A Constituição da Mulher Brasileira

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Adriana Vidal de Oliveira
A Constituição da Mulher Brasileira
Uma análise dos estereótipos de gênero na
Assembleia Constituinte de 1987-1988 e suas
consequências no texto constitucional
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pósgraduação em Direito da PUC-Rio como requisito
parcial para obtenção do título de Doutor em
Direito.
Orientador: Prof. Adriano Pilatti
Volume I
Rio de Janeiro
Abril de 2012
Adriana Vidal de Oliveira
A Constituição da Mulher Brasileira
Uma análise dos estereótipos de gênero na
Assembleia Constituinte de 1987-1988 e suas
consequências no texto constitucional
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção de
grau de doutor pelo Programa de Pós-Graduação em
Direito da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão
Examinadora abaixo assinada.
Prof. Fábio Carvalho Leite
Departamento de Direito – PUC-Rio
Prof. Danilo Marcondes de Souza Filho
Departamento de Filosofia – PUC-Rio
Profª. Ela Wiecko Volkmer de Castilho
UnB
Prof. Gustavo Sampaio Telles Ferreira
UFF
Profª. Márcia Nina Bernardes
Departamento de Direito – PUC-Rio
Profª. Mônica Herz
Vice-Decana de Pós-Graduação do
Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio
Rio de Janeiro, 11 de abril de 2012
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e
do orientador.
Adriana Vidal de Oliveira
Graduou-se em Direito na PUC-Rio (2003). Obteve o título de
Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUCRio (2007). É professora universitária na PUC-Rio e atualmente
leciona Direito Comparado na graduação. Recebeu a Bolsa Nota
Dez da FAPERJ ao longo do Doutorado.
Ficha Catalográfica
Oliveira, Adriana Vidal de
A Constituição da Mulher Brasileira: uma análise dos
estereótipos de gênero na Assembleia Constituinte de 19871988 e suas consequências no texto constitucional / Adriana
Vidal de Oliveira; orientador: Adriano Pilatti. – 2012.
465 f. ; 30 cm
Tese (doutorado)–Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro, Departamento de Direito, 2012.
Inclui bibliografia
1. Direito – Teses. 2. Atos performativos. 3. Gênero. 4.
Feminismo. 5. Direitos das Mulheres. 6. Constituição.
Regulação. I. Pilatti, Adriano. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III.
Título.
CDD: 340
Para Rodrigo, com todo o meu amor.
Agradecimentos
Esse é um momento de muita alegria em diferentes sentidos. O mais
simplório diz respeito a ser a última etapa enfrentada para se dar início à vida
acadêmica de forma plena, mas é a partir deste que coloco os demais. Esse ritual
permite realizar um sonho que começou há alguns anos, precisamente em 2000, e
está profundamente ligado à minha experiência na PUC-Rio. Seria impossível
iniciar os agradecimentos de outra forma, uma vez que as portas para a academia
foram abertas enquanto eu ainda cursava o terceiro período da graduação, quando
fui aprovada na seleção do PET-JUR. Foi nesse grupo de pesquisa que descobri
um caminho diferente daqueles que são procurados por estudantes de Direito.
A professora Gisele Cittadino, na época tutora do grupo, foi uma das
grandes responsáveis pela minha escolha. Por isso, aqui fica registrado o primeiro
agradecimento, pois sem ela e sem a participação no grupo, creio que tudo seria
muito diferente.
Outro encontro fundamental e muito feliz em minha trajetória na PUC-Rio
foi com Adriano Pilatti, meu orientador desde a monografia. Há pouco tempo me
dei conta de que eu nunca havia conversado com ele sobre os motivos pelos quais
eu fui procurá-lo para orientação no último ano de graduação. Também nunca
havia falado sobre o que me fez pedir para continuar o trabalho com ele no
decorrer do Mestrado e do Doutorado. É o momento, portanto, de deixar
registrada a profunda admiração que tenho por ele desde que fui sua aluna na
graduação. Adriano Pilatti é um professor que conjuga características que
empolgam qualquer aluno: é apaixonado pelo que faz e muito inteligente.
No decorrer do Doutorado ainda tive três grandes surpresas nessa
Instituição, todas elas muito doces e fundamentais não somente para a elaboração
desse trabalho, como também para o meu crescimento pessoal. Todas as três
também muito generosas. A primeira foi a professora Márcia Nina Bernardes, que
após o meu primeiro semestre como doutoranda, me procurou com o objetivo de
fundar um grupo de estudos sobre feminismo. Nesse grupo tive o prazer de me
aprofundar no estudo das teorias feministas e de acompanhar o surgimento e
elaboração de outros trabalhos sobre temas de gênero, tanto na pós-graduação,
com Marina Lacerda e Joanna Noronha, quanto na graduação, com Maria
Negreiros. Também fico muito feliz de ver o crescimento do grupo, com alunas
como Maria Fernanda e Carolina Pires, da graduação e uma nova geração na pósgraduação, Ana Carolina.
À Maria Negreiros devo um agradecimento especial pelo trabalho
fundamental no auxílio da separação do material usado na presente tese. Sem sua
ajuda não eu não teria conseguido. Márcia, por sua vez, merece meu carinho,
respeito, amizade e admiração por sua generosidade e companheirismo. A parceria
foi fundamental para a produção dessa tese.
A segunda grande surpresa trazida pelo Doutorado foi o professor Danilo
Marcondes. Confesso que me inscrevi em sua disciplina sobre Filosofia da
Linguagem sem dimensão do quão importante ela seria para o meu trabalho, mas
no primeiro encontro eu percebi que deveria aproveitar ao máximo a sorte de estar
ali, pois era exatamente o que eu precisava para ingressar nos debates entre as
feministas que mais me despertavam interesse. Além disso, poder contar com a
generosidade e disponibilidade de uma das pessoas mais doces e inteligentes que
já conheci é um privilégio. Outra grande surpresa que passou pela minha
experiência no Doutorado foi a professora Ana Lúcia de Lyra Tavares, que me
abriu as portas para o Direito Comparado, e também de forma generosa, me
permitiu ter a honra de compartilhar a disciplina com ela.
Gostaria também de agradecer especialmente às professoras e ao professor
que foram convidados a integrar a banca pela disponibilidade e generosidade em
aceitar contribuir para o desenvolvimento desse trabalho: Ela Wiecko Volkmer de
Castilho, Ana Paula de Barcellos e Fábio Leite.
Também gostaria de deixar registrado o agradecimento à FAPERJ, que
permitiu a dedicação ao presente trabalho.
Essa trajetória também foi marcada por grandes amizades. Sou imensamente
grata aos meus amigos da graduação, Tatiana Figueiredo e Marcelo Valença, que
acompanharam de perto todos os meus passos nesse caminho da vida acadêmica.
Além disso, sou grata também às amizades realizadas no decorrer da pósgraduação. Daniel Brantes, Gustavo Proença, Karen Simões, Lívia França e
Samantha Ribeiro são pessoas especiais e que, tenho certeza, ficarão na minha
vida para sempre. Há pouco tempo também ingressou na minha vida outra pessoa
muito especial, Cris Del Corsso. Também professora, Cris acompanhou
pacientemente a fase final do trabalho, sendo companhia muito bem humorada e
fundamental para essa etapa complicada.
Além dos agradecimentos realizados para todos que foram fundamentais na
minha formação profissional, contei ao longo de todo esse tempo com uma
estrutura familiar essencial. Meus pais, Anaton e Lusimar, sempre estiveram
dispostos a me amparar em todos os sentidos, mesmo não entendendo muito bem
os motivos pelos quais eu preferi não fazer um concurso para a Magistratura,
Ministério Público, entre outros, para ser professora. Acima de qualquer coisa,
eles optaram por respeitar essa escolha. Meu irmão, André Vidal, também foi
muito importante nessa trajetória. As conversas com um irmão mais novo me
fizeram perceber como é sério o impacto de um professor na vida de alguém, me
ajudando a ter dimensão do caminho que escolhi.
Devo agradecer também aos meus avós, grandes exemplos para mim e para
meu trabalho. José Dominguez Vidal, meu avô materno, foi pai solteiro de uma
menina em 1950 e Nilce Albernaz de Oliveira, minha avó paterna, se desquitou
em 1956, criando, sozinha, seis filhos. Ambos romperam com as performances de
gênero de sua época, ambos fizeram o inesperado, foram corajosos e
incompreendidos. Se na infância eu achava minha família diferente das demais,
hoje digo que ambos me encheram de orgulho.
Por fim, realizo o agradecimento mais fácil e, ao mesmo tempo, mais difícil.
Rodrigo foi a grande surpresa que apareceu na minha vida, pois se eu tinha uma
certeza era a de que eu nunca me casaria. Hoje, simplesmente não imagino minha
vida sem sua presença, pois ela não faria sentido. Nunca pensei que pudesse ser
tão feliz ao lado de alguém como sou ao seu lado, nem que seria possível
encontrar um companheiro como ele. Por todos esses motivos, é muito fácil
agradecê-lo. Por outro lado, Rodrigo, saiba que o que quer que eu escreva aqui
estará muito longe de fazer justiça ao tamanho do amor que sinto por você. Muito
obrigada por estar ao meu lado.
Resumo
Oliveira, Adriana Vidal de; Pilatti, Adriano. A Constituição da Mulher
Brasileira: uma análise dos estereótipos de gênero na Assembleia
Constituinte de 1987-1988 e suas consequências no texto constitucional.
Rio de Janeiro, 2012, 465p. Tese de Doutorado. Departamento de Direito,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Os estereótipos de gênero permeiam a vida social sendo, muitas vezes, de
difícil percepção, tamanha a naturalização que estes conseguem atingir. Este
processo de naturalização ocorre por meio do entendimento de que os atos de fala
são meramente descritivos, quando, na verdade, estes são a forma por meio da
qual a linguagem constitui a realidade, o que é chamado de ato performativo.
Assim, torna-se fundamental o recurso à teoria de Austin, para que, por meio
desta, se possa compreender o alcance desses atos de fala. Esses atos
performativos foram incorporados pela teoria feminista para desmitificar as
identidades de gênero, muitas vezes afirmadas ou com base em uma suposta
essência, masculina ou feminina, ou por meio de uma biologização dessas noções.
Isto permite entender como a linguagem é constitutiva dos corpos, e também do
gênero, ponto fundamental para analisar-se o processo de construção do ideário de
mulher e do movimento feminista no Brasil ao longo dos dois últimos séculos.
Tendo como marco a Constituição Federal, pilar maior no processo de conquista
de direitos na história recente do país, tomam-se por base as discussões travadas
ao longo da Assembleia Nacional Constituinte, de 1987-1988, para, novamente
recorrendo ao arsenal teórico aqui mencionado, explicitarem-se as ideias em torno
das noções de gênero que se fizeram presentes naquele debate e as consequências
que estas tiveram na luta e constituição de direitos das mulheres.
Palavras-chave
Atos Performativos; Gênero; Feminismo; Direitos das Mulheres;
Constituição
Abstract
Oliveira, Adriana Vidal de; Pilatti, Adriano (Advisor). The Constitution of
Brazilian Woman: an analysis of gender stereotypes in the Constituent
Assembly of 1987-1988 and its consequences in the constitutional text.
Rio de Janeiro, 2012, 465p. Doctoral Thesis. Departamento de Direito,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Gender stereotypes that permeate social life are often difficult to detect,
because of the process of naturalization that they can achieve. This naturalization
process occurs through the understanding of speech acts that are merely
descriptive, when, in fact, they are the means by which language constitutes
reality, what is called a performative. Thus, it becomes essential to use Austin’s
theory, through this, one can understand the scope of these speech acts. These
performative acts were merged by feminist theory to demystify gender identities
often asserted or based on a supposed essence, male or female, or through a
biologization of these notions. This allows us to understand how language is
constitutive of bodies, and also the gender, essential to analyse the process of
construction of the notion of women and the feminist movement in Brazil over the
past two centuries. Starting from the Federal Constitution, bigger pillar in the
process of conquering rights in recent history of the country, discussions during
the National Constituent Assembly of 1987-1988 are taken for, resorting to the
theoretical arsenal herein, emphasize the ideas around the notions of gender that
were present at the debate and the consequences they had on the struggle and
establishment of women’s rights.
Keywords
Performative Acts; Gender; Feminism; Women’s Rights; Constitution
Sumário
Introdução
12
Parte I
1 Atos de fala como atos performativos: a força das palavras
17
1.1 Atos de fala em J. H. Austin: fazendo coisas com palavras, ou a
linguagem como performance
19
1.2. Os atos performativos construindo corpos: impactos da virada
linguística na teoria feminista proposta por Judith Butler
35
1.3 A leitura de Butler sobre Austin na análise dos impactos das
ofensas sobre as minorias.
63
2 A construção do imaginário sobre a mulher brasileira e o feminismo
no Brasil
82
2.1 O surgimento da mulher moderna no Brasil, suas ambiguidades e
relações com as feministas
85
2.2 A saída para o mundo público: influência estrangeira, experiência
das mobilizações pelo voto e a conquista dos direitos políticos no
Brasil
110
2.3 Dos direitos políticos à retomada do feminismo no Brasil
156
Parte II
3 As mulheres Constituintes: a pluralidade na composição da chamada
“Bancada Feminina”
192
3.1 Objetivos do capítulo e breve esclarecimento sobre a estrutura da
análise das atas das Subcomissões da Assembleia Constituinte
192
3.2 As mulheres na Constituinte de 1987-1988: a acidental constituição
de uma Bancada Feminina
197
4 A Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais: os problemas
do nome e do corpo, as “aberrações homossexuais” e os reflexos na
Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da
Mulher
214
4.1 A Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais: as discussões
sobre o nome atribuído à Comissão, sobre o corpo e as “aberrações
homossexuais”
214
4.2 A Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e
da Mulher
276
5 Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos,
Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente e
Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e
Minorias: o trabalho da mulher e a condição da mulher negra, o papel
social da mulher brasileira e a reivindicação minoritária pela não
discriminação. Os reflexos desses debates na Comissão da Ordem
Social
292
5.1 A Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores
Públicos: considerações sobre trabalho rural, urbano e doméstico,
medidas protetivas e licença gestante.
292
5.2 A Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente e o
problema do corpo
308
5.3 A Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas Pessoas
Deficientes e Minorias: interseccionalidades, ou a condição da mulher
negra e da orientação sexual.
319
5.4 A Comissão da Ordem Social
351
6 Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso: os usos do corpo, a
biologia e o destino da mulher. A Comissão da Família, da Educação,
Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da Comunicação e a não
aprovação do anteprojeto
361
6.1 Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso: os usos do corpo, a
biologia e o destino da mulher
361
6.2 A Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da
Ciência e Tecnologia e da Comunicação e a não aprovação do
anteprojeto
430
7 Os reflexos dos debates analisados na Constituição de 1988 e as
legislações e projetos de leis posteriores que retomaram os temas
433
8. Conclusão
454
9. Referências Bibliográficas
459
Introdução
O presente trabalho é fruto de pesquisas na área de direito e gênero,
especificamente no processo de conquistas de direitos das mulheres, atrelado ao
desenvolvimento de diferentes teorias sobre o gênero, que permitiram a expansão
dos debates nas teorias feministas, observando as várias vertentes do feminismo.
O interesse e o estudo do desenvolvimento dos movimentos feministas, bem como
suas formas de atuação, tiveram início de forma sistemática ao longo da realização
do mestrado, a partir do encontro entre dois autores, que não tratavam do mesmo
tema: Antônio Negri e Judith Butler. A dedicação ao primeiro autor ocorreu a
partir da obra “Poder Constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade”,
cujo objetivo era entender a forma em que os processos revolucionários, a partir
do início da Modernidade, se iniciavam e eram interrompidos pelo chamado poder
constituído, ou seja, aqueles poderes que refreavam as lutas por liberação e por
expansão de direitos. Naquela época, percebeu-se a possibilidade de se conjugar
os interesses entre esse autor e os movimentos feministas.
Ao examinar os mecanismos pelos quais o poder constituinte avançava e o
poder constituído impedia seus avanços, Antonio Negri percorria as revoluções
ocorridas ao longo da Modernidade. Porém, esse autor não dedicou nenhum
momento à análise de qualquer movimento feminista, apesar de algumas mulheres
feministas terem participado tanto dos processos revolucionários nos Estados
Unidos quanto na França, sendo essas duas revoluções marcos também para o
início das lutas feministas. Por esse motivo, a dissertação de mestrado foi
dedicada à investigação desses mesmos processos revolucionários em relação aos
direitos das mulheres e a constituição dos movimentos feministas, na medida em
que essas mulheres percebiam que as suas demandas por igualdade de direitos
entre os sexos não conseguiam espaço. Nesses termos, utilizou-se a metodologia
desenvolvida por Negri para observar a constituição do movimento feminista. A
teoria de Butler sobre atos performativos foi utilizada como uma perspectiva de
processo de retomada de conquistas de direitos a partir da perspectiva de gênero.
Butler apresentava uma proposta diferente, pensando o gênero como algo
construído a partir dos chamados atos performativos, ao mesmo tempo que fazia
críticas à afirmação da identidade. Para essa autora, tal afirmação, como categoria
13
para se conquistar direitos, implicava na repetição do mesmo processo de
exclusão enfrentado pelas minorias. Nesses termos, a autora ressaltava a
necessidade de se pensar essas lutas minoritárias a partir, minimamente, de um
uso estratégico da identidade, considerando que esta sempre poderia ser revista de
acordo com as necessidades dos movimentos minoritários, especialmente do
movimento feminista.
A pretensão no doutorado foi, no primeiro momento, aprofundar o
entendimento sobre esses atos performativos, resgatando a origem desse conceito
na filosofia da linguagem. Ao entender a proposta a partir da obra de J. L. Austin,
o teórico essencial na compreensão desse conceito, foi possível apreender também
o uso que Judith Butler fazia dos atos performativos na constituição e na
perpetuação dos gêneros, assim como foi viável, inclusive, realizar algumas
críticas às conclusões da autora. Além disso, pretendeu-se utilizar os atos
performativos para compreender como a figura da mulher brasileira foi forjada
com recursos da linguagem, e, da mesma forma, como o feminismo se apropriou
dessa figura para subvertê-la e para lutar por direitos. Nesse sentido, foi
necessário passar pelo momento em que a identidade da mulher brasileira
“moderna” começou a ser construída, pois foi a partir desse momento que as
feministas também começaram a surgir no Brasil, salvo exemplos pontuais.
O presente trabalho está estruturado em duas partes. A primeira parte é
composta pelo primeiro e pelo segundo capítulos e é dedicada aos pressupostos
teóricos necessários para se ingressar nos temas tratados em algumas das
Subcomissões da Assembleia Constituinte. O primeiro capítulo é voltado para o
exame dos atos performativos e o segundo capítulo é dedicado à análise da
constituição das performances de gênero no país, bem como à apropriação dessas
performances por parte das feministas, chegando até o momento em que o
feminismo estava consolidado como um dos principais movimentos minoritários
que se manifestaram na Assembleia Constituinte. A segunda parte da tese é
dedicada à Constituinte e é composta pelos capítulos três, quatro, cinco, seis e
sete. O terceiro voltado para a explicação dos critérios para a escolha das
Subcomissões que foram analisadas e o quarto capítulo voltado para um breve
exame das Constituintes que compuseram a “Bancada Feminina. O quarto, o
quinto e o sexto foram dedicados aos debates nas Subcomissões dos Direitos e
Garantias Individuais e Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do
14
Homem e da Mulher, as três Subcomissões que compuseram a Comissão da
Ordem Social e a Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, com breve
comentário sobre a Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, da
Ciência e Tecnologia e da Comunicação. O sétimo capítulo aponta algumas
retomadas recentes de temas que foram debatidos na Constituinte.
O primeiro capítulo, portanto, ocupa-se da análise da teoria de Austin
sobre a noção de atos performativos. A escolha desse autor é fundada não só na
sua importância para a filosofia da linguagem, especialmente no que diz respeito
ao conceito de atos performativos, mas também no fato de que é na sua obra que
Judith Butler vai buscar os fundamentos para criticar a noção de identidade. Se a
teoria de Austin é responsável pela ruptura das barreiras entre linguagem e
filosofia, tal ruptura pode ser promovida também nas barreiras entre o direito e as
disputas políticas, especialmente quando se observa a elaboração das normas em
geral, uma vez que caberá aos que trabalham com o Direito a função de lidar com
essas normas originadas por disputas. Essa ruptura tem como objetivo deixar claro
que as normas produzidas estão longe de serem desprovidas de qualquer valor.
Não há neutralidade em uma norma, menos ainda no processo de sua elaboração.
Deve-se reconhecer, na verdade, os interesses em disputa. Esse tipo de
entendimento é fundamental para se compreender o processo de elaboração da
Constituição de 1988, e o que estava em jogo na Assembleia Constituinte,
especialmente no que se refere aos direitos das mulheres. Porém, é preciso ainda
ressaltar que esse processo de disputa de valores e de conceitos não se encerrou
com a Constituinte. Os conflitos continuam instaurados em relação a esses
direitos. E tal fato não pode ser considerado ruim, ao contrário, é justamente a
possibilidade de assumir a dimensão conflitiva que permite a expansão da
democracia e dos direitos estabelecidos na Constituição de 1988.
Ingressar no tema dos atos performativos possibilitou o entendimento
sobre como as performances são responsáveis pela consagração das estruturas de
gênero e como elas se perpetuam através de ritos e práticas sociais. O objetivo do
segundo capítulo é examinar a forma pela qual esses processos instituíram os
paradigmas de gênero no Brasil, especialmente como surgiu o ideal de mulher
brasileira, o momento em que ela foi forjada, seus papeis instaurados e sua
atuação limitada por contornos que se perpetuam até os dias atuais.
15
É de se observar que, nesse momento, realizou-se uma clara opção
metodológica. Se a tese versa sobre a análise do feminismo, sem deixar de lado a
sua consideração como movimento minoritário revolucionário, entendeu-se como
lógico dar voz a quem participou dessa luta, mas teve seu espaço cerceado na
história. Por isso, preferiu-se utilizar bibliografia específica sobre a história das
mulheres no Brasil, especialmente aquela produzida por mulheres feministas. Tal
opção é justificável na medida em que elas possuem produção específica no tema
de interesse da tese. Gênero é o tema central, e isso não implica em ignorar a
importância de outras perspectivas, só implica em assumir que no presente
trabalho a perspectiva é a de gênero. Ressalte-se, então, que o segundo capítulo
versa sobre uma, ainda que breve, historiografia do feminismo do Brasil, mais
precisamente, sobre a formação do imaginário existente em torno da noção de
“mulher” no Brasil e como esse imaginário chegou até a Assembleia Constituinte
de 1987-1988.
É interessante perceber como questões ainda tratadas como da ordem da
natureza ingressaram nos discursos proferidos pela imprensa cujo público alvo era
a nova mulher, com a valorização de suas funções típicas ou naturais. Dessa
forma, será possível sair do plano teórico, tratado ao longo do primeiro capítulo,
para a observância dessas práticas sociais específicas. Entendendo-se como os
atos performativos colaboraram para a construção de um ideário de “Mulher”, e
como esse ideário chegou à Assembleia Constituinte de 1987-1988, chega a hora
de, a partir do terceiro capítulo, realizar a análise dos debates ocorridos nas
subcomissões e comissões temáticas que versaram sobre a questão de gênero.
A escolha pelas Comissões e Subcomissões se deu porque foi ali que a
sociedade civil teve a oportunidade de se manifestar, possibilitando que se
confrontassem as suas demandas com a resposta dos Constituintes, ainda que o
resultado desse embate não tenha necessariamente se verificado no texto
constitucional. Nesses termos, foram selecionadas as Subcomissão dos Direitos e
Garantias Individuais, com a respectiva Comissão da Soberania e dos Direitos e
Garantias do Homem e da Mulher, a Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores
e Servidores Públicos, a Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente
e a Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e
Minorias, que compuseram a Comissão da Ordem Social e, por fim, a
Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, pertencente à Comissão da
16
Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e da
Comunicação. Essas Subcomissões foram selecionadas seguindo os dispositivos
da Constituição de 1988 que trazem direitos das mulheres, ou envolvem questões
de gênero. Nesse terreno foi possível, mais do que seria na análise da comissão de
sistematização e das plenárias, propositalmente deixadas de lado, perceber as
disputas em torno dos direitos da mulher e a influência dos atos performativos e
do imaginário existente na definição desses enfrentamentos.
Por fim, analisa-se o resultado dos debates no corpo do texto
constitucional, sendo importante observar que nem todos os temas, mesmo os
exaustivamente discutidos, fizeram parte da redação final. Apesar disso, não se
afirma que a luta em torno deles ali se encerrou. Como tentativa de demonstrar
isso, elegeram-se alguns projetos de lei atualmente em tramitação no Congresso
Nacional que, não só retomam esses temas interrompidos, mas também, permitem
a análise da permanência ou não dos estereótipos de gênero outrora afirmados.
1
Atos de fala como atos performativos: a força das palavras
A noção dos atos de fala como atos performativos surge com J. L. Austin,
responsável por sua introdução no campo da filosofia da linguagem. De forma
geral, o ato de fala, ou o próprio uso da linguagem, a partir de Austin, passa a ser
caracterizado como ato performativo, na medida em que a linguagem é
compreendida como ação. Desta forma, é constituído o caráter performativo da
linguagem. A discussão sobre performatividade abre a possibilidade de diferentes
interpretações e é, por esse motivo, o espaço de conflitos quando são elaboradas
as análises sobre a linguagem comum1. Essa perspectiva da linguagem produzida
por Austin origina uma concepção muito além da formalista sobre o tema, que
implica na tradicional separação entre sujeito e objeto.
Os conceitos não são neutros ou meramente descritivos, ao contrário, são
impregnados de valores e há conflitos e disputas em torno de seus significados.
Essa dimensão conflitiva pode ser a chave para a apropriação das discussões sobre
produção de direitos por parte daqueles que são afetados pelas normas jurídicas,
pois eles podem reivindicar participação nesse momento. Aqueles que fazem parte
diretamente dessas disputas, obviamente estão sempre atentos a elas, sabem dessa
dimensão performativa e a utilizam em prol de seus interesses. Portanto, é
fundamental assumir isso para que a possibilidade de intervenção nesses
processos de elaboração de normas seja cada vez mais democrática e,
especialmente aqueles afetados possam contribuir para a construção de conceitos
e sentidos que irão nortear as suas vidas. Isso é algo bastante relevante para todos
os que militam em causas minoritárias, como é o caso da luta pela expansão e
concretização de direitos das mulheres.
Por que retornar à concepção de atos de fala de Austin? Esse retorno é
necessário por Austin ter sido o primeiro a tratar a linguagem como ação, ou a
apresentar a dimensão performativa da linguagem, conforme já mencionado. Foi
ele quem vislumbrou essa potência criadora da linguagem, que constitui até
mesmo corpos, e é por esse motivo que sua teoria foi incorporada também por
algumas autoras feministas, como Judith Butler. E para compreender como são
1
Essa observação sobre a perspectiva conflitiva se encontra na introdução de OTTONI, Paulo.
Visão Performativa da linguagem. P. 11.
18
possíveis processos de liberação a partir dos atos performativos, que são repetidos
cotidianamente, sem que haja uma necessária consciência sobre eles, é preciso,
em primeiro lugar, compreender o que são os atos performativos.
O capítulo é iniciado com o mapeamento da teoria de Austin sobre atos de
fala e como o autor conseguiu romper com um binômio fundamental na filosofia
da linguagem, a divisão instituída entre performativos e constativos, considerando
que, até então, se entendia que o uso primordial da linguagem era descritivo.
Austin enxergou o grande equívoco dessa concepção, apresentando, inclusive o
conceito de falácia descritiva que fundamentava esse binômio. Sem dúvida, a
defesa de que a linguagem era primordialmente descritiva implicava em assegurar
um grande poder, na medida em que determinados posicionamentos eram
entendidos como verdadeiros e objetivos, descolados daquele que realizou o ato
de fala. Austin demonstrou que a linguagem é primordialmente performativa, o
que implica em assumir que o ato de fala constitui a realidade.
O segundo momento do capítulo se destina a trazer a discussão sobre atos
performativos para o campo da teoria feminista. Nesse sentido, o propósito é
demonstrar que temas tão importantes para essa teoria são permeados pelos
problemas colocados na filosofia da linguagem e que o fato de Austin já ter
destruído a pretensão descritiva da maior parte dos atos de fala auxilia a
compreender que a própria concepção de sexo como algo que retrata a natureza,
ou seja, como uma descrição pode ser também posta em xeque. Além disso, temse o objetivo de demonstrar como os atos performativos são fundamentais para
instituir os modelos de gênero e como eles podem também contribuir para a
ruptura desses modelos, ressaltando que eles podem ter um viés criativo.
Por fim, o capítulo irá tratar de uma segunda interpretação de Butler sobre
a teoria de Austin, para elaborar as suas observações sobre as ofensas, com
especial interesse no que a autora compreendeu ser a ofensa, como ela é
constituída e como molda as minorias, compondo seus corpos e garantindo que
elas não se desloquem dos lugares atribuídos socialmente a elas, e assumidos
como necessários a partir, justamente, de uma pretensão descritiva da linguagem
em relação à realidade. Deve-se esclarecer que ao elaborar sua teoria sobre
ofensas, Judith Butler não utilizou os problemas de gênero para ilustrar como esse
procedimento ocorria. Sua preocupação estava voltada para os problemas do
racismo nos Estados Unidos. Porém, isso não impossibilita o uso de sua teoria
19
para analisar a constituição de mulheres e minorias relacionadas à orientação
sexual. Na verdade, esse uso é viabilizado pelo seu desenvolvimento anterior
sobre a teoria dos atos performativos, perpetuando performances de gênero.
Nesses jogos de constituição de homens e mulheres, são criadas assimetrias de
gênero e a ofensa é um instrumento pelo qual se lembra às minorias, no caso, às
mulheres ou às minorias em relação à orientação sexual, quais são seus
“verdadeiros papeis” sociais.
1.1
Atos de fala em J. L. Austin: fazendo coisas com palavras, ou a
linguagem como performance
A teoria dos atos de fala cunhada por Austin está inserida no que se
entende por virada lingüística2. Essa construção teórica de Austin surge como
parte da filosofia analítica britânica, sendo uma forma de reagir tanto ao chamado
idealismo absoluto quanto ao empirismo, correntes que tinham larga influência na
Inglaterra do século XIX. Os autores que faziam parte do idealismo absoluto
“sustentavam não só a identificação da realidade com a totalidade, mas também a
necessidade de a consciência reconhecer-se como parte do Absoluto. Já o
empirismo psicologista e subjetivista reduzia a realidade à experiência psicológica
do sujeito”3.
Não cabem aqui maiores considerações sobre as duas correntes, somente
sendo necessário indicar o surgimento da filosofia analítica como uma forma de se
fazer oposição a esses dois extremos. Em seu início a filosofia analítica tem como
pressuposto a concepção realista e sustenta que a função primordial da filosofia é
clarificar os elementos centrais da experiência humana, com a realização de
análises das sentenças nas quais os nossos conhecimentos, as crenças e opiniões
sobre o real são expressos e articulados. A partir dessa nova abordagem da
filosofia analítica, o centro da investigação filosófica passou a ser a forma pela
qual uma sentença possui um significado. Danilo Marcondes, ao longo da
apresentação da tradução do texto How to do things with words, de J. L. Austin,
chama atenção para o fato de a tarefa filosófica se desdobrar basicamente em duas
2
FILHO, Danilo Marcondes de Souza. A filosofia da linguagem de J. L. Austin. In AUSTIN, J. L.
Quando dizer é fazer: palavras e ação. P. 7.
3
FILHO, Danilo Marcondes de Souza. A filosofia da linguagem de J. L. Austin. In AUSTIN, J. L.
Quando dizer é fazer: palavras e ação. P. 7.
20
atividades a partir da filosofia analítica. A primeira seria a análise da sentença
com o objetivo de estabelecer sua forma lógica e os elementos que a constituem e
a segunda seria investigar novamente os problemas filosóficos tradicionais em
teoria do conhecimento e ética, por exemplo, pela análise lingüística dos conceitos
que são fundamentais dessas áreas e também dos usos desses conceitos na
linguagem ordinária4. A primeira atividade descrita originou a filosofia da
linguagem, como uma teoria sobre a estrutura da linguagem, que se dedicou a
examinar termo e proposição, sentido e referência, nomes próprios e predicativos.
A segunda atividade deu origem à Escola de Oxford, da qual Austin foi um dos
principais representantes, e que também ficou conhecida como filosofia da
linguagem ordinária.
Austin entendia que a análise filosófica da linguagem ordinária poderia
desmistificar e trazer clareza a problemas fundamentais da filosofia, tais como
responsabilidade e ação, igualmente fundamentais para o Direito, porém sem
necessidade de recorrer a um plano mais abstrato, viabilizando a compreensão
desses problemas sem partir de pressupostos metafísicos, que sempre geraram
problemas e novas discussões. Nesse sentido, Danilo Marcondes faz referência ao
tratamento dado por Austin à questão da responsabilidade decorrente de uma
ação. Austin não desenvolveu sua análise a partir de uma teoria abstrata da Ética.
O ponto inicial de Austin são advérbios utilizados nessas ocasiões, tais como
acidentalmente, deliberadamente e voluntariamente, pois são termos que
qualificam a ação. As condições de emprego desses termos revelam determinadas
circunstâncias que possibilitam ao falante utilizá-los para se justificar, se
desculpar ou se eximir da responsabilidade de seu ato5.
A estratégia de Austin foi retirar exemplos não somente do uso lingüístico
cotidiano, mas também de processos criminais, em que sempre há discussão
acerca da responsabilização ou não de alguém por um ato. O objetivo final de
Austin não era meramente empírico; esses exemplos extraídos da realidade ou até
mesmo imaginários tinham a função de auxiliar a discussão a ganhar tons mais
concretos, aproximando-a da experiência vivida pelos falantes. A ênfase no
aspecto intersubjetivo da linguagem dada por Austin fez com que as suas
4
FILHO, Danilo Marcondes de Souza. A filosofia da linguagem de J. L. Austin. In AUSTIN, J. L.
Quando dizer é fazer: palavras e ação. P. 8.
5
FILHO, Danilo Marcondes de Souza. A filosofia da linguagem de J. L. Austin. In AUSTIN, J. L.
Quando dizer é fazer: palavras e ação. P. 9.
21
conclusões fossem próximas do uso cotidiano da linguagem. Era fundamental
para o autor que o exame das expressões fosse feito considerando “quando”,
“como”, o “por que” de seus usos, bem como o motivo pelo qual algumas
expressões podiam ser usadas e outras não e “por quem” elas poderiam ser usadas.
Tudo isso indica a passagem para uma forma diferente de investigação da
linguagem, da teoria do significado para a teoria da ação, da linguagem em seu
uso.
Esse mecanismo de análise foi essencial para Austin fazer aproximações e
distinções entre os termos e identificar as possibilidades de seus usos,
responsáveis pelo fornecimento dos elementos que determinam os significados e,
como conseqüência decorrente, pelo esclarecimento dos termos. Dessa forma,
pode-se concluir que para Austin a linguagem não pode ser considerada em si
mesma, de forma abstrata e autônoma. É fundamental que ela seja considerada a
partir de uma situação determinada em que algumas expressões podem ser
utilizadas. Nesse sentido, as fronteiras entre a linguagem e o mundo são desfeitas,
conforme ressalta Danilo Marcondes.
Podemos afirmar, então, que quando analisamos a linguagem nossa finalidade não
é apenas analisar a linguagem enquanto tal, mas investigar o contexto social e
cultural no qual é usada, as práticas sociais, os paradigmas e valores, a
“racionalidade”, enfim, desta comunidade, elementos estes dos quais a linguagem
é indissociável. A linguagem é uma prática social concreta e como tal deve ser
analisada. Não há mais uma separação radical entre “linguagem” e “mundo”,
porque o que consideramos a “realidade” é constituído exatamente pela linguagem
que adquirimos e empregamos6.
Por esse motivo, Austin criou um novo modelo teórico que passou a tratar
a linguagem como forma de ação, ou seja, como um mecanismo de interferir no
real e de produzi-lo, ultrapassando a concepção anterior de que a linguagem seria
meramente uma descrição da realidade. Tal fato gera também outra conseqüência:
o conceito de verdade é substituído pelo conceito de eficácia do ato de fala, ou
como ressalta Austin em diversos momentos de sua obra, para a concepção de
felicidade do ato de fala, passando a depender do exame de suas condições de
sucesso na interação comunicativa.
6
FILHO, Danilo Marcondes de Souza. A filosofia da linguagem de J. L. Austin. In AUSTIN, J. L.
Quando dizer é fazer: palavras e ação. P. 10.
22
Sem dúvida, esse é um motivo bastante forte para que a proposta teórica do
autor seja transportada para o exame dos discursos, ou formas de uso da
linguagem, na Assembléia Constituinte de 1988 referentes aos direitos das
mulheres, especialmente a partir da leitura de Judith Butler sobre atos
performativos e gênero. Se as condições de usos das sentenças definem os seus
significados, examinar os debates em torno dos referidos direitos é fundamental
para compreender a dinâmica das relações de gênero, os motivos pelos quais
alguns direitos foram recepcionados e outros foram excluídos do debate ou sequer
foram percebidos como relevantes para que a igualdade de gênero pudesse ser
alcançada no país.
Nesse novo mecanismo de se pensar a linguagem instituído por Austin, a
análise da sentença, ou melhor, da estrutura da sentença e dos elementos que a
constituem, cedeu espaço para a análise do ato de fala, da forma como a
linguagem é usada e do seu contexto, sua finalidade e das normas e convenções
que estão em jogo, ou seja, as circunstâncias nas quais algumas expressões
produzem seus efeitos em uma situação determinada. O autor formulou uma teoria
da linguagem como um mecanismo de realização de um ato, no caso, do ato de
fala, que começou a ser desenvolvida na década de 1940 e que, na década
seguinte, passou a ser apresentada de forma mais sistematizada, sendo
especialmente importante para a presente tese o texto “Performativo-Constativo”,
de 1958 e “Quando dizer é fazer: palavras e ação”, de 19627.
J. L. Austin cria a idéia de enunciado performativo para conseguir
contrastá-lo com o chamado enunciado declarativo, ou constativo, divisão
consagrada sobre o tema dos atos de fala8. Tradicionalmente, a principal
característica do enunciado constativo é poder ser considerado verdadeiro ou falso
pelos filósofos. Isso porque para os filósofos os enunciados declarativos ou as
declarações tinham como papel descrever um estado de coisas ou declarar um
fato9. Havia um pressuposto filosófico de que dizer algo era necessariamente
declarar algo10. Apesar disso, os gramáticos observaram com certa facilidade que
7
Tradução realizada por Danilo Marcondes Filho de AUSTIN, J.L. How to do things with words.
1962.
8
O autor prefere o termo constativo em vez de declarativo uma vez que nem todas as declarações,
sujeitas ao julgamento verdadeiro ou falso, são descrições. AUSTN. J. L. Quando dizer é fazer:
palavras e ação. P. 23.
9
AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. P. 21.
10
AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. P. 29.
23
as sentenças podiam ser usadas para coisas além da declaração, da simples
descrição de fatos, como por exemplo, para realizar perguntas, exclamações, dar
ordens, fazer concessões e expressar desejos.
Filósofos e gramáticos sabiam que não era tarefa simples diferenciar uma
declaração de uma ordem, por exemplo, especialmente se atrelados somente aos
critérios estabelecidos pela gramática. Porém, o fato é que Austin percebe que
sentenças anteriormente aceitas como meras declarações por ambos os grupos
poderiam ser examinadas com outro rigor. A pergunta que passou a permear o
tema era se as declarações seriam realmente declarações11, pois muitas vezes
frases proferidas que aparentemente tinham o objetivo de transmitir informação
direta sobre um fato, na verdade, não possuíam esse fim. Quando alguma palavra
de perplexidade é inserida em uma declaração, por exemplo, ela não tem a
finalidade de indicar um aspecto adicional da realidade narrada, ela é usada para
indicar as circunstâncias em que a declaração foi proferida, as restrições que a
sujeitam, ou a forma como deve ser recepcionada. Austin chama de falácia
descritiva o fato de se desconsiderar essas circunstâncias12.
Já o enunciado performativo teria o objetivo de realizar uma ação, não
podendo ser considerado como verdadeiro ou falso. A própria formulação de tal
enunciado já é a realização de uma ação13, que muitas vezes não teria como ser
realizada com precisão de qualquer modo diferente do da declaração. Porém, o
enunciado performativo pode ser alvo de críticas, ainda que não possa ser avaliado
como verdadeiro ou falso. O uso inadequado dele pode gerar até algumas formas
de falta de sentido, mas o que interessa ao autor são expressões que se disfarçam
ao se tornarem mais explícitas. Os exemplos dados por Austin são os que, a
princípio, só se adequariam à categoria de declaração. Eles estão na primeira
pessoa do singular do presente do indicativo da voz ativa, mas não relatam, não
descrevem ou constatam, nem são verdadeiros ou falsos. Além disso, as sentenças
proferidas já são a realização de uma ação, ainda que parcialmente, que não
costuma ser descrita como consistindo meramente em dizer alguma coisa.
11
Discussão interessante que foi levada por Butler para a teoria feminista, na medida em que a
autora percebe a estratégia de se tratar o sexo como algo meramente descritivo e não como algo
construído. BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. New York,
London: Routledge, 1990.
12
AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. P. 23.
13
AUSTIN, J. L. Performativo-Constativo, In OTTONI, Paulo. Visão Performativa da Linguagem
p. 111.
24
As frases propostas pelo autor são: “aceito essa mulher como minha
legítima esposa” proferido na cerimônia de casamento; “Batizo este navio com o
nome de Rainha Elizabeth”, proferido no momento em que se quebra a garrafa no
casco do navio e “Aposto cem libras como vai chover amanhã”. Nestes casos,
proferir uma dessas frases não é declarar o que se está praticando nem descrever o
ato que estaria praticando ao dizer o que se disse. Nenhum deles é verdadeiro ou
falso. Proferir essas sentenças é fazer o próprio ato. Batizar um navio é dizer a
frase em uma circunstância específica, assim como casar é dizer “aceito” dentro
de circunstâncias apropriadas perante um juiz. Ao dizer isso, a pessoa realmente
se casa e não relata um casamento. Esses são exemplos de sentenças
performativas. Ressalte-se que os dois primeiros exemplos ocorrem em
circunstâncias solenes, porém, isso não significa que, para configurar um
performativo seja necessário um poder institucional, uma posição, como por
exemplo, a de um padre ou de um juiz, bastando ter em mente o terceiro exemplo.
É importante enfatizar que as circunstâncias nas quais elas são ditas são
fundamentais, o que também é essencial para o Direito, campo em que os
procedimentos são muito prezados:
Genericamente falando, é sempre necessário que as circunstâncias em que as
palavras forem proferidas sejam, de algum modo, apropriadas; frequentemente é
necessário que o próprio falante, ou outras pessoas, também realize determinadas
ações de certo tipo, quer sejam ações “físicas” ou “mentais”, ou mesmo o
proferimento de algumas palavras adicionais. Assim, para eu batizar um navio é
essencial que eu seja a pessoa escolhida para fazê-lo; no casamento (cristão) é
essencial para me casar que eu não seja casado com alguém que ainda vive, que é
são e de quem não me divorciei, e assim por diante; para que uma aposta se
concretize, é geralmente necessário que a oferta tenha sido aceita pelo
interlocutor (que deve fazer algo, como dizer “Feito”) e uma doação não se
realiza caso diga “Dou-lhe isto”, mas não faça a entrega do objeto14.
Se a sentença performativa deve ser emitida em uma determinada situação
que seja adequada ao próprio ato e isso não acontece? Têm-se as chamadas
infelicidades. Os requisitos para a felicidade de um ato são expostos da seguinte
forma: o primeiro grupo diz respeito à existência de um procedimento
convencionalmente aceito, que apresente um determinado efeito e necessite de um
proferimento de certas palavras por certas pessoas e em certas circunstâncias e
essas pessoas e circunstâncias devem ser adequadas ao procedimento invocado; o
14
AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. P. 26.
25
segundo grupo pretende garantir que o procedimento seja executado pelos
participantes de forma correta e completa e, o grupo mais sofisticado exige que
nos casos em que o procedimento tenha como alvo as pessoas com seus
pensamentos e sentimentos, aquele que participa e invoca esse procedimento
tenha de fato esses pensamentos e sentimentos, tendo a intenção de agir de forma
adequada e devendo continuar a agir assim em seguida.
Existem, portanto, algumas formas pelas quais um ato não é bem sucedido,
ou melhor, é infeliz. Nesse sentido, se o autor do ato não tem condições de agir ou
se o procedimento é inadequado ou executado de forma inadequada, esse ato será
considerado um ato infeliz, segundo as condições impostas por Austin. Há ainda
outra hipótese, atrelada à ausência de sinceridade. É o caso, por exemplo, da
promessa sem haver a intenção de seu cumprimento, ou ainda, se aquele que
promete não tem, na verdade, poder de cumprir a promessa. Nesse caso, ela é
vazia. A promessa é feita, mas há uma infelicidade em função do abuso da
fórmula, ou seja, em razão da falta de sinceridade.
Se o ato performativo foi realizado, tudo ocorreu como deveria ter
ocorrido e de forma sincera, ele teve efeito. Portanto, se houver algum
acontecimento posterior como sequência à realização desse ato, ele poderá estar
ou de acordo com a regra, ou não estará de acordo com a regra. Sendo assim,
quando o performativo começa a atuar, existe, ainda, a possibilidade dessa terceira
espécie de infelicidade se concretizar, chamada por Austin de quebra de
compromisso. Essas espécies de infelicidade demonstradas, em relação aos atos
performativos, podem, inclusive, se confundir e se misturar, elas não se excluem,
podendo ocorrer mais de uma em um performativo.
O ato performativo em Austin é de duas ordens simultaneamente: eles são
ação e enunciado. Eles deveriam estar num padrão mais elevado do que todas as
formas de ser das ações e também dos enunciados. Porém, Austin ressaltou que ao
serem emitidos, pode haver qualquer tipo de restrição em cima daquele que o
emite, e da qual não temos conhecimento, eles podem ter problema de sintaxe, ou
ainda qualquer mal-entendido. Também podem estar fora de um contexto sério,
como no caso de uma peça de teatro. Esses exemplos são deixados de lado pelo
autor, em prol do que ele chama de infelicidades específicas do performativo,
quais sejam: nulidade, abuso e quebra de compromisso. Em um mundo ideal, a
próxima etapa seria encontrar critérios, no caso ou gramaticais ou de vocabulário,
26
que possibilitassem a verificação sobre o ato, se ele é performativo ou não. Porém,
Austin entendeu que não haveria como se estabelecer critérios precisos para
definir se um ato é ou não performativo.
São duas formas mais convencionais nas quais os performativos possuem
sua expressão mais adequada. Ambas possuem uma aparência inicial de
constativo. A primeira forma é haver um verbo na primeira pessoa do singular, no
presente do indicativo, na voz ativa, logo no início do enunciado, como exemplo
dado pelo autor: “eu prometo que”. A segunda ocorre com maior frequência na
escrita e tem um verbo na voz passiva e na segunda ou terceira pessoa do presente
do indicativo. O autor dá o seguinte exemplo: “os passageiros estão convidados a
utilizar a passarela para atravessar a pista”. Caso haja dúvida em saber se esse tipo
de enunciado é constativo ou performativo, o autor sugere que se tente inserir a
expressão “por meio desta” para tentar esclarecer a questão.
Porém, não é preciso que essas duas formas sejam seguidas para se ter um
ato performativo caracterizado. Para que um ato seja performativo, podem ser
empregados outros meios além das fórmulas explicitadas de forma prévia. Podem
ser usados diferentes mecanismos, como a entonação, o gesto e o contexto no qual
as palavras são faladas. Esses recursos elucidam a maneira pela qual esses atos
devem ser tomados, se é como uma descrição ou advertência. A fórmula explícita
performativa, “eu prometo” ou “eu ordeno” tem o objetivo de tornar mais
transparente qual é o ato que se pretende realizar quando se emite o seu
enunciado. É importante ressaltar que tornar explícito não é o mesmo que afirmar.
Um exemplo é dizermos “olá” para alguém.
O performativo, portanto, não possui nenhum critério verbal. No máximo
o que se pode esperar é que se um enunciado é de fato performativo, ele pode ser
reduzido a um enunciado em uma das chamadas formas normais. Ao longo dessa
discussão, pode ter sido sugerido que cada um dos enunciados deve ser ou
constativo ou performativo, como se o próprio constativo fosse claro. Porém, isso
não ocorre. Um enunciado que é sem qualquer dúvida a afirmação de um fato, ou
seja, constativo pode ser falso, ou pode ser ainda absurdo. São três os exemplos
usados pelo autor: “todos os filhos de João são carecas, mas João não tem filhos”
ou “todos os filhos de João são carecas” e na verdade João não tem filhos; “o gato
está sobre o capacho, mas eu não creio que esteja” ou “o gato está sobre o
capacho” quando eu não creio que esteja ali; “todos os convidados são franceses,
27
e alguns dentre eles não o são” ou “todos os convidados são franceses”, e logo
após é falada a frase “alguns dentre eles não o são”. Nesses casos há nítida
contradição.
As frases “os filhos de João são carecas” e “os filhos de João não são
carecas” pressupõem o fato de João ter filhos. Falar dos filhos de João implica,
necessariamente, em pressupor que eles existam. Porém, não é verdadeiro que “o
gato não está sobre o capacho” implica, da mesma forma que “o gato está sobre o
capacho” que acredito que ele esteja ali. No mesmo sentido “nenhum dos
convidados é francês” não implica, assim como “todos os convidados são
franceses”, que é falso que alguns dos convidados não sejam franceses. Porém, as
proposições “pode ser que ao mesmo tempo o gato esteja sobre o capacho e eu
não creio que ele esteja ali” podem ser igualmente verdadeiras, não existindo
incompatibilidade entre elas. O que não pode acontecer é a afirmação de ambas ao
mesmo tempo. Se alguém afirma que o gato está sobre o capacho, isso significa
que a pessoa que afirma acredita nisso. Por outro lado, não se pode dizer “pode
ser que ao mesmo tempo João não tenha filhos e que seus filhos são carecas”.
Também não se pode dizer “pode ser ao mesmo tempo em que todos os
convidados são franceses e alguns entre eles não são”. Se todos os convidados são
franceses, isso implica necessariamente no fato de não ser o caso de alguns deles
não serem franceses. Aqui a questão para Austin é a compatibilidade entre as
proposições. Não é esse o caso da pressuposição se “os filhos de João são
carecas”, pois ela implica na afirmação de que João tem filhos. Não é
absolutamente verdadeiro que “João não tem filhos”. Também não é
absolutamente verdadeiro que “João não tem filhos” pressupõe que “os filhos de
João não são carecas”.
Essas são algumas formas apresentadas como exemplos pelas quais uma
afirmação não funciona sem que ela seja falsa ou que seja completamente sem
sentido. Tem-se início a dissolução do performativo-constativo. Essas formas de
fracasso correspondem, para o autor, às três possibilidades de infelicidade de um
enunciado performativo. Nesse sentido, ele trabalha com os seguintes enunciados
performativos: “eu te lego meu relógio, mas (ou e) eu não tenho relógio” e “eu
prometo estar aí (ou e) não tenho nenhuma intenção de estar aí”. Na primeira
hipótese, a existência do relógio é pressuposta. Há referência à existência do
relógio aqui, da mesma forma que há a referência à existência dos filhos de João,
28
no
enunciado
constativo.
Tomando
os
termos
emprestados,
o
termo
“pressuposição”, vindo dos enunciados constativos, pode ser aplicado aqui, da
mesma forma que o termo “nulo”, das infelicidades do performativo, pode ser
aplicado ao caso de João. Na hipótese de João, a afirmação é nula por ausência de
referência. Portanto esse é um caso em que algo que aflige as afirmações é
idêntico a uma infelicidade do enunciado performativo.
A segunda hipótese pode ser comparada à afirmação em relação ao gato.
Prometer estar naquele lugar implica na intenção de estar lá, da mesma forma que
afirmar que o gato está sobre o capacho implica em acreditar que ele está lá. A
afirmação é destinada aos que creem naquilo que dizem no mesmo sentido a
promessa é destinada aos que possuem a intenção de fazer aquilo que foi
prometido. Caso não se acredite ou não se tenha essa intenção de acordo com os
conteúdos dos enunciados, fica configurada a falta de sinceridade e o abuso de
procedimento. Dessa forma, Austin percebe que os enunciados constativos, ou
declarativos,
estão
sujeitos
às
mesmas
infelicidades
dos
enunciados
performativos. Fazendo uso do mesmo raciocínio fornecido pela lista de
infelicidades performativas, pode-se perguntar se não há diversas infelicidades
além das mencionadas.
Um exemplo disso é a hipótese em que um ato performativo é nulo porque
quem o formula não tem estado ou posição para poder realizar o ato que pretende
fazer. Se alguém diz quantas vezes quiser “eu te ordeno”, mas não possui
nenhuma autoridade sobre o outro, o enunciado é nulo, e o ato é somente
pretendido. A impressão original é de que se trata de um enunciado constativo.
Porém, é algo bastante comum descobrir que não se pode afirmar nada sobre
alguma coisa qualquer pela ausência de posição em poder fazer tal afirmação. E
isso pode acontecer por mais de um motivo. Nesse sentido, pode-se apontar o
seguinte exemplo: “não posso afirmar neste momento quantas pessoas há na sala
vizinha, não fui ver, não me informei”. E se ainda assim, sem ter ido conferir,
alguém afirmar que há cinquenta pessoas na sala vizinha, Austin observou que o
interlocutor talvez concordasse, talvez não concordasse, acrescentando “sem ter o
menor direito de fazer isso”. Esse é o caso em que a afirmação sobre a quantidade
de gente na sala vizinha está no mesmo nível da ordem dada, sem ter o direito de
dar a tal ordem.
29
Portanto, Austin compreendeu que não existia qualquer critério verbal para
que fosse realizada a distinção entre enunciado constativo e enunciado
performativo. Além disso, o enunciado constativo se encontra sujeito às mesmas
infelicidades dos enunciados performativos. Essa distinção passa a se dissolver.
Seria o caso, então, de afirmar ser um ato da mesma ordem de “se casar”, “se
desculpar”, “apostar”, entre outros. O autor entendeu que a fórmula “afirmo que”
era bastante parecida com a fórmula “te previno que”, fórmula que segundo ele,
tornaria explícita o ato de fala realizado. Não há possibilidade de se emitir um
enunciado, qualquer que seja ele, sem que se realize um ato de fala. Sendo assim,
ficava constatada a necessidade de uma teoria mais geral dos atos de fala em que a
antítese original constativo-performativo provavelmente não iria sobreviver.
Outro problema seria o vício de se supor que o verdadeiro ou falso era
próprio somente das afirmações, o que justificaria colocá-las em um pedestal,
inatingível por qualquer possibilidade de crítica. Obviamente, se fica estabelecido
que o autor de um enunciado performativo efetuou seu ato felizmente e de forma
sincera, ou seja, não foi um ato infeliz, isso não significa que ele esteja acima das
possibilidades de exercício da crítica. Ela sempre é possível em alguma dimensão.
O exemplo do autor é a seguinte declaração: “aconselho que você faça assim”,
admitindo-se que todas as circunstâncias sejam adequadas, que as condições para
o sucesso sejam devidamente preenchidas, realizando tal declaração, não é que eu
afirme verdadeiramente ou falsamente, que aconselho a você. Dizendo essa frase,
aconselho a você efetivamente fazer assim. Portanto, isso é um enunciado
performativo.
Porém, coloca-se outra questão: esse conselho foi bom ou mau? Ainda que
eu tenha falado com sinceridade e que tenha achado que isso seria interessante
para você, eu tive razão? Justifiquei ter pensado dessa forma nessas
circunstâncias? Outros enunciados que a priori são incontestavelmente
performativos possibilitam esse tipo de crítica. Ainda que o veredito tenha sido
conseguido de forma devida e de boa fé, tendo o acusado sido declarado culpado,
é possível questionar se o veredicto foi justo. Suponha-se que alguém tenha o
direito de censurar outra pessoa e que dessa forma o fez, mas que não tenha feito
por maldade, pode-se, ainda assim, perguntar se a reprimenda foi merecida, de
acordo com a confrontação dos fatos, compreendidas as circunstâncias reais do
episódio.
30
Austin se perguntou se as questões acerca do bom e do justo, de equitativo,
de mérito seriam de fato questões tão diferentes do verdadeiro e do falso. Essas
não seriam considerações simples, o estilo ou o enunciado corresponde aos fatos
ou não corresponde. Ainda que haja uma classe bastante definida de possibilidade
de afirmações, que pode contribuir para uma restrição de hipóteses, essa será
sempre uma classe bastante ampla, de acordo com o autor. Como exemplo dessas
classes ele cita as seguintes afirmações: a França é hexagonal e Oxford fica a 100
km de Londres. Para qualquer uma dessas duas questões, pode-se dar uma
resposta “verdadeiro ou falso”. Porém, uma resposta restrita a “sim” ou “não”, de
forma definitiva, só ocorre em casos muito favoráveis. Ao se colocar a questão, é
compreensível que o enunciado seja confrontado com os fatos de uma maneira ou
de outra. A questão “a França é hexagonal” é confrontada com o mapa da França.
Isso é verdadeiro ou é falso? A princípio, portanto, a questão é bastante simples.
Porém, a simplicidade é aparente. O enunciado pode corresponder para as pessoas
em geral com o formato da França, mas não para o caso dos geógrafos. Da mesma
forma, Oxford fica a 100 km de Londres se não se pretende certo grau de precisão
nessa afirmação.
Com o que se chama de verdadeiro, o que se tem não é simplesmente uma
qualidade ou uma relação, mas sim uma dimensão de crítica, preferencialmente.
Há desta forma uma diversidade grande de coisas a serem sempre consideradas,
apesar da suposta única dimensão dos fatos. A situação de quem falou passa a ser
importante, a finalidade com a qual essa pessoa falou, o auditório que ela tinha
disponível, as questões referentes à precisão. Tudo isso, entre outras coisas, pode
e deve ser considerado. Se somente se ficasse preso ou atrelado a afirmações, nas
palavras do autor, “de uma simplicidade idiota ou ideal”, não seria possível
diferenciar o verdadeiro daquilo que é justo, equitativo ou merecido, preciso,
exagerado, entre outros.
Por esse motivo, também a partir da perspectiva do verdadeiro e do falso é
preciso pensar sobre a suposta antítese entre enunciado performativo e enunciado
constativo ou declarativo, ou dicotomia performativo-constativo. O autor
identifica a urgência de uma teoria inovadora, geral e mais completa sobre o que
se faz ao se dizer alguma coisa, em todos os sentidos que essa frase pode possuir,
por mais ambígua que ela seja, e do que ele compreende como ato de fala, não
somente em relação a aspectos específicos ou pontuais, abstraindo todas as demais
31
considerações, mas na sua totalidade, de forma ampla, na criação de uma teoria
geral, para a adequada compreensão do tema.
A teoria proposta pelo autor promoveu a chamada virada linguística na
filosofia, ao conceber outra concepção da linguagem quando investigou o
fenômeno da performatividade15 ambientada nas discussões sobre linguagem da
escola de Oxford, entre 1940 e 1950, em oposição a Noam Chomsky, que
elaborou universais lingüísticos a partir de sustentação teórica na lógica e em uma
determinada gramática, que investia na explicação puramente racional do
fenômeno linguístico. O que Austin fez foi colocar força nos estudos sobre a
linguagem ordinária, a partir das dificuldades que ela impõe diante de
procedimentos filosóficos tradicionais. A partir das reflexões feitas pelo autor, na
verdade, percebia-se que tais dificuldades eram colocadas por filósofos e
linguistas, pois eram eles que criavam obstáculos para o entendimento da
linguagem ordinária. Por esse motivo, Ottoni entende que Austin preferiu se
dedicar à linguagem ordinária em vez de estudar uma linguagem ideal16.
Em regra, filósofos e linguistas entendiam que, a partir dos estudos
desenvolvidos sobre as dificuldades criadas pela linguagem ordinária, constatavase que uma palavra não expressava um conceito preciso e/ou uma frase não era
capaz de expressar um pensamento claro. Não havia, portanto, uma adequação
entre palavra e conceito e frase e pensamento. O sentido, o significado e a
referência criam impasses insolúveis para algumas teorias da linguagem e Austin
conseguiu tratar essa questão de forma original, desestruturando a linguística
descritiva, desenvolvendo os conceitos de performativo, ilocucionário e ato de
fala, sendo o performativo o lugar em que a inovação do pensamento de Austin
ocorre. Por isso, é chamado de demolidor da filosofia e da linguística tradicionais.
Essa ruptura aparece na discussão sobre o performativo-constativo, e do
verdadeiro e falso, já tratada anteriormente.
A partir de seus estudos sobre a linguagem ordinária, ele afirmou que não
havia qualquer fronteira entre filosofia e linguagem, que o campo se encontra
completamente livre para aqueles que desejarem se instalar. Daí se conclui que é
impossível conseguir refletir sobre a linguagem humana de forma somente
15
16
OTTONI, Paulo. Visão Performativa da Linguagem, p. 19.
OTTONI, Paulo. Visão Performativa da Linguagem, p. 22.
32
institucionalizada e compartimentada. Foi isso que possibilitou a visão
performativa da linguagem.
As discussões sobre performatividade estão relacionadas à certeza de se
saber algo. Austin elaborou sua argumentação no sentido de apontar a falácia
descritiva, uma vez que a linguagem está distante de ser mera descrição. Para o
autor, havia circunstâncias em que as ações não eram descritas e sim praticadas.
Nesse sentido, o performativo não pode ser entendido como um objeto da
linguagem, que pode ser investigado de forma empírica como outro objeto de
natureza física. Dessa forma, a dicotomia performativo-constativo foi rompida e a
performatividade passou a ser a analisada nos estudos elaborados pela linguagem.
Da mesma forma, a separação entre sujeito e objeto não se sustenta mais a partir
da performatividade, pois não há fronteira entre o “eu” e o “não eu”.
Uma das características fundamentais da ciência, que é a separação entre
sujeito e objeto, foi combatida por Austin porque comportamentos e regras de
determinado tipo para a conduta racional não expressam a própria realidade
humana. Da perspectiva performativa, há confusão entre o sujeito e o objeto a
partir da fala. Isso leva às dificuldades no exame do performativo. Será
necessariamente fracassado o tratamento do performativo como objeto de análise
linguística independente de uma concepção de sujeito, já que, conforme dito
anteriormente, é necessário considerar diversos fatores, como as condições da
fala, a situação de quem falou, o auditório, entre outros.
A tensão no tema atingiu seu grau máximo justamente quando Austin
passa a empregar o performativo para denominar toda a fala, abandonando a
dicotomia performativo-constativo. Foi justamente nesse momento que se perdeu
a distinção entre sujeito e objeto e a possibilidade de acordo com os seus
antecessores e opositores que investigam a linguagem por certas marcas
linguísticas. Essa diferença leva seus opositores a investigar de forma estanque os
atos de fala, ilocucionário e performativo, como se fossem teorias independentes.
Porém, em Austin esses são conceitos relacionados em sua teoria. Há um
desdobramento desses conceitos em sua teoria que leva à visão performativa da
linguagem.
Austin tem um procedimento de filosofia que é distinto do procedimento
dos linguistas descritivistas. Ele cria o ato de fala e o subdivide em três atos
simultâneos: ato locucionário, ato ilocucionário e o ato perlocucionário. O
33
primeiro produz os sons que pertencem a um vocabulário e a articulação entre
sintaxe e semântica. Esse é o espaço em que ocorre a significação em sua
concepção tradicional. É a realização de um ato de dizer alguma coisa. O segundo
é o ato de realização de uma ação através de um enunciado. Aqui o exemplo a ser
citado é o ato de prometer. O ato ilocucionário surge a partir do que sobra após
Austin arruinar a distinção entre performativo e constativo. É a realização de um
ato ao dizer algo. O último, o perlocucionário, é o que produz o efeito no
interlocutor.
Com essas três categorias, Austin conseguiu realizar a diferenciação entre
sentido e força, pois o ato locucionário é a produção do sentido, que se opõe à
força do ato ilocucionário. A ação também é um termo importante na teoria de
Austin, pois a forma como ele a compreendeu também fez com que seu
pensamento seja considerado original. A ação possui um significado bastante
próprio em sua teoria, uma vez que ela é um dos elementos constitutivos da
performatividade. A realização da fala, que é ação, já configura o próprio
performativo, simplesmente porque coisas já são feitas na medida em se fala. Os
atos ilocucionários viabilizam a existência de enunciados performativos com a
impossibilidade de se identificar alguma forma gramatical para eles. Eles são
“regras convencionais e condições para que tal enunciado em tal situação seja ou
não performativo, realize ou não uma ação”17. Por isso, o autor conseguiu concluir
que uma afirmação pode ser um performativo. A partir da teoria de Austin, as
afirmações não somente dizem sobre o mundo, mas também fazem algo no
mundo. A ação não é puramente descrita e sim praticada. Essa perspectiva rompeu
com o performativo-constativo, e verdade ou falsidade deixaram de possuir uma
função central ou um papel prioritário nessa espécie de abordagem da linguagem.
A visão performativa impossibilita a separação entre sujeito e objeto, a fala. Não
há possibilidade de se realizar uma análise do objeto fala isolado do sujeito que a
profere.
O “eu” dos exemplos de Austin é um sujeito que pode empiricamente
casar ou batizar um navio pela realização de um ato de fala, desde que ele seja um
sujeito adequado para isso. O “eu” se funde na linguagem, fazendo parte dela.
Para Austin todo enunciado tem um “eu”, um sujeito, aquele que produz a fala,
17
Paulo Ottoni, Visão Performativa da Linguagem, p. 37.
34
ainda que implícito. O significado da frase irá depender do sujeito e do momento
no qual ela é proferida. O sujeito “eu” não consegue ter o domínio da significação
sozinho. O significado é constituído no momento de sua enunciação, pela
interlocução. Para que haja um controle do significado, Austin faz uso da
apreensão. Portanto, não pode haver confusão entre o “eu-sujeito” e o sujeito
falante empírico, pois é somente pela apreensão que se constitui o sujeito. Fica
difícil falar em intenção do sujeito falante, pois essa intenção não pode ser
unilateral.
Pode-se concluir sobre o tema que em qualquer situação de fala não há
como o sujeito falante controlar sua intenção, pois ela também se concretiza pela
apreensão do interlocutor. A apreensão é necessária ao próprio ato de fala e é ela a
responsável pela produção do ato, tanto que ocorrem situações inesperadas pelo
sujeito falante. É pela apreensão que o sujeito falante fica descentralizado. Em
uma abordagem menos radical, a apreensão é o lugar em que se relacionam o “eu”
e o “tu”, ou o lugar que se assegura a fala. Em uma abordagem chamada forte, a
apreensão aponta para a desconstrução. Não existe uma simetria perfeita entre
sentido e referência, nem de enunciado e enunciação. O pensamento de Austin é
próprio da assimetria e essa assimetria rompe com a intenção, não consegue dar
conta das intenções do sujeito falante e de seu interlocutor. A assimetria é o
ambiente em que ocorrem as situações inesperadas, inconscientes. Não há lógica
para identificar o sujeito. Ele somente pode ser identificado por sua ação, sua fala,
sua performatividade.
No momento em que a distinção entre performativo-constativo é desfeita,
o rompimento acontece, pois a fala produz um ato que tem uma força e produz um
efeito. A perspectiva performativa surge dessa ruptura. O ato é percebido e por
isso produz ação, ação do corpo. O ato é compartilhado e, também por isso, o
corpo é compartilhado. Portanto, em Austin, não existe a possibilidade de pensar a
linguagem sem o corpo, simplesmente não há linguagem se corpo. Austin
conseguiu discutir ao mesmo tempo a linguagem e o humano e demonstrou como
linguagem e corpo se fundem. Por fim, é importante ressaltar que Austin não pode
ser considerado um desconstrutivista. Há, de fato, um momento nesse sentido em
sua obra. Porém, de acordo com Paulo Ottoni, ele possui um projeto sobre a
linguagem, já que seus estudos atingem diversas áreas dela em vez de somente
ficar restrito às consequências no mundo filosófico. Ele rompe com a cultura
35
conservadora acerca da linguagem, mas também traz com ele uma proposta para
trabalhar essa mesma linguagem.
1.2
Os atos performativos construindo corpos: impactos da virada
lingüística na teoria feminista proposta por Judith Butler
Apresentadas as pretensões de Austin ao demonstrar a chamada falácia
descritiva e fazer ruir a dicotomia performativo/constativo com o advento dos atos
performativos como ponto central de sua proposta, a proposta passa a ser analisar
o que a feminista Judith Butler compreende como ato performativo, especialmente
no que diz respeito às chamadas performances de gênero. Esse é o momento em
que será demonstrado como a linguagem invade e molda os corpos e como os
corpos devolvem esse movimento e também se comunicam, produzindo
linguagem. Notar-se-á a importância do contexto de produção dos corpos para
Butler, consideração essa tirada da filosofia da linguagem produzida por Austin.
O argumento central da teoria feminista produzida por Butler é
desenvolvido a partir dos atos performativos, uma vez que eles, a princípio,
possuem a função de naturalizar o processo de constituição das identidades de
gênero. Nesses termos, tornar-se um gênero é compreendido por Butler como um
procedimento longo e trabalhoso de se tornar naturalizado a partir de
diferenciações produzidas nos prazeres corporais18. Tal diferenciação se reflete até
mesmo na divisão do trabalho e ao se compreender esse mecanismo é possível
entender, posteriormente, as diferenças entre as expectativas sociais em relação ao
comprometimento de homens e mulheres em seus núcleos familiares, entre outras
questões que serão abordadas na análise dos discursos da Assembleia
Constituinte.
A diferença entre as categorias sexo e gênero não se sustentam na obra da
autora. Butler afirmou que a própria concepção de gênero como algo cultural, a
princípio libertadora para as teorias feministas, na verdade acabou sendo utilizada
para justificar uma concepção natural de sexo. Se reconhecer o gênero como algo
instituído pela cultura a partir das diferenças sexuais poderia significar a
possibilidade de se romper com seus estereótipos, a afirmação do dado natural do
18
BUTLER. Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. P. 89.
36
sexo acabava atrapalhando essa ruptura, pois reiterava o fundamento anterior –
natural - à normatividade imposta pelo poder19.
Ambas as categorias passam a ser tratadas pela autora como construções
cujo objetivo seria inviabilizar possíveis revisões dos modelos de comportamento
em relação à sexualidade – e todas as divisões sociais que decorrem dela –
instituídos pelos aparatos do poder, inclusive com a apropriação do Direito. Com
o intuito de evitar incidir novamente no processo de naturalização instaurado pelo
binômio sexo/gênero, Butler recorre à concepção de sexualidade trazida por
Foucault no primeiro volume do livro História da Sexualidade, ressaltando que o
autor apresentou o sexo como um efeito e não como a origem do processo de
significação dos corpos. Por esse motivo, Foucault teria abandonado o termo sexo
em prol de sexualidade, para afirmá-la como parte de uma estratégia de perpetuar
as relações de poder20. Na medida em que o sexo é essencializado, ele se torna
imune não somente às relações de poder, e a possibilidade de sua revisão, como
também à sua historicidade. Nesse sentido, Foucault demonstrou ser relevante a
reflexão sobre as produções dos discursos referentes ao sexo produzidos nas
relações de poder, estas diversas e móveis, conforme as considerações tecidas pelo
autor sobre a “regra de imanência”:
Não considerar que existe um certo domínio da sexualidade que pertence, de
direito, a um conhecimento científico, desinteressado e livre, mas sobre o qual
exigências do poder – econômicas ou ideológicas – fizeram pesar mecanismos de
proibição. Se a sexualidade se constituiu como domínio a conhecer, foi a partir de
relações de poder que a instituíram como objeto possível; e em troca, se o poder
pôde tomá-la como alvo, foi porque se tornou possível investir sobre ela através
de técnicas de saber e de procedimentos discursivos. Entre técnicas de saber e
estratégias de poder, nenhuma exterioridade; mesmo que cada uma tenha seu
papel específico e que se articulem entre si a partir de suas diferenças21
O entendimento adequado sobre os atos performativos em Butler passa por
sua discussão sobre como as identidades especialmente de gênero se constituem e
se perpetuam, por isso, deve-se retomar a discussão sobre o binômio sexo/gênero
19
É interessante observar que o sentido de normatividade do sexo aqui apresentado não é
puramente a normatividade cunhada pelo Soberano ou pela lei que interdita, proíbe e nega. O
poder atrelado a somente essas imagens inviabiliza uma análise dele a partir de sua concretude e
de seus procedimentos e mascara a sua complexidade.
20
BUTLER. Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. P. 121.
21
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. P. 93-94.
37
instaurada quando a autora realizou o exame da divisão instituída por Beauvoir22
com a conhecida declaração de que ninguém nasceria mulher e sim se tornaria
uma. Várias são as interrogações surgidas a partir dessa frase, que durante muito
tempo representou uma subversão feminista ao marcar o gênero como algo
cultural: quem são essas pessoas que se tornam mulher? Existe alguém que se
torne seu gênero em um momento da vida? Como alguém se tornaria um gênero?
Qual é o aparato de construção dos gêneros e como ele mecanismo atingiria o
cenário cultural para transformar um ser humano em um ser generificado23? E
existe algum ser humano que não foi desde sempre generificado?
A simples pergunta realizada a uma grávida “é menino ou menina?”, ao
ser respondida, já demonstra que a marca de gênero é constituinte do ser humano,
simplesmente porque esse é o processo pelo qual uma criança passa a ser
humanizada, conforme observou Butler24. É interessante notar que essa é em regra
a primeira pergunta feita sobre a criança, ou pelo menos a considerada a mais
relevante e é definidora do ambiente que será construído ao seu redor,
estabelecendo cor de roupa a ser comprada, decoração do espaço físico,
brinquedos que serão apresentados ao longo da infância, comportamentos
esperados, que serão ensinados a serem reproduzidos, como estilo de sentar-se em
público, o que fazer com as mãos ou o gestual como um todo, o tom de voz e as
palavras a serem utilizadas. Nenhuma resposta a qualquer outra pergunta ou
afirmação como “com quem se parece?”, “os olhos são da mãe ou lembram o da
avó” e “o nariz é definitivamente do pai” vai ser tão determinante em sua vida.
Nesse sentido, é possível perceber que o gênero está presente o tempo
inteiro, demarcando o processo de humanização do corpo. Se ele está presente
desde o início, conforme demonstrado, como seria possível pensar em alguém que
se torna um gênero, o seu gênero, como se a cultura incidisse sobre o corpo
posteriormente? O esforço de Beauvoir foi bem sucedido na medida em que
22
Esse binômio sexo/gênero foi um marco na obra de Beauvoir, apresentado ao longo da obra
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 1. Fatos e mitos. São Paulo: Difusão europeia do livro,
1970. 4ª Ed. Durante longo período, a afirmação do caráter cultural do gênero em oposição ao fato
natural do sexo foi percebida como revolucionária. Reinterpretações dessa dicotomia, como a
promovida por Butler, pretendem demonstrar que o que existe é o gênero. O sexo também seria
invenção cultural, com o objetivo de fundamentar as diferenças com o argumento da natureza.
23
O termo generificado nesse sentido é um neologismo utilizado para se fazer referência ao
processo de se tornar um gênero, assumindo as características estereotipadas de gênero, que vem
do termo gendered, como em gendered subject, ou seja, sujeito que passou pelo processo de
generificação, instituição de gênero, como todos nós.
24
BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. P. 142.
38
tornou claro o fato de ninguém nascer com um gênero, sendo este fruto de
construção social, com todas as atribuições e papeis distribuídos entre homens e
mulheres. Pertencer a um gênero, na verdade, significa assumir uma posição ou
postura cultural.
Apesar desse avanço, o problema de Beauvoir apontado por Butler diz
respeito à afirmação da existência do sexo25. Se alguém nasce com um sexo, esse
ser é sexualizado e ter um sexo faz parte da condição humana, é uma atributo
desta, não havendo ser humano sem um sexo. Dessa forma, o sexo pode ser
tratado como algo fático e imutável, ou seja, como aquilo que é inevitável. A
separação instaurada por Beauvoir entre sexo e gênero não apresentou problemas
para ela, ao contrário, a princípio, ao diferenciar sexo de gênero, passou-se a ser
permitido entender que ter um determinado sexo não significa se transformar em
um determinado gênero.
Poder-se-ia concluir a partir dessa constatação que a mulher não precisaria
decorrer do que foi construído pela cultura num corpo feminino, bem como o
homem não precisaria ser representado por um corpo masculino. Aparentemente,
os corpos sexuados passaram a ser lugares de possíveis construções dos mais
variados gêneros, sendo que estes não estariam atrelados somente ao par
feminino/masculino. O sexo não seria capaz de limitar o gênero, este seria uma
interpretação cultural do corpo sexuado que não precisaria ficar restrito a somente
duas formas, porém, dificilmente se pensaria em não se construir uma mulher em
um corpo de um sexo e um homem em um corpo de outro sexo, o que demonstra a
função determinante que a estrutura da divisão sexual desempenha no processo de
tornar-se um gênero.
