecimento sobre a história da escravidão no Brasil,
bem como a situação sócio-econômica atual, possibilita maior reflexão e
conseqüentemente uma valorização étnico-racial
Nesse sentido, é oportuno lançar mão dos dados provenientes da
biografia da entrevistada:
“ (...) depois que eu entrei na faculdade e me tornei profissional de nível
superior, é que eu fui realmente (...) tomar consciência da minha etnia no
mundo. Até determinado momento você pensa que o mundo te vê como
você ver o mundo. A partir de determinado momento você vai perceber o
quanto a sociedade classifica, estereotipa e discrimina. Então, foi
quando
7
eu fui para a universidade em 70 que eu fui perceber que
Ver Bacelar, 1989; Agier, 1994 e Sansone, 1993.,
11
realmente todos
os arranjos sociais e como as coisas se dão, foi
quando praticamente eu
despertei para essa questão da etnia (..), o
discurso da discriminação, das
relações de poder e por aí vai”.
Cristina, 1996. 8
Neste caso, os efeitos da escolarização parecem não confirmar o
embranquecimento. Inversamente, é só a partir do conhecimento de sua
própria história de vida que a entrevistada passa a contestar os valores
sociais presentes em seu universo. A identidade surge como uma
contestação, uma forma crítica de ver o mundo para melhor situar-se nele.
Indagada sobre o significado da expressão embranquecimento e
termos correlatos, ela responde:
“(...) O embranquecimento na verdade é todo uma negação do desejo, é a
negação de uma etnia que não seja branca, que passa pela questão da
cultura e das coisas do quotidiano. Eu vejo que a primeira questão é negar
a ancestralidade, para mim é o desejo profundo de ruptura, é o desejo de
não pertencer ou nunca ter pertencido”.
Em seguida, tentamos entender de um modo mais direto quais eram as
questões quotidianas a que a entrevistada se referia. Estariam elas
relacionadas ao gosto, à música e ao comportamento de um modo geral.
“(...) Eu quero ter a liberdade de usar roupa africana, roupa chinesa,
porque eu estou no mundo, eu vivo num mundo completamente aberto,
Graças aos Orixás, antigamente eu dizia graças a Deus. Eu quero ter
opção de me vestir como eu quiser...”
8
A necessidade de manter o anonimato dos entrevistados tem nos obrigado a utilizar nomes fictícios. No
nosso caso, não apenas o nome deve ser fictício, mas também os dados sobre profissão, escolaridade e
área de trabalho, visto que, é pequeno o número de negros que alcançam uma elevada posição social .
Poderíamos apenas informar que esta entrevistada tem o curso superior ,54 anos de idade e tem uma faixa
salarial acima de 20 sm.
12
Neste caso, parece não existir um único modo de ser negro, este
sentimento de pertencimento parece não anular as outras curiosidades acerca
da diversidade do mundo. Por outro lado, existe também entre os negros
uma necessidade de sentir-se livre, um indivíduo no mundo, sem os limites
impostos pela cor ou pela classe.
Relatando uma experiência recente, a entrevistada oferece dados
interessantes para entender o sentido ideológico e, talvez, perverso desta
expressão.
“Um dia desses eu fui fazer uma conferência em São Paulo (...) Então,
depois que eu falei, um indivíduo veio falar comigo, inclusive um
professor, falou assim, olha, eu vou lhe dizer uma coisa, eu não vi
você
negra, eu vi branca. Então eu falei, você não entendeu nada do que
eu
disse. (...) Para mim é uma puta negação, como é que uma pessoa
olha
para mim e não me vê negra? Ele estava se negando a reconhecer
uma
negra com os meus conhecimentos (...)”.
Aqui, o embranquecimento ganha nova roupagem, pois desloca-se de
posição. Queremos dizer, já não se configura como um mecanismo através
do qual os negros buscam legitimar-se, mas, passa a ser um instrumento
manejado pelo Outro na tentativa de obscurecer o negro, “colocá-lo no seu
lugar”, de tentar negar a sua capacidade intelectual, diante, é claro, da
dificuldade de reconhecê-lo como um par. Afinal, reconhecimento traduz-se
em legitimação.