A descoberta de que o gênero não estaria limitado ao sexo trouxe a
possibilidade de se interpretá-lo como um processo ou uma atividade, uma
repetição interminável, deixando de ser algo substancial ou dotado de conteúdo.
Sendo assim, seria viável o gênero proliferar para além do dualismo instaurado
pela constatação do feto determinado, ou seja, do sexo. Apesar da suposta
subversão da teoria que separou sexo de gênero, identificado o primeiro como um
dado factual e o segundo como fruto da cultura e, a partir daí, uma possibilidade
aberta, o problema foi que o sexo acabou passando pelo processo de afirmação da
25
BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. P. 142.
39
natureza, de sua sobreposição na medida em que dela não há possibilidade de fuga
ou de reconstrução, devendo ser simplesmente aceita e considerada como
inexorável.
O problema foi colocado na medida em que houve o questionamento de
teóricas feministas sobre o processo de naturalização do sexo26. Houve o
reconhecimento do uso político do suposto dado natural ou do que significaria ser
o sexo do âmbito da natureza. Atrelar sexo à natureza serviu para justificar o
modelo de sexualidade a partir da lógica reprodutiva. Somente há sentido em
dividir os seres humanos em machos e fêmeas a partir da perspectiva reprodutiva,
que é somente uma das coisas que decorrem da sexualidade. Portanto, essa divisão
somente serviu para instaurar o modelo de relação heterossexual como sendo
aquele natural.
Sendo assim, essa interpretação possibilita concluir que, na verdade, não
há uma diferença entre sexo e gênero, pois a primeira categoria já seria
generificada e política, que certamente foi naturalizada, mas não é natural. Sem
dúvida, o argumento da função reprodutiva é bastante forte, pelo menos a
princípio, para que se reforce o suposto dado natural do sexo. Porém, há nesse
raciocínio uma inversão, pois se coloca a procriação antes da sexualidade, quando,
na verdade, “existe procriação porque existe sexualidade, não sexualidade para
26
A referência aqui é feita por Butler ao apresentar as críticas de Monique Wittig à separação
instaurada por Beauvoir entre sexo e gênero e que perdurou durante muito tempo como a solução
do feminismo para demonstrar que as questões de gênero são de ordem cultural e não devem ser
interpretadas como autorização por parte da natureza para a dominação de gênero. Wittig, uma das
autoras do feminismo LGBT, vai além em sua teoria ao dizer que uma lésbica não seria uma
mulher, na medida em que esta última somente existiria em função de estabilizar e consolidar um
binário e sempre em relação a uma oposição ao homem na relação heterossexual, enquanto a
lésbica conseguiria transcender o binário, sendo uma categoria além do sexo. O sexo, para ela,
seria somente feminino, pois ser sexuado é somente ser particular e relativo e o masculino é o
universal. No presente trabalho somente as considerações sobre a revisão que Wittig faz de
Beauvoir em relação à inadequação da ruptura entre sexo e gênero serão aproveitadas, pois não
seria possível pensar a categoria da lésbica à parte, como aquela que transcende o modelo
heterossexual, ao contrário, ela se instaura ou se constitui também a partir da heterossexualidade,
ainda que seja para realizar oposição a ela, não estando em um plano superior ou ultrapassando os
limites da heterossexualidade. A posição de Wittig ao afirmar a condição da lésbica como peculiar
e diferente da condição da mulher é tão forte que ela entendeu somente haver uma saída para as
feministas: tornar-se lésbicas. Nesse sentido, é possível dizer que a autora impôs outro modelo
legitimado de relação como se fosse o autenticamente subversivo, o da homossexualidade. Isso
implicaria em repetir exatamente o mecanismo que instaura a heterossexualidade como a
sexualidade adequada. BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity.
P. 143-144.
40
que haja procriação”27. A procriação pode ser uma consequência da sexualidade,
mas ela é circunstancial, pois nem em todas as relações heterossexuais ela
acontece, e muito menos ela pode ser considerada como causa da sexualidade.
A diferenciação entre sexo e gênero, colocando o primeiro na esfera da
natureza e o segundo como produção cultural, contribuiu para uma afirmação de
que se os estereótipos de gênero haviam sido instaurados, eles teriam algum
sentido na medida em que se apoiavam em dados impositivos da natureza. Sendo
assim, a possibilidade de revisão de papéis sociais que se fundavam sobre essa
divisão dos sexos até poderia ocorrer, se fundadas no ponto cultural do gênero,
mas ficaria sempre restrita à inevitabilidade do sexo. A suposta revolução ocorrida
pela constatação de Beauvoir estaria, portanto, fadada ao fracasso.
A naturalização do sexo ocorre por um aparato linguístico que instaura os
estereótipos de gênero, reconhecidamente cultural, mas que possui uma
legitimidade afirmada no “fato” do sexo. O sexo promove uma unidade artificial
aos corpos, que na verdade constitui uma fragmentação deles ou os divide em
compartimentos na medida em que estabelece categorias considerando algumas
partes específicas dos corpos. Isso pode parecer a princípio contraditório, mas a
unidade dos corpos reunidos a partir de um alinhamento com um ou outro sexo é
utilizada com o intuito de dividir, segregar, restringir, interditar e dominar,
fazendo uso dos atos de fala para estabilizar essas divisões e dar o caráter natural a
elas. Em outros termos, a divisão dos sexos implica em uma categorização a partir
de uma determinada parte ou função do corpo, a reprodução, desprezando todos
os aspectos comuns e diferentes entre os inúmeros corpos. A partir disso,
consegue-se perceber a arbitrariedade que a divisão sexual pode gerar. Isso não
implica em ignorar as diferenças entre um corpo macho e um corpo fêmea, mas
traz a possibilidade de enxergar semelhanças entre corpo macho e fêmea, bem
como diferenças entre dois corpos machos e dois corpos fêmeas, em termos bem
simplificados. O sexo foi um mecanismo pelo qual se justificou a atribuição de
tarefas sociais diferentes entre homens e mulheres, a partir do argumento da
natureza, ou, em outras palavras, da fatalidade.
27
“There is procreation because there is sexuality, not sexuality in order that there be
procreation(...)”. MATHERON, Alexandre. Spinoza and Sexuality. In GATENS, Moira. Feminist
interpretations of Benedict Spinoza, p. 93.
41
A questão da linguagem como não sendo algo meramente descritivo já foi
trabalhada, agora cabe retomar as considerações feitas sobre a ruptura do binômio
performativo/constativo promovida por Austin para verificar como ela pode
incidir na estabilização dos gêneros a partir da naturalização do sexo. A
linguagem pode criar a realidade social e não simplesmente descrevê-la por
aqueles que falam, por isso, funda também realidades sobre os corpos,
legitimando formas de comportamentos. Se o objeto aqui é gênero, ela vai instituir
os comportamentos adequados segundo as normas sociais que dizem respeito ao
tema. Existem estruturas sociais históricas e contingentes que perpetuam a
heterossexualidade e a assimetria de gênero, legitimando, inclusive, para a fala
uns e não outros.
Este é um ponto central em que se cruzam diversos problemas. O primeiro
deles diz respeito a uma pretensão descritiva da linguagem – de quem fala ou se
utiliza dela – que na verdade não existe, conforme demonstrou Austin. Dizer que
mulheres são naturalmente de um jeito e homens são naturalmente de outro ou
que as diferenças de sexo decorrem daquilo que é dado pela natureza não significa
realizar uma descrição daquilo que é e Austin já chamou esse movimento de
falácia descritiva ao afirmar que quando dizemos algo estamos fazendo algo,
sendo significativamente menores as quantidades de descrições que são feitas ao
se dizer algo do que realmente se acreditava que fosse.
O segundo aspecto problemático diz respeito a quem fala, quem é aquele
com legitimidade para falar e que será ouvido e como será a interpretação desse
ato de fala, como ele será recebido por seu auditório, ou o que qualifica alguém
para o discurso, o que garante o status de seriedade desse discurso. Como
exemplo, pode-se adiantar a forma como os representantes do Movimento PróVida atuaram nas diferentes Subcomissões da Assembleia Constituinte, em todos
os momentos que enfatizavam serem médicos e trazerem argumentos científicos,
em oposição aos advogados ou sociólogos que falaram em sentido contrário, o
que será demonstrado no terceiro capítulo. O terceiro diz respeito ao fato de o
argumento descritivo servir para fundamentar ou pelo menos contribuir para
justificar diferenças instauradas que nada possuem de natural, como sendo
decorrentes da natureza, como no caso da diferença entre os sexos serem naturais
e a linguagem somente se restringir a descrevê-las, negando sua possibilidade
constitutiva do próprio real. O primeiro e o terceiro argumentos são bastante
42
parecidos, alterando somente a perspectiva abordada, no caso do primeiro
rebatendo a pretensão descritiva e no caso do terceiro esclarecendo a função
constitutiva da linguagem.
A linguagem, portanto, tem uma função central no processo de
estruturação dos modelos de gênero. Ela consiste em uma repetição de atos ao
longo do tempo e que produz efeitos reais, ou a própria realidade e que são
compreendidos de forma inadequada como sendo fatos, quando homens e
mulheres são categorias políticas que estão muito além do corpo macho e do
corpo fêmea e das funções reprodutivas e não naturais. Nesse sentido, expõe
Butler a partir de Wittig:
Considerado coletivamente, a prática repetida de se nomear a diferença sexual
criou a aparência de divisão natural. O nomear o sexo é um ato de dominação e
compulsão, uma performance institucionalizada que cria e legisla a realidade
social exigindo a construção discursiva/perceptual dos corpos de acordo com o
princípios da diferença sexual28.
O fato de se tentar apresentar o sexo como algo natural a partir da lógica
da reprodução, compreendida inadequadamente como causa da sexualidade
contribui para que a heterossexualidade se fundamente como norma, ou como o
modelo de relacionamento considerado natural. Dessa forma, é instituída a lógica
de uma heterossexualidade que seria compulsória nos seres humanos e que
operaria de forma muito violenta sobre os corpos, constituindo as formações das
identidades de gênero. Tal fato fez com que se passasse a outro extremo nas
teorias feministas, especialmente aquelas teóricas ligadas ao feminismo LGBT29:
ou haveria o alinhamento com um elevado grau de conformidade com o poder da
heterossexualidade, ou se operaria uma revolução radical nesse campo, em que a
única saída seria a afirmação da homossexualidade. Nesses termos, não seria
possível a heterossexualidade como uma forma de preferência sexual, uma
28
Collectively considered, the repeated practice of naming sexual difference has created this
appearence of natural division. The “naming” of sex is na act of domination and compulsion, na
institutionalized performative that both creates and legislates social reality by requiring the
discursive/perceptual construction of bodies in accord with principles of sexual differences.
BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity. P. 147.
29
A referência qui novamente é a Monique Wittig, especialmente em sua teoria apresentada na
obra The Lesbian Body.
43
decisão volitiva30, ela operaria somente a partir da imposição de estruturas de
poder.
Apesar de uma imposição predominantemente heterossexual existir como
modelo de relacionamento, essa oposição radical entre heterossexualidade e
homossexualidade não procede, em razão de alguns motivos. O primeiro diz
respeito a estruturas nas duas formas de relacionamento que podem ser
semelhantes, isso significa que um relacionamento homossexual pode ser
permeado também por estruturas de poder e comportamentos violentos que
aparecem em relações heterossexuais, como no caso em que um dos dois
companheiros(as) comete alguma forma de violência contra o parceiro(a). Dessa
forma, o simples fato de ser uma relação homossexual não implica em uma forma
de relação subversiva, na adoção de ouro modelo de relação. O segundo motivo
diz respeito ao próprio problema de se instaurar outro modelo de relação, já que
um dos pontos centrais de críticas às correntes LGBT diz respeito justamente à
substituição de um modelo por outro, mantendo a sexualidade compulsória. O
terceiro motivo é o fato de não ser possível ignorar que existem outras formas de
discursos de poder que contribuem tanto para construir a heterossexualidade
quanto para a homossexualidade, não sendo possível reduzir todo esse aparato à
própria heterossexualidade.
Gays
e
lésbicas
não
podem
ser
considerados
automaticamente
emancipados ou além da normatividade do sexo, apesar de contribuírem para
construir outros significados para homem e mulher, bem como para romperem
com o suposto monopólio do feminino pela mulher e do masculino pelo homem.
Nesses termos, quando um gay se utiliza do termo “ela” para fazer referência a si
mesmo, ele está contribuindo para desnaturalizar o próprio sexo, da mesma forma
que uma lésbica ao assumir uma identificação com a masculinidade. Os dois
exemplos contribuem para desestabilizar as relações entre corpo fêmea e corpo
30
O uso do termo volitivo aqui pode não ser o mais adequado, pois não se faz referência a uma
tomada de decisão, um ato racional em que alguém avalia duas situações, no caso as relações
homossexuais e heterossexuais, e elege uma de sua preferência. Porém, não se pode negar que há
aqueles que se sentem bem e gostam de relações heterossexuais, não se considerando vítimas de
um processo violento de desenvolvimento da sexualidade. Da mesma forma, a homossexualidade
decorre de uma afinidade com outro tipo de relação diferente da heterossexual e, muito
provavelmente, ninguém nunca ponderou racionalmente sobre uma opção ou outra para se
posicionar pessoalmente sobre qual espécie de relação deveria adotar em sua vida, ao contrário,
esse processo ocorre para todos os lados a partir de inclinações ou desejos que são despertados,
seja a partir dos poderes que instauram a heterossexualidade, seja a partir de sua negação, o que,
novamente, não significa que os heterossexuais se sintam violentados.
44
macho com o sexo/gênero. Isso não significa que há uma apropriação do feminino
por parte do gay ou do masculino por parte da lésbica, pois como ressalta Butler,
esse tipo de presunção permitira concluir que o feminino, em última instância,
seria monopólio das mulheres e o masculino seria a área cujo monopólio seria dos
homens31, e na verdade o esforço é demonstrar que essas divisões não possuem
outro sentido além daqueles instaurados pela cultura.
Além disso, não se pode esquecer que outros grupos podem estabelecer
alterações e ampliações nesses termos. Correntes dentro do próprio feminismo
que conseguiram fazer com que suas causas ganhassem notoriedade e fossem
abarcadas também dentro dos movimentos feministas podem ser citadas. É o caso
de mulheres negras, que trazem a peculiaridade da incidência da questão de raça,
agravando ainda mais a questão de gênero, bem como as reivindicações de
mulheres operárias que demonstraram a dupla dominação de gênero e classe, sem
possibilidade, a princípio, de serem acolhidas no feminismo chamado de burguês
e entre os seus iguais de classe, em virtude da estratégia de deixar os problemas de
gênero em segundo plano, tentando salvar seus lares de outra revolução. Nesse
sentido, essas vertentes feministas conseguiram ao menos ampliar o conceito de
mulher e chamar a atenção para os estereótipos de gênero relacionados não
somente com a sexualidade propriamente dita, mas também com as funções
sociais a serem desempenhadas e as expectativas sociais de comportamento desses
grupos e daquelas identificadas e percebidas como mulheres dentro desses grupos.
É o reflexo da discussão sobre sexo e sua naturalização para além do campo da
sexualidade.
No que tange as relações heterossexuais, elas não necessariamente
reproduzem os padrões hierárquicos de gênero. Não há dúvida de que um
relacionamento heterossexual atualmente é diferente de um relacionamento
heterossexual do início do século XX. Há uma maior possibilidade de rearranjos
de funções dentro dos próprios casais, que redistribuem papeis antes somente
desempenhados por uma das partes com fundamento no papel muito preciso que
cada um tinha no relacionamento. Isso não significa, entretanto, que todas as
relações sejam assim. No mínimo, quando o casal sente essa necessidade de
31
BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 156.
45
compartilhar funções falta um respaldo legal que possibilite materialmente tal
redistribuição32.
Ultrapassadas as referências necessárias a não exclusividade da
possibilidade de ressignificação de termos por parte de gays e lésbicas, cabe
ressaltar que a concepção de corpo natural sendo trabalhado como algo
construído, por parte especialmente da teoria feminista LGBT foi fundamental
para que o tema do binômio sexo/gênero voltasse a ter destaque nas teorias
feministas e fosse repensado. Se o chamado corpo natural é, na verdade, algo
construído, então ele pode ser desconstruído e reconstruído a partir do aparato
linguístico, incluindo sua forma suas fronteiras e os princípios pelos quais ele é
unificado, ou seja, o princípio da divisão sexual, que instaura os dois sexos
agrupando os corpos em um dos dois.
Sendo assim, essa abordagem não somente desconstrói o sexo como uma
categoria natural e a unidade falsamente instituída por ele, mas também coloca
como fonte de agência pessoal e política a troca entre os corpos em um complexo
cultural em que as identidades são constituídas e podem ser desfeitas e
rearranjadas nessa dinâmica e não o próprio indivíduo como fonte de tudo isso.
Dessa forma, Butler observou que tanto para Wittig, da teoria LGBT, quanto para
Beauvoir, não se poderia falar em nascer ou ser mulher, mas sim tornar-se uma,
ainda que Beauvoir tenha instaurado a diferença entre sexo e gênero e que isso
tenha facilitado a justificativa do processo de naturalização do sexo. Como esse
não é um procedimento fixo, haveria a possibilidade de se tornar alguém que não
é plenamente descrito nem como homem nem como mulher. Esse fato não
possibilita a hipótese de um terceiro gênero ou um ser andrógino ou uma
transcendência ao binário, na verdade “é uma subversão interna na qual o binário
é um pressuposto e é proliferado até o ponto em que não faça mais sentido”33.
Procura-se, portanto, uma nova forma de ser um corpo e isso afeta as estruturas
32
Essa questão voltará com força no terceiro capítulo, pois o marco desse problema para o
presente trabalho está na própria Constituição de 1988, documento ambíguo no que diz respeito a
uma real afirmação da igualdade entre homens e mulheres, bem como no reconhecimento de
estruturas familiares que começavam a aparecer.
33
It is an internal subversion in which the binary is both presupposed and proliferated to the point
where it no longer makes sense. BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of
identity, p. 162.
46
tanto da identidade quanto da concepção tradicional de sujeito estável e anterior à
normatividade, que não é constituído por ela e sim somente a constitui34.
Portanto, é preciso examinar como se dá o procedimento de constituição
do sujeito, quais são os problemas de sua concepção tradicional, bem como de que
forma acontecem as formações de identidades, em especial as de gênero, que
possuem como pressuposto a matriz reprodutiva, conforme exaustivamente
mencionado, para que nessa construção seja apresentada a importância dos atos
performativos nesse processo e como eles podem ser tomados por um viés
subversivo, ou em que medidas eles são fundamentais para a constituição de
outros corpos e outras possibilidades de relações entre eles, atualizando, dessa
forma, a concepção de atos performativos de Austin e trazendo concretamente
para a teoria feminista a partir de Judith Butler.
O problema do sujeito deve ser colocado uma vez que interfere nas teorias
feministas a partir do momento em que se identifica uma necessidade de um
sujeito para o feminismo, ou de uma identidade para configurar os movimentos
feministas, que seria estabelecido pela categoria mulher35. O sujeito é
compreendido como aquele que produz a norma, que possui direitos instituídos
por ela e que é representado por ela, como se houvesse um sujeito anterior a ela,
que se posicionasse antes do próprio direito. Porém, com fundamento em
Foucault, Butler entendeu que o sistema jurídico produz o sujeito que tem a
34
Apesar da crítica apresentada em relação ao sujeito estável, não cabe aqui a discussão sobre pósmodernidade, não sendo objeto de exame em que tipo de movimento essas autoras feministas vão
se adequar. Nesse sentido, retomam-se aqui as considerações de Butler sobre o tema da pósmodernidade, em que observa a tendência de se agrupar na categoria de pós-modernidade ou pósestruturalismo diversos autores que sequer se relacionam, tendo como pressuposto de unificação a
negação do Eu, do sujeito e da realidade, havendo somente representação e nada mais. Esse tipo de
classificação causa confusão, reunindo no mesmo grupo o feminismo francês, como se fosse
possível falar em um só, a desconstrução, a psicanálise de Lacan e as análises de Foucault. Essa
forma de agrupamento ignora que a feminista Kristeva combate a pós-modernidade e que quem
estuda Foucault mal se relaciona com quem se dedica a Derrida, entre outros argumentos
elaborados por Butler para inviabilizar denominar tudo como pós-modernidade, ressaltando
especialmente o reducionismo dessa visão distorcida de modernidade, que insiste em classificar
por mais inadequada que a classificação seja. Nesses termos, a autora segue dizendo que se há uma
força na expressão pós-modernidade na teoria social, ou na feminista, ela pode ser observada no
exercício crítico que demonstra como a teoria e a filosofia estão em constante relação com o poder.
Sendo assim, chamar tudo de pós-modernidade não passa de uma tentativa de se esvaziar e
domesticar essas críticas. BUTLER, Judith. Contingent Foundations: feminism and the question of
postmodernism, PP. 36-38. In BENHABIB, Seyla. Feminist Contentions, pp. 35-57.
35
Lembre-se aqui do problema colocado anteriormente sobre as categorias homem e mulher, não
como verdadeiramente naturais, mas sim como categorias políticas, construídas a partir de um
processo de naturalização que instaurou a heterossexualidade.
47
pretensão de representar36. Essas estruturas jurídicas na verdade sujeitam esse
sujeito, produzem-no e reproduzem-no, constituem o sujeito ininterruptamente,
sendo este um processo sem fim. O direito produz o sujeito e posteriormente
coloca a noção de um sujeito antes da lei com o objetivo de transformar uma
formação discursiva em uma premissa de fundação naturalizada, que legitima a
hegemonia regulatória do próprio direito.
É equivocado argumentar que existe um momento fundacional, uma
premissa fora da história afirmando a existência de pessoas anteriores a uma
ordem social que a partir do livre consentimento chegariam a um acordo de
vontades em que concordariam em serem governadas, conferindo uma
legitimidade ao contrato social ou a uma determinada organização social e que a
partir desse momento os direitos seriam instituídos. Essa estratégia argumentativa
é tratada por Butler como uma performatividade37, ou seja, é um ato performativo
cujo objetivo é estabelecer uma ficção fundacionalista que dê suporte à noção de
sujeito. Há uma aparente pretensão descritiva, na medida em que se afirma de
forma supostamente neutra como as coisas se sucederam, porém, ao se realizar
esse ato de fala, na verdade, o que se faz é constituir as noções de sujeito como
algo prévio ao processo, afastando a sua historicidade, tornando esse
procedimento como algo fora de questionamento.
Por esse mesmo motivo, não é sustentável a formulação de uma teoria
feminista que se pretenda representar o sujeito mulher, uma vez que não existe um
sujeito que se coloque antes da lei, ele é constituído por ela. Além da concepção
em relação a sujeito estar equivocada e a afirmação do sujeito mulher como
central ao feminismo incidir no mesmo equívoco, a formulação de uma categoria
de identidade comum que reuniria a representação de todas as mulheres acaba por
ser excludente, pois ela irá se fundar necessariamente na negação dos demais, na
medida em que a identidade é formulada, em regra, em oposição ao outro. Não foi
por outro motivo que existiram e existem diferentes correntes de teorias
feministas e diferentes movimentos feministas, cada qual colocando força em um
aspecto que considera fundamental e que acabou sendo desconsiderado pelas
demais correntes. É por esse fator que há e/ou houve um feminismo liberal, um
feminismo maternal, um feminismo que parte das mulheres negras, um feminismo
36
37
BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 4.
BUTLER, Judith. Gnder trouble: feminism and the subversion of identity, p. 5.
48
socialista, um feminismo LGBT, e tantos outros quanto forem necessários, já que
as questões de gênero atravessam os demais temas e perpassam, inclusive, as
diversas áreas do direito.
O termo “mulher” se transformou em um campo de batalha entre as
diversas correntes feministas em função da disputa de conceitos. Quem poderia
determinar o que seria a mulher? Como isso seria determinado ou com base em
que critério seria possível conceituá-la? O argumento da natureza ou do sexo já se
demonstrou notoriamente insuficiente. Quem poderia falar por ela? A pretensão
de se estabelecer um conceito fechado de mulher que universalize o suposto
sujeito do feminismo se torna inviável, pois como falado anteriormente, o gênero
interage pelo menos com a raça, a classe, a sexualidade e com questões étnicas,
conforme constatou Butler38. Em função disso, as mulheres negras ou as das
classes baixas não se identificavam com a causa maior das feministas liberais, o
sufrágio universal, tanto no final do século XIX quando o feminismo se estrutura
como movimento em torno dessa questão nos Estados Unidos e na França, quanto
no Brasil no início do século XX, tema que será desenvolvido no segundo
capítulo.
A defesa da universalidade de uma identidade feminina, bem como da
opressão masculina incidem no mesmo problema gerado pela associação do sexo
com aquilo que é fático, dado pela natureza, pois como seria possível traçar o que
há de comum que fundamentaria a concepção de uma identidade feminina? Seria
com base em algumas partes do corpo, perspectiva que já foi criticada? No
suposto fato da maternidade ou na pressuposição de que todas as componentes
desse grupo seriam capazes de gerar? Até mesmo esse aspecto da maternidade ou
da potencial capacidade das mulheres serem mães não é suficiente, na medida em
que nem todas as mulheres são mães, algumas querem e são, outras querem e não
conseguem, algumas já não podem mais gerar em virtude da idade, outras são
novas demais, outras são mães, mas não entendem a maternidade como condição
central de suas vidas. Por esse motivo, é complicado o esforço de se estabelecer
uma especificidade feminina para unificar a categoria mulher, ainda que seja o
recurso à maternidade biológica ou social39.
38
BUTLER, Judith. Gnder trouble: feminism and the subversion of identity, p. 6.
Essa é uma crítica que Butler produz a partir de teorias feministas como as de Carol Gilligan que
pretendem articular um elemento comum entre as mulheres capaz de unificá-las, um saber
39
49
Essa insistência na coerência e unidade da categoria mulher recusa a
multiplicidade cultural, social e política na qual as mulheres são constituídas e
pode ser desnecessária para as ações políticas. Isso também não significa que as
unidades não devam existir, elas não devem ser compulsórias e nem devem
significar que as lutas feministas precisam de uma identidade estável ou
hermética, pronta e encerrada. Na verdade, essa concepção apresenta outra
proposta de mobilização, tendo como fundamento uma unidade que surge a partir
das ações concretas, que não é fechada ou pressuposta. A necessidade das lutas
seria capaz de fazer com que essas identidades se constituíssem e fossem desfeitas
ao longo das práticas concretas. “Gênero é uma complexidade cuja totalidade é
permanentemente adiada, nunca é inteiramente aquilo que se apresenta, em
qualquer momento no tempo”40.
Porém, o que Butler, bem como outras autoras que fazem críticas à
concepção universal de mulher muito atrelada ao feminismo liberal, parece não
reconhecer é que o esforço de se tornar o feminismo em uma causa comum pode
ser interessante, pois as questões de gênero passam a ser centrais, em vez de
serem desprezadas por outras lutas minoritárias. Se por um lado as vertentes mais
tradicionais de feminismo ou as que começaram a se engajar numa suposta causa
comum entre as mulheres acabaram segregando, de início, mulheres que não
pertenciam à determinada categoria social, por exemplo, por outro lado, ajudaram
a viabilizar a percepção de uma forma de dominação própria, que foi chamada
posteriormente de dominação de gênero, categoria excluída também de outras
formas de mobilização, ainda que tenha sido necessário ocorrer e que ocorram até
hoje disputas internas no feminismo em relação ao conceito de mulher. O
problema não está nesses momentos em que uma identidade é forjada para se
feminino. É interessante observar os extremos das posições. Enquanto a segunda aposta na
possibilidade de unificação, a primeira entende que em todos os momentos que isso foi pleiteado
houve resistência e contestação. Na verdade, essas possibilidades de unificação existem, mas
nunca são totais, elas são sempre parciais, em torno de mulheres que possuem elementos comuns,
apesar desses elementos não serem dados pela natureza e sim serem produto de construção
cultural. Essa perspectiva será apresentada no final do presente item, especialmente por ser um
problema para o direito a impossibilidade de não se colocar conteúdo nos conceitos, conforme
Butler propõe. Sobre a crítica de Butler a essas correntes feministas: BUTLER, Judith. Contingent
foundations. In BENHABIB, Seyla (ET AL). Feminist Contentions: a philosophical exchange, p
.49.
40
Gender is a complexity whose totality is permanently deferred, never fully what it is at any
given juncture in time. BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity,
p. 22.
50
buscar alcançar um direito, mas na exclusão, sempre identificada posteriormente,
ocorrida em virtude desse processo de identificação continuar se perpetuando.
Apesar dessas considerações, Butler não deixa de ter razão ao afirmar que
estabelecer a universalidade e a unidade do sujeito do feminismo, tentando tornálo estável, enseja um elevado grau de recusa e dificulta a aceitação da categoria,
apesar de poder ser interessante como estratégia de luta em determinados
momentos. Isso porque ele passa a ser também um modelo normativo, uma
imposição a ser seguida, ou seja, essa construção possui conseqüências
regulatórias e pode levar a exclusões, ainda que seu propósito seja no sentido de
emancipar. A fragmentação do feminismo e a aparente conduta paradoxal de
mulheres que se opõem a ele, cujo propósito original era o de representá-las,
aponta os limites de se fundamentar a atuação política na estratégia da identidade.
Ao mesmo tempo, não há como recusar completamente as formas de
representação política, especialmente em termos de mobilizações sociais. As
estruturas jurídicas da linguagem e da política constituem a totalidade do campo
do poder e não há nada que esteja fora dessas estruturas ou desses campos.
Podem-se fazer, entretanto, críticas às formas pelas quais esses campos costumam
se legitimar e, ao mesmo tempo, críticas em relação às identidades que as
estruturas jurídicas atuais tendem a naturalizar e a tornar imutáveis. O problema
talvez não esteja necessariamente no uso da identidade, mas no fato de ela passar
a ser um conceito fixo, previamente determinado e impossível de ser revisto. Na
prática política do feminismo é preciso pensar em novas propostas em relação à
construção da identidade para que ele seja possível de ser retomado em outras
bases. Ainda assim, para Butler, esta poderia ser a oportunidade de liberá-lo de ter
necessariamente que construir uma identidade que seria, sem dúvida, novamente
contestada por aquelas que se sentem excluídas41, processo que sempre acaba
acontecendo ao se instituir a identidade. Além disso, a autora fez questão de
atrelar a reivindicação da estabilidade do conceito à afirmação do modelo
heterossexual. Nesses termos:
Se uma noção estável de gênero prova não ser mais a premissa fundacional da
política feminista, talvez uma nova espécie de política feminista seja desejável
atualmente para contestar as próprias reificações de gênero e de identidade, uma
41
BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 8.
51
que irá tratar as construções variadas de identidade como pré-requisitos
metodológicos e normativos, se não um objetivo político.42
Como essa discussão se aproxima da teoria de Austin sobre atos
performativos? Para se responder a essa pergunta é necessário afirmar novamente
que a proposta desse autor foi romper com a pretensão descritiva da linguagem,
mostrando que não há possibilidade de descrição sem valores que a sustentem,
sendo a neutralidade excluída do campo da linguagem. Nesse sentido, não cabe
afirmar que existe uma identidade de gênero como algo que é a descrição de uma
realidade. O gênero é produzido, em todos os momentos, por suas expressões, ou
seja, as identidades são constituídas performativamente, em seu exercício. Elas
são constantemente reafirmadas ao longo das práticas sociais e não decorrem de
mera análise da realidade.
O processo de afirmação e estabelecimento dessas identidades também
ocorre através de movimentos da repulsa, se são observadas as formações das
identidades culturais hegemônicas. Nesse sentido, são fundadas identidades que se
caracterizam por repudiar os corpos em função de suas representações de sexo,
sexualidade, raça, entre outros, construindo, dessa forma, a homofobia, o sexismo
e o racismo a partir de diferenciações instituídas entre os corpos. Surgem as
concepções de Outro ou de outros, diferentes das performances hegemônicas e
que serão alvo de exclusões, dominações e controles. Instauram-se as fronteiras
que estabelecem aquilo que se encontra dentro e o que está fora, como se fosse
possível haver, de fato, algo fora. O fora não existe, pois para que fosse possível a
manutenção desses dois mundos, seria necessário que os corpos fossem
completamente impermeáveis, mas a maneira pela qual eles são constituídos e,
junto com eles, os processos identitários, já apontam para a característica da
permeabilidade. Dentro e fora são concepções que somente poderiam fazer
sentido se os corpos fossem estáveis, porém, se a estabilidade deles fosse um fato,
não seriam necessárias tantas repetições, ou reprodução compulsória de
estereótipos de gênero, para garantir o aspecto natural.
42
If a stable notion of gender no longer proves to be the foundational premise of feminist politics,
perhaps a new sort of feminist politics is now desirable to contest the very reifications of gender
and identity, one that will take the variable construction of identity as both a methodological and
normative prerequisite, IF not a political goal. BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism and the
subversion of identity, p. 9.
52
A aparente unidade de gênero, ou aquilo que permitiu dividir seres
humanos em homens e mulheres, decorre dessas práticas regulatórias, de
repetições, mecanismos pelos quais as identidades são construídas e se perpetuam,
dando esse caráter estável que as identidades aparentemente possuem e, muitas
vezes, instaurando o que supostamente seria uma realidade decorrente da própria
natureza. Nenhuma pessoa escapa a esse tipo de construção por parte do poder e
de relações discursivas que produzem e regulam as identidades, muito menos seu
sexo ou sua sexualidade. A partir desse momento, devem-se pensar, então, em
como se podem constituir as subversões ou os deslocamentos das identidades
construídas. Sem dúvida, essas relações de poder, especialmente as que possuem
como fundamento as ciências biológicas e que auxiliam na perpetuação dos
estereótipos de gênero a partir de partes isoladas do corpo e apegadas meramente
ao caráter reprodutivo, como órgãos genitais e hormônios, não são facilmente
desfeitas. Por enquanto, o importante é enfatizar que ser um gênero é um efeito, é
uma reiteração de processos de estilização do corpo.
O corpo sexuado deve ser compreendido não como um solo firme no qual
a sexualidade compulsória e o gênero vão atuar, mas sim como ele em si mesmo
sendo moldado a partir das estruturas de poder, que constroem as chamadas
marcas dos sexos. A diferenciação produzida entre sexo e gênero e a instituição da
própria categoria do sexo sugeriu ao longo do tempo que existia um corpo anterior
à aquisição dos seus significados sexuais, como se fosse um objeto passivo que
adquiriu significado a partir de uma fonte cultural externa a ele, como se ele
estivesse numa posição anterior aos discursos sobre ele ou fosse simplesmente
uma superfície43.
A sensação ou aparência de coerência e que sugere a identidade como
causa é produzida por atos e gestos que se pretendem apresentar como essência de
um corpo, mas que não estão em seu interior, sendo reproduzidos na superfície
dele. A identidade é conseqüência dos atos de imitação, reprodução e segregação.
Esses atos que compõem os corpos são os performativos e a identidade que eles se
43
Essa materialidade do corpo é vislumbrada por Butler em autores como Beauvoir e o próprio
Foucault. Segundo a autora, ambos sustentam em suas teorias a existência de um corpo que vem
antes das inscrições culturais e que são constantes alvos dessas inscrições. A compreensão que
Butler tem sobre o corpo parece diferenciar da de Foucault de forma sutil, mas enquanto o segundo
caracteriza a hipótese da materialidade do corpo, a primeira já considera o corpo como fruto de
uma construção, mas ressaltando que não há mera passividade, como será visto adiante. Sobre o
confronto entre essas concepções de corpo, conferir. BUTLER, Judith. Gender trouble: feminism
and the subversion of identity, pp 164-166.
53
propõem a retratar são produções fabricadas pelos sinais emitidos pelos corpos,
desde gestos, comportamentos, vestimentas até os atos de fala propriamente ditos.
O encadeamento de gestos e atos e de produção de desejo, bem como o ritual que
envolve esses procedimentos forjam a ilusão de uma existência prévia que é
mantida pelo aparato discursivo para perpetuar a lógica reprodutiva na
sexualidade e as divisões de função que decorrem da “constatação” do sexo a
partir de uma adequação desses papeis sociais às supostas aptidões corporais e
emocionais.
O corpo generificado é, de fato, performativo e não se pode pensá-lo de
forma separada desses gestos e atos, não há uma existência em si mesma. A
verdade sobre o sexo é fabricada, por isso o gênero não está sujeito ao julgamento
de verdadeiro ou falso e é somente efeito de um discurso sobre identidades
estáveis, mas sem atos o gênero não é possível. Um ponto fundamental dessa
questão é que a repetição que garante a aparente essência do gênero sedimenta
essas normas, produzindo a “verdadeira mulher” e outras ficções sociais ao
estilizar o corpo, e faz com que os próprios atores passem a acreditar nessa
identidade. Não é incomum o exemplo, que deveria ser extremado, da existência
de mulheres misóginas, certas de suas aptidões naturais para os cuidados com a
casa, com os filhos e com os parentes idosos, bem como para o resguardo da
honra da família. Como as certezas delas não ficam restritas às suas próprias
vidas, elas são muito eficazes e fundamentais na perpetuação das identidades de
gênero, afinal, “é da natureza feminina...” e “homem faz essas coisas mesmo”44. A
44
Sobre como esses modelos poderiam ser perpetuados entre as mulheres, cabe fazer referência
aos conselhos dados em literaturas destinadas ao público feminino, como o Jornal das Moças, 08
de junho de 1953; “há brinquedos básicos que falam o idioma da humanidade inteira, e para estes
não há possibilidade de passar da moda nem de época (...) uma menina é uma pequena mãe, e uma
boneca sempre terá guarida em seus braços (...) um menino estará sempre por aquilo que reclamam
sua destreza desportiva (...) Uma pessoa que vai fazer um presente de um brinquedo (para uma
criança) deve procurar o simples, o que responda ao natural instinto da criança...” E sobre as
funções de homens e mulheres no casamento, é interessante citar o Teste de Bom Senso, também
no Jornal da Moças, do dia 17 de abril de 1952: “Suponhamos que você venha a saber que seu
marido a engana, mas tudo não passa de uma aventura banal, como há tantas na vida dos homens.
Que faria você? 1. Uma violent cena de ciúmes? 2. Fingiria ignorar tudo e esmerar-se-ia no
cuidado pessoal para atraí-lo? 3. Deixaria a casa imediatamente? Resposta: A primeira revela um
comportamento incontrolado e com isso se arrisca a perder o marido, que, após uma dessas
pequenas infidelidades, volta mais carinhoso e com um certo remorso. A segunda resposta é a mais
acertada. Com isso atrairia novamente seu marido e tudo se solucionaria inteligentemente. A
terceira é a mais insensata. Qual mulher inteligente que deixa o marido só porque sabe de uma
infidelidade? O temperamento poligâmico do homem é uma verdade; portanto, é inútil combatê-lo.
Trata-se de um fato biológico que para ele não tem importância”. Exemplos retirados do texto de
BASSANEZI, Carla. Mulheres dos anos dourados. In Del Priore, Mary. História das Mulheres no
Brasil, PP. 609 e 607 respectivamente.
54
relação é invertida e em vez de efeito, o gênero passa a ser causa. Basta lembrarse da clássica pergunta mencionada anteriormente “é menino ou menina?” para
compreender a intensidade da generificação.
Considerando a estruturação do gênero a partir dos atos performativos, o
problema passa a ser pensar mecanismos que possibilitem interromper a repetição
da performance, ou o ritual social que coloca a ideia de gênero. As repetições são,
a princípio, as reiterações de atos já estabelecidos socialmente que, ao construir as
identidades, as tornam legítimas. Essas ações responsáveis por construir um corpo
com um determinado estilo, respeitando o binário de gênero, são sempre ações
públicas, inseridas temporalmente em um contexto e que disfarçam a
arbitrariedade. A possibilidade de ruptura desse processo está na identificação da
própria arbitrariedade desses atos, na medida em que se descortina a falsidade do
argumento da natureza e o real limite, dado pela história.
Na medida em que o gênero não é uma expressão da natureza e sim um
exercício de uma performance, não há uma identidade prévia, portanto é aberta a
porta para novos performativos. Butler apresenta como exemplo de paródia, ou
brincadeira, em termos de produção de gênero as práticas especialmente de drag e
cross-dressing45. Isso porque essas experiências servem para demonstrar a
falsidade no processo de naturalização do gênero, uma vez que ao imitarem um
gênero de forma estilizada, as drags expõem a imitação em si mesma, o
procedimento pelo qual o gênero é consagrado e a sua contingência. A autora
ressalta que essa imitação não pressupõe um elemento original de gênero, nas
quais as paródias se inspirariam, pois isso seria o mesmo que afirmar a existência
anterior do gênero.
Esse deslocamento perpétuo constitui um fluido de identidades que sugerem uma
abertura para a ressignificação e recontextualização; a proliferação da paródia
priva/impossibilita a cultura hegemônica e suas críticas de afirmarem identidades
de gênero naturalistas ou essencialistas. Apesar dos significados de gênero
retomados nesses estilos de paródias serem claramente parte de uma cultura
hegemônica misógina, eles são, apesar disso, desnaturalizados e mobilizados
pelas recontextualizações de suas paródias. Como as imitações que efetivamente
deslocam o sentido do original, eles imitam o mito da originalidade em si mesma.
No lugar de uma identificação original que serve como uma causa determinante, a
identidade de gênero pode ser repensada como uma história pessoal/cultural de
significados recebidos sujeitos a uma série de práticas imitativas que se referem
45
BUTLER, Judih. Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 174.
55
lateralmente a outras imitações e que, conjuntamente, constrói a ilusão de um self
interior generificado ou parodiado o mecanismo dessa construção46.
Obviamente, não é qualquer paródia que se pretende subversiva. Ao
mesmo tempo, não é viável produzir uma teoria da ação com o objetivo de tentar
mapear as espécies performáticas que poderão ser consideradas subversivas, mas
sem dúvida se algum critério pode ser estabelecido é o fato de a paródia mexer nas
estruturas que pretensamente fundamentam a divisão de gênero na natureza. Nesse
sentido, Butler se concentrou em demonstrar como essas paródias drags podem
ser subversivas, mesmo não sendo as únicas formas de subversão. Na verdade, as
mobilizações feministas como um todo conseguiram ser subversivas, pois elas
desestabilizaram, e desestabilizam a divisão de papeis sociais a partir do gênero,
cada uma delas ressaltando uma singularidade em evidência em determinado
contexto e momento histórico. A generosidade com que Butler examina as
variações Queer das teorias e mobilizações feministas pode ser levada para a
avaliação acerca das outras formas de ações feministas nesses termos.
Além da desnaturalização do sexo e da adoção da concepção de gênero a
partir da perspectiva performativa, outra peculiaridade de Butler é a defesa da
ausência de necessidade de um sujeito previamente determinado que seja capaz de
articular seu processo de emancipação. A forma como a autora pensou o sujeito
foi uma das grandes responsáveis por ela ser conhecida como pós-moderna,
categoria aqui que não será discutida, conforme já esclarecido. Porém, o ponto
controvertido em torno do sujeito merece espaço, na medida em que afeta
especialmente aqueles vinculados ao Direito.
Pensar o Direito a partir dessa perspectiva de uma ausência do sujeito é
bastante complicado, em virtude de se pretender ou se buscar sempre uma
precisão nos conceitos, como garantia até mesmo de publicidade e da adequada
compreensão da norma por parte dos que devem observá-la e isso pode ser um
46
This perceptual displacement constitutes a fluidity of identities that suggests na openness to
resignification and recontextualization; parodic proliferation deprives hegemonic culture and its
critics of the claim to naturalized or essentialist gender identities. Although the gender meanings
taken up in these parodic styles are clearly part of hegemonic, misogynist culture, they are
nevertheless denaturalized and mobilized through their parodic recontextualization. As imitations
which effectively displace the meaning of the original, they imitate the myth of originality itself. In
the place of an original identification which serves as a determining cause, gender identity might
be reconceived as a personal/cultural history of received meanings subject to a set of imitative
practices which refer laterally to other imitations and which, jointly, construct the illusion of a
primary and interior gendered self or parody the mechanism of that construction. BUTLER, Judith.
Gender trouble: feminism and the subversion of identity, p. 176.
56
problema maior ou menor dependendo da área do Direito em questão. É um
problema menor para áreas que podem fazer uso de conceitos mais abertos, menos
precisos e que podem ficar mais suscetíveis a processos de interpretação, porém,
em áreas em que a precisão é almejada para se proteger o indivíduo de uma
atuação incisiva do Estado o problema é, certamente, maior, como nos casos do
direito tributário e do direito penal47.
O problema apresentado contra a proposta de Butler diz respeito à
resistência em relação ao tema do sujeito. A argumentação daqueles que insistem
na presença do sujeito é no sentido de que seria uma conspiração de autores pósmodernos a morte do sujeito agora que as mulheres e outros grupos minoritários
conseguiram começar a assumir a posição de sujeitos e a falar em nome próprio.
Porém, o que significaria criticar a concepção de sujeito? Em um primeiro
momento, Butler cita rapidamente o uso da concepção de sujeito de forma
imperialista por parte do Ocidente, que cria o outro e o destrói48. Nesse sentido,
adotar a concepção de sujeito implicaria em adotar esses mesmos mecanismos
dominação pelos quais se é oprimido. Então, a afirmação do sujeito ou da
47
Esse parágrafo é sem dúvida problemático, por tocar em diversos temas controvertidos sobre a
função do direito, as questões políticas que definem seus conteúdos e a própria discussão sobre a
pretensão de racionalidade do direito, o desejo ou não de uma atuação mais interpretativa do Poder
Judiciário, entre inúmeras questões que poderiam ser citadas nesse momento. Ocorre que cada um
desses pontos gera algumas teses. Por esse motivo, como o problema direto a ser investigado aqui
não é nenhum desses, essas discussões não vão acontecer. Somente se atenta para as áreas citadas
por serem notoriamente as que precisam ter parâmetros mais severos para impedir a invasão do
Estado em duas esferas caras à nossa sociedade: o patrimônio e a liberdade, sem avaliação do grau
de correção dessa decisão social. Por esse motivo, os princípios da anterioridade e da legalidade
possuem especial relevância nesses dois ramos do direito. E para se compreender o tamanho do
problema que pode ser gerado em torno da busca por precisão, basta citar as divergências sobre a
possibilidade de se aplicar a Lei 11.340/2006 para violência doméstica e familiar em relações
homoafetivas, especialmente, entre dois homens, na medida em que a própria lei faz referência à
proteção independente de orientação sexual, conforme o art. 2°. A Lei Maria da Penha surge de
um duplo movimento: de reivindicação do movimento feminista, já que a lei anterior que tratava
da lesão corporal não dava conta da realidade específica da violência doméstica contra a mulher
(pois os dados levados ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos foram nesses moldes, uma
vez que essas pessoas que se subjetivaram dessa forma, repetindo essa identidade, eram constantes
vítimas dessa forma de violência) e de condenação do Brasil na Comissão Interamericana de
Direitos Humanos no caso Maria da Penha (Relatório nº 54/01 caso 12.051). Após a publicação da
Lei 11.340/2006, passou-se a discutir a possibilidade da aplicação para casais de lésbicas, gays e
até mesmo para casais heterossexuais em que o homem sofria a violência. Se os conceitos são
vazios, como determinar o público a receber a tutela da lei? E como determinar os agentes que
podem ser punidos por ela ou os que estarão sujeitos à Lei 9.099/1995? Aqui na nota também
serão ignoradas outras discussões que passam pelos exames de argumentos em relação à
possibilidade de proteção dessas pessoas (e da punição de quem comete a violência doméstica
contra elas) por parte da Lei 11.340/2006. Agora o objetivo é demonstrar como os conceitos mais
esvaziados de conteúdo para o Direito podem ser um problema.
48
BUTLER, Judith. Contingent foundationsm p. 49. In BENHABIB, Seyla (ET AL). Feminist
contentions: a philosophical exchange, pp. 35-57.
57
identidade, é a afirmação na crença de algo anterior aos atos performativos que
constituem os próprios sujeitos e identidade. É, novamente, tomar como causa a
consequência, pois a dominação acontece no processo de elaboração dos sujeitos e
o “nós” que unifica uma identidade exclui outros.
Além disso, Butler deixou claro que criticar politicamente a utilização do
termo sujeito não é o mesmo que inutilizá-lo. A sua desconstrução é a sua
possibilidade de ressignificação, a partir do momento em que são examinadas e
expostas as suas funções lingüísticas para afirmação de uma determinada
autoridade, suspendendo qualquer compromisso com o termo sujeito estabelecido
previamente. Dessa forma, novos usos dos termos passam a ser viabilizados. Não
se pode olvidar que o sujeito é fruto e não ponto de partida, ao mesmo tempo, o
sujeito constituído não é determinado. O caráter constituído do sujeito é a sua
própria condição de agência, pois é a possibilidade de retomada do processo
constituinte, em outros termos, com a possibilidade de novos agenciamentos. É
interessante observar que a própria autora reconheceu que não poderia se colocar
de forma contrária ao fato de o feminismo sentir necessidade de se colocar como
aquele que fala como e pelas mulheres, pois a estrutura política de representação,
na qual a democracia acabou se estruturando, funciona dessa forma. Sobre o tema
ela afirma:
Seguramente, essa é a forma na qual a política representacional opera, e nesse
país, os esforços de lobby são virtualmente impossíveis sem o recurso da
identidade política. Então, nós concordamos que as demonstrações e os esforços
legislativos e os movimentos radicais precisam fazer afirmações em nome das
mulheres49.
Esse mesmo raciocínio pode ser aplicado também para a estrutura do
Direito. Não se pode negar a necessidade que o Direito possui de trabalhar com
conceitos mais precisos e isso não é correto nem errado, é a forma na qual ele
opera nesse momento e que não pode ser ignorada. O que deve ser observado é
sempre a possibilidade de retomada de um termo, de se rediscuti-lo e ressignificálo, sem que o tema tratado fique engessado ou impossibilitado de uma nova
abordagem. E esse processo deve ser considerado como próprio de um direito
49
Surely, that is the way in which representational politics operates, and in this country, lobbying
efforts are virtually impossible without recourse to identity politics. So we agree that
demonstrations and legislative efforts and radical movements need to make claims in the name of
women. BUTLER, Judith. Contingent foundationsm p. 49. In BENHABIB, Seyla (ET AL).
Feminist contentions: a philosophical exchange, pp. 35-57.
58
produzido por um Estado democrático, que precisa observar os anseios vindos das
mobilizações populares, minoritárias e especificamente feministas por novos
conceitos e novas formas de se enfrentar os problemas sociais elevados à
categoria de problemas jurídicos.
Por esse motivo, desconstruir o sujeito e em específico, o sujeito do
feminismo, não implica em impossibilitar o seu uso. Na verdade, tal medida é
relevante uma vez que libera o seu uso para uma multiplicidade de significados
que podem ser produzidos em outros pressupostos e é dessa forma que a autora
insiste em estruturar a possibilidade de agência. Sendo assim, assumir também
que a identidade é necessariamente normativa e não descritiva, conforme já
apresentado, é fundamental para se traçar essa abertura. Nesses termos, a própria
performatividade também passa a estar sujeita a alterações. Sua definição de ato
performativo é bem precisa e está intrinsecamente ligada à de Austin, pois para
ela o ato performativo é aquele que faz surgir, ou traz à existência aquilo que ao
mesmo tempo ele nomeia e esse processo expõe o poder que o discurso possui50.
A garantia do funcionamento do ato performativo, ou a sua felicidade, está
relacionada com a repetição de determinadas convenções linguísticas que já se
demonstraram eficazes, ou seja, já produzem determinados efeitos reiteradamente
ao longo de um espaço temporal. A avaliação da força de um ato performativo ou
de sua efetividade, nas palavras de Butler:
decorre necessariamente da sua capacidade de desenhar ou recodificar a
historicidade dessas convenções em um ato presente. Esse poder da recitação não
é uma função de uma intenção individual, mas é um efeito das convenções
lingüísticas historicamente sedimentadas51.
O importante a se ressaltar dessa afirmação é que o poder individual ou a
intenção de um único indivíduo não é suficiente para dar a força que as palavras
que induzem ações ou que sejam elas mesmas ações possuem. Essa força não vem
justamente do sujeito em sua concepção tradicional, pois ele também foi
50
Sobre o tema e sobre os estudos além da teoria de Austin que a auxiliaram a chegar a essa
definição é importante verificar. BUTLER, Judith. For a careful reading, p. 134. In BENHABIB,
Seyla (ET AL). Feminist contentions: a philosophical exchange. Pp. 127-143.
51
The force or effectivity of a performative will be derived from its capacity to draw on and
reencode the historicity of those conventions in a present act. This power of recitation is not a
function of an individual’s intention, but is an effect of historically sedimented linguistic
conventions. BUTLER, Judith. For a careful reading, p. 134. In BENHABIB, Seyla (ET AL).
Feminist contentions: a philosophical exchange, pp. 127-143.
59
constituído nesse processo, e sim das convenções que ganharam poder pelas
repetições sedimentadas. A intenção do agente – ou o doer como sujeito – não
pode ser deixada de lado, ela é considerada também, mas não como um
pressuposto – na concepção de doer behind the deed – e sim como fruto dessa
construção. E se ele é produto da linguagem, ele é fruto de uma rede de poder e
discurso, porém, afirmando-se a possibilidade de deslocamento ou subversão
dessa rede e é isso que define a agência, ou a capacidade de renovação discursiva,
o que não seria possível se o sujeito fosse prévio, pronto e acabado.
O discurso é aquilo que instaura a identidade, que aprisiona em repetições,
mas também é aquilo que pode ser retomado para liberar. É importante esclarecer
que não é somente uma questão de palavras ditas e sim um processo de
significação que vai além de se examinar como certos significados passam a
querer dizer o que eles dizem, em outros termos, assumem o sentido que possuem,
mas como sujeitos e objetos são instituídos e articulados em seu interior. A partir
dessa constatação, a saída é iniciar uma busca pela redução das assimetrias
instituídas pela subjetivação, ou então iniciar a construção de outras instituições,
de práticas de repetição e de formas de vida. Sem maiores mistérios, é justamente
aquilo que os movimentos feministas e LGBT se esforçaram e se esforçam em
fazer.
A desconstrução da materialidade do corpo elaborada por Butler no
mesmo sentido do procedimento sobre o sujeito gerou também incompreensão por
parte de outras feministas, pois as teóricas do tema entendiam que não teria como
o feminismo prosseguir sem partir do pressuposto da materialidade do corpo
feminino. E as críticas foram no ponto do discurso, afirmando que se tudo era
discursivo para autora, então seria necessário negar a realidade dos corpos, e a
partir daí, não seria viável a compreensão da violência material a qual as mulheres
estão sujeitas até os dias atuais. Esse ponto é interessante, pois seria uma
estratégia argumentativa simplória, porém eficiente na manutenção das relações
de poder que envolvem o gênero, dizer que se a mulher não existe, é mera ficção
discursiva ou se os corpos femininos não existem sendo também produtos do
discurso então não seriam necessárias medidas jurídicas, entre outras, específicas
para ela. Abandonar-se-ia à própria sorte, dessa forma, desde mulheres em
situação de violência doméstica até as gestantes sem os cuidados em relação à
60
saúde, já que elas não existiriam, não seriam realidades e sim mero fruto de
discursos.
O ponto central para inviabilizar esse tipo de argumentação é justamente
assumir a força do discurso na constituição dos corpos. O sexo não é um dado
natural e sim uma estratégia construída a partir da função reprodutiva para
naturalizar as diferenças que instauram os gêneros, abrindo a possibilidade de se
afirmar que, em última instância, há uma realidade dada pela natureza. Porém, os
atos performativos possuem força suficiente para a constituição e manutenção
dessas identidades, bem como para instituir a assimetria entre elas. A força do
discurso garante a perpetuação dessa realidade. Portanto, a questão não é negar a
materialidade do corpo feminino e sim compreender como os processos de
constituição e subordinação desse corpo acontecem e, a partir desse momento,
pensar nas rupturas possíveis desse processo a partir de práticas políticas e
jurídicas, que podem servir para manter a subordinação, garantindo as repetições,
mas também podem servir para liberá-lo.
Butler ressaltou que desconstruir não é nem negar nem recusar o uso do
termo corpo. Da mesma forma que a questão apresentada sobre o sujeito, apontálo como produto discursivo permite a continuidade do uso, porém abrindo sempre
as portas do uso subversivo e deslocá-lo do lugar em que ele foi mero instrumento
do poder opressivo52. Ao longo da maior parte de seus artigos sobre teoria
feminista a autora fez questão de afirmar sempre que colocar um conceito em
xeque ou um pressuposto em questão seria a possibilidade de libertá-lo de um
lugar inacessível, tirando-o da metafísica, para que pudesse atender a outros
objetivos políticos e tal fato também aconteceria com o corpo.
Para ilustrar a argumentação e o quanto a sua teoria não inviabiliza o
reconhecimento das mais variadas formas de violência, especificamente a física, é
importante retomar um exemplo dado pela própria Butler ao narrar a ocorrência
de um estupro realizado por uma gangue em New Bedford, Massachusetts,
analisando a estratégia argumentativa do advogado de defesa do grupo que
cometeu o crime53. O objetivo da autora foi demonstrar como todo o processo,
52
BUTLER, Judith. Contingent foudations, p. 51. In BENHABIB, Seyla. Feminist constentios: a
philosophical exchange, pp. 35 – 57.
53
Esse exemplo é retirado do seguinte texto, em que há uma análise exaustiva do caso: BUTLER,
Judith. Contingent foudations, p. 51. In BENHABIB, Seyla. Feminist constentios: a philosophical
exchange, pp. 35 – 57.
61
cujo ápice era a violência física, era violento. Iniciando pelas próprias restrições
legais que determinam o que pode e o que não pode ser considerado estupro, sua
preocupação foi demonstrar que a violência já opera nesse momento, regulando
aquilo que pode ou não pode ser considerado como efeito da violência, o que
qualificaria uma conduta como configurando o estupro e o que seria desprezado
como violência.
No entanto, esse momento pode ser menos violento se a norma que
configura o crime de estupro, conforme o exemplo do caso, decorrer de um
procedimento democrático, afinal, ao mesmo tempo em que a norma engessa as
ações e provoca uma violência em si mesma ao determinar o que pode ou não ser
considerado o tal crime, ela é necessária em função de princípios como legalidade
e anterioridade, cujas importâncias já foram esclarecidas anteriormente. Talvez
isso seja mais fácil de ser compreendido – ou seja mais facilmente aceito, ou
possua a aparência de inexorabilidade – por aqueles que possuem formação no
Direito, mas para outros já denota uma violência.
O segundo momento foi dedicado à dissecação seguinte pergunta
elaborada pela defesa ao interrogar a vítima do crime: “se você está vivendo com
um homem, o que você está fazendo correndo pelas ruas sendo estuprada?”54. Os
termos “correndo pelas ruas” e “sendo estuprada” foram tratados pela autora como
expressões que entram em colisão. É de fato inviável se pensar nessa hipótese
literalmente, em que as duas ações, correndo e sendo estupradas, ocorrem
conjuntamente. A expressão em inglês “running around” foi, por isso,
complementada pela autora com “looking to get”, ou “procurando por” ser
estuprada, com o que ela chamou de uma passagem escondida para que o sentido
da pergunta pudesse ser alcançado.
A conclusão que pode ser extraída da pergunta do advogado de defesa é
que o mundo do qual ela fazia parte seria unicamente o do lar, ao lado de seu
marido, no qual ela seria, portanto, uma propriedade privada dele. Na medida em
que ela se atreveu sair às ruas, ela se colocou aberta para a temporada de caça, nos
termos da autora, pois esse é o caráter que as ruas dão às mulheres. E a
interpretação ainda avança no sentido de afirmar que se ela estava procurando por
54
“If your’re living with a man, what are you doing running around the streets getting raped?”
BUTLER, Judith. Contingent foudations, p. 52. In BENHABIB, Seyla. Feminist constentios: a
philosophical exchange, pp. 35 – 57.
62
ser estuprada, ela pretendia virar propriedade privada de outro homem, como se
esse fosse o desejo e a busca dela. “Ela está correndo, sugerindo que ela está
correndo buscando de baixo de cada pedra por um estuprador para satisfazê-la”55.
Tornar-se propriedade de um homem seria sempre o principal objetivo do
sexo dela e seria viabilizado e articulado pelo seu próprio desejo. Essa apropriação
poderia ser em dois sentidos: o primeiro pelo casamento, no espaço doméstico, e o
segundo pelo estupro, sendo a versão do casamento para as ruas. O estupro
corresponderia ao casamento e as ruas teriam correspondência nas casas. O
estupro, portanto, seria o casamento das mulheres sem casa e, ao mesmo tempo, o
casamento foi equiparado pelo advogado ao estupro no espaço doméstico. Na
argumentação dele, o estupro é uma conseqüência lógica da exposição de seu sexo
e de sua sexualidade fora dos domínios domésticos. O único espaço em que ela
mereceria qualquer tipo de proteção seria o âmbito doméstico, ao lado de seu
marido. “De qualquer forma, a única causa de sua violação é aqui figurada como
seu “sexo” que, dada a sua propensão natural de procurar expropriação, uma vez
deslocada da propriedade privada, naturalmente persegue seu estupro e é assim
responsável por ele”56.
É fácil perceber como a categoria estabelecida pela concepção do sexo
funcionou nesse discurso como um princípio de produção e de regulação ao
mesmo tempo, e foi a causa que deu ensejo ao estupro, consequência do corpo
sexualizado. O sexo é uma categoria que não serviu somente como uma
representação, mas como uma forma de produção e inteligibilidade da situação,
que auxiliou na suposta racionalização do crime feita pelo advogado após a
ocorrência do episódio sobre o comportamento inadequado da vítima, responsável
em última instância pelo episódio sofrido por ela própria. E o dado relevante é que
os próprios termos utilizados pelo advogado para explicar a violência ocorrida
constituem também uma forma de violência, que será mais bem explicada no
desenvolvimento da concepção das ofensas.
55
“She is running around, suggesting that she is running around looking under every rock for a
rapist to satisfy her”. BUTLER, Judith. Contingent foudations, p. 53. In BENHABIB, Seyla.
Feminist constentios: a philosophical exchange, pp. 35 – 57.
56
“In any case, th single cause of her violation is here figured as her “sex” which, given its natural
propensity to seek expropriation, once dislocated from domestic propriety, naturally pursues its
rape and is thus responsible for it”. BUTLER, Judith. Contingent foudations, p. 53. In
BENHABIB, Seyla. Feminist constentios: a philosophical exchange, pp. 35 – 57.
63
1.3
A leitura de Butler sobre Austin na análise dos impactos das ofensas
sobre as minorias.
O momento anterior teve o objetivo de apresentar como os atos
performativos são constituintes dos corpos, servindo para instaurar as identidades
e garantir a perpetuação delas, porém com uma aparente referência a um processo
que se remete à natureza a partir das práticas de repetição. Nesse tópico o que se
pretende é demonstrar uma especificidade entre os atos de fala, as ofensas, e como
elas também constituem e moldam os corpos. A linguagem pode nos ofender
justamente por sermos seres lingüísticos, por isso se diz que as palavras ofendem,
em uma combinação entre os vocabulários linguístico e o físico. De acordo com
Butler “o uso de um termo como ‘ofensa’ sugere que a linguagem pode atuar em
caminhos paralelos aos da dor física e das lesões”57, o que significa que são
ofensas em si mesmas, que podem ser somadas às agressões físicas. Ser chamado
por um nome é uma das condições de constituição do sujeito pela linguagem e,
por isso, é também uma das primeiras formas de ofensa linguística que é
aprendida.
A vulnerabilidade linguística está atrelada ao fato de sermos seres
linguísticos e ao poder que o nome exerce, pois o ato de nomear alguém já é de
imposição. O nome é dado, atribuído por alguém a outro. Algumas ofensas
constituem justamente nesse processo dar nomes ou apelidos, há as que se apóiam
em “descrições”, com todos os problemas anteriormente levantados sobre esse
tema e há ainda aquelas que se constituem até mesmo no próprio silêncio, mas
todas sempre se utilizam do processo do ato de nomear. Isso porque esse ato é
unilateral, em que se tem um que atribui o nome e outro que tem o nome
atribuído. O interessante é observar que aquele que atribui o nome também já teve
o seu nome atribuído, o sujeito do ato de fala que é nomeado posteriormente é
aquele que nomeará os demais.
Em regra, esse processo é associado com o ato de atribuir nome próprio às
pessoas, mas não necessariamente ocorrerá sempre nesse sentido, e um desses
exemplos é a ofensa. Dessa forma, o nome inaugura e mantém a existência
57
“The use of a term such as ‘wound’ suggests that language can act in ways that parallel the
infliction of physical pain and injury”. BUTLER, Judith. Excitable speech. A politics of the
performative, p. 4.
64
linguística, ainda que seja um processo arbitrário o ato de dar nome próprio.
Mesmo uma ofensa tem essa capacidade de inaugurar uma forma de existência,
uma singularidade no tempo de no espaço. Na medida em que alguém é nomeado,
essa possibilidade se torna permanente, pois ao sujeito falante sempre estará
aberta para ser nomeado inúmeras vezes, sendo isso uma condição constante desse
sujeito. Nesse sentido, o sujeito está posicionado entre esses vetores de poder que
o atravessam. Ele é fundado pelos demais, tendo que ser uma espécie de endereço
para conseguir ser, se constituir e funda aos demais. Seu poder se fundamenta a
partir desses dois vetores, pois ele é fruto da estrutura do endereçamento e da
vulnerabilidade linguística e, ao mesmo tempo, do exercício da linguagem, mas a
capacidade de endereçar decorre de ter sido endereçado. Os sujeitos não poderiam
ser quem eles são sem esses processos linguísticos.
A instauração da identidade está inserida nesse sistema, não sendo causa
dele. Para esclarecer a forma de sua produção nesses termos, Butler deu o
exemplo de alguém que é interpelado na rua, chamado por um determinado nome.
Esse alguém poderia tentar esclarecer que quem chama cometeu um erro, pois
aquele não é seu nome. Passado esse instante, seria o caso de se pensar sobre o
que poderia acontecer se esse nome continuasse a aparecer, a ser imposto a esse
sujeito, delimitando todos os seus espaços, as suas possibilidades e moldando as
posições que essa pessoa poderia atingir na sociedade58. Esse não seria o
mecanismo pelo qual as identidades atuariam, constituindo o binário de gênero e
limitando as esferas de atuação de homens e mulheres, subordinando-as
socialmente?
A interpelação continuou produzindo efeitos, ignorando os protestos que
esse sujeito realizou ao responder que ele não seria aquele chamado pelo nome. O
discurso é, portanto, constitutivo. A interpelação não tem como sua marca própria
a descrição, ela é inaugurativa, pois ela introduz uma determinada realidade, em
vez de simplesmente descrevê-la. Por esse motivo, a interpelação não pode ser
avaliada a partir dos conceitos de verdadeiro e falso, sua função primeira não é
descritiva e sim estabelecer alguém em uma posição de sujeição, colocando um
contorno social ao seu redor. A identidade é instituída por esse aparato, não sendo
anterior a ele. Um nome tem a tendência de fixar, congelar e fazer referência a
58
BUTLER, Judith. Excitable speech. A politics of the performative, p. 33.
65
uma essência, delimitando alguém e o complexo de relações de força que
convergem para um lugar determinam uma situação. O nome que é dado a esse
complexo segundo a autora é poder, um nome que não deixa de substituir essa
complexidade, com todos os problemas apresentados no processo de nomeação59.
O poder tem como mecanismo de atuação a dissimulação, ele sempre se disfarça
de algo diferente, na medida em que ele é uma forma de movimento.
A força de um nome depende também de uma espécie de repetição que
está ligada ao trauma, que não significa somente ser relembrado, mas sim ser
revivido através da substituição do evento traumático vivido pela linguagem. O
trauma social vivido tem a forma não de algo que se repete de forma mecânica,
mas de um processo de subjugação que está em permanente continuidade. Não há
mecanismos, por exemplo, de se fazer referência ao discurso de ódio racial ou a
discurso que subjugue alguém por sua sexualidade sem que não sejam invocados
os traumas da sociedade brasileira, profundamente marcada pelo racismo e pelo
patriarcado que a constituíram.
A questão é que a ofensa linguística não diz respeito somente a palavras
que são endereçadas a alguém para ofender, mas a algo anterior, como o próprio
modo pelo qual a palavra é dirigida, interpelando e constituindo um sujeito. Cabe
esclarecer que Butler não vislumbra a possibilidade de se utilizar esse mecanismo
constituinte dos sujeitos instituído pela ofensa e, em última instância, pelo
discurso de ódio para as questões de gênero, sendo utilizadas pela autora
especificamente para tratar de discriminações referentes à raça e aos
homossexuais. Porém, o seu argumento que inviabilizaria a utilização dessa teoria
por feministas é facilmente desconstruído a partir de sua própria obra, bem como
da retomada de concepção de poder de Foucault que permeia o discurso da autora
e, dessa forma, o problema poderá ser ultrapassado com tranquilidade em
momento posterior.
Retomando a concepção de Austin sobre atos de fala, para se conhecer o
que garante a força deles ou que instaura a performatividade, é fundamental se
observar a situação ou o contexto no qual o discurso está inserido. Porém, Austin
reconheceu que perceber esse contexto muitas vezes não é uma tarefa simples,
uma vez que as convenções linguísticas e os rituais que as sustentam em regra
59
BUTLER, Judith. Excitable speech. A politics of the performative, p. 35.
66
ultrapassam o momento em que o proferimento é realizado. Não seria fácil
perceber, dessa forma, a totalidade da situação, já que ela excede necessariamente
o momento em si em que a sentença é proferida. Por esse motivo, para avaliar e
julgar os efeitos dos atos performativos não é suficiente a tentativa de achar o
contexto adequado do ato de fala, aliás, a própria situação do discurso não é
simples de ser identificada, pois é difícil partir do pressuposto de que sempre será
possível delimitar as fronteiras temporais e espaciais dos discursos60.
Essa impossibilidade de se conhecer completamente o contexto do ato de
fala acaba sendo mais grave nos casos das ofensas e para aqueles cujas ofensas
são endereçadas, nas palavras de Butler, aquele que é ofendido acaba perdendo o
chão, a ofensa pode provocar uma desorientação como um de seus efeitos. O
momento da ofensa é também um momento em que o lugar daquele alvo da
ofensa é estilhaçado, “é precisamente a volatilidade do lugar de alguém dentro da
comunidade dos falantes; uma pessoa pode ser ‘posta em seu lugar’ por tal
discurso, mas esse lugar pode ser lugar algum”61. Esse procedimento que coloca
“alguém em seu devido lugar” é conhecido pelos grupos minoritários, inclusive no
que diz respeito ao gênero, desde o processo de constituição dessas identidades,
que já são instituídas a partir da exclusão. O momento da ofensa é aquele em que
essas minorias são lembradas dos lugares nos quais elas devem estar restritas, ao
mesmo tempo em que esses lugares são constituídos e reafirmados, caso, por
exemplo, as mulheres se esqueçam de que “lugar de mulher é na cozinha ou no
tanque” e “não na direção de um automóvel”.
60
BUTLER, Judith. Excitable speech. A politics of the performative, pp. 3-4. Nesse sentido, por
exemplo, as ofensas racistas, que possuem um contexto imediato nos quais estão inseridas, mas
que somente são possíveis ou viabilizadas em virtude do histórico de subjugação vivido pelos
negros no país e que, muitas vezes, não é identificado, ou pelo menos demorou a ser em virtude de
um mito de democracia racial – estratégia argumentativa que serviu para a manutenção e
perpetuação da condição dos negros no Brasil, nas circunstâncias mais próximas de uma ofensa
específica. O mesmo ocorre nas ofensas sexistas, aquelas que reproduzem a superioridade de um
gênero sobre o outro, que são ainda mais difíceis de serem reconhecidas por ser um tipo de
dominação mais difuso, e por isso mais complicado de ser identificado como ofensa. Podem ser
citados para ilustrar exemplos banais no trânsito, como frases “tinha que ser mulher” ou “mulher
no volante perigo constante”, como se as mulheres fossem dotadas de uma inaptidão natural para a
direção de um carro, que aliás, está no imaginário na nossa cultura conectado com o poder,
autonomia, independência, etc. Definitivamente, não seriam coisas de mulher ou que uma mulher
deveria desejar. A misoginia não é percebida nesses casos, tratados como eventuais brincadeiras
inocentes ou então como algo que realmente é mero fruto de uma inabilidade do gênero, afinal,
quem pode negar a existência do fato do corpo?
61
“is precisely the volatility of one’s place, within the community of speakers; one can be ‘put in
one’s place’ by such speech, but such a place may be no place”. BUTLER, Judith. Excitable
speech. A politics of the performative, p 4.
67
Talvez as ofensas sejam uma das formas de atos de fala que mais
esclareçam o que significa a possibilidade de palavras fazerem coisas, ou melhor,
de coisas serem feitas ao se dizer algo, deixando o caráter performativo da
linguagem desnudado, uma vez que a ofensa não somente nomeia algo, mas
também ofende ao mesmo tempo, ela não descreve uma ação, ela é a própria ação
de ofender. A própria ameaça de violência pode demonstrar esse procedimento. A
ameaça não é a ação que ela porta, por exemplo, a ameaça de morte não é o
próprio homicídio, mas é um ato próprio, um ato de fala que não serve somente
para anunciar o ato que está por vir, mas que registra também certa força na
linguagem. A ameaça deixa implícito que aquilo que foi dito pode se tornar aquilo
que o corpo irá fazer, mas o próprio ato de falar, ou de dizer a ameaça já é um ato
do corpo, afinal, um ato de fala é um ato corporal.
Discurso e corpo não são pensados separadamente. A ameaça passa a
existir justamente pelo ato que o corpo realiza ao dizer o ato. A ameaça promete
um ato do corpo e já é um ato do corpo, que tem o objetivo de desenhar os atos
seguintes. Apesar de não serem iguais, ambos são atos do corpo e o sentido da
ameaça somente é possível de ser atingido porque representa antecipadamente
outro ato. Ela inaugura uma temporalidade organizada a partir do ato ameaçado de
ser realizado. A prova de que são dois atos é o fato de a falha na concretização da
ação ameaçada não descaracteriza o ato de fala da ameaça, ou seja, a ameaça de
uma violência não deixa de existir porque a violência em si não ocorreu. A
ameaça produziu efeito, gerando o medo.
Se a existência social do corpo torna-se possível primeiramente pela
interpelação da linguagem, seria o caso de se pensar nas consequências que as
ofensas podem produzir no corpo. Ser chamado por um nome é algo além de ser
reconhecido por aquilo que alguém é, na afirmação de sua condição de mulher ou
de negro, pois é o mecanismo pelo qual o reconhecimento da existência é
viabilizado. A ofensa pode compor significativamente boa parte dessa existência
linguística, especialmente ao se tratar de grupos minoritários. O seu papel é
ambivalente, já que ela instaura a existência, a partir dela podem ser instituídos
também novos usos da linguagem que descaracterizem a ofensa.
Nesses termos, além de a linguagem constituir e sustentar o corpo, ela
pode destruí-lo a partir da ofensa. É um processo a princípio paradoxal, mas
interessante de ser observado. Ser chamado por um nome pode significar uma
68
forma de aviltamento de alguém, porém, é a partir desse momento que muitas
vezes se tem a possibilidade de existência. No momento em que alguém é
chamado por algum nome, esse alguém é introduzido em uma vida temporal da
linguagem. A ofensa pode marcar o corpo, instaurar doenças ou paralisar, mas
pode também gerar uma resposta desse corpo que se constituiu inclusive pela
ofensa, sendo um movimento imprevisível, pode-se ter a partir desse momento um
exercício de uma agência que o ofensor de início pretendia negá-la ao ofendido.
Para ilustrar esse processo, pode-se citar o exemplo de parábola que Butler
importou em sua análise da escritora americana Toni Morrison. Resumidamente,
uma criança prega uma piada cruel em uma mulher cega ao pedir para que ela
descubra se o pássaro que estava em suas mãos se encontrava vivo ou morto. A
mulher respondeu que não sabia, mas que o que ela sabia era que o pássaro se
encontrava nas mãos da criança62. A criança colocou uma pergunta cruel não por
causa da morte do pássaro, mas porque o uso da linguagem para tentar forçar a
escolha da mulher cega já significava uma restrição do uso da linguagem, uma
inviabilização, na medida em que ela não poderia fazer essa avaliação. O discurso
utilizado pela criança pretendia humilhar a mulher cega e também transferir a
violência cometida contra o pássaro para as mãos delas. Porém, a resposta da
mulher foi no sentido de devolver a responsabilidade do ato para a criança,
afirmando que estava nas mãos da própria criança e produzindo um novo
agenciamento, apesar denegado a ela com a elaboração da pergunta. Nesse
sentido:
Nós fazemos coisas com a linguagem, produzimos efeitos com a linguagem, e
nós fazemos coisas à linguagem, mas linguagem também é aquilo que nós
fazemos. Linguagem é um nome para aquilo que fazemos: ambos “o que”
fazemos (o nome para a ação que nós caracteristicamente executamos) e aquilo
que produzimos como efeito, o ato e suas consequências63.
Esse exemplo demonstra que o ato de fala, especialmente a ofensa, pode
ser devolvido para o falante em outros termos, situação na qual ele acaba sendo
utilizado em sentido contrário aos propósitos originais de ofender, revertendo os
efeitos dele decorrentes. A capacidade de mudanças desses termos também denota
62
BUTLER, Judith. Excitable speech. A politics of the performative, p. 6.
“We do things with language, produce effects with language, and we do things to language, but
language is also the thing that we do. Language is a name for our doing: both ‘what we do (the
name for the action that we characteristically perform) and that which we effect, the act and its
consequences. BUTLER, Judith. Excitable speech. A politics of the performative, p. 8.
63
69
a performatividade do discurso, que não está reduzida a uma série de repetições
discretas de atos de fala, mas envolve também um ritual de ressignificação, em
que origem e fim não se encontram limitados, pois o ato não se restringe a um
acontecimento momentâneo. A possibilidade de que esse ato de fala consiga dar
outro significado ao contexto depende da diferença entre o contexto original ou a
intenção que foi investida no proferimento original e o efeito que decorre dela.
O espaço que separa o ato de fala e o seu provável efeito é a chave para a
ressignificação, ainda que seja um espaço muito curto, por ser esse o ponto em
que se inicia uma teoria da agência linguística, que pode ser inclusive uma
alternativa mais radical à tradicional busca pela saída jurídica, especialmente
porque muitas vezes o Direito auxilia na garantia da perpetuação das ofensas,
dependendo de quem o produz e como ele é produzido64. O processo de repetição
ao longo do tempo traz com ele a viabilidade de ressignificação dos proferimentos
e auxilia a perda da capacidade de ofender de um termo, quando ele é retomado de
maneira afirmativa, nas palavras de Butler.
Porém, para demonstrar a importância do Direito, cabe-se pensar sobre
termos e ofensas que são muitos mais diretos em sua pretensão ofensiva. Na
verdade, o exemplo dado pela autora de que o termo queer, originalmente
utilizado para ofender, acabou sendo abraçado pelo movimento LGBT e assumiu
outro significado a partir desse momento. Talvez seja mais complicado pensar em
como determinadas afirmações racistas ou sexistas, como “tinha que ser mulher”
podem ter seus sentidos deslocados. O Direito pode ingressar em dois sentidos: ou
considerando esses tipos de afirmação como injúria, por exemplo, pois o elemento
mulher é usado com o intuito de ofender, ou então autorizando o uso dessa
expressão, ou de expressões racistas, ao desconsiderá-las como ofensa,
dependendo de por quem o Direito é produzido, para que e por quem ele é
aplicado.
64
É importante ressaltar que Butler não aposta nesse momento na saída pelo Direito, somente
afirma que essa possibilidade de ressignificação pode ser uma alternativa à busca incessante pelos
remédios jurídicos. BUTLER, Judith. Excitable speech. A politics of the performative, p. 15.
Porém, para aqueles que se dedicam ao Direito, mais facilmente aposta nele e percebe que o
problema não está no Direito em si mesmo, pois isso implicaria em afirmar uma concepção quase
que jusnaturalista do Direito, em que ele teria um conteúdo fixo, previamente determinado e
impossível de ser revisto. O Direito é mais uma arma, e não o grande Mal a ser combatido, que
serve para inúmeras coisas, dependendo de que mãos ele se encontra e como é utilizado. O seu
conteúdo é estabelecido a partir de disputas, como será demonstrado no capítulo que tratará da
Assembleia Constituinte.
70
O Direito, portanto, pode ser um instrumento a auxiliar no deslocamento
do significado, afinal também é constituído pela linguagem, e aqueles envolvidos
diretamente com o Direito, sua produção e sua aplicação, fazem uso
ininterruptamente do próprio sentido performativo da linguagem, ou na
manutenção de uma situação, auxiliando nas repetições, nos ritos, ou na
renovação dos processos. O importante é que o argumento central da autora, de
que o discurso está sempre fora de controle, não cabendo ao falante determinar
como ele será recebido, é a possibilidade de abertura, o espaço entre o
proferimento e seus efeitos, que pode levar a consequências diferentes da que ele
pensava originalmente, como intuito da humilhação. Pode ser diferente ou pelo
fato de o ouvinte não se sentir humilhado e devolver uma resposta ou até mesmo
pela responsabilização de sua ação. Em ambos os casos, estaria aberta, inclusive, a
possibilidade de a própria humilhação ser devolvida a ele, seja pela própria
responsabilização, seja pela resposta dos destinatários da ofensa.
Esse determinado tipo de discurso apresentado pela criança, ou discurso de
ódio, é aquele constitui o sujeito em um lugar de subordinação em relação às
identidades constituídas dominantes. A questão para Butler seria se pensar sobre o
que garantiria a força ilocucionária do discurso de ódio, e se essa espécie de
discurso seria sempre feliz ou se existiriam falhas que fizessem com que o seu
poder constitutivo pudesse ser diminuído, gerando infelicidades. Parte dessa
possibilidade de falha a autora entendeu ser em função de quem proferiu o ato,
associando a força a uma espécie de autoridade, pois se alguém proferiu um ato e
não tem competência para tal ato, ele poderia ter pouca ou nenhuma força
ilocucionária, pois para ela o ato feliz seria aquele em que alguém não somente
realiza a performance como também alguns efeitos decorrem dessa performance,
não sendo próprio do ato linguístico a produção de efeitos, estes últimos seriam
relacionados à felicidade do ato65.
65
BUTLER, Judith. Excitable speech. A politics of the performative, PP. 16-17. É preciso
relembrar a concepção de atos ilocucionários e perlocucionários que ela traz de Austin por serem
termos inclusive já utilizados ao longo do texto, os atos ilocucionários são aqueles nos quais ao se
dizer alguma coisa, alguém está ao mesmo tempo fazendo algo. Eles produzem efeitos apoiados
em convenções linguísticas e sociais. Os atos perlocucionários são os proferimentos que iniciam
uma série de consequências, mas o dizer e suas consequências são temporalmente distintos e elas
são diferentes do ato de fala, Os ilocucionários procedem por convenção e os perlocucionários
pelas consequências. Os primeiros produzem seus efeitos sem que haja um lapso temporal, pois o
dizer já é o fazer, enquanto os segundos não. As diferenças entre eles nem sempre são facilmente
percebidas a prática, havendo discussões sobre o que seria mais interessante, abordar as ofensas
como perlocucionárias ou ilocucionárias. Butler entendeu que seria estrategicamente mais
71
O referido problema que Butler vislumbrou na importação que as
feministas realizaram das ofensas e do discurso de ódio, em última instância, não
é pertinente. Talvez Butler tenha resistido a essa transposição da teoria em virtude
dela ter sido utilizada para combater a pornografia nos Estados Unidos,
reivindicando uma política de Estado para essa proibição66. De acordo com
Butler, como a pornografia não decorre diretamente do Estado, não se pode
pleitear que ele atue de forma a proibi-la. De fato, a proibição nessas hipóteses é
de difícil justificação, pois esbarra em aspectos de moralidade que são subjetivas.
Porém, a abordagem de Butler também parece não ser acertada, podendo o seu
argumento ser reformulado a partir de sua própria teoria. Butler não poderia se
satisfazer com essa concepção fechada de poder e de instituições, em virtude de
sua teoria ser desenvolvida a partir de Foucault, por um lado, e por outro lado a
partir de Austin. Não é porque não decorre do Estado ou de alguma instituição
formal que um determinado discurso não possui força ilocucionária e, em
decorrência disso, não pode ser considerado um discurso de ódio. Como já foi
visto no início do item, existem diversas formas de ofensas que constituem as
mulheres, colocando-as em relações assimétricas, com o intuito de humilhar.
Apesar de Butler argumentar que não pode haver essa importação pelas
feministas, na verdade, parece que seria mais adequado dentro da obra de tal
autora entender que a sua concepção de ofensas pode ser transportada para as
interessante se pensar as ofensas como, em regra, perlocucionárias, pois percebeu que isso seria
mais fácil para ressignificar o discurso, na medida em que haveria um espaço entre o discurso e
sua conseqüência. Porém, a autora parece não esclarecer se todas as ofensas deveriam ser pensadas
dessa forma ou se isso seria uma forma de se pensar a pornografia, fazendo uma crítica a algumas
vertentes do feminismo americano. Outras feministas, como Mackinnon, fizeram referência a
Austin defendendo que as representações pornográficas são performativas, pois não retratam uma
realidade, mas constituem certos tipos de condutas, sendo discursos de ódio, o que não seria
problemático. A questão aparentemente apontada por Butler como problemática seria pelo motivo
dela ter dado um tom ilocucionário e não perlocucionário. No primeiro caso a possibilidade de
ruptura e ressignificação do termo é praticamente inviável, pois não há distância entre o discurso e
o efeito. Se o entendimento é mais aproximado ao perlocucionário, essa distância é possível e aí
sim o contra-discurso se torna viabilizado. Butler fez essa crítica pertinente, mas ao mesmo tempo
ela própria não conseguiu estabelecer um critério que diferencie as diversas ofensas nesses dois
níveis. Ela não soube esclarecer porque uma seria ilocucionária e outra perlocucionária e o motivo
pelo qual as feministas não poderiam dizer que há um discurso de ódio contra a mulher no caso da
pornografia. Ela entendeu que tal afirmação seria correta caso o objeto de análise do feminismo
fosse o esforço conservador atual para se rever a permissão do aborto. Isso sim seria um discurso
de ódio contra a mulher. Porém, ela não explicou o motivo pelo qual um seria e outro não. Sobre a
crítica BUTLER, Judith. Excitable speech. A politics of the performative, p. 39.
66
Uma das autoras americanas que se empenharam nessa luta foi Catharine MacKinnon. Seu
entendimento em relação à pornografia pode ser encontrado em MACKINNON, Catharine.
Toward a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989. PP. 195-214.
72
discussões de gênero e mulher, ainda que não seja adequado entender que disso
deveria decorrer uma atuação do Estado para impedir a pornografia.
As suas raízes em Austin, na transposição dos atos performativos para a
construção do gênero, e Foucalt garantem uma concepção mais ampla de
instituições e de poder que atribuem força ilocucionária a atos de fala que não
necessariamente são proferidos por juízes ou padres. Ela não se cansou em
demonstrar como que os corpos e a própria ideia de sexo são constituídas
ininterruptamente por práticas sociais que constroem ao mesmo tempo em que
fundamentam e tentam engessar esse processo, normalizando-o e dando o aspecto
natural. Esse processo não ocorre somente em virtude de instituições formais, mas
sim a partir de uma concepção de poder que “vem de baixo”67, citando uma
referência bastante utilizada pela autora.
Na origem das relações de poder não há uma oposição binária entre
dominadores e dominados, que começa no alto e se repercute para baixo até
atingir as raízes da sociedade. Na verdade a direção é oposta, há inúmeras relações
de força que se originam dentro dos mais variados grupos sociais, das famílias e
que perpassam todo o corpo social e que se ligam e se apóiam, dando
homogeneidade às relações. As dominações de larga escala decorrem delas e são
sustentadas por elas, ou seja, o poder originariamente não é institucional, muito
menos decorre de uma instituição formal, ao contrário, ele se instaura por práticas
e hábitos que acabam gerando atos com diferentes graus de força e que podem
posteriormente ser institucionalizados. Não é por outro motivo que Butler, ao
longo de diversos textos seus e, especialmente ao longo de sua principal obra
sobre teoria feminista, Gender trouble, faça inúmeras referência à concepção de
poder apresentada por Foucault. Portanto, ela jamais poderia cogitar inviabilizar a
utilização da teoria do discurso de ódio por parte das feministas, ainda que
considere estrategicamente equivocado abordar a questão pelo viés da
pornografia, o que não será discutido no momento.
A autora também ressaltou que, com as perguntas sobre quem ou o que
garantiria a força ilocucionária do discurso de ódio e se ele seria sempre feliz, a
sua pretensão não seria minimizar as dores que se originaram em virtude desse
discurso. Na verdade, a sua constante preocupação sempre foi no sentido de se
67
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber, p. 90.
73
deixar alguma possibilidade de saída, a partir da constatação de que os atos
performativos podem ser infelizes e isso implicar em ressignificação de termos e
na retomada das resistências e produção de novos agenciamentos, um ato de fala
continua sendo um ato de fala ainda que tenha sido infeliz68. A autoridade do ato
de fala na obra de Butler é dada por práticas reiteradas, por repetições e por
hábitos sociais que podem se institucionalizar de forma bastante forte, como no
caso de uma legislação que reflita aspectos sexistas de uma sociedade, ou então
que vão permear as instituições informalmente, caso da misoginia ou do racismo
que são estruturantes e constituintes dos sujeitos na sociedade brasileira, que estão
proibidos por lei, mas que se manifestam tanto nas práticas do cotidiano quanto
68
Sua preocupação nesse texto sempre é no sentido de se pensar formas de agência e resistência
sem que elas sejam centralizadas no Estado. Ela não consegue demonstrar como isso é possível,
sendo a referência única dela nessa tentativa o movimento queer, do qual ela trata em sua
introdução, que deslocou o sentido da expressão espontaneamente. Ocorre que a autora se
demonstrou insatisfeita com uma decisão do Judiciário que desconsiderou como discurso de ódio a
queima de uma cruz em frente à casa de uma família negra, definindo isso como liberdade de
manifestação. Nesse sentido, ela deixa de apostar no Estado e entende ser ilegítima a possibilidade
de instituições estatais de definirem o que é e o que não é discurso de ódio. Ao mesmo tempo em
que ela defendeu que caberia ao movimento negro produzir essa definição, ela entende que o
movimento feminista não pode se apropriar desse tipo de discussão, o que é contraditório. Afinal,
se cabe ao movimento negro definir quais são os discursos de ódio, na medida em que são
constituídos e afetados por esse discurso, por que não seria possível o mesmo tipo de raciocínio
para o movimento feminista? Talvez a crítica ao movimento feminista seja cabível a partir do
momento em que ele optou por pressionar o Estado como a saída para reconhecer que há o
discurso de ódio em relação à mulher, se ao contrário do que Butler entende, Estado e Direito não
são um bloqueio por si mesmos e podem ser retomados também em outros termos, a partir dos
mesmos processos de ressignificação que a autora tanto defende, eles também estão longe de
serem o suficiente para os processos de liberação. Para citar um exemplo, retoma-se aqui a questão
da violência doméstica contra a mulher, agora a partir de outra lente. Não é suficiente a alteração
da lei que trata do tema para que o problema seja resolvido, mas ao mesmo tempo, o Estado não
pode continuar ajudando a perpetuar a cultura da violência doméstica em virtude da inadequação
legislativa. Portanto, alterar a lei é um passo relevante, porém insuficiente. A partir da alteração,
cabe aos movimentos vigiar a sua implementação, acompanhando o comportamento do Poder
Judiciário e na sua interpretação da lei, por exemplo, investigando a adequação do tratamento dado
às mulheres vítimas de violência, tanto na esfera policial, passando pela assistência médica e
psicológica, até o tratamento dispensado à vítima ao longo do processo. Também cabe o
acompanhamento das políticas públicas que deveriam ser implementadas para prevenir e superar o
problema e, na medida em que for possível a esses movimentos, a instauração de lugares para
recepcionar e acompanhar as mulheres, bem como capacitá-las, além das medidas esperadas por
parte do Estado. Cabe ressaltar que o termo “na medida em que for possível” diz respeito ao fato
de se precisar de recursos financeiros para a implementação dessas políticas e, por isso, muitas
vezes precisam sim passar pelo Estado, pelo menos por enquanto. Novamente, o que é inaceitável
é utilizar o argumento de que “já que a mulher não existe”, “já que o Estado e o Direito na verdade
oprimem” para inviabilizar a própria integridade física dessas mulheres, na medida em que os
movimentos não poderiam sequer se apropriar dessas estruturas garantindo outro uso a elas. Nesse
caso, parece que os argumentos que tanto garantem que o Estado e/ou o Direito oprimem são mais
opressores para as minorias, e no caso, para as mulheres do que o próprio aparato jurídico e estatal.
74
nas decisões daqueles que representam as instituições, ainda que travestidas de
posições pessoais69.
Considerando que todos os sujeitos são constituídos pelo discurso e
passam a constituir outros a partir do discurso, como seria possível justificar a
responsabilização ou a atribuição dos efeitos das ofensas a alguém, já que em
última instância ninguém individualmente é causa do discurso de ódio? Aquilo
que é proferido como discurso de ódio é parte de um processo ininterrupto de
subjetivação, no qual todos estão inseridos, em que alguns sairão mais subjugados
ou sujeitados e outros menos, o fato é que ambos passaram por ele. Novamente, a
interpelação determina o lugar de alguém, coloca esse alguém em seu devido
69
Interessante o exemplo do juiz Edílson Rumbelsperger Rodrigues, de Sete Lagoas, Minas
Gerais, ao tecer suas considerações sobre a lei Maria da Penha em 12 de fevereiro de 2007: (...) Se,
segundo a própria Constituição Federal, é Deus que nos rege — e graças a Deus por isto — Jesus
está então no centro destes pilares, posto que, pelo mínimo, nove entre dez brasileiros o têm como
Filho Daquele que nos rege. Se isto é verdade, o Evangelho Dele também o é. E se Seu Evangelho
— que por via de conseqüência também nos rege — está inserido num Livro que lhe ratifica a
autoridade, todo esse Livro é, no mínimo, digno de credibilidade — filosófica, religiosa, ética e
hoje inclusive histórica. Esta “Lei Maria da Penha” — como posta ou editada — é portanto de
uma heresia manifesta. Herética porque é anti-ética; herética porque fere a lógica de Deus;
herética porque é inconstitucional e por tudo isso flagrantemente injusta. Ora! A desgraça
humana começou no Éden: por causa da mulher — todos nós sabemos — mas também em
virtude da ingenuidade, da tolice e da fragilidade emocional do homem. (...) Já esta lei diz
que aos homens não é dado o direito de “controlar as ações (e) comportamentos (...)” de sua
mulher (art. 7º, inciso II). Ora! Que o “dominar” não seja um “você deixa?”, mas ao menos
um “o que você acha?”. Isto porque o que parece ser não é o que efetivamente é, não parecia
ser. Por causa da maldade do “bicho” Homem, a Verdade foi então por ele interpretada
segundo as suas maldades e sobreveio o caos, culminando — na relação entre homem e
mulher, que domina o mundo — nesta preconceituosa lei. Mas à parte dela, e como inclusive já
ressaltado, o direito natural, e próprio em cada um destes seres, nos conduz à conclusão bem
diversa. Por isso — e na esteira destes raciocínios — dou-me o direito de ir mais longe, e em
definitivo! O mundo é masculino! A idéia que temos de Deus é masculina! Jesus foi Homem!
Á própria Maria — inobstante a sua santidade, o respeito ao seu sofrimento (que inclusive a
credenciou como “advogada” nossa diante do Tribunal Divino) — Jesus ainda assim a advertiu,
para que também as coisas fossem postas cada uma em seu devido lugar: “que tenho contigo,
mulher!?”. (...) Ora! Para não se ver eventualmente envolvido nas armadilhas desta lei
absurda o homem terá de se manter tolo, mole — no sentido de se ver na contingência de ter
de ceder facilmente às pressões — dependente, longe portanto de ser um homem de verdade,
másculo (contudo gentil), como certamente toda mulher quer que seja o homem que escolheu
amar. (grifo nosso).
Cabe ressaltar que o referido juiz foi condenado no Conselho Nacional de Justiça, que o afastou
por dois anos em virtude de considerar sua sentença discriminatória. Porém, o ministro Marco
Aurélio Mello, ao conceder liminar no Mandado de Segurança 73321, considerou que o juiz não
pode ser punido em virtude de estar amparado pela liberdade de expressão.
Interessante também observar que essa discussão é semelhante à decisão que Butler examina para
argumentar que o movimento negro pode falar em existência de discurso de ódio por parte das
instituições do Estado, enquanto que o feminista não pelo fato da pornografia não ser
institucionalizada. Talvez essa decisão fosse capaz de convencê-la da possibilidade de se ter
discurso de ódio em relação às mulheres. Faz-se referência às mulheres porque no caso dos gays a
autora também reconhece a possibilidade, ao tratar da tentativa de se regulamentar da autodeclaração de homossexualidade entre os militares americanos. BUTLER, Judith. Excitable
speech. A politics of the performative. P 103 e sgs.
75
lugar, seja pela palavra, pela forma como se dirige a alguém, pelo silêncio ou pela
maneira na qual alguém é ignorado ou não é endereçado.
As consequências geradas nesse processo não podem ser atribuídas a um
único indivíduo, na medida em que todos passam por ele, independentemente das
funções ou dos papeis destinados a cada um. Butler entendeu que Austin deu
demasiada importância à figura do sujeito, como se esse sujeito fosse capaz de
controlar completamente seu discurso, ou seja, fosse dotado de uma soberania que
viabilizasse a performance dos atos, esquecendo-se da anterioridade dos discursos
em relação ao sujeito70. Porém, Austin não disse em nenhum momento que o
sujeito teria toda essa possibilidade de controle, o que o autor esclareceu foi que
em virtude de certas posições ocupadas pelos falantes, os seus atos de fala
produziriam efeitos constitutivos, criando e modificando a realidade, mas essa
posição poderia ser a de um juiz proferindo uma sentença ou a autoridade de um
pai sobre filho, ou marido sobre mulher. Além disso, outros exemplos
apresentados entre as ofensas, como “tinha que ser mulher” para uma mulher que
esteja dirigindo, ou “homem não chora” para um menino que esteja chorando,
demonstram a inadequação da concepção institucional formal, pois as ofensas são
diluídas na sociedade, tendo o seu caráter ofensivo fundado em preconceitos
enraizados e possuem a capacidade de se descolar aparentemente de suas origens,
transmitindo um aspecto de respaldo na natureza, como ocorre no caso das
performances de gênero. O sucesso das performances não se apóia na intenção do
sujeito exclusivamente, ao contrário, depende da força acumulada ao longo da
história e nada como uma sociedade profundamente patriarcal em suas origens,
com um histórico de violência contra a mulher, como é o caso do Brasil, para
perpetuar de forma severa as performances de gênero.
Apesar de ser inviável determinar um sujeito capaz de responder por todo
esse procedimento, diante deste, cabem reflexões sobre a linguagem das ofensas
que giram em torno do tipo de linguagem utilizado, em como essa linguagem
pode afetar os demais e se o discurso de ódio que é feito por alguém na verdade
não é produzido por ele, sendo uma simples citação à linguagem que o constituiu,
como seria viável responsabilizar um sujeito por ele, na medida em que a
linguagem não se reduz a uma forma de expressão. Ao mesmo tempo em que
70
BUTLER, Judith. Excitable speech. A politics of the performative, pp. 48-49.
76
ficou óbvia a inviabilidade de se atribuir o discurso de ódio a um único indivíduo,
parece também não fazer sentido não prever consequências para o seu uso, na
medida em que ele possui uma capacidade de destruição do corpo. Butler
entendeu que a responsabilidade do falante não decorre da sua suposta habilidade
em refazer a linguagem, como o agente isolado que merece a culpa, mas pelo fato
dele fazer a citação e revitalizar esse tipo de uso da linguagem. “A
responsabilidade está relacionada com a linguagem enquanto repetição, não como
origem”71, portanto, pode ser atribuída aos que repetem esse tipo de ofensa.
As ofensas em geral e os discursos de ódio especificamente não nascem
com o sujeito, mas são profundamente dependentes dele para se perpetuar, pois
sem indivíduos, ou até mesmo instituições, na medida em que essas forças podem
se tornar formais, para reproduzir esses discursos, eles não conseguem se reiterar.
Butler se demonstrou pessimista na busca pelo Direito para o problema do
discurso de ódio, seja no entendimento de que o Poder Judiciário serviu para
perpetuar esse discurso, e ela atribui à situação dos negros nos Estados Unidos a
esse fator72, seja somente vislumbrando essa possibilidade a partir da utilização da
concepção tradicional de sujeito, que possui o controle do discurso e por isso é
causa da ofensa73.
Sendo assim, pode-se concluir que a autora achou uma solução para o
problema da responsabilização, que seria investir na reprodução do discurso e não
na sua origem, em virtude de impossibilidade de se conhecer precisamente a
segunda, mas pareceu esquecê-la74. O pessimismo jurídico de Butler não a
permite reconhecer que o Poder Judiciário nos Estados Unidos já teve momentos
mais interessantes e progressistas em relação ao auxílio da consagração dos
direitos civis e políticos do que a referência que ela utilizou na análise dos
71
BUTLER, Judith. Excitable speech. A politics of the performative, p. 39.
Esse exemplo será melhor explicado, e combatido com a respectiva referência adiante.
73
BUTLER, Judith. Excitable speech. A politics of the performative, p. 80.
74
Na verdade, conforme esclarecido anteriormente é impossível ter o conhecimento de toda a
situação que antecede e perpassa a ofensa, pois ela é anterior ao ato de fala e continua além dele,
apesar do esforço ser sempre no sentido de tentar conhecê-lo. O racismo no Brasil é anterior à
injúria racista proferida no trânsito, ou no campo de futebol. Sem dúvida, nessa perspectiva é
impossível atribuir a responsabilidade, considerada a partir da causa ou da origem da ofensa, a um
único indivíduo. Porém, o contexto preciso da ofensa envolve determinadas partes, envolve um
falante (ou alguns) e um destinatário (ou muitos), pois alguém diz a ofensa para tentar atingir ao
outro. Nessa perspectiva localizada, o falante pode conseguir ofender o destinatário e vai ser aí sim
uma causa do efeito ofensa nesse destinatário específico, nessa subjetividade. Apesar de todo o
ônus da ofensa não poder ser atribuído a ele, sem dúvida ele pode ser responsabilizado pela
reprodução de um discurso de ódio, ou de um discurso que segrega e hierarquiza, determinando os
destinos das subjetividades de acordo com identidades construídas e falsamente naturalizadas.
72
77
discursos de ódio, como, por exemplo, o histórico caso Brown X Board of
Education, quando o Poder Judiciário foi uma peça importante para por fim à
segregação de negros nas escolas americanas. Isso não significa desmerecer ou
esvaziar as mobilizações de militantes, ao contrário, é só uma constatação de que
as instituições e o Direito podem ser apropriados por esses movimentos e
ressignificados, atuando conjuntamente e facilitando processos de liberação em
vez de atuar em sentido contrário, na perpetuação da segregação e com toda a
força do aparato estatal.
Apresentadas a percepção de Butler sobre como as ofensas são
constitutivas dos sujeitos e algumas ambiguidades dentro da própria teoria da
autora sobre a possibilidade ou não do discurso de ódio ser apropriado pelas
feministas, bem como a possibilidade de se recorrer ao Estado para evitar o
discurso de ódio, a parte final do presente item será dedicada ao breve exame do
caso que fez com que a autora se tornasse reticente em relação às instituições
estatais para compreender as críticas dela e também extrair alternativas de
interpretação do problema aprofundando na ambiguidade dela e em alguns poucos
reconhecimentos de sua parte sobre a adequação da responsabilização.
E por que esse caminho seria relevante? Por um motivo óbvio. Esse é um
trabalho que se apóia na filosofia da linguagem, mas tem pretensões de refletir
sobre possíveis saídas jurídicas para o problema da desigualdade fundada em
estereótipos de gênero, apesar de se ter como ápice do ordenamento jurídico
brasileiro uma constituição bastante generosa em termos de direitos e garantias
fundamentais. Por conta disso, é importante perceber como os discursos sobre
gênero estiveram presentes na constituinte de 1987-1988, e se perpetuam
assegurando a hierarquia nas relações e como o Direito poderia servir para
instituir novos rearranjos linguísticos e sociais.
A Suprema Corte americana no início da década de 1990 diferenciou os
discursos protegidos a aqueles que não poderiam ser tutelados juridicamente pela
primeira emenda, que consagra a liberdade de expressão, a partir do problema do
discurso de ódio. Em uma decisão já havia a consagração de que símbolos como
cruz queimada e a suástica nazista, que todos sabem ou possuem condições de
saber que geram raiva, alarme, ou ressentimento em outros, com base na raça, cor,
credo, religião ou gênero não poderiam ser colocados em lugares públicos e
78
privados, sob pena de responsabilização de quem o fez75. Um adolescente branco
queimou uma cruz na frente da casa de uma família negra e foi condenado pela
Suprema Corte do Estado de Minnesota com base nesse precedente e na definição
trazida no caso Chaplinsky v. New Hampshire, de 1942 de fighting words,
entendendo que a queima da cruz não era um discurso protegido, como queria a
defesa. Porém, a Suprema Corte americana reformou a decisão, entendendo que a
queima da cruz não era um discurso de ódio e sim um ponto de vista tutelado pela
primeira emenda.
Além disso, a maior parte dos componentes da Suprema Corte ainda
considerou inconstitucional a possibilidade da doutrina do discurso de ódio
restringir a liberdade de expressão. Portanto, eles não somente desconsideraram o
discurso de ódio do caso concreto como inviabilizaram qualquer aplicação futura
da teoria do discurso de ódio. De acordo com Butler, a Suprema Corte se
aproveitou do seu poder linguístico institucionalizado para definir o que poderia
ou não ser considerado como um discurso ofensivo a partir desse caso e
inviabilizar novas discussões sobre o tema, o que seria uma forma de violência
discursiva da própria Corte. A Corte ainda conseguiu negar a história racista
americana que produziu uma convenção sobre a queima de cruz pela Ku Klux
Klan que marcou uma violência contra um endereçado. Houve uma inversão na
qual a queima da cruz passou a ser alvo de proteção como liberdade de discurso
promovida pelo Judiciário, em vez de se tutelar a família negra desse tipo de
discurso.
Nesse caso, nem Butler conseguiu defender que o tratamento adequado
para o discurso de ódio é colocar a ênfase na perlocução e não tratá-lo como um
ilocucionário e tentar refazer o sentido da queima da cruz, em uma ressignificação
por parte do movimento negro norte-americano, para desconstruir a força
institucional do Judiciário. Isso comprova o argumento apresentado anteriormente
nesse tópico de que nem sempre a ressignificação pode ser tão facilmente
produzida pelos movimentos minoritários, como foi no caso do termo queer. Na
hipótese da queima da cruz, houve a ressignificação, porém, ela serviu para o
objetivo oposto ao subversivo e com a força ilocucionária da mais alta corte
75
A referência do caso em que ficou consagra essa jurisprudência é R.A.V. v. St. Paul, 112 S. Ct.
2538, 120 L. Ed. 2d 305 (1992). BUTLER, Judith. Excitable speech. A politics of the
performative, p. 52.
79
americana. Talvez não seja adequado falar em um performativo dotado de
soberania nesse caso, em virtude de todas as críticas já apresentadas em relação à
essa concepção de sujeito como aquele que controla o discurso e que produz
efeitos, em regra, desejados, mas sem dúvida, não se deve desconsiderar a força
ilocucionária dessas instituições, no caso, da mais alta corte americana.
Tal raciocínio utilizado para interpretar o comportamento do Judiciário e o
mecanismo pelo qual opera o Direito no caso acima narrado, pode ser também
utilizado para examinar a decisão do juiz de Sete Lagoas, narrada em nota
anterior, bem como a decisão do ministro Marco Aurélio Mello. A primeira
decisão ignora o histórico de violência contra a mulher no Brasil nas relações
domésticas, bem como as lutas em prol de um tratamento adequado para o tema e
a própria condenação na esfera internacional, e atribui à própria mulher a
responsabilidade pelo seu sofrimento e pelo sofrimento do homem, ao citar e
“interpretar” passagens bíblicas que fazem referência à expulsão do Éden, em uma
estratégia argumentativa que se assemelha à utilizada pelo advogado de defesa da
gangue que praticou o estupro, trabalhada por Butler. Sem dúvida a decisão do
juiz singular de Sete Lagoas não tem a relevância da interpretação produzida pela
Suprema Corte americana.
Porém, o ministro Marco Aurélio Mello “supriu” esse déficit de força, ao
rever a decisão do Conselho Nacional de Justiça que afastava o juiz de suas
atividades compulsoriamente por dois anos como punição por tais declarações em
sentença. O ministro do Supremo Tribunal Federal entendeu, em mandado de
segurança impetrado pela Associação dos Magistrados Mineiros, que o juiz não
poderia ser punido por suas opiniões pessoais, chamadas pelo ministro de
“excesso de linguagem” e de “premissas da decisão proferida, com enfoques na
seara das idéias”76. O ministro simplesmente equiparou a violência doméstica à
seara das idéias, negando a concretude da violência e minimamente esquecendo-se
da própria força das decisões judiciais, das definições e entendimentos trazidos
em seu corpo para o ordenamento jurídico brasileiro. A Associação de
Magistrados Brasileiros aplaudiu a decisão, entendendo que o magistrado foi
76
Disponível em http://www.direitolegal.org/tribunais-superiores/min-marco-aurelio-do-stfsuspende-decisao-do-cnj-e-juiz-volta-a-ativa/.
80
ameaçado (!) em sua independência77. Deve-se refletir sobre o significado da
independência no exercício das funções de magistrado. A decisão do Ministro
Marco Aurélio Mello poderia ser interpretada como uma defesa de que essa
independência nas funções do magistrado significa a possibilidade deste se
manifestar de forma preconceituosa, no caso, incitando a violência contra a
mulher ao justificá-la como sendo fruto de seu próprio comportamento, sem
maiores consequências, diferentemente do que acontece com cidadãos que não são
juízes.
Diante dos temas trabalhados no presente capítulo, podem ser tiradas
extraídas conclusões. Austin foi fundamental para desmascarar a pretensão
descritiva da linguagem, até hoje pleiteada, muitas vezes em decisões judiciais
como a do juiz de Sete Lagoas, ao “narrar os fatos” da expulsão do Éden com uma
suposta pretensão de neutralidade, a qual se sabe que não mais faz sentido. A sua
concepção de atos performativos auxiliou Butler a refletir sobre os performativos
de gênero, em que a compreensão da linguagem como constituinte de situações é
levada para a construção dos corpos de forma muito precisa. Ao mesmo tempo,
viabilizou a autora a compreender como as ofensas também fazem parte da
constituição dos sujeitos, na posição de falantes e ouvintes ou endereçados das
ofensas e dos discursos de ódio.
A partir da teoria do discurso de ódio, Butler entendeu se diferenciar de
Austin no que diz respeito ao entendimento sobre o sujeito. Porém, parece que
Austin não previa com tanto entusiasmo uma concepção de sujeito soberano,
reconhecendo a importância das reiterações e dos ritos para a perpetuação da
performatividade, apesar de tender a se apoiar nas instituições para garantir a
força dos atos de fala, entendimento esse que foi corrigido por Searle. Além disso,
Butler pareceu em alguns momentos fazer questão de atrelar as ofensas aos
perlocucionários para que o espaço entre o proferimento da ofensa e a constituição
do ouvinte fosse maior, possibilitando a construção de ressignificações.
Interessante observar que ela pareceu se confundir nesse sistema, uma vez que
iniciou sua apresentação das ofensas nos termos dos atos ilocuionários. De
qualquer forma, como argumento contrário à ênfase nessa divisão fica o fato dela
77
Disponível em http://www.direitolegal.org/tribunais-superiores/min-marco-aurelio-do-stfsuspende-decisao-do-cnj-e-juiz-volta-a-ativa/.
81
não ter sentido necessidade de reconhecê-la nos atos performativos de gênero e
isso não a impossibilitou de reconhecer as performances de gênero subversivas.
Além disso, ao trabalhar o exemplo do adolescente que queimou a cruz no
quintal da família negra ela não retoma o assunto e não defende uma
ressignificação desse ato por parte do movimento negro, se restringindo a criticar
o entendimento do Judiciário americano ao inviabilizar lutas sobre o tema do
discurso de ódio. Tal entendimento do Judiciário sem dúvida fez com que ela se
afastasse do Direito como uma das saídas para esses movimentos, apesar dela não
dizer isso expressamente, é algo possível de ser extraído de sua argumentação. As
ressignificações do Direito não podem ser as únicas a serem perseguidas pelos
movimentos minoritários, em especial pelos feminismos. Se um único indivíduo
não é a responsável solitário pela perpetuação das ofensas, sendo fruto de práticas
diluídas na sociedade, as instituições dão peso a elas ao mesmo tempo em que elas
dependem dos trabalhos dos indivíduos para se reproduzirem.
Nesse sentido, abrem-se as possibilidades para a responsabilização, que a
própria autora reconheceu como também se justificam os esforços para a
apropriação do Direito por parte desses movimentos, pois somente dessa forma as
instituições e o próprio Direito podem ser ressignificados. Ressalte-se que o
Direito não é nada em si mesmo, ele é aquilo que as forças sociais que o põem e
são regidas por ele permitem e desejam. Mascarar esse fator é inviabilizar seu uso
estratégico, disfarçá-lo para que se mantenha afastado do alcance das minorias.
Pode não ser a única arma adequada para solucionar os problemas dessas
minorias, porém é um instrumento bastante forte e, por esse motivo, essas
minorias afetadas por determinadas definições jurídicas devem ser vigilantes
sobre quem o produz, como e para que ele é produzido. Somente assim ele
assumirá formas diferentes, afinal, se é linguagem afeta a todos aqueles formados
pela linguagem, mas todos formados pela linguagem também são formadores da
linguagem e, por isso, do Direito. Em razão de tudo isso, será importante
compreender quais são os tipos de discursos sobre mulher na Constituinte e qual é
o estereótipo de relações de gênero que sai de 1988, para que o Direito possa ser
reformulado em outros termos, não no sentido de garantir as assimetrias de
gênero, seja por leis inadequadas às necessidades dessas minorias, seja por
interpretações retrógradas, mas no sentido de liberá-las dos modelos instituídos de
relações e de tudo o que decorre deles.
2
A construção do imaginário sobre a mulher brasileira e o
feminismo no Brasil
Ingressar no tema dos atos performativos possibilitou o entendimento
sobre como as performances são responsáveis pela consagração das estruturas de
gênero e como elas se perpetuam através de ritos e práticas sociais. O objetivo
agora é examinar a forma pela qual esses processos instituíram os paradigmas de
gênero no Brasil, especialmente como surgiu o ideal de mulher brasileira, o
momento em que ela foi forjada, seus papeis instaurados e sua atuação limitada
por contornos que se perpetuam até os dias atuais. É interessante perceber como
questões ainda tratadas atualmente como da ordem da natureza ingressaram nos
discursos proferidos pela imprensa cujo público alvo era a nova mulher, com a
valorização de suas funções típicas ou naturais. Dessa forma, será possível sair do
plano teórico, tratado ao longo do primeiro capítulo, para a observância dessas
práticas sociais específicas.
O peculiar da trajetória da concepção de mulher valorizada no Brasil é que
junto com ela, surge também o feminismo, com uma relação obviamente ambígua
com esse modelo de mulher, ora valorizando essa nova mulher, colocando-a em
uma espécie de pedestal na sociedade e na família para que se justificasse a
atribuição de direitos a ela, ora defendendo propostas mais avançadas a partir de
outras estratégias. Em alguns momentos, essas feministas percebiam os perigos
decorrentes do artifício de valorização da mulher como ser superior, pois muitas
vezes isso justificava a inacessibilidade de direitos para mulheres. Mulheres, por
exemplo, seriam “nobres” e não deveriam se envolver com o mundo da política.
Nesses termos, o que será apresentado aqui são justamente a trajetória da
constituição desse sujeito “mulher” e as formas pelas quais elas conseguiram se
reapropriar desses discursos em benefício dessa categoria.
A primeira parte do presente capítulo será voltada para a investigação
desse feminismo inicial no Brasil, que surge paralelamente a uma nova concepção
mulher importada do Iluminismo, recepcionada por aqui ao longo do século XIX.
Uma concepção de mulher moderna e família igualmente moderna passavam, por
exemplo, pela defesa da educação da mulher, pois ela precisava de refinamento
intelectual para ser agradável companhia para seu marido em casa e para educar
83
os filhos, evitando o ócio, estereótipo associado às mulheres das fazendas, que
possuíam escravos e não tinham funções a serem exercidas em sua rotina,
acordando excessivamente tarde e passando boa parte do dia desarrumadas ou
desleixadas1. Era um momento em que o núcleo familiar passava por uma redução
de tamanho, portanto, cada membro da família deveria ter suas funções, que
precisavam ser exercidas com esmero e dedicação, especialmente a mulher, alçada
à guardiã dos valores e da honra dessa família, responsável pela harmonia do lar,
pela higiene do ambiente e dos filhos e pela recepção agradável que o pai de
família deveria ter após a sua jornada de trabalho fora de casa. Esse feminismo
começa também pela imprensa, junto com os esforços de criação da mulher
moderna, e desemboca nas mobilizações pelo sufrágio da mulher.
A segunda parte será dedicada a compreender como o feminismo se
organizou no Brasil com inspirações internacionais, a partir do momento em que
se tem acesso às mobilizações de sufragistas tanto nos Estados Unidos quanto na
Inglaterra. Essa luta chegou ao Brasil de fato de duas formas resumidamente: por
notícias divulgadas na imprensa e pela saída de estudantes do país para conseguir
completar a sua formação, especialmente meninas, pois no Brasil ainda não
podiam freqüentar Universidades. O terceiro momento será dedicado à análise do
que aconteceu com as lutas feministas após a conquista de direitos políticos. Após
a conquista do voto, a princípio, parecia que o seu objetivo já teria sido alcançado.
Esse tipo de esvaziamento do feminismo, ou pelo menos a sensação de
esvaziamento das razões de sua luta, também aconteceu tanto nos Estados Unidos
quanto na Inglaterra, países que serviram de inspiração para as sufragistas no
Brasil, o que fez com que se entendesse haver a chamada Primeira Onda do
movimento feminista e a Segunda Onda, com a retomada das reivindicações a
partir da ótica da liberação sexual2. Por esse motivo, a proposta é investigar se
havia mobilizações em prol de direitos das mulheres no período que antecedeu a
Constituinte, como eram essas mobilizações, se discutiam a concepção vigente de
mulher e quais eram as principais questões apresentadas por aquelas ou aqueles
1
DEL PRIORE, Mary. Corpo a corpo com a mulher: pequena história das transformações do
corpo feminino no Brasil. P. 37. Essa nota irá retornar no presente capítulo, com o respectivo
trecho do texto sobre esse tema.
22
Uma das poucas autoras que não vislumbra uma ruptura ou um esfriamento das lutas feministas
é Marlene LeGates, que conseguiu investigar mobilizações feministas entre a Primeira e a Segunda
Guerra Mundial, como as reivindicações de americanas para permanecer no mercado de trabalho
apesar de os homens terem retornado da guerra aos Estados Unidos. Nesse sentido, LEGATES,
Marlene. In their time. A history of feminism in Western society, PP. 197-367.
84
que se envolviam com essa causa. Também será investigada a relação do
movimento feminista com as outras formas de militância da época, para que seja
possível compreender como as questões de gênero eram recepcionadas
socialmente e como foram levadas à Assembleia Constituinte.
Antes de ingressar nos temas do presente capítulo, algumas considerações
e esclarecimentos devem ser realizados. O primeiro aspecto a ser considerado diz
respeito às fontes eleitas para mapear o desenvolvimento do feminismo no Brasil.
Optou-se por adotar como norte para o tema obras de feministas como Branca
Moreira Alves e mulheres que desenvolvem pesquisas sobre gênero e história das
mulheres, como Mary Del Priore, para citar dois exemplos, em vez de referências
mais conhecidas sobre história brasileira e pensamento político brasileiro. Tal
opção é justificável na medida em que elas possuem produção específica no tema
de interesse da tese. Gênero é o tema central, e isso não implica em ignorar a
importância de outras perspectivas, só implica em assumir que no presente
trabalho a perspectiva é a de gênero. Em virtude disso, serão realizadas críticas até
mesmo à esquerda, especialmente na década de 1970 e no início dos anos 1980,
pois na literatura feminista tanto nacional, quanto estrangeira, sabe-se da
dificuldade que os movimentos minoritários encontraram em fazer com que suas
especificidades fossem consideradas pela esquerda “tradicional”, aquela que se
apóia centralmente na luta de classe em detrimento das demais lutas. Essa
afirmação também será mais bem trabalhada ao longo do capítulo. Nesse sentido,
é interessante a referência à americana Catharine MacKinnon: “Feminists do not
argue that it means the same to women to be on the bottom in a feudal regime, a
capitalist regime and a socialist regime. The commonality is that, despite real
changes, bottom is bottom”3. A esquerda sem dúvida é mais sensível às demandas
sociais, por isso as feministas se esforçaram para fazer com que as suas causas
passassem a ser abarcadas por ela.
Por fim, no primeiro momento do capítulo, serão utilizados trechos de
publicações pela imprensa sobre o estereótipo de mulher que começava a surgir
no final do século XIX. Esses trechos foram retirados de trabalhos de feministas
específicos sobre a imagem da mulher na imprensa nacional e sobre o surgimento,
3
“Feministas não alegam que significa o mesmo estar em segundo plano em um regime feudal, em
um regime capitalista e um regime socialista. O que há de comum é que, apesar das reais
diferenças, estar em segundo plano é estar em segundo plano” MACKINNON, Catharine. Toward
a feminist theory of the State. Cambridge: Harvard University Press, 1989. P.10.
85
paralelo, de uma imprensa feminista, que se apropriava desse novo imaginário
sobre a mulher para ingressar nas discussões sobre direitos das mulheres. Apesar
dessa imprensa não ter sido alvo de investigação direta do presente trabalho,
optou-se por fazer referência a essas pesquisas, pois elas ajudam a demonstrar
justamente como foram construídos e perpetuados os estereótipos de gênero,
garantindo o processo de naturalização deles e como esse imaginário foi ora
incorporado ora combatido pelas feministas naquele período.
2.1
O surgimento da mulher moderna no Brasil, suas ambiguidades e
relações com as feministas
Os discursos sobre a nova concepção de mulher, que deveria inspirar
aquelas responsáveis pela manutenção da estrutura familiar que começava a
imperar, faziam uso da imprensa feminina – de imprensa escrita voltada para o
público feminino, porém escrita majoritariamente por homens. O interessante é
observar que a imprensa feminista começava a surgir no mesmo período. Muitas
vezes ambas se misturavam nos ideais trazidos em suas páginas, mas o fato é que
ao longo do século XIX começaram a surgir jornais para mulheres e as
publicações que as buscariam como alvos iam desde receitas de comida e
bordados até defesa de direitos para as mulheres, especialmente no que diz
respeito à forma de educação das meninas.
É inadequado ingressar no tema do surgimento do feminismo no Brasil e
da defesa da educação da mulher sem mencionar talvez uma das mais conhecidas
feministas brasileiras, Nísia Floresta Brasileira Augusta (1805-1885), ou Dionísia
Gonçalves Pinto, filha de uma mãe pertencente à família tradicional no Rio
Grande do Norte, dona de extensões significativas de terras, e de pai português,
advogado liberal chegado ao Brasil no início do século XIX4. Foi uma mulher que
teve acesso à literatura europeia, estudou línguas e, obviamente, trabalho manual e
canto, como era esperado de uma mulher de sua classe.
Sua vida, no entanto, foi pouco ortodoxa. Quando tinha 13 anos se casou
com um jovem proprietário de terras, mas acabou abandonando o marido e
4
As referências à Nísia Floresta foram retiradas de: DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta e
a educação feminina no século XIX, In LÔBO, Yolanda e FARIA, Lia (orgs.). Vozes femininas do
Império e da Republica, PP. 105 – 141. SCHUMAHER, Schuma e BRAZIL, Érico Vital.
Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade, PP. 451 – 452.
86
retornando para a casa dos pais. Somente após o assassinato de seu pai, Nísia saiu
novamente de casa, passando a residir com um estudante de Direito de Olinda.
Em 1830, ano em que nasceu sua primeira filha, Nísia Floresta publicou também
os seus primeiros trabalhos sobre a condição feminina no jornal Espelho das
Brasileiras, dedicado às mulheres pernambucanas. No ano de 1832 traduz o texto
de Mary Wollstonecraft, Vindication of the Rights of Woman5, e foi esse fato que
a fez ficar caracterizada como uma das precursoras do feminismo no Brasil. Seus
textos foram dos mais variados tons, desde os mais incisivos ou panfletários, até
alguns que possuíam um aspecto maternal ou de conselhos de professora para as
alunas6.
Nísia Floresta começou a se envolver com educação em 1833, ao se mudar
para Porto Alegre com a família após seu marido concluir o curso de Direito.
Nessa cidade ela foi preceptora de meninas. Após a morte do marido em 1835
ficou ainda dois anos dirigindo um colégio. No ano de 1837 se mudou para o Rio
de Janeiro e abriu o Colégio Augusto em 1838, voltado para moças. Tal
estabelecimento foi considerado demasiado inovador em termos de educação de
meninas, pois ensinava latim, italiano, francês e inglês com as literaturas
correspondentes, além de geografia, história e educação física, repudiando o uso
de espartilho em função de prejudicar os corpos das jovens. A grade curricular
elaborada por Nísia Floresta era completamente diferente dos demais colégios
para meninas, que estavam restritos ao ensino superficial da língua portuguesa, do
francês, prendas domésticas e noções básicas das quatro operações. Não é por
outro motivo que a educadora foi criticada pela imprensa local, uma vez que
colocava como obrigatórias matérias que deveriam ser supérfluas para meninas e
deixava as agulhas esquecidas. Até o fato das alunas receberem prêmios de
distinção pelos desempenhos em exames finais era criticado, como demonstra a
passagem do jornal O Mercantil: “trabalhos de língua não faltaram; os de agulha
ficaram no escuro. Os maridos precisam de mulher que trabalhe mais e fale
5
Esse texto foi publicado pela inglesa Mary Wollstonecraft em 1790 e foi considerado um
documento marco do feminismo moderno. A preocupação de Wollstonecraft passava de forma
especial pela educação das mulheres, além de apontar também problemas referentes à violência
sofrida por mulheres provocadas pelos maridos, da qual sua própria mãe foi vítima durante anos.
6
DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta e a educação feminina no século XIX. In LOBO,
Yolanda e FARIA, Lia. Vozes femininas do Império e da República, p. 106.
87
menos”7. E sem dúvida uma espécie de trabalho peculiar caiu com força sobre as
mulheres nesse momento com as inúmeras exigências de organização da casa e de
higiene no ambiente e cuidados com os filhos8. Em relação à fala, no momento em
que essa mulher foi constituída como um sujeito - não no sentido tradicional do
termo, mas sim considerando todas as observações realizadas por Butler sobre o
sujeito - ela também iniciou um projeto de autoprodução, se apropriando dos
discursos que a moldavam em um sentido subversivo.
Apesar dessas manifestações contrárias à educação das mulheres em
jornais, o fato é que o decorrer do século XIX no Brasil despertou-se o interesse
pelo tema. A chegada da Corte ao Brasil no início do século trouxe também um
hábito para as famílias mais ricas, a de se ter educadoras às vezes francesas, às
vezes portuguesas, para as meninas, o que fez com que o tema da educação das
mulheres passasse a ser menos problemático, especialmente a partir da segunda
metade do século XIX. Tal momento figurava no imaginário da burguesia
nascente do país como ápice da civilização, da ilustração e, por conta disso, novos
valores deveriam se instaurar na sociedade, com o objetivo de diferenciá-la das
tradições das fazendas. Nesse sentido, o argumento de que não se poderia mais ter
metade da população em estado de ignorância por ser esse um fator que excluía o
7
O Mercantil, 02/01/1847, apud. DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta e a educação
feminina no século XIX. In LOBO, Yolanda e FARIA, Lia. Vozes femininas do Império e da
República, p.107.
8
Ressalte-se aqui que não se pretende analisar a estrutura do trabalho escravo das mulheres negras
e isso é proposital, na medida em que é um tema merecedor de dedicação própria. A intenção é
analisar os discursos que moldaram a mulher moderna ou o papel da mulher na sociedade
burguesa, uma vez que este foi um padrão relevante adotado para se instaurar os paradigmas de
gênero. Isso não significa que esse modelo não atingiu mulheres que não pertenciam à burguesia.
Também não se pretende afirmar que antes disso a mulher não trabalhava. Há exemplos de
mulheres na história brasileira que desmentem esse tipo de afirmação, como os casos de Ana
Felipe (século XVIII), que exercia o comércio itinerante vendendo sal no interior goiano e
retirando seu sustento dessa atividade tipicamente masculina até Ana Jansen (1787-1869), que
ficou viúva em 1825 herdando a propriedade do marido e passou de latifundiária a maior produtora
do Maranhão, com fazendas de gado, algodão, arroz e cana-de-açúcar . Seu talento para o
comércio fez com que ela triplicasse a fortuna recebida. Exercia forte influência política, chegando
a ficar conhecida como Mulher Mandona do Maranhão por jornais locais por enfrentar a sociedade
machista na época. Quando faleceu ela deixou fazendas, prédios, imóveis, jóias, terras e escravos,
tendo ficado conhecida no início do século XX em sua terra como bruxa maldita, assassina e
exterminadora de negros, o que demonstra que seu comportamento nos negócios definitivamente
perturbava a ordem instituída na divisão dos papeis sexuais. SCHUMAHER, Schuma e BRAZIL,
Érico Vital. Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade, PP.54-57. O pretendido
restringe-se a demonstrar esse argumento da burguesia nascente que o momento vivido pelo país
no século XIX era único e que os valores deveriam se atualizar por conta disso, criando-se funções
a serem desenvolvidas em suposta oposição com a estrutura das fazendas, em que a mulher era
retratada como um ser preguiçoso, dócil, completamente voltado para a casa e sem função nela,
em virtude da estrutura escravagista, restringindo-se ao papel de reprodutora, na medida em que
sequer era responsável pela criação dos filhos.
88
Brasil do desenvolvimento vivido pelos grandes países ocidentais passou a ser
fundamento para justificar a necessidade de se garantir às mulheres o acesso à
educação. Obviamente esse argumento foi utilizado de diferentes formas e forças,
dependendo de quem fazia uso dele.
O início da defesa do acesso à educação da mulher não conseguiu ser
fundado em bases diferentes dos argumentos morais e religiosos. A mulher
deveria ser estimulada a manter a dignidade e a exercer as suas funções como
esposa e como mãe com destreza, ficando completamente voltada para a família,
ao contrário da educação destinada aos homens, que pretendia desenvolver
habilidades intelectuais. Para as mulheres, eram entendidos como suficientes o
ensino das tarefas manuais e o curso primário, com noções de gramática
portuguesa e das quatro operações, não se mencionando a possibilidade de
continuação dessa educação com os cursos secundários, sendo que os cursos
superiores não eram sequer cogitados. Aquelas que tinham possibilidades
financeiras e que as famílias assim desejavam, continuavam estudando com as
preceptoras contratadas por suas famílias.
Nísia Floresta foi uma das primeiras críticas ao sistema de ensino no
Brasil, que era praticamente inexistente. Ela escrevia em seus textos9 sobre o tema
que a educação deveria ser igualmente distribuída a todos pelo governo,
independente de classe e de sexo. Dizia que as escolas voltadas para a educação
primária eram semelhantes a penitenciárias, sendo dirigidas por pessoas
despreparadas para o exercício da função e sem qualquer fiscalização do governo
sobre as atividades nesses locais, além de serem insuficientes. Ela simplesmente
não via futuro na educação de jovens no Brasil se o sistema educacional não
sofresse uma profunda reforma, que ultrapassasse os preconceitos arraigados nos
brasileiros, que consideravam a mulher como um ser mais fraco fisicamente,
incapaz de refletir e como sendo possuidora de um gosto por adorno. Nísia
Floresta identificava nesses discursos difundidos socialmente uma forma de
desculpa para mantê-las em estado de ignorância, com o objetivo de controlá-las e
dominá-las mais facilmente.
9
Sua obra Opúsculo Humanitário, que foi fruto da compilação de textos publicados nos jornais O
Diário do Rio de Janeiro, em 1853 e o Liberal, entre 1853 e 1854, reúne suas principais posições
sobre educação, de acordo com Constância Lima Duarte. DUARTE, Constância Lima. Nísia
Floresta e a educação feminina no século XIX. In LOBO, Yolanda e FARIA, Lia. Vozes femininas
do Império e da República, PP. 109-110.
89
A imprensa feminina foi relevante para fazer com que a reivindicação pelo
acesso à educação se projetasse. O surgimento desse tipo de imprensa se
beneficiou do incremento da vida urbana a partir da metade do século XIX. Por
que esse marco da nascente burguesia foi relevante a ponto de ter sido referência
na determinação de como seria a nova mulher? Foram diversos os fatores. O
processo de urbanização sofrido por alguns centros políticos do Brasil, em função
de comércios com o exterior, fez com que as mulheres não se restringissem mais
ao confinamento doméstico, como no período em que estavam restritas às
fazendas. O consumo de bens produzidos fora do país, especialmente os culturais,
oxigenou o cotidiano dessas mulheres.
Sem dúvida a dinâmica da vida na cidade facilitou as possibilidades de
convivência social, uma vez que as distâncias eram mais curtas. Os sobrados
estavam colocados abertos para a rua, rompendo com o isolamento e com a
sujeição completa das mulheres aos olhos absolutamente repressores dos pais e
maridos. A família também foi reduzida, ou pelo menos a quantidade de gente que
fazia parte da rotina da casa. O processo é interessante, pois ao mesmo tempo em
que a vida social se ampliou, a família passou por um processo de privatização, no
qual a intimidade dos membros familiares se tornou algo fundamental. Nesses
termos, em relação à dinâmica entre espaço público e privado:
Não obstante, essa subjetividade individual e familiar esteve desde o início ligada
a uma espécie de apreciação pública que teve lugar no próprio interior da
residência. Nas salas de visita ou salões, esses espaços intermediários entre a casa
e a rua, abertos com certa frequência para a realização de saraus noturnos, a
subjetividade oriunda da intimidade familiar foi traduzida e incorporada à esfera
do público, ao espaço da opinião, comunicando-se consigo mesma, criando sua
identidade10.
As reuniões e saraus em que leituras em conjunto eram realizadas foram
ingressando na rotina da cidade do Rio de Janeiro, uma vez que era uma solução
para a grande maioria de analfabetos, pois estes poderiam escutar as leituras. O
gênero do romantismo foi desenvolvido em parceria com a formação de público
feminino para a leitura. Na verdade, a leitura de livros nunca foi um ponto
problemático para as mulheres, claro, se soubessem ler. Era um lazer estimulado
10
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O Bello Sexo: imprensa e identidade feminina no Rio de
Janeiro em fins do século XIX e início do século XX. In COSTA, Albertina de Oliveira e
BRUSCHINI, Cristina. Rebeldia e submissão: estudos sobre condição feminina, p. 82.
90
por poder ser realizado sob a observação dos homens e que poderia ser feito ao
longo das atividades reservadas às mulheres, como a costura, os bordados, a
elaboração de doces e as aulas de música. Portanto, se o hábito da leitura teve
contribuição feminina para que conseguisse ganhar mais difusão, era evidente que
o aquecimento da imprensa faria surgir também diversos jornais e revistas
voltados para as mulheres e a vida em família.
Uma boa parte desses periódicos surgidos ao longo do século XIX era
elaborado por homens, conforme ressalta Bicalho11. A função desses jornais não
era a de simples distrações para o público feminino, eles mesmos se declaravam
abertos à participação das mulheres e diziam ter pretensões de instrução para a
mulher moderna, em relação a suas atividades do interior de suas famílias e nos
cuidados com a casa. Por mais incrível que possa parecer, as funções de dona-decasa, mãe e esposa amorosas que conseguia se preocupar com todos os detalhes de
arrumação, organização, limpeza e bem-estar dos filhos e marido, iriam surgir
nesse momento, com o objetivo de se contrapor às mulheres da fazenda “a figura
da mulher ociosa, de chicote na mão, camisolão e tamancas”12. Essa era a
impressão transmitida por estrangeiros que passaram por aqui e visitaram
fazendas. Reparavam que grande parte de mulheres que viviam nessa estrutura
somente se vestiam para os poucos momentos em que saíam para a rua, como por
exemplo, para ir à Igreja, porém, em casa não era assim:
Era a confirmação do velho ditado: “Por fora, bela viola; por dentro, pão
borolento!”. Em casa, cobertas com o ‘timão’, espécie de confortável camisolão
branco em tecido leve, ocupavam-se nas atividades domésticas. Os cabelos, mal
penteados ou em papillotes, segundo a inglesa Maria Graham, davam uma
péssima impressão de desmazelo. Pior, a tal camisola deixava expostos os seios.
E a estrangeira fulminava: “Não vi hoje uma só mulher toleravelmente bela. Mas
quem poderá resistir à deformação como a que a sujeira e o desleixo exercem
sobre uma mulher? Ao visitar, em 1821, residências baianas, anotou consternada,
sobre suas moradoras: “Quando apareciam, dificilmente poder-se-ia acreditar que
a metade delas eram senhoras de sociedade. Como não usam nem coletes, nem
espartilhos, o corpo torna-se indecentemente desalinhado logo após a primeira
juventude; isto é tão mais repugnante quanto elas se vestem de modo muito
ligeiro, não usam lenços ao pescoço e raramente os vestidos têm qualquer manga.
Depois, nesse clima quente, é desagradável ver escuros algodões e outros tecidos
11
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O Bello Sexo: imprensa e identidade feminina no Rio de
Janeiro em fins do século XIX e início do século XX. In COSTA, Albertina de Oliveira e
BRUSCHINI, Cristina. Rebeldia e submissão: estudos sobre condição feminina, p. 84.
12
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O Bello Sexo: imprensa e identidade feminina no Rio de
Janeiro em fins do século XIX e início do século XX. In COSTA, Albertina de Oliveira e
BRUSCHINI, Cristina. Rebeldia e submissão: estudos sobre condição feminina, p. 84
91
sem roupa branca, diretamente sobre a pele, o cabelo preto mal desgrenhado,
amarrado inconvenientemente, ou, ainda pior, em papelotes, e a pessoa toda com
a aparência de não ter tomado banho13.
A missão desses jornais era, portanto, bastante precisa: educar a nova
mulher para as funções que a partir daquele momento deveria exercer. Era um
mecanismo interessante que imperava nas publicações voltadas para o público
feminino, pois em primeiro lugar a estratégia era se aproximar de seu público alvo
como se fosse se estabelecer um vínculo de cumplicidade, de amizade com as
mulheres, mas ao mesmo tempo em tom também professoral14. Alguns contavam
com a contribuição de especialistas nos temas, o que reforçava a pretensão de
normatização da conduta da mulher, que como sempre, se davam por atos
performativos. Seriam as recomendações de amigos ilustrados dirigidas
especialmente para essas mulheres. Especificamente, Bicalho apontou o
surgimento do jornal A Mãe de Família, em 1879, no Rio de Janeiro, como um
marco nesse propósito, pois era um jornal que se proclamava científico, literário e
ilustrado, com o subtítulo “Educação da Infância e Higiene da Família”, que
contava com a direção de um médico especialista em moléstias da criança15.
Os médicos dedicados às questões de higiene promoveram de forma
incisiva a autoridade da mulher na família, atrelando a ela inclusive os rumos que
a sociedade deveria tomar. O objetivo era prestar instruções sobre como nutrir e
criar os filhos, os importantes cuidados com a higiene, ressaltando que a educação
da criança em seu início competia exclusivamente à mãe e que seria fundamental
para formar bons cidadãos. A mulher passou a ser valorizada na sociedade pelos
discursos feitos por médicos, pedagogos e higienistas que afirmavam o seu papel
fundamental para os rumos do país no exercício de suas funções de mãe e esposa,
incluindo nesse rol de atributos a moralidade da mulher, que seria superior à do
homem. Pode-se, portanto, identificar aqui a formação desse novo sujeito, da
mulher moderna, completamente tomada pelas responsabilidades especialmente
13
DEL PRIORE, Mary. Corpo a corpo com a mulher: pequena história das transformações do
corpo feminino no Brasil. P. 37.
14
Alguns citados por Bicalho são: Correio das Modas (1839), O Espelho Fluminense (1843), O
Recreio do Bello Sexo (1856), o aArchivo das Famílias, o Jornal das Famílias (1863), a Biblioteca
das Famílias (1874), o Beijo (1900), o Jornal das Senhoras (1904), entre outros. Há ainda menção
a outro Jornal das Senhoras, lançado em 1852. Nesse sentido é a análise de HAHNER, June E. A
mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. P. 34.
15
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O Bello Sexo: imprensa e identidade feminina no Rio de
Janeiro em fins do século XIX e início do século XX. In COSTA, Albertina de Oliveira e
BRUSCHINI, Cristina. Rebeldia e submissão: estudos sobre condição feminina. P. 84.
92
de ordem privada, mas não somente com os destinos de sua família nas mãos, mas
em última instância, com os rumos até mesmo do sucesso ou do fracasso do país,
já que era ela a principal responsável pela criação do cidadão exemplar.
Por conta de suas funções novas, ela precisaria ser educada e as questões
referentes à educação feminina começaram a aparecer como problemas relevantes
para os avanços do país. Não haveria mais sentido em privar metade da população
do acesso à educação, especialmente em virtude do papel tão importante
designado pela natureza que a mulher exerceria socialmente. Aqui houve a
construção do sujeito mulher e seu processo de naturalização, simultaneamente.
Teve início a falácia descritiva em relação à mulher moderna. A estratégia aqui
utilizada já foi amplamente demonstrada no primeiro capítulo e agora aparece
sendo concretizada na constituição da mulher brasileira, com a utilização de
discursos com a força do argumento especializado divulgado pela imprensa. As
mulheres, por sua vez, acabam acatando essa função e aceitando a valorização de
seus papeis sociais, muitas vezes até mesmo com certo ufanismo sobre o tema.
Esse foi um momento muito interessante, pois se pode perceber nele como as
repetições de gênero foram refundadas nos moldes dos ventos liberais trazidos por
outros países e em seguida foram recontextualizadas.
O fato é que se de início as mulheres reproduziram esse discurso de sua
superioridade moral e familiar, também a partir da imprensa feminina produzida
por elas mesmas, acabaram distorcendo o sentido original, pleiteando uma
educação em termos diferentes das pretendidas para se produzir essa nova mulher.
Obviamente, há uma relação ambígua aqui, que permeia todos os problemas
referentes aos processos identitários. Elas afirmavam a identidade feminina, até
mesmo a questão da superioridade moral, mas ao mesmo tempo utilizavam esse
argumento para pleitear a igualdade; ora reforçavam os papeis sociais e usavam
esse discurso para reivindicar o acesso à educação, ora radicalizavam e entendiam
ser a desigualdade social fruto da ignorância da mulher no que se referia, por
exemplo, à ausência de possibilidade de administrar o seu próprio patrimônio, a
expropriação de todos os seus bens e de sua vida por parte do marido.
Não cabe aqui se perguntar sobre se o revolucionário não teria sido a
negação dessas mulheres em relação aos papeis designados naquele momento para
elas. Elas foram subjetivadas em uma determinada linguagem, ou seja, em
determinadas circunstâncias, e deveriam ter como ponto de partida justamente
93
essa mesma linguagem, não sendo exigível operar de outra forma. Ninguém pode
desconsiderar aquilo que se é, ou a forma como vem se constituindo, mas pode a
partir dela iniciar sua constituição em outros termos, na medida em que não
somente somos produzidos pela linguagem, ou pelos atos performativos, mas
fazemos uso dela e também a produzimos, conforme demonstrado ao longo do
primeiro capítulo.
É interessante observar justamente esse processo de apropriação discursiva
realizado por essas mulheres. Outra imprensa feminina tem início no século XIX:
a produzida pelas próprias mulheres, cujo objetivo não era somente de servir
como um entretenimento, mas também abordar questões referentes às defesas de
seus direitos. Essas publicações se iniciaram na primeira metade do século XIX,
mas foram ampliadas com o tempo. Algumas foram criadas e extintas, mas depois
retornaram. Catalogá-las ao longo do texto não seria o propósito, visto que esse
esforço já foi feito em trabalhos historiográficos, mas algumas merecerão
destaque em virtude de trazerem exemplos discursivos que auxiliam o
entendimento acerca do processo de constituição dessas mulheres e do movimento
feminista no Brasil.
O curioso é que a imagem de uma suposta mulher ociosa na fazenda foi
tão rejeitada que, inspiradas nas associações de mulheres americanas, algumas
brasileiras de classes mais altas resolveram o problema da existência considerada
inútil, solitária e tediosa dedicando-se a causas sociais, pois nas elites brasileiras
as atividades domésticas e a própria criação dos filhos eram atividades exercidas
pelo trabalho escravo, o que dava a fama a essas senhoras da elite de preguiçosas,
acostumadas a dormir até as dez ou onze horas da manhã. Portanto, ainda que em
número reduzido, elas demonstravam insatisfação com esse estilo de vida que
passou, em seguida, a ser condenado publicamente.
Para ao menos umas poucas brasileiras, o enfado ajudou a estimular um desejo de
mudança, como nos Estados Unidos várias décadas antes. Para essas mulheres, o
trabalho filantrópico fora do lar iria constituir um passo à frente. Escolhendo o
moto de ‘Religião, Trabalho, Lettras e Caridade’, as mulheres que publicavam O
Bello Sexo determinaram que os lucros provenientes de seu jornal fossem dados
em nome de seu sexo à Imperial Sociedade Amante da Instrucção, instituição de
caridade para órfãos16.
16
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. P. 45.
94
As associações voluntárias surgiram e cresceram ao longo do século XIX
no Brasil, mas Hahner, após a passagem acima citada, ressalta que nunca
conseguiram ter grau semelhante de penetração social como ocorreu nos Estados
Unidos, assim como não foram tão numerosas. Além disso, aqui as atividades
dessas associações não atingiam em igual proporção a atenção pública. A exceção
ressaltada pela autora dizia respeito ao restrito número de sociedades femininas
abolicionistas que eventualmente conseguiam atrair a atenção da imprensa
tradicional. Especialmente a questão da abolição da escravidão no país foi uma
causa que sem o menor problema poderia encontrar apoio nos esforços femininos
e nessas associações, já que em virtude da típica benevolência feminina, era
natural que as mulheres encampassem esse tipo de reivindicação, era esperado que
as mulheres passassem a se envolver no tema.
As contribuições de mulheres brasileiras ao movimento abolicionista
ocorreram, mas muitas vezes não nos termos estritos da adoção e defesa de uma
perspectiva política determinada. O tipo de apoio que muitas prestavam era
deixado de lado e não foi retratado pela história oficial nos mesmos termos de
movimentos semelhantes promovidos por homens, especialmente quando essa
atuação ocorria dentro dos grupos masculinos em prol da abolição. Na verdade, a
forma de abordagem dada a esses esforços de mulheres para a abolição reforçava
o estereótipo da benevolência, como se a participação feminina fosse um apêndice
dos trabalhos masculinos. A subordinação das mulheres na sociedade produzia
reflexos no interior desse movimento. Nesses termos, os esforços produzidos por
essas mulheres para angariar fundos para libertação de escravos ficaram
esquecidos, uma vez que em regra não eram elas as que participavam dos debates
na esfera pública sobre o tema.
Existiram sociedades abolicionistas fundadas por mulheres, como foi o
caso da Sociedade da Libertação, instituída em março de 1870 no Rio de Janeiro,
A Sociedade Redemptora, de julho de 1870, instituída em São Paulo e a Ave
Libertas em Recife, de 1884, para citar exemplos. Porém, foram poucas as
mulheres que se aproveitaram dessas instituições para falarem em público sobre a
causa abolicionista e iniciarem suas experiências na esfera pública, sendo citada
como única referência Leonor Porto, presidenta da Ave Liberta, que redigiu
artigos e panfletos sobre o tema. Algumas editoras responsáveis por jornais
feministas se sentiram mais confortáveis para escrever contrariamente à
95
escravidão no Brasil, como Amélia Carolina da Silva Couto e Francisca
Senhorinha da Motta Diniz, tendo a última dedicado boa parte de seus esforços no
jornal feminista O Sexo Feminino ao longo de 1885 à causa da abolição do e não
aos direitos das mulheres. Porém, de acordo com Hahner, somente a
pernambucana Maria Amélia de Queiroz concedeu palestras públicas sobre o
tema, enquanto as demais se restringiam à escrita17. Posteriormente, Maria Amélia
de Queiroz foi uma das principais colaboradoras do jornal feminista A Família,
realizando viagens para proferir conferências sobre o tema.
Talvez aqui se possa fazer uma referência a uma frase já utilizada, a
reivindicação realizada no jornal O Mercantil por homens, que precisariam de
mulheres que trabalhassem mais e falassem menos. Nesse caso, tal reivindicação
masculina parecia ser acatada, pois as mulheres trabalhavam, mas não falavam.
As atuações femininas em torno das campanhas abolicionistas consistiam em, por
exemplo, concertos de pianos realizados por filhas e esposas de líderes
abolicionistas organizados para conseguir dinheiro para a causa, já que as
mulheres da elite tinham o papel de divertir reuniões sociais. Ao mesmo tempo
em que a participação dessas mulheres era fundamental para o sustento material
dos movimentos abolicionistas encabeçados por homens, ela não era
reconhecidamente uma adesão a esses ideais, já que a função era interpretada
como complementar, basicamente como se elas tivessem aderido a esses ideais em
decorrência de exigência de participação por parte do marido ou do pai. Elas eram
juridicamente incapazes e eram tratadas nesses mesmos moldes. Nas palavras de
Hahner:
poucos brasileiros poderiam achar inconveniente que a talentosa Luiza Regadas
do Rio de Janeiro emprestasse sua adorável voz a vários encontros para
levantamento de fundos para a causa abolicionista. Como outras abolicionistas,
ela também vendia flores e saborosos docinhos em favor da causa. Algumas
mulheres eram enviadas por membros masculinos de clubes abolicionistas às
portas de cemitérios e igrejas para angariar fundos. Embora essas atividades
exigissem uma certa resolução e determinação para suportar o desconforto físico,
tal como permanecer na chuva durante todo o dia, também podiam reforçar a
imagem feminina de nobreza e auto-sacrifício18.
Da mesma forma que os jornais produzidos por homens para o público
feminino ganhavam força, as mulheres também começaram a elaborar jornais com
17
18
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. P. 48.
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. P. 46.
96
o objetivo de tratar dos temas propostos pelos chamados ventos liberais. Em parte,
a imprensa dessas mulheres partilhou do mesmo tipo de discurso proferido nos
jornais editados por homens, mas a argumentação sem dúvida era dúbia. A
reivindicação que permeava os jornais femininos era a igualdade, direito que
somente poderia ser alcançado com o mesmo argumento da educação. Esta
serviria para dois propósitos segundo esses jornais: o primeiro afirmando a
necessidade de educação das mães e da dona-de-casa, o segundo conscientizando
as mulheres de seus direitos e auxiliando em sua emancipação, sendo certo que as
defesas de cada um desses argumentos variava nas diferentes publicações de
mulheres.
O século XIX seria o momento crucial para os avanços em termos de
direitos, de acordo com os discursos dessas primeiras feministas, pois não se
poderia permitir que o chamado “século das Luzes”, responsável pela renovação
dos ideais de todo o Ocidente, não produzisse efeitos no Brasil. Se os diferentes
povos se aproveitavam da oportunidade para se libertar das amarras do passado,
as mulheres brasileiras não deveriam deixar esse momento passar sem conquistar
os seus direitos, ou a tão sonhada igualdade. A conquista do progresso somente se
daria no Brasil caso a igualdade entre homens e mulheres fosse alcançada. A
civilização e o progresso deveriam ser almejados pelo Brasil, uma vez que o país
acabava de conquistar a independência e naquele momento se encontrava em
igualdade de condições com as maiores nações soberanas européias e com os
Estados Unidos. A imprensa feminina produzida por mulheres traçava um
paralelo entre a emancipação do país e a emancipação da mulher, que deveria
acontecer para que o país acessasse definitivamente o rol das grandes nações.
Os primeiros jornais editados por mulheres em cidades brasileiras eram
atos isolados, surgindo diversos a partir de 1850. Porém, faltava continuidade
entre eles e articulação entre as editoras, uma vez que uma não sabia da existência
de outra ou de outros jornais feministas. De qualquer forma, um dos primeiros a
aparecer foi “O Jornal das Senhoras”, em 1852, editado por Joana Paula Manso de
Noronha, argentina que veio morar no Rio de Janeiro separada do marido
português. Na apresentação do jornal ela já declarava sua intenção de auxiliar a
emancipação da mulher e seu avanço social, impossibilitados de serem
alcançados, até então, em virtude do egoísmo dos homens. Influenciada por sua
visita aos Estados Unidos em 1846, apresentava o discurso do século XIX como
97
“século das Luzes”, que deveriam chegar a toda a América Latina. Ao mesmo
tempo, a editora iniciou também uma abordagem complicada em relação à
mulher. Ela criticava o fato de os homens considerarem as mulheres como
propriedade, mas trouxe em seguida a perspectiva da mulher como um ser
superior. A passagem que Hahner citou do O Jornal das Senhoras retrata muito
bem essa concepção:
Para ela, a emancipação moral da mulher precisava incluir ‘o justo gozo dos seus
direitos, que o brutal egoísmo do homem lhe rouba, e dos quaes a desherda,
porque tem em si a força material e porque ainda não se convenceo que um anjo
lhe será mais útil que uma boneca’. Cumpria melhorar a educação das mulheres e
os homens deviam deixar de considerá-las como sua propriedade19.