A trajetória profissional da entrevistada começou como professora
primária, desenvolvendo-se até alcançar a posição de professora
universitária Este fato ratifica a nossa hipótese de que houve uma trajetória
ascensional, tanto em termos de renda como de status. Por outro lado, foi
através da escolarização que a entrevistada galgou sua ascensão.
13
“(...) eu sempre gostei de estudar, sempre fui primeira aluna na escola,
tudo isso, sem que eu soubesse já dava um tom diferente, mas, eu tive os
primeiros empregos. Eu comecei como professora primária, depois eu
fui fazer faculdade, quando na verdade, eu fui a primeira professora
negra no SESI, as pessoas diziam que eu não entrava, eu fui lá fiz o
concurso tirei o primeiro lugar e fui a primeira prof. negra do SESI. Para
mim aquilo não era nada, eu não fiz nenhum esforço para isso. Depois eu
achei que aquilo não ia dar em nada, ser professora. primária, e
partir para
a universidade”.
É importante observar que a entrevistada é a única pessoa da sua
família que possui nível universitário, apesar de ser a penúltima filha de
uma família numerosa. Embora houvesse incentivo da família, seus irmãos
não seguiram o mesmo caminho. Isso significa que a trajetória escolar da
entrevistada esteve associada a motivações pessoais.
“Éramos 12, mas quatro são falecidos (...) somente eu tenho o nível
superior, os outros são, mestre de obras, costureira, auxiliar de
enfermagem
Minha mãe estimulou muito à estudar, havia muito estímulo, tanto
que
mudamos para a capital, porque no interior não tinha ginásio. Eles
compraram uma casa na capital para os mais novos
estudarem. Embora o
meu pai fosse um homem que foi alfabetizado em
casa, ele lia e escrevia,
ele era um homem muito inteligente. (...)
Estudar não era valor, o valor era
ficar adulto, ir trabalhar na roça e ganhar seu
dinheiro, e na região onde eu
morava estudo não era valor (...) eu sou uma
das únicas pessoas que
seguiu uma carreira”.
Em que pese as diferenças das experiências pessoal e familiar, a
prática da religião católica durante a infância tem sido a regra na vida de
quase todos os entrevistados, só ocorrendo o interesse pela religião afro-
14
brasileira na fase adulta9. Assim, a religião parece ser um indício da
mudança de comportamento, demostrando ser uma campo fértil para
procedermos à análise, vejamos o trecho desta entrevista:
“(...) Eu estou sem religião e estou buscando compreender a religião afro
(...) Eu era católica e tal ...e agora, nos últimos anos, é que eu me afastei
definitivamente, quando eu vi realmente o que foi o cristianismo para o
negro no Brasil. Até então, eu não tinha conhecimento, quando eu passei a
entender qual foi o papel da igreja de Roma para os negros no Brasil, aí foi
decisivo. Nos últimos anos, com os estudos independentes que eu venho
fazendo sobre toda essa história da escravidão, da história dos meus
ancestrais no Brasil. Aí não dá mais, não faz sentido, eu estaria me
violentando.
Tentamos perceber qual era a interpretação oferecida pela
entrevistada sobre o fato mencionado, a busca da compreensão da religião
afro-brasileira. Indagávamos sobre a possibilidade de ter ocorrido um
reencontro. Ela responde:
“(...)Não é reencontro porque eu nunca estive, (...) a minha formação foi
católica mesmo, aquela coisa(...) meu pai também. Eu entendo, ele tinha
que proteger a família dele, ele não queria nada de mal para os filhos.
Então, hoje, eu entendo, ele tinha que dá o braço com a igreja, eu entendo
perfeitamente e isso foi importante porque hoje eu conheço os dois lados”.