A perspectiva apresentada pela editora hoje pode ser apontada como
problemática. Isso porque é sabido que a valorização excessiva da mulher, ou o
fato de colocá-la como um ser superior fez com que as expectativas sociais em
relação ao comportamento feminino fossem sempre mais severas do que no que
tange a conduta de homens. Tanto isso é verdade que no século XIX as mulheres
foram responsabilizadas também pela imprensa feminina, mas especialmente
pelas publicações voltadas para mulheres, mas produzidas por homens, pelo
resguardo do bem-estar, dos cuidados e da honra da família, que produziria
reflexos inclusive na sociedade, com a formação de novos cidadãos. Se a
responsabilidade pela formação dessa nova cidadania seria dela, o fracasso da
estrutura familiar poderia produzir também reflexos na sociedade, portanto, a
culpa seria atribuída a ela. Nesse sentido, estrategicamente era complicado atrelar
a figura da mulher à imagem de “um anjo”.
Apesar disso, ela combateu a visão da mulher como uma espécie de
boneca ou criança mimada, que predominava na época. O discurso acabou sendo
levado à defesa posteriormente, por exemplo, do voto feminino, ou seja, o seu
valor na luta por ampliação de direitos não pode deixar de ser reconhecido.
Observando o ideal de mulher que vinha sendo enfrentado pelo início da imprensa
feminista, é compreensível o esforço de valorização da figura feminina feito
através dela. Essa imprensa compreendeu que a mulher até então era tratada como
uma simples máquina de reprodução, nesse sentido, o casamento seria o ápice de
19
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. PP.34-35.
98
sua vida, a justificativa de sua existência, com o objetivo único de concretizar a
sua função primordial até então: ter filhos. Ao longo da vida conjugal a mulher,
em regra, encontrava violência, tirania ou abandono20. Um casamento para o
homem significava somente uma forma de satisfazer um desejo, garantia de
assegurar a sua fortuna e mudança de status civil, mas não tomava conta de toda a
sua vida, ou limitava as funções de sua existência. O fato dos homens utilizarem
termos como ‘meu cavalo’ e ‘minha mulher’ demonstrava, para Joana Paula
Manso de Noronha, a equiparação da mulher na condição de esposa a uma mera
propriedade do marido21.
Por esse motivo, a editora do O Jornal das Senhoras se colocou o propósito
de fazer com que os homens percebessem a injustiça do tratamento dado às
esposas como propriedades ou seres inferiores, passando a uma glorificação da
mulher, identificando-a com a mãe do Brasil. Ela até poderia não ter qualquer
espécie de influência econômica ou política além do espaço privado, mas ela seria
a mais influente na família. Sendo assim, deveria ser colocada em uma espécie de
pedestal, transformando-se em anjo na família e não uma simples boneca. Se o
papel que a mulher deveria efetuar era tão fundamental e central na sociedade, ela
precisava ser valorizada e colocada em um lugar superior. Joana Manso começou
a argumentar que deveria ser forte o interesse masculino na melhora das
condições de vida de suas mulheres, pois se eles se preocupavam com o futuro de
sua prole, inclusive pela educação, deveriam iniciar as transformações sociais
permitindo que suas mulheres tivessem também acesso à educação, pois
desenvolveriam essa nobre função em relação aos filhos.
Além desse apelo aos homens, Joana Manso tentava também sensibilizar
as próprias mulheres, uma vez que eram mães de meninos e poderiam desde cedo
criar outros homens, sem preconceitos e sem que a noção de superioridade
20
Há diversos trabalhos de historiadoras feministas que tratam desse tema. Como exemplo de
trabalho sobre os relacionamentos na vida familiar em diversos momentos na história do país, pode
ser citado DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006.
21
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. P. 36. Joana
Noronha enxergava na expressão “minha mulher” esse tratamento da figura da esposa como
propriedade do marido. É interessante observar que o uso da palavra “mulher” comumente para se
referir tanto à mulher quanto à esposa aponta essa confusão de destinos, na qual o papel de esposa
acaba se misturando à condição da mulher. Não há algo semelhante no que diz respeito ao homem,
já que na relação do casamento ele é comumente chamado de “meu marido” e não “meu homem”.
Apesar de não ser algo somente restrito à língua portuguesa, pois no francês acontece o mesmo, na
língua inglesa, por exemplo, há termo próprio para definir as condições de homens e mulheres no
casamento, husband e wife.
99
masculina ficasse arraigada neles. Uma mulher educada tinha mais condições de
desempenhar melhor as suas funções de esposa e de mãe. Sem dúvida apelar para
as funções sociais das mulheres poderia tornar mais digerível a reivindicação por
acesso a uma educação que fosse muito além das agulhas e do fogão, evitando
resistências ao tema. Não é possível determinar qual foi o fator que a levou a
afirmar o papel que começava a ser estabelecido para as mulheres na metade do
século XIX, como a responsável pela estrutura do núcleo familiar, se foi mera
reprodução do processo identitário que se instaurava, ou se foi realmente um
mecanismo utilizado para fazer com que a defesa da igualdade no que diz respeito
à necessidade do acesso à educação fosse mais bem aceita.
Assim como outras editoras, o jornal de Joana Manso buscava a
participação das leitoras, abrindo espaços para diversas publicações. O problema
era que as próprias mulheres ainda não estavam dispostas a cooperar para a
estruturação desses jornais. Até houve contribuições de leitoras, mas em regra
eram sempre anônimas. Havia um receio de que elas caíssem no ridículo ao
defender a igualdade entre homens e mulheres, tanto que a própria responsável
pela seção de modas requisitou a manutenção de seu anonimato. A maioria
enviava textos somente sem assinatura, incluindo uma colaboradora que era tão
assídua quanto a editora. Ainda assim, elas agradeciam a oportunidade de deixar o
‘estado de vegetação’22 no qual se encontravam. Somente após quatro anos de
existência do O Jornal das Senhoras é que poucas começaram a assinar suas
contribuições pelo menos com as iniciais de seus nomes. Os homens que
contribuíam para as publicações do jornal davam seus nomes inteiros. Por
problemas financeiros Joana Manso se desfez do jornal, passando-o a Violante
Atabalipa Ximenes de Bivar e Vellasco. Nessa fase, o jornal passou a fazer uso da
imagem de Virgem Maria para pregar uma veneração pela mulher. Sua intenção
era de fato fazer com que as mulheres “subissem em um pedestal”, ou fossem
colocadas em um patamar superior.
As publicações feministas que vieram em seguida não fizeram tanto uso
dessa imagem da mulher associada à Virgem Maria. O Bello Sexo surgiu em 1862
no Rio de Janeiro, editado por Júlia de Albuquerque Sandy Aguiar, menos de dez
anos após O Jornal da Família ter sido fechado, e apesar desse curto espaço de
22
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. P.39.
100
tempo, as mulheres que publicavam no Bello Sexo tinham educação secundária e
não assinavam os artigos com o nome completo, mas também não publicavam de
forma anônima. Elas sentiam a necessidade de se conhecerem e se reuniam uma
vez por semana para elaborar os temas que seriam publicados no jornal. Nenhum
desses dois jornais era radical em suas propostas, sendo talvez o segundo um
pouco mais corajoso em suas divulgações. Apesar disso, um homem que se
manifestou sobre o jornal em uma de suas edições disse que não faria a assinatura
do Bello Sexo por não ter tempo de realizar tal leitura e por considerá-lo indiscreto
e um insulto ao seu público alvo23.
Outros jornais elaborados por mulheres com o propósito de discutir as
condições de desigualdade nas quais se encontravam surgiram nas cidades,
especialmente ao longo da década de 1870, pois as oportunidades em relação ao
acesso à educação eram maiores nas cidades do que nas áreas rurais. O Rio de
Janeiro era especial nesse sentido, pois 29, 3% das mulheres eram alfabetizadas,
enquanto a estatística referente em relação ao país era de 11,5% de mulheres
alfabetizadas24 no ano de 1872. O ano de 1873 foi de publicação do jornal O Sexo
Feminino, editado por Francisca Senhorinha da Motta Diniz, em Minas Gerais.
Em 1874 surgem O Domingo, também de Violante Atabalipa Ximenes de Bivar e
Vellasco e o Jornal das Damas, no Rio de Janeiro. Em Recife é publicado em
1875 O Myosotis, editado por Maria Heraclita e no Rio de Janeiro surge o Echo
das Damas em 1879, considerado um dos mais incisivos. Nessas outras
publicações o tema da educação cresceu, com a defesa de que esse não seria um
interesse somente das mulheres, mas atenderia ao país. Porém, Francisca Diniz
não apelava aos homens para que permitissem os estudos às mulheres, também
não fazia uso da imagem de Virgem Maria, dirigindo-se preferencialmente às
próprias mulheres. As passagens abaixo, uma de 1875 e outra de 1889, após a
abolição da escravidão e a proclamação da República, ilustram essa preocupação
de Francisca Diniz:
Mesmo o Brasil sendo infante, pois há pouco mais de meio século era colônia (...)
nós, as brasileiras, temos em nossas veias o sangue de nossos antepassados. As
idéias de independência que exaltaram as nossas mães germinaram e germinarão
no fundo de nossos corações ao grito de liberdade (O Sexo Feminino, 1875).
23
24
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. P. 43.
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. P. 52.
101
Depois da aniquilação da escravidão, depois da queda da monarquia, a
emancipação feminina apresenta-se como um dos complementos desses últimos
aperfeiçoamentos sociais.
Ao longe vemos irradiar um astro pálido ainda, projetando fraca luz, mas tendo
em si todos os elementos das estrelas de primeira grandeza (...) estrela
permanente na imensa escuridão do infinito, este astro que derramará luz intensa,
vivificadora e salutar, será o nosso 15 de Novembro!
Em tudo, porém, devemos acompanhar a marcha natural das coisas; e a revolução
secular que encaramos, devemos desejá-la tão pacífica quanto foi a grande, a
sublime revolução de novembro.
A transformação rápida e transcendente, pela qual passou o Brasil, é o documento
mais brilhante da campanha que os nossos compatriotas haviam encetado há
muito para firmarem suas aspirações democráticas nesta nação; e assim como se
prepararam os brasileiros para a abolição dos escravos e para a queda da
monarquia, devemos preparar o sexo feminino para a sua emancipação (O 15 de
Novembro do Sexo Feminino)25.
A editora do jornal O Sexo Feminino, que tempos depois passou a se
chamar O 15 de Novembro do Sexo Feminino, entendia que o principal inimigo a
ser combatido era a ignorância que ainda atingia boa parte das mulheres e que era
mantida pela ciência dos homens, ao considerarem as mulheres apenas um
utensílio doméstico, afastando-as do espaço público e da possibilidade da
educação. Era interessante para os homens a manutenção desse estado, de acordo
com Francisca Diniz, pois as mulheres não conseguiam sequer entender como os
maridos poderiam gastar o dinheiro da família ou até mesmo o dinheiro delas,
abandoná-las e também deixar os filhos. Elas ficavam indefesas diante dessas
situações por não terem acesso à educação. Sem dúvida, esse tipo de observação é
procedente, porém, encontraria maior resistência para fundamentar o acesso à
educação da mulher e a superação das desigualdades do que o recurso à mulher
como boa mãe e dona-de-casa que precisaria ser educada para realizar melhor
suas tarefas.
O “cordeiro humilde”, forma pela qual Francisca Diniz chamava a mulher,
deveria se levantar e parar de permitir o seu processo de subjugação e dominação
por parte do homem, precisaria, enfim, prestar atenção nos mecanismos pelos
quais os seus direitos eram inviabilizados. Através do acesso à educação as
mulheres não somente criariam melhor seus filhos, mas também compreenderiam
as finanças da família, deixando de ficarem à margem das decisões importantes
para os seus próprios sustentos e de suas famílias. Passariam, dessa forma, da
25
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. O Bello Sexo: imprensa e identidade feminina no Rio de
Janeiro em fins do século XIX e início do século XX. In COSTA, Albertina de Oliveira e
BRUSCHINI, Cristina. Rebeldia e submissão: estudos sobre condição feminina. Pp. 87-88.
102
condição de escravas à condição de companheiras, adquirindo direitos até então
negados a elas. As habilidades intelectuais das mulheres eram exaltadas por
Francisca Diniz, que afirmava que elas possuíam as mesmas condições de
aprender física, química, letras, filosofia, história e geografia, e deveriam ser
treinadas para isso, em vez da família se preocupar em mandá-las aprender a
costurar, lavar e cuidar de suas casas. Interessante observar nesse argumento que a
igualdade de capacidade intelectual entre homens e mulheres era afirmada, mas
em seguida ressaltava-se que as mulheres poderiam até mesmo ultrapassar os
homens nessas ciências em virtude de serem mais pacientes, o que seria mais
adequado para a realização desses estudos superiores.
Aqui aparece registrada novamente a ambigüidade em relação a se afirmar
a igualdade ou ressaltar a diferença, pela valorização de características
“tipicamente femininas”, como é o caso da paciência. Ora era interessante um
mecanismo, ora era interessante o outro. A especificidade de Francisca Diniz foi
enfatizar a superioridade feminina para levar a mulher a outros espaços diferentes
dos limites do lar. O objetivo não era o enaltecimento da mulher para que ela
ficasse responsável pela formação de cidadãos dentro de casa, a sua superioridade
ou aptidão natural foi utilizada pela editora para tentar justificar a abertura dos
caminhos das ciências para as mulheres. Em termos semelhantes, as funções
desempenhadas pela mãe foram levadas pela editora para as salas de aula, ao
afirmar que a educação primária seria mais bem realizada se fosse entregue para
as mulheres. Novamente aparece aqui um estereótipo de gênero, que atrela à
figura da mulher o papel do cuidado. Porém, é importante perceber que isso, nesse
momento, implicaria em um aumento de campo de trabalho para as mulheres,
fazendo com que elas tivessem meios de se sustentar sem que houvesse a
necessidade da manutenção do casamento em função de uma dependência
econômica, representando a chamada “época das Luzes” “uma nova era de
prosperidade e justiça para o nosso humilhado sexo”26. É também relevante
ressaltar que nessa defesa realizada por Francisca Diniz apareceram atreladas,
aparentemente pela primeira vez em um desses jornais, as questões da educação e
do trabalho fora do âmbito doméstico, sendo este último o passaporte para a
autonomia. Nesse sentido, a utilização de certo discurso que instaura um lugar e
26
O Sexo Feminino, 7 de setembro de 1873, In HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas
lutas sociais e políticas: 1850-1937. P. 56.
103
coloca alguém nele, predeterminando o seu âmbito de atuação, como no caso das
ofensas, foi realizada em sentido contrário ao seu uso original, abrindo uma nova
possibilidade de campo de atuação para as mulheres, as salas de aula, ainda que a
partir da afirmação do estereótipo de gênero que ganhava força nesse momento.
Diferentemente das mulheres das classes populares, provavelmente, as
leitoras desses jornais, a princípio, não teriam necessidade material de exercer
qualquer função fora de casa. Porém, a necessidade apareceu na medida em que o
trabalho daria a essas mulheres a possibilidade da independência, em vez de
ficarem restritas às decisões dos maridos em relação ao futuro financeiro da
família ou até mesmo a atos profundamente arbitrários por parte deles, que
poderiam gerar até mesmo o fim dos bens daquelas mulheres administrados pelos
maridos, e em seguida ao abandono do lar. As americanas eram constantes
inspirações para os diferentes jornais feministas, especialmente para Francisca
Diniz. Nos Estados Unidos da América a mulher já podia ingressar na medicina,
no jornalismo, no direito e na administração de negócios e Francisca Diniz ficou
bastante satisfeita ao tomar conhecimento de que Princesa Isabel e o Imperador D.
Pedro II assinaram O Sexo Feminino e junto com eles, alguns membros da elite
que queriam manter uma reputação de erudição e modernidade perante o
Imperador.
Em 1876 o jornal deixou de circular, retornando em 1889 e ficando
conhecido em seguida como O 15 de Novembro do Sexo Feminino. Já no ano de
1890 a estrutura era diferente, havendo diversas publicações sobre o tema de
mulheres e elas já conseguiam se apoiar. Em 1888 foi iniciada em São Paulo a
publicação A Família, editado por Josefina Alvares de Azevedo. No ano seguinte
o jornal foi transferido para o Rio de Janeiro. Josefina era uma das poucas que
fazia uma defesa aberta do direito ao divórcio na legislação pátria, considerando
os homens em regra déspotas no casamento, em um momento em que as mulheres
eram consideradas eternas menores pela legislação. Isso porque o divórcio
representava a possibilidade de se desfazer os vínculos do casamento, muitas
vezes já dissolvidos de fato em acordo entre as duas partes. Ela também se
inspirava no feminismo norte-americano e dizia que “em breve, o mesmo
complexo de igualdade que se está vendo em toda a América, chegará até nós”27.
27
Josefina de Azevedo Alves In HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e
políticas: 1850-1937. P. 64.
104
A inspiração nos acontecimentos dos Estados Unidos é válida e comprova a
ocorrência paralela de um movimento constituinte no Ocidente que pretendia dar
conta daquelas deixadas de lado até mesmo de processos revolucionários, mas que
não se conformavam e buscavam direitos: as mulheres. O feminismo conseguiu
penetrar no Brasil, ainda que atrelado ao argumento do liberalismo, com
inspiração nas feministas americanas e inglesas.
Para Josefina Alvares de Azevedo era menos problemático apresentar
posições mais radicais, uma vez que pertencia a uma família da elite. Essa autora
chegou a publicar diversas biografias de mulheres importantes na história, desde
Cleópatra, passando por Joana d’Arc e Isabel de Espanha fato que acabava
enaltecendo e valorizando muitas mulheres que desempenharam papeis muito
diferentes dos atribuídos às funções femininas, como sendo também modelos que
deveriam servir de inspiração para a mulher brasileira. Isso porque Joaquim
Manuel de Macedo, professor de história contratado pelo governo imperial para
lecionar nas escolas do Rio de Janeiro, tendia a apresentar como inspirações de
modelos femininos as damas de caridades, filhas obedientes e esposas honradas,
citando poucas que participaram do mundo público, inclusive tratando de
Elizabeth da Inglaterra como vã, ao mesmo tempo se referindo a ela como um dos
grandes homens de seu tempo, que acabou sendo tomada pela fraqueza
tipicamente feminina, o mal da inveja, ao mandar decapitar Mary Stuart por causa
de sua beleza28.
Joaquim Macedo não poderia somente reconhecer habilidades de
administração e gestão pública em Elizabeth, equiparando sua eficiência à de um
homem. O primeiro aspecto sobre modelos de gênero trazidos por ele dizia
justamente respeito à competência administrativa de Elizabeth ser considerada um
atributo de homem, excepcionalmente manifestado em uma mulher. O segundo
foi o fato de a manifestação da suposta essência feminina ter aparecido até mesmo
nela, cujo comportamento era masculino, tornando-a inexorável ou natural, tendo
aparecido como ‘a inveja tipicamente feminina’. O terceiro pode ser concluído a
partir do exame dessas considerações: a mulher, ao exercer uma função que não
caberia a ela, acabaria vendo aflorar uma manifestação negativa da sua
28
Referência realizada por Joaquim Manuel Macedo, autor de A Moreninha, em seu livro
Mulheres célebres, citado, por HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e
políticas: 1850-1937. Pp. 64-65.
105
feminilidade, que em vez de aparecer na forma da virtuosa mãe e esposa,
apareceria como rainha invejosa de um atributo que deveria ser perseguido por
todas as mulheres, a beleza. Em função do seu desequilíbrio natural para a
administração pública, Elizabeth terminou tomando uma decisão de ordem
pública com base em uma frustração como mulher. Quantas mensagens ou atos
performativos de gênero são transmitidos a partir da publicação de um renomado
professor de história contratado como referência pelo Imperador? Além de esses
padrões terem se instaurado nas práticas sociais, eles ganhavam força ao
chegarem à imprensa e se institucionalizavam, ou seja, ganhavam uma força ainda
maior com a manifestação de posições oficiais por parte de educadores de
referência e médicos. As práticas sociais serviam de base para as instituições que
devolviam as performances às práticas sociais com a força do argumento
institucional. O desafio das feministas era justamente perceber esse mecanismo e
provocar uma ruptura nele.
Sobre o fato de as mulheres solteiras poderem gerir a própria propriedade e
do Código Comercial de 1850 viabilizar o casamento de mulheres proprietárias de
negócios sem que este afetasse as obrigações comerciais, bem como sobre a
possibilidade de mulheres casadas poderem ingressar no comércio com a
autorização dos maridos, Francisca Diniz declarou que essas normas foram o
início da emancipação feminina, apesar de não ter se manifestado favoravelmente
ao divórcio como era o caso de Josefina Alvares de Azevedo, apesar de
acompanhar o feminismo norte-americano.
A educação das mulheres, ou a forma como elas deveriam ser educadas,
continuou sendo alvo de disputas, tanto como uma forma eficaz de se assegurar e
perpetuar as funções femininas, como uma possibilidade que as mulheres
poderiam ter para viabilizar a autonomia, em função de conseguirem uma
remuneração. Não foi por outro motivo que as notícias de que as americanas já
frequentavam o ensino superior produziram impacto nas discussões sobre o tema.
Cabe lembrar que a era da modernidade era um discurso bastante utilizado.
Grupos de jovens brasileiros que saíram do país para estudar engenharia em
Universidades americanas publicavam em seus jornais estudantis as notícias de
que esse país se desenvolvia com muita velocidade e que as chamadas luzes da
civilização derrubavam os preconceitos que colocavam as mulheres em situação
de desigualdade.
106
Se as americanas podiam frequentar as importantes Universidades, as
brasileiras também deveriam ter acesso à educação superior. Rapidamente a
imprensa feminista se manifestou sobre o tema, através de D. Violante no jornal O
Domingo, Francisca Diniz no O Sexo Feminino e Amélia Carolina da Silva Couto,
no Echo das Damas. No início da década de 1870, elas já haviam se manifestado
contra a interdição de mulheres atingirem as Universidades no Brasil, mas em
1874, a manifestação desses jovens fez com que elas se animassem em solicitar
que os homens modernos aderissem a essa causa. Ainda 1874 a brasileira Maria
Augusta Generosa Estrella, com catorze anos, viajou aos Estados Unidos para
iniciar seus estudos em medicina, conseguindo autorização especial na
Universidade, em virtude de sua pouca idade. Antes de sua colação de grau em
1881, Josefa Agueda Felisbella Mercedes de Oliveira também ingressou na
mesma faculdade de medicina. Elas se juntariam para publicarem A Mulher, em
Nova York, com o intuito de convencer as brasileiras de que todas tinham aptidão
para os estudos superiores.
O ensino superior foi aberto para mulheres no Brasil em 1879. As duas
estudantes de medicina nos Estados Unidos se convenceram de que as mulheres
precisavam trabalhar para conseguir alcançar a independência e que “qualquer
mulher que entender que por ser mulher não tem necessidade de estudar, instruirse e de trabalhar, comette um erro irreparável, e tarde virá a arrepender-se e
conhecer que errou na apreciação desta vida”29. Apesar da abertura, por diversos
motivos o ensino superior não foi acessível para que as mulheres passassem a ter
empregos com melhor remuneração. Um dos principais problemas dizia respeito à
escassez de ensino secundário, que nunca foi fácil de ser atingido por quem não
vinha das elites, especialmente por mulheres, ainda que estas tivessem famílias
influentes. A regra não era a existência de escolas mistas, ao contrário, estas
somente eram aceitas em cidades menores, que poderiam usar a falta de recursos
financeiros para instituir colégios para meninos e meninas.
Nesse sentido, era aceitável que a cidade fizesse somente uma instalação
que pudesse ser utilizada para ambos. As mulheres, por sua vez, poderiam ser
professoras em escolas mistas e para meninas, obviamente recebendo uma
29
Maria A. G. Estrella e Josefa A. F. M. de Oliveira, In HAHNER, June E. A mulher brasileira e
suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. P. 70.
107
remuneração inferior à paga para homens. Como as opções de trabalho para
mulheres que haviam sido educadas eram igualmente escassas, a remuneração
pior era aceita. Por esse motivo, a preocupação de se argumentar pela imprensa
que em função das características das mulheres em torno da maternidade, elas
deveriam ter exclusividade de ensino de crianças fazia sentido. Nesse momento
poderia representar um significante aumento de mercado de trabalho. Em relação
às cidades maiores, como o Rio de Janeiro, a educação mista não era bem vista
pela elite e não havia o argumento da falta de recursos que possibilitasse a
justificativa da co-educação, ainda que tal fato já fosse também realidade em
escolas americanas, modelo para a elite intelectual brasileira. As melhores escolas
secundárias estavam fechadas para as mulheres e o fato de serem escolas
separadas fazia com que a formação delas continuasse em defasagem se
comparada com a dos homens, pois a estrutura de ensino somente permitia às
mulheres o acesso ao conteúdo que a permitira ser uma mãe honrada e ótima dona
de casa. Foi por esse fator que Nísia Floresta foi tão criticada, ao tentar viabilizar
para meninas educação semelhante à dos meninos.
As escolas de excelência, como o Colégio Pedro II, referência em
educação pública de qualidade, não recebiam mulheres. No início da década de
1880, Hahner menciona que poucas mulheres foram admitidas nessa escola, mas o
período em que elas puderam frequentar as aulas foi muito curto, pois pouco
tempo depois houve mudanças no governo e o ministro que assumiu cancelou a
verba destinada ao pagamento da mulher que era contratada para acompanhar e
vigiar as meninas durante as aulas em uma instituição masculina. Ao se extinguir
o pagamento dessa funcionária, as portas do Colégio Pedro II foram fechadas para
meninas, pois elas não poderiam permanecer no estabelecimento sem a vigilância.
Somente no século XX essa escola abriu suas portas às mulheres. Antes disso,
elas estavam limitadas às escolas “apropriadas” às moças para que continuassem
estudando. Em regra, os colégios femininos eram caros e tinham currículo
incompatível com as exigências que elas deveriam preencher para ingressar em
uma Universidade.
No Rio de Janeiro, as opções gratuitas eram limitadas à escola normal e ao
Liceu de Artes e Ofícios, que a partir de 1881 abriu as portas às mulheres,
disponibilizando aulas de música, desenho e português, mas proibindo filosofia,
108
álgebra e retórica para mulheres30. É interessante perceber que ao mesmo tempo
em que se produzia na imprensa um discurso contrário à educação igualitária para
mulheres em virtude de sua aptidão natural para os cuidados da família, as portas
da ciência eram fechadas a elas e, na medida em que não se tem sequer a
possibilidade de tentar desenvolver uma habilidade, não será possível ter aptidão
para ela. A natureza, portanto, estava distante desses processos31. O que pode ser
percebido nesses casos foi o imenso esforço realizado por diferentes setores para
forjar o modelo de mulher que imperava a partir da segunda metade do século
XIX.
O problema de classe social aparece, por outro lado, atrelado ao gênero.
As mulheres da elite poderiam se esforçar para convencer as famílias a
financiarem a continuação de seus estudos. O problema da qualidade do ensino no
Brasil que as tornavam despreparadas para a Universidade era enfrentado por elas
já que as escolas públicas de qualidade estavam fechadas a todas as mulheres ou
restringiam matérias. Por outro lado, as escolas particulares preparavam-nas para
suas funções sociais. Essas dificuldades poderiam ser resolvidas caso fossem
estudar nos Estados Unidos. Sem dúvida nenhuma essa era uma dificuldade
grande, mas que algumas conseguiram ultrapassar, como por exemplo, as duas
médicas citadas acima e posteriormente Rita Lobato Velho, primeira mulher a
obter o grau de médica no Brasil (1887) e Ermelinda Lopes de Vasconcelos, que
conseguiu se tornar médica em 1888 e Antonieta Dias, médica em 1889 pela
escola de medicina do Rio de Janeiro. A hostilidade masculina em relação ao
30
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. Pp.71-72.
Pode parecer simplória a afirmação de que a natureza passa longe desses processos, mas não é,
basta lembrar as declarações recentes do antigo reitor de Harvard, Lawrence Summers, sobre a
suposta incapacidade de mulheres para ciências exatas. Ele iniciou dizendo que talvez fossem
áreas que exigissem mais tempo de dedicação, incompatível com as obrigações familiares, e
encerrou levantando a possibilidade de haver diferença biológica entre os sexos capaz de
determinar as aptidões de homens e mulheres. A primeira questão levantada por ele inclusive já
torna o argumento da natureza incoerente. Se há uma incompatibilidade em relação às tarefas
domésticas, o problema está justamente na distribuição dessas tarefas e não na natureza. A
consideração sobre a aptidão natural levantada em seguida é esvaziada em função dessa primeira
afirmação, que já aponta para o efetivo problema, o das formações diferentes a partir da concepção
de gênero, que perduram até os dias atuais. Donna Nelson, professora de química da Universidade
de Oklahoma e participante do congresso em que o reitor falou, afirmou chamou a atenção para o
desestímulo que as meninas sofriam nas escolas e os comportamentos sociais responsáveis por
distanciar as mulheres dessas áreas. Rápida menção sobre o episódio disponível em
http://www.apagina.pt/?aba=7&cat=142&doc=10647&mid=2. E já que o problema chega até os
dias atuais, é importante lembrar que a natureza está mais distante desse processo do que em regra
é imaginado e, por esse motivo, é errado falar em constatação ou descrição ao se analisar as áreas
nas quais há maior dedicação de homens e maior dedicação de mulheres.
31
109
exercício da medicina por mulheres continuou, pois as mulheres da elite deveriam
ter em mente a necessidade de permanecer em casa para supervisionar o trabalho
das mulheres de classe inferior e não se esforçarem para assumir funções
exercidas pelos homens de sua classe. As mulheres pobres deveriam trabalhar,
não deveriam ser impedidas de ter um meio de subsistência honesto, em casa de
família rica, obviamente, de acordo com o discurso da época.
A profissão que já há algum tempo havia sido possibilitada para mulheres
era a de enfermeira, mas as remunerações eram ruins e a formação muito limitada.
As vidas dessas mulheres, permeadas de renúncias, não havia sido fruto de
escolhas no que diz respeito ao exercício da profissão. Algumas poucas parteiras
conseguiram prestígio na área da saúde, bem como a enfermeira voluntária na
Guerra do Paraguai, Ana Justina Ferreira Néri. Atividades ligadas à área da saúde
deveriam recepcionar mulheres mais facilmente em função de uma forma de
interpretá-las como extensão do papel de cuidado. Porém, houve bastante
oposição em relação ao ingresso da mulher na medicina, combinando os fatores
gênero e classe. As da elite enfrentavam resistências da família e do marido, que
também tinha receio da liberação econômica da mulher, as das camadas populares
ainda eram inviabilizadas pela falta de recursos, e uma vez que não havia sequer
uma família a ser convencida para financiar seus estudos, a saída era limitada ao
trabalho nas casas de família ou ao exercício da enfermagem.
O modelo de família nuclear, que surgiu com a ascensão da burguesia e era
composto pelo grande patriarca que tinha ao seu redor filhos e mulher, provocava
uma violência extra sobre as mulheres das classes mais baixas. As mulheres
pobres, que precisavam trabalhar em função do seu dinheiro ser fundamental para
o sustento da família, definitivamente estavam longe de conseguir concretizar de
forma satisfatória a sua missão de mãe e esposa dedicada, com uma casa
impecavelmente limpa, filhos saudáveis e marido bem cuidado, que encontraria
no lar o reduto de tranquilidade após seu longo dia de trabalho. Havia então a
frustração do não cumprimento do seu papel primordial. O modelo era irrealizável
para essas mulheres, servindo somente para gerar mal-estar, decepção e
sobrecarga, pois o fato de trabalharem fora de casa não alivia as suas tarefas
domésticas. Por outro lado, afligia também as mulheres da elite, pois limitava as
suas possibilidades de vida. Havia um ponto em comum entre essas duas
mulheres: a situação na qual se encontravam nas famílias, ou a expectativa que se
110
tinha de que elas realizariam somente a função reprodutora e suas vidas seriam
pautadas por isso. O ideal de família que imperava no século XIX desvalorizava o
trabalho das mulheres pobres e ridicularizava a tentativa de saída para o mundo
público e para as grandes profissões das mulheres da elite32.
Com o objetivo de ilustrar as dificuldades enfrentadas pelas médicas
pioneiras no Brasil, Hahner resgata uma peça escrita por Joaquim José de França
Júnior, advogado, funcionário público e teatrólogo, encenada em 1889 chamada
“As doutoras”. A peça diz respeito ao casamento de dois colegas da faculdade de
medicina, um homem e uma mulher, que acabaram se casando após a formatura e
montaram um consultório juntos. A esposa insistia na igualdade deles no
casamento e competia com ele no consultório, obtendo êxito profissional e
colocando o casamento em risco. O pai da moça era um progressista e acreditava
na emancipação da mulher, já a mãe era tradicional e preferia que as mulheres se
restringissem aos seus nobres papeis de mães e esposas em vez de almejarem virar
doutoras. Por fim, a médica renuncia à sua carreira em função do ciúme gerado
por outra mulher e pelo amor de seu marido, que fazia questão de ser o chefe de
família tem um filho e abandona a carreira. A mãe dá um conselho adequado,
desses que deveriam ser dados às moças, e diz à filha que as leis da natureza
deveriam sair vitoriosas e a peça chega a seu fim quando a médica declara que o
filho seria suficiente para preencher a sua vida. Tal peça obteve sucesso, tendo
uma temporada de cinquenta apresentações33. Apesar desses esforços em sentido
contrário, a questão da igualdade entre homens e mulheres ganhou força e passou
a ingressar também na seara da igualdade política.
2.2
A saída para o mundo público: influência estrangeira, experiência
das mobilizações pelo voto e a conquista dos direitos políticos no
Brasil
Se o exercício da medicina por parte de mulheres, bem como o ingresso
delas no campo da educação eram ridicularizados em peças de teatro e
encontravam resistência social, conceber mulheres políticas e advogadas era algo
ainda mais difícil. No final do século XIX, as mulheres que se dedicavam à
32
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. Pp. 4647.
33
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850-1937. Pp. 74-75.
111
filantropia fora de seus lares já eram aceitas, mas aquelas que se atreviam a
invadir os assuntos públicos, campo de domínio exclusivamente masculino não
eram. O bacharelado em Direito era o início de um caminho de sucesso de
homens na vida pública, no mundo político, mas tal caminho foi dificultado para
as mulheres. As primeiras saíram da graduação em Direito no final da década de
1880 e não tinham facilidade para o exercício da profissão, tema esse que foi
abordado pelos jornais A Família e O Sexo Feminino. Myrthes de Campos
conseguiu autorização para defender um cliente no Judiciário somente em 1899.
A mesma peça de França Júnior, anteriormente citada, também contava
com uma advogada, que costumava encantar o Júri com suas roupas, assegurando
o seu sucesso no Tribunal e declarava que as mulheres deveriam ingressar nos
redutos másculos. Tal personagem chegou a se candidatar à deputada para
reformar as legislações brasileiras em prol da mulher, mas ela também não resistiu
ao casamento e à maternidade, abrindo mão de sua carreira na esfera pública.
Havia um incômodo no imaginário da época sobre a ideia de mulheres eleitoras e
mulheres políticas e na década de 1870 sequer os jornais feministas defendiam
tais hipóteses. Violante A. Ximenes de Bivar e Vellasco, ao contrário, chegou a se
manifestar contra a possibilidade de mulheres assumirem cargo no governo e no
exército. Jornais como Echo das Damas e O Domingo tiveram que esclarecer que
não tinham o intuito de provocar nas mulheres aspirações para ingressarem na
vida política através da defesa que faziam do direito à educação.
O Sexo Feminino também não reivindicou a possibilidade do voto
feminino, apesar de ter se declarado favorável a tal direito e se manifestar
esperançoso em relação a ele em um futuro próximo no Brasil. Porém, reconhecia
as dificuldades em relação ao tema, já que poucos homens eram considerados
eleitores no país e podiam exercer o direito ao voto. Francisca Diniz encontrou
maior facilidade para defender o direito ao voto para as mulheres em eleições
municipais, uma vez que os interesses regionais eram praticamente uma extensão
da esfera doméstica34. O voto era visto por Francisca Diniz como uma extensão do
direito da mulher. Sem dúvida, a agitação social em torno da República no final
da década de 1880 fez com que as feministas passassem a colocar o tema, já que
34
O argumento aparece em O Sexo Feminino. 20 de dezembro de 1873, 14 de janeiro de 1874, 11
de abril de 1874. In HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 18501937. P. 80.
112
argumentos extras em prol do voto feminino poderiam ser criados a partir do
discurso Republicano, novamente com inspiração no movimento feminista norteamericano.
O voto feminino nos Estados Unidos surgiu de mãos dadas com o
movimento abolicionista no início do século XIX. A estrutura colonial nos
Estados Unidos com propriedades pequenas nas treze colônias considerava a
família uma unidade de produção. De acordo com Branca Moreira Alves, todos os
membros dessa unidade eram produtivos, exceto os muito novos, e o trabalho de
todos era fundamental para o sustento da família35. A mulher estava submetida ao
homem tanto pela lei quanto pela cultura, mas na prática ela era tão fundamental
para o núcleo familiar quanto ele. Os problemas começaram com o crescimento da
urbanização, momento em que as atividades foram transferidas das casas para as
fábricas e que o trabalho acabou sofrendo a divisão entre doméstico e
extradoméstico. O homem passou a ser o responsável direito pelo sustento da
família, ao sair de casa para trabalhar. Esse modelo foi o que inspirou a
reestruturação da família no Brasil, apesar das diferenças substanciais entre as
colônias. Ao mesmo tempo, a religião protestante com a valorização do indivíduo
estimulou as americanas a iniciarem a participação na comunidade, nas
assembleias públicas. Theodore Weld, um dos líderes religiosos que
posteriormente casou-se com a feminista Angelica Grimké, dizia que as mulheres
inteligentes deveriam começar a orar e a falar36.
Nessa época o Norte do país despertava para a luta contra a escravidão,
momento em que as mulheres americanas começariam a ingressar no mundo
público. Esse era um tema propício e o motivo já foi mencionado, mas é
importante lembrá-lo. A participação da mulher nos movimentos abolicionistas
era facilmente justificável em virtude do apelo humanitário, compatível com os
sentimentos que agora seriam tipicamente femininos. Era mais fácil desculpar
uma mulher que quebrava os costumes e afrontava o público com o respaldo da
causa humanitária. Essas primeiras feministas entendiam que a libertação dos
escravos e a libertação das mulheres eram processos semelhantes. Em 1830
surgem as mais variadas associações femininas abolicionistas, que iriam inspirar
35
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 65.
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. PP. 6667.
36
113
posteriormente a participação da mulher brasileira em movimento semelhante,
apesar do papel das brasileiras ter sido reduzido à função auxiliar na abolição. O
problema foi que, na origem, o público que assistia às assembleias era composto
somente por mulheres, porém quando as americanas começaram a se expor diante
de plateias mistas ou masculinas os distúrbios começaram. Foi justamente esse
fator que as fizeram perceber a própria condição de sujeição delas, diferenciada da
sujeição vivida pelos negros. Por esse motivo, compreenderam que somente
conseguiriam influenciar nas decisões políticas caso conseguissem se tornar uma
força eleitoral.
Ao mesmo tempo em que as americanas passaram a se envolver com a
causa dos negros, os homens abolicionistas começaram a criticar essas
mobilizações associadas às causas feministas, na medida em que as mulheres
passaram a se expor e a falar para um público misto. As irmãs Angelina e Sarah
Grimké foram as primeiras mulheres que se dirigiram a uma plateia masculina e
em função disso sofreram protestos por parte do clero da Igreja Congregacional de
Massachussets, o que as motivou a trilhar os caminhos do feminismo. As irmãs
passaram a ser também alvo de críticas de líderes da causa abolicionista, que
consideravam “a opressão da mulher um mal menor, quando comparada à do
negro”37. É interessante notar como o feminismo encontrou resistência para se
constituir como movimento entre grupos progressistas. Nesse momento entre os
abolicionistas e, posteriormente, no Brasil, por exemplo, entre a esquerda,
conforme será examinado. Em 1848 Elizabeth Cady e Lucretia Mott convocaram
uma reunião pública sobre direitos das mulheres em Seneca Falls, em que
apresentaram a Declaração de Princípios com inspiração na Declaração de
Independência norte-americana.
Acreditamos serem estas verdades evidentes: que todos os homens e mulheres
foram criados iguais (...)
A história da humanidade é uma história de repetidas injúrias e usurpações por
parte do homem para com a mulher, tendo como objetivo direto o
estabelecimento de uma tirania absoluta sobre ela (...)
Ele a obrigou a submeter-se a leis para cuja criação ela não foi ouvida (...)
Ele a fez, se casada, civilmente morta aos olhos da lei.
Ele monopolizou quase todos os empregos melhor remunerados, e por aqueles
que lhe permite ter ela recebe apenas uma ínfima remuneração (...)
37
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 67.
114
Ele só lhe permite ter tanto na Igreja quanto no Estado apenas uma posição
subordinada (...)
Ele criou uma mentalidade falsa por formular para o mundo um código moral
com medidas diferentes para homens ou mulheres.
Ele se esforçou de todas as maneiras para destruir sua autoconfiança, rebaixar seu
respeito próprio e obrigá-la a uma vida dependente e abjeta (...)
Fica resolvido: que é dever das mulheres deste país assegurar para si o direito
sagrado do sufrágio38.
É interessante perceber que as mulheres se apropriaram dessa estrutura de
declaração que aparecia sempre ao longo de um processo revolucionário. Já havia
acontecido na França, com Olympe de Gouges, que escreveu a Declaração de
Direitos da Mulher e da Cidadã em 1791 e foi considerada perigosa demais pelos
Jacobinos, sendo enforcada em 1793, com a já mencionada inglesa Mary
Wollstonecraft em 1790 ao redigir a Reivindicação dos Direitos da Mulher, em
1790 e agora acontecia na história americana. Essas declarações eram a prova de
que os processos revolucionários haviam sempre sido excludentes, ainda que as
suas pretensões fossem alcançar um regime democrático em oposição à tirania
vivida por um povo, ou uma parte significativa dele. A opressão a qual as
mulheres estavam sujeitas até então não havia sido percebida por aqueles que
faziam parte dos processos revolucionários e as poucas mulheres que percebiam
as suas próprias condições eram sempre silenciadas, por um mecanismo em que
aqueles oprimidos repetiam o processo de opressão sobre outros, ou melhor, sobre
outras.
Nesses
termos,
essas
declarações
de
direitos
precisavam
ser
ressignificadas, apontando para a subjugação da mulher promovida pelo homem,
com o intuito de deixar claro que era uma forma de dominação.
Em Seneca Falls foi apresentada a proposta do voto feminino por uma
mulher, para um público amplo e misto, o que era algo ousado e problemático, na
medida em que elas não falavam para plateias mistas. O marido de Elizabeth,
Henry Stanton, líder abolicionista americano, chegou a se retirar do local ao ver a
defesa do voto feminino pela esposa. O fato é que esse momento de Seneca Falls
foi importante para que a condição das mulheres e a defesa de seus direitos, a
busca pela igualdade na participação política, deixasse de ser um pleito de poucas
mulheres e passasse a ganhar força entre o público feminino norte-americano.
38
Declaration of Sentiments and Resolutions, Seneca Falls. In SCHNEIR, Miriam (ed.).
Feminism. The essencial historical writings. New York: Vintage Books Edition, 1994. PP. 76-82.
Em português o trecho referido pode ser conferido em ALVES, Branca Moreira. ALVES, Branca
Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. PP. 68-69.
115
Branca Moreira Alves enumerou outras mulheres que surgiram na defesa do voto
feminino nos Estados Unidos a partir desse momento, como Lucy Stone, Suzan B.
Anthony e Antoinette Brown39 e ganharam destaque nas Convenções Feministas
cada vez mais nos Estados Unido.
O desenvolvimento das lutas pelo voto feminino nos Estados Unidos, bem
como a ascensão da mulher americana aos cursos universitários e o ingresso em
carreiras originariamente masculinas influenciaria a experiência brasileira na
construção do feminismo e nas principais demandas dele. Em 1867 os
movimentos abolicionistas e feministas conseguiam, ainda assim, caminhar
conjuntamente nos Estados Unidos. Porém, o encontro da American Equal Rights
Association ocorrido para a defesa de mulheres e negros foi o marco da ruptura,
na medida em que a Emenda Constitucional 14 somaria a palavra “masculino” ao
cidadão atrelando o voto aos homens. Apesar disso, no encontro foi resolvido que
a Emenda 14 seria defendida. Por conta de tal expressão Elizabeth Cady Stanton e
Susan Anthony iniciaram campanha contra a Emenda alegando que essa
expressão atrasaria o voto feminino. O movimento abolicionista solicitava que as
mulheres esquecessem seus direitos e aderissem somente à causa dos escravos,
pois os demais direitos viriam automaticamente após o fim da escravidão, sob
pena de se derrotar o sufrágio negro. Ocorreram diversas disputas sobre retirar a
palavra “branco” ou retirar a palavra “masculino” do requisito para o voto. As
feministas defendiam que ambas fossem retiradas, mas os abolicionistas
percorreram os Estados Unidos enfatizando a ruptura das causas, alegando que a
causa das mulheres poderia aguardar, enquanto que a hora da libertação do negro
havia chegado.
Com a ruptura das duas causas, Elizabeth Stanton e Susan Anthony
fundaram a National Woman Suffrage Association, composta somente por
mulheres, em Nova York, para que pudessem concentrar esforços para uma
atuação no Congresso Nacional em favor de emenda para o voto feminino.
Conjuntamente com a Associação, foi editada a publicação The Revolution, que
circulou entre 1868 e 1870, em que elas defendiam o voto, produziam críticas
referentes aos costumes e às leis, bem como ao papel da Igreja em reforçar a
subordinação da mulher. Nessa publicação o divórcio e a organização das
39
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 68.
116
operárias também foram defendidos, momento esse em que foi cunhado a frase de
efeito “salário igual por trabalho igual”40. Essas mulheres já tinham a percepção
de que as discussões não deveriam ficar restritas ao direito ao voto feminino, pois
o processo de dominação da mulher somente seria resolvido de forma adequada se
fossem observadas outras dinâmicas que as excluíam.
O voto não deveria ser o objetivo final a ser atingido pelo movimento
feminista, mas era um meio, ou melhor, era o início das reivindicações. Tanto
Elizabeth Stanton e Susan Anthony quanto Emma Goldman percebiam a relação
de sujeição da mulher atrelada à sua situação na família e atacavam o modelo
vitoriano, o que era considerado muito grave. Um movimento sufragista
moderado e sob a vigilância masculina deveria então surgir para tentar acalmar os
ânimos das reivindicações e a publicação Woman’s Journal passou a circular
também. Esta era mais aceita por ser distinguir da anterior por não enfrentar temas
caros ao modelo de família que havia se instaurado ao longo do século XIX. As
mulheres poderiam atuar na esfera pública, especialmente no mundo do trabalho,
aliás, a situação dos Estados Unidos no período de Industrialização exigia isso,
não mais como operárias somente, mas também como burocratas. A mão-de-obra
delas era requisitada. Tal jornal valorizava esse processo, mas era fundamental
lembrar às mulheres que o exercício dessas funções por elas era complementar. O
modelo de mulher vitoriana, que veio incidir também no Brasil a partir da segunda
metade do século XIX, limitava a atuação dessas feministas.
Para o Brasil, esse modelo responsabilizou a mulher pelos cuidados com a
casa e com a família, mas ao mesmo tempo parece ter permitido uma justificativa
para o trabalho feminino, na medida em que estereotipava as mulheres das
fazendas no Brasil como as sem função e colocava a necessidade do seu trabalho
frente à gestão privada da família, bem como estimulava o assistencialismo. A
partir desse momento essas mulheres passaram a reivindicar acesso à educação e
às posições mais prestigiadas no mundo do trabalho, primeiro ressaltando a
importância d esse ter uma mulher educada no lar, para em seguida inaugurar o
argumento da igualdade. Nos Estados Unidos o processo foi diferente, uma vez
que onde não havia o trabalho escravo, todos os membros da família
desempenhavam funções, e o modelo de mulher vitoriana impôs uma
40
Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 72.
117
desvalorização do trabalho feminino. O ideal era a inexistência dele, sendo aceito
no máximo o voluntariado, o que justificou a saída das mulheres americanas para
as lutas abolicionistas e fez com que elas percebessem a própria condição de
subordinação. O ponto em comum é que em ambos os países a situação instaurada
por esse modelo de mulher fugiu da mera repetição e foi possibilitada uma
reinterpretação, reinterpretação essa que originou o chamado feminismo, que
posteriormente ficou conhecido como feminismo liberal.
Ressalte-se que o feminismo não nasceu liberal e que mesmo as
mobilizações das americanas não estavam restritas ao voto ou aos direitos
individuais. Esses foram os que ganharam projeção no primeiro momento, por
circunstâncias daquela sociedade. Na verdade, a ruptura ocorrida entre as
feministas e os abolicionistas demonstra esse fato. É importante isso ser
enfatizado, na medida em que o argumento de que o feminismo seria burguês,
apesar de vazio e sem sentido, ainda retornar, inclusive entre os militantes da
esquerda brasileira. O feminismo liberal acabou sendo um marco, que ampliou o
rol de direitos das mulheres, mas não se pretendeu ser suficiente e as principais
sufragistas americanas sabiam disso. A afirmação do modelo de mulher vitoriana
na sociedade americana contribuiu para o feminismo cunhado ali, mas ao mesmo
tempo limitou as reivindicações, pois essas mulheres andavam sobre a linha tênue
instituída pela mulher vitoriana, que as permitiam sair ao espaço público, desde
que se sujeitassem a determinadas regras. Elizabeth Stanton e Susan Anthony
entendiam que o voto era somente o início, tanto que a publicação de seus jornais
ia muito além dessa reivindicação, tratando de questões sociais, culturais e
religiosas fundamentais para a manutenção da subordinação feminina. Essa foi
uma das razões pelas quais elas entenderem ser melhor recuar nas reivindicações.
Elas identificaram os problemas, mas ao mesmo tempo tiveram receio de que o
aprofundamento das questões fechasse as portas para o voto e para a intervenção
no mundo público41.
41
Em 1890 a NAWSA acabou se fundindo à AWSA, mais conservadora, para que a causa do voto
feminino ganhasse apoio popular. A defesa do divórcio, do amor livre e às críticas à estrutura
familiar, moral, religiosa e educacional foram propositadamente deixadas de lado. Essas mulheres
precisaram ceder, recuar sob pena de a causa fracassar completamente. Branca Moreira. Ideologia
e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 75. As feministas posteriores eram mais
conservadoras do que Elizabeth Stanton e Susan Anthony. Outras organizações feministas
americanas surgiram na primeira década do século XX, por conta da decepção com o
conservadorismo que a NAWSA havia passado a assumir com a geração seguinte de feministas.
Harriet Stanton, filha de Elizabeth Stanton, havia passado vinte anos na Inglaterra e decidiu fundar
118
A breve referência ao início da história do feminismo americano é
importante para se entender o contexto que inspirou as feministas brasileiras.
Cabe lembrar que os estudantes e as estudantes brasileiras que viajavam para os
Estados Unidos com o intuito de concluir a formação presenciavam essas
mobilizações, bem como as mulheres de classes mais altas que tinham condições
de viajar. Assim como os temas da educação e do trabalho da mulher, o voto
também passou a despertar o interesse das feministas brasileiras, ainda que
posteriormente. O voto tardou a entrar na pauta feminista brasileira, ao contrário
da experiência americana, em que logo as mulheres associadas ao abolicionismo
perceberam que precisariam combater a própria subordinação, na medida em que
ela foi identificada pela inviabilização da fala por parte de mulheres para
auditórios mistos. No caso brasileiro, talvez o voto não tenha sido alvo de
interesse por parte das mulheres desde cedo em virtude de ser algo profundamente
restrito, já que eram poucos os homens que votavam no Brasil. Francisca Diniz já
havia se manifestado favoravelmente acerca do voto feminino nas eleições
municipais antes mesmo de deixar Campanha e vir para o Rio de Janeiro, pois os
assuntos municipais estariam muito próximos aos domésticos, de acordo com a
sua argumentação.
O aumento dos debates sobre República no país ao longo da década de
1880 fez com que o assunto ganhasse espaço entre as feministas brasileiras.
Teoricamente, a proclamação da República em 1889 teria oferecido um espaço
mais aberto para esse tipo de reivindicação. Diversos eram os grupos que
tentavam se aproveitar do momento para ingressar oficialmente nos debates
políticos a partir da conquista do voto, como foi o caso dos trabalhadores urbanos,
a Women’s Political Union ao retornar aos Estados Unidos. Harriet Stanton pretendia reunir
mulheres de diferentes classes sociais em torno da causa da mulher, mostrando que era um
problema político, abordando o trabalho da mulher, desde a operária até a profissional liberal, pois
todas encontravam dificuldades decorrentes da “nulidade política” das mulheres. Líderes sindicais
como Charlotte Perkins Gilman e Florence Kelley aderiram a essa organização, fazendo com que
as operárias ingressassem na luta pelo sufrágio feminino nos Estados Unidos. As demandas
trabalhistas foram também incluídas na agenda feminista a partir desse contato, que não era mais
viabilizado pela NAWSA. Alice Paul, também insatisfeita com os rumos da principal
representação feminista nos Estados Unidos, em 1913fundou o Woman’s Party, importando a
estratégia combativa das Pankhursts na Inglaterra, presas por perturbação da ordem pública. Ela
trouxe para os Estados Unidos a prática do piquete. As pressões sobre o Congresso Americano,
portanto, vinham de diferentes associações e práticas. Em 1918 a Câmara dos Deputados aprovava
o voto e em junho de 1919 o Senado fazia o mesmo. Em setembro de 1920 foi aprovada a 19ª
Emenda à Constituição.
119
e com as mulheres o mecanismo foi o mesmo. Assim que houve a proclamação da
República, Francisca Senhorinha Diniz alterou o nome do seu jornal, que passava
a ser O Quinze de Novembro do Sexo Feminino e destinou uma coluna fixa sobre
o tema em todas as edições. Interessante observar que Francisca Senhorinha
estava revendo seu posicionamento sobre o tema e se tornando pioneira no
assunto, pois apesar de ter havido tal reivindicação no Echo das Damas ao longo
da década de 1880, a editora Amélia Carolina da Silva Couto entendeu que seria
muito cedo para que as mulheres votassem em eleições, sendo ainda necessário
que estudassem os assuntos públicos antes de ingressar nessa arena42. Josefina
Alvares de Azevedo em 1889 também defendia o voto da mulher em diversas
conferências que realizou no Nordeste. Assumia que o voto facilitaria a defesa dos
interesses das mulheres, tanto no lar quanto fora dele. Nesses termos Josefina
Azevedo percebia o mesmo que as pioneiras americanas, apesar de não declarar
expressamente, que o voto seria apenas o início de uma longa luta por direitos.
Ao mesmo tempo em que havia a defesa do voto feminino na imprensa
feminista, diversas brasileiras tentavam se beneficiar das ambiguidades sobre o
tema na legislação e são vários os casos de mulheres que tentaram exercer o voto
antes que a legislação permitisse expressamente. Alguns nomes podem ser citados
para exemplificar essa luta, aparentemente individual, de mulheres que pleitearam
o voto em virtude de preencherem os requisitos formais para votar. A primeira
referência encontrada foi o caso da dentista gaúcha Isabel de Sousa Matos, em
188143. O argumento utilizado pela dentista era de que como portadora de título
científico, ela poderia exercer esse direito. De fato, a legislação brasileira não
vedava expressamente o voto feminino. A Constituição vigente na época de sua
reivindicação, a de 1824, fazia referência expressa em relação a critérios de classe,
mas de gênero não. Por esse motivo, em um primeiro momento caberia o
entendimento de que o problema era de classe e de raça, uma vez que para os
42
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850 – 1937. P. 81.
Referência encontrada em PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P.
15. Branca Moreira Alves apresenta a dentista como Isabel de Mattos Dillon, narrando que essa
mulher conseguiu exercitar o voto ainda durante o período monárquico em função de ter apelado à
Lei Saraiva, que dava aos detentores de títulos científicos o direito de votar. Segundo essa autora,
ela teria também tentado se apresentar como candidata à Assembleia Constituinte de 1890-1891,
alegando que a legislação não vedava tal participação às mulheres. O Ministro do Interior do
Governo Provisório, Cesário Alvim, teve conhecimento do pedido de Isabel e proibiu o voto
feminino no Regulamento Eleitoral que deu forma à Assembleia para evitar que pedidos
semelhantes voltassem a acontecer. ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da
mulher pelo voto no Brasil. P. 91.
43
120
libertos havia vedação expressa, e não de gênero, não havendo esse tipo de
impedimento realizado no mais elevado documento normativo do país44. Em sua
terra Isabel de Sousa Matos conseguiu o direito ao voto. Porém, ao tentar se alistar
no Rio de Janeiro em 1890 ela não obteve êxito, tendo o direito suspenso. Ainda
no século XIX, Isabel Dilon tentou se candidatar para a Assembleia Constituinte
pela Bahia dentro do espírito de que em uma República as portas seriam mais
facilmente abertas para as mulheres, mas não foi permitido a ela que se alistasse.
A oposição masculina ao voto da mulher era difícil de ser combatida e o
mais grave é que ela era, em regra, velada e não expressa, tanto que as legislações
não tinham sequer a preocupação de proibi-la. Havia uma concepção de mulher
atrelada à ideia masculina de família e de distribuição de papeis sociais no qual
não era sequer cogitado que as mulheres pudessem pleitear tal direito, uma vez
que, no mundo público não deveriam ingressar. O âmbito de seu domínio e
“natural” interesse era restrito ao lar. Esse tipo de argumento foi rebatido na
imprensa feminista por Maria Clara Vilhena da Cunha, colaboradora de Josefina
de Azevedo, no jornal “A Família”. Maria Clara desmistificava que o âmbito
doméstico era a área em que a mulher deveria exercer o seu domínio, pois ainda
no lar o homem era aquele que predominava, os seus interesses eram os que
prevaleciam e cabia a ele a tomada das decisões importantes, bem como a
administração do patrimônio da família45.
O tema ganhou projeção e na Assembleia Constituinte para elaborar a
Constituição Republicana de 1891 ele chegou a ser debatido. Houve a
44
Art. 91 da Constituição de 1824:
Têm voto nestas Eleições primárias
I Os Cidadãos Brazileiros, que estão no gozo de seus direitos políticos.
II Os estrangeiros naturalizados
Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos
Conselhos de Provincia todos os que podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam-se
I Os que não tiverem de renda líquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria,
commercio, ou emprego.
II Os Libertos.
III Os crimonosos pronunciados em querela, ou devassa.
Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, são hábeis para serem nomeados Deputados.
Exceptuam-se
I Os que não tiverem quatrocentos mil réis de renda líquida, na forma dos Arts. 92 e 94.
II Os Estrangeiros naturalizados.
III Os que não professarem a Religião do Estado.
Art. 96. Os Cidadãos Brazileiros em qualquer parte, que existam, são elegíveis em cada Distrito
Eleitoral para Deputados, ou Senadores, ainda quando ahi não sejam nascidos, residentes ou
domiciliados.
45
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850 – 1937. PP. 83-84.
121
inviabilização de uma candidata para tal Assembleia, mas a possibilidade de voto
feminino precisava ser discutida por aqueles encarregados de elaborar a
Constituição Republicana. Alguns defensores dessa possibilidade foram Nilo
Peçanha, Epitácio Pessoa e Hermes da Fonseca. Porém, o voto não foi aprovado.
Hahner esclarece que os Constituintes discutiam sobre a infantilidade do cérebro
feminino, perturbados com o argumento de Tito Lívio de Castro46. Os
constituintes não se sentiam confortáveis em simplesmente assumir que era isso o
que pensavam sobre as mulheres, mas acabavam encontrando outros argumentos
para inviabilizar o voto delas. Poucos admitiam que realmente achavam que as
mulheres eram fisicamente e mentalmente incapazes de agüentar os conflitos que
ocorriam no mundo público. Lacerda Coutinho foi um que entendeu que nem a
educação seria suficiente para produzir alterações na natureza feminina. Em suas
palavras:
O Sr. Lacerda Coutinho - Mas, Sr. Presidente, quando ás mulheres coubesse esse
direito, entendo que não se lho deveria dar; e digo mais: Ellas não o acceitariam;
porque, si querem elevar a mulher, dando-lhe o direito de voto, não fazem mais
do que amesquinhal-a , fazendo-a descer da elevada altura em que se acha
collocada, da esphera serena da mãe de família, para vir entrar conosco no lodaçal
das cabalas e tricaseleitoraes. A mulher deve ser a educadora da família, que tem
de succeder-lhe nas virtudes domesticas; dar-he o direito do voto é privar o filho
da solicitude com que a mãe sobre elle deve velar, de maneira que quando o
homem retirar-se da lucta da vida externa e for entrar na vida interna, elle irá alli
encontrar uma lucta mais cruel, porque a mulher é metade de si mesmo, e será
metade de si mesmo contra a outra.
O organismo da mulher é muito diverso; Ella tem funcções que o homem não
tem, essas funcções são tão delicadas, tão melindrosas, que basta a menor
perturbação nervosa, um susto, um momento de excitação, para que se pervertam,
e as consequencias sejam muitas vezes perversas.
46
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850 – 1937. P. 84. Tito
Lívio de Castro formou-se em medicina e um dos trabalhos produzidos foi “A mulher e a
sociogenia”. Apesar de argumentos problemáticos se examinados a partir dos parâmetros atuais,
Lívio de Castro fazia a defesa do divórcio, entendendo que a instituição do casamento como se
encontrava somente atendia às necessidades de parcela reduzida da sociedade, sendo urgente a
possibilidade de ruptura dos laços do casamento para que se estimulasse a oficialização das
relações conjugais. Além disso, o jovem médico também argumentava que a diferença intelectual
entre homens e mulheres não era um dado natural, de inaptidão feminina. Em primeiro lugar
porque havia diferenças intelectuais entre homens em virtude do acesso à educação, em segundo
lugar porque a diferença no acesso e na qualidade da educação recebida pelas meninas era ainda
maior. Ele fazia, acima de tudo, uma crítica profunda ao sistema educacional brasileiro. Em suas
palavras: “Nos outros paizes surpehende ver quanto é diminuta a instrucçãoda mulher em relação á
do homem; no Brazil a supreza está em ver-se como é possível que a mulher ignore ainda mais do
que o homem. Correndo embora os riscos a que se sujeita quem diz francamente a verdade,
resumiremos as condições actuaes da instrucção no Brazil dizendo – A instrucção no homem é
quasi nulla; na mulher é nulla”. LIVIO DE CASTRO. A mulher e a sociogenia. Obra Posthuma.
Publicada sob a direcção de Manoel da Costa Paes. Rio de janeiro: Francisco Alves C. PP. 202,
216-217.
122
O Sr. Lopes Trovão – Isso vem da educação.
O Sr. Lacerda Coutinho – O meu illustre collega está enganado, eduque a mulher
como quizer que, não lhe há de mudar a natureza, porquanto as leis naturaes
podem-se contrariar, mas não se postergam47.
Nesse sentido, houve um esforço para se criar um determinado modelo de
mulher que iria ser fundamental para a manutenção da estrutura familiar nascente
no Brasil a partir do século XIX, com a utilização de imprensa, de discursos
médicos, higienistas, e outros especialistas, ou seja, os mais variados atos
performativos para moldar essa natureza feminina, que na Constituinte foi
utilizada para inviabilizar o direito ao voto. A nobreza e a pureza femininas foram
defendidas por esses especialistas para colocar as mulheres como responsáveis
pelo bom funcionamento da vida doméstica. Em seguida, foram apropriadas pelas
mulheres nas origens da imprensa feminista para reivindicar acesso à educação e
ao trabalho, e agora seriam utilizadas para justificar a impossibilidade do voto
feminino. A domesticidade das mulheres foi construída e atribuída como um dado
natural e na Assembleia Constituinte tal argumento apareceu. A natureza
doméstica da mulher implicava na inaptidão para diversas atividades, por esse
motivo, poder-se-ia dividir as tarefas em masculinas e femininas, e tal raciocínio
perdurou por muito tempo.
Além desse fator do espaço doméstico, as mulheres também supostamente
seriam mais emotivas, atuando a partir de sentimentos do que utilizando a razão.
Elas, portanto, serviriam para os cuidados da família e do lar, mas não para o
mundo público. No lar ela seria o tal anjo que daria conforto e ampararia a
família, seria a companheira afetuosa de seu marido. É interessante perceber
justamente esse esforço de se criar o modelo, repetindo supostas aptidões naturais
femininas, ao mesmo tempo em que se argumenta que determinados direitos não
devem ser dados às mulheres para não desvirtuá-las. Isso demonstra a contradição
desses argumentos que reivindicam diferenças naturais para fundamentar as
diferenças de gênero. Se fossem aptidões naturais, não se deveria sequer pensar na
possibilidade de desvirtuamento e se há necessidade de se preocupar em não
47
Annaes do Congresso Constituinte da República. II: 544. Sessão de 14 de janeiro de 1891.
Disponível em:
<http://imagem.camara.gov.br/dc_20a.asp?Datain=14%2F01%2F1891&txPagina=544&txSuplem
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123
permitir a degeneração das mulheres e com isso das famílias é porque não há nada
natural nessa estrutura. Havia uma preocupação de que ao se permitir o voto
feminino, as mulheres passassem de companheiras de seus maridos a rivais,
enquanto que elas deveriam estar restritas somente a ser a base moral da
sociedade. Havia um tom aparentemente de preocupação nos discursos, de
resguardo dessa nobre categoria, a mulher, em relação ao mundo público, que
seria infestado de maldades, no intuito de preservá-la. Porém, notoriamente a
preocupação era com a questão da concorrência, com o receio de que os espaços
públicos deixassem de ser exclusivamente masculinos.
O positivista Lauro Sodré, na Assembleia Constituinte de 1891, entendia
que o voto feminino era algo anárquico e fatal48. Esses tipos de posicionamentos
fizeram com que Josefina Alvares de Azevedo atacasse na publicação A Mulher
Moderna profundamente a filosofia positivista, por seus representantes tratarem as
mulheres como seres sem cérebro e sem qualquer possibilidade de
desenvolvimento. Até esse momento na história brasileira os exemplos
estrangeiros serviam para a manutenção dessa condição, já que em nenhum lugar
a mulher tinha o direito ao voto, e os brasileiros olhavam muito para fora do país,
no intuito de garantir um tom moderno para as suas discussões49. Os constituintes
brasileiros se atrelaram à legislação estrangeira enquanto que as feministas
brasileiras cada vez mais tinham notícias do desenvolvimento das lutas das
chamadas sufragetes na Inglaterra e nos Estados Unidos.
Um dos que se manifestou favoravelmente ao voto das mulheres foi César
Zama, considerando o tema como uma questão de Direito, tendo sido um dos
responsáveis por trazer o tema do sufrágio para a Assembleia Constituinte, na
sessão e 30 de dezembro de 1890, dizendo “Aceitando a República democrática,
exijo-a com a sua condição indispensável, com o sufrágio universal, tão universal
48
Annaes do Congresso Constituinte da República. II: 478. Sessão de 13 de janeiro de 1891.
Disponível
em
<http://imagem.camara.gov.br/dc_20a.asp?Datain=13%2F01%2F1891&txPagina=478&txSuplem
ento=&BtData=Pesquisa&opcao=7&selCodColecaoCsv=C&selDataIni=06%2F01%2F1890&selD
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49
O primeiro lugar a permitir o voto feminino foi a Nova Zelândia, em 1893. Portanto, se os
argumentos favoráveis ao voto feminino tivessem obtido êxito na Constituinte de 1891, o Brasil
seria pioneiro no tema.
124
que até às mulheres se estenda o direito de tomar parte no festim político”50. Ele
criticava os constituintes contrários, uma vez que eles teriam um receio infundado
de que o exercício do voto por parte das mulheres traria uma desorganização do
lar e da família. Esses constituintes, segundo César Zama, não conseguiam
explicar os motivos pelos quais o voto faria isso com os lares, ressaltando ainda
que tal direito seria uma questão de tempo, e que bastaria que qualquer país
importante na Europa concedesse direitos políticos às mulheres para que o Brasil
o imitasse, sem colocar a questão do enfraquecimento das famílias. Apesar disso,
Branca Moreira Alves observa que César Zama somente se manifestou em prol do
voto feminino para defender também o voto de analfabetos, o que explicaria a fala
dele, no sentido de se estender “até às mulheres” o direito ao voto, parecendo ser
esta a última categoria ao merecimento de inclusão nos direitos políticos.
Costa Machado teria sido, de acordo com essa autora, o constituinte que
pediu a palavra para especificamente fazer a defesa do sufrágio feminino, e o
interessante é que parece que tal constituinte reclamou da arbitrariedade da mesa
em função de ter demorado a ceder o tempo na tribuna51. Apesar de não estar
expresso em nenhum lugar, pode-se concluir a partir dessa constatação da demora
que o problema era, de fato, o voto da mulher e o tema precisava ser abafado, e
muitas vezes o caminho mais interessante para tal empreitada não é sequer
contradizê-lo e sim simplesmente ignorá-lo, fingir que a questão não existe e, com
isso, tentar expulsá-lo da história. Essas considerações não seguiram em frente,
não possuíam espaço na época, tendo sido o problema identificado, porém,
deixado de lado, conforme aconteceu também entre as pioneiras americanas.
Poucos republicanos mais radicais eram favoráveis aos direitos políticos para as
mulheres, Lopes Trovão, além de defender o sufrágio feminino também se
manifestava favoravelmente ao divórcio, mas o fato é que estes eram uma
minoria. Hahner atenta para o fato de até mesmo uma proposta conservadora de se
conceder o voto para mulheres com elevada qualificação, com títulos
universitários, ou que tivessem propriedade sem estarem subordinadas a uma
autoridade de um pai ou de um marido conseguiu ser aceita. Isso demonstra
claramente que a dominação de gênero estava posta. Os positivistas chegaram a
50
Anais do Congresso Constituinte da República. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1924, v. I, p.
1052. Além disso, a referência também está em ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo:
a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 98.
51
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 98.
125
defender a inclusão de homens analfabetos como detentores de direitos políticos,
o que também não foi aceito, mas mulheres portadoras de diplomas universitários
nem cogitaram em apoiar, afinal, eram mulheres52.
Apesar das feministas brasileiras terem se frustrado com a não aprovação
do voto feminino na Constituinte, o fato era que o tema estava posto e a partir
daquele momento as discussões somente seriam ampliadas. Além disso, a boa
notícia era que a Constituição de 1891 não vinha afirmando o voto feminino, mas
também não vedava, simplesmente ignorando o tema. O que por um lado poderia
significar que se as mulheres não eram sequer cogitadas como capazes para
exercício de direitos políticos, por outro lado, permitiria que em um momento
mais breve o direito voltasse a ser reivindicado. A vedação expressa sem dúvida
tornaria a argumentação em favor do voto das mulheres mais trabalhosa. A
redação do artigo referente à possibilidade de votar ficou da seguinte forma na
Constituição de 1891:
Art. 70. São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos, que se alistarem na forma
da lei.
§ 1° Não podem alista-se eleitores para as eleições federais, ou para os Estados:
1° Os mendigos;
2° Os analfabetos;
3° As praças de pret, excetuados os alunos das escolas militares de ensino
superior;
4° Os religiosos de ordens monásticas, companhias, congregações, ou
comunidades de qualquer denominação, sujeitas ao voto de obediência, regra, ou
estatuto, que importe a renúncia da liberdade individual53.
52
HAHNER, June E. A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas: 1850 – 1937. P. 87.
Foi apresentada na Assembleia Constituinte emenda dizendo “1°) Fica garantida às mulheres a
plenitude dos direitos civis, nos termos do artigo 72. 2°) Fica conferido o direito eleitoral às
mulheres diplomadas com títulos científicos e de professora, às que estiverem na posse de seus
bens, nos termos da lei eleitoral”. Anais do Congresso Constituinte, v. II, p. 439, 1-1-1891. Apud
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 99. A
pretensão sequer foi garantir o voto a todas as mulheres. A proposta concretamente apresentada,
no caso do voto feminino, combinava critérios econômicos, o que é algo muito eficaz para se
romper com a frágil estrutura de um feminismo nascente, criando cisões internas e possibilitando
argumentos já conhecidos de que o feminismo seria algo burguês, etc. Novamente, essa concepção
parece não ter surgido com as militantes feministas e sim a partir de freios externos a elas no
intuito de impossibilitar avanços. De qualquer forma, a emenda caiu, com o auxílio do parecer de
Almeida Nogueira:
Declaro que votei contra a emenda assinada pelos senhores Saldanha Marinho e outros, conferindo
o direito eleitoral às mulheres, porque coerente com as idéias que expendi na sessão de 2 do
corrente, considero escusada e inconveniente aquela menção especial e expressa, visto achar-se
compreendido implicitamente o direito das mulheres ao alistamento eleitoral e ao exercício do
voto, na generalidade dos termos do projeto constitucional de todas as leis e regulamentos
eleitorais.
Anais do Congresso Constituinte, v. II, p. 617, 16-1-1891. Também em ALVES, Branca Moreira.
Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 99.
53
126
No período após a Constituição de 1891 as discussões sobre os direitos
políticos das mulheres seriam intensificadas. Como dito acima, o tema estava
posto e, além disso, estava mal resolvido. A advogada Myrthes de Campos,
primeira mulher a ser aceita e ingressar no Instituto da Ordem dos Advogado, a
partir de 1910 começou a se empenhar em demonstrar que o desempenho das
mulheres em funções tradicionalmente masculinas poderia ser de excelência, a
partir de seu exemplo. Mulheres como ela se encarregavam sempre de fazer de
suas histórias esse exemplo, obrigando-se a um desempenho profissional melhor e
mais eficiente do que os desempenhos de seus colegas de profissão homens, para
que a ruptura com seus papeis tradicionais fosse justificada. Myrthes de Campos
reiniciou o procedimento de requerer o alistamento eleitoral utilizando o
argumento de que a legislação não vedava o voto da mulher. O seu pedido foi
indeferido, porém, essa lacuna do texto foi utilizada outras vezes.
Branca Moreira Alves ressalta que na comarca de Minas Novas, em Minas
Gerais, no ano de 1905 três mulheres conseguiram se alistar e votar: Alzira Vieira
Ferreira Netto, posteriormente formada em medicina, Cândida Maria dos Santos,
professora de escola pública e Clotilde Francisca de Oliveira54. A retomada dos
debates sobre o tema de forma sistematizada foi promovida especialmente pela
professora Leolinda Daltro, que também requereu o alistamento com a petição
argumentando no sentido da constitucionalidade do voto, mas teve o pedido
negado. Leolinda foi uma das fundadoras do Partido Republicano Feminino, em
1910, cujo paradoxo interessante era ser um partido político fundado por pessoas
que não tinham direitos políticos e, nesse sentido, a atuação dele deveria ser fora
dos padrões instituídos de atuação dos partidos. A fundadora já tinha uma
trajetória peculiar e exótica para uma mulher de seu tempo, pois criou sozinha
cinco filhos após se separar do marido e iniciou uma caminhada solitária em 1895
pelo interior do país defendendo os índios, especialmente em virtude não somente
do extermínio físico, como também da catequese imposta a esses grupos. A outra
A questão de se explicitar ou não um grupo minoritário que deveria ser alcançado por uma norma
geral é um ponto ainda hoje problemático, com o argumento falacioso de que esses grupos já
estariam abrangidos pela categoria mais ampla. Nesse sentido, constata-se que a discussão já havia
acontecido em 1891. Na Assembleia Constituinte de 1987-1988 o tema retorna, com constituintes
dizendo que era absurdo haver menção sobre negros, índios e mulheres, uma vez que todos eram
humanos, estando representados. O exemplo irá ser trabalhado no momento adequado.
54
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 95.
127
fundadora renomada foi Gilka Machado, conhecida por provocar escândalos em
função de sua produção de poemas eróticos.
No ano de 1917 elas promoveram uma marcha no centro Rio de Janeiro
em defesa do voto feminino, que contou com a participação de noventa mulheres.
Sem dúvida, era um número reduzido que participava dessas atividades,
especialmente se comparada às experiências americanas. Porém, o objetivo era
dar publicidade a essa reivindicação e se apropriar de um espaço que ainda era
primordialmente masculino, o espaço público. Apesar das poucas mulheres
envolvidas na marcha, houve alguma repercussão, pois no mesmo ano o deputado
Maurício de Lacerda apresentou um projeto de lei na Câmara dos Deputados que
instituía o sufrágio feminino no país. Branca Moreira Alves cita a justificativa da
proposta, bastante interessante de ser analisada em um trabalho que examina
discursos55. O deputado entendia que a mulher já havia se inserido em todas as
atividades e se demonstrado tão eficiente quanto o homem, o que tornava
superado o argumento de que o sexo feminino era incapaz. É interessante observar
que o critério ou parâmetro de qualidade no exercício dessas tais atividades
invadidas pelas mulheres era o exercício das mesmas por homens. Como a mulher
havia se equiparado a ele na eficiência, logo ela era legítima para reivindicar esse
lugar e fazia jus ao voto. O deputado ainda apresentou críticas à forma como o
termo “cidadãos” do artigo da Constituição de 1891 estava sendo interpretado,
pois se o artigo 70 não fazia referência ao sexo como critério que geraria a
impossibilidade de se alistar, então a mulher estaria automaticamente incluída. Por
fim, o deputado também fez uso da questão moral, atrelando a elevação do nível
de moralidade do eleitorado à possibilidade de participação política da mulher.
A relação entre mulher e moral é constantemente reafirmada e não poderia
ser diferente nesse momento. As mulheres já haviam conseguido reivindicar o
acesso à educação justamente por se verem responsáveis pelo desenvolvimento
moral da família, em um processo de distorção e ressignificação das intenções
originais de se deixá-las restritas ao âmbito doméstico. No momento da
reivindicação do voto esse podia ser também um argumento forte, afinal, se elas
eram dotadas dessa moral mais elevada, nada mais “natural” do que em vez de
fazer com que esse benefício fosse de proveito exclusivamente doméstico,
55
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 96.
128
passasse a ser usufruído também pelo mundo público – os benefícios de se terem
seres moralmente mais elevados gerindo as coisas públicas. Estrategicamente, era
uma porta de entrada válida naquele momento. Era um meio de fazer o tema ser
mais aceito. Por outro lado, sabe-se de todas as implicações de se afirmar essa
suposta moralidade, que levam ao maior rigor na avaliação da atuação das
mulheres em âmbito público e das exigências mais severas em relação aos
comportamentos femininos na esfera privada, em virtude de resguardarem a honra
da família.
Cabe ressaltar que outros temas apareciam além do direito ao voto, como a
identificação da existência de uma exploração sexual que era vivenciada por
mulheres, antecipando um assunto que somente ingressaria de fato na agenda
feminista a partir da segunda metade do século XX, conforme esclarece Céli
Pinto56. O Partido Republicano Feminino teve suas atividades encerradas no final
da década de 1910, mas apesar da curta existência, conseguiu fazer com que o
tema dos direitos políticos para as mulheres ganhasse mais espaço. O voto
feminino, porém, não ficaria sem um grupo que o defendesse após o encerramento
das atividades do Partido Republicano Feminino.
No ano de 1918 a jovem Bertha Lutz, talvez uma das feministas mais
conhecidas no país posteriormente, voltava ao Brasil, após um período
considerável de estudos em Paris, onde fez sua formação como bióloga em
Sorbonne. Posteriormente se formou em Direito, em 1934. A situação da jovem
era estratégica em vários sentidos. Em primeiro lugar, o período fora do país a
colocou em contato com o feminismo europeu, e esse tipo de contato, como já foi
visto ao longo deste capítulo, foi fundamental para o aquecimento das
mobilizações internas, sendo um grande diferencial citar exemplos de países em
que as mulheres já possuíam mais direitos ou pelo menos suas causas eram
consideradas com mais seriedade. Além disso, Bertha Lutz pertencia a duas elites
brasileiras: a intelectual e a econômica. O fato de pertencer à elite intelectual fez
56
Conforme o Regimento do Partido Republicano Feminino, In PINTO, Céli Regina Jardim. Uma
história do feminismo no Brasil. Pp. 18-19.
§2° Pugnar pela emancipação da mulher brasileira, despertando-lhe o sentimento de independência
e de solidariedade patriótica, exaltando-a pela coragem, pelo talento e pelo trabalho, diante da
civilização e do progresso do século (...);
§4° Pugnar para que sejam consideradas extensivas à mulher as disposições constitucionais da
República dos Estados Unidos do Brasil, desse modo incorporando-a na sociedade brasileira. (...)
§7° Combater, pela tribuna e pela imprensa, a bem do saneamento social, procurando, no Brasil,
extinguir toda e qualquer exploração relativa ao sexo.
129
com que as portas da educação especialmente superior se abrissem a ela, pois era
filha de uma enfermeira inglesa e de um cientista brasileiro de renome, Adolfo
Lutz. Seus pais valorizavam a educação, tendo seu pai casado com uma mulher
com formação. Esse pertencimento à elite econômica garantiu que fosse
sustentada nos anos de estudo e, posteriormente, fez com que as portas de
políticos brasileiros fossem abertas a ela e à causa do voto feminino. Ela, portanto,
“tinha voz”, ela falava e era ouvida.
Bertha Lutz, ao regressar ao Brasil, começou a escrever cartas para a
Revista da Semana, em que iniciou sua campanha para despertar o interesse de
mulheres e discutir seus direitos, especialmente a grande questão pendente: o
voto57. Ela disse expressamente, de início, que se encontrava preocupada com as
condições femininas, afirmando que poderia sentir de forma mais direta os
problemas referentes ao tema em função de ter conseguido provocar uma ruptura
com o papel tradicionalmente imposto a uma mulher, na medida em que
ingressava em uma carreira científica. Ela conseguiu constatar em sua trajetória
estudantil que existiam outras mulheres iguais a ela, que conseguiram ultrapassar
os papeis que a elas eram destinados. Portanto, ela conhecia várias que poderiam
ser citadas como exemplo de que a mulher poderia e deveria se equiparar ao
homem. Elas eram bem sucedidas, e isso precisava ser de conhecimento público,
especialmente de outras mulheres. O intuito desse tipo de carta poderia ser o de
despertar nas mulheres o desejo de seguir abrindo caminhos em áreas entendidas
como masculinas.
Do meio do século XIX até o início do século XX, tem-se, então um
caminho que foi do direito à educação para melhor desempenhar suas funções
típicas dos cuidados com a família, passando simplesmente pela educação e
trabalho, especialmente porque algumas mulheres dependiam dele para se
sustentar dignamente, até chegar à igual capacidade de exercer essas funções
masculinas, que deveria resultar em aquisição de direitos, para que os interesses
das mulheres passassem a ser resguardados. Bertha Lutz desde seus escritos
iniciais se dizia irritada com a forma como seu sexo era tratado pelos homens,
reivindicando que as mulheres deveriam ser respeitadas como seres humanos e
57
Data do dia 28-12-1918 sua primeira carta, conforme esclarece Branca Moreira Alves. Revista
da Semana, Rio de Janeiro, 28-12-1918. Apud ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a
luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 99.
130
não como um artigo de luxo, que deve servir ao seu homem. Essa condição de
subordinação feminina, em sua opinião, era de responsabilidade, em boa parte,
dos homens, que detinham as instituições públicas, a política e a produção de leis
em suas mãos exclusivamente. Nesse sentido, ela reivindicava uma função
diferente para a mulher, descolada daquela estabelecida quando o modelo de
família passou a ser propriamente o burguês. Aqui cabe uma reflexão sobre a
forma como Bertha Lutz atuava. Tal feminista foi associada ao feminismo liberal,
ou burguês, especialmente por ter ficado tão centrada no sufrágio e por ter acesso
fácil ao poder. Ela lutava por direitos negados pelo Estado às mulheres, mas
viajava para conferências internacionais feministas representando o Estado
brasileiro. Apesar disso, não se deve deixar de reconhecer que a percepção dela
foi além do sufrágio, constatando o problema da distribuição de papeis e o acesso
à educação e a possibilidades profissionais, ainda que tenha centrado sua atuação
no sufrágio. Céli Pinto é uma autora que divide o feminismo do início do século
XX em um bem comportado e outro mal criado, sendo o primeiro o das
sufragistas, especialmente encabeçado por Bertha Lutz, e o segundo o anarquista,
liderado por escritoras, artistas e operárias, que colocavam a questão do trabalho.
Para Céli Pinto, as primeiras não afrontavam o poder, mas buscavam apoio nele,
já as segundas eram mais combativas58. Adiante, antes de ingressar na segunda
parte do capítulo, algumas peculiaridades em relação às feministas anarquistas
serão trabalhadas. Por hora, sem desmerecer uma ou outra corrente, o fato é que
Bertha Lutz, apesar de não realizar qualquer referência a questões econômicas ou
de classe, ajudou, com seu próprio exemplo, a divulgar outra possibilidade de vida
para mulheres, distante daquilo que era tradicionalmente esperado delas, inclusive
economicamente, na medida em que defendia o exercício de profissões
masculinas por mulheres, ao argumentar que o desempenho e a eficiência eram os
mesmos.
Para o modelo de vida doméstica da época, o estilo de vida de Bertha Lutz,
uma mulher cientista e política, com trânsito relativamente livre no mundo
público, não deixava de ser perturbador e tal figura liderava o movimento
sufragista com bastante empenho. Bertha Lutz fez uma proposta à colunista da
Revista da Semana para fundar uma associação com o objetivo de lutar pelos
58
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 38.
131
direitos políticos das mulheres. Tal colunista responde nega a proposta, mas faz
elogios à Bertha, enaltecendo sua inteligência, tendo ela sido “educada como a de
um homem”. Negou-se a tal empreitada justificando que o povo brasileiro não
teria o espírito associativo e as mulheres não saberiam “se amar a ponto de
poderem se congregar”. A colunista seguiu propondo que as esperanças deveriam
ser depositadas nas moças pobres, que precisavam trabalhar – e teriam o exemplo
de Bertha – e poderiam alcançar a independência econômica sem terem que fazer
uso da beleza para a própria subsistência59.
Essas falas são excelentes exemplos do que se esperava de uma mulher no
início do século, especialmente observando que foram ditas por outra mulher,
colunista de uma revista, que teoricamente seria propícia às rupturas dos modelos
de gênero. Em primeiro lugar, ela pretendeu fazer um elogio à Bertha Lutz,
equiparando sua inteligência à de um homem. Tem-se novamente a relação
hierárquica entre homens e mulheres, em que o homem seria o paradigma de
excelência a ser atingido caso uma mulher quisesse sair de seu mundo. Outra
questão trazida pela fala da colunista diz respeito à suposta falta de
companheirismo feminino, como se todas fossem inimigas inatas, ou incapazes de
qualquer constituição de comum em prol da defesa de suas vidas, ou melhor, da
saída da contingência na qual as suas vidas estavam inseridas. Por fim, a
referência feita em relação às moças pobres retrata que, apesar de se estar já no
meio da segunda década do século XX e o tema ter sido discutido na imprensa
feminista no século anterior, o trabalho feminino, em regra, era legitimado ou em
função de necessidade financeira, sendo a opção para que essas moças não
ingressassem na prostituição e se mantivessem honestas, com a possibilidade de
serem salvas por um casamento, ou para o voluntariado, no caso das mulheres de
classe média ou alta. O trabalho ainda não era visto como um caminho de
autonomia para as mulheres.
Nesses termos, Bertha Lutz era revolucionária, e segundo a colunista,
exemplo para as moças pobres, como se estas pudessem ter as esperanças de
naquela época ter acesso aos meios que possibilitaram a formação da feminista,
que contou com os recursos de uma família favorável ao investimento nos estudos
da filha. Tal constatação não invalida a experiência de Bertha Lutz, uma vez que
59
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 100.
132
ela poderia ter tido acesso a estudos, mas não ter se interessado, ou não ter
transformado a sua experiência em um fator que deveria ser viabilizado para as
mulheres. Qualquer movimento revolucionário precisa encontrar ou produzir
mínimas condições favoráveis para conseguir se constituir e continuar existindo.
Bertha encontrou essas condições em sua estrutura familiar. Teve a sensibilidade
de mostrar às brasileiras outras formas de vida para as mulheres, trazendo a
experiência vivida na França e atualizando as informações acerca das
mobilizações por direitos das mulheres na Europa.
No caso de Bertha Lutz, já que recursos financeiros não eram problemas,
assim como sua família aparentemente também não parecia ser um problema, a
sua luta seria direcionada especificamente para o voto, para a conquista de direitos
políticos por parte das mulheres. A questão da diferenciação política entre homens
e mulheres era a grande defasagem que sentia em sua vida. Portanto, ela não
reivindicaria além por entender que esse era o primeiro passo, no caso dela, um
passo fundamental. Não era esse feminismo um complô de mulheres burguesas,
era somente uma das formas de percepção da desigualdade e dominação
instituídas a partir dos paradigmas de gênero. Existiram outras formas de
perceber, a partir de experiências de outras mulheres, que também se encontravam
sujeitas a dominação de gênero. Nesses termos, uma não invalidaria a outra.
O feminismo anarquista surgiu dessas outras experiências. O início do
século XX também implicou em um aquecimento da indústria, aproveitando a
mão de obra de imigrantes que já haviam começado a chegar ao país no final do
século anterior. Esses imigrantes trouxeram com eles o ideário anarquista que já
perpassava a Europa, trazendo também discussões referentes à exploração do
trabalho praticada pelos capitalistas. Eles estimularam greves operárias no Brasil
e, além disso, tinham imprensa própria, em que a participação das mulheres como
colaboradoras foi muito forte60. Em relação às questões de dominação de gênero,
Céli Pinto afirma que os anarquistas, e posteriormente as pessoas ligadas ao
ideário comunista, tinham interpretações muito ambíguas, não reconhecendo essa
forma de opressão como autônoma, colocando-a em um patamar inferior aos
impactos da dominação de classe. A autora cita a experiência de Luci Fabbri,
anarquista brasileira que tinha resistências ao ideário feminista e somente aos
60
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 33.
133
noventa anos de idade, repensando a sua trajetória, reconheceu a peculiaridade das
questões de gênero. Ainda assim, Luci Fabbri fez uma referência fundada em nada
mais do que o tradicional papel atribuído à mulher, sem refletir sobre a imposição
do comportamento, ou a expectativa social de que as mulheres reproduzissem a
lógica do cuidado, atrelando o tema quase que a um aspecto natural do gênero
feminino. Nesses termos, a sua posição sobre o tema provocaria um impacto
menor do que as chamadas erroneamente de feministas liberais.
As mulheres têm algo de seu para dar, algo de gênero, uma experiência única não
competitiva: a economia doméstica, em que as crianças têm precedência, em que
os velhos estão assistidos porque são velhos, em que cada qual dá o que pode e
consome o que necessita, isto é a economia doméstica. Nos últimos tempos, tenho
pensado que vale a pena ocupar-se do problema da mulher sobretudo nesse
sentido61.
A análise de Luce Fabbri sobre a dinâmica das relações de gênero não
pareceu problematizar os motivos pelos quais caberia às mulheres justamente
passar por essa experiência não competitiva, cuidar de crianças e velhos. O
interessante é salientar que a apreensão dela sobre essa suposta natureza feminina,
é oposta à apresentada pela colunista interlocutora de Bertha Lutz, que atribuiu à
mulher uma especial dificuldade de reunião, em virtude de não conseguirem
companheirismo necessário para a organização de um grupo que atuaria em
comum. Ela poderia não ter problematizado essa divisão assumindo que,
independente de ser uma característica feminina ou não, ficava reservado às
mulheres esse tipo de tarefa, que desenvolvia habilidades diferentes das
masculinas e essa experiência seria igualmente válida inclusive para repensar as
formas de relacionamentos e o papel do cuidado. Nesse sentido, as mulheres
teriam contribuições a realizar uma vez que ficaram encarregadas dessas funções,
ainda que por imposição social62. De qualquer forma, ela não pareceu colocar em
xeque a estrutura familiar, como, por exemplo, as liberais americanas fizeram,
ainda que tenham sido obrigadas a recuar.
Apesar de Céli Pinto trazer o depoimento de Luci Fabbri ressaltando que o
feminismo não era bem visto entre os anarquistas, ela entende que as
61
RAGO, Margareth. Entre a história e a liberdade – Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo.
315. In PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 34.
62
A questão do cuidado é muito bem trabalhada por Rosiska Darcy de Oliveira aqui no Brasil,
especialmente no livro Reengenharia do Tempo.
134
manifestações mais radicalmente feministas estavam entre as anarquistas, no
início do século XX, pois elas identificariam a exploração da mulher em virtude
propriamente das relações de gênero. Segundo Céli Pinto, elas apontavam a
opressão masculina de forma direta, sem os pudores das sufragistas63, que tinham
uma preocupação maior em estabelecer contatos para conseguir conquistar o voto.
O gênero foi percebido pelas anarquistas como algo fundamental que estruturava
as desigualdades instituídas nas relações de trabalho, que foi citado em um texto
elaborado pela União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas do Rio de
Janeiro64. Essas mulheres anteciparam um tema que somente seria retomado no
final do século XX, uma vez que trataram sobre uma forma de opressão específica
que atravessava o tema do feminismo, implicando em suas diferentes correntes.
O poder dos homens estava fundamentado na dominação das mulheres, na
interpretação que Céli Pinto realiza sobre as anarquistas, enquanto que as
sufragistas
somente
se
preocupavam
com
inclusão.
Supostamente,
na
interpretação dessa autora, as sufragistas não teriam identificado a relação entre os
fatos dos homens terem mais poder e a exclusão das mulheres. Além disso, o
problema do trabalho era central para as anarquistas e as condições nele eram
piores em virtude do fato de serem mulheres. Um dos temas centrais era a jornada
de trabalho, e em seguida a dupla jornada de trabalho, que inviabilizava uma
maior qualificação das mulheres, o aprimoramento para ascensão pessoal e
profissional, decorrente da escassez de tempo.
Céli Pinto afirma que houve uma tentativa de aproximação entre as
anarquistas e as sufragistas no Brasil. Maria Lacerda Moura, mineira nascida em
1887, ativista anarquista e professora, tentou estabelecer vínculos com Bertha
Lutz. Maria Lacerda Moura escrevia sobre participação política, defendia o amor
livre e a educação sexual, também demonstrando preocupação com os impactos
da industrialização e da urbanização nas vidas das mulheres. Porém, a
63
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 34.
A Emancipação da Mulher
Vós que sois os precursores de uma era onde possa reinar a igualdade para todos, escutai: tudo que
fazeis em prol do progresso, militando no seio das nossas associações de classe, não basta!
Falta ainda alguma coisa, absolutamente necessária e que concorrerá mais eficazmente para o fim
desejado por todos os sofredores. É a Emancipação da Mulher. Homens conscientes!
Se refletirdes um momento, vereis quão dolorida é a situação da mulher, nas fabricas, nas oficinas,
constantemente amesquinhada por seres repelentes e vis. Trabalhadores!
A obra da União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas é a obra iniciadora da
emancipação da mulher.
União das Costureiras, Chapeleiras e Classes Anexas do Rio de Janeiro, 1920.
64
135
aproximação não teria dado certo e Maria Moura se colocou na década de 1920
contra as sufragistas, realizando uma oposição forte contra a proposta de Bertha
Lutz e a luta pelo voto, a partir do anarquismo. Maria Moura afirmou que a
emancipação da mulher não poderia ser resumida a tão pouco: “o programa
anarquista é mais vasto neste terreno; é vastíssimo; quer fazer compreender a
mulher, na sua inteira concepção, o papel grandioso que ela deve desempenhar,
como fator histórico, para a sua inteira integralização na vida social”65. Cabem
aqui algumas observações sobre esse discurso. Assim como a imprensa feminista
denominada mais comportada, a anarquista também tendeu a exacerbar o papel
social da mulher, na medida em que este seria “grandioso”. Já foi constatada a
ambiguidade desse tipo de estratégia, que, sem dúvida, tem o valor de pegar um
argumento originariamente cunhado para a manutenção da mulher na esfera
doméstica, para transformá-lo em um argumento favorável à reivindicação de
direitos para mulheres e à saída para o mundo público. Se ela deveria
desempenhar um papel grandioso para a sua integralização na vida social, ela
deveria, portanto, ter acesso à educação, à qualificação profissional e às mesmas
profissões dos homens. O risco disso é justamente a valorização do papel
tradicional da mulher, como a responsável pelos cuidados, aquela a ser preservada
ou poupada dos desgastes do espaço público. Portanto, no que diz respeito às
estratégias argumentativas, as anarquistas e as “comportadas” se aproximaram, na
65
A declaração de Maria Moura foi retirada de Céli Pinto, que trabalhou com a biografia escrita
por Miriam Moreira Leite e o embate entre as imprensas feministas chamadas como comportadas,
como a Revista Feminina, e a anarquista, como O Grito Operário e A Plebe. No jornal A Plebe,
Isabel Cerruti escreveu sobre o sufrágio: “A Revista Feminina em seu programa propõe propugnar
pela emancipação da mulher conseguindo para ela o direito de empenhar-se em lutas eleitorais. É
isto que chamam de emancipação feminina? (...) Qualquer reforma das leis vigentes que venha
conferir-lhe direitos políticos iguais aos do homem não a põe a salvo das chacotas e humilhações,
não a livra de ser espezinhada pelo sexo forte e prepotente,enquanto perdurar a moral social que
constrange e protege a prostituição”. A autora terminou o seu artigo na revista fazendo uma defesa
do amor livre. PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 37. É
interessante observar a perspectiva que ela tinha sobre a prostituição. Por esse trecho selecionado,
ela atrelava a existência da prostituição ao controle exercido sobre a sexualidade feminina e o
amor livre, por exemplo, seria uma forma de combatê-la. Em certa medida, ela estava correta, pois
a existência das prostitutas foi interpretada como necessária para a manutenção da honra das
moças, o que dividiria as mulheres em categoriais sociais, com papeis previamente definidos, as
moças de família, para casar, e as outras. Cada qual tem uma moral diferente, condizente com as
expectativas sociais sobre os seus comportamentos. Se essa moral fosse rompida, essa divisão seria
infundada, porém poderia ser levantada outra questão, que passa pelo problema da divisão de
papeis, mas também diz respeito a outro fator, o do desejo masculino, ou ao fato de homens
acharem que seus desejos sempre devem atendidos, ainda que para isso eles paguem, se recusando
ao aceite de uma negativa feminina. O sustentáculo da prostituição está ligado à moral sexual
imposta à mulher, à sociedade capitalista, conforme ressaltavam as anarquistas e também ao desejo
masculino, que seria o reflexo dessa moral instauradora da existência de duas mulheres.
136
medida em que as primeiras recorriam aos discursos produzidos pelas segundas na
imprensa ao longo da segunda metade do século XIX.
A constatação de que o sufrágio era insuficiente foi pertinente, e esse
problema foi enfrentado diretamente também pelas pioneiras americanas, o que
gerou um recuo em termos de reivindicação por parte delas, para que
conseguissem avanços parciais. Para Maria Moura, o homem aparecia como
explorador da mulher na condição do patrão capitalista que negava direitos às
empregadas e retribuía de forma insuficiente o trabalho feminino. Ela exigia uma
transformação social mais profunda e acusava Bertha Lutz de ser conivente com
esse tipo de dominação por não denunciá-la e restringir o tema aos direitos
políticos em vez de produzir denúncias em relação ao comportamento masculino.
Maria Lacerda Moura identificou o problema do exercício da dominação de
gênero com maior precisão do que as chamadas feministas liberais brasileiras. O
voto nunca seria o suficiente para liberar a mulher. Porém, as liberais não diziam
que o problema seria resolvido pelo voto, sendo ele um ponto de partida. De fato,
Bertha Lutz se preocupou com a reputação que os movimentos feministas
estrangeiros tinham aqui no Brasil, de luta de mulheres sem atributos femininos,
de cabelos curtos e extremadas, em função da imagem que o feminismo inglês
enviava, especialmente pelas ações mais duras, para o direito ao voto ser
consolidado. As experiências das Pankhurst, importadas por uma parte do
feminismo americano, foram negadas no Brasil por Bertha Lutz, que dizia
expressamente que o feminismo brasileiro não usaria essas estratégias.
A negação de um feminismo mais profundo66 por Bertha Lutz pode ter
sido fruto de um envolvimento com o problema da classe, conforme as
anarquistas apontavam, porém, não se pode atribuí-la somente a esse aspecto.
Bertha Lutz era de classe econômica elevada e, como foi falado, foi educada por
pai e mãe que investiram na educação de uma filha. Ela podia não ter essa
percepção de dominação de gênero tão direta em virtude de sua experiência
pessoal e identificar de forma mais fácil o problema da participação política por
ser a restrição que atingia a sua vida. Além disso, talvez soubesse que apesar do
66
Não foi utilizado aqui o termo feminismo radical, por se tratar de uma expressão que
tecnicamente tem um significado preciso para as teorias feministas, tendo como um dos expoentes
desse tipo de teoria a feminista americana Catharine MacKinnon, professora de Direito
Constitucional e Direito Comparado da Universidade de Harvard, autora de Toward a Feminist
Theory of The State, entre outros.
137
problema ser mais profundo, seria difícil ingressar nesse tipo de debate, e, assim
como as americanas, sabia que deveria abrir mão de discutir todos os problemas
de gênero da época em prol do sucesso de uma das causas, em vez de inviabilizar
qualquer reivindicação feminista. Ao mesmo tempo, Bertha Lutz também recorreu
a argumentos como o aumento da eficiência das donas de casa caso elas tivessem
maior acesso à educação, afirmando que o ambiente doméstico era eminentemente
feminino.
Tratava a questão operária como assistencialista, afirmando que mulheres
de classes altas deveriam dedicar bens, tempo e prestígio em prol da utilidade
social e as mulheres pobres deveriam ter facilidades para procurar no trabalho os
recursos para a independência. Ao mencionar as condições de vida operária,
sempre se referiu às mulheres operárias, nunca à classe operária67, o que esbarra
novamente em sua dificuldade de lidar com problemas de classe, mas o fato é que
os operários tinham maior acesso ao espaço público do que as operárias, e a
perspectiva de gênero era diferente e inovadora. O interessante é perceber como as
demandas não eram excludentes. A luta pelo voto não inviabilizava tecnicamente
as reivindicações das anarquistas. Melhor o voto do que não ter direitos políticos,
desde que ele não fosse considerado pelos movimentos brasileiros como o ápice a
ser alcançado e sim um degrau. O receio das anarquistas talvez fosse um aparente
esgotamento do feminismo uma vez conquistado o voto, já que as mudanças
deveriam ser mais profundas. Por outro lado, a dominação de gênero estava, e
ainda está, longe de ser uma peculiaridade do patrão capitalista, caso contrário, as
famílias e a vida privada das mulheres seriam diferentes. Anarquistas e liberais
seriam concepções parciais dos problemas de gênero, cada grupo adotando
posições relacionadas às experiências de vida de seus membros, e não poderia ser
diferente. Ambas eram feminismo, pois ambas tratavam de formas de dominação
exercidas a partir da sexualidade, das reproduções e repetições de modelos de
masculino e feminino, limitando formas de vida de homens e mulheres.
A história de Bertha Lutz se confunde com a história do incremento da luta
pelos direitos políticos de mulheres no Brasil. Ela também entendia que as
mulheres dispostas a ter carreira enfrentavam barreiras sociais grandes, apesar de
argumentar em publicações que as funções de mulheres como responsáveis pelo
67
ALVEZ, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. Pp. 100101.
138
lar não estavam em risco com a luta pelo voto feminino. Por esse motivo, fez de
sua própria vida uma busca para viabilização e ampliação do espaço público para
mulheres. As mulheres deveriam ganhar espaço na administração pública. Maria
José de Castro Rabello Mendes havia sido primeira colocada no concurso para
terceiro oficial da Seção de Comércio do Ministério do Exterior, tendo conseguido
tomar posse após um parecer favorável a ela dado pelo consultor jurídico Rui
Barbosa68. Em julho de 1919 Bertha realizou sua inscrição para o concurso de
secretário do Museu Nacional, concurso esse que tinham dez homens inscritos
além dela, única mulher. A cobrança sobre ela era grande, inclusive de sua
família, pois era símbolo da nova mulher na opinião pública. As atenções estariam
voltadas para ela. Bertha relatou que pensou em desistir após a primeira prova, a
de português, mas sua mãe cobrou que ela persistisse no concurso. Em suas
palavras sobre essa experiência:
Quando fomos fazer a prova, eram dez homens e eu. A primeira era de Português.
Caiu um trecho de Camões. Analisei e voltei para a casa. Disse para a minha mãe:
“eu acho que eu não vou voltar, porque minha prova de português não foi boa.
Ela me disse: “você não vai voltar? Pra que você foi se inscrever se agora você
não vai voltar? Agora você não voltando, toda mulher que for entrar em concurso
fica prejudicada pelo que você fez. Porque você se inscreveu e largou no meio.
De modo que você pense bem”. E acabou me incitando a voltar... Eu voltei, e foi
muito bom, porque aliás eu tinha tirado uma nota muito boa. Mas alguns deles
erraram. Aliás, tinha lá um candidato, eu achei uma coisa muito curiosa, porque
no dia seguinte ele mandou uma carta ao diretor do Museu dizendo que viu que
tinha uma mulher fazendo o concurso e que isso era contra todas as boas normas
da moral e da família, de modo que ele não queria continuar. O engraçado é que
ele me viu lá na prova e não disse nada. Foi só depois que ele largou. Afinal eu
68
Interessante observar que, apesar de Rui Barbosa ter sido favorável à posse de Maria José de
Castro Rabello Mendes e, posteriormente, ter defendido o voto feminino, ele já havia se
manifestado contrariamente à educação mista no início do século XX ao discutir uma reforma no
ensino. A experiência já ocorria nos Estados Unidos e ele atribuiu tal fato à sociedade americana
ser muito competitiva, por ser protestante, diferente da brasileira, eminentemente católica. Tal
educação seria estranha aos costumes brasileiros e, por isso, uma violência que, de acordo com ele,
seria equiparável a obrigar as muçulmanas a não usar véu porque as americanas não o utilizavam.
Para justificar sua posição, Rui Barbosa teria apelado para uma combinação de argumentos morais,
religiosos e científicos, costurando um emaranhado de idéias paradoxais. Segundo Marilena Chauí,
ele não teria encontrado dificuldades em tirar conclusões valorativas de argumentos científicos,
que seriam supostamente dotados de neutralidade e não-valorativos. A educação mista seria
contrária às recomendações científicas porque poderia gerar competições e rivalidades entre os
sexos. Esse estímulo à competição atuaria de forma superior nas meninas, de acordo com Rui
Barbosa, portanto, elas não deveriam ser expostas a essa violência. O protestantismo seria
violentamente competitivo, o catolicismo não. O ideal seria estabelecer escolas somente para
meninas, assim, a honra das mulheres e sua natureza seriam mais bem preservada, preservando as
futuras mães. As meninas, criadas por mães castas e de grande coração, deveriam ser poupadas de
sentar ao lado de meninos de uma família qualquer, não havendo benefícios no estabelecimento
dessa igualdade nos bancos da escola. CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual: essa nossa
(des)conhecida. São Paulo: Brasiliense, 12ª Ed., 1991.PP. 120-124.
139
tirei primeiro lugar e fui nomeada... No meu caso também consultaram o
consultor jurídico, Raul Penido, que deu o mesmo parecer69.
A nomeação para o cargo teve repercussão pública grande para os padrões
da época e no mesmo ano do concurso, 1919, ela fundou a Liga pela Emancipação
Intelectual da Mulher, que em 1922 passou a se chamar Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino. Não foi essa uma organização com pretensões de provocar
grandes transformações e impactos sociais. Se Bertha Lutz tinha sensibilidade
pessoalmente para outros aspectos da dominação de gênero, a Liga surgiu com o
objetivo específico de intensificar os esforços para a conquista do voto da mulher.
Como já mencionado, essa era uma questão que a atingia e, por isso, sua
militância estava voltada para o voto. A experiência vivida na Europa foi
relevante para que Bertha Lutz aderisse a essa causa e a Liga teve importante
atuação na orientação de parlamentares para a elaboração de projetos para o
sufrágio feminino. As ambigüidades entre os depoimentos de Bertha e sua
argumentação ou fundamentação para o voto feminino, esta última sempre no
sentido de não despertar alarde social, são interessantes, pois na sua experiência
pessoal há um tom de radicalidade que não aparecia na fundamentação do voto
enviada a parlamentares, comprovando que, ao contrário do que as anarquistas
diziam, ela não era insensível às questões, mas percebia que para viabilizar pelo
menos um dos direitos, e o voto era central em uma democracia representativa, ela
não poderia colocar todas as questões e provocar a chamada opinião pública. Tudo
indica que ela tenha percebido que o enfrentamento proposto pelas anarquistas
simplesmente não as levaria a lugar algum, no máximo a serem alvo de mais
chacota ou até mesmo a sofrerem repressões e terem a luta inviabilizada. Ela sem
dúvida se aproveitava da sua posição de prestígio na sociedade, bem como de
outras feministas de classe econômica elevada e com influência política. Elas
atuavam de uma forma que foi interpretada de forma simplória como covarde,
comportada ou simplesmente como atrelada aos interesses burgueses, mas que
pode denotar inteligência política, com ações sinuosas e eficazes. Nas suas
palavras sobre feminismo, sufrágio e atuação inicial da Liga:
69
Entrevista de Bertha Lutz concedida a Branca Moreira Alves. ALVEZ, Branca Moreira.
Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 104.
140
Eu sempre me interessei muito, porque quando estive na Inglaterra antes da
guerra vi a campanha feminista e achava muito interessante. Minha mãe não
participava, mas eu disse que queria ir também. Ela disse: “você não pode ir. Elas
têm razão, mas você não pode ir porque você não é inglesa, e a campanha está
muito braba, de vez em quando elas vão presas e você como vai ficar, uma menor
que não é inglesa”. E não me deixava ir... Bom, depois quando voltei da Europa
eu não gostava da atitude aqui... Aí quando eu fiz o concurso os jornais foram me
perguntar se eu era feminista ou se eu trabalhava porque precisava. Eu respondi
que não precisava, que trabalhava porque era feminista e achava que a mulher
deve trabalhar como os homens, tem a mesma capacidade e os mesmos direitos.
Eu estava esperando a ocasião para começar... Começou assim: O Senador
Chermont apresentou no Senado projeto de voto para a mulher. Na Câmara havia
uma lei, e dois deputados aqui do Distrito Federal apresentaram uma emenda que
as mulheres podiam votar. Então já tinha esses dois projetos. Eu tinha conhecido
em Paris D. Jerônima Mesquita, uma mulher extraordinária. Ela me disse: “se
você algum dia quiser fazer alguma coisa pelas mulheres no Brasil pode me
chamar”. Então eu procurei D. Jerônima e disse: “tem um projeto no Senado e eu
acho que a gente deve tentar ajudar, porque senão podem derrubar”. Eu fui com
ela ao Senado. Foi a primeira vez que nós começamos. E conversamos lá com o
Chermont, cuja mulher era muito feminista, ajudava, convidava pessoas para
almoçar ou jantar, para fazer a propaganda. Resolvemos também falar com o líder
da maioria Senador Bueno Brandão. Ele era da mesma zona de Minas que a
família de D. Jerônima. A mãe dela tinha uma fazenda muito grande, ele contava
muito com o eleitorado.70
Como condenar a atuação dessas mulheres, se foi a partir dela que o tema
teve maior amplitude e a discussão acerca do voto feminino deixou de ser motivo
de deboche passando a ser considerado um tema sério? A Liga era formada por
mulheres que tinham “o trunfo” nas palavras de Branca Moreira Alves, de
pertencer à burguesia, serem de famílias importantes, filhas, esposas e amigas de
homens completamente inseridos na estrutura de poder do país e graças a
influências que essas mulheres exerciam sobre esses homens, elas conseguiam
chegar ao Congresso Nacional, à Presidência e conquistaram parte da imprensa,
entre outros recursos, fazendo uso da estrutura oligárquica da República Velha,
com seus currais eleitorais, conforme o final do depoimento acima, para
conseguirem serem ouvidas por congressistas. Promoviam reuniões sociais para
sensibilizar os congressistas para a causa e por conta disso, convenceram
deputados e senadores a propiciar o avanço das emendas que diziam respeito ao
sufrágio feminino71. A Liga pela Emancipação da Mulher teve a função de
concentrar os esforços para a conquista do voto, o que implicou em uma limitação
da causa feminista por lado, mas por outro, significou uma intensificação das
discussões em torno do tema e após a estruturação da Liga, uma das medidas
70
71
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 104.
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P.105.
141
iniciais foi o envio de uma carta para os deputados Bethencourt Filho e Nogueira
Penido, que propuseram emenda à lei eleitoral para permitir o alistamento de
mulheres e a outros membros da Comissão de Constituição e Justiça. Tal
documento tinha o objetivo de demonstrar os argumentos relevantes para a
conquista do voto pelas mulheres que eram utilizados pelas militantes. A primeira
parte se dedicava a apresentar os países nos quais as mulheres já haviam
conquistado tal direito. Branca Moreira Alves diz terem sido enumerados cerca de
trinta países72. As mulheres eram eleitoras na Nova Zelândia desde 1893, na
Finlândia desde 1906, na Alemanha e na Inglaterra desde 1918 e nos Estados
Unidos desde 1919/1920. Além disso, a preocupação da Liga era tentar acalmar os
ânimos em relação aos destinos das famílias caso as mulheres passassem a votar.
Isso porque havia um temor de que a vida familiar fosse desestruturada e a Liga
defendia que nos lugares em que as mulheres já votavam as famílias não haviam
sido dissipadas.
O voto não seria um impedimento aos outros deveres cumpridos pelas
mulheres, além disso, seria uma contribuição para a moralização da política
brasileira. Nesse sentido, fica claro o receio de que os temores sociais acerca do
abalo do papel da mulher na família pudessem inviabilizar a conquista do voto.
Por esse motivo, Bertha Lutz e as demais militantes pelo voto tinham a
preocupação de esclarecer que as famílias não seriam ameaçadas e que o voto
somente seria uma forma de levar a moral e a eficiência feminina no lar para o
campo da política. Novamente o argumento associando mulher e moral foi
colocado, mas agora com a intenção de facilitar o acesso ao voto por parte das
mulheres. Um dos deputados que aderiu à causa do voto das mulheres de forma
mais entusiasmada a partir dos trabalhos da Liga foi Juvenal Lamartine, que
posteriormente foi o responsável pela produção da lei estadual que estendeu o
voto às mulheres, quando foi governador do Rio Grande do Norte, e foi o parecer
dado por ele, com os subsídios fornecidos pela Liga, na Câmara dos Deputados
que inaugurou os debates sobre o tema no Congresso em 1920.
72
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P.105.
As referências a outros países já haviam sido introduzidas por Bertha Lutz na Revista da Semana,
em 14 de dezembro de 1918, no texto “As mulheres morenas”, em que mencionava que as louras,
russas, finlandesas, dinamarquesas e inglesas já partilhavam ou partilhariam em pouco tempo de
seus governos, podendo eleger e serem eleitas, porém as mulheres morenas continuavam
subalternas e sendo alvo de ofensas por parte da imprensa no Rio de Janeiro. Nesse sentido:
PINTO, Céli, Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 23.
142
A fundamentação e o desenvolvimento da questão seguem uma sequência lógica,
já expostas nos movimentos anteriores dos E.U.A. e da Inglaterra e que seria
repetida aqui. Inicia-se a argumentação demonstrando o grande avanço da mulher
com relação à participação em todos os setores da vida social; inclui-se a lista,
cada vez maior, de países em que a mulher já goza do direito de voto; reitera-se
que os deveres familiares não serão esquecidos; enfatizam-se os benefícios da
atividade da mulher junto à maternidade e à infância, campos que lhe são
específicos por natureza; e refutam-se os argumentos jurídicos contrários73.
Esse trabalho realizado por Lamartine foi a partir de uma proposta
existente favorável ao voto da mulher apresentada pelo senador Justo Chermont
em 1919. Branca Moreira Alves afirma que o senador Lopes Gonçalves já havia
apresentado um parecer favorável no ano de 1921e no dia 10 de outubro de 1922,
a partir do esforço de Juvenal Lamartine o projeto foi aceito para que se realizasse
a primeira discussão. Segundo a autora, o que impediu a discussão de seguir
adiante com o conseqüente sucesso da causa foi a eleição para a Presidência da
República de Arthur Bernardes, grande opositor da extensão do voto para as
mulheres74. Por esse motivo, o projeto foi deixado de lado, já que o momento não
era considerado adequado para discutir o tema. Na verdade, o momento vivido
pelo país, a República Velha, não era o mais favorável ao voto em sentido amplo,
menos ainda seria ao voto feminino. As lutas feministas esbarravam nos limites
impostos não somente pelo patriarcado no Brasil, mas também pela própria
estrutura oligárquica. O peso do voto era algo que ainda deveria ser buscado para
a concretização de uma democracia representativa.
Apesar disso, as sufragistas continuaram com suas reuniões e articulações.
Em 1922 a Liga foi transformada na Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino, quando Bertha Lutz retornou de sua viagem aos Estados Unidos, onde
foi com o objetivo de representar as militantes brasileiras na Conferência PanAmericana de Mulheres. Tal convenção teve o objetivo de promover uma
articulação entre militantes feministas de diferentes países para que se buscasse a
educação da mulher, a proteção às crianças e às mulheres que trabalhavam na
indústria, a eliminação do tráfico de mulheres e a alteração da situação das
mulheres em relação às legislações civis dos países. É interessante ressaltar que
grande parte das questões propostas nessa Conferência é atual. A ideia da
73
74
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 106.
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 107.
143
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino surgiu quando Bertha conheceu
Carrie Chapman Catt, na época presidente da NAWSA em tal evento, e a
consultou acerca da viabilidade de se organizar uma associação no Brasil que
fosse semelhane à americana. Carrie Chapman Catt redigiu o estatuto da
Federação junto com Bertha Lutz e se ofereceu para vir ao Brasil. A Federação
almejava congregar em seu corpo as mais variadas associações espalhadas pelo
Brasil que lutavam por direitos das mulheres. O estatuto da Federação
mencionava direitos políticos, mas também fazia previsão para articulações em
torno da educação da mulher, proteção da maternidade, esforços para garantir
legislação sobre trabalho feminino, orientação profissional e solidariedade entre
os movimentos feministas americanos.
A pretensão da Federação aparentemente era fazer os direitos das mulheres
permearem as mais variadas regiões do país. Porém, a forma de filiação à FBPF
não era inclusiva, dependendo na verdade de convite da própria Bertha Lutz para
que alguma mulher pudesse fazer parte. Nesse sentido, Bertha observava as que se
destacavam e realizava o convite pessoal, como foi o caso das primeiras
engenheiras e advogadas brasileiras que integraram a Federação. Além disso, o
quadro diretor se manteve o mesmo, com Bertha sempre na presidência. Aquelas
que não concordavam com a fundadora eram levadas ou a manterem-se em
silêncio ou a romper com a Federação. Sem dúvida esse fator foi fundamental
para que mulheres de outras classes sociais não conseguissem ingressar no
movimento feminista, tendo Bertha Lutz sido a grande responsável por guiar as
lutas pelo voto da mulher até a conquista desse direito. A inauguração dos
trabalhos da FBPF foi um seminário organizado por tal instituição, que conforme
esperado, contou com a presença de Carrie Catt. O evento foi anunciado no Jornal
do Comércio em 18 de novembro de 1922, com a divulgação dos objetivos da
Federação e da presença da americana. O objetivo de Lutz era afastar a ideia da
luta pelo voto da mulher no Brasil das suffragettes radicais inglesas e americanas
e, por esse motivo, a presença da senhora Catt era fundamental, pois ela foi uma
das responsáveis por afastar a NAWSA das radicais americanas75.
75
Esse evento, de acordo com Branca Moreira Alves, seguiu exatamente os paços traçado por Catt
a Lutz para colocar o tema em debate no Congresso. A primeira sugestão foi chamar políticos
influentes para a composição da mesa, o que não era difícil para Bertha Lutz. A conferência
contou com a presença do Vice-Presidente da República Estácio Coimbra e com os Senadores
Lopes Gonçalves e Lauro Müller, tendo o Lopes Gonçalves sido também responsável pelo
144
As organizadoras da conferência conseguiram fazer com que o evento
tivesse projeção. Os jornais da época trouxeram resumos das teses defendidas no
evento e dos discursos proferidos e o tema passava a ser tratado com seriedade.
Além disso, esse não foi o único evento em defesa do voto da mulher. Houve
também no ano de 1922 um congresso no Instituto da Ordem dos Advogados em
que foi aprovada uma moção afirmando a constitucionalidade do voto da mulher,
a partir dos trabalhos realizados pela advogada Myrthes de Campos e meses
depois Rui Barbosa teria se posicionado publicamente no Teatro João Caetano em
uma conferência pela constitucionalidade do voto da mulher. Após a conferência
inaugural da FBPF, escritórios regionais de tal organização foram fundados em
diferentes estados da Federação, em parceria com outras associações, com o
objetivo de organizar outras conferências locais para conquistar o apoio da
opinião pública. A FBPF era uma organização de grande notoriedade, porém
ainda existiam outras com o objetivo de discutir e promover direitos para as
mulheres. Uma delas era denominada Partido Liberal Feminino, fundado em 1925
por Julita Monteira Soares, cuja preocupação principal era com a mulher operária,
mais ainda com a mulher do trabalhador, para que ela resguardasse seus interesses
próprios, ajudasse no combate à fome e ao analfabetismo. Tal organização
também pleiteava o direito ao voto para mulheres, e o caminho da argumentação
era semelhante ao das feministas burguesas brasileiras: “a defesa do voto é feita
com base nas ‘qualidades femininas’, no ‘espírito de bondade, de horror à
violência, de inquebrantável fidelidade às leis de Deus’ que possui a mulher,
primeiro parecer favorável ao projeto Chermont sobre voto feminino. Lauro Müller, no encontro,
defendeu a constitucionalidade da proposta aconselhando-as a não esperar para que ele fosse
concedido e sim mergulhassem na ação. Como estratégia recomendou que elas conseguissem
algum governador de Estado que se aliasse à proposta e colocasse o voto feminino em um Estado
da federação para que ocorresse uma espécie de efeito cascata, pois “os homens são como os
carneiros. Um vai na frente, os outros vão atrás. As sras. têm que furar a cerca. Procurar um
governador de Estado que fure a cerca, que dê o voto às mulheres no Estado dele, e atrás disso vão
todos os Estados da Federação”. ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da
mulher pelo voto no Brasil, pp. 114-115. Na época deputado federal, de 1906 a 1926, Juvenal
Lamartine prometeu a Bertha Lutz durante a conferência que se ele chegasse à presidência do seu
Estado ele furaria a cerca. Em 1927, quando era senador, lançou sua candidatura para o governo do
Rio Grande do Norte e em sua plataforma ele colocou o voto feminino, momento em que a
Assembleia Legislativa discutia reformas na Constituição do Estado. Ainda do Rio de Janeiro,
Lamartine pediu para que o presidente do Estado na época da reforma, José Augusto Bezerra de
Medeiros, incluísse o direito ao voto para mulheres e a Constituição do Rio Grande do Norte
trouxe tal previsão no art. 77 das Disposições Gerais, que apresentou a seguinte redação “No Rio
Grande do Norte poderão votar e ser votados, sem distinção de sexos, todos os cidadãos que
reunirem as condições exigidas por esta lei”. ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a
luta da mulher pelo voto no Brasil, p. 117.
145
qualidades essas que poderão sanear os males sociais”76. A mulher era chamada a
votar com o intuito de tentar corrigir os vícios dos homens na política. Esse tipo
de argumento da virtuosidade da mulher que apareceu na imprensa do século XIX
sempre retorna como fundamento para pleitear direito e ao que parece contou com
a utilização tanto por parte das chamadas feministas liberais, como por parte das
que tentavam criar espaço feminista entre as operárias. Já foi mencionado que esse
tipo de argumento era uma espécie de distorção do seu uso original, que pretendia
fixar a mulher no âmbito doméstico, pois por conta de suas virtudes inerentes à
sua natureza, as mulheres teriam condições de transformar a qualidade da política
e deveriam sim invadir o chamado mundo público. Por outro lado, cabe relembrar
os problemas apresentados ao longo do capítulo acerca da valorização do
feminino, com a defesa de que mulheres seriam virtuosas, que vão desde a
afirmação de uma natureza que acaba fixando e estabilizando papeis até a maior
preocupação social em relação à conduta feminina. Sendo assim, é importante
examinar esse tipo de argumento como sendo uma possibilidade estratégica para
ampliar direitos, mas que pode e deve ser revisto sempre que não mais for eficaz,
uma vez que ele ora serve para liberar e ampliar direitos, ora serve para limitar. O
interessante é observar a utilização dessa estratégia por parte de pessoas que
representariam posições diferentes sobre as prioridades em relação a direitos para
mulheres.
O voto feminino contou com outro projeto em 1924 apresentado por
Basílio de Magalhães77. O objetivo da proposta era a inclusão da mulher na
condição de eleitora, porém, o autor restringia a possibilidade do voto feminino,
na medida em que colocava como necessário o consentimento do marido, caso a
mulher fosse casada e não desquitada. Tal projeto, obviamente, foi combatido
pelas militantes da FBPF. Em 1925 o senador Moniz Sodré apresentou outro
projeto que estendia os direitos políticos para as mulheres. A redação dizia o
seguinte: “Ficam reconhecidos às mulheres todos os direitos políticos de que
gozam os cidadãos brasileiros”. Branca Moreira Alves afirma que essa proposta
era interessante na medida em que incluía expressamente as mulheres no rol dos
cidadãos, o que seria necessário para combater argumentos contrários que
insistiam em afirmar que as mulheres não estavam incluídas na generalização do
76
77
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil, p. 115.
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil, p. 116.
146
termo ‘cidadãos’78. Foram alguns os projetos que tentaram viabilizar os direitos
políticos para as mulheres, porém, os esforços não produziram efeito nesse
período. Apesar de Washington Luís ter incluído o tema em sua campanha, ao
assumir a Presidência sucedendo Arthur Bernardes, ele deixou a proposta de lado.
Ao mesmo tempo, a atuação da FBPF nesse período foi no sentido de apoiar o
surgimento de organizações profissionais de mulheres pelo país e as organizações
existentes, ampliando os temas de interesse da FBPF. Tal feito foi importante
porque mulheres e crianças eram as duas partes mais exploradas e fragilizadas
entre os trabalhadores. Além disso, demonstra que as militantes sufragistas da
FBPF não eram completamente alheias às necessidades de outras categorias,
apesar de toda a centralização na figura de Bertha Lutz, tendo reconhecido uma
forma de dominação específica, pelas quais as mulheres trabalhadoras passavam e
que se diferenciava das preocupações das burguesas e dos problemas enfrentados
pelos homens trabalhadores. Apesar disso, já foi mencionado que a aproximação
entre sufragistas e mulheres trabalhadoras não foi bem sucedida.
Até a conquista do voto feminino com o Código Eleitoral de 1932 e com o
ingresso do direito na Constituição de 1934 o tema esteve em disputa, porém o
apoio à causa cresceu ao longo da década de 1920 e talvez a inserção dos direitos
políticos na agenda de debates no Congresso Nacional através do apoio de
determinados congressistas e do apoio da imprensa à causa tenham sido as
conquistas mais significativas do grupo de Bertha Lutz. O ano de 1927 foi um
marco em virtude da possibilidade do voto ter aparecido na Constituição do Rio
Grande do Norte o que ajudou a projetar o debate, pois as feministas solicitaram à
chamada Comissão de Justiça do Senado que o projeto do voto fosse discutido
novamente. Ele foi debatido e aprovado, com parecer favorável elaborado naquele
momento por Aristides Rocha. Este Senador já vinha sendo assessorado sobre o
tema pelas feministas e, por isso, o parecer trouxe em seu corpo uma análise das
conquistas da mulher brasileira e das discussões sobre o tema. Uma petição
assinada por duas mil mulheres foi encaminhada ao Senado para apoiar o voto
feminino. Branca Moreira Alves compreende que esse número era bastante
significativo para a época, não somente em virtude da população brasileira, mas
78
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil, p. 116.
147
especialmente porque, havia uma indiferença da mulher em relação à participação
política e a seus direitos como um todo79.
O Senador Thomás Rodrigues se esforçou para retardar a votação do
projeto no plenário da Casa para que ele só fosse analisado no ano seguinte, após
o recesso, por isso solicitou vista. Ele percebeu que fazia parte de uma minoria
que não estava propícia a permitir o acesso aos direitos políticos para mulheres e,
por conta disso, propôs que houvesse uma transição lenta, com um projeto que
fosse menos radical do que o apresentado. Sua sugestão era permitir somente uma
espécie de voto qualificado, para mulheres economicamente independentes. Dessa
forma, o Senador conseguiria afastar dois fantasmas, o gênero e a classe. O voto
feminino iria expandir demasiadamente o número de eleitores, abrindo
possibilidades para novos temas. Ao restringi-lo a mulheres economicamente
independentes o Senador conseguiria excluir a grande maioria de mulheres,
incluindo nesse grupo até mesmo as da burguesia, pois eram poucas as titulares da
referida qualidade. A proposta de Thomás Rodrigues foi mal recebida pela
imprensa, o que demonstra que o tema já não era rejeitado socialmente.
Ainda no fim de 1927 o projeto de lei foi a plenário, porém, recebeu
emendas propostas por dois Senadores. O Senador Pires Ferreira pleiteou a
elevação da idade mínima de 21 anos para 35 anos, com o intuito de “evitar que
viessem para o Senado meninas de pouca idade”. A outra emenda foi apresentada
pelo Senador João Thomé, qualificando o voto feminino, com a exigência de que
para votar e ser votada a mulher deveria ter títulos científicos ou deveria ser
professora e não estar nem sob o poder marital, nem paterno. Também teriam
direitos políticos as que estavam na posse e administração de seus bens80. Poucas
mulheres poderiam preencher esses requisitos. Por conta dessas propostas, a
votação foi adiada. A Comissão examinou as emendas e ambas foram rejeitadas.
Porém, o tema foi deixado de lado pelos congressistas.
O esforço da FBPF era não deixar a questão ser esquecida. Algumas
mulheres ficaram entusiasmadas com a possibilidade de voto feminino a partir do
exemplo dado no Rio Grande do Norte e, em outros Estados, elas pleitearam o
alistamento. Este era deferido ou não dependendo de cada juiz responsável pela
79
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil, p. 118.
O Imparcial, Rio de Janeiro, 13 -12-1927, In ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo:
a luta da mulher pelo voto no Brasil, p. 118
80
148
análise do pedido. Esse ato espontâneo de diferentes mulheres em diferentes
Estados fez com que o tema sempre ganhasse espaço na imprensa nacional. Bertha
Lutz e Carmen Portinho se aproveitaram desse momento, voaram sobre a Capital
Federal jogando panfletos favoráveis aos direitos políticos para a mulher. Bertha
Lutz fez, ainda, o trajeto até o Rio Grande do Norte de avião, lançando os mesmos
panfletos em oito capitais. A Federação Brasileira pelo Progresso Feminino
promoveu a publicação de coletâneas de decisões favoráveis, posteriormente, em
1929, no intuito de auxiliar a justificar o voto, promovendo os argumentos
favoráveis.
Ao tomar posse, a primeira mulher eleita, no município de Lajes, Alzira
Soriano afirmou para os jornais que “a mulher pode ser mãe e esposa amantíssima
e oferecer ao mesmo tempo à pátria uma boa parcela das suas energias cívicas e
morais”81. A primeira mulher eleita demonstrou preocupação em justificar, mais
uma vez com o argumento da sua aptidão moral e cívica, a saída da mulher para o
mundo público, uma vez que esse espaço não era aquele no qual ela deveria estar.
Ela pediu uma espécie de desculpas e apresentou a justificativa para fundamentar
tal tomada de espaço: a experiência da mulher como guardiã moral da família que
poderia salvar a política. Com tantas referências a esse tipo de estratégia por parte
de mulheres que lutavam por direitos, pode-se concluir que ele foi importante para
ajudar a fundamentar essa passagem, da família para a participação política,
auxiliando a causa a ganhar espaço e simpatia na imprensa.
Porém, o argumento de Alzira Soriano apontou para outro problema que
viria a ser fonte de cobranças de muitas mulheres em relação às feministas, o
acúmulo de funções. O fato de a mulher ser “mãe e esposa amantíssima” ao
mesmo tempo em que governaria uma cidade queria dizer que ela jamais
abandonaria a sua função original, pleiteava-se um novo espaço sem reestruturar o
antigo. Em um curto espaço de tempo isso foi um facilitador para que as mulheres
conseguissem direitos políticos, por outro lado, muitas até os dias atuais, se
ressentem das feministas, atribuindo a elas a atual dupla jornada, em vez de
problematizar a estrutura familiar, que não poderia ser combatida naquele
momento, em virtude do risco de se inviabilizar os direitos políticos para
mulheres, mas que hoje em dia pode ser constituída em outras bases justamente
81
O país, Rio de Janeiro, 1 e 2 de outubro de 1928, apud ALVES, Branca Moreira. Ideologia e
feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 119.
149
em virtude da ida da mulher para outros espaços além do atribuído
tradicionalmente a ela.
Nas mesmas eleições em que houve a eleição de Alzira Soriano, foi eleito
Senador pelo Rio Grande do Norte José Augusto Bezerra de Medeiros. Foi
provocada uma discussão acerca da validade dos votos femininos no Rio Grande
do Norte para as eleições no Senado, obrigando as feministas a intensificar os
trabalhos favoráveis ao voto das mulheres e a apresentar todos os pareceres de
juristas que já haviam se posicionado favoráveis ao tema, enfatizando aqueles no
sentido de não entenderem ser necessária uma nova lei para a viabilização dos
direitos políticos das mulheres, uma vez que não havia vedação constitucional.
Alguns ainda entenderam que a anulação dos votos femininos seria uma afronta
ao Poder Judiciário, na medida em que alguns juízes já haviam autorizado o
exercício do voto para as mulheres que recorreram a tal Poder. Foi designado
como relator o senador Godofredo Viana, cuja defesa da depuração dos votos era
fundada no fato de que juízes eleitorais não poderiam analisar questões
constitucionais e, uma vez que haviam realizado tal análise e se posicionado
politicamente e não juridicamente, eles agora poderiam estar sujeitos às decisões
do Senado. A Comissão de Poderes do Senado Federal decidiu pela depuração dos
votos em 1928 e solicitou a anulação de todos os votos femininos82. A FBPF
lançou um manifesto inspirado em outros elaborados por diferentes países em
defesa da igualdade política e jurídica da mulher, intitulado Declaração de
Direitos da Mulher. Nesse documento, Branca Moreira Alves ressalta que a
estratégia era dar um aspecto sóbrio ao tema, para expor os argumentos contrários
aos direitos políticos para mulheres, que se fundavam em lei natural ou divina,
não sendo dotados da chamada racionalidade83.
82
Nessa ocasião das eleições no Rio Grande do Norte, as duas primeiras mulheres que se alistaram
foram Celina Vianna, de Mossoró, e Júlia Barbosa, de Natal. Na mesma eleição Alzira Teixeira
Soriano foi a primeira mulher eleita prefeita, no município de Lages, em 1928.
83
Declaração de Direitos da Mulher:
1 – As mulheres, assim como os homens, nascem membros livres e independentes da espécie
humana, dotados de faculdades equivalentes e igualmente chamados a exercerem, sem peias, os
seus direitos e deveres individuais.
2 – Os sexos são interdependentes e devem, ou ao outro, a sua cooperação. A supressão dos
direitos de um acarreta, inevitavelmente, prejuízos para o outro e, consequentemente, para a
Nação.
3 – Em todos os países e tempos, as leis, preconceitos e costumes, tendentes a coarctar a mulher, a
limitar a sua instrução, a entravar o desenvolvimento das suas aptidões naturais, a subordinar sua
individualidade ao juízo de uma personalidade alheia, foram baseados em teorias falsas,
produzindo na vida moderna intenso desequilíbrio social.
150
Já havia sido mencionado o incremento dos pedidos feitos por mulheres ao
Poder Judiciário para alistamento após o estado do Rio Grande do Norte ter
tornado realidade o exercício de tal direito. Nesse sentido, ao longo do ano de
1929 as solicitações continuaram, com a eventual negação de um ou outro pedido,
em que o juiz apresentava uma argumentação confusa, que apelava para uma
interpretação a partir da vontade do legislador constituinte, que não teve a
intenção de considerar a mulher como abrangida pela concepção de cidadão.
Pedidos foram deferidos no Rio de Janeiro, em Minas Gerais e no próprio Rio
Grande do Norte. Uma mulher pediu o direito de se alistar como eleitora em
Niterói, porém seu título foi impugnado por outro eleitor. Nathércia da Silveira foi
a advogada nomeada pela FBPF para defender os interesses dessa mulher e em
sede se recurso ela conseguiu a manutenção de seu título de eleitora. Essas lutas
por alistamento possuem importância, apesar de decorrerem diretamente de
esforços individuais de diferentes mulheres. Porém, a FBPF dava apoio à causa e
às mulheres que encontrassem dificuldades no alistamento. Além disso, foi por
conta desses processos que, até a Revolução de 1930, dez estados brasileiros já
contavam com eleitoras.
4 – A autonomia constitui o direito fundamental de todo indivíduo adulto; a recusa deste direito à
mulher, uma injustiça social, legal e econômica que repercute desfavoravelmente na vida da
coletividade, retardando o progresso geral.
5 – As Nações que obrigam ao pagamento de impostos e à obediência à lei, os cidadãos do sexo
feminino sem lhes conceder como aos do sexo masculino o direito de intervir na elaboração dessas
leis e votação desses impostos, exercem uma tirania incompatível com os governos baseados na
Justiça.
6 – Sendo o voto o único meio legítimo de defender aqueles direitos, a vida e a liberdade,
proclamados inalienáveis pela declaração de independência das Democracias Americanas, e hoje
reconhecidos por todas as nações civilizadas da terra, à mulher assiste o direito ao título de eleitor.
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. Pp. 120121.
Além da divulgação em imprensa dessa declaração, as feministas ainda distribuíram anteriormente
folhetos com discursos de parlamentares favoráveis à causa, citações de juristas e um mapa dos
lugares em que o voto feminino já havia se tornado realidade. Cabe ressaltar que como o voto da
mulher foi discutido na Constituinte que originou a Constituição de 1891, o Brasil poderia ter sido
o primeiro país do mundo a garantir tal direito. Porém, o pioneirismo foi deixado para a Nova
Zelândia, em 1893. Após a desconsideração dos votos femininos para o Senado em 1928, as
feministas utilizaram o formato de declaração para trazer força para as suas reivindicações,
estratégia essa utilizada em inúmeras experiências internacionais anteriores, inclusive por parte de
mulheres, conforme exemplos de Mary Wollstonecraft e Olympe de Gouges narrados no início do
capítulo. A estrutura de declaração tem como um dos objetivos fundamentar a reivindicação ou
justificar determinada tomada de decisão. Em regra elas possuem algumas incoerências internas,
que podem ser fruto de estratégia de argumentação. Nesse caso, é interessante observar o
estabelecimento da igual situação de liberdade inicial entre homens e mulheres no primeiro item e
a afirmação de interdependência e cooperação entre os sexos do segundo item, que poderiam
desencadear uma afirmação da distribuição de funções definidas a partir do sexo, porém, tendo
certeza de que esse não era o intuito das feministas que redigiram tal texto.
151
A Federação Brasileira pelo Progresso Feminino havia decidido por não se
posicionar no conflito que desencadeou o processo revolucionário que colocou
fim à República Velha. Minas Gerais se sentiu preterida com a indicação do
paulista, Júlio Prestes para a Presidência da República. Nesse momento,
oficialmente a FBPF se manteve apartidária, porém, era de conhecimento público
que Bertha Lutz tinha preferência por tal candidato paulista, que já havia se
manifestado favoravelmente aos direitos políticos para mulheres. As militantes da
FBPF procuravam não dar qualquer tipo de declaração que pudesse vinculá-las a
qualquer corrente política, pois pretendiam garantir os direitos políticos para as
mulheres independente daquele que assumisse a Presidência da República.
A advogada gaúcha Nathércia da Silveira descumpriu a posição oficial ao
participar de um comício da Aliança Liberal contrário a Washington Luís e a Júlio
Prestes e proferiu um discurso de oposição ao governo. Ao sofrer represália de
Bertha Lutz, a advogada decidiu se desligar da FBPF e fundar a Aliança Nacional
de Mulheres, que de acordo com a própria fundadora, cresceu rapidamente e
possuiu cerca de três mil mulheres associadas, pois estrategicamente as militantes
assumiam um discurso mais popular, indo a subúrbios, em casas de particulares e
fábricas, investigando as condições de trabalho de mulheres84. Essa associação
84
Os objetivos anunciados da Aliança Nacional de Mulheres eram os seguintes, publicados na
Gazeta de São Paulo em 17 de novembro de 1931:
1 – Trabalhar pela elevação intelectual e independência econômica e segurança moral da mulher;
2 – Zelar-lhe pelos interesses coletivos:
a) Amparando-a no trabalho, em todos os ramos de atividade;
b) Pleiteando seus direitos e aspirações legítimas;
c) Prestando-lhe assistência moral, médica e judiciária;
d) Manifestando e defendendo, oportunamente, idéias e medidas, referentes a cada ramo de
trabalho e que visem dar à mulher maior segurança econômica e independência moral;
e) Encaminhando para o trabalho mulheres que dele careçam;
3 – Pleitear medidas tendentes a beneficiar as mães e a infância;
4 – Assegurar à mulher o uso e gozo dos direitos civis e políticos que lhes são inerentes;
5- Trabalhar pela estabilidade da família, por uma comunhão maior de estímulos e aspirações.
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 122.
De fato, houve uma mudança na ênfase das reivindicações. Os direitos políticos apareceram como
um dos itens, mas não era dotado de maior relevância. Além disso, a afirmação proferida por
Maria Alexandrina Ferreira Chaves de que estava se juntando a tal organização porque era ela que
representaria a mulher que trabalha pode levar a outra reflexão, acerca do problema da definição
do que seria considerado trabalho. As mulheres de classes mais pobres certamente sentiam a
necessidade de buscar por trabalho fora e estavam sujeitas às condições de exploração dessa forma
de trabalho, mas no que se refere às funções atribuídas à mulher dentro de casa, talvez a situação
de mulheres de classes tão distantes pudessem ser aproximadas, identificando ao menos nesse
espaço um problema que diz respeito a gênero e que se pode aprofundar na medida em que as
próprias feministas não identificam como trabalho. É interessante observar também as
semelhanças. Ambas as organizações se preocupavam com a educação e qualificação da mulher. E
assim como a declaração da FBPF fazia menção à cooperação entre homens e mulheres, o que
poderia induzir a uma divisão de papeis a partir da divisão de gênero, o texto da Aliança Nacional
152
conseguiu construir um espaço entre as mulheres operárias, especialmente em
virtude da assistência jurídica disponibilizada por advogadas trabalhistas e
Nathércia da Silveira conquistou força eleitoral nos estados do Rio de Janeiro e de
Minas Gerais, organizando um congresso feminista em 1931.
A FBPF também cresceu ao longo do tempo, reunindo doze associações de
mulheres no país. Enquanto a Aliança contou com três mil mulheres, a FBPF
reuniu cerca de mil, porém a segunda tinha força política em virtude do prestígio
de Berth e pela atuação de suas associadas. Havia núcleos estaduais da FBPF em
alguns lugares como Minas Gerais, Pernambuco, Bahía, Sergipe e Alagoas. Em
1931 a Federação também organizou um congresso, o II Congresso Internacional
Feminista, a partir de sete objetivos: discussão sobre educação da mulher,
proteção às mães e à infância, garantias de legislações para o trabalho feminino,
auxílio às iniciativas da mulher, serviços sociais, direitos civis e políticos e
estreitamento das relações entre Estados americanos e demais relações
internacionais do movimento. A pauta de 1931 da FBPF concedeu maior atenção
às questões trabalhistas que afetavam as mulheres.
As medidas que seriam pleiteadas iam desde a fundação de um escritório
para a defesa de interesses das mulheres e crianças com inspiração no Women’s
Bureau nos Estados Unidos, férias, salário mínimo, igualdade de remuneração
para o exercício de trabalho igual, licença maternidade de dois meses, que deveria
ser remunerada pelo Estado quando funcionária pública e para as funcionárias do
setor privado deveria ser instaurada uma comissão para criar mecanismos de
pagamento com o objetivo de a mulher não sofrer nenhum tipo de represália por
fatores econômicos, educação voltada para uma profissão e formação de política
para proteção da criança e da mulher e impossibilitar o tráfico de pessoas. A
FBPF apresentou pontos relevantes para as operárias, mas foi acusada pela
Aliança de não formular uma saída para o impasse do pagamento da licença
maternidade quando a mulher era empregada no setor privado, o que as vinculava
ao sistema capitalista. Além disso, as mulheres pertencentes à Aliança, na
convocação do Primeiro Congresso Feminino Mineiro, fizeram a proposta de
de Mulheres pregou a estabilidade da família, a comunhão de estímulos e aspirações. Elas
poderiam ter percebido, assim como as chamadas feministas liberais, que problematizar as
relações familiares geraria barreiras insuperáveis naquele momento, afetando as demais
reivindicações. Além disso, a comunhão maior e aspirações poderiam levar novamente para a
separação de papéis fundada no gênero.
153
refletir sobre as questões da mulher na perspectiva nacional, demonstrando a
insatisfação com a relação da FBPF com as americanas. As componentes da
Aliança eram advogadas, engenheiras e médicas. A operária, de fato, estava
afastada da administração, apesar da criação da organização ter acontecido para
atender aos interesses dessas mulheres.
A exposição dessa estrutura demonstra bem o argumento desenvolvido por
Butler apresentados ao longo do primeiro capítulo sobre os paradoxos da
instauração de identidades, além do problema da política de representação.
Mulheres trabalhadoras, ou que exerciam atividades profissionais fora do âmbito
doméstico, se uniam em virtude da necessidade de atendimento de suas
especificidades, diferentes das mulheres da burguesia, mas algumas seriam as
responsáveis pela representação, enfeixando ou simbolizando a categoria
“mulheres trabalhadoras”. As responsáveis por essa representação eram as que
decorriam do grupo original de Bertha Lutz, o que não implica em dizer que as
reivindicações e mecanismos de luta eram os mesmos da FBPF, mas também não
autoriza colocar as duas associações em posições completamente opostas.
A instauração do Governo Provisório fez com que as militantes, tanto da
FBPF quanto da Aliança, em prol dos direitos políticos para mulheres
recuperassem as esperanças de conquistar as suas demandas com a elaboração de
uma nova Constituição, até porque a Aliança Nacional de Mulheres havia surgido
de uma defesa da própria aliança que produzira a chegada de Getúlio ao poder.
Porém, com a nomeação de Carlos Maximiliano para comandar estudos sobre
reforma eleitoral houve receio de prejuízo para a questão de direitos políticos para
mulheres, uma vez que esse jurista tinha proposta de voto feminino qualitativo.
Para solucionar esse problema imposto ao voto, somente alguém com certo poder,
certa influência e desenvoltura política poderia dar conta. Apesar de não ter
manifestado qualquer simpatia pela Aliança Liberal tendo como candidato
preferencial Júlio Prestes, diferentemente das mulheres que fundaram a Aliança
Nacional de Mulheres, Bertha Lutz se encarregou de pensar em um mecanismo de
exercer influência a favor da causa e rapidamente identificou um contato direto
com Getúlio Vargas pelo Secretário Gregório Porto, primo de Carmen Portinho.
Sobre o episódio, Bertha narrou o seguinte:
154
Então nós fomos reclamar. O secretário do Getúlio era primo da Carmen
Portinho. Então nós tínhamos um meio de agir junto a Getúlio. Mandamos dizer a
ele que não queríamos o voto qualificado, queríamos o voto geral. Ele foi
apresentado à Carmen pelo Gregório Portinho, primo dela. Ele disse: Dra.
Carmen, “eu sou a favor das mulheres porque elas fizeram metade da
Revolução!”. Ela disse: “É por isso que o Sr. só quer dar metade do voto?”
“Como metade do voto?” Ela disse: “Pois é, quer dar voto qualificado, para certas
classes, as outras não. Nós não queremos assim. Ou tudo ou nada!”. Ele disse:
“Está bem, eu falo com a Comissão para dar tudo”85.
O voto feminino foi, finalmente, conquistado em 1932, com o Código
Eleitoral. Houve pressão, houve luta, ainda que a maior parte das brasileiras não
tenha sequer acompanhado as discussões e os diversos projetos de lei, esse direito
foi conquistado e não concedido. Tal empreitada começou com mulheres
corajosas e contraditórias do final do século XIX que tomaram conhecimento das
movimentações inglesas e americanas e contou com a ampla disponibilidade,
militância e habilidade da burguesa Bertha Lutz, atributos fundamentais para que
o primeiro, não o único ou último, passo pudesse ser dado. Branca Moreira Alves
conseguiu realizar o mapeamento de toda a trajetória do voto feminino no país,
reunindo material farto de publicações de periódicos e entrevistas, que
possibilitaram conhecer a política Bertha.
Por outro lado, a autora demonstra incômodo com a origem burguesa de
Bertha Lutz e com a falta de reconhecimento da dominação de classe por parte da
militante feminista, bem como com a estratégia de composição com pessoas
envolvidas no poder. A falta de reconhecimento da questão de classe ocorreu por
conta da origem de Bertha, mas também cabe reconhecer que é importante marcar
a existência de problemas de gênero, em vez de simplesmente mencioná-lo
sempre como atrelado a outros problemas, como uma espécie de pedágio a ser
pago ou de pedido de desculpas por não se tratar da relevante questão de classe e
sim de uma causa minoritária. A origem burguesa não a impediu de se encantar
com a experiência das radicais inglesas, inspiradas nas irmãs Pankhurst e até
demonstrar interesse em se envolver com o movimento na Inglaterra, o que foi
impossibilitado por sua mãe. Sua origem pode ter sido responsável por sua
tendência de deixar em segundo plano a condição da mulher “trabalhadora”.
Porém, essa mesma origem fez com que ela conseguisse perceber quais seriam os
85
Depoimento de Bertha Lutz para Branca Moreira Alves. ALVES, Branca Moreira. Ideologia e
feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 125.
155
caminhos para a conquista dos direitos políticos por mulheres no Brasil, tendo
excluído de início a forma de atuação inglesa. Se por um lado ela atrasou as
demais demandas ao se concentrar demasiadamente no voto, por outro lado ela foi
fundamental para que o nascente feminismo no Brasil não fosse inviabilizado com
mais uma postergação dos direitos políticos para mulheres.
Uma vez conquistado o voto, o passo seguinte seria conseguir ter
representação feminista na comissão que elaboraria o projeto constitucional e
tanto Bertha Lutz, da FBPF, quanto Nathércia Silveira, da Aliança Nacional de
Mulheres conquistaram espaço. O problema que mereceria destaque a partir desse
momento era a indiferença da maior parte das brasileiras em relação aos direitos
políticos, ao mesmo tempo em que a procura por alistamentos na FBPF foi
diminuída. A Federação se preocupou em organizar cursos com o objetivo de
promover a instrução política de mulheres, para estimular a participação. As
conferências eram, em regra, proferidas por homens considerados ilustres como
Pontes de Miranda, e dotadas de formalidade, o que restringia os eventos à elite.
Nas eleições de maio de 1933 para a Constituinte, a mulher brasileira votaria e
seria votada pela primeira vez na esfera nacional e concorreram Bertha Lutz pelo
Rio de Janeiro e Carlota Pereira de Queiroz, por São Paulo, tendo a segunda sido
eleita.
Apesar de ter sido eleita com a proposta de defender interesses de
mulheres e crianças, e de fato Carlota Queiroz ganhou notoriedade por conta
disso, ela assinou uma emenda de Aarão Reis que relacionava o voto ao serviço
militar obrigatório, e por conta disso, a FBPF e Bertha Lutz retomaram os
trabalhos anteriores de pressão agora sobre os constituintes. Nesse momento,
algumas militantes fizeram uso de mecanismos semelhantes aos das Pankhurst,
vaiando deputados que se manifestaram favoráveis às emendas. Branca Moreira
Alves destaca que Bertha Lutz não se envolveu pessoalmente nessas
manifestações mais enfáticas, porém, nos bastidores a tática era apoiada por ela86.
Ultrapassado o momento de risco de retrocesso, a preocupação ainda era o
pouco envolvimento de mulheres na política. A Federação tentou reverter essa
situação com a publicação de um manifesto no Jornal do Brasil em agosto de 1934
estimulando o voto em pessoas que defendessem os interesses das mulheres,
86
ALVES, Branca Moreira. Ideologia e feminismo: a luta da mulher pelo voto no Brasil. P. 126.
156
ressaltando que as suas necessidades somente seriam observadas se elas mesmas
elegessem representantes para o Legislativo. Porém, o problema do esvaziamento
das lutas feministas após a conquista dos direitos políticos para mulheres que já
havia se apresentado nos Estados Unidos e em outros países estava atingindo o
Brasil mesmo antes de se consolidar um maior envolvimento dessas mulheres
com a política, o mundo público, apesar da pretensão nunca ter sido o voto como
um objetivo final, ao mesmo tempo a FBPF não conseguiu se renovar,
continuando a ser encerrada não somente no dizia respeito à classe, mas também
na questão da geração, sem envolvimento de mulheres mais jovens.