Representação de classe
Uma das maiores dificuldades dessa pesquisa diz respeito à classe social
com a qual os entrevistados se identificam, pois, a despeito das suas rendas
serem consideradas elevadas com relação aos padrões nacionais, não há um
9
Com isso não estamos afirmando que os entrevistados não recorressem a práticas terapêuticas da religião
afro-brasileira, apenas salientamos que esta atividade não significava a adoção ou a identificação com a
religião.
15
sentimento de pertencimento à classe média. Talvez, pela perda de poder
aquisitivo, haja uma tendência a enfatizar o desaparecimento da classe
média. Os entrevistados argumentam que no Brasil só existem pobres e
ricos, ou, quando se fala de classe média, tendem a acentuar padrões de
consumos muito altos, provavelmente impossíveis de serem adquiridos com
os níveis salariais atribuídos à classe média brasileira.
“Eu diria com toda a segurança que eu me identificaria com a classe
pobre, é uma autocrítica que eu estou fazendo (...)numa sociedade como a
brasileira, nordestina, que convive com um falso poder aquisitivo, aí eu
me boto na classe média, mas no íntimo mesmo, eu me considero pobre
(...) Em termos de valores é claro que eu me identifico com a classe
média, entendeu, eu estou falando em termos de bolso. Classe média na
minha cabeça é aquela classe que recebe 100 e guarda 40, isso é classe
média, quem é capaz de sobreviver um ano, com a poupança, isso é claro
na minha cabeça, essa sim é classe média, inclusive são aqueles que não
precisam vender a sua força de trabalho, que vive dos seus bens, é aquela
que consegue religiosamente comprar, (...) agora o que eu não sou é
miserável, consigo ter um carro, consigo ter uns livros”.
Ainda que discorde do poder aquisitivo estabelecido como um
possível indicador da classe média, existe a identificação com certos
valores, com o estilo de vida e aspiração de consumo de bens materiais que
podem ser indicadores de determinada classes social, por exemplo,
automóveis, locais de moradia, as escolas freqüentadas pelos filhos, etc.
Negritude
O conceito de negritude, assim como o de embranquecimento, ambos
tomados enquanto discurso, é operacional para esta análise, pois é a partir
16
da contraposição entre os termos que pretendemos situar a emergência de
novas formas de identidade.
Embora tenha sido introduzido no léxico brasileiro em períodos
recentes, provavelmente na década de 70, com o surgimento dos
movimentos negros, o termo negritude goza de relativa popularidade em
círculos sociais determinados. Conforme Munanga (1988) o conceito de
negritude surgiu como o resultado de um movimento específico de
intelectuais negros dos países do novo mundo, que necessitavam retomar a
cultura negra que fora por eles rejeitada.
Existem pelo menos três acepções para o termo negritude. Uma de
caráter biológico e racial, na qual a negritude está associa a tudo que tange à
raça negra, entendida enquanto um sentimento de um passado comum; outra
de caráter psicológico que relaciona a negritude ao comportamento, aos
traços psicológico e a personalidade; e uma terceira definição segundo a
qual valoriza-se a cultura (Munanga, 1988).
Para Bernd (1988), a negritude é a tomada de consciência de uma
situação de dominação e discriminação e a conseqüente reação pela busca
de identidade negra. Neste sentido, os termos negritude e identidade fazem
parte de um mesmo processo na busca da identidade social.
A noção de pertencimento, um passado comum e o compartilhamento
de elementos culturais e sociais de natureza simbólica tem sido central para
compreendermos o processo de construção da identidade. No que se refere a
identidade étnica10, ela é relacional e contrastiva, pois é através do contato
inter-étnico que emergem as diferenças . Disso resulta o conhecimento do
nós em oposição aos “outros”. Nesse caso, o “outro” é apreendido como um
não-grupo, e os sinais diacríticos funcionam como demarcadores de
diferenças. Desse modo, podemos inferir que o conceito identidade negra
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comporta elementos próprios às duas categorias, identidade étnica e
identidade social .
Aqui, introduziremos, mais uma vez, trechos da fala da entrevistada.