A preocupação na defesa do voto feminino como algo incapaz de ameaçar
a organização familiar e, por conseqüência, a social, foi eficaz para abrir espaço
para o tema, e ao mesmo tempo, foi eficaz para encerrar os direitos políticos neles
mesmos, como objetivo final. A conquista do voto acabou não produzindo um
grande impacto nas vidas das mulheres87. A Aliança Nacional de Mulheres
encerrou suas atividades em 1937 em virtude do clima de tensão instaurado e a
Federação Brasileira pelo Progresso Feminino não chegou a ter as atividades
encerradas, mas teve importância reduzida drasticamente, mesmo após a retomada
da democracia, com o fim do Estado Novo. Resta saber se haveria algum legado
deixado por essas mobilizações feministas.
2.3
Dos direitos políticos à retomada do feminismo no Brasil
Foi um aspecto comum entre os movimentos feministas nos Estados
Unidos e na Europa o esvaziamento das discussões sobre direitos para mulheres
após a primeira grande conquista do direito ao voto. Isso foi fruto da própria
estratégia de atuação das feministas, na medida em que ao perceberem os reflexos
que poderiam ser produzidos nas relações familiares, a partir da reivindicação por
igualdade, preferiram se concentrar somente na conquista do voto. Dessa forma,
evitariam dificuldades para a conquista do voto. O fato é que, apesar de não ter
sido o objetivo das lutas feministas estabelecer o voto como conquista final, foi
87
Mesmo com o reduzido número de mulheres interessadas em participar da política do país,
algumas histórias são demonstrações marcantes da relevância do tema na vida de parte das
mulheres, como foi o caso da mineira Virgínia Augusta de Andrade Lage, de Itabira, que se
inscreveu como eleitora aos 99 anos de idade.
157
isso o que aconteceu durante períodos posteriores à conquista do voto, mesmo nos
Estados Unidos. Assim, ficou consolidada a crença de que e elas poderiam votar e
retornar a seus lares, sem nenhuma forma de ameaça. A situação no Brasil não foi
diferente. Algumas poucas até mesmo conseguiram frequentar as Universidades,
mas as transformações seguintes foram bastante lentas.
A conquista dos direito políticos no Brasil ocorreu em virtude da atuação
de poucas mulheres, se considerada a população feminina total. As autoras que
trabalharam o tema, como Branca Moreira Alves, Céli Pinto e June Harner, não
deixaram dúvidas em relação a esse fato. Apesar disso, ainda havia esforço
realizado por parte da imprensa para fazer com que as mulheres se mantivessem
no seu devido lugar. Dessa forma, a saída para o mundo público em regra ainda se
dava por uma questão de necessidade financeira, salvo as poucas que conseguiam
dar continuidade aos estudos com o objetivo de ter carreira. Nesse sentido, há
alguns trabalhos que trazem referências sobre a mulher brasileira na década de
1950, que retratam todos os afazeres domésticos atribuídos às donas de casa, bem
como as obrigações da mulher em relação à manutenção do casamento e à
tolerância com a infidelidade masculina, que em regra, de acordo com as revistas
femininas da época, acontecia em virtude da natureza masculina ou ainda de uma
falta de cuidado por parte da mulher, com a casa, o marido ou com sua
aparência88. Portanto, apesar dos esforços das primeiras feministas, inclusive com
a utilização da imprensa, esses estereótipos de gênero continuavam sendo
reproduzidos pela imprensa.
Após a conquista do voto, existiram mobilizações de mulheres com
atuações interessantes, embora não associado às lutas feministas, de colocar em
questão a opressão da mulher, ou projetos de liberação e conquista de direitos.
Essas mobilizações foram paralelas ao feminismo e afirmavam a condição de
dona-de-casa da grande parte das mulheres. Com a perspectiva da esposa e da
mãe, mulheres de classes populares e médias também reivindicaram a
88
Nesses sentidos são, respectivamente, os trabalhos de Alice Inês de Oliveira Silva, que analisa a
imprensa feminina voltada para os cuidados com a casa e de Carla Bassanezi, que se dedica aos
conselhos da imprensa feminina para lidar com a infidelidade masculina. OLIVEIRA E SILVA,
Alice Inês. Abelhinhas numa diligente colmeia: domesticidade e imaginário feminino na década de
cinquenta. In COSTA, Albertina de Oliveira e BRUSCHINI, Cristina (orgs.). Rebeldia e
Submissão: estudos sobre a condição feminina. São Paulo: Vértice, Editora Revista dos Tribunais,
Fundação Carlos Chagas, 1989. PP. 143 – 175. A referência do segundo texto é BASSANEZI,
Carla. Mulheres dos anos dourados. In DEL PRIORE (org.) História das Mulheres no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2006. PP. 607- 639.
158
interferência no mundo público nas mobilizações contra a carestia e nos clubes de
mães. Céli Pinto chama a atenção para um aspecto interessante que ocorria no fim
da década de 1940 e início da década de 1950. Mulheres vinculadas a uma
associação influenciada pelo Partido Comunista chamada Federação de Mulheres
do Brasil se uniram com as mulheres da elite da Associação das Senhoras de
Santa Tereza para realização de manifestação contra a carestia. No ano de 1953 a
Federação de Mulheres do Brasil havia organizado a Passeata da Panela Vazia.
Nos bairros mais populares da cidade do Rio de Janeiro, as mulheres também se
organizavam para reivindicar por melhorias em postos de saúde, creches e escolas
e nos serviços públicos como um todo89.
Esse tipo de participação feminina incomodava, por um lado, pois
pretendia fazer pressão para melhorar a qualidade de vida da população, por outro
lado o ativismo dessas mulheres não despertava maiores problemas uma vez que a
afirmação da condição de dona-de-casa estava presente e era a partir desse papel
desempenhado na família que elas pleiteavam legitimidade para reivindicar
melhores condições sociais. Desde o movimento abolicionista era “natural” o
envolvimento de mulheres com questões sociais, sendo até mesmo esperado que
elas se manifestassem em defesa desses interesses. Ao mesmo tempo, elas sofriam
o impacto direto com a ausência de serviço como creches e postos de saúde, já
que tinham as suas vidas completamente inseridas nos cuidados domésticos. Por
esse motivo, não havia ninguém com maior percepção desse tipo de problema do
que elas. Sem creches e sem postos de saúdes as crianças ficavam em casa ou
porque não estavam em idade escolar ou porque ficavam doentes. Com crianças
em casa, o tempo feminino era ainda mais tomado pelo cuidado, tirando-as do
mundo público. Esses movimentos não eram propriamente feministas, pois não
tinham como objetivo combater os papeis sociais instituídos para homens e
mulheres, mas observando os tipos de reivindicações, pode-se compreender como
as questões de gênero perpassavam os temas, apesar de não serem alvo direto
dessas mobilizações.
No ano de 1949 foi criado o Conselho Nacional de Mulheres por Romy
Medeiros, com o objetivo de pleitear medidas institucionais para reduzir a
89
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 44.
159
desigualdade entre os sexos90. Nesse sentido, tal conselho dedicou seus esforços
ao longo da década de 1950 aos trabalhos desenvolvidos no Congresso Nacional
em prol de direitos para a mulher casada. Até então as mulheres necessitavam de
permissão do marido para trabalhar e para viajar. Em 1962 a aprovação do
Estatuto da Mulher Casada, Lei 4.121/1962, melhorou as condições dessas
mulheres, exigindo, por exemplo, consentimento mútuo para alienação de
imóveis, dar fiança, entre outros, enquanto que anteriormente o marido era
considerado chefe da sociedade cabendo a ele a representação legal da mulher.
Romy Medeiros também foi uma figura ambígua dentro do movimento de
mulheres, pois tinha boa capacidade de mobilização, entre outros motivos, por
possuir bons relacionamentos com membros do governo, inclusive ao longo da
década de 1970. Por esse motivo ela era vista com desconfiança. Também fez
parte de políticas associadas a projetos de controle das populações em países
subdesenvolvidos, como mobilizações pelo planejamento familiar para famílias
pobres, conseguindo apoio de uma fundação americana com atuação no
planejamento familiar ao longo da ditadura militar na década de 197091.
A origem na elite de Romy Medeiros e os seus contatos no governo não a
impossibilitaram de enfrentar problemas na organização de um seminário
elaborado pelo Conselho Nacional de Mulheres em 1972. Romy foi chamada oito
vezes ao DOPS para prestar esclarecimentos sobre esse seminário. Aproveitandose de seus contatos ela conseguiu reunir correspondentes internacionais para falar
sobre as ameaças que havia sofrido. Sobre o episódio, a própria Romy afirmou:
Eu não tinha a menor ideia do que estava acontecendo naquele momento, não
sabia que era uma loucura organizar aquele encontro debaixo do autoritarismo
que existia. Tinha pessoas da família envolvidas em política e fui muito bem
recebida pelo Chagas Freitas, governador nomeado do estado da Guanabara, que
me deu todo o apoio para o encontro, que só se realizou graças às minhas relações
90
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 46.
O tema do planejamento familiar é interessante porque expõe a diversidade de formas como os
problemas de gênero podem ser pensados. Se abordado a partir de interesses em um controle
forçado, há o caráter discriminatório, configurando o controle de natalidade e não o planejamento
familiar. Porém, o tema também pode ser tratado da perspectiva da autonomia da mulher no
controle do corpo. Apesar de não se saber qual era o real intuito de Romy Medeiros, em regra, as
feministas são adeptas do planejamento familiar como direito do casal, em especial da mulher, de
decidir a quantidade de filhos e o intervalo entre os nascimentos deles, sendo obrigação do Estado
a educação sexual e o fornecimento de informações sobre métodos contraceptivos, bem como a
distribuição deles. A discussão sobre o tema do planejamento familiar e a forma como ele deveria
ocorrer retorna ao longo das discussões sobre as atas das Subcomissões da Assembleia
Constituinte.
91
160
com o governo. (...) Fui chamada ao DOPS várias vezes durante a sua preparação,
e eles me diziam: “a senhora é uma pessoa distinta, mas anda muito mal
acompanhada”92.
Colocar como ponto central de discussão a situação de dominação
especificamente vivida por mulheres, ampliando posteriormente para problemas
de gênero, não foi algo fácil de ser realizado, pois os movimentos feministas
desde que surgiram foram percebidos com certa desconfiança por parte de outras
formas de lutas. Isso ocorreu desde em suas origens na luta pela abolição da
escravidão nos Estados Unidos até no Brasil na década de 1970, quando o tema
começou a se reestruturar internamente. A relação entre essas poucas feministas
brasileiras atreladas à burguesia e com alguns membros do poder gerou
desconfiança tanto no início do feminismo organizado no Brasil, que viabilizou os
direitos políticos, quanto na sua retomada, cujo marco seria em 197293. Tratar da
questão proposta pelo feminismo, ou pelos feminismos, era algo inovador, pois se
colocava em xeque uma das estruturas sociais fundamentais: a família. Pelo fato
do problema central não ser focado na classe, sem deixar de reconhecer que as
relações de classe também se apropriam de estereótipos de gênero para perseverar,
o feminismo contava com uma diversidade de construção de alianças excluídas a
priori das possibilidades de alianças em torno da questão de classe, o que gerava
desconforto entre os membros da esquerda, apesar desta ter sido, posteriormente,
mais aberta às demandas minoritárias.
O seminário organizado por Romy Medeiros em 1972 foi interessante,
nesse sentido, na medida em que conseguiu reunir as mais variadas
personalidades, contando com a presença de representantes da Igreja, banqueiros e
feministas tradicionalmente ligadas à esquerda, como Heleieth Saffioti, Rose
Marie Muraro e Carmem da Silva94. Na medida em que os movimentos feministas
surgiam para discutir os problemas a partir da perspectiva de gênero, ou melhor,
até então da mulher, combinando esse ponto central com os demais interesses em
92
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil, p. 48.
Não se pretende excluir as iniciativas que podem ter ocorrido após o sufrágio antes do marco de
1970 em prol de direitos das mulheres. Porém, assume-se aqui que após a conquista de direitos
políticos as discussões foram esvaziadas. As próprias organizações ou tiveram fim em função do
período de repressão posterior ou mudaram o seu propósito, ressalvando nesse sentido a exceção
dos debates sobre o Estatuto da Mulher Casada. O marco trazido por um dos poucos trabalhos
sobre história do feminismo no Brasil foi o ano de 1972, a partir do momento em que teve início o
funcionamento de grupos de estudos sobre o tema no Rio de Janeiro e em São Paulo. PINTO, Céli
Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil, p. 49.
94
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil, p. 48.
93
161
questão, como a classe, a esquerda entendia, em regra, que essa era somente uma
luta de mulheres burguesas. O problema em relação aos direitos das mulheres era
tratado como secundário em relação à luta de classes, e seria resolvido quase com
a concretização de uma suposta revolução de classe. O que a esquerda fazia era
basicamente sempre demonstrar como a marca do movimento feminista alguma
mulher pertencente à burguesia, como Bertha Lutz95.
Além do marco do congresso, 1972 foi o ano em que surgiram grupos de
estudos feministas nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. O acesso a esses
grupos não era aberto, pois eram constituídos a partir de afinidades políticas e
intelectuais. Eram grupos descentralizados e de reflexão, já que as atividades
políticas haviam sido reprimidas pela ditadura. O espaço privado passou a ser o de
liberdade para a reunião dessas mulheres. O grupo de São Paulo conseguiu manter
as atividades regularmente entre os anos de 1972 e 1975. No Rio de Janeiro o
grupo reunia duas gerações. A mais nova era a que tinha vivido a década de 1960
como adultas jovens, como era o caso de Branca Moreira Alves e a primeira era
composta por mulheres da geração da mãe dessa feminista, mulheres
originariamente de grupos católicos que também aderiram às reuniões. A
atividade teve início com o retorno de Branca Moreira Alves de Berkeley, Estados
Unidos. A experiência americana foi importante, mas Branca Moreira Alves teria
despertado para o tema ao receber uma carta de Danda Prado perguntando o que
ela pensava sobre o feminismo, tendo sido esse um marco para iniciar reuniões de
mulheres em Berkeley antes do seu retorno ao Brasil e da fundação do grupo no
Rio de Janeiro96.
A partir do final de 1973 somente as mais novas passaram a se reunir e as
discussões passaram a abordar temas como sexualidade e direitos sexuais e
reprodutivos. É interessante observar que, originalmente, essas mulheres não
discutiam questões que faziam parte aparentemente de problemas pessoais seus,
na medida em que parecia ser mais urgente para o país as ações políticas
diretamente de enfrentamento à ditadura. Céli Pinto ressalta que o grupo parecia
pedir desculpas por se dedicar a temas como posicionamento da mulher na
95
Seria o caso de se refletir se essa era realmente uma preocupação em relação à
incompatibilidade entre o ideário dessas feministas liberais e a esquerda ou se seria um receio de
uma revolução dentro do espaço doméstico, por exemplo, receio esse compartilhado por homens,
fossem burgueses ou operários.
96
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 54.
162
sociedade, corpo e prazer97. Tal fato demonstra que mesmo aquelas que
começavam a se dedicar ao tema tinham dificuldades para torná-lo ou reconhecer
nos problemas de gênero a sua autonomia e importância em relação a outros
problemas. A primeira dificuldade, portanto, enfrentada, dizia respeito ao
convencimento delas mesmas de que era chegado o momento de se retomar as
pendências deixadas pelo feminismo após as mobilizações por direitos políticos.
Porém, a experiência dessas mulheres que retornavam de períodos na Europa ou
nos Estados Unidos e haviam observado as novas demandas feministas nesses
lugares acaba viabilizando o ingresso desses temas nos grupos de estudos e elas
mesmas percebiam a necessidade de retomada das questões de gênero a partir de
novas demandas, como relação com o corpo e sexualidade.
O Rio de Janeiro ainda contou com o surgimento de outro grupo dedicado
aos estudos de gênero.bEste tinha um perfil diferente, composto por mulheres na
casa dos vinte anos estudantes da PUC que também introduziram questões novas,
como sexualidade, na agenda feminista brasileira. Essas mais facilmente
ingressaram nas discussões sobre teorias feministas do que as anteriores, apesar de
sentirem as dificuldades de se retomar o feminismo no Brasil no início da década
de 1970. Um dos nomes de maior destaque posteriormente desse grupo foi a
antropóloga Maria Luiza Heilborg, que revelou a má fama do feminismo na época
entre os estudantes de esquerda:
Eu militava no Diretório, mas o que me dava realmente identidade era o
feminismo, o que era, aliás, super mal visto na época. Era como se eu estivesse
abandonando a luta de classes para adotar a luta de sexo. Eu não tinha feito isso,
mas dentro do Diretório sentia-me discriminada, como se tivesse passado a ser
alguém em luta por uma revolução íntima, pessoal98.
Como se pode perceber, os problemas referentes às questões de gênero
eram ainda associados a problemas de ordem privada, pessoal, como se não
fizessem parte da organização social, da forma como a sociedade estava
estruturada. Os papeis sociais desenhados a partir da matriz do sexo, da divisão
homem/mulher, nesse sentido, pareciam ser naturalizados pelos próprios
estudantes de esquerda, ou, quando muito, um problema ainda secundário, um
apêndice da luta de classes.
97
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. PP. 50-51.
Depoimento pessoal de Maria Luiza Heilborn para PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do
feminismo no Brasil. P. 51.
98
163
O contato que mulheres exiladas tiveram com o feminismo europeu ainda
teve outra consequência para dinamizar o retorno do feminismo no país. As
perseguições políticas realizadas pela ditadura no país foram responsáveis
indiretas por esse novo contato de mulheres brasileiras com feministas
estrangeiras, por conta dos exílios das militantes e de maridos militantes. Nesse
segundo caso, as esposas se viam na obrigação de acompanhá-los, abrindo mão da
convivência com seus familiares e abraçando uma vida sentida por muitas como
um simples apêndice de seus maridos. Ambas as mulheres, militantes e esposas,
encontraram nos países que as receberam, grupos de mulheres que se dedicavam a
discussões sobre esse tema aparentemente tão distante e sem relevância para a
situação dos brasileiros na época.
O lugar inicialmente dos exilados era a Europa e, durante o pouco tempo
do governo Salvador Allende, o Chile também foi procurado por essas pessoas.
Com o fim de tal governo, o destino voltou a ser a Europa, com especial destaque
para Paris. Diante do enfrentamento sofrido no Brasil, “a luta de classes era a
palavra de ordem e tudo o que se afastasse dela tinha a cor da traição”99. Ocorre
que, ao ingressar na Europa, essas pessoas encontraram manifestações bastante
diferentes das vivenciadas no Brasil e entendidas como lutas legítimas. Havia ali
um ambiente de inovação cultural que questionava estruturas hierárquicas
consolidadas, como a dominação masculina, muito além da perspectiva de classe.
Céli Pinto entende esse fator como sendo resultado da política imperialista
soviética, levando a esquerda européia a pensar outras possibilidades de política
distintas100.
Foi inevitável o contato das brasileiras exiladas com o feminismo e,
ressalte-se que, seus companheiros desconfiavam dessa aproximação. O
feminismo era entendido como algo que poderia romper com a necessária união
entre o proletariado para conseguir derrotar o projeto capitalista, na medida em
que produzia um processo de identificação diferente do de classe. Nesse sentido, a
resistência ao feminismo também ocorria em virtude do já mencionado receio de
se transformar as relações afetivas. O feminismo estaria situado em um local
estranho para a forma tradicional de se recortar a política: definitivamente não
poderia gerar simpatia na extrema direita instalada no governo, mas também não
99
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 52.
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 52.
100
164
encontrava simpatia na militância tradicional de esquerda. O grupo fundado por
Danda Prado em Paris, no ano de 1972, é um exemplo do quanto que a relação
com a esquerda poderia ser complicada. O grupo reunia um número grande de
mulheres da América Latina na Europa, aproximadamente cem, e discutia
informalmente a situação das mulheres, em uma espécie de catarse, sem reflexões
acadêmicas, sendo um espaço de compartilhamento de experiências como
mulheres no exílio, ou em virtude da própria militância ou em virtude da
militância dos companheiros. Os homens brasileiros de esquerda exilados não
ficavam contentes com essas reuniões, e isso resultou na ameaça da Frente de
Brasileiros no Exílio, por exigência desses companheiros, de retirada do apoio
financeiro das famílias cujas mulheres costumassem ir nesses encontros101. Em
função dessa medida, os homens pressionaram suas companheiras para abandonar
o grupo, com o argumento de que ele não servia para auxiliar a luta de classes no
Brasil.
Apesar dessa restrição sofrida, ainda houve outro grupo relevante de
mulheres brasileiras no exílio em Paris, o Círculo de Mulheres Brasileiras em
Paris, que se reuniu entre os anos de 1975 e 1979. Nessa mesma época, mulheres
brasileiras que se encontravam no Chile se deslocavam pela segunda vez,
chegando à cidade e junto com elas, suas experiências em grupos de mulheres
naquele país. Esse círculo parisiense já compreendia a especificidade da condição
feminina e dos problemas de gênero, entendendo que luta de classes e luta pela
liberação da mulher eram questões distintas e que caberia às mulheres se
organizarem para a defesa de suas demandas. As mulheres brasileiras exiladas que
se constituíam nesse momento como feministas tinham a pretensão de construir
espaços públicos nos quais as suas questões poderiam ser abordadas, enquanto
que no Brasil o movimento ficava restrito às reflexões no espaço privado. O grupo
francês tinha uma especial importância na medida em que se preocupava com a
elaboração de material para envio ao Brasil, bem como com o recrutamento de
novas feministas. O grupo foi bem sucedido em Paris, porém, a divisão entre
101
Essa informação da retirada do apoio financeiro da Frente de Brasileiros no Exílio às famílias
cujas mulheres participassem de reuniões nesses grupos feministas como o de Danda Padro pode
ser encontrada em PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 53.
Diferentes textos de feministas fazem referência a esse fato. A retirada do apoio ocorria porque o
grupo, oficialmente, era acusado pela esquerda de ser apolítico e não contribuir com a luta contra a
ditadura no país. Interessante observar que se o grupo fosse de fato apolítico não haveria
necessidade da Frente se preocupar em retirar o apoio financeiro a essas famílias. Talvez o
problema fosse justamente o risco de naquele grupo produzir-se uma política diferente.
165
aquelas mulheres que entendiam ser a luta feminista uma parte da luta de classes e
aquelas que preferiam se dedicar a pensar um movimento libertário do corpo, da
sexualidade e do prazer, nas palavras de Céli Pinto, se perpetuou, e, apesar de
aparentemente mais lúdica, a segunda vertente tinha maiores condições de expor a
estrutura da dominação sofrida pelas mulheres102.
É interessante observar o depoimento de algumas mulheres que passaram
pela experiência do exílio, para entender melhor como e em que momento elas
conseguiram despertar para a especificidade da dominação de gênero e se
constituir como feministas. A primeira narrativa aqui apresentada é a de Zuleika
Alambert, realizada em dezembro de 1978. Zuleika afirmou que havia iniciado
uma vida política bastante cedo, tendo vivido a sua adolescência no Estado Novo,
e o golpe de 1964 aconteceu quando ela já tinha experiência. Ela narrou que
ingressou na atividade política em virtude de relacionamentos de amizade ou
namoro com rapazes que viraram soldados da Força Expedicionária Brasileira e as
ações eram destinadas a fazer com que o governo rompesse com a Alemanha.
Suas atividades envolviam a confecção de sapatos, roupas de lã, cachecol, além de
recolher remédios para soldados. Depois desse momento ela se envolveu com a
luta pela Anistia a presos políticos e por eleições democráticas. Ao final da Guerra
Mundial, o Partido Comunista saiu da ilegalidade e naquele momento conseguiu
que muitos jovens se integrassem nele. Zuleika foi uma deles. Sua família não
tinha envolvimento com política, mas ela frequentou uma sociedade teosófica em
Santos, a loja Albor, entre os anos de 1940 e 1945. Com o fim da Guerra, Zuleika
soube que um positivista conhecido em sua cidade faria uma palestra defendendo
o retorno da mulher ao lar, pois as brasileiras, assim como as americanas, haviam
sido incorporadas em fábricas com a ida de homens para as batalhas. Zuleika
demonstrou indignação com esse posicionamento desse e o chamou esse senhor
para um debate, no qual ela defendeu publicamente que mulheres poderiam
trabalhar, usar calças compridas, fumar e exercer atividades na vida política do
país. Em suas palavras “Era ainda muito incipiente, um feminismo oculto, mas
que eu sentia, sentia...”103.
102
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 55.
Depoimento em COSTA, Albertina de Oliveira ET ALI. Memórias das mulheres do exílio. P.
50.
103
166
Porém, antes de perceber a dominação de gênero como algo próprio, ela
teria ainda uma grande trajetória política envolvida com a estruturação do Partido
Comunista. Aos vinte e quatro anos as mulheres em Santos envolvidas com o
Partido Comunista resolveram que Zuleika Alambert deveria ser candidata a
deputada estadual e fizeram um grande esforço em sua campanha, apesar de não
ser candidata preferencial do Partido. A campanha foi finalizada com um grande
comício no qual o deputado federal Marighela foi o único homem orador. Sua
campanha foi bem sucedida e ela conseguiu ser eleita no meio de homens mais
velhos, ricos e donos de terras, com uma única mulher além dela, Conceição Santa
Maria, que estava na casa dos cinqüenta anos. Nos dias anteriores à sua posse,
outros deputados passaram a interrogar a Milton Caires de Brito, líder da bancada
da qual ela faria parte, sobre a nova integrante nos seguintes termos “então, vamos
ter aqui mais uma flor?”, no que ele respondia “vai ter mais uma flor sim, mas é
uma flor com muito espinho”. A imagem da flor utilizada pelos deputados para
definir a atuação da mulher é interessante, pois é uma imagem de beleza,
fragilidade e delicadeza, todas essas características atribuídas à suposta natureza
feminina e já mencionadas ao longo do capítulo, como se essa flor estivesse, de
forma espantosa, saindo do terreno no qual deveria ficar. E a resposta também foi
interessante, na medida em que tentava distorcer o significado da flor, apesar de
colocar Zuleika como uma espécie de exceção, ao afirmar que aquela flor teria
espinhos. Zuleika revelou no depoimento que seus companheiros a teriam
aconselhado a não se manifestar ao longo de um mês, dedicando-se somente a
ouvir seus colegas. O dia de sua estréia chegou e, com ele, inevitavelmente todas
as manifestações preconceituosas em função de ser mulher falando em um
domínio masculino por excelência, como uma espécie de pena que deveria ser
imposta a alguém que rompeu com o seu dever, violou as expectativas que a
sociedade tinha em relação à sua vida:
Eles foram cruéis comigo, me rodearam na tribuna e começaram a me dar apartes
violentos, a maioria eivados dum preconceito absurdo em relação à mulher. Um
deputado chegou mesmo a dizer que lugar de mulher era em casa lavando prato e
criando filho, e perguntava o que é que eu estava fazendo ali. Mas reagi com tanta
energia que foi um verdadeiro escândalo na assembléia, suspensa, fechada por
causa do meu discurso. No dia seguinte, os jornais estampavam minha fotografia
167
com um título: “Deputada vermelha fecha parlamento!” A partir daí todas as
vezes em que eu falei a assembleia foi suspensa.104
Esse depoimento auxilia a evidenciar de que forma os discursos operam
como mecanismo de colocar alguém em seu lugar, conforme já esclarecido sobre
as ofensas. Muitas vezes esse procedimento ocorre por vias indiretas,
comparando, por exemplo, a mulher a uma flor, com o intuito de dizer, em última
instância, que o lugar da flor não é em uma assembléia, entre homens. Dessa
forma, todas as vezes que Zuleika discursou a assembléia foi suspensa. Em outros
momentos o discurso é explícito, para garantir que a mensagem seja devidamente
compreendida, conforme exposto no trecho acima. O importante é que essa
mulher obteve êxito na devolução da ofensa, com todo o desenvolvimento
posterior de sua trajetória política.
Zuleika conseguiu permanecer no exercício do mandato até o momento em
que o registro do Partido Comunista foi cassado. Entre 1947 e 1954 ela viveu seu
primeiro período de clandestinidade. Refletindo posteriormente sobre o que
significava pertencer ao Partido Comunista e ser mulher, Zuleika afirmou que
sendo esse partido o grande portador de idéias novas, ela não deveria ter
encontrado muitas dificuldades em virtude de ser mulher e reconheceu que ao
longo dos anos ela conheceu muita gente que a apoiou e a auxiliou a enfrentar as
dificuldades. Ao mesmo tempo, ela sentia que no espaço do partido ela encontrava
outros pais, sofrendo uma constante vigilância sobre a sua vida privada. Ela
atribuiu tal vigilância sobre seu comportamento ao fato do Partido Comunista ter
se ampliado muito após sua legalização, passando a contar com 150 mil pessoas e
que necessariamente fariam com que o Partido refletisse os preconceitos sociais
nos quais seus membros estavam inseridos.
Em 1970 ela decidiu ir para o Chile em virtude das perseguições no Brasil.
Foi nesse país que Zuleika conseguiu enxergar especificamente a condição da
mulher na sua realidade. O seu interesse em trabalhar com as mulheres brasileiras
exiladas no Chile foi em virtude de ter observado como as mulheres eram
utilizadas como massa de manobra. Nesse sentido, ela assumiu que de início
instrumentalizou a questão, focando sua preocupação no papel negativo que a
mulher poderia e muitas vezes havia desempenhado, esquecendo-se de que
104
Depoimento em COSTA, Albertina de Oliveira ET ALI. Memórias das mulheres do exílio. P.
54.
168
homens também desempenhavam papeis negativos. Outro fator que despertou seu
interesse foi a constatação do maior número de exilados ser de homens, mas estes
sempre levavam as suas famílias para acompanhá-los no período do exílio. Havia
mulheres exiladas, mas a maioria era de mulheres de exilados. Estas eram
marginalizadas em um duplo sentido: o primeiro na própria sociedade chilena, o
segundo dentro do seu meio, no seio das famílias, pois os homens eram políticos
que seguiam com suas práticas, enquanto a esse grupo cabia a casa, considerando
que muitas abriam mão de seus trabalhos e atividades no Brasil para acompanhar
o marido.
Zuleika fundou o Comitê de Mulheres no Exterior, conseguindo reunir 250
filiadas, que se integraram, mais uma vez, em trabalhos voluntários, passeatas,
juntas de abastecimento, cursos de primeiros socorros em virtude de receio de
uma eventual guerra civil no Chile, entre outras atividades. Muitas nunca haviam
exercido atividades políticas antes. Nessa época foi realizado o Seminário LatinoAmericano de Mulheres, com o objetivo de colocar em discussão as questões de
gênero no continente. Porém, com o golpe no Chile o Comitê foi desfeito e as
mulheres foram para o exílio na Europa, entre Holanda, Suíça, Itália e França.
Quando Zuleika pensava que o Comitê de Mulheres Brasileiras no Chile havia se
perdido completamente, ela contatou o nascimento de comissões e grupos de
mulheres brasileiras nos diferentes países da Europa no ano de 1974, já
influenciados pelo ressurgimento do feminismo no continente europeu e por
estudantes brasileiras que saíram do país para estudar a condição feminina
especificamente. A própria afirmou que somente conseguiu enxergar melhor o
problema após a sua mudança para a Europa, sentindo que, até aquele momento,
alguma coisa havia sido negada a ela em sua formação. Na Europa ela conseguiu
condições de se aprofundar teoricamente e perceber como as questões de gênero
apareciam no Brasil, na medida em que se viu como uma exceção, reconhecendo
que o fato de haver uma ou duas mulheres bem sucedidas na política ao
ultrapassar as barreiras sociais não poderia significar que o problema havia sido
superado.
Outro depoimento merecedor de destaque é o de uma mulher que passou
pela experiência do exílio como esposa de militante, Maricota da Silva105. Sua fala
105
Muitas das mulheres que prestaram seu depoimento para Albertina de Oliveira Costa, na obra já
citada Memórias das mulheres no exílio, preferiram omitir o nome verdadeiro, tendo esse sido o
169
teve início com a observação de que ela jamais estaria naquele lugar, Paris, se não
fosse mulher. A sua condição de mulher foi central na definição da função social e
do rumo que a vida dela tomou, alheio aos seus desejos. Tal depoimento
demonstra o conflito interno dessas mulheres que seguiam os maridos, ora
entendendo que isso nada mais seria do que o cumprimento do dever de esposa,
de ordem moral e religiosa, ora deixando transparecer o rancor em virtude da
impotência e de qualquer perspectiva de decidir sobre os rumos da própria vida,
mas sempre com um posterior pedido de desculpas ou justificativa em relação à
revolta em virtude da condição de vida da época. O principal motivo de seu
inconformismo em relação ao exílio dizia respeito ao fato de ter a sensação de que
sua existência se reduzia à figura do marido. Ainda quando ela ressaltou esse
incômodo, Maricota se desculpou por ter afirmado no depoimento que sua
existência no Brasil era independente do seu marido, corrigindo-se rapidamente
“perdão, perdão... se eu disse independente do meu marido, volto atrás, eu valia
por mim mesma”.106 O termo “independente” foi considerado muito forte por ela.
Eu acho que eu nunca estaria aqui se não fosse mulher. Estou aqui porque estou
acompanhando marido, então, há realmente a tal condição de esposa, de acordo,
inclusive com a religião, tenho que acompanhar o marido onde ele estiver.
Acredito nisso, ainda hoje, por mais ridículo que possa parecer... Favas contadas,
eu hoje faria exatamente a mesma coisa porque, primeiro que tudo, sei que ele
não cometeu crime algum, em nenhum nível. (...) se amanhã o meu marido for
para a... Noruega, eu vou. (...) Mas continuo ligada pelos sagrados laços do
casamento... e isso é mais forte que acreditar... é uma coisa que faz parte,
digamos assim, do meu inconsciente. É uma coisa que me foi dita tantas vezes
que eu creio nisso... então eu vou.107
Muitas questões surgiram ao longo de seu discurso, tais como a condição
imposta às mulheres pelo próprio casamento, o fato de ser esposa de um homem
de esquerda e ter que de repente se sujeitar a uma forma de vida que não seria
conseqüência de seus atos e sim dos atos do marido, o fato de ninguém a ter
caso de “Maricota da Silva”. Esta justificou a sua opção afirmando que socialmente ela não era
ninguém, na medida em que seu reconhecimento tanto entre os brasileiros no exílio como entre
familiares vinha em virtude do seu marido: “E digo mais, se um dia vocês puderem colocar esse
livro plenamente, oficialmente apresentado, eu continuo Maricota da Silva. Eu não existo. (...) Em
suma... socialmente, quem sou eu? Maricota da Silva”. Depoimento em COSTA, Albertina de
Oliveira ET ALI. Memórias das mulheres do exílio. P. 47.
106
Depoimento em COSTA, Albertina de Oliveira ET ALI. Memórias das mulheres do exílio. Pp.
33-34.
107
Depoimento em COSTA, Albertina de Oliveira ET ALI. Memórias das mulheres do exílio. P.
33.
170
consultado para tomar uma decisão que afetaria a toda a família e o fato de ser
invisível ao lado dele, especialmente na Europa. Receber os cumprimentos pelas
ações do marido, com homenagem à coragem que ele havia demonstrado deixavaa perturbada, pois aos olhos dos outros, ela não tinha existência própria, ninguém
perguntava a ela sobre como ela estava, o que ela achava da vida deles e dos
caminhos traçados por ele unilateralmente para toda a família. Parece que
especialmente a família dele pensava que ela tinha grande sorte de estar ao lado de
um “homem corajoso”, o que a irritava profundamente. “Eu não existo. A família
do meu marido só vê em mim a pessoa que tem a honra e glória de ser casada com
ele e de acompanhá-lo. A maior parte das pessoas que eu conheço também pensa
assim. Pra minha família eu não existo porque acompanhei o marido...”.108 Sua
existência foi, portanto, completamente neutralizada, ela não teve vontade e não
foi ouvida, apenas sentia que pagava um preço elevado pela tomada de uma
decisão da qual ela não teve qualquer participação:
Eu acho que nós mulheres deveríamos exigir que houvesse na nossa legislação
uma nova figura jurídica: “a mulher do marido”, quer dizer, a mulher que casa
com um homem de esquerda, ela é de esquerda e pagará por todos os atos desse
homem. Na prática é o que está acontecendo. Essa mulher passará a ser uma
condenada no momento em que se casa. Que é preciso que ela fique avisada, que
é possível que ela queira jogar o jogo, que é possível que ela não queira! Ela já
sabe que a qualquer momento começa a pagar por coisas que jamais... enfim,
jamais foram universo dela.(...)
A saída do Brasil foi uma surpresa absoluta para mim... ah foi, ah foi...
principalmente a duração... (...) e o dia em que eu morrer alguns dirão: “ela era
tão simpática, coitada, tão cheia de boas intenções...” Mentira, nem boas
intenções eu tinha, não tinha intenção nenhuma, nem boa, nem má.
Eu volto sempre àquele ponto central, àquele ponto de partida que é o casamento
e que não creio que seja uma questão política, mas que no Brasil é política. No
momento em que você está engajada num casamento é como se tivesse que
pensar e que viver exatamente como o seu companheiro. Isso não está
acontecendo apenas com as mulheres formalmente casadas, mas com as que
vivem com um homem de esquerda. É como se fosse uma espécie de doença
contagiosa”109.
O depoimento de Maricota também foi selecionado em virtude dela ter
feito parte das reuniões do Grupo Latino-Americano de Mulheres organizado por
Danda Prado e que teve o encerramento de atividades decorrente da pressão da
108
Depoimento em COSTA, Albertina de Oliveira ET ALI. Memórias das mulheres do exílio. P.
47.
109
Depoimento em COSTA, Albertina de Oliveira ET ALI. Memórias das mulheres do exílio. PP.
35-36.
171
Frente de Brasileiros no Exílio, conforme já esclarecido. A importância das
reuniões para as mais diferentes mulheres pode ser apreendida no próprio
depoimento de Maricota. O grupo surgiu informalmente e não tinha qualquer
pretensão política, porém Maricota confirmou que o número de participantes era
elevado, reunindo aproximadamente cem mulheres nas reuniões semanais. Os
temas eram variados, em regra, cada semana discutia-se um e qualquer uma
poderia falar sobre ele. As mulheres que participavam pertenciam a diferentes
gerações e tinham os mais variados níveis de formação. Parece ter sido uma
experiência inicial de catarse para muitas delas, mais do que qualquer estudo
formal sobre o tema feminismo. As questões eram postas, especialmente, a partir
da angústia vivida por muitas delas e manifestada por Maricota, de não se ter
qualquer perspectiva de decidir e controlar a própria vida. Sobre essas reuniões
Maricota disse:
O nível intelectual de cada uma não contava a mínima; o que contava realmente
era a dor e o medo, que você via que eram os grandes temas: a dor, o medo, o
amor, a dificuldade imensa que cada uma tinha em assumir a sua própria dor, o
seu próprio medo, as suas próprias sensações, o seu próprio corpo, a incapacidade
de assumir o seu próprio corpo (...).
Havia temas que me interessavam mais, temas que me interessavam menos, mas
o que interessava fundamentalmente era ver como nós éramos parecidas; era a
gente ver como a nossa dor, enfim como a nossa... como o nosso inconsciente
tinha sido forjado da mesma maneira. Idades inteiramente disparatadas,
formações inteiramente disparatadas e aquele negócio era sagrado, aquela hora...
era uma vez por semana... eu acho que se fosse toda a noite haveria gente toda a
noite porque o importante era aquele encontro.110
Além da importância desse grupo nas vidas de muitas mulheres ser
apresentada nesse trecho, há ainda outro aspecto que merece ser ressaltado, o
início de um processo de identificação, em que muitas mulheres sem qualquer
contanto anterior necessário se perceberam compartilhando experiências comuns,
que antes do grupo provavelmente eram tratadas como problemas individuais,
dificuldades pessoais de lidar com a realidade do exílio e com as respectivas
famílias. A experiência comum vivida por essas mulheres foi fundamental para a
retomada das discussões sobre feminismo no Brasil, e se anteriormente a
expressão de ordem era participação política, no sentido especialmente do
sufrágio universal, a estrutura familiar e as funções sociais generificadas
110
Depoimento em COSTA, Albertina de Oliveira ET ALI. Memórias das mulheres do exílio. P.
39.
172
passavam a ser percebidas. Além disso, as peculiaridades das questões de gênero
foram colocadas, ressaltando que essa forma de divisão social ia além da
tradicional divisão política entre esquerda e direita, e que talvez esse recorte
político não conseguisse perceber, pelo menos naquele momento no Brasil, tal
realidade. Nesses termos, confirma o depoimento da própria Maricota:
Eu considero a experiência no grupo um dos momentos-chave da minha vida...
encontrar a semelhança... enfim saber, meu Deus, essa dor que levo em mim, e
tudo o que você possa imaginar de samba canção de Emilinha Borba, Dalva de
Oliveira, essa dor que há em mim, só em mim, finalmente é uma dor de
absolutamente todas nós... e isso eu acho que não teria vivido no Brasil,
certamente não num grupo como aquele, com uma capacidade intensíssima de
sentir as coisas, de sofrer, de amar e de receber o outro, você sabe, eu acho que
esse grupo teria que ser forjado no exílio... na dor... Não havia só brasileiras,
eram sul-americanas e às vezes havia mulheres de outros países que iam no
grupo. (...) nós fomos cortadas do Brasil e nos transformamos em pessoas
diferentes, fomos transformadas em sombras das pessoas que estávamos
acompanhando. Nós éramos pessoas num luto profundo sem mesmo nos darmos
conta disso.
Tenho a impressão de que na esquerda há também um fenômeno que me parece
que não é nem de esquerda nem de direita, é um fenômeno social muito mais
complexo; é que a mulher é uma sombra, nem vou chamar do marido, no
momento, é uma sombra do companheiro. Estou farta, agora já me fartei tanto
que a coisa já chegou a um ponto de saturação e passou para um outro nível,
passou para o nível da memória apenas, e uma memória crítica: ouvir falar mal ou
bem de mulheres em função da pessoa com quem ela vive. A atitude de uma
mulher raríssimamente é julgada em função do que ela faz. Imagina-se sempre
que ela seja uma marionete guiada por um homem, quando eu estou farta de saber
que não é isso...111
O depoimento de Maricota também é importante porque ilustra algo
central para qualquer processo de luta minoritária, a descoberta da semelhança
entre um grupo alvo de determinados preconceitos, estereótipos e formas de
dominação. Talvez o uso dessa expressão seja adequado para descrever como
essas lutas são desencadeadas, além de explicar a forma pela qual se passa a
afirmar uma identidade. A identidade, há algum tempo, sofre críticas mesmo
dentro das teorias feministas especialmente de matriz pós-estruturalista, como o
caso de Judith Butler, na medida em que é uma afirmação na qual
necessariamente serão constituídos outras formas de exclusão. As críticas,
inclusive já demonstradas no primeiro capítulo, são pertinentes, porém, aqui cabe
constatar que essa formação de identidade ocorreu a partir do processo de
111
Depoimento em COSTA, Albertina de Oliveira ET ALI. Memórias das mulheres do exílio. PP.
40-41.
173
exclusão sofrido por essas mulheres e serviu para fazer com que essa exclusão
fosse percebida .
Essas mulheres se descobriam novamente112 como alvo de determinadas
estruturas de dominação, porém a partir de problemas diferentes dos direitos
políticos, considerando que ainda na época da reivindicação pelo voto outros
fatores foram deixados de lado para evitar que o próprio voto fosse inviabilizado.
Entender a constituição da identidade a partir da percepção da semelhança pode
auxiliar a desfazer, pelo menos em parte, o caráter absolutamente negativo que a
identidade assumiu após essas críticas e também as resistências que os
movimentos feministas e as teorias feministas tiveram em relação às críticas
realizadas especialmente por Butler à identidade. O ponto relevante talvez seja
compreender como ela funciona, de que forma ela faz sentido para compreender
determinada realidade.
Há alguns depoimentos de 1978 interessantes ainda sobre o momento em
que a denominada consciência feminista foi forjada entre as militantes e mulheres
que faziam parte do Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris, formado em
outubro de 1975, a partir da combinação das trocas de experiências entre essas
mulheres e a observação do movimento feminista francês. A valorização da
experiência coletiva é notória nos depoimentos. Muitas militantes já haviam
percebido em suas vidas os problemas referentes ao gênero, porém atribuíam a tal
experiência um caráter individual. Nesses termos, as palavras de Glorinha são
bastante significativas:
Eu acho que se a nossa militância política implicou rupturas com a família, com
valores, é porque há uma particularidade nessa militância. No momento histórico
em que ela se dá havia uma tentativa de crítica ao stalinismo, de construção do
homem novo trazido pela revolução cubana ou pela revolução cultural. A gente
tentava um mínimo de inserção do político no cotidiano, quer dizer, não éramos
só a pessoa heróica no sentido de transformar o mundo, também nos
questionávamos: saímos de casa não casando, tentando romper com a virgindade,
tentando desmistificar o casamento. Mas não vivenciamos isso tudo enquanto
movimento feminista. O que a gente sabia de feminismo nessa época era que as
mulheres americanas eram lésbicas, feias e complexadas, ou então que o
movimento francês era coisa de pequeno-burguesas que não tinham o que fazer e
112
O “novamente” foi utilizado porque é preciso considerar que o feminismo não se constituía pela
primeira vez no Brasil, já tendo produzido resultado no que diz respeito aos direitos políticos, que
foram o grande marco da primeira constituição a partir da semelhança. Outros problemas foram
percebidos, como a estrutura familiar e sua divisão de papeis, mas eram sem dúvida mais difíceis
de serem ultrapassados, e por isso foram deixados de lado em prol de pelo menos uma conquista
parcial. O feminismo se reestruturaria ao longo da década de 1970 no Brasil, portanto, novamente.
174
que nada disso se aplicava à realidade de um Brasil e uma América Latina
subdesenvolvidos. Então pensávamos que rompíamos com tudo – e rompíamos
em parte – mas continuávamos reproduzindo todos os valores da nossa
educação113.
A narrativa ilustrando a percepção do problema de forma individual ainda
traz outros aspectos relevantes: o primeiro diz respeito ao já mencionado
problema apresentado pela idéia de que o feminismo implicava em uma luta
secundária, sem relevância, praticamente algo típico de quem não tinha nenhuma
preocupação social, o segundo diz respeito ao imaginário ou ao que seria uma
mulher feminista, a mulher mal resolvida, ou recalcada por não encontrar nenhum
parceiro, ou feia ou lésbica ou quiçá tudo isso ao mesmo tempo. Esse estereótipo é
bastante forte ainda nos dias atuais. Ele persiste e é reforçado sempre com o
intuito de desqualificar a fala de uma feminista em defesa de direitos das mulheres
a partir da ridicularização, especialmente em assunto tão conturbado, por ser em
regra normalizado, quanto a objetificação do corpo e da imagem femininas.114
Nesse sentido, não há novidade.
O interessante a partir especialmente da segunda metade da década de
1970 é perceber como o feminismo foi surgindo em diversos meios entre as
brasileiras, parte fora do país entre as exiladas, parte reunida em grupos de
estudos isolados entre Rio de Janeiro e São Paulo e, pouco depois, entre as
próprias operárias também na cidade de São Paulo. O fato de a Organização das
Nações Unidas ter declarado o ano de 1975 como Ano Internacional da Mulher
113
Depoimento em COSTA, Albertina de Oliveira ET ALI. Memórias das mulheres do exílio. P.
416.
114
Sem ingressar no mérito da discussão sobre quais medidas deveriam ser tomadas no
enfrentamento desse problema ou se a determinada propaganda é ou não ofensiva, a recente reação
à reprovação da propaganda de uma marca de lingerie por parte da ex Ministra Iriny Lopes e da
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres representa bem a situação. Uma das charges
divulgadas na época ilustra a na época Ministra de calcinha e soutien avisando que iria proibir a
campanha e do seu lado uma indicação de que tal ato seria errado transmite alguns recados. O
primeiro deles é bastante direto, indicando que a Ministra não teria os mesmos atributos físicos da
modelo da propaganda e, por conta disso, ela teria proibido a sua veiculação, atrelando à Ministra
um desconforto em virtude da ausência de atributos físicos. Porém, a charge foi muito além da
propaganda, pois esta última objetifica a mulher, mas atribui a todas as brasileiras as qualidades da
modelo eleita pela campanha publicitária, no que seria, a princípio, um elogio à imagem da mulher
brasileira, apesar de reforçar estereótipos como: mulher não sabe dirigir (“tinha que ser mulher”,
“ou mulher no volante perigo constante”) ou não tem qualquer tipo de controle financeiro. A
charge consegue ser mais agressiva, pois divide as mulheres brasileiras a partir de atributos físicos,
retirando o elogio da propaganda e qualificando aquela que estava em um cargo símbolo da luta
pela igualdade de gênero, a feminista, como a “feia”, a “recalcada” e tudo o que Glorinha, por
exemplo, pensava sobre as feministas americanas antes de se dedicar ao tema. Charge disponível
em
http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2011/10/01/charge-de-chico-caruso-408868.asp.
Acesso em 4 de outubro de 2011.
175
com encontro no México também serviu para inspirar os grupos feministas
brasileiros a realizarem eventos sobre o tema, aproveitando-se de uma promessa
do Presidente Geisel de distensão política. O primeiro deles foi organizado por
dois grupos de estudo do Rio de Janeiro, tendo lugar na própria cidade e foi
denominado “O papel e o comportamento da mulher na realidade brasileira”, que
originou o Centro de Desenvolvimento da Mulher Brasileira. As feministas
conseguiram patrocínio na própria ONU para a concretização do encontro. Com o
objetivo de evitar a resistência das pessoas à conferência, Maria Luiza Heilborn,
uma das organizadoras, expôs que elas não utilizaram o termo feminismo no
título, bem como inseriram na programação diversos homens, por vislumbrar a
impossibilidade de realizar qualquer coisa, sobre gênero, obviamente, que não
contasse com uma composição mista na época. Uma das grandes conquistas desse
evento foi a constituição de um centro que se dedicasse exclusivamente com os
problemas das mulheres. Céli Pinto ressalta que tal centro sofria patrulhamento
tanto do regime militar, por desconfiar de qualquer forma de reunião e
mobilização, quanto de grupos de esquerda, que insistiam na preponderância da
luta de classes e na luta pela democracia, acusando o feminismo de ameaçar a
unidade necessária.115 Pode-se constatar a persistência dessa crítica recebida pelo
feminismo por parte da esquerda, aquela concepção política que deveria
necessariamente ser mais aberta, cabendo uma reflexão sobre que forma de
democracia seria a defendida por esses grupos que não reconheciam os problemas
de gênero como estruturantes de desigualdades sociais profundas.
No próprio Centro da Mulher Brasileira as divergências de entendimento
acerca do que significava uma luta a partir da perspectiva do gênero eram
inúmeras. As mulheres que faziam parte da organização se intitulavam como
feministas, mas o grau de relevância do tratamento do tema não era o mesmo entre
elas. Em regra, elas se definiam como feministas diferentes das americanas, com o
discurso de que a causa das brasileiras dizia respeito à salvação das outras
mulheres, as operárias, que viviam em condições piores do que a das feministas,
pois estas tinham casa, acesso à educação e o que comer116. Duas conclusões são
retiradas a partir desse entendimento. A primeira diz respeito à interessante
115
PINTO, Céli, Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. Pp. 57-58.
Afirmação de uma das participantes do Centro da Mulher Brasileira que preferiu se manter no
anonimato. PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 59.
116
176
construção de afinidade que elas tentavam fazer com as operárias, pelo menos
discursivamente, uma vez que as diversas vertentes do feminismo se constituíram
a partir de um sentimento de exclusão pelo movimento feminista inicial atrelado
às idéias liberais. A segunda conclusão já não é otimista e passa pela negação
dessas mulheres dos problemas de gênero que certamente faziam parte de suas
vidas, questões como relações com seus companheiros e os papeis
desempenhados nessas relações por cada uma das partes, pois já foi afirmado que
paralelamente a essas mobilizações internas, na Europa as brasileiras perceberam
esses fatores.
Sobre essa negação, tem-se o seguinte depoimento: “Era engraçado, tinha
até gente que saía vomitando se se falasse em aborto; não se podia falar em
problemas pessoais, todas se diziam bem e felizes, quem tinha problemas eram as
operárias, as outras mulheres, uma dissintonia total com a realidade”117. As
questões referentes à sexualidade, direitos reprodutivos e estabelecimento de
lugares adequados para homens e mulheres ainda eram vistos como problemas de
ordem individual e causas tradicionalmente de interesses atrelados aos burgueses.
A separação entre público e privado parecia, dessa forma, ter sido incorporada até
mesmo entre essas mulheres, com desqualificação dos próprios problemas que
faziam parte de suas vidas. O tema da violência doméstica até então não havia
surgido entre elas e dessa ausência de tratamento não se pode concluir que tal fato
não existia. O tabu em torno da ordem privada era grande, decorrendo da
consagração do espaço privado como reservado e indiscutível ou pela
desqualificação dele como um problema de ordem burguesa. A oportunidade de
construção ou percepção de afinidade, portanto, era perdida, na medida em que
essas mulheres não se preocupavam em tecer agendas comuns entre esses dois
grupos e sim esvaziavam uma demanda em prol de outra, porém, ambas as
demandas eram relevantes para as vidas das mulheres.
O Centro da Mulher Brasileira era composto por três grupos de feministas:
marxistas, liberais e radicais, porém ressaltando que todas eram mulheres de
esquerda. Essas correntes se relacionavam diferentemente com os problemas de
gênero, sendo as radicais aquelas que realmente pretendiam fazer com que o
gênero ganhasse autonomia e não se sujeitasse mais a ser pensado com óticas de
117
Afirmação de uma das participantes do Centro da Mulher Brasileira que preferiu se manter no
anonimato. PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 59.
177
outras teorias. As marxistas tendiam a reduzi-los à luta de classes, as liberais à
luta por direitos individuais e a proposta das radicais era trazer o gênero, no caso,
a condição de mulher, para o centro das atenções118. As feministas radicais
encontraram
problemas
no
Brasil
porque
traziam
uma
especificidade,
especificidade essa já colocada tanto entre os negros e as mulheres nos Estados
Unidos, quanto na Europa, mas que enfrentava fortes resistências no Brasil, pois
na luta hegemônica no país se dava justamente em dois campos: o primeira da
democracia contra a ditadura e o segundo do proletariado contra a burguesia. Por
esse motivo, as demais questões eram tratadas como secundárias.
A percepção das próprias mulheres como alvo de discriminação,
especialmente daquelas de classe média que se envolviam com militância política
e com o feminismo nascente, foi um processo lento. As organizações feministas
apresentavam como reivindicações suas a anistia, a retomada da democracia,
Assembleia Constituinte, o fim da carestia, além de demandas por creches,
ampliação de horário das escolas, melhoria na alimentação de crianças em
colégios públicos. Tais reivindicações ilustram como as mulheres dessas
organizações se consideravam representantes das mulheres das classes populares,
pois as demandas em relação a gênero eram as decorrentes desses meios. Além
disso, ilustram também uma preocupação em espelhar as necessidades políticas do
momento, como anistia e Assembleia Constituinte. Obviamente, um espaço
democrático é infinitamente mais vantajoso para a expansão de movimentos
minoritários, e por isso era demanda dessas feministas, assim como os problemas
trazidos pelas reivindicações de mulheres vindas das classes populares dizem
respeito, em última instância, às possibilidades de redistribuição de tempo das
vidas de qualquer um que passe pela experiência de ser mulher.
Porém, conforme já mencionado no presente capítulo, é interessante
sempre ressaltar como alguns temas pareciam ser proibidos, como direito ao corpo
e sexualidades, que nesse momento já apareciam na Europa e Estados Unidos pelo
feminismo mais tradicional e também a partir dos movimentos LGBT e o extremo
da violência contra a mulher. Talvez fossem assuntos considerados demasiado
burgueses para o momento vivido pelo país na década de 1970. A identificação ou
118
Essa classificação das linhas feministas dentro do Centro da Mulher Brasileira foi realizada a
partir do texto de Céli Regina e não corresponde exatamente às classificações das teorias
feministas, pois o que se denomina feminismo radical entre as teorias feministas ainda possui
diversas outras categorias.
178
afinidade era construída com certa facilidade com as mulheres proletárias, mas a
opressão vivida na própria experiência parecia ser facilmente desconsiderada.
Nesses termos é o depoimento de Terezinha Zerbini no jornal o Pasquim: “As
feministas brasileiras procuraram seguir as feministas inglesas ou americanas, o
que não faz sentido num Terceiro Mundo, ou principalmente no continente latinoamericano, onde nossos problemas são pão, teto, educação e saúde”119. Ainda
sobre o momento histórico e a declaração exposta acima, pode-se destacar a fala
de Céli Pinto e que retrata as dificuldades de qualquer luta no interior de uma luta
hegemônica:
Deve-se entender a manifestação de Terezinha Zerbini a partir das condições em
que foi feita. Havia uma questão estratégica básica, como já observamos: o
feminismo era mal visto no Brasil, pelos militares, pela esquerda, por uma
sociedade culturalmente atrasada e sexista que se expressava tanto entre os
generais de plantão como em uma esquerda intelectualizada cujo melhor
representante era justamente o jornal Pasquim, que associava a liberalização dos
costumes a uma vulgarização na forma de tratar a mulher e a um constante
deboche em relação a tudo o que fosse ligado ao feminismo120.
A relação conflituosa nesse momento entre o feminismo e a esquerda
atingiu não somente aquelas que vinham da classe média e militavam contra a
ditadura, refletindo também entre o próprio movimento operário. O final da
década de 1970 também foi um momento em que as mulheres proletárias
perceberam as peculiaridades pelas quais passavam não somente em suas casas,
como também no ambiente de trabalho, desde desvalorização dos trabalhos
reservados a elas, com grande defasagem salarial, passando por assédio por parte
de superiores hierárquicos até problemas de representação nos sindicatos e
reconhecimento de que tinham demandas próprias. Ao longo do período entre
1970 e 1978 as taxas de sindicalização tiveram um aumento maior do que o
119
GOLDERB, Anette. Feminismo e autoritarismo: a metamorfose de uma utopia de liberação em
ideologia liberalizante. Dissertação de mestrado, mimeo, 1987, p. 27. Apud, PINTO, Céli Regina
Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 64.
120
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 64. Interessante ressaltar
a atualidade dessa compreensão da autora. Ainda hoje as lutas feministas em regra geram antipatia
e sofrem críticas de diversas ordens, seja pelo viés da liberdade de expressão, em que atualmente
tudo é permitido no que diz respeito a estereótipos de gênero, seja pelo viés da defesa da esfera
privada, em que violência de gênero, doméstica ou não, ainda se confunde com problemas de
ordem privada ou íntima, que facilitam a defesa do homem. Em relação a esse tema, ainda se
aponta esse movimento minoritário como repressivo ou vingativo, por exigir que mulheres que
sofrem esse tipo de violência sejam enxergadas pelas instituições e que tais crimes sejam punidos e
não se mantenham na invisibilidade. Democrático, então, seria não responsabilizar esse tipo de
violência? Democrático é garantir uma espécie de “direito de objetificação” da mulher?
Democracia seria sinônimo de sexismo?
179
crescimento da população economicamente ativa, tendo como marco para esse
grande salto o ano de 1978, com a peculiaridade da aceleração de sindicalização
ser maior entre as mulheres, a partir de 1976121. Esse foi um fator relevante para
que as relações entre as mulheres e os sindicatos passassem a sofrer
transformações.
O pagamento de salários inferiores para mulheres era justificado por
basicamente três argumentos por empresários de indústrias de São Paulo
entrevistados por Elisabeth Souza-Lobo: a mulher teria escolaridade mais baixa,
seria uma mão de obra instável e teria menor qualificação122. Em relação à
instabilidade da mão de obra, a autora levantou dados sobre o estado de São Paulo
no ano de 1979 que demonstravam, na verdade, a estabilidade dessas mulheres
nos trabalhos, especialmente se observados a ausência de perspectiva de
crescimento profissional e a remuneração baixa, bem como as pressões as quais
estavam sujeitas nesses ambientes, pois empregadores atribuíam às mulheres
maior docilidade, ou docilidade natural, mas de fato exerciam um controle com
maior violência sobre a mão de obra feminina, sendo comum na gestão das
empresas o reforço nas condições sociais que subordinavam as mulheres. A
pesquisadora refutou a justificativa da menor escolaridade pela realização de
pesquisas demonstrando que os níveis de educação de homens e mulheres não
eram tão diferentes, além de se referir ao fato de se fazer comumente exigência de
que as mulheres tivessem um nível de educação superior aos homens para que
conseguissem ter salário igual. A divisão sexual do trabalho, portanto, não se
encontrava somente dentro de casa. Em regra, as mulheres eram designadas para
funções entendidas como sem qualificação, mas por critérios que a autora
demonstrou serem falhos, ou que propositalmente desvalorizavam o aprendizado
pelo qual as mulheres passavam ao longo de suas formações.
Elisabeth Souza-Lobo percebeu em suas pesquisas que a variação dos
salários dos operários não tinha relação necessária com a função exercida por eles,
nem no que diz respeito à formação profissional, nem em termos de
produtividade, sendo os funcionários divididos em não qualificados ou
121
SOUZA-LOBO. Elisabeth. Lutas operárias e lutas das operárias em São Bernardo do Campo. P.
38. In SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e
resistência. 2 ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011. PP. 27-53.
122
SOUZA-LOBO. Elisabeth. Lutas operárias e lutas das operárias em São Bernardo do Campo. P.
31. In SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e
resistência. 2 ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011. PP. 27-53.
180
semiqualificados. O sentido em regra era o inverso, pois era o salário que
determinava a forma como aquele cargo era classificado na fábrica, fazendo
referência a uma grande fábrica automobilística, que na filial brasileira contava
com noventa níveis salariais entre os operários enquanto a filial inglesa contava
com apenas três. A promoção acontecia em virtude do aumento do salário e não
de uma mudança na função exercida pelo operário. O argumento que relacionava
os maiores salários a funções mais sofisticadas em virtude de suposta qualificação
começaria a ruir. As funções consideradas como não qualificadas tinham os
menores salários e estavam destinadas às mulheres.
Nesse sentido, a autora percebeu basicamente duas formas de
discriminação contra as mulheres nas fábricas. A primeira consistia em colocar as
mulheres no nível salarial mais baixo em relação a uma determinada função, sem
considerar o rendimento ou produtividade delas. Sendo assim, enquanto os
homens eram colocados na categoria de operário de prensa, as mulheres eram
auxiliares de prensa, mesmo tendo maior produtividade, como demonstra um
depoimento apresentado pela autora no 1º Congresso das Mulheres da Metalurgia
de São Bernardo do Campo, em 1978:
Além de mim, só havia homens na oficina. Eu produzia 100, 110 peças (depois
baixei para 88), enquanto os homens só produziam 68,70. Enquanto eles
ganhavam Cr$10,50 por hora eu ganhava 6,00; depois, eles passaram para Cr$
11,50 e eu, para Cr$6,50. Sabe por quê? Porque depois de trabalharem 6 meses
eles tem a classificação de “oficial”. Sem nem precisar pedir ao chefe. Com a
classificação, eles recebem uma promoção enquanto profissionais. E eu, em
quatro anos, não fui classificada123.
A segunda forma de discriminação contra a mulher dizia respeito à
valorização de funções que estavam atreladas ao imaginário do que seriam, e que
ainda são, qualidades masculinas, como a força, por exemplo, enquanto as
qualidades tipicamente femininas, tendo sido identificadas pela autora a precisão,
destreza, habilidade e rapidez, eram desvalorizadas. Essa questão é subdividida
em dois aspectos. O primeiro seria o fato de a semiqualificação e a não
qualificação não dizerem respeito a uma real qualificação profissional, sendo
somente para determinar um patamar de salário que, em tese, poderia servir de
123
SOUZA-LOBO. Elisabeth. Lutas operárias e lutas das operárias em São Bernardo do Campo. P.
34. In SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e
resistência. 2 ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011. PP. 27-53.
181
atrativo para homens e mulheres. O segundo seria a forma como as características
das mãos de obras femininas e masculinas eram apreendidas. As qualidades
femininas eram vistas pelo mercado como pertencentes à natureza, ou seja, as
mulheres naturalmente eram hábeis, precisas, entre outras coisas. Nesse
raciocínio, tais características não tinham fundo em uma educação, ou
“qualificação”, não eram méritos e sim naturais. Ocorre que, como observou a
autora, as características atribuídas à natureza feminina decorreram da forma
como as mulheres foram e são criadas, ou seja, decorrem da educação recebida, a
formação para a execução de tarefas domésticas, com rapidez e minúcia124, tarefas
essas ou não remuneradas, como no caso das donas de casa, ou não valorizadas,
no caso das empregadas domésticas. Nesse sentido, o argumento final da
qualificação da mão de obra masculina em detrimento da não qualificação da
feminina foi esvaziado.
Atos invasivos dos mais variados faziam parte das rotinas de mulheres,
como solicitação de testes de gravidez para a contratação de mulheres casadas.
Outro problema comumente enfrentado por operárias no fim da década de 1970 e
início dos anos 1980 que as distinguia do restante do operariado dizia respeito ao
constrangimento sexual que sempre estava acompanhado da ameaça de demissão,
considerando que grande parte dos cargos de chefia se encontrava em mãos de
homens,
caracterizando
o
assédio
sexual.
Tal
conduta
somente
foi
reconhecidamente considerada uma violência digna de retribuição do Direito
Penal no Brasil no ano de 2001 com a Lei 10.224125. Portanto, pode-se concluir
que foi um esforço intenso dessas mulheres e um longo caminho até que tal
conduta deixasse de ser naturalizada, passando a ser reprovada, pelo menos pela
lei. Essa queixa era recorrente entre as operárias. As relações com os chefes eram
complicadas, em virtude de ter havido uma dificuldade na constituição de uma
identidade entre as mulheres trabalhadoras, com a cumplicidade entre elas para
que ações coletivas pudessem ser postas em prática. Nesse sentido, elas eram alvo
de assédio, as casadas sofriam discriminação na contratação ou ainda mulheres
solteiras que casavam ao longo da relação empregatícia passavam a encontrar
124
SOUZA-LOBO. Elisabeth. Lutas operárias e lutas das operárias em São Bernardo do Campo. P.
35-36. In SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e
resistência. 2 ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011. PP. 27-53.
125
A Lei 10.224/2001 inseriu o artigo 216 A no Código Penal. Cabe ressaltar que, antes da
legislação penal, a Justiça do Trabalho já considerava o assédio sexual como falta praticada pelo
empregador, configurando a rescisão indireta do contrato de trabalho sem justa causa.
182
ainda mais dificuldade em seus trabalhos, tudo isso vivido como algo, a princípio,
individual. O problema das gerações de mulheres ainda incidia também nessa
relação, pois as mais velhas tentavam se beneficiar do reconhecimento de tempo
de serviço naquele local, em detrimento das mais novas, enquanto as mais novas
se esforçavam para garantir espaço agradando aos chefes126.
O processo de sindicalização dessas mulheres também foi algo tortuoso e
refletia a ambiguidade com a qual o tema “trabalho da mulher” era recepcionado
pelos operários. Nesses termos, é interessante citar um trecho do jornal Tribuna
Metalúrgica, de abril de 1977, selecionado por Elisabeth Souza-Lobo que ilustra
tal situação. O trecho dizia respeito a um debate sobre a possibilidade de trabalho
noturno para mulheres, refletindo uma preocupação com o aumento da jornada de
trabalho feminina, mas que não tinha como preocupação uma exploração da mão
de obra em si, mas sim a tutela dos papeis tradicionais reservados a cada um dos
sexos: “A modificação da lei tem por objetivo intensificar a exploração da mulher
aumentando a sua jornada de trabalho, impondo-lhe tarefas prejudiciais a seu
organismo (...). Significa enviar as mulheres à fábrica e os homens ao lar, numa
incrível inversão de papeis”127. Assim como os homens burgueses já haviam feito,
os operários chamavam a natureza para reforçar o argumento: o “prejuízo ao
organismo feminino”. Seria ele realmente menos apto ao trabalho noturno?
Provavelmente, nenhum homem operário considerava, por exemplo, a
possibilidade de reservar a ele próprio os cuidados com os familiares, as crianças
e o preparo das refeições em sua própria casa na parte da noite, em virtude da
inaptidão do organismo feminino para o trabalho noturno. Ou o corpo da mulher
seria somente despreparado para o trabalho noturno fora de casa?
A preocupação que perpassava era com a utilização que o patronato fazia
do trabalho feminino. Não se pode negar que a mão de obra feminina era de fato
mais barata, estando as mulheres em piores condições para negociação. Além
disso, a contratação de mulheres nessas condições piores ajudavam a retirar a
força do operário. Porém, a saída vislumbrada pelo restante do movimento
operário era ou a cooptação delas para as suas reivindicações ou o retorno delas ao
126
SOUZA-LOBO. Elisabeth. Trabalhadoras e trabalhadores: o dia a dia da representação. P. 105.
In SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e
resistência. 2 ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011. PP. 95-119.
127
SOUZA-LOBO. Elisabeth. Lutas operárias e lutas das operárias em São Bernardo do Campo.
PP. 42-43. In SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e
resistência. 2 ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011. PP. 27-53.
183
lar, para que eles não perdessem espaço ou poder de reivindicação. A
discriminação contra a mulher no mundo do operariado produzia reflexos nos dois
sentidos: os patrões exploravam de forma mais intensa o trabalho feminino ao
mesmo tempo em que o pensamento conservador dos operários dividia os
trabalhos entre o masculino, que dizia respeito à produção e o feminino, que
deveria ficar restrito à reprodução. As mulheres passaram a compor os sindicatos
e eram chamadas para participar das lutas dos operários para que a resistência
fosse viabilizada, sendo certo que “essa luta é a ‘luta dos homens’”128.
Nesse sentido, foi organizado o 1º Congresso das operárias da metalurgia
de São Bernardo, no período entre 21 a 28 de janeiro de 1978, convocado por uma
direção sindical da qual não fazia parte nenhuma mulher. Houve o cuidado de se
deixar claro que não se trataria de uma reunião feminista e sim mais uma consulta
às bases. Ao mesmo tempo, as empresas resolveram boicotar o Congresso e
compensar um feriado de Carnaval ao longo de sua realização e das oitocentas
mulheres inscritas, somente trezentas estiveram presentes. As reivindicações que
saíram das discussões eram temas já apresentados anteriormente e que ainda hoje
seguem sendo pertinentes, como por exemplo, pagamento igual por trabalho
igual129, a obrigatoriedade das horas-extras com a chantagem das demissões caso
elas não fossem aceitas, falta de estabilidade no emprego especialmente em caso
de casamento e gravidez, sendo estes motivos freqüentes que justificavam as
demissões, solicitavam melhores condições de higiene no local e creches, estas
com o intuito de diminuir a quantidade de tempo dedicado às atividades
domésticas, preconceitos raciais e assédio sexual por parte de superiores
hierárquicos, entre outras questões.
Sobre trabalho noturno uma das operárias afirmava: “O homem chega em
casa e pode ir para a cama na mesma hora, sem problema. Nós, não; quando a
gente chega em casa, encontra todos os problemas e todo o trabalho de casa
128
SOUZA-LOBO. Elisabeth. Lutas operárias e lutas das operárias em São Bernardo do Campo. P.
43. In SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e
resistência. 2 ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011. PP. 27-53.
129
A proibição de pagamento de salários diferentes para o exercício da mesma função em virtude
de diferença de sexo já estava consagrada na Constituição de 1934, no Art. 121, §1º, a. Ainda
assim a realidade era completamente diferente, pois as mulheres na metalurgia recebiam pelo
mesmo trabalho 60% do salário dos homens.
184
esperando”130 e com tal afirmação revelava o problema da dupla jornada e, em
última instância, o fato de homem burguês e homem operário se comportarem da
mesma forma no que dizia respeito ao espaço da casa. Dessa forma, havia
instaurada uma identidade de gênero, que provocava processos semelhantes de
discriminação contra mulheres. A identidade não deve ser tomada como absoluta.
Porém, deve-se ter cuidado ao dispensá-la completamente, pois se as mulheres
não se identificavam entre elas, e havia um esforço sempre de tornar o feminismo
algo que dizia respeito a interesses secundários ou burgueses, havia aqueles que
pretendiam reivindicar outro processo de identificação, que afirmavam a
necessidade da unidade operária, mas sendo esse espaço um lugar eminentemente
masculino. Sobre o congresso ocorrido o jornal sindical colocava: “As
participantes, com seu jeito simples e ingênuo de ver as coisas, demonstraram seu
desejo de se integrar à luta dos homens”131. Ressalte-se a estratégia de se colocar
as mulheres em posição de inexperientes ou mesmo incapazes para justificar a
necessidade de união com os homens operários em relação à sua causa. Nessa
concepção, elas precisariam de tutela e era melhor que essa tutela viesse de
homens operários do que de feministas burguesas.
É interessante observar que apesar de um grande número de mulheres ter
se associado a sindicatos no período apresentado por Elisabeth Souza-Lobo, a
atuação de mulheres em assembléias e reuniões sindicais não costumava ser
significante, especialmente se comparada com a participação de mulheres nas
greves, que parecia ser substancialmente maior. Isso é justificado de forma
interessante pela autora. A greve acontecia ao longo do horário da jornada de
trabalho fora de casa, o que viabilizava a maior participação feminina. As
reuniões, por sua vez, ocorriam em horário em que as mulheres deveriam se
dedicar ao trabalho doméstico. Elas não tinham tempo disponível e, ainda que
quisessem deixar de lado o trabalho doméstico, encontravam a resistência de
maridos ou companheiros, que entendiam o sindicato como um espaço
130
SOUZA-LOBO. Elisabeth. Lutas operárias e lutas das operárias em São Bernardo do Campo. P.
44. In SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e
resistência. 2 ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011. PP. 27-53.
131
Tribuna Metalúrgica, fevereiro de 1978. Apud SOUZA-LOBO. Elisabeth. Lutas operárias e
lutas das operárias em São Bernardo do Campo. P. 46. In SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe
operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência. 2 ed. São Paulo: Fundação Perseu
Abramo, 2011. PP. 27-53.
185
masculino132. Portanto, essas mulheres não tinham controle sobre o seu tempo. As
atividades sindicais exigiriam a dedicação justamente após o término do trabalho
remunerado, coincidindo com as demandas familiares. Além disso, a
representação de mulheres nesses espaços era problemática, pois eram poucas as
bem sucedidas em fazer parte da direção. “A separação entre sindicatos e
operárias se reproduziu e os esforços de integração não ultrapassaram o quadro
simbólico de uma mulher na direção sindical, sempre em cargos secundários”133.
Nesse sentido, pode-se afirmar que, embora o feminismo tenha sido
acusado de estar vinculado à burguesia, dificilmente essas mulheres encontrariam
também representatividade entre as instituições que se voltavam para o
operariado. A identificação com as feministas pode não ser a adequada, porém, o
feminismo permitiu que as mulheres trabalhadoras percebessem a especificidade
das suas experiências nas relações de trabalho, tanto o remunerado quanto o
realizado nos cuidados da casa, ainda que esse processo tenha sido em virtude do
olhar crítico que essas mulheres de classes populares tinham para as feministas
tradicionais, ao entender que as reivindicações destas não eram exatamente as
mesmas que as suas. Dessa forma, suas demandas passaram aí sim a compor as
agendas tanto do operariado quanto das feministas. Além disso, é sempre
importante lembrar que, do ponto de vista dos homens operários, não era
interessante a constituição de afinidade entre as mulheres operárias e as
burguesas, pois abalaria tanto o chamado mundo público, nas relações de trabalho
remunerado, quanto os papeis estabelecidos na casa. Tanto o homem burguês
quanto o operário não almejavam nenhuma revolução na esfera doméstica.
Tem-se, portanto, no final da década de 1970 e início da década de 1980 a
consolidação de linhas de frente feministas. Um mapa pode der apresentado da
seguinte forma: a primeira sendo a composta por militantes de esquerda que fora
do país tiveram contato com essa forma de luta minoritária, e entre elas pelo
menos duas subdivisões, marxistas, com o entendimento de que a luta de classes
ainda era a primeira luta, e radicais, acusadas de serem herdeiras das burguesas do
132
SOUZA-LOBO. Elisabeth. Lutas operárias e lutas das operárias em São Bernardo do Campo. P.
47. In SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e
resistência. 2 ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011. PP. 27-53.
133
SOUZA-LOBO, Elisabeth. Masculino e feminino na prática e nos discursos sindicais no Brasil.
PP. 77-78. In SOUZA-LOBO, Elisabeth. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e
resistência. 2 ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2011. PP. 71-79.