São depoimentos permeados pelo conhecimento e reflexão sobre conceitos
que lançamos mão para interpretar sua própria história. Nesse universo de
pesquisa, portanto, há o entrecruzamento entre as categorias nativas e
analíticas, que exige do pesquisador maior esforço analítico.
“(...) No meu entendimento, o mundo negro fora das comunidades
africanas não existe, para mim isso não passa de um discurso vazio.
Quando eu me refiro ao mundo negro, ou quando alguém utiliza a
expressão mundo negro, eu estou entendendo que é aquele mundo
cujo
cotidiano é permeado por elementos da cultura negra, para mim é
isso,
fora disso é um discurso inconsistente, tá? (..) O japonês, o judeu,
eles
vivem em qualquer parte do mundo, porque para eles está muito
claro, ele
sai, estuda, e quando eles voltam, eles têm os elementos de sua
cultura. No
meu entendimento quem dá vida são os elementos da tua cultura, é
o que
emana energia é o elemento de sustentação que assegura sua
identidade,
você não se perde. O que acontece com o elemento negro, é
minha leitura,
ele se perdeu, ele não encontrou o espaço na vida, na sociedade, ele
não
assegurou, de um modo geral, os elementos de sua própria cultura
Para a entrevistada, a identidade é construída e reafirmada a partir da
cultura, assim como para os autores que mencionamos acima. Isso
demonstra como algumas das categorias analíticas são reapropriadas pelos
sujeitos sociais.
Conclusão
As questões levantamos ao longo do texto, tem um caráter muito mais
reflexivo que conclusivo.
10
É sabido que o debate sobre a identidade étnica é mais complexo e aprofundado. Não obstante, o
18
Como demonstramos, é absolutamente necessário problematizar a
noção de embranquecimento e as conseqüências delas advindas. Ainda que
seja um conceito recorrente nas análises sobre ascensão social não temos
atentado para a sua significação no contexto atual. Como vimos, as análises
maniqueístas que permeavam as interpretações sobre a ascensão social não
dão conta do modo através do qual os indivíduos interpretam sua próprias
experiência de mobilidade, que não são apenas informada pela cor ou pela
classe.
Embora detenha suas próprias representações sobre o processo de
embranquecimento, a entrevistada não se identifica com essa experiência de
vida. Nos seus discursos o termo embranquecimento só é utilizado quando
se trata de referir-se ao Outro, e nunca para falar de suas próprias
experiências. Portanto, é um conceito excludente 11
Gostaríamos de observar que assim como a noção de raça é construída
historicamente, sendo o resultado da conjunção de forças políticas,
econômicas e sociais operantes em determinadas sociedades (Marx, 1996).
O embranquecimento não deve ser entendido como um dado imutável, mas,
sim, como o resultado de uma interpretação histórica. Taylor (apud Marx,
1996; 10) observa que “A raça não é encontrada, mas feita. Assim,
precisamos deixar de descrever a raça ‘como ferramenta de análise’,
passando a considerá-la “com ‘objeto de análise’”. Do mesmo modo, o
embranquecimento não deve ser considerado como uma ferramenta de
análise, mas ele próprio um objeto da pesquisa.
O conceito de embranquecimento, assim como o de negritude, usados
por autores como Pierson, Azevedo, Souza e Munanga (op. cit) devem ser
lidos como modos de interpretação opostos, mas complementares. Ambos
estão investidos da crença na inadequação do negro na sociedade ocidental.
retomaremos na dissertação de mestrado.
19
As duas formas de interpretação devem ser vistas como o resultado de um
processo dialógico que tendem devolver ao negro, em quanto tal, o seu lugar
de origem. O discurso da negritude é um discurso político e ideológico que
objetiva reestruturar e resgatar o que os movimentos negros entendem como
verdade
histórica
do
povo
negro.
Inversamente,
o
discurso
do
embranquecimento objetiva a manutenção do negro nas margens do sistema
social, pois, ao aproximar-se do centro do poder político, econômico e
social, os negros descaracterizam-se, tornando-se “brancos”.
11
Embora trate-se de um estudo de caso, esta referência tem sido recorrente em todas as entrevistas.
20
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