186
início do século, que centralizavam o gênero, especialmente em temas como
sexualidades e direito ao corpo, e o feminismo que nasceu entre as operárias, com
as especificidades das relações de trabalho do proletariado e com reivindicações
que reformulavam e ampliavam direitos sociais e eram sensíveis também à
discriminação que entrelaçava sexo e raça, com a situação da mulher operária e
negra, entre outras linhas que podem não ter sido citadas aqui. Definir qual
demanda seria a mais importante, ou a verdadeira demanda feminista seria
complicado, pois em todos esses aspectos existiam questões de gênero sendo
enfrentadas.
As divergências entre elas muitas vezes inviabilizava a identificação ou a
construção de afinidades, o que é compreensível, mas por outro lado, uma não
aliança entre essas mulheres com base no argumento de que as burguesas eram
inimigas das operárias, por exemplo, também enfraquecia e rompia uma luta que
precisava se preparar para ganhar a força necessária para ser escutada e tomar a
palavra se inserindo no jogo político, a partir de uma perspectiva muito específica:
a de gênero. A relativa distância histórica dos dias atuais permite olhar para esse
momento específico e constatar que todos esses temas são temas de gênero,
afetando as relações em âmbito público e privado entre homens e mulheres.
Obviamente aqueles que iriam prevalecer e as formas de lutas que seriam válidas
dependeriam de habilidade política e capacidade de composição dessas variadas
frentes, bem como da viabilidade de tais reivindicações, o que não era novidade,
Bertha Lutz já havia passado por isso.
Além dessas frentes, a década de 1980 significou também o ingresso do
tema na Academia, com grupos debruçados em estudos sobre a condição da
mulher no país134. O feminismo foi um movimento que desde suas origens no
Brasil esteve atrelado a mulheres intelectuais, que tinham acesso a espaços como
jornais, conseguiam realizar palestras e escreviam peças de teatro. Esse fator
facilitou a associação do feminismo com algo necessariamente proveniente da
burguesia. Essas foram as mulheres que tiveram acesso às mobilizações já
organizadas tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, bem como eram as que
conseguiam sair do país para continuar seus estudos, conforme esclarecido na
134
A PUC-Rio foi pioneira nesse sentido, tendo fundado Fanny Tabak o Núcleo de Estudos da
Mulher já em 1980. O trabalho de Fanny Tabak inspirou a criação de outros Núcleos como o da
UFBA, o da USP e o da UFMG, todos em 1984.
187
abertura do capítulo135.
Nesse sentido, a aproximação do feminismo com o
universo erudito e com a Universidade foi um caminho mais fácil, especialmente
após o momento em que as mulheres conseguiram ultrapassar as barreiras
impostas a elas para acessarem cursos superiores. As mulheres que compunham
os grupos de estudos da década de 1970 eram, em regra, professoras
universitárias, outras eram profissionais liberais. As formações em regra eram nas
áreas de psicologia, história, letras, ciências sociais, direito e saúde, o que
viabilizou nessa época a elaboração de diferentes estudos para conhecer a situação
das mulheres no país, no que dizia respeito a trabalho, família, violência e
participação política, questões presentes na Assembleia Constituinte de 19871988. Tal fator foi interessante porque isso permitiu que as mulheres produzissem
o conhecimento acerca das suas próprias condições na Academia, enquanto outras
minorias dependeram, em um primeiro momento, da adesão de intelectuais136.
Cabe ressaltar que esses Núcleos e grupos de estudos conseguiram se
institucionalizar até certo limite, pois o impacto na criação de novas disciplinas
em graduações e em pós-graduações, bem como a criação de linhas de pesquisa
próprias foi e ainda é reduzido no país. No campo do feminismo acadêmico, um
dos primeiros e grandes nomes foi o de Heleieth Saffioti, na elaboração de sua
tese de doutorado, ainda entre os anos de 1966 e 1967, muito antes do tema
ingressar de fato nas pós-graduações, sob a orientação de Florestan Fernandes137,
pois somente ao longo da década de 1980 os núcleos de estudos sobre mulher
surgiram nas Universidades, a partir dos trabalhos de Fanny Tabak.
A década de 1980 especificamente foi um marco para a militância
feminista no Brasil, pois o tema começou a ser institucionalizado. Ao longo do
processo de democratização e ampliação de partidos políticos, as feministas
acabaram se distribuindo entre o PMDB e o PT a partir das eleições de 1982138.
135
Não se pretende desprezar qualquer mobilização anterior seja entre mulheres de classe popular
seja entre mulheres negras. O fato é que não há exemplos concretos citados no presente momento
em virtude de dificuldade de se encontrar relatos sobre esses temas. De fato, se a história das
mulheres burguesas já é uma história alternativa e de acesso mais difícil, essas outras histórias
sofrem ainda mais resistência para encontrar espaços de divulgação fora de seus lugares originais.
Essas mulheres obviamente encontravam ainda mais dificuldades de ter qualquer espaço de
divulgação de suas idéias e experiências.
136
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 85.
137
O trabalho posteriormente foi publicado e ainda é considerado um marco para as pesquisas
sobre mulher e feminismo no Brasil. SAFFIOTTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes:
mito e realidade. Petrópolis: Vozes, 1976. 384 PP.
138
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 79.
188
Dessa forma, algumas conseguiram ocupar cargos na administração pública,
culminando na esfera federal com a criação do Conselho Nacional de Direitos da
Mulher, em 1985. A ocupação de cargos pelas antigas militantes era algo
controvertido, em virtude do receio de que houvesse cooptação por parte do
sistema e limitação ou prejuízo das reivindicações. Esse é um problema
enfrentado por qualquer movimento minoritário quando presencia a chegada de
um aliado ou ao menos políticos mais abertos às suas causas ao poder. Por outro
lado, essa não poderia ser uma oportunidade perdida, pois a possibilidade de
exercer influência e afetar diretamente e por dentro decisões que atingiam às
mulheres poderia ser potencializada.
O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher contribuiu para que as
feministas começassem a ganhar espaços institucionais. O CNDM foi bastante
importante para as discussões que antecederam a Constituinte. Porém, isso não
significa que as feministas estariam todas incorporadas em instituições. Na mesma
época outros grupos na sociedade civil se concentravam nos temas da saúde da
mulher e da violência. O tema da violência contra a mulher durante muito tempo
parece não ter sido enfrentado pelas feministas, somente ganhando espaço a partir
de casos famosos no final da década de 1970, ingressando mais fortemente entre
as demandas feministas no início da década de 1980. O problema era considerado
um tabu, as mulheres em regra não assumiam que sofriam com ele. Isso porque a
violência contra a mulher era tratada como um assunto de ordem privada, que
deveria ser mantido dessa forma, na privacidade do lar. Com os argumentos da
privacidade e do espaço privado, o tema que tinha profundas raízes culturais e
certamente atingia a muitas delas, passava a ser um problema individual, com o
isolamento da vítima, sem qualquer recurso efetivo para impedir tal violência.
De fato, é difícil encontrar dados sobre o tema nesse período em
decorrência de sua invisibilidade, por isso, não seria adequado se extrair dessa
dificuldade a conclusão de que a violência contra a mulher não existia. Talvez um
dos casos mais emblemáticos dessa forma de violência tenha sido a morte de
Ângela Diniz por Doca Street, em 1976. Um marco ainda mais forte para as
feministas da época foi a linha argumentativa da defesa, com a tese da legítima
defesa da honra e com a estratégia de desqualificação moral da vítima por parte do
advogado Evandro Lins e Silva. O fato da tese defensiva ter funcionado
demonstrava que era justificável a morte de uma mulher por parte de seu
189
companheiro em virtude de um comportamento considerado inadequado
socialmente. Cabe ressaltar que a legítima defesa da honra não foi criada por
Evandro Lins e Silva, porém o argumento ganhou projeção nesse caso. A defesa
foi inteligente o suficiente para trabalhar a partir dos estereótipos de gênero,
conseguindo sucesso em sua empreitada. Parece ter sido após a morte de Ângela
Diniz que as feministas passaram a se organizar e enfrentar diretamente o tema da
violência contra a mulher, pois até então esse era um assunto de ordem privada
em que não deveria haver qualquer tipo de interferência do Estado. Outro caso
posterior também acompanhado pelo movimento feminista na época, com o
intuito de evitar a absolvição, foi o homicídio de Eliane de Grammont por
Lindomar Castilho, seu ex marido, em virtude de não se conformar com a
separação e pensar que estava sendo traído, em 1981.
Nesse período teve início a campanha “Quem ama não mata”, com o
intuito de enfrentar a naturalidade com a qual a morte de mulheres por parte de
maridos, ex maridos e namorados ciumentos era admitida socialmente. Surgiram
também organizações com o objetivo de fornecer estrutura para as mulheres
vítimas de violência, como o caso do SOS Mulher, em 1981139, no Rio de Janeiro
que posteriormente se expandiu para São Paulo e Porto Alegre. O SOS Mulher
pretendia ser um lugar para atender às mulheres vítimas de violência, bem como
se preocupava em promover mudanças nas suas vidas. Naquele momento não
havia lugares especializados nesse tipo de atendimento, pois as primeiras
delegacias de atendimento à mulher surgiram somente em 1985.
As vésperas da Constituinte, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
organizaria grande mobilização em torno das demandas de diferentes grupos
feministas, que incluíam recomendações que iam desde a reestruturação da
família, passando pelo planejamento familiar e pela violência contra a mulher,
mas atingindo também as relações de trabalho. Conforme já esclarecido, o
Conselho foi fundado em 1985, com o objetivo de promover a criação de políticas
públicas para mulheres. No momento de sua criação, Jacqueline Pitanguy foi
indicada para fazer parte do Conselho Deliberativo e, em 1986 assumiu a
Presidência do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher até o ano de 1989. A
própria Jacqueline Pitanguy afirmou que a estratégia de atuação do Conselho para
139
PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. P. 80.
190
a futura Constituinte começou a ser formulada ainda em 1985, com as campanhas
“Constituinte para valer tem que ter palavra de mulher” e “Constituinte para valer
tem que ter Direitos da Mulher”. Esse processo envolveu uma articulação nacional
com diferentes grupos feministas e também com os Conselhos Estaduais de
Direitos da Mulher, além de organizações de mulheres empregadas domésticas,
trabalhadoras rurais e trabalhadoras pertencentes a centrais sindicais, como a
Central Única dos Trabalhadores. O Conselho ainda promoveu visitas às capitais
dos estados para que as mulheres pudessem apresentar propostas para a nova
Constituição.
No fim de 1986 o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher promoveu,
ainda, um encontro no Congresso Nacional com representantes da sociedade civil
para que as propostas apresentadas fossem debatidas antes de serem
encaminhadas para a futura Constituinte. Nesse encontro, foi elaborada a “Carta
das Mulheres Brasileiras aos Constituintes”, concentrando as propostas das mais
variadas formas de mobilizações de mulheres para o texto constitucional para que
a igualdade entre homens e mulheres fosse afirmada e conquistada. Nas palavras
de Jacqueline Pitanguy:
Com relação ao capítulo da família, as mulheres denunciavam a desigualdade e
hierarquia que permeava as relações nesta esfera, pleiteando a eliminação da
figura de chefe da sociedade conjugal atribuída ao homem por nosso Código
Civil, com todas as consequências daí derivadas como fixar domicílio, o
predomínio da linhagem paterna sobre a materna na custódia dos filhos, dentre
outros. Apoiávamos também o reconhecimento da instituição da família,
independentemente de uma certidão de casamento.
No que se refere aos direitos e benefícios sociais as mulheres demandavam a
extensão destes para os trabalhadores domésticos, o aumento da licença
maternidade para 4 mulheres, o direito das mulheres em situação prisional de
amamentarem seus filhos, o direito à titularidade da terra à mulher rural
independente de seu estado civil, o reconhecimento de que havia discriminação
da mulher no mercado de trabalho140.
A referida Carta foi entregue pela própria Jacqueline Pitanguy ao
Presidente da Assembleia Constituinte, Deputado Ulisses Guimarães, na
inauguração dos trabalhos de tal Assembleia. A mobilização promovida pelo
Conselho ao longo dos trabalhos na Constituinte em prol dos direitos das
mulheres ficou conhecida como “ O Lobby do Batom”, que tinha como objetivo
140
Esse depoimento de Jacqueline Pitanguy sobre os trabalhos no momento anterior e na própria
Constituinte estão disponíveis em <http://www.cepia.org.br/images/nov089.pdf>.
191
despertar a simpatia entre deputados e senadores para as demandas dos
movimentos feministas. Ao mesmo tempo em que esse trabalho era desenvolvido
entre os parlamentares, Jacqueline afirmou, no mesmo depoimento, que o
Conselho também promovia propagandas com o intuito de conquistar a opinião
pública, com campanhas em jornais, revistas, televisão e rádio. Essas propagandas
correspondiam sempre a um determinado capítulo da Constituição, garantindo que
a pluralidade dos assuntos referentes aos direitos das mulheres alcançasse a
opinião pública. O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, portanto, atuaria
em diversas frentes, desde a propaganda na mídia, passando pelo lobby
diretamente com os Constituintes, forjando também uma identidade entre as
mulheres Constituintes e participando direta ou indiretamente nas Subcomissões
nas quais os temas de gênero seriam colocados.
3
As mulheres Constituintes: a pluralidade na composição
da chamada “Bancada Feminina”
3.1
Objetivos do capítulo e breve esclarecimento sobre a estrutura da
análise das atas das Subcomissões da Assembleia Constituinte
O presente capítulo tem como propósito realizar a análise dos perfis das
mulheres que foram eleitas para a Assembleia Constituinte. Este também é o
capítulo que marca o ingresso na segunda parte do trabalho, dedicado à análise
das atas da Assembleia Constituinte com o intuito de investigar os discursos sobre
direitos das mulheres naquele momento, especificamente as discussões em
determinadas Subcomissões temáticas. Será importante percorrer, no início dessa
parte, o perfil das mulheres Constituintes para melhor compreender o nível da
atuação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher ao forjar a chamada
“Bancada Feminina”, como uma estratégia de ampliar as possibilidades de
exercício de influência entre os demais Constituintes. Dessa forma, será possível
também compreender que a criação dessa identidade, apesar de ter sido eficaz em
diversos momentos, teve os seus limites, em virtude das origens bastante distintas
dessas mulheres.
Os critérios para eleição das Subcomissões serão explicitados adiante.
Antes desse esforço, são necessários alguns esclarecimentos sobre os objetivos
dessa análise, bem como sobre a forma como a seleção dos trechos que serão
apresentados ao longo do texto foi realizada. A investigação proposta nesse
momento é discursiva, ou seja, pretende-se demonstrar pelas falas tanto dos
Constituintes quanto dos representantes da sociedade civil qual era o perfil de
mulher que estava em jogo naquele período, conectando esse capítulo com os dois
anteriores. Portanto, esses capítulos que começam agora não pretendem ser uma
análise exaustiva da Assembleia Constituinte e da forma como ela funcionou.
Alguns desses fatores poderão aparecer ao longo do texto, na medida em que
produziram reflexos nas próprias discussões das Subcomissões e Comissões
escolhidas para análise. Nesse sentido, pretende-se analisar as falas sobre direitos
das mulheres, os debates travados entre os Constituintes e as demandas da
193
sociedade civil, as sugestões dos movimentos e o encaminhamento dado a elas no
percurso de elaboração do texto constitucional.
A teoria de Butler sobre as funções das identidades de gênero e o seu
sentido de atos performativos será necessária para que seja efetuada a leitura e
interpretação dos debates. Ao mesmo tempo, Austin também será retomado, na
medida em que não só foi o responsável por ter percebido a função performativa
da linguagem, mas também porque a Assembleia Constituinte envolveu atores
institucionais muito especiais, aqueles escolhidos para redigir o principal
documento que um Ordenamento Jurídico pode ter, em um momento também
especial, o fim da ditadura. Como essas discussões foram conduzidas na
perspectiva de gênero? Quem falou em nome dessas minorias? Quais eram
aqueles habilitados a selecionar as propostas trazidas pela sociedade civil? Com
que argumentos parte das propostas foi ignorada? Como essas pessoas puderam
estabelecer critérios para escolher aquilo que seria incorporado no texto
constitucional e o que ficaria de fora? Houve critério? Por outro lado, os
movimentos feministas souberam insistir quando cabível e abrir mão de
determinadas demandas quando necessário? Isso significa que a ênfase maior da
pesquisa é na observação dos debates, no uso das palavras, nas estratégias
discursivas utilizadas tanto por aqueles mais progressistas no que dizia respeito ao
tema tratado quanto por aqueles mais apegados aos papeis tradicionais instituídos
com base nas funções sexuais. Obviamente, o decorrer da discussão implicará na
apresentação das diferentes propostas para positivação desses direitos na
Constituição e como foi atingido o resultado final, mas o aspecto central é esse
momento anterior da observação dos debates.
No que diz respeito à seleção dos diálogos, cabe ressaltar que foram
examinadas algumas das Subcomissões da Assembleia. As Subcomissões foram
escolhidas porque nelas a sociedade civil teve espaço para manifestação, sendo
esse um grande momento de oitiva das propostas populares para que os
constituintes elaborassem as suas próprias propostas, além de debaterem e
demonstrarem as suas convicções acerca dos temas tratados, e em que medidas
essas convicções influenciariam no texto constitucional. Foram investigados os
debates em algumas subcomissões, não ficando a análise presa a uma delas ou não
tendo sido examinadas todas as subcomissões. Não se poderia reduzir a análise a
somente uma Subcomissão porque os temas pertinentes aos direitos das mulheres
194
atravessaram diferentes Subcomissões, pois diziam respeito a direitos individuais,
ao trabalho, reestruturação familiar, saúde, entre outros, assim como atravessa
atualmente diversos ramos tradicionais nos quais o Direito é dividido. Ao mesmo
tempo, entendeu-se não ser necessário investigar os debates em todas as
Comissões e Subcomissões, simplesmente porque é muito provável que na
Comissão da Organização do Estado e na Comissão da Organização dos Poderes e
Sistema de Governo não tenha havido qualquer discussão sobre gênero.
Em relação às Comissões, foram observadas a da Soberania e dos Direitos
e Garantias do Homem e da Mulher, a da Ordem Social e a Comissão da Família,
da Educação, Cultura e Esportes, Ciência e Tecnologia e da Comunicação. Na
Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, foi
escolhida a Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais por ser aquela
responsável pelo desenho de uma carta de direitos e garantias individuais. As três
Subcomissões da Ordem Social tiveram suas reuniões verificadas, sendo elas
Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos, Subcomissão
de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente, Subcomissão dos Negros, Populações
Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Optou-se por percorrer todos esses
discursos porque temas de gênero apareceram nas três, como trabalho da mulher e
as licenças maternidade e paternidade na dos Trabalhadores, aposentadoria e,
brevemente, o aborto na de Saúde, Seguridade e Meio Ambiente e trabalho da
mulher, mulher negra e homossexualidade apareceram na dos Negros, Populações
Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Na Comissão da Família, da Educação,
Cultura e Esportes, Ciência e Tecnologia e da Comunicação foi dada atenção
especial à Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, que discutiu arduamente
a questão do aborto, bem como o divórcio.
É interessante notar que os temas de minorias em geral, e os de gênero
especificamente, em regra, são complexos e não se adéquam às estruturas
colocadas tradicionalmente por outras matérias. Esse aspecto é um pressuposto
fundamental para se compreender não somente a necessidade de se passar por
todas essas Subcomissões, mas também os motivos pelos quais os representantes
dos movimentos sociais minoritários optaram por falar, como estratégia, em todas
as Subcomissões em que entendiam pertinentes. Em função disso, a representante
das empregadas domésticas discursou na Subcomissão dos Negros, Populações
Indígenas, Pessoas Deficientes e das Minorias e na Subcomissão dos
195
Trabalhadores e Servidores Públicos. O grupo Triângulo Rosa falou sobre suas
demandas nas Minorias e nos Direitos e Garantias Individuais, aqueles favoráveis
e contrários ao aborto participaram incisivamente na Subcomissão de Direitos e
Garantias Individuais e na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, para
citar alguns exemplos.
Apesar de esse aspecto trazer o risco de o texto se tornar um pouco
repetitivo, optou-se por não dividir esses capítulos a partir dos temas propostos
pelas várias faces do movimento feminista, e sim dividir por Subcomissões. Dessa
forma, torna-se possível perceber como as diferentes Comissões e Subcomissões
receberam esses temas comuns, como os Constituintes que participavam de mais
de uma dessas Subcomissões atuavam em relação a esses temas, na medida em
que sentiam ter um público mais propício ou não às suas idéias, e como os demais
Constituintes
se
organizavam
considerando
o
andamento
das
demais
Subcomissões, os rumos que as aprovações tomavam, para apresentarem suas
propostas. Um dos melhores exemplos desse movimento foi o do Constituinte
José Genoíno, sobre a questão do aborto. Esse tema, bastante complexo por
envolver não somente questões jurídicas como também questões morais e
religiosas, talvez seja um dos mais interessantes para se perceber essas
articulações. Os pontos controvertidos, em que as discussões sobre o Direito estão
colocadas em pé de igualdade com as de ordem moral e religiosa são bastante
ricos no aspecto da argumentação.
O argumento da técnica jurídica fez com que temas como o alcance da
norma constitucional ou da adequação de se tratar sobre um determinado assunto
na Constituição fossem colocados constantemente, para justificar a entrada de um
direito e um determinado tratamento sobre ele ou para tirar a possibilidade da
Assembleia Constituinte se posicionar em relação a tal assunto. Nesses momentos
observa-se que a técnica jurídica estava completamente ligada aos interesses
políticos e aos valores pessoais. O “povo” gostaria de uma Constituição
“sintética”, seguindo o modelo americano? Ou ele iria preferir uma Constituição
“analítica”? A discussão sobre o perfil que uma Constituição deve ter não possui
qualquer neutralidade ou objetividade. A Constituição fruto dessa Assembleia em
determinados momentos deveria ser sintética, em outros deveria ser analítica. O
interessante é que os grupos não necessariamente mantiveram um entendimento
196
coerente sobre esse ponto, o que demonstra o caráter estratégico na utilização
desse tipo de argumento, entre outros que apareceram no decorrer dos debates.
A trajetória a ser percorrida ao longo dessa parte envolve um primeiro
capítulo destinado a examinar a importância da Constituinte para as mulheres e
tecer breve comentário sobre as eleições das candidatas à Assembleia, os seus
perfis, bem como a atuação delas como grupo. Isso porque é importante qualificar
aquelas que, pelo menos a princípio, falariam em nome das mulheres. Em seguida,
será o momento do ingresso nos discursos ocorridos nas Subcomissões já
brevemente apresentadas, observando tanto as representações da sociedade civil
que estiveram presentes quanto as reações dos Constituintes sobre os mais
variados temas. Nesse momento, serão apresentadas as propostas trazidas
diretamente pelos movimentos e as propostas apresentadas pelos próprios
Constituintes, culminando com a proposta encaminhada pela Subcomissão e com
a comparação com a redação final. Nesse sentido, torna-se interessante ressaltar
que a sociedade civil, os movimentos minoritários, em regra, foram muito
corajosos em suas reivindicações e o resultado final ficou aquém das demandas.
Por outro lado, foi nítido o esforço realizado por determinados Constituintes a
partir de determinado momento da Assembleia, para que os poucos direitos já
afirmados há muito ou pouco tempo não fossem perdidos.
Por fim, serão apontadas as demandas que ficaram pendentes, demandas
essas centrais para que fosse realmente possível se pensar em outras formas de
relações de gênero e em definições - ou indefinições- de papeis sociais com base
na tradicional diferença entre sexos. Algumas foram conquistadas relativamente
pouco tempo após a Constituinte, outras somente começam a ser repensadas muito
recentemente. Cabe ressaltar que a Assembleia Constituinte não foi encerrada
após os debates nas Subcomissões e a aprovação dos anteprojetos das Comissões.
Na verdade, haveria ainda a Comissão de Sistematização e o Plenário. Porém,
optou-se por concentrar a análise nas Subcomissões por terem sido estas um
importante momento de debates entre a sociedade civil e os membros da
Assembleia Constituinte.
197
3.2
As mulheres na Constituinte de 1987-1988: a acidental constituição
de uma Bancada Feminina
A convocação de uma nova Assembleia Constituinte foi bastante
significativa, especialmente para o movimento feminista. A última havia ocorrido
para a elaboração da Constituição de 1946. Além do fato dessa Constituição ter
persistido somente até 1967, o fato é que não houve qualquer representação
feminina, conforme esclarece Fanny Tabak1. Nesses termos, a Constituição de
1946 significava um pequeno retrocesso em relação à de 1934, em virtude desta
ter contato com a presença de Carlota Pereira de Queiroz e considerando que
Bertha Lutz, um dos grandes nomes do feminismo no Brasil, também havia
concorrido para a Constituinte. Portanto, era um momento especial em virtude da
saída de um regime autoritário e mais especial para o movimento feminista, que
havia se fortalecido bastante ao longo do século XX e tinha condições de
organizar suas propostas e realizar pressão política sobre a Assembleia, contexto
esse completamente diferente dos anteriores. As demandas do final do século
eram mais sofisticadas, pois o elementar, o voto, já estava consolidado. Sabe-se
também que muitas dessas demandas que retornaram na Constituinte de 19871988 foram deixadas de lado ao longo do século XX pelo fato de o contexto não
ser favorável a essas conquistas de direitos. A nova Constituição seria, portanto,
uma oportunidade de ampliação da democracia em diversos sentidos, as minorias
sabiam desse fato e se organizaram para isso, não ficando restrita a uma simples
oposição à ditadura anterior.
Nesse sentido, as mulheres já haviam começado a se organizar em um
período anterior. Em 1978 uma provável abertura política já era ensaiada. Com a
anistia em dezembro de 1979, as mulheres brasileiras que se encontravam exiladas
e que haviam tido contato com o feminismo na Europa regressaram ao país. As
eleições de 1978 já apresentaram uma possibilidade de maior participação de
mulheres na política, sendo a eleição de Heloneida Studart, pelo MDB, partido de
oposição, para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro em 1978 um episódio
simbólico entre as feministas, pois se tratava de alguém comprometida com a
causa. As eleições ocorridas em 1982 foram ainda mais significativas, pois
1
TABAK, Fanny. As candidatas à Constituinte. P. 140. In TABAK, Fanny. Mulheres públicas:
participação política e poder. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2002. PP 140-160.
198
mulheres e homens candidatos já traziam em seus projetos e campanhas propostas
feministas. Nos Poderes Legislativos locais as mulheres conquistaram maior
destaque no que diz respeito à participação política, pois foram quase duas mil
mulheres vereadoras eleitas em todo o país, entre os diferentes partidos existentes,
como PMDB, PDS, PDT, PT e PTB2, com a influência do documento chamado
Alerta Feminista, elaborado pelas feministas e distribuído entre os candidatos nas
eleições diretas para os governos estaduais em 1982, servindo como plataforma do
movimento.
Uma das razões pelas quais a Constituinte seria tão importante era o fato
de se ter a oportunidade de incorporar às normas constitucionais as reivindicações
elaboradas e intensificadas no período da Década da Mulher, declarado pela ONU
a partir de 19753. Uma vez incorporadas no texto constitucional, seria mais fácil
pleitear que o Congresso Nacional regulamentasse tais direitos, por isso a
mobilização em torno da Constituinte deveria ser intensa. A presença de mulheres
na Constituinte aconteceu de diferentes formas. Estiveram por lá grupos de
mulheres, não necessariamente vinculadas ao movimento feminista, as próprias
feministas, as Deputadas eleitas e o Conselho Nacional de Direitos da Mulher,
dirigido naquele momento pela socióloga Jaqueline Pitanguy. O Conselho
contribuiu tanto diretamente, com a participação de suas representantes em
audiências públicas, como prestando auxílio a outros movimentos com demandas
comuns ou afins, como foi o caso do Triângulo Rosa, grupo de homossexuais, o
caso das empregadas domésticas, sem dúvida vertente do movimento feminista, e
as mulheres negras, que se manifestaram na Subcomissão de Minorias.
A denominada Bancada Feminina na Assembleia Constituinte não era
grande, pois somente vinte e seis deputadas haviam sido eleitas, e em sua grande
maioria não tinham vínculo com o movimento feminista. Além disso, um dado
relevante em relação a esse número é o fato de Beth Mendes ter se licenciado
como Constituinte em virtude de ter aceitado o convite para o cargo de Secretária
2
Essa informação pode ser encontrada em TABAK, Fanny. As candidatas à Constituinte. PP. 141142. In TABAK, Fanny. Mulheres públicas: participação política e poder. Rio de Janeiro: Letra
Capital, 2002. PP 140-160.
3
Essa tentativa, ou esforço concentrado, das feministas de tentar garantir que essas demandas
aparecessem no texto constitucional para conseguir a sua posterior concretização aparece tanto do
texto de Fanny Tabak, citado na referência logo acima quanto em PINTO, Céli Regina Jardim.
Participação (Representação?) política da mulher no Brasil: limites e perspectivas. P. 206. In
SAFFIOTI, Heleieth e MUNÕZ-VARGAS, Monica (org.) Mulher Brasileira é assim. Rio de
janeiro: Rosa dos Tempos: NIPAS, Brasília, 1994. PP. 195-230.
199
da Cultura do Estado de São Paulo, em 15 de março de 1987. Elizabete Mendes
de Oliveira4 havia sido eleita pelo Estado de São Paulo, aos trinta e sete anos, pelo
PMDB. Era atriz e estudava Ciências Sociais na USP quando abandonou o curso e
ingressou na luta armada no ano de 1969. Foi presa e sofreu torturas no DoiCodi,, nas mãos do Coronel Brilhante Ulstra. Antes das eleições para a
Assembleia Constituinte, em que obteve 58.019 votos, com o apoio de Orestes
Quércia, ela havia sido eleita como deputada federal pelo PT. Porém, abandonou
tal partido para votar em Tancredo Neves e conseguiu espaço em um dos grandes
partidos daquele momento. Considerava-se como parte da esquerda moderada.
Sendo assim, a Constituinte contaria, de fato, com vinte e cinco mulheres em sua
composição, apesar de as referências serem sempre em relação a vinte e seis
eleitas.
O passo agora é perceber como essa bancada se constituiu em Bancada
Feminina, pois a princípio, do fato de serem mulheres não decorre uma necessária
vinculação às demandas feministas. Além disso, dependendo da demanda
apresentada, nem todas as mulheres Constituintes aderiam a ela. Os temas tratados
na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, para citar brevemente uma
referência a ser analisada posteriormente, deixaram esse fator bastante exposto.
Céli Jardim enumera três fatores de provável reunião dessas mulheres: o primeiro
deles teria sido a própria atuação do Conselho Nacional de Direitos da Mulher
estimulando as feministas a atuarem sobre a Constituinte, sendo alvo principal as
mulheres Constituintes, o segundo seria a existência de três emendas populares
vindas de movimentos de mulheres para que o rol de direitos fosse ampliado e o
terceiro fator seria o próprio ambiente de uma Câmara de Deputados,
eminentemente masculino, não somente em relação à quantidade de homens
muito maior do que a de mulheres, mas em virtude da própria dinâmica de
funcionamento.
A
autora
observa
adequadamente
que
isso
contribui
especialmente para a formação de uma identidade feminina entre as poucas
mulheres presentes5, o que a aproxima da articulação elaborada por Butler sobre a
constituição da identidade a partir do processo de exclusão. Nesses termos, a
4
RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. Uma análise sócio-política dos
partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. PP. 292-293.
5
PINTO, Céli Regina Jardim. Participação (Representação?) política da mulher no Brasil: limites
e perspectivas. PP. 213-214. In SAFFIOTI, Heleieth e MUNÕZ-VARGAS, Monica (org.) Mulher
Brasileira é assim. Rio de janeiro: Rosa dos Tempos: NIPAS, Brasília, 1994. PP. 195-230.
200
representação das mulheres na Constituinte como grupo, como uma categoria, não
ocorreu em função de uma identificação anterior, prévia e sim no momento
posterior, em virtude dos trabalhos na Assembleia.
Considerando os dados da legislatura anterior, em que havia somente sete
mulheres,
pode-se
entender
que
o
número
de
deputadas
aumentou
significativamente, ou seja, 3,7 vezes apesar de terem sido somente vinte e seis no
universo de quatrocentos e oitenta e sete deputados federais e quarenta e nove
senadores, ou seja, eram quinhentos e cinqüenta e nove representantes na
Assembleia6, e as mulheres compunham 5% do total de Constituintes. Cabe
ressaltar que as mulheres foram eleitas como deputadas não havendo naquele
momento nenhuma senadora entre os Constituintes. Nesses termos, a análise pode
ser feita de forma otimista em relação à participação feminina na política As
regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste foram as que mais contribuíram para o
ingresso de mulheres na Assembleia em números absolutos. Em relação ao
desenho dessa participação, 42% das mulheres eram do PMDB, porém, esse
parece ter sido o partido que teve a menor porcentagem de mulheres em termos
relativos, em virtude da quantidade de Constituintes eleitos por ele. Nesse sentido,
somente 4% de sua bancada era composta por mulheres, ou seja, eram onze
mulheres e 5% da bancada do PFL tinha composição feminina, o que equivalia a
seis mulheres. Ambos os partidos eram considerados grandes. Os partidos de
esquerda, considerados pequenos, foram os que mais enviaram mulheres à
Constituinte em relação ao universo de suas bancadas. PT, PCs e PSB tinham
15% de composição feminina, o que em números absolutos implicava em quatro
mulheres. O PTB tinha 11%, o que significava duas mulheres. O PDT apareceu
com 4%, ou seja, uma mulher em sua bancada e o PSB enviou duas deputadas,
representando 6% de sua bancada7.
6
Esses dados podem ser obtidos em diferentes fontes. Uma interessante é encontrada no próprio
site do Senado Federal, o texto que explica brevemente não somente o funcionamento, mas
também o material existentes sobre a Assembleia Constituinte e a forma como deve ser realizada a
consulta a ele. OLIVEIRA, Mauro Márcio. Fontes de informações sobre a Assembleia Nacional
Constiuinte de 1987: quais são, onde buscá-las e como usá-las. Brasília: Senado Federal,
Subsecretaria
de
Edições
Técnicas.
1993.
P.
8.
Disponível
em
<http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/constituinte/fontes.pdf>
7
Esses dados podem ser conferidos em RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na
Constituinte. Uma análise sócio-política dos partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese,
1987. PP. 67-68.
201
Leôncio Martins Rodrigues atribuiu essa maior incidência de mulheres nos
partidos pequenos ao fato de o acesso a eles ser mais fácil. Nos partidos menores
as minorias ou os agentes que ingressaram posteriormente no campo político
encontrariam menos dificuldades em conseguir espaço. Os espaços nesses lugares
não seriam tão disputados, ou não estavam sob o controle de grupos consolidados
e há muito tempo no poder. Os homens que se encontravam há mais tempo no
poder conseguiam facilmente obter êxito no controle dos grandes partidos,
dificultando a trajetória dos demais grupos. As legendas que não eram as
principais eram as mais acessíveis a esse público sem padrinhos, sem recursos
financeiros e família na política8. Além disso, não se pode esquecer o fato de que
os partidos de esquerda eram mais abertos a essas novas demandas, apesar da
resistência inicial de setores da esquerda em relação ao movimento feminista e ao
movimento negro. Confirmando a análise de Leôncio Rodrigues, Fanny Tabak, ao
ressaltar que eram poucas as Constituintes ligadas ao movimento feminista, ainda
afirma que algumas conseguiram ser eleitas por causa do prestígio de suas
famílias na política, ou em decorrência da importância do marido, que no
exercício de um mandato conseguia fazer uso da máquina administrativa e reunir
recursos financeiros. Ela cita os seguintes casos:
Graças à ‘ajuda’ do marido, quatro deputadas foram eleitas – uma no Rio (mulher
do prefeito de uma importante cidade), outra em Goiás (mulher de um senador),
outra no Rio Grande do Norte (mulher de ex-governador, eleito senador) e a
última também mulher de ex-governador, igualmente eleito senador constituinte.
Mas há outras também eleitas com o prestígio de maridos ou parentes próximos:
uma na Paraíba (mulher de ex-governador), outra no Piauí (viúva de um exsenador e líder de governo), e outra ainda no território de Roraima, mulher de exgovernador.
Duas outras deputadas foram eleitas, pode-se dizer que exclusivamente em
virtude do prestígio político de seus país(sic) – um deles (já falecido), foi o
presidente da República identificado com um período de governo democrático
por excelência (1955-1960), e outro, também ex-presidente da República e então
prefeito da maior área metropolitana da América do Sul (São Paulo). Trata-se de
duas mulheres que jamais participaram de qualquer movimento social ou
militância partidária e que, ao contrário, viveram longos anos no exterior.
Durante a campanha eleitoral, não apresentaram nenhuma plataforma política que
fizesse prever qualquer compromisso no sentido de dar apoio às reivindicações
levantadas pelo movimento feminista9.
8
RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. Uma análise sócio-política dos
partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. PP. 68-69.
9
TABAK, Fanny. As candidatas à Constituinte. P. 157. In TABAK, Fanny. Mulheres públicas:
participação política e poder. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2002. PP 140-160.
202
Nesse trecho, a autora prefere não citar os nomes, não esclarecendo os
motivos para essa omissão, mas as identificações são possíveis e necessárias nesse
momento, pelo menos em relação àquelas minimamente apresentadas por ela.
Pelo Rio de Janeiro foi eleita Ana Maria Martins Scorzelli Rattes, quarenta e sete
anos, pelo PMDB. Era advogada, formada em Direito pela Faculdade de Valença
e se definia como centro-esquerda. Era casada com o ex-prefeito de Petrópolis,
Paulo Rattes, responsável pela coordenação da campanha de Moreira Franco ao
governo do Estado do Rio de Janeiro. Ana Maria Rattes ocupou o cargo de
secretária de Apoio Comunitário durante o governo de seu marido em Petrópolis,
no período entre 1983 e 1986. Ela também fez parte da Comissão de Direitos
Humanos junto com Frei Leonardo Boff. A condição de Constituinte foi atingida
em seu primeiro mandato eletivo, com 54.710 votos10. Por Goiás foi eleita Lúcia
Vânia Abrão Costa, aos quarenta e dois anos, pelo PMDB. Seu marido, Irapuan
Costa Junior, havia sido governador do Estado de Goiás pela Arena, quando Lúcia
Vânia ocupou cargo de confiança, e naquele momento se tornava senador também
pelo PMDB, além de ser proprietário do Banco Brasileiro Comercial. A
Constituinte era formada em jornalismo pela Universidade Federal de Goiás e
tinha pós-graduação em Ciências Políticas em Oxford. Definia-se como de centro.
Seu primeiro mandato legislativo era na Assembleia Constituinte, alcançando
84.688 votos11.
Pelo Rio Grande do Norte foi enviada à Assembleia Constituinte Wilma
Maria de Faria Maia, aos quarenta e um anos, pelo PDS. Era casada com o
senador Lavoisier Maia Sobrinho, foi secretária estadual do Trabalho e do BemEstar Social no período entre 1982-1986, além de ter ocupado cargos públicos nos
governos municipal e federal. Ela era professora universitária com formação na
Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Enfrentava
a sua primeira função legislativa, tendo alcançado 143.583 votos nas eleições e se
considerava de centro12. Antônia Lúcia Navarro Braga foi eleita pela Paraíba, aos
cinquenta e dois anos, pelo PFL. Era assistente social e bacharel em Direito pela
Faculdade de Serviço Social da Paraíba e pela UDF de Brasília. Foi presidenta da
10
RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. Uma análise sócio-política dos
partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. PP. 262-263.
11
RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. Uma análise sócio-política dos
partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. PP. 315-316.
12
ODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. Uma análise sócio-política dos
partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. P. 204.
203
Fundação Social do Trabalho, órgão do governo estadual, no período entre 1982 e
1986, se definia como centro-esquerda e foi eleita pela primeira vez para uma
função legislativa naquele momento, com 92.324 votos. Miriam Nogueira Portella
Nunes foi eleita pelo PDS com sessenta e quatro anos pelo Estado do Piauí. Era
advogada, com formação realizada na Universidade Federal do Piauí e foi
funcionária federal aprovada em concurso público, tendo trabalhado no TRT do
Piauí de 1965 até 1985. Foi presidenta da Comissão de Assistência Comunitário
do governo Lucídio Portella e já havia sido candidata à prefeitura de Teresina
também pelo PDS, porém não obteve êxito. Elegeu-se para a Constituinte com
26.956 votos e se considerava de centro-esquerda. Por Roraima foi eleita Maria
Marluce Pinto, pelo PTB, aos quarenta e três anos. Era mulher do ex-governador
do território e deputado federal Ottomar Pinto e, assim como ele, vinha do PDS.
Ela obteve 2.732 votos e se considerava de centro.
As duas filhas de ex-presidentes citadas por Fanny Tabak foram Dirce
Tutu Quadros e Márcia Kubitschek. A primeira se elegeu pelo PTB aos quarenta e
dois anos pelo Estado de São Paulo e era filha de Jânio Quadros, ex-presidente e
na época prefeito de São Paulo. Sem dúvida seu pai foi o facilitador para o seu
êxito em sua primeira eleição, diretamente para a Assembleia Constituinte, com
34.228 votos. Sua formação era como bióloga e foi doutora em Citologia pela
Universidade do Texas. Em seu currículo, sua ligação com a política era somente
a de assessora do ex-senador José Sarney no momento em que ele foi presidente
do PDS. Ela se declarava de centro. Um dado interessante em sua biografia era o
fato de estar em seu segundo casamento13. O motivo da relevância do tema foi o
fato de o divórcio ter sido questionado na Assembleia Constituinte de 1987-1988,
como um fator que poderia fazer ruir as famílias brasileiras e colocar muitos
menores na condição de abandono. Márcia Kubitschek era filha de Jucelino
Kubitschek e foi eleita pelo Distrito Federal aos quarenta e três anos pelo PMDB.
Era jornalista formada pela PUC-Rio. Sua experiência era como responsável pelo
esccrtório da Embratur em Nova York. Conseguiu ser eleita com 22.746 votos
com o apoio do governador José Aparecido, sendo esse seu primeiro mandato
13
RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. Uma análise sócio-política dos
partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. P. 295.
204
político. Antes disso, havia militado no PDS com seu pai e no MDB. Disse ser de
centro em sua posição política14.
Nesses termos, percebe-se que realmente uma parte significativa das
mulheres Constituintes não tinha qualquer ligação com o movimento feminista.
Parte delas conseguiu relevante apoio popular em virtude de terem desempenhado
funções assistencialistas em governos de seus maridos. Esse quadro torna a
dinâmica da formação de uma bancada feminina ainda mais interessante, se
observado esse processo de acordo com a teoria desenvolvida por Butler. Além
disso, é sabido também que o exercício dessas funções por parte de mulheres é
facilmente justificado, de acordo com o que foi apresentado no segundo capítulo.
É sempre socialmente esperado que mulheres se envolvam dessa forma com o
mundo público, por isso, o envolvimento pode ser até mesmo estimulado por
família e marido. Essas mulheres poderiam ser percebidas como o lado “humano”
da política, ou os ouvidos dos governos de seus familiares voltados para as
demandas populares. Essa era uma forma válida de ingresso no mundo público, o
problema era a atuação delas se restringir a isso. O surgimento dessa bancada
feminina de certa forma pode ter ajudado a romper com essa função política
estereotipada da mulher. Certamente, não era esperado que elas se envolvessem
com qualquer projeto feminista. Esse fator foi mérito delas, mas mérito também
daquelas que se mobilizavam pelo tema tanto na sociedade civil quanto pelo
próprio Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
Uma das poucas consideradas por Fanny Tabak como relacionadas com o
movimento feminista foi Maria Cristina Tavares Correia, que se comprometeu
com a discussão sobre descriminalização do aborto na Assembleia Constituinte15.
Apesar de seu compromisso intelectual com a causa, ela não chegou a se
manifestar nas Subcomissões em que o tema surgiu, e provavelmente atuou nesse
tema nos bastidores da Constituinte. Ela foi eleita Relatora da Subcomissão da
Ciência e Tecnologia e da Comunicação, atuando, posteriormente, na Comissão
de Sistematização. A Constituinte era pernambucana, solteira e foi eleita quando
tinha cinqüenta e dois anos. Não estava no seu primeiro mandato na Câmara
Federal. Tinha sido eleita em 1978 pelo MDB e em 1982 pelo PMDB. Nas
14
RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. Uma análise sócio-política dos
partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. P. 322.
15
TABAK, Fanny. As candidatas à Constituinte. P. 157. In TABAK, Fanny. Mulheres públicas:
participação política e poder. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2002. PP 140-160.
205
eleições para a Constituinte conquistou 40.624 votos. No questionário respondido
para a pesquisa de Leôncio Rodrigues se considerou de centro-esquerda, mas nada
disse sobre qualquer vínculo com o movimento feminista16. É certo que tal
entrevista não tinha como objeto a investigação sobre a posição dos Constituintes
sobre gênero ou direitos das mulheres e sim um mapeamento das posições dos
membros da Assembleia sobre a economia, o papel das multinacionais e do
capital nacional e reforma agrária. Porém, uma ou outra ainda assim se manifestou
como sendo feminista. De qualquer forma, Fanny Tabak entendeu ser Cristina
Tavares um dos grandes nomes do tema.
As duas que se declararam feministas em tal pesquisa foram Rose Rosilda
Freitas e Maria Abigail Freitas. Benedita da Silva não se disse feminista, mas a
condição de mulher iniciava o seu slogan “mulher, negra e favelada”. Rose
Rosilda de Freitas, divorciada e mãe de dois filhos, foi eleita pelo Estado do
Espírito Santo aos trinte e sete anos com 36.132 votos, pelo PMDB. Havia sido
deputada estadual em 1982 e era radialista. Já havia concorrido em 1985 na
convenção de seu partido a indicação para as eleições da prefeitura de Vitória,
mas não obteve êxito. Considerava-se de centro-esquerda. Esteve envolvida com a
campanha da anistia e assumiu ser feminista, apesar desse não ter sido um critério
avaliado nesses perfis17. Maria Abigail Freitas Feitosa era cearense, casada, e foi
eleita pelo Estado da Bahía aos cinqüenta e seis anos. Era médica,
especificamente ginecologista e obstetra, e já havia sido eleita para deputada
estadual em 1982. Conseguiu chegar à Assembleia Constituinte com 34.821
votos. Considerava-se como esquerda radical, tendo experiência na militância no
MDB. Também se disse feminista18.
Por fim, Benedita Souza da Silva Santos foi eleita pelo Rio de janeiro, aos
quarenta e quatro anos, pelo PT. Era casada e tinha formação em Serviço Social
pela antiga Faculdade de Serviço Social do Rio de janeiro, atual Veiga de
Almeida. Foi eleita para vereadora no Rio de Janeiro em 1982, também pelo PT
além de ter sido militante do MDB. Para a Assembleia Constituinte ela obteve
16
RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. Uma análise sócio-política dos
partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. P. 211.
17
RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. Uma análise sócio-política dos
partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. P. 247.
18
RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. Uma análise sócio-política dos
partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. P. 230.
206
27.460 votos, tendo se definido como esquerda moderada19. Foi eleita em virtude
do grande prestígio e liderança em sua comunidade, tendo sido reconhecido por
seu trabalho. O interessante em sua biografia Foi seu slogan “mulher, negra e
favelada”. A categoria feminista não apareceu, mas a condição de mulher, e não
qualquer mulher, mas a mulher negra e de classe popular parece ter sido
fundamental para indicar quais seriam as suas principais questões a serem
suscitadas na Constituinte. Benedita foi exemplo de uma atuação na Assembleia
que ocorria a partir da interseccionalidade, a especificidade colocada pelas
condições de gênero, raça e classe e que permitiu à Constituinte Benedita da Silva
ter grande sensibilidade para demandas que, a princípio, não eram de seu interesse
direto. Não deve ter sido por outro motivo que na Subcomissão dos Negros,
Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias ela foi uma das únicas a
ressaltar a necessidade de se ouvir os homossexuais na categoria das minorias,
sendo combatida por outros Constituintes, como será demonstrado adiante. Ela foi
também responsável pela ida das representantes das empregadas domésticas a essa
mesma Subcomissão, além da exposição realizada por elas na Subcomissão dos
Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos. Sendo assim, sua atuação foi
nitidamente alinhada com a plataforma feminista mais avançada naquele
momento: aquela que já recepcionava as demandas dos homossexuais, antes de se
constituírem no Brasil como movimento LGBTT, e que se preocupava também
com a posição peculiar de mulheres que se encontravam sujeitas a diferentes
formas de opressão, como raça e classe.
Ainda pelo Rio de Janeiro, além de Ana Maria Rattes e Benedita da Silva,
foi eleita Sandra Martins Cavalcanti, solteira, com sessenta e um anos, pelo PFL.
Era professora de português e literatura brasileira, formada pela PUC-Rio em
Letras Clássicas. Sua carreira política já havia sido iniciada há bastante tempo se
comparada com Constituintes que tinham sua primeira experiência política, pois
foi vereadora eleita pela UDN no antigo Distrito Federal, em 1954 e em 1958. Foi
deputada estadual pelo mesmo partido em 1960. Ao longo do governo de Carlos
Lacerda teve o cargo de secretária de Serviços Sociais. Em 1974 foi deputada
estadual pela Arena e em 1978 chegou a se candidatar ao Senado, mas foi
derrotada. No ano de 1982 concorreu ao governo do Estado pelo PTB, mas foi
19
RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. Uma análise sócio-política dos
partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. PP. 253-254.
207
derrotada. Foi a deputada com maior número de votos pelo PFL, obtendo 137.595
votos. Definia-se como alguém de centro20. Eram, portanto, três perfis de mulher
bastante distintos, envolvendo diferentes concepções políticas e experiência de
vida. Nenhuma ligada aos movimentos feministas.
A região Sudeste ainda contou com mais uma representante por São Paulo,
Irma Passoni, além das outras mencionadas logo no início, e Rita Camata, pelo
Espírito Santo. Irma Rosseto Passoni era de Santa Catarina, mas foi eleita por São
Paulo, aos quarenta e três anos, para a Assembleia Constituinte pelo PT. Nesse
momento era casada e tinha dois filhos. Sua formação foi realizada na Faculdade
Nossa Senhora Medianeira e Faculdades Metropolitanas Unidas, sendo professora
do ensino público. Ela se definiu como sendo de esquerda, mas não se
considerava radical. Tinha uma concepção de reforma agrária para o Brasil
bastante radical e em momentos relevantes defendeu os direitos das mulheres. Ela
liderou o Movimento contra a Carestia em São Paulo, em regra, as mulheres
tinham grande participação nessa espécie de ação. Porém, Leôncio Rodrigues
ressalta que ela era relacionada às Comunidades Eclesiais de Base, o que ajuda a
entender a sua posição peculiar em relação aos direitos reprodutivos se comparada
com as posições defendidas por feministas. Portanto, ela se comprometia com a
causa das mulheres até certo limite colocado por convicções religiosas. Porém,
esse fator não inviabilizava alianças em prol de demandas relevantes. Já havia
sido eleita deputada estadual em 1978 pelo MDB. Quando houve a reforma
partidária ela se incorporou no PT e foi eleita deputada federal em 1982. Chegou à
Assembleia Constituinte com 22.166 votos21. Rita de Cássia Paste Camata foi
eleita bem jovem, aos vinte e cinco anos, para a Assembleia Constituinte, pelo
PMDB. Nesse momento, apesar da juventude, já era casada e tinha uma filha.
Havia feito sua formação em jornalismo na Universidade Federal do Espírito
Santo. Assumiu na entrevista que somente iniciou sua carreira política após o
casamento com Gérson Camata, Senador Constituinte pelo PMDB do Espírito
Santo, que era ex-governador do Espírito Santo. Sua candidatura foi lançada por
20
RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. Uma análise sócio-política dos
partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. PP. 265-266.
21
RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. Uma análise sócio-política dos
partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. P. 300.
208
seu marido sem muita antecedência ou previsão e ainda assim ela teve o maior
número de votos em seu Estado, 136.031 votos. Dizia-se de centro-esquerda22.
Pelo Distrito Federal, além de Márcia Kubitschek, foi enviada Maria de
Lourdes Abadia, aos quarenta e um anos, desquitada e sem filhos, pelo PFL. Sua
formação foi realizada em Serviço Social pela UnB. Já havia sido diretora
executiva da Fundação do Serviço Social do Distrito Federal entre 1985 e 1986 e,
durante quatorze anos, foi administradora regional da cidade satélite de Ceilândia.
Apesar de sua experiência, era a primeira vez que passava por uma campanha
eleitoral, obtendo 46.016 votos. Dizia-se pertencer à esquerda moderada23. Tinha
posição declarada radical em temas como reforma agrária, não se disse feminista,
mas teve atuação importante nesse tema.
As regiões Norte e Nordeste enviaram grande número de mulheres, se
comparado com as demais regiões. O Amazonas contou com a representação de
Elizabeth Azize, Eunice Mafalda Michiles e Sadie Rodrigues Havache em um
universo de oito deputados e três senadores enviados. Beth Azize era solteira e
tinha quarenta e três anos quando foi eleita pelo PSB. Era jornalista e advogada,
tendo realizado sua formação em Direito na Faculdade de Direito do Amazonas e
na Universidade de Lisboa. Já havia exercido o cargo de procuradora jurídica de
Manaus entre 1971 e 1976. Dizia-se de centro-esquerda e a favor de uma reforma
agrária radical. Já havia sido vereadora em Manaus pelo MDB de 1976 até 1982 e
deputada estadual pelo PMDB entre 1982 e 1986. Foi eleita para a Constituinte
com 17.325 votos. Eunice Mafalda Michiles era divorciada, tinha cinco filhos e
foi eleita pelo PFL para a Constituinte aos cinqüenta e sete anos. Era professora
primária e comerciante. Considerou-se politicamente como de centro e entendia
que a reforma agrária deveria estar restrita às propriedades improdutivas. Já havia
feito parte do Senado como suplente de João Bosco Ramos de Lima, do Arena,
quando este faleceu em 1979. Conseguiu ser eleita para a Assembleia com 24.033
votos. Sadie Rodrigues Havache era casada e tinha cinco filhos ao ser eleita para a
Constituinte também pelo PFL. Era jornalista formada pela Faculdade do
Amazonas e ex-proprietária de uma TV em Manaus, chamada Ajuricaba. Já havia
tentado ser eleita senadora pelo PDS em 1982, mas não foi bem sucedida. Disse
22
RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. Uma análise sócio-política dos
partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. P. 247.
23
RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. Uma análise sócio-política dos
partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. PP. 322-323.
209
não concordar com a divisão política entre esquerda e direita e defendeu uma
economia primordialmente de mercado. Obteve nas eleições 16.813 votos24.
Pelo Acre foi eleita Maria Lúcia Mello de Araújo, paraibana, com
cinqüenta e um anos de idade, pelo PMDB. Ela tinha dois filhos e era viúva do
governador Augusto de Araújo eleito em 1962 e cassado em 1964. Era professora
primária e sua formação havia sido realizada na Faculdade Estácio de Sá, no Rio
de Janeiro. Já havia sido suplente de um deputado federal exercendo mandato
entre 1966 e 1968, momento em que foi cassada. Seu primo havia sido recém
eleito para governador do Estado quando ela foi eleita com 6.973 votos.
Considerou-se politicamente de centro. Rondônia enviou Raquel Cândido e Silva
e Rita Isabel Gomes Furtado. Raquel Cândido e Silva tinha trinta e cinco anos e
era solteira quando foi eleita pelo PFL. Era técnica de saúde e professora e já
havia sido vereadora em Porto Velho pelo PMDB. Nesse momento conseguiu
destaque na luta pela moradia para populações pobres. Foi eleita deputada federal
com 12.734 votos. Rita Isabel Gomes Furtado também foi eleita pelo PFL. Ela era
casada, com quarenta anos, tinha duas filhas e era do Estado do Rio de Janeiro.
Tinha formação em Letras pela Universidade Federal do Espírito santo e em
Jornalismo pela UnB. Foi superintendente das Emissoras de Rádio da Amazônia.
Sua posição política era liberal e pensava que o Estado deveria interferir o mínimo
na economia. Já havia sido eleita deputada federal em 1982 pelo PDS, retornando
à Câmara naquele momento com 32.223 votos. Apesar de assumir posição liberal,
ser contrária ao intervencionismo estatal e pensar que a reforma agrária deveria
ficar restrita às terras improdutivas, ela se considerava politicamente de centro25.
Pelo Amapá foi enviada, aos quarenta e sete anos, Raquel Capiberibe da
Silva, pelo PMDB, paraense, casada. Sua formação era na Pedagogia pela
Universidade do Pará. Já havia sido membro do PTB, tendo sido eleita em 1985
pelo PMDB vice-prefeita de Macapá. Conquistou 4.754 votos para ingressar na
Assembleia Constituinte e descreveu-se politicamente como de centro, apesar de
se dizer defensora de reforma agrária radical. O Ceará enviou, aos quarenta e um
anos, Moema Corrêa São Thiago, pelo PDT, mineira, viúva e sem filhos. Ela era
24
Informações sobre as amazonenses: RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na
Constituinte. Uma análise sócio-política dos partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese,
1987. PP170-172.
25
Informações sobre as deputadas por Rondônia: RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem
na Constituinte. Uma análise sócio-política dos partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese,
1987. P. 175.
210
socióloga e advogada trabalhista do Sindicato dos Médicos do Estado. Sua
formação foi realizada na Universidade Federal do Ceará. Ao longo da década de
1960 foi líder estudantil e ficou grande período na clandestinidade, até resolver se
exilar em 1970. Retornou ao Brasil em 1979, mas antes esteve no Chile, Cuba,
Portugal e outros países. A primeira função legislativa que exercia era na
Constituinte, e foi enviada com 1.472 votos. Declarou-se como de centroesquerda. Por fim, além de Maria Abigail Freitas Feitosa, a Bahía enviou Lídice
da Mata e Souza, do PC do B, aos trinta e um anos, casada, com um filho. Era
formada em Economia na Universidade Federal da Bahía, onde havia sido
presidenta do Diretório Central dos Estudantes. Foi vereadora em Salvador em
1982 pelo PMDB, liderando a bancada na Câmara de Vereadores. Foi enviada à
Constituinte com 36.450 votos e se definiu politicamente como esquerda radical26.
Não mencionou ser feminista, mas teve uma atuação forte em relação a essas
demandas.
Os perfis traçados demonstram que eram mulheres completamente
diferentes. Ainda assim, conseguiram instituir a Bancada Feminina, pelo
procedimento de formação de identidade exaustivamente trabalhado. Obviamente,
a chamada Bancada Feminina não foi integralmente coesa, o que já era esperado
em virtude das distinções profundas na formação de cada uma delas. Além disso,
essa Bancada foi relativamente forte, mas não potente o suficiente para colocar e
garantir as demandas feministas. Ao mesmo tempo, posteriormente também será
demonstrado que propostas interessantes sobre temas que poderiam reestruturar as
relações de gênero foram apresentadas por outros membros da sociedade civil
diferentes dos movimentos feministas. Nesse sentido, é interessante antecipar o
exemplo do constitucionalista Siqueira Castro, um dos responsáveis pela defesa
da igualdade nas licenças maternidade e paternidade, o que modernamente é
denominado como licença parental.
Ao ingressar na análise das Subcomissões, o primeiro passo será apontar
quais Constituintes foram eleitos como Presidente, Primeiro Vice-Presidente,
Segundo Vice-Presidente e quem foi nomeado Relator, para que se tenha o perfil
daqueles responsáveis pelo funcionamento da respectiva Subcomissão. O perfil
26
Informações sobre Raquel Capiberibe, Moema Corrêa Sâo Thiago e Lídice da Mata
respectivamente: RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na Constituinte. Uma análise
sócio-política dos partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese, 1987. PP. 366, 199, 238.
211
dos Constituintes será traçado especialmente com base no mapeamento realizado
por Leôncio Rodrigues, que investigou os Constituintes. Importante notar que os
citados no presente trabalho nunca se declararam como sendo de direita, em regra
optavam por se dizer como “políticos de centro”. Ao mesmo tempo, foram poucos
os que assumidamente se declaravam como “esquerda” ou “esquerda radical”,
preferindo “centro-esquerda”. Entre as mulheres, já foi mencionado que somente
duas se disseram feministas, mas ao contrário de uma tentativa de suavização de
suas posições, a maioria não tinha ligação com o movimento feminista. Havia ao
todo vinte e quatro Subcomissões, distribuídas entre oito Comissões temáticas e,
por fim, uma Comissão de Sistematização. Os cargos de Presidente, VicePresidente e Relator nas Comissões e Subcomissões foram compostos
oficialmente através de eleições realizadas entre os respectivos membros de cada
uma delas e essas atas das Subcomissões trazem as descrições dessas votações.
Porém, na verdade houve acordo na distribuição desses cargos, conforme explica
Adriano Pilatti com fundamento nas atas das Comissões, em que Mário Covas
explicou o procedimento, no seguinte trecho:
A distribuição dos cargos de presidente, 1º e 2º vice-presidentes e relator nas
Comissões e Subcomissões foi objeto de um grande acordo de lideranças,
protagonizado pelo líder do PMDB e secundado pelo líder do PFL. Tal acordo
resultou na apresentação de chapas completas, com o compromisso de o
presidente eleito designar o relator escolhido pelo líder do partido a quem o cargo
caberia. (...)
Ao PMDB couberam as Presidências de 15 das 24 Subcomissões e 21 das 32
Relatorias: a totalidade das Relatorias das Comissões e a maioria absoluta das
Relatorias das Subcomissões. Na Comissão de Sistematização (...), coube
também ao PMDB a Relatoria e ao PFL a Presidência. Com isso o número de
relatores do PMDB chegou a 22 em 33 e o de presidentes do PFL, a 13 em 33. Os
dois maiores partidos controlaram amplamente o poder de agenda e direção no
âmbito das Comissões. Dos oito relatores do PMDB nas Comissões, seis estavam
no campo progressista, um no campo conservador, e um pode ser considerado
como moderado. Dos treze relatores do PMDB nas Subcomissões, dez situavamse no campo progressista, um no campo conservador, e um pode ser considerado
como moderado. A vantagem dos progressistas sobre os conservadores marcavam
a distribuição das 24 Relatorias das Subcomissões: 12 cabiam aos progressistas,
11 aos conservadores do PMDB e a última cabia a um moderado do PMDB27.
É importante apresentar brevemente esse mapa de distribuição de
Presidências e Relatorias na medida em que alguns dos relatores de determinadas
27
PILATTI, Adriano. A Constituinte de 1987-1988: progressistas, conservadores, ordem
econômica e regras do jogo. Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio, 2008. PP. 64-65.
212
Comissões e Subcomissões foram aliados, ainda que indiretamente, dos interesses
das feministas, especialmente a partir do momento em que houve um esforço para
retroceder nos direitos já garantidos naquele momento, como foi o caso, por
exemplo, da possibilidade de interrupção da gravidez decorrente de estupro ou
que colocasse em risco a vida da gestante, conforme será demonstrado, tanto na
Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais, como na própria Comissão da
Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher. O tema também
surgiu e quase retrocedeu na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso. Um
dos exemplos de Constituinte que atuou no sentido de resguardar a técnica
jurídica em atenção à questão do feto ter expectativa de direito e não ser sujeito de
direito foi o Senador José Paulo Bisol28, Relator da Comissão da Soberania e dos
Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, o que foi muito importante no que
diz respeito à afirmação de direitos da mulher. Esse exemplo será trazido
novamente no momento oportuno para melhor exame da discussão.
Entre as vinte e quatro Subcomissões temáticas, as cinco eleitas para o
estudo certamente apresentaram temas envolvendo gênero, variando a quantidade
de temas bem como as intensidades das discussões. A chamada “Bancada
Feminina”, apesar de muito pequena, poderia se concentrar nessas Subcomissões
de forma estratégica para conseguir maior projeção para as propostas envolvendo
esses temas. Porém, a “Bancada Feminina” não era uma bancada feminista e essas
mulheres não iriam se articular racionalmente nesse sentido. Além disso,
atualmente é bastante simples olhar para a Constituição, comparar com a estrutura
dos trabalhos na Constituinte e perceber onde os temas de gênero poderiam estar
presentes. Naquele momento a clareza poderia não ser a mesma para essas
mulheres, apesar de os movimentos minoritários terem percebido esse fator e se
apresentado em diferentes Subcomissões. Conforme exposto, as mulheres que
compunham a bancada eram muito diferentes e, em sua grande maioria, não
estavam na Assembleia Constituinte em virtude de interesse em defender projetos
que envolvessem direitos das mulheres. A “Bancada Feminina” era um acidente
28
José Paulo Bisol era casado, pai de três filhos e foi eleito para a Assembleia Constituinte aos 58
anos pelo Estado do Rio Grande do Sul. Foi eleito pelo PMDB. Era advogado e desembargador
aposentado do Tribunal de Justiça do RS. Teve um único mandato eletivo antes da Constituinte,
sendo deputado estadual pelo PMDB entre 1982 e 1986. Sob sua liderança, ocorreu um
movimento dentro do PMDB impedindo que o partido se coligasse ao PDS nas eleições. Foi eleito
para a Constituinte com 1.167.474 votos. RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na
Constituinte. Uma análise sócio-política dos partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese,
1987. PP. 351-352.
213
dentro da Constituinte, acidente esse que parece ter sido provocado pela atuação
da militância feminista e pela pressão do Conselho Nacional de Direitos da
Mulher e que ainda deveria contar com a inexperiência na esfera política de boa
parte de sua composição, especialmente se comparadas com os homens
Constituintes.
4
A Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais: os
problemas do nome e do corpo, as “aberrações
homossexuais” e os reflexos na Comissão da Soberania e
dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher
Este capítulo é destinado à análise dos debates na Subcomissão dos
Direitos e Garantias Individuais e a influência destes na elaboração das propostas
apresentadas na Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e
da Mulher. Por esse motivo, está estruturado em duas partes: a primeira dedicada
à Subcomissão e a segunda voltada para a análise das discussões do anteprojeto já
na Comissão, momento em que foram retomados os temas polêmicos que diziam
respeito a gênero.
A Subcomissão em exame contou com a participação de personalidades
importantes para os temas dos direitos e garantias individuais, bem como com
representantes da sociedade civil, desde os grupos mais consolidados como
também aqueles que haviam se organizado há pouco tempo. Entre os grandes
nomes que se manifestaram na Subcomissão, podem ser destacados Carlos
Roberto Siqueira Castro, Cândido Mendes e Jacqueline Pitanguy, além do
representante do Triângulo Rosa, grupo organizado por homossexuais somente no
final da década de 1970, sem qualquer referência anterior a demandas desse setor.
Esses palestrantes trouxeram diversas propostas, algumas que já eram pleiteadas
há mais tempo, como a igualdade entre homens e mulheres, e outras bastante
recentes, como era o caso da inclusão do termo “orientação sexual” no texto
constitucional. Todos os debates referentes a essas demandas serão demonstrados
em seguida, conforme surgiram na Subcomissão.
4.1
A Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais: as discussões
sobre o nome atribuído à Comissão, sobre o corpo e as “aberrações
homossexuais”
A Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais foi instalada no dia 07
de abril de 1987, com eleição do Constituinte Antônio Mariz (PMDB-PB) para
presidente, Lúcia Braga (PFL-PB) como Primeira Vice e Antônio Câmara
(PMDB-RN) como o Segundo Vice. Darcy Pozza (PDS-RS) foi nomeado relator.
215
Já na primeira reunião o Constituinte Eliel Rodrigues (PMDB-PA) manifestou
desejo de acompanhar as discussões da Subcomissão, apesar de ser suplente. A
Presidência esclareceu que ele poderia acompanhar as reuniões, porém somente
exerceria o voto caso algum titular faltasse. Esse dado é relevante na medida em
que Eliel Rodrigues teve atuação incisiva nessa Subcomissão em determinadas
matérias1. Já na segunda reunião da Subcomissão, em 08 de abril de 1987, o
Presidente sugeriu alguns nomes de entidades privadas que poderiam ser
chamadas a falar nessa Subcomissão para auxiliar os trabalhos, como a Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB), a Central Única dos Trabalhadores (CUT), a
Central Geral dos Trabalhadores (CGT) e a Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil (CNBB), sem prejuízo de outras sugestões de entidades apresentadas pelos
demais Constituintes. Isso é interessante porque de fato essa Subcomissão teve
uma receptividade para outros grupos. Outras Subcomissões não seriam tão
generosas nessa recepção, dependendo ou da atuação de um determinado
Constituinte para recordar de outros interesses e outras entidades ou então da
iniciativa dos próprios membros da sociedade civil de aparecerem nas reuniões
para falar sobre suas demandas.
A Constituinte Lúcia Braga rapidamente demonstrou preocupação em
esclarecer como seriam esses debates com a sociedade, se cada entidade seria
convocada para falar em um momento sobre diversos temas ou se a Subcomissão
indicaria os temas para que os interessados se manifestassem sobre ele, citando o
exemplo da CNBB. A Presidência não vislumbrou problemas em nenhuma das
duas formas sugeridas por Lúcia Braga. O mais interessante é notar como a OAB
e a CNBB detinham prestígio naquele momento, pois seriam sempre lembradas
pelos Constituintes como aquelas prontas a dar subsídios aos seus trabalhos, sendo
lembradas em seguida também pelo Segundo-Vice, Antônio Câmara. Em relação
a essas duas entidades, os motivos são facilmente encontrados para tamanha
importância de suas propostas. São motivos que dizem respeito à formação
individual e à história recente do país. Os três Constituintes, Lúcia Braga, Antônio
Mariz e Antônio Câmara possuíam formação jurídica, naturalmente se lembrariam
da OAB. Além disso, tanto a OAB quanto a CNBB tiveram participação
1
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (suplemento ao n° 53), sexta-feira, 1° de maio de
1987, p. 27.
216
fundamental tanto no processo de lutas contra as perseguições promovidas pela
ditadura quanto na abertura democrática do país.
A discussão sobre quais entidades deveriam ser ouvidas e como os
trabalhos na Subcomissão deveriam acontecer ainda seguiu ao longo do segundo
dia. Porém, por trás desse tipo de discussão, também havia interesses em disputa e
o momento era importante para garantir quem poderia ter acesso à palavra e quais
seriam os temas merecedores de tratamento pela Subcomissão de Direitos e
Garantias Individuais. O tempo era escasso e a noção de que a gestão do tempo
era estrategicamente fundamental daria poder aquele ou aqueles que conseguissem
geri-lo. Por causa do tempo, determinadas entidades poderiam ter seus espaços
garantidos ou não, dependendo de diferentes fatores, como importância,
capacidade de exercer influência e espécies de propostas. Aqueles que
percebessem isso estariam em vantagem. Nesse momento, havia certo consenso
em afirmar que em virtude do tempo a Subcomissão deveria se restringir a receber
entidades relacionadas aos temas de direitos e garantias individuais. O problema
posterior seria justamente definir qual seria o conteúdo dos direitos e garantias
individuais. O Constituinte José Mendonça (PFL-PE) ressaltava sua preocupação
com o tempo, defendendo que a Subcomissão não deveria ouvir entidades com
interesses específicos2. Em resposta a essa colocação o Presidente Antonio Mariz
garantiu a oitiva das entidades afirmando que os trabalhos da Subcomissão não
seriam prejudicados:
(...) o objetivo dessa reunião prende-se justamente à questão de definir diretrizes
para o trabalho da Subcomissão. Quanto aos prazos, de fato o Regimento é rígido.
A Subcomissão tem 45 dias, desde a sua instalação, para encaminhar o seu
anteprojeto à Comissão de Soberania, e Direitos e Garantias do Homem e da
Mulher. O Sr. Relator tem 30 dias para apresentar esse anteprojeto à Comissão,
que por sua vez, dispõe do prazo de cinco dias para propor emendas, ficando o
restante para as discussões. A audiência de entidades, a participação da
coletividade através dessas entidades não prejudicará a atividade do Relator que,
paralelamente ao trabalho da Comissão, estará trabalhando sobre esses
documentos. (...) Um trabalho paralelo estará sendo feito pelo Relator, na sua
condição específica, e pela Comissão no debate geral do tema que interessa à
Subcomissão3.
2
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (suplemento ao n° 53), sexta-feira, 1° de maio de
1987. P. 30.
3
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (suplemento ao n° 53), sexta-feira, 1° de maio de
1987. P. 30.
217
Obviamente os prazos deveriam ser considerados e a preocupação de se
estabelecer uma racionalidade ao processo era importante, evitando que os
trabalhos da Constituinte fossem ineficazes. Ao mesmo tempo, a sociedade civil
havia passado longo período sem qualquer possibilidade de participação política,
uma nova ordem constitucional era desenhada naquele momento, portanto, era
fundamental resguardar a possibilidade da fala daqueles que tinham interesses nas
discussões que aconteciam na Assembleia Constituinte. Além disso, cabe ressaltar
que muitos participariam ativamente desse tipo de discussão pela primeira vez,
como por exemplo, o próprio movimento feminista, que já era completamente
diferente e contava com uma estrutura maior nesse período do que ao longo da
redação das Constituições anteriores, ainda que de período democrático, como a
de 1946. Nesses termos, a discussão seguiu no sentido de saber se seria mais
adequado convidar as entidades ou esperar que elas se informassem sobre os dias
das reuniões e aparecessem. Novamente, a preocupação com a garantia da
presença da OAB e da CNBB foi colocada e Maguito Vilela (PMDB-GO)
considerou relevante o convite: “Talvez o ideal, principalmente em relação à OAB
e à CNBB, seja convidá-las”4. O Presidente Antonio Mariz (PMDB-PB) ressaltou
que os convites poderiam ser relevantes, mas não deveriam indicar qualquer
preferência em relação às entidades convidadas ou prender a pauta das audiências
a seus interesses, colocando apropriadamente o seguinte:
A mesa, inicialmente, sugeriu algumas entidades (...). A opinião pessoal do
Presidente é a de que as entidades mais representativas poderão ser convidadas.
Há interesse da Comissão e ouvi-las, sem estabelecer qualquer tipo de preferência
em relação às entidades convidadas. O fato de convidar algumas não deveria
esgotar a pauta de audiências da Comissão, sem prejuízo, evidentemente, de
entidades que por serem menos celebradas, menos consagradas na opinião
pública, não deveriam, por isso, absolutamente, ser excluídas5.
Essa afirmação é importante para se perceber que realmente havia ali uma
preocupação em relação à disputa de poder sobre a possibilidade de falar. O
argumento, portanto, não é mera teoria conspiratória infundada, se essa fosse a
hipótese, o Presidente da Subcomissão não teria ressaltado a importância de se
4
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (suplemento ao n° 53), sexta-feira, 1° de maio de
1987. P. 31.
5
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (suplemento ao n° 53), sexta-feira, 1° de maio de
1987. P. 31.
218
garantir a que mesmo as entidades menos conhecidas ou com menos apoio da
opinião pública pudessem fazer uso da palavra, ou que a fala dessas entidades
tivesse menos peso ou influência do que as de maior reconhecimento. Nesses
termos, a desconfiança de que os argumentos do tempo, ou da falta dele, bem
como do que seria ou não matéria de ordem constitucional ou da atribuição de
determinada Subcomissão tivessem sido utilizados com outras finalidades, além
da mera preocupação com o andamento dos trabalhos na Constituinte ou da
adequação das matérias de ordem constitucional para uma Constituição nem curta
demais nem longa demais, pode ser fundamentada e tal fator ficará ainda mais
claro adiante.
Não fica esclarecido nesse Diário da Assembleia Constituinte se houve
convite ou não por parte da Subcomissão para essa entidade, mas o fato é que a
agenda de audiência pública apresentada na ata da quinta reunião, no dia 15 de
abril de 1987, contava com a inscrição de Jaqueline Pitanguy, representando o
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, para proferir uma exposição intitulada
“Direitos e Garantias individuais da Mulher”, no dia 23 de abril6. Além disso, o
professor Carlos Roberto de Siqueira Castro, da PUC-Rio, proferiria a palestra
“Princípio da Isonomia e a Igualdade da Mulher no Direito Constitucional” no dia
29 de abril e haveria ainda a fala do diretor de Comunicação Social do Grupo
Carioca de Liberação Homossexual Triângulo Rosa”, no dia 30 de abril7. No dia
28 de abril Márcio Thomás Bastos, naquele momento Presidente do Conselho
Federal da OAB, falaria sobre Direitos e Garantias Individuais. Além disso,
Antonio Mariz logo no início da quinta reunião ressaltou que os convites para a
CNBB e para outras entidades representantes de trabalhadores e outros grupos já
havia sido concretizado. Esclareceu ainda ao deputado Eliel Rodrigues (PMDBPA) que o Regimento trazia o limite de oito audiências públicas, ou oito dias
destinados a audiência pública, o que não implicava na oitivia somente de oito
entidades8. Ao longo de uma audiência duas ou mais entidades poderiam ser
ouvidas, pois elas poderiam ser prolongadas até a parte da noite, o que permitiria
maior possibilidade de abertura da Subcomissão para as demandas populares.
6
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (suplemento ao n° 53), sexta-feira, 1° de maio de
1987. P. 41.
7
Diário da Assembléia Nacional Constituinte, Atas das Comissões (Suplemento ao nº 62), quartafeira, 20 de maio de 1987. P. 17.
8
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (suplemento ao n° 53), sexta-feira, 1° de maio de
1987. P. 42.
219
As disputas em relação aos nomes percorreram algumas das Subcomissões
eleitas como objeto de análise e o primeiro momento em que a questão do nome
da Comissão apareceu nessa Subcomissão foi ao longo de uma análise de uma
proposta encaminhada pelo Constituinte Davi Alves Silva (PDS-MA) e
apresentada por Eliel Rodrigues (PMDB-PA) sobre aposentadoria. A proposta
garantia ao homem a aposentadoria a partir de sessenta e um anos de idade. Em
que isso parecia ser relevante para a discussão sobre gênero? Eliel entendia que a
proposta deveria sofrer emendas, acrescentando o termo “mulher”, ressaltando
que sabia que o termo “homem” havia sido utilizado de forma genérica: “Apesar
de ser genérico o termo ‘homens’, como já está caracterizado pela Comissão do
Homem e da Mulher...”9. Antonio Mariz (PMDB-PB) respondeu de forma breve
dizendo que era genérico sim o termo. Porém, é interessante observar que Eliel
Rodrigues já indicava uma discussão que ocorreria posteriormente sobre o nome
da Comissão, especialmente sobre a pressão que as feministas fizeram para que o
nome da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da
Mulher incluísse justamente o termo ‘mulher’, em vez de terminar com ‘homem’.
Eliel, sob a forma de uma suposta homenagem prestada à mulher brasileira,
demonstrou que a alteração do nome da Comissão não havia sido algo resolvido
pacificamente, muito menos era unânime o reconhecimento da necessidade de
alteração do nome. Prontamente, a Constituinte Lúcia Vânia parabenizou Eliel
Rodrigues pela sugestão da inclusão do termo ‘mulher’, ressaltando as artimanhas
jurídicas que impediram a igualdade entre homens e mulheres, pois a utilização do
termo ‘homem’ dessa forma genérica já foi justificativa para a proibição de
direitos iguais entre os sexos: “(...)a lei tem, ao longo do tempo, discriminado
exatamente o mesmo sexo por essa generalização”10.
Essa discussão ganhou maior profundidade na mesma Subcomissão em
momento posterior. É importante ressaltar que a própria legislação brasileira sobre
o voto, por exemplo, não trazia nenhum impedimento para o voto feminino em
1891, fazendo uso somente de termos genéricos. Apesar disso, quando pleiteado,
o direito era negado. A legislação dos Estados Unidos trazia a previsão do direito
ao voto fazendo uso de termos genéricos, mas o mesmo direito também havia sido
9
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (suplemento ao n° 53), sexta-feira, 1° de maio de
1987. P. 42.
10
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (suplemento ao n° 53), sexta-feira, 1° de maio de
1987. P. 43.
220
negado às mulheres. Portanto, a discussão sobre a inclusão ou não de
determinados termos parece ser simples, porém não é. As minorias em geral
vivem esse tipo de pressão. Para que incluir mais termos se, a princípio, todos
poderiam ser abrangidos pela expressão ‘homens’ ou ‘pessoa humana’? Esse
argumento era recorrente. Outra dificuldade em relação a esse problema diz
respeito às considerações trazidas pelos pós-estruturalistas, ou os críticos da noção
de identidade. Nomear não deixa de ser uma afirmação de identidade, quando se
sabe também que a identidade é forjada pela exclusão. Na medida em que as
minorias reivindicavam a identidade elas afirmavam esse processo de exclusão e
também passavam a excluir outros grupos. O movimento feminista foi alvo desse
tipo de crítica, acusado de ignorar mulheres diferentes das brancas, de
determinada classe social e com determinada orientação sexual, conforme
exaustivamente exposto quando examinada a teoria de Butler. Porém, já se sabe
que a utilização de termos genéricos nunca foi suficiente. Como sair desse
impasse? Essa era e ainda é uma busca dos movimentos minoritários e o nome da
Comissão parece ter sido um tema que colocou esse debate que será retomado
posteriormente.
O primeiro problema que apareceu em relação ao tema do gênero foi
bastante direto. Se as feministas, grupo mais consolidado, organizado e atuando
há mais tempo no país, enfrentariam alguns problemas ao longo das
Subcomissões, inclusive na Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais, o
anúncio de que haveria representante da associação homossexual parece ter
perturbado determinados Constituintes, fazendo aflorar preconceitos em relação à
afirmação da sexualidade. Importante ressaltar que esse debate no Brasil ainda era
recente. O grupo Triângulo Rosa estava constituído há menos de uma década no
país e as suas demandas vinham atravessadas por uma série de concepções
equivocadas e estereotipadas sobre o comportamento homossexual e algumas
doenças, tanto de ordem psíquica quanto física, como o problema da AIDS. No
caso da Subcomissão em análise, o receio do Constituinte Ubiratan Spinelli (PDSMT) parecia ser no fato de a presença de homossexuais nas audiências públicas
deturpar a imagem da Constituinte, acabando com o seu caráter solene. Nesses
termos, a simples presença dessas pessoas configuraria uma ofensa aos trabalhos
da Assembleia Constituinte. Interessante observar que, ao surgir um grupo
completamente inesperado, pelo menos do ponto de vista de determinados
221
Constituintes, para se manifestar na Constituinte, o argumento da adequação
temática aparecia. Seria a Subcomissão responsável por ouvir essa gente? Seria
essa uma matéria Constitucional? Nesses termos ocorreu o diálogo entre Ubiratan
Spinelli (PDS-MT), Antônio Mariz (PMDB-PB) e José Mendonça de Morais
(PMDB-MG):
O Sr. Constituinte Ubiratan Spinelli – Sr. Presidente, teremos de ouvir o diretor
de Comunicação Social do Grupo Carioca de Libertação Homossexual Triângulo
Rosa. Logicamente teremos de ouvi-lo. É um direito que assiste a todos de
participar das comissões. Mas temos que ver até que ponto esse tema é atinente à
Constituição. A pessoa tem liberdade sexual, mas temos de ver até que limite vai
o assunto nesta Subcomissão, inclusive na própria Constituição, para que isso não
se transforme em deboche.
Se o sujeito abordar direitos e garantias sexuais isso aqui vai ser um festival gay.
O Sr. Presidente (Antônio Mariz) – Esta Subcomissão definirá a não
discriminação por motivo de raça, sexo, profissão, credo religioso.
O Sr. Constituinte Ubiratan Spinelli – Mas isso não tem sexo definido.
O Sr. Presidente (Antônio Mariz) – Mas existe. Então é um fato social que deve
ser definido em lei e também merece, certamente, atenção.
O Sr. Constituinte José Mendonça de Morais – Sr. Presidente, pela ordem. Queria
sugerir à Mesa que solicitasse aos Srs. expositores que tragam suas sugestões
condensadas para fins de estudos. O debate pode ser livre. Mas a proposta
concreta deveria ser escrita para que pudéssemos, depois, discuti-las (sic) e
estudá-la. Porque muita gente vem aqui para se exibir ou dar show de exposição.
E não estamos aqui para ver show de ninguém. Devem ser escritas matérias sérias
para podermos trabalhar com responsabilidade (...)11.
O primeiro aspecto a ser enfrentado é a justificativa de Ubiratan Spinelli.
Ele iniciou sua fala afirmando que a participação constituía um direito, para em
seguida defender que ela deveria ser limitada. Haveria o problema do tempo e da
adequação temática. Essas seriam justificativas para restringir as possibilidades de
participação. Em seguida, o tema proposto pelo grupo Triângulo Rosa, a liberdade
sexual, se transforma em um deboche em si mesmo. A colocação do receio do
“festival gay” que a reunião da Subcomissão poderia se tornar confirma essa
afirmação. O simples fato de haver a presença de homossexuais pela Subcomissão
a transformaria em um festival gay. Além disso, essa fala também implicava em
uma desqualificação de demandas sobre liberdade sexual, como se existissem na
Constituinte demandas sérias, que mereceriam uma discussão nas Subcomissões e
demandas que não seriam sérias, que não mereceriam espaço ali, pois seriam
próximas a um deboche. De fato, em uma Assembleia Constituinte existem
11
Ubiratan Francisco Vilela Tom Spinelli. Trecho do diálogo em Diário da Assembleia Nacional
Constituinte (suplemento ao n° 62), quarta-feira, 20 de maio de 1987. P. 18.
222
matérias que surgem e são aceitas com maior facilidade em virtude de serem há
muito de ordem Constitucional. Porém, obviamente os chamados “sujeitos de
direito” não são forjados todos ao mesmo tempo e sim no decorrer de suas lutas
por conquistas de direitos. Portanto, em vez de se reduzir a priori o rol de
matérias Constitucionais, a própria concepção do que seria da ordem
Constitucional estava em disputa na Assembleia Constituinte. Negar ou afirmar
tal discussão atendeu ao longo das Subcomissões a diferentes interesses.
Esses atos de fala eram profundamente performativos, uma vez que
fundariam uma nova ordem constitucional, colocando as bases de uma nova
realidade jurídica, medida importante para a produção de nova realidade social.
No caso dos homossexuais, eles pretendiam colocar fim em um processo de
discriminação em virtude da sexualidade, tirando a sua sexualidade da margem.
As relações homossexuais no Brasil não chegavam a ser crime, mas isso não
afastava a quase ilicitude dessas relações. Além das uniões não serem
juridicamente possíveis e, por conta disso, ser até então vedado a homossexuais
uma série de direitos, os homossexuais estavam impossibilitados de se declararem
como tal, pois a afirmação da homossexualidade, de sua existência, poderia
ensejar um deboche, ou um “festival gay”. A demanda em si mesma era
desqualificada por determinados Constituintes, que pretendiam fechar as portas
para qualquer discussão do gênero. O mais interessante era que o fato de se ouvir
o grupo Triângulo Rosa não iria necessariamente implicar em um reconhecimento
de que as suas demandas deveriam ser atendidas. Além disso, o atendimento das
demandas trazidas por minorias sexuais também não afetaria a vida diretamente
de ninguém que não fosse homossexual. Ainda assim, o incômodo com essa fala
parece ter sido grande. Enxergar que sujeitos de direito e matérias constitucionais
podem ser reconstruídos, reformulados e ampliados era fundamental para a
atuação das minorias na Constituinte no esforço de avançar em seus direitos.
O último problema trazido por esse trecho diz respeito à resposta do
Presidente Antônio Mariz (PMDB-PB) às preocupações de Ubiratan Spinelli
((PDS-MT). O Presidente afirmou que cabia à Subcomissão tratar da não
discriminação em relação à raça, profissão, religião e sexo. Portanto, o referido
grupo deveria ter seu espaço garantido. O Constituinte Ubiratan Spinelli, em
seguida, respondeu “isso não tem sexo definido”. A ausência de definição de
homossexuais nos modelos trazidos pela heterossexualidade era por si só um
223
problema. A definição de sexo utilizada pelo Constituinte era, portanto, bastante
restrita. A definição em relação à sexualidade por homossexuais também
acontece, mas em termos diferentes. Um homossexual homem, que executa gestos
e usa roupas de homem, pode se interessar preferencialmente por outro que
também utilize roupas e use gestos típicos de homem. Ou então pode se interessar
por outro que tenha um gestual em regra atribuído a mulheres, para citar somente
dois exemplos. As definições são diversas, mas existem. Raramente após alguém
compreender sua sexualidade, se homossexual, se heterossexual, se bissexual, e
dentro do grupo homossexual, qual seria o seu perfil, essa pessoa irá rever a sua
sexualidade, por não ser algo que venha a ser escolhido racionalmente, que em um
momento pode ser de uma forma e em outro pode ser diferente.
Sendo assim, não é que “isso não tenha sexo definido”, somente há uma
inadequação das definições predominantes, inclusive juridicamente, até aquele
determinado momento. Antônio Mariz parece ter percebido essa diferença em sua
resposta seguinte em que afirmou ser uma realidade social merecedora de atenção
legal. No final desse debate, José Mendonça (PMDB-MG) reivindicou propostas
por escrito para garantir que os trabalhos fossem realizados com responsabilidade.
O Constituinte pretendia dessa forma evitar o “show”, pois tinha a impressão de
que muitos iriam até lá com o objetivo de aparecer. Em que pese ser possível que
alguém queira se expor com esse intuito, era muito difícil que uma minoria recém
organizada e alvo de inúmeras violências tivesse essa intenção, com elevado gasto
de tempo, dinheiro e mobilização pessoal. Essa preocupação provavelmente
decorria mais do estereótipo do gay escandaloso do que, por exemplo, de uma
preocupação com um jurista prolixo, que poderia aparecer para fazer um discurso
vazio.
Outra discussão ocorrida na mesma reunião do dia 22 de abril de 1987 foi
sobre o nome da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e
da Mulher. Tecnicamente, essa sempre é uma dificuldade enfrentada pelos
movimentos minoritários: afirmar ou não uma identidade? Ao afirmá-la, mais
exclusões ocorrem? Se não afirmá-la será possível ter acesso a direitos de forma
plena? Obviamente afirmar ou não dependerá muito do que se almeja alcançar em
um determinado momento. Um exemplo disso, que deve ser retomado, foi o
próprio uso que algumas feministas do fim do século XIX fizeram do estereótipo
de mulher que se instalava naquele momento, a virtuosa, para que se justificassem
224
um acesso da mulher ao mundo público. A identidade possui usos estratégicos e
simplesmente já se sabe que o homem universal mais serviu à exclusão do que à
inclusão. Porém, a discussão travada na Subcomissão foi mais rasa do que essas
breves perguntas. José Mendonça sugeriu que essa separação fosse uma ofensa às
mulheres: “Se eu fosse mulher ficaria sentido com a separação que se fez: homem
e mulher.(...) Devia ser Comissão da Seberania (sic) e dos Direitos e Garantias da
Pessoa Humana (...). Que desapareça e prevaleça sempre o respeito que devemos
ter à pessoa humana”12.
O mesmo Constituinte ainda reivindicou a sua condição de jurista como
argumento de autoridade para esvaziar uma demanda que havia sido levada pelo
Conselho Nacional de Direitos da Mulher para a alteração do nome da Comissão.
Em sua fala, José Mendonça desqualifica a sugestão das feministas, dizendo que a
alteração era “onda, porque é o direito das mulheres; porque as mulheres estão
reivindicando. Sim, mas não é onda para dar atestado de ignorância jurídica a
ninguém”
e
que
feria
“a
boa
nomenclatura
jurídica,
principalmente
constitucionalista. Olhei todas as Constituições que tenho em meu poder e não
encontrei uma que separasse homem e mulher num assunto, numa comissão tão
séria quanto essa”13. Novamente, o Constituinte demonstrou ser fechado a essas
novas demandas, àqueles que pretendiam se constituir como “sujeitos de direito”,
diferentes dos já determinados até então. O fato de as mulheres terem ingressado
no rol dos portadores de direitos, ainda que parcialmente, não as impedia de
criticar uma nomenclatura aparentemente imparcial, mas que se sabe que de
imparcial não havia nada. Com o uso do argumento de autoridade, na condição de
jurista, José Mendonça de Morais (PMDB-MG) pretendia colocar as feministas
que haviam pleiteado a troca do nome da Comissão em seus “devidos lugares”.
A proposta de José de Mendonça, aparentemente preocupado com um
universalismo e com a boa técnica jurídica, passava pela desqualificação do
12
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (suplemento ao n° 62), quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 19. No mesmo trecho, o Constituinte Joaquim Haickel (PMDB-MA) disse em seguida
que essa especificação “chega a ser preconceituosa”.
13
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (suplemento ao n° 62), quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 19. Em relação ao nome e à não compreensão de determinados Constituintes sobre as
especificidades de grupos minoritários, há ainda uma declaração de Antônio s Conceição Costa
Ferreira, conhecido como Costa Ferreira (PFL-MA) na mesma ata, na página seguinte, que auxilia
a ilustrar o debate sobre nomear ou não as minorias: “Para complicar ainda mais essa situação,
colocaram uma subcomissão do índio, do negro e mais alguma coisa, quer dizer, como se índio e
negro não fossem pessoa humana”.
225
movimento feminista, que havia sugerido outra forma de nomear a Comissão,
uma forma que não travestisse a discriminação contra a mulher, mas que
apresentasse a preocupação que a nova Constituição deveria ter. A primeira etapa
era, portanto, a afirmação da existência da situação de desigualdade. A fala da
Constituinte Lúcia Vânia (PMDB-GO) trazia esse argumento, logo após um
momento em que ela esclarecia ter sido reivindicação dos movimentos feministas
e da Bancada Feminina. “A discriminação existe, não adianta camuflá-la. Daí a
necessidade de deixarmos bem clara a discriminação, para que possamos debatê-la
e conhecê-la na essência” e citava como exemplo as “Constituições das repúblicas
populares (...) todas especificam os direitos do homem de da mulher”14. Lúcia
Vânia e José Mendonça seguiram com o tema:
Sr. Constituinte José Mendonça – Acho que quanto mais separamos mais
discriminamos. Não há igualdade entre o homem e a mulher, inclusive física. Sei
que há diferenças na constituição de cada um, tanto no espírito como na mente,
porque homem e mulher foram feitos para finalidades diferentes. São
complementares: um complementa o outro. O homem é parte do ser humano
genérico, como também a mulher o é. E ambos formam a perfeição do ser
humano. O homem e a mulher se aperfeiçoam na sua relação íntima, na sua
compreensão, na sua ajuda e na sua complementação. Acho louvável a atitude das
nossas companheiras mulheres que são Constituintes, de quererem marcar a sua
presença. (...) Pessoa humana se refere ao homem e à mulher, conceito que acho
mais rico. É melhor do que separar: direitos do homem, direitos da mulher. (...)
Dou razão a elas de lutarem pelo seu espaço, que foi usurpado muitas vezes pelo
machismo. Mas, para quem tem muita mulher em casa, como eu, que tenho 7
filhas, não tem razão de separar essa relação. E juridicamente, podem ter as
repúblicas comunistas populares vontade de valorizar mais a mulher, já que lá
elas são muito mais escravizadas do que no mundo ocidental.
Sra. Constituinte Lúcia Vânia – Gostaria de não entrar nessa discussão. Peço aos
companheiros que ouçam o Conselho da Condição Feminina. Quero acrescentar o
seguinte: isso não foi feito com o objetivo de marcar a presença da bancada
feminina no Congresso. Apenas refletimos o desejo de centenas de mulheres
estudiosas da matéria e que estão reivindicando a sua presença na Constituinte,
presença no sentido de que seja realmente aberta a discussão em torno da
discriminação. O companheiro deve sentir que temos um problema gravíssimo:
trabalhos iguais para salários diferentes. Isso não é coisa que se possa passar num
Brasil moderno, num Brasil que nós queremos. Acho que não compete ficar aqui
defendendo a posição da mulher ou do homem. (...) Não sou nenhuma militante
do movimento feminista, mas acredito nele e aceito a ideia como forma de
podermos realmente abrir a discussão em torno da mulher (...). Se ela fosse só
sobre o ser humano, não estaríamos discutindo a posição da mulher.
14
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (suplemento ao n° 62), quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 20.
226
Repito: a própria denominação da Comissão faz com que o problema da mulher
seja encarado de forma mais clara e evidente, e que a posição, principalmente da
mulher trabalhadora, seja respeitada nesse país15.
A fala de José Mendonça foi bastante complicada, e demonstra que, apesar
de sua própria declaração sobre sua “autoridade e destreza” no que dizia respeito
ao direito, especificamente, ao direito constitucional, em relação a temas como
gênero e direitos das mulheres, o Constituinte realizava algumas confusões. Ele
iniciou sua fala dizendo que quanto mais se separa mais se discrimina. Em
seguida passou para a ausência de igualdade entre homens e mulheres,
especialmente desigualdades físicas, e de ordens mentais. O primeiro problema
em sua argumentação seria: se não há igualdade, não seria justamente necessário
separar os termos, inserindo expressamente Homem e Mulher?Isso não implica
em estar de acordo com a exacerbação dessa diferença, mas seguindo o raciocínio
do Constituinte, o seu argumento começou contraditório. Se as diferenças
enumeradas por ele fossem tão importantes, ele não poderia entender como mais
correto o uso da expressão “pessoa humana”, inserindo homem e mulher na
mesma categoria. Outro aspecto problemático de sua fala foi justamente a defesa
das finalidades diferentes: como ele poderia concluir que homens e mulheres
possuem finalidades diferentes? Onde estaria consagrado esse rol de finalidades
de cada um? Ou melhor, ele até poderia entender que as finalidades eram
diferentes porque socialmente eram estabelecidas finalidades diferentes, mas o
que ele parecia fazer naquele momento era colocar como causa aquilo que
decorria, na verdade, de práticas sociais.
Ainda que fossem ressaltadas as diferenças físicas, delas não decorreria
que um seria mais apto para uma finalidade e outro para finalidade diferente, ou
melhor, complementar. Se um teria maior aptidão para exercer um determinado
papel, o outro, não apto, não conseguiria reivindicar o exercício daquela função,
simplesmente porque seria inadequado já que o primeiro teria, por natureza, um
melhor desempenho. Há ainda outra questão não enfrentada por aqueles que
entendem ser homens e mulheres feitos para funções diferentes e complementares:
se as funções fossem realmente complementares, elas até seriam diferentes, mas
estariam em um mesmo patamar, ou seja, deveriam ter a mesma relevância social.
15
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (suplemento ao n° 62), quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 20.
227
Porém, as funções destinadas às mulheres, por exemplo, recebem uma avaliação
diferente, possuem menor remuneração. Nesse sentido os trabalhos já
mencionados pela Elisabeth Souza-Lobo apresentaram essa realidade. As funções
eram categorizadas de forma a mudar o nome conforme o gênero daqueles que a
exerciam e, “coincidentemente”, as mulheres estavam em funções que tinham
menor remuneração, mas que diziam respeito a habilidades “tipicamente”
femininas. O argumento das funções complementares serviu e serve para que os
papeis sociais se perpetuem, sem que se consiga alterá-los, para engessar homens
e mulheres em determinadas funções, em um modelo muito específico de
relacionamento, conforme exaustivamente explicado. Além disso, tenta garantir
que não haja maior disputa no campo do trabalho, como também demonstrado a
partir da pesquisa da referida autora ao longo do capítulo anterior, como sendo
uma preocupação que perpassava a própria classe operária no início da década de
1980.
A ligação entre os temas de gênero com outros temas é constantemente
lembrada, especialmente entre as feministas, que sempre se categorizam como
“feminismo liberal”, “feminismo pós-estruturalista”, “feminismo marxista” e
“feminismo negro”, entre outros. Porém, nos momentos em que são feitos exames
de pesquisas como a de Elizabeth Souza-Lobo e dos discursos na Assembleia
Constituinte, próximos em relação ao momento histórico vivido, é possível
perceber que o gênero também tem seus momentos de autonomia e contribuições
próprias a fazer, pois caso contrário, nada justificaria uma concordância de idéias
entre um pecuarista, como o Constituinte José Mendonça de Morais e sindicalistas
entrevistados no início da década de 1980 pela autora. A coincidência está
justamente no fato de se entender as funções de homens e mulheres como
complementares, em vez de funções socialmente produzidas, ainda que se
reconheça que são produzidas com o intuito de serem complementares e
assimétricas.
Por fim, o último problema a ser enfrentado nesse trecho diz respeito ao
final da fala do Constituinte, em que ele se coloca como uma autoridade para dar
um depoimento sobre a luta feminista. O que o deixou apto a isso foi o fato dele
“ter muita mulher em casa, 7 filhas”. Obviamente não se pretende defender que
ele disse racionalmente que tinha sete filhas em casa, lugar em que elas deveriam
estar e em que seriam de sua propriedade, mas o fato é que essas formas de
228
expressões verbais são reflexos de questões culturais importantes, ainda que
quando os termos tenham sido usados a intenção racional não tenha sido a de
dizer que o espaço feminino é o espaço privado e que o homem é proprietário da
mulher, esposa, ou filha. Porém, isso é um indicativo de que a mulher,
socialmente, ainda estava atrelada ao espaço doméstico. A expressão “para quem
tem muita mulher em casa, como eu, que tenho 7 filhas” é bastante forte nesse
sentido. Deve-se reconhecer que este Constituinte, em primeiro lugar, se disse
apto a falar sobre feminismo por ter mulher em casa, e isso é, no mínimo, um
reflexo do que socialmente se entendia como o espaço tipicamente feminino, o
lugar que deveria ser ocupado por mulheres.
Nesse sentido, pode-se retomar aqui o que já foi trabalhado em relação às
ofensas na obra de Judith Butler. O ato individual de ofender não precisa ser
racional, sequer se atribui àquele determinado indivíduo tal ofensa, pois esta é
constituída nas relações sociais, não se atribui somente a um indivíduo. O que o
indivíduo faz é repetir, atualizar a ofensa, o que não precisa, necessariamente, ser
intencional. Com ou sem intenção, o que a ofensa faz é colocar o destinatário da
ofensa, no caso, a mulher, em um lugar específico, em seu “devido lugar”. De que
forma deve ser a resposta a uma ofensa é algo que também se discute socialmente,
especialmente após os destinatários dessas ofensas se organizarem para cobrar
medidas que os tirem desse lugar ou quando eles próprios tomam medidas para
saírem desse lugar, seja o movimento feminista, seja o movimento negro, ou
qualquer outro grupo minoritário.
O interessante nesse último trecho também é observar a dinâmica da
resposta. Se por um lado José Mendonça não se sentiu constrangido em dizer que
“tinha 7 mulheres em casa”, por outro lado, a Constituinte Lúcia Vânia parece ter
se justificado para garantir credibilidade à sua fala. Ela se preocupou em explicar
a demanda do movimento feminista para alterar o nome da Comissão, para
estimular o debate sobre a condição da mulher brasileira naquele momento de
elaboração de uma nova Constituição. A frase “não sou nenhuma militante do
movimento feminista” a colocava em uma posição de isenção, de neutralidade,
que poderia ser exigida de um Constituinte, pelo menos em aparência. Garantindo
que ela seria ouvida na condição de alguém isento ou imparcial, ela demonstrou
que a demanda das feministas era pertinente, em virtude de já ter permitido uma
discussão acerca dos direitos da mulher naquela Subcomissão. O mais interessante
229
é que apesar da exigência formal de imparcialidade, quando se compara o
histórico dos Constituintes e suas atuações na Assembleia Constituinte, percebe-se
facilmente que eles estavam atrelados a seus interesses e no máximo, aos
interesses de seus eleitores, o que também não seria completamente inesperado.
A sétima reunião, no dia 23 de abril de 1987, contou com a presença de
Jacqueline Pitanguy16, Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher,
para proferir palestra sobre Cidadania Feminina e Estado, iniciando sua fala com
uma breve apresentação do Conselho, em virtude de, na época, ter somente dois
anos de existência. Colocava que o objetivo do Conselho era manter o contato
com os movimentos feministas para promover os direitos da mulher, constituindo
uma força política para pleitear esses direitos, além de ser uma via de acesso para
o Governo Federal. Cabe ressaltar que a atuação de tal Conselho na Constituinte
foi bastante intensa, pois não somente se apresentou em diferentes Subcomissões,
como manteve contato com outros movimentos, apoiando, por exemplo, os
membros do Triângulo Rosa, bem como inspirando atuações como as de Lélia
Gonzales, referência do feminismo negro. A sua primeira medida foi esclarecer
que a discriminação de gênero tinha fundamentos históricos e sociais e não diziam
respeito a uma ordem natural. Nesses termos, as relações entre gênero poderiam
ser modificadas, pois decorriam de construções, o que garantia a pertinência das
lutas em favor dos direitos das mulheres. A atribuição de características naturais e
imutáveis era uma estratégia para impedir mudanças nas relações sociais, e, de
acordo com Jacqueline, atingiam não somente as mulheres, mas outras minorias,
como os negros.
Sua exposição nessa Subcomissão também teve o objetivo de traçar um
histórico da conquista de direitos para as mulheres, partindo das reivindicações
em prol do sufrágio feminino nos Estados Unidos e na França, para demonstrar
como as mulheres foram, no Brasil, cidadãs de segunda categoria até tempos bem
recentes no que dizia respeito à participação política. Chamava a atenção para a
necessidade de se evitar termos genéricos como “todos” em prol de se utilizar
“homens e mulheres”, por conta de todas as dificuldades enfrentadas pelas
feministas para fazer com que “mulheres” fossem incluídas nessas categorias
genéricas, com o forte exemplo dos direitos políticos. Outra questão ainda
16
Sua participação nessa Subcomissão encontra-se registrada no Diário da Assembleia Nacional
Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de 1987. PP. 23-37.
230
levantada pela Presidente foi a diferença de acesso ao mercado de trabalho entre
homens e mulheres. Já apontava os problemas das medidas protecionistas que
incidiam sobre o trabalho feminino e que, na prática, dificultavam o acesso ao
mercado de trabalho por mulheres, que encontravam dificuldades na contratação,
além das diferenças na remuneração. Restrições a trabalhos nocivos, insalubres e
perigosos não faziam sentido, uma vez que, o que era nocivo, insalubre e perigoso
era para ambos os sexos e deveriam pertencer a um rol de proteção de todos os
trabalhadores e não somente de trabalhadoras, para evitar as dificuldades de
contratação. Sua exposição, portanto, havia sido genérica, apontando brevemente
para as mais variadas demandas feministas para a Assembleia Constituinte.
Sua interação com os membros da Subcomissão foi inaugurada por uma
questão já levantada, que era justamente a da manutenção de termos genéricos,
com a colocação proposta por José Mendonça de Morais, retomando o nome da
Comissão e fundamentando em sua condição de jurista, que se sentia na obrigação
de apresentar a melhor técnica. O problema dos termos também foi colocado pelo
Constituinte Joaquim Haickel (PMDB-MA), com o argumento de que
politicamente entendia o esforço do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher,
mas juridicamente poderia implicar em uma abertura de “lacuna”, em suas
próprias palavras, mas sem justificar que lacuna seria essa17. Novamente José
Mendonça de Morais havia observado que era pai de sete filhas, na verdade, que
tinha a “honra de ter sete filhas”, alterando sua forma original, ressaltando que
todas exerciam seu papel na história. Por esse motivo, ele se entendia como
alguém comprometido com a luta feminista, não somente em virtude de ser pai,
mas também fundamentando com seu compromisso como evangélico, e, por esse
motivo, defensor da igualdade18. Em seguida, após se afirmar como defensor da
igualdade, o Constituinte alterou seu argumento para questionar os motivos pelos
quais as mulheres estavam reivindicando a igualdade, se homens e mulheres eram
de fato iguais. “Por que lutar muito pela igualdade no lado negativo e não pela
liberdade no lado positivo?” era a questão. O lado negativo, de acordo com o
Constituinte, era a liberdade sexual. Em seu raciocínio, a gentileza dos homens
17
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. P. 28.
18
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. P. 26.
231
estava diminuindo porque as mulheres “cediam” facilmente. Seguia o Constituinte
com a seguinte afirmação:
Se somos feitos física e sexualmente diferentes, entendo que mentalmente
também há diferenças, bem como objetivos e finalidades diferenciados, apesar de
alguns homens quererem ter o direito de ser mães, numa inversão do papel da
sexualidade, da genética. Fico pensando: será que fomos realmente feitos para
sermos iguais? Será que não fomos feitos para sermos diferentes?19
A partir da colocação de José Mendonça de Morais, é possível perceber
que a diferença era ressaltada como um aspecto fundado em características físicas,
que deveriam determinar as funções sociais exercidas por homens e mulheres. O
Constituinte entendia que as funções sociais refletiam as diferenças biológicas
entre homens e mulheres e achava que isso deveria ser resguardado. A dinâmica
explicada pela teoria de Judith Butler sobre atos performativos e pelo processo de
generificação e apresentada ao longo do capítulo anterior como constituinte do
modelo de mulher brasileira retornava na Constituinte para justificar diferenças
sociais e, em última instância, diferenças de direitos para homens e mulheres. Por
que as mulheres deveriam reivindicar tanta igualdade? Por que homens estariam
reivindicando o papel de mães invertendo a genética? O Constituinte não percebia
que a função de mãe, ou o papel desempenhado por alguém que se constituísse
como mãe, era diferente da capacidade de gerar uma criança dentro de seu
organismo. Interessante como questões como esta seriam colocadas também na
Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, na incapacidade de alguns
Constituintes e palestrantes compreenderem os motivos pelos quais uma mãe não
seria capaz de amar incondicionalmente o próprio filho, conforme ainda será
visto.
Jacqueline Pitanguy superaria esse problema com facilidade, ressaltando
que as diferenças problemáticas eram aquelas que definiam posições hierárquicas
diferentes, impossibilitando a igualdade de direitos e restringindo as mulheres a
determinados papeis sociais. Além disso, observava a palestrante que as próprias
mulheres eram diferentes entre elas, pois enquanto algumas tinham o privilégio de
exercer atividade intelectual e participar do mundo político, outras se encontravam
completamente tomadas por tarefas do cotidiano, como as donas de casa. Outras
19
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. P. 26.
232
ainda eram trabalhadoras rurais ou empregadas domésticas, dois grupos que ainda
enfrentavam muitas dificuldades no que dizia respeito a direitos trabalhistas e que
ganhavam corpo para reivindicar com mais força somente naquele momento da
Assembleia Constituinte. Em seguida, a própria Constituinte Lídice da Mata (PC
do B-BA) afirmava que a questão não passava somente pela igualdade de direitos,
mas também por uma “igualdade de obrigações”20.
Aqui a Constituinte Lídice da Mata fazia referência justamente aos
encargos que recaíam sobre as mulheres em decorrência ainda da distribuição de
papeis entre homens e mulheres e ao fato de a maior entrada da mulher no
mercado de trabalho não ter produzido reflexos na redistribuição do trabalho
doméstico, em uma espécie de “pacto cruel” realizado pelas próprias mulheres
para que o acesso ao mundo público fosse permitido: “deixem-nos sair de casa,
ingressar no mundo público, que a nossa ausência em casa não será percebida”.
Esse pacto resultou na conhecida dupla jornada de trabalho, mas foi o caminho
que pareceu viável para que as mulheres pudessem ir além dos cuidados com a
casa e com a família.
Anna Maria Rattes (PMDB-RJ) também demonstrava compreender a
relevância de não se repetir os erros dos termos genéricos. Reconhecia que para o
movimento feminista a redação do artigo da Constituição deveria ser “homens e
mulheres têm direitos iguais ao pleno exercício da cidadania, nos termos desta
Constituição, cabendo ao Estado garantir a sua eficácia formal e materialmente”,
além do dispositivo que estabeleceria “todos são iguais perante a lei, que punirá
como crime inafiançável qualquer discriminação atentatória aos direitos
humanos”, que já estava sendo desenhado na Subcomissão. Isso evitaria que as
discussões para a elaboração de legislações ordinárias tomassem muito tempo em
detrimento da concretização da igualdade21. Ambas, Jacqueline e Anna Maria
20
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. P. 27.
21
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. P. 29. Ao mesmo tempo havia uma discussão paralela travada também entre Jacqueline
Pitanguy e Joaquim Haickel sobre as Delegacias especializadas no atendimento a mulheres, que
começavam a ser instaladas no país. O Constituinte afirmava que havia mulheres ressaltando o
aspecto negativo, que aumentaria a discriminação contra a mulher em virtude do atendimento
especializado, além do fato de que outras delegacias estariam se recusando a atender mulheres em
virtude da existência de delegacias especiais. O argumento de que medidas de ações afirmativas
alimentavam a discriminação, portanto, não é novo, já era posto no final da década de 1980.
Jacqueline defendia a existência e expansão de tais delegacias, afirmando que mulheres que
passavam por agressões sexuais e violência doméstica encontravam ambiente hostil em delegacias
233
demonstravam preocupação com a concretização mais rápida da igualdade entre
homens e mulheres.
O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher até aquele momento havia
enfrentado poucas questões sobre as suas demandas, questões essas mais
concentradas no problema do nome, da positivação dos termos “homem” e
“mulher”, mas no geral contou com a simpatia de boa parte dos Constituintes
presentes naquela reunião. As disputas maiores seriam em momento posterior. A
questão da trabalhadora rural ainda foi brevemente retomada pelo Constituinte
Antônio Câmara (PMDB-RN), que demonstrava solidariedade com a mulher
trabalhadora rural, reconhecendo que seu trabalho era mais árduo, pois além dos
cuidados com a casa, filhos e marido, ela ainda realizava o trabalho no campo
auxiliando o marido, mas diferentemente da mulher, o homem tinha direito à
aposentadoria. Nesses termos ele parabenizava o Conselho por apoiar a mulher do
campo.
O Constituinte José Paulo Bisol (PMDB-RS), por exemplo, chegou a
perguntar para Jacqueline se ela não pensava que o Conselho estava reivindicando
muito pouco. Observando sua experiência na magistratura, ele reconhecia que os
juízes não aplicavam simplesmente a lei, mas estavam inseridos também na
dinâmica cultural. Bisol não chegou a afirmar que os juízes estavam suscetíveis a
reproduzir essas discriminações, mas isso pode ser concluído a partir de sua fala.
Sua
proposta
passava
por
trazer
de
ordenamentos
estrangeiros
a
inconstitucionalidade por omissão22 para grupos que sofressem discriminações,
importando a idéia de defensoria do povo, que se encontrava no projeto de Afonso
Arinos. Ele entendia que as mulheres também deveriam lutar por essa defensoria
do povo para que fosse garantido um mecanismo de concretização de direitos.
O Constituinte Costa Ferreira (PFL-MA) também celebrou a participação
do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher na Subcomissão, ressaltando as
convencionais, especialmente no momento em que deveriam narrar os fatos ocorridos, sendo
atendidas por pessoas despreparadas para lidar com essa espécie de violência e que, em regra,
sugeriam que as responsáveis pela agressão eram as próprias mulheres. Jacqueline também foi
interrogada sobre a possibilidade de pena de morte no país e enfatizou que não era favorável a tal
pena em nenhuma hipótese, pois reconhecia que a justiça brasileira dava tratamento desigual para
as diferentes classes sociais. Certamente, a pena de morte seria restrita aos pobres. PP 29-30.
22
Essa proposta foi colocada por ele para que todos os grupos minoritários e crianças, por
exemplo, pudessem ver seus direitos concretizados, em vez de adiados. Porém, essa discussão não
será objeto de análise. Esse trecho encontra-se em Diário da Assembleia Nacional Constituinte
(Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de 1987. P. 31.
234
desigualdades subsistentes, em parte em decorrência de receio de homens que
pensavam que perderiam espaço com a emancipação feminina. Fez referência
especialmente ao risco de perda de emprego por parte de mulheres que
engravidavam, mas em sua defesa da legitimidade das lutas das mulheres por
direitos ressaltava o caráter “complementar” de homens e mulheres: “o homem
não pode viver na sociedade sem a mulher, assim como a mulher não pode viver
sem o homem. Ambos se complementam”23. Em que pese a boa intenção do
Constituinte, já se sabe como a complementaridade de funções pode servir para
fundamentar a divisão de papeis. Apesar desse risco, a observação do caráter
complementar de homens e mulheres não foi adiante em seu discurso, tendo Costa
Ferreira se posicionado favoravelmente a uma Constituição que não fosse sintética
e que trouxesse consagrado direitos para minorias como negros, índios e
mulheres. Bisol, ressaltava a importância do Conselho, da luta pelo defensor do
povo para concretização de direitos, mas parecia não entender como aspecto
relevante a atribuição do nome, por isso Costa Ferreira também o respondia.
No decorrer da reunião, Lúcia Vânia (PMDB-GO) também festejou a
presença de Jacqueline Pitanguy e de fazer parte das vinte e seis mulheres
Constituintes. Interessante observar como a Constituinte legitimava a sua fala:
honra-nos muito, nesta Constituinte, fazer parte de um grupo de vinte e seis
representantes do sexo feminino, a quem Deus deu o direito de gerar e conceber a
vida. E nós, que tivemos esse direito, que sabemos o que é ter em nosso ventre
uma vida, um ser humano, mais do que nunca haveremos de falar alto em favor
da vida24.
A Constituinte Lúcia Vânia parecia se apoiar em sua capacidade
reprodutiva, enaltecendo-a, como um atributo especial que a mulher tinha em
relação ao homem, uma espécie de vantagem. Também isso era decorrente da
chamada complementaridade, com todos os seus riscos já apresentados no
capítulo anterior, e nessa reunião parece não ter gerado grandes debates.
Vincularia a luta das mulheres à luta em favor da vida em virtude de sua
capacidade de gerar. Desprezava a hipótese de mulheres que não podiam gerar ou
não queriam gerar, como se estivessem fora daquilo que seria uma consequência
23
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. P. 32.
24
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. P. 33.
235
lógica do corpo da mulher. Essa fala parece ter sido somente um mero recurso de
retórica, de sensibilização para as demandas das mulheres. Não causou, portanto,
nenhuma estranheza, apesar de apresentar em seu interior alguns dos problemas
centrais enfrentados pela militância feminista.
Porém, essa capacidade reprodutiva para a Constituinte dizia respeito a
uma forma de exercício de um direito, o que ensejaria um tratamento diferente
daquele dado ao tema quando esse tipo de discussão aconteceu de forma mais
profunda na Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais e em outras
Subcomissões, conforme será exposto nos capítulos pertinentes. O caminho em
seu discurso foi bastante tortuoso, tendo partido da biologia para reivindicar a
participação política de mulheres, queixando-se que as Constituintes eram mais
consideradas pela beleza e pela elegância do que pelos esforços em prol da maior
participação feminina25. Nesses termos, ela afirmava a importância das
Constituintes e do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
Jacqueline Pitanguy retornava nos mecanismos de discriminação da
mulher. Na sua fala ficava bastante nítido todo o aparato apresentado por Butler
da construção das identidades de gênero a partir dos atos performativos: “uma das
principais formas de manter-se uma situação de opressão é fazer com que o
opressor introjete mecanismos de poder e opressão como se fossem mecanismos
naturais. E nesse sentido não se vai jamais contestá-lo”26. Jacqueline Pitanguy
reconhecia que esse aparato estava muito além das legislações. De fato, as práticas
sociais, os costumes, os hábitos, ou seja, a linguagem em seu sentido amplo era a
responsável pela perpetuação das discriminações. Essa relação ocorre em qualquer
situação de opressão, mas no que diz respeito ao gênero, esse processo era, e ainda
25
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. P. 33.
26
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. P. 35. Na página 36 do mesmo Diário há uma declaração do Constituinte José Carlos
Coutinho (PL-RJ) que demonstra sua preocupação, ao mesmo tempo a sua confusão, com o fato de
esses preconceitos serem reproduzidos de forma inconsciente e que merece ser destacada: “Será
que para a maioria dos brasileiros chamar um garoto de “mariquinhas” é machismo? Pode ser um
machismo inconsciente daquele iletrado. Então, vamos para a redundância, quanto à educação. A
educação que as mulheres dão a seus filhos não os vai tornar machistas. No seu entendimento, seus
filhos não serão machistas, não é? Procuro não ser machista. Não sei se o sou inconscientemente,
talvez o seja, e muito, porque meu entendimento é aquele, normal”. Afirmar que a educação dada
por mulheres não seria machista é um equívoco, pois as mulheres estão inseridas nessas dinâmicas
sociais. Nesses termos, elas são tão responsáveis pela perpetuação desse machismo quanto
qualquer homem. Interessante notar que o Constituinte afirmou ser o seu entendimento o
“normal”, ou seja, é normal porque é o reproduzido socialmente, reconhecendo que esse processo
está diluído socialmente.
236
é, escamoteado. Jacqueline dava o exemplo das brincadeiras e brigas infantis, em
que um menino chamava o outro de “menininha”, ou ainda “mulherzinha”, mas
ainda podem ser citadas frases como“ meninos não choram”, muito recorrentes
em educação infantil. Em determinadas situações, como nos casos da violência
doméstica e da violência sexual, do homicídio de mulheres em decorrência de
questões de honra, a violência se torna explícita, mas até esse momento, esses
processos haviam percorrido grande caminho e culminavam na justificativa de tais
violências. A situação enfrentada pela representante do Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher era notoriamente complexa e as normas Constitucionais
poderiam ser um auxílio para iniciar uma transformação nas relações de gênero.
Antes de encerrar a reunião, Lídice da Mata (PC do B-BA) ainda trouxe
considerações sobre a necessidade de se conquistar simpatizantes às demandas das
mulheres na Constituinte, em virtude da presença de somente vinte e seis
mulheres – vinte e cinco de fato – no conjunto de 559 Constituintes, afirmando
que seria muito importante para essas mulheres contar com o apoio de figuras
como José Paulo Bisol. Considerando-se, ainda, que o fato de ser mulher não
transformava nenhuma das deputadas em militantes em prol das demandas
feministas, a situação era ainda mais urgente do que a relatada na preocupação de
Lídice da Mata. O problema apontado por Lídice da Mata ainda dizia respeito ao
tema dos direitos da mulher estar inserido em uma dinâmica das relações
privadas, em que a condição de igualdade nas relações de gênero não se tratava de
concretização da igualdade e sim de permissividade por parte dos maridos. A
complexidade da situação aparecia nos debates públicos sobre direitos das
mulheres, em que sempre havia homens dispostos a dizer que em suas casas as
mulheres eram completamente livres:
Eu diria que nunca participei de um debate político sobre a questão da mulher em
que não houvesse homens que se levantassem para dizer que na casa deles a
liberdade é total. É uma ideia predominante, a de que eles permitem a liberdade
da sua mulher. Não quer dizer que é o que sucede com V. Exª, não. Mas o
conjunto, a ideia é esta: “Na minha casa, minha mulher é livre porque assim eu
permito”. Nossa luta essencial é exatamente para dizer à sociedade brasileira que
queremos conquistar nossa liberdade com nossa efetiva participação política27.
27
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. P. 36.
237
Enquanto parecia que esses homens pretendiam desqualificar a luta por
igualdade por parte das feministas em virtude de uma existência de liberdade na
vida de suas mulheres, Lídice da Mata apontava a inconsistência desse tipo de
afirmação. Se a liberdade estava vinculada a uma permissão por parte do marido,
obviamente, não havia igualdade na relação. As mulheres ainda eram tratadas
como se fossem parte da ordem privada, paralela ao universo dos direitos, como
até mesmo uma forma de propriedade do marido. Caberia a eles, portanto, a
concessão da liberdade dessas mulheres, e do reconhecimento da igualdade nas
relações conjugais. A partir dessa concepção, excepcionalmente essas mulheres
poderiam exercer uma espécie de liberdade, mas que, em última instância, não
estava incorporada em eu patrimônio jurídico. Apesar desses deslizes entre os
Constituintes, que eventualmente deixavam escapar declarações que expressavam
a dinâmica das relações de gênero e suas assimetrias, ao longo dessa reunião da
Subcomissão, a Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher não
enfrentou grandes obstáculos para apresentar de forma genérica suas demandas.
A igualdade de gênero e comentários em relação ao aborto surgiram na
oitava reunião da Subcomissão, no dia 24 de abril de 1987, de forma breve, nos
discursos de José Calixto Ramos, Presidente da Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Indústria, em sua fala sobre “direitos e garantias individuais e
do trabalhador” e no discurso do professor Cândido Mendes, Secretário-Geral da
Comissão de Justiça e Paz e Presidente do Conselho de Ciências da UNESCO,
além de Presidente do Conjunto Universitário Cândido Mendes, que falaria sobre
“os novos direitos humanos”. Em relação ao primeiro palestrante, cabe ressaltar
que assim como os movimentos minoritários procuraram diferentes Subcomissões
para garantir que seus interesses fossem contemplados na Constituição, os
representantes de trabalhadores parecem ter feito o mesmo.
Nesses termos, José Calixto Ramos falaria na Subcomissão de Direitos e
Garantias Individuais e enfrentaria a primeira pergunta da Constituinte Lúcia
Braga (PFL-PB), que indagava se a Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Indústria tinha preocupações em relação à mulher trabalhadora. Isso porque, de
acordo com a Constituinte, em regra a mulher trabalhadora, após o término da
licença gestante, era demitida. Por esse motivo, ela pretendia que fosse assegurada
a estabilidade no emprego durante um ano, para garantir tranqüilidade no período
238
de amamentação28. O palestrante havia demonstrado preocupação com os
trabalhadores dirigentes sindicais que sofriam com pressões de empregadores na
medida em que tomavam posições mais fortes, nesse sentido Lúcia Braga
apresentava a peculiaridade da trabalhadora decorrente da licença gestante.
A discussão não foi muito extensa, porém, a resposta de José Calixto
Ramos ilustra alguns pontos apresentados ao longo do capítulo anterior no que
dizia respeito à relação entre as mulheres trabalhadoras e seus companheiros de
trabalho ou maridos. No primeiro momento, José Calixto afirmou que a
Confederação tinha estava preocupada em fazer com que a mulher participasse
cada vez mais da vida sindical, e como exemplo de medida tomada para estimular
a participação feminina, trazia em sua publicação “A Tribuna Sindical” um
suplemento destinado ao público feminino, com espaço para trabalhadoras e para
parlamentares que discutiam a situação da mulher trabalhadora. A partir de então,
os estereótipos de gênero apareciam no discurso do Presidente da Confederação,
de forma que comprovavam as constatações, por exemplo, de Elisabeth SouzaLobo soubre essa relação. Indiretamente, o sindicalista também se esforçava para
demonstrar o “verdadeiro” lugar da mulher, a sua última preocupação. Nas
palavras do Presidente da Confederação:
Inclusive, no primeiro número da Tribuna Sindical chamamos a atenção da
mulher no sentido de não se preocupar em concorrer com o homem, mostrando
que ela é capaz de pegar uma arma, ter que usar uma calça desbotada, usar um
sapato grande ou coisa que o valha. Ela tem que trabalhar dentro da concepção
mais fina que tem. Ela é mais sensível, muitas vezes, que o homem, pela sua
condição de mulher, pela sua feminilidade. Isso é importante. Ela não deve
desprezar isso, para que possa trabalhar conosco, lado a lado. Chamávamos,
inclusive, atenção para esse fato, porque tivemos algumas entrevistas com
mulheres, algumas já participando da vida sindical, e parecia que elas só se
sentiam muito bem se pudessem pegar um cassetete e sair agredindo todo mundo,
como o homem tem mais condições de fazer. E não é nada disso. Ela tem que vir
com toda a sua garra de mulher, mostrando que é mulher, carinhosa, e estar ao
lado dos trabalhadores, principalmente ao lado dos seus maridos, quando estes
são dirigentes sindicais. Vinha, hoje, conversando com um companheiro e lhe
dizia que estamos tão desorganizados que a nossa família está ficando sempre em
segundo plano, porque as mulheres ainda não assimilaram a necessidade dessa
participação. Quantos problemas têm-se criado porque o dirigente sindical, que
assume realmente a responsabilidade de dirigente, tem a entidade sindical acima
28
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 62.
239
de tudo e de todos, inclusive de seus próprios familiares! Então, sobre esse
aspecto, estamos inteirados com suas preocupações29.
O Presidente da Confederação expõe claramente a preocupação com a
reserva de espaço, que não deveria ser disputado por mulheres, marcado pela
expressão “concorrer”. A mulher não deveria assumir uma postura na qual ela
adotasse formas de participação no universo do sindicato semelhantes às dos
homens. Se ela pretendesse participar do mundo do trabalho fora da casa e do
mundo do sindicato, ela deveria realizar funções e assumir comportamentos que
fossem condizentes com os papeis tradicionalmente atribuídos a ela, e
exaustivamente apresentados no capítulo anterior. A participação da mulher no
mundo público era, de acordo com essa perspectiva, uma espécie concessão, e
mais, uma exceção, que deveria, para ser bem aceita, refletir a divisão de papeis
estabelecida nas relações privadas, em que à mulher cabia o cuidado. Esse
cuidado seria reproduzido no mundo do trabalho, fosse por um comportamento
delicado, em uma forma de se vestir e se apresentar, fosse no próprio exercício de
uma atividade, no caso na indústria, que exigisse uma habilidade “tipicamente”
feminina, fator esse que implicava em uma remuneração menor em virtude de não
ser considerada uma função qualificada, conforme exposto ao longo do segundo
capítulo.
O Presidente da Confederação ainda ressaltava que o devido lugar da
mulher, “mostrando que é mulher, carinhosa”, era ao lado dos trabalhadores, não
na condição de trabalhadora, e especialmente quando seus maridos são dirigentes
sindicais. Nesses termos, parecia que o Presidente da Confederação reivindicava
maior compreensão por parte das esposas, na medida em que no exercício de tal
cargo, os homens pareciam se afastar de casa. As mulheres, portanto, deveriam se
resignar. Por fim, o que José Calixto Ramos defendia era uma estabilidade para
todos os trabalhadores, “não apenas das mulheres no período da amamentação ou
da gestação”30. Portanto, a sua preocupação direta não era com os problemas
enfrentados pela mulher trabalhadora, desprezando as consequências diretas da
29
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 62.
30
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 62.
240
discriminação sofrida por mulheres em virtude do fato de ser mulher e ser mãe, ou
seja, uma forma de discriminação decorrente do gênero.
O professor Cândido Mendes não dedicou nenhum momento de sua fala
inicial ao gênero especificamente, assim, como o palestrante anterior. Porém, em
relação aos novos direitos, no momento em que falava sobre isonomia, colocou a
necessidade da Constituição nova criminalizar os atentados à igualdade, não
restringindo a hipótese às discriminação em relação à raça. “Quantos e quantos
preconceitos crescem, ao invés de acabar, dentro de um estado de
desenvolvimento? Eu diria mesmo que a igualdade é cada vez menos a regra, e o
preconceito cada vez menos a exceção”31. Por esse motivo, em sua proposta a
nova Constituição deveria proibir que alguém fosse prejudicado ou privilegiado
em virtude de nascimento, raça, cor, sexo, trabalho urbano ou rural, religião,
convicção filosófica, deficiência física ou mental, particularidade ou condição
social, o que em seu entendimento vedaria preconceitos contra homossexuais,
assim como ele dizia estar previsto na Constituição espanhola, e que renderia
ainda discussão nessa Subcomissão. De fato, as minorias que se manifestaram na
Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias
pleiteavam algo semelhante, sempre destacando a sua condição. Além disso, ele
colocava a necessidade da Constituição trazer em seu texto não somente o direito
à vida, mas a previsão do direito à vida e morte dignas, para que fosse também
fosse possível exigir condições da existência.
O tema fica explícito com as colocações dos Constituintes Eliel Rodrigues
(PMDB-PA) e Costa Ferreira (PFL-MA), que iniciaram as provocações sobre o
aborto na Subcomissão. O primeiro perguntava ao professor Cândido Mendes o
que pensava sobre a possibilidade de aborto nos casos de estupro e de risco de
vida para a mãe. O segundo se preocupava em estender o direito à vida
explicitamente até a vida intra-uterina, ressaltando que acreditava que a
Subcomissão era contrária ao aborto e que as mulheres estariam mais preocupadas
em garantir os direitos humanos para elas em igualdade com os homens32.
Interessante observar essa colocação de Costa Ferreira, pois obviamente aquelas
que se dedicavam aos direitos das mulheres iriam priorizar tais direitos, pois se
31
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 65.
32
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. PP. 67-68.
241
não o fizessem, que outro movimento iria tratar dos interesses feministas? Ainda
assim, ele ressaltava com uma certa indignação essa preferência das mulheres.
Cândido Mendes esclareceu que havia discussão sobre o tema na própria
Igreja, apresentando vertentes que entendiam dever ser priorizada a vida da mãe
tanto pela Igreja quanto pelo Direito, fazendo uso da doutrina do estado de
necessidade em prol da vida já existente e relevante socialmente, ou da “mãe de
prole ampla diante do filho emergente”33, ressaltando que entedia ser essa a
melhor opção por ser a de maior adesão juridicamente. O professor não respondeu
a pergunta em relação à hipótese de estupro. Em relação à pergunta de Costa
Ferreira, Cândido Mendes evitou um confronto direto com o Constituinte e iniciou
seu argumento colocando o exemplo da Constituição espanhola, por ser uma
sociedade democrática e que havia saído há pouco tempo de uma ditadura. De
acordo com Cândido Mendes, houve discussão semelhante em tal Constituinte,
mas a opção final foi por não salvaguardar a vida intra-uterina expressamente no
texto constitucional em virtude da dificuldade de caracterizar o início dessa vida.
Um dos fatores que não seriam favoráveis à defesa da vida intra-uterina de forma
tão marcada seria a impossibilidade da independência dessa vida fora da placenta,
ou seja, fora do corpo da mãe, o que é um argumento bastante forte. Em seguida,
Cândido Mendes afirmou que a redação proposta pelo Constituinte iria fechar as
portas para a possibilidade do aborto.
O Relator Darcy Pozza (PDS-RS) ainda perguntaria ao professor se não
seria mais adequado, em vez de colocar a expressão “particularidade ou condição
social” para a tutela dos homossexuais, incluir “orientação sexual”. Cândido
Mendes era favorável a essa tutela, mas acreditava que a expressão “orientação
sexual” não seria a melhor opção em virtude de ser dotada de elevada
subjetividade. Na verdade, a sua colocação sobre o tema foi bastante confusa, pois
em seguida disse que “orientação sexual” talvez fosse melhor, mas não tinha
certeza que a homossexualidade era um problema naquele momento34.
Posteriormente, será visto que o movimento de homossexuais presentes na
Constituinte já trazia a reivindicação pelo uso da expressão “orientação sexual”, o
que causou desconforto em alguns Constituintes.
33
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 67.
34
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 68.
242
Por fim, Cândido Mendes, a partir de provocação da Constituinte Lúcia
Braga (PFL-PB), defendia a impossibilidade de o Estado realizar uma política de
planejamento familiar impositiva. A ele caberia o resguardo da família e o
planejamento familiar ficaria a cargo das famílias, com o auxílio do Estado. Lúcia
Braga demonstrava preocupação com interesses multinacionais que supostamente
esterilizavam mulheres pobres, com o argumento do planejamento familiar.
Nesses termos, o planejamento familiar, para Cândido Mendes, não deveria ser
matéria de Estado. Este deveria ser um suporte para que as famílias tomassem
suas decisões sobre a quantidade de filhos que deveriam ter, bem como os
métodos adotados para evitar o crescimento da família. Esse assunto, na verdade,
esteve mais presente na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, mas
apareceu nessa Subcomissão de forma breve, demonstrando que esses temas
circulariam entre diferentes Subcomissões por serem matérias que não se
adequavam
necessariamente
às
divisões
temáticas
mais
sedimentadas
juridicamente. Os temas de gênero realmente atravessaram a Constituinte.
As discussões sobre gênero ficariam ainda mais presentes no decorrer das
reuniões da Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais. A décima reunião,
realizada em 28 de abril de 1987, contaria com a participação do Presidente do
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, Márcio Thomás Bastos e
da representante da OAB – Mulher do Rio de Janeiro, Leonor Nunes de Paiva.
Leonor foi a primeira a apresentar sua conferência, em que falava genericamente
sobre igualdade entre homens e mulheres e sobre o longo caminho percorrido
pelos movimentos feministas para concretizar essa igualdade, tendo a
Constituição de 1934 como um marco, na medida em que trazia pela primeira vez
a igualdade entre os sexos de forma expressa. Seu esforço foi no sentido de
demonstrar que a mera previsão da igualdade, especialmente da igualdade perante
a lei sempre foi insuficiente para a concretização da igualdade entre homens e
mulheres, pois até mesmo nas discussões que precederam a Constituição de 1934,
ainda se entendia que as mulheres não deveriam votar em virtude de uma
distribuição natural de tarefas, em que ao homem caberia a vida pública e à
mulher a guarda do lar35. Sendo assim, a representante da OAB – Mulher defendia
35
Leonor Nunes Paiva havia levado à Subcomissão o depoimento do Deputado Heitor de Souza
nos debates da Constituinte de 1934 sobre o voto feminino: “Uma divisão natural do trabalho e das
funções se tem estabelecido, perpetuado e acentuado constantemente entre os dois sexos. Ao
243
mecanismos para concretização da igualdade, resguardando os direitos de
interpretações que perpetuariam as desigualdades de fato entre os sexos. Márcio
Thomás Bastos, por sua vez, apresentou também proposta para a redação do artigo
referente ao direito à igualdade, com previsão de possíveis ações afirmativas para
efetivá-lo:
Todos são iguais perante a lei, que punirá, como crime, qualquer discriminação
atentatória aos direitos humanos.
§1° Ninguém será prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, raça, cor,
sexo, trabalho, religião, convicções políticas ou filosóficas, deficiência física ou
mental e qualquer particularidade ou condição social.
§2° O poder público, mediante programas específicos, promoverá a igualdade,
removendo os obstáculos que impeçam ou dificultem sua plenitude e facilitando a
participação de todos os cidadãos na vida política, econômica, cultural e social36.
Ressalte-se que, novamente, a questão dos homossexuais seria trazida, até
então, para a Constituição, pelos termos “particularidade ou condição social”,
evitando que se reconhecesse expressamente a orientação sexual como um
problema que ensejava situações de desigualdade. Não é possível afirmar o
motivo pelo qual as sugestões fossem nesse sentido. Isso pode ter sido em virtude
da dificuldade do reconhecimento de um problema, mas pode ter sido também
uma possibilidade de abertura de porta para o tema na nova Constituição, sem que
despertasse muito alarde, no intuito de evitar reações de grupos radicalmente
contrários aos homossexuais. De fato, o que ocorreu ao final foi a completa
exclusão dessa possibilidade do texto da Constituição, mas até aquele momento o
tema ainda foi debatido.
Após as exposições dos dois membros da OAB, o Constituinte Ubiratan
Spinelli (PDS-MT) demonstrou não ter minimamente compreendido a fala de
Leonor Nunes de Paiva, pois resumia tal palestra ao fato de as mulheres
reivindicarem tratamento da discriminação em virtude do sexo como crime
homem são destinados a vida pública e as funções que lhe são relativas; à mulher pertence a
guarda e o zelo do lar doméstico e a tarefa capital da primeira educação da infância. Assim, a
exclusão das mulheres do sufrágio não é arbitrária; ela deriva de uma lei natural, da fundamental
divisão do trabalho entre os dois sexos, que é tão antiga, senão como a humanidade, mas sem
dúvida como a civilização”. Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66).
Quarta-feira, 27 de maio de 1987. P. 90. Esse discurso do deputado ilustra boa parte do que foi
discutido ao longo do capítulo anterior. A fala do deputado demonstra que a expectativa social em
relação ao papel que as mulheres deveriam desempenhar nas famílias existia de fato, e era,
portanto, combatido pelas primeiras militantes feministas.
36
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 92.
244
inafiançável, em virtude da “fragilidade, a sua dificuldade de enfrentar o dia-a-dia,
o mundo moderno”, ressaltando que esse entendimento de Leonor Nunes de Paiva
estaria equivocado na medida em que as mulheres estavam conquistando espaço
ao lado de homens ultimamente, para finalizar lembrando às mulheres o lugar de
onde não deveriam sair: “Por outro lado, ninguém melhor do que a mulher tem o
direito de governar os nossos filhos. A mulher tem que cuidar do lar, dos filhos e
não deve esquecer-se disso”
37
. Eventualmente, esse tipo de lembrança acontecia
ao longo das Subcomissões, como se as mulheres traíssem o verdadeiro destinado
a ser cumprido por elas. Mais uma vez, observa-se como ocorre o processo da
ofensa, do “colocar em seu devido lugar”, apresentado teoricamente ao longo do
primeiro capítulo e na trajetória das lutas feministas no decorrer do segundo
capítulo.
Leonor Nunes de Paiva superou a observação em relação à fragilidade da
mulher, uma vez que ela não havia fundado a necessidade de medidas
garantidoras e promotoras da igualdade nessa fragilidade, mas sim ressaltado que
a fragilidade na qual as mulheres ainda se encontravam dizia respeito justamente
em preconceitos perpetuados pela legislação discriminatória. Para que fosse
possível a representante da OAB – Mulher continuar explicando sua proposta,
Dirce Tutu Quadros se manifestou no sentido de ceder seu tempo de fala à
palestrante, uma vez que era “uma das vinte e seis mulheres eleitas. De forma que
discriminação é um grande interesse meu”38. A Constituinte Dirce Tutu Quadros
trazia o argumento da “Bancada Feminina” promovendo aqueles que falavam
sobre direitos das mulheres, permitindo com que Leonor Nunes de Paiva
esclarecesse que as discriminações positivas não poderiam ser consideradas
inconstitucionais pela Constituição que estava em elaboração, ela já havia
afirmado que as minorias precisariam fazer uso delas para concretizar a igualdade.
Esclarecendo a outras indagações de Eliel Rodrigues e Antônio Mariz, Leonor
Nunes e Márcio Thomás Bastos apresentavam o projeto já em andamento das
delegacias especializadas para atendimento de mulheres vítimas de violência,
além de outros que poderiam ser desenvolvidos para colocar fim na discriminação
no trabalho.
37
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 93.
38
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 93.
245
Por fim, ambos foram interrogados como representantes da OAB sobre o
tema do aborto. Cabe ressaltar que nenhum dos dois colocou o assunto em
questão, mas sim foram solicitados que respondessem às provocações dos
Constituintes. Márcio Thomás Bastos não se manifestou pessoalmente sobre o
tema, somente afirmando que a própria OAB não tinha uma posição oficial. Já
havia ocorrido alguns eventos da própria OAB em que foram ensaiados projetos
para descriminalizar algumas hipóteses de aborto, mas o palestrante não dizia
quais seriam as outras hipóteses, além de ter esclarecido que na última conferência
usou-se de um artifício para não se debater um tema tão polêmico. Já Leonor
Nunes de Paiva afirmava que as advogadas do Rio de Janeiro discutiam o tema e
o tratavam como um problema de saúde da mulher, permitindo a ela a opção pela
maternidade39. Nessa Subcomissão, tal posicionamento foi questionado, mas não
houve, nesse momento um combate a essa posição.
Costa Ferreira (PFL-MA), antes de realizar mais perguntas sobre o tema,
fez questão de se colocar ao lado das reivindicações das mulheres por igualdade,
ressaltando também a importância de se garantir estabilidade no trabalho para a
gestante e para a lactante. Porém, o referido Constituinte dizia ser completamente
contrário ao aborto, salvo nas hipóteses já permitidas pela legislação penal, em
que a vida da mãe estivesse em risco ou gravidez decorrente do estupro, mas
nesse caso, com fundamento no fato de que se a mulher fosse casada, a gravidez
poderia gerar problemas com o marido, e não em decorrência de ter tido sua
integridade física violada. Além disso, dizia estar preocupado com a saúde da
mulher. Nas hipóteses permitidas pela lei penal, o aborto deveria ocorrer nas
melhores condições e com cuidados para que não houvesse qualquer risco à saúde
da mulher, mas ele pessoalmente entendia que o aborto era prejudicial à mulher,
revertendo o argumento feminista, e por isso não deveria ser permitido.
Justamente por sua preocupação com a saúde da mulher, o aborto não deveria ser
descriminalizado. “Acho que a saúde da mulher está acima de tudo (...) não nos
podemos tornar covardes, a fim de agradar uma minoria qualquer e dizer que
somos a favor do aborto, quando isso é prejudicial à mulher”40, solicitando, em
seguida que a representante da OAB – Mulher se manifestasse novamente sobre o
39
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 95.
40
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 96.
246
tema. Interessante notar que o Constituinte não percebia que o aborto somente era
um risco à saúde da mulher quando realizado em condições precárias, ocorridas
em virtude da criminalização da conduta.
Leonor Nunes de Paiva começaria a sua resposta falando sobre as
dificuldades de se realizar pesquisas na área em virtude da criminalização do
aborto. De qualquer forma, na época parecia que 2% dos leitos em maternidades
públicas eram ocupados por mulheres que recorriam aos hospitais com sequelas
decorrentes de aborto clandestino. Os procedimentos realizados eram bastante
precários, como o exemplo trazido pela própria Leonor do uso e agulhas de tricô
introduzidas no útero. Nesses termos, a criminalização do aborto era mais
prejudicial à saúde da mulher do que a possibilidade de praticá-lo em hospitais
públicos com médicos. Da perspectiva da saúde da mulher, a manutenção do
aborto como crime não se justificava, de acordo com Leonor. Ainda assim, Costa
Ferreira, apesar de contrário, foi mais aberto a uma discussão com Leonor Nunes
de Paiva do que outros Constituintes na Subcomissão da Família, do Menor e do
Idoso, que também enfrentou a questão. Ele afirmava a importância dessas
entidades de proteção à mulher dessem preferência a outros métodos como o uso
de pílulas, evitando a necessidade do aborto, reforçando que era contrário à
discriminação sofrida pela mulher grávida, inclusive fora do casamento, por mais
que não “houvesse pai”.
Ocorre que o aborto não era interpretado como um método contraceptivo
pela militância feminista, além disso, não se poderia partir do pressuposto que o
aborto era praticado somente por mulheres que tinham relações clandestinas.
Leonor dizia que a maioria era praticada por mulheres casadas e que
engravidavam de seus maridos. Porém, o que levava à prática do aborto nesses
casos era a falha no método contraceptivo. Portanto, ele não era percebido como
uma forma de contracepção, mas sim como um mecanismo último para não se ter
a obrigação de gerar um filho indesejado41. Sendo de forma diferente, a mulher
estaria condenada a assumir o risco do ônus de uma gravidez e da criação de um
filho ao exercer a sua sexualidade. Novamente, Costa Ferreira insistia na sua
41
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 96.
247
posição, mas assumia que discutia a questão na condição de homem, entendendo
que a mulher teria mais condições de decidir sobre o tema42.
A descriminalização do aborto não dependia de uma necessária
convergência de entendimento entre todas as mulheres. Por mais que um dia
deixasse de ser crime, nunca seria obrigatório, não sendo sequer obrigatório na
hipótese de estupro ou gravidez de risco. Esse aspecto parece ser banal, porém, há
confusão sobre o tema. Enquanto a permissão legal não obriga, mas possibilita
àquelas que desejam interromper uma gravidez que o façam em segurança, a
proibição simplesmente sujeita a todas as mulheres, vinculadas às mais variadas
concepções morais. A completa interdição do aborto, inclusive com as
possibilidades que a legislação brasileira já permitia, seria ainda mais séria, pois
obrigaria a mulher a colocar a própria vida em risco ou a levar adiante uma
gravidez decorrente de uma violência. Nesses termos, a colocação de Costa
Ferreira nesse trecho foi bastante interessante, pois tinha dimensão dos limites de
sua perspectiva.
Houve ainda duas manifestações de membros da sociedade civil na
Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais interessantes de serem
abordadas. A primeira foi a do professor de Direitos Constitucional da PUC-Rio
Carlos Roberto de Siqueira Castro, sobre “princípio da isonomia e igualdade da
mulher no Direito Constitucional” e a segunda de João Antônio de Souza
Mascarenhas, do grupo Triângulo Rosa, sobre o tema “o homossexual e a
Constituição”. O primeiro falaria na décima primeira reunião, no dia 29 de abril
de 1987, ou quinta reunião dedicada às audiências públicas, e o segundo no dia 30
de abril. O professor Siqueira Castro começou sua fala resgatando a história das
declarações de direitos, passando pela afirmação da igualdade, que teria sido
resguardado em todas as Constituições brasileiras, especialmente as do período
Republicano43. Apesar disso, o caminho percorrido pelo movimento feminista no
Brasil para implementar a igualdade entre os sexos havia sido intenso, em virtude
de legislações infra-constitucionais que tutelavam relações desiguais.
42
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. PP. 96-97.
43
O debate de Siqueira castro com os membros da Subcomissão se encontra em Diário da
Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de 1987. PP.
118-127.
248
Os exemplos trazidos por ele eram basicamente do Código Civil, como a
atribuição da chefia da sociedade conjugal ao marido, administração dos bens do
casal e definição do domicílio do casal. Além disso, ressaltava que o voto
feminino custou a ser aceito. Em seguida, Siqueira Castro passaria por um tema
muito
interessante,
apresentando
proposta
inovadora,
mas
que passou
despercebida: o problema do trabalho da mulher e das divisões de papeis. A
Consolidação das Leis do Trabalho trazia um capítulo destinado à proteção da
mulher, intitulado “Direito de proteção da mulher e do menor”, que proibia o
trabalho feminino em atividades insalubres e perigosas. Isso era incoerente porque
era uma norma protetiva, mas que fechava as portas de boa parte dos trabalhos
para mulheres. E se o trabalho era perigoso ou insalubre para mulheres, também o
era para homens. Siqueira Castro chamava atenção para o fato de toda a
construção civil, por exemplo, ter sido considerada atividade perigosa para
mulheres.
A norma da Consolidação das Leis do Trabalho que garantia a estabilidade
para a mulher nos quatro últimos meses da gravidez até oito meses após o parto
também gerava problemas para as mulheres. O professor apresentava uma
pesquisa feita no ABC paulista. Mulheres eram obrigadas mensalmente a
apresentar o absorvente menstrual à clínica da indústria ou a realizar exame
ginecológico para comprovar a ausência de gravidez. A intenção de proteção à
maternidade se voltava contra as mulheres. Nesses termos, a primeira solução
apresentada por Siqueira Castro era repetir normas escandinavas e da República
Federal da Alemanha que davam a estabilidade para a mulher desde a concepção,
evitando tais exigências. Além disso, trazia a legislação socialista como exemplo,
pois essa entendia que não somente era importante a presença da mãe em casa
para os cuidados com os recém nascidos, mas também a presença do pai. A
licença, portanto, deveria ser dada a pai e mãe, especialmente porque após o parto
a mulher precisaria da presença do homem em casa, e aqui está o aspecto mais
interessante da proposta de Siqueira Castro.
A proposta aparentemente simples seria bastante subversiva, pois
tradicionalmente no país essa era uma atividade feminina. As discussões eram no
máximo em relação ao período da licença, mas colocar as duas licenças em
condições de igualdade abalaria a estrutura primordial da divisão de papeis sociais
entre homens e mulheres. Indiretamente, esse direito, além de garantir a presença
249
do homem em casa cuidando também do recém-nascido, ainda iria ajudar a
reduzir as desigualdades entre homens e mulheres nas preferências de contratação
e de avanços nas carreiras. Além disso, ele ainda defendia a guarda compartilhada,
chamada por ele de “custódia conjunta” de filhos menores, questionando os
motivos pelos quais as mulheres estariam mais habilitadas a cuidar de crianças do
que os homens. Se a separação era um drama para crianças, se tornava ainda pior
quando essa separação implicava em uma divergência também na educação.
Sendo assim, se a convivência entre os pais era impossível, a educação deveria ser
atribuída aos dois, com ambos com o dever de sustentar a criança, dar atenção e
educá-la. Maternidade e paternidade não deveriam ser afetadas pela separação dos
pais. A proposta de Siqueira Castro era radical.
Defendia também que a emenda de Afonso Arinos à Constituição de 1967
prevendo a punição como crime para a discriminação em virtude de raça fosse
ampliada para abranger discriminação de raça e sexo, para garantir o combate às
discriminações de raça e sexo. Para comprovar a existência dessas discriminações,
Siqueira Castro pedia para que fossem observadas quantos negros e mulheres se
encontravam nas universidades naquele momento, assim como quantas mulheres e
negros haviam sido eleitos para a Assembleia Constituinte. Ao final de seu
discurso, trazia a experiência em Cuba, da existência dos tribunais populares, em
que a mulher poderia denunciar o marido por não dividir com ela as atividades
domésticas. Ainda afirmava que os cubanos tinham orgulho desse instituto, que
não havia na União Soviética, referindo-se às crônicas de feministas soviéticas
que denunciavam a dupla jornada enquanto o homem retornava para casa, tomava
“meia garrafa de vodka e se refestelava no sofá”44. Por fim, sobre a divisão de
tarefas domésticas entre homens e mulheres, ele falava:
Hoje, no Brasil, isso começa, um pouco, a ser feito pelas vias da traição do
capitalismo, porque a empregada doméstica começa a ser um gênero raro. Foi
absorvida pelo pátio das fábricas. Então, o capitalismo nos está traindo, a nós
homens, de algumas maneiras, porque já temos de dividir o trabalho doméstico, já
trocamos fraldas, já esquentamos o café da manhã, etc. Mas tudo isso à guisa de
uma liberalidade e de uma solução emergencial, e não de uma consciência
filosófica, sincera, e eu diria até ideológica em torno do tema45.
44
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 122.
45
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 122.
250
Salvo algum eventual equívoco na seleção do material analisado para o
presente estudo, ninguém falaria nesses termos das relações entre trabalho e casa,
das divisões de papeis entre homens e mulheres e de uma necessidade cada vez
mais concreta de se apontar a real arbitrariedade da separação absoluta de funções
entre homens e mulheres, para se conseguir estruturar em outros termos o mundo
público e o mundo privado. Interessante notar que a situação narrada por Siqueira
Castro, das dificuldades cada vez maiores de se conseguir empregada doméstica, é
bastante parecida com a atualidade. Se naquele momento as dificuldades pareciam
ser fruto de incorporação dessa mão de obra pelas fábricas, agora é em virtude de
uma distribuição de renda, que ainda que seja mínima, produz notórios impactos.
Sendo assim, o atual momento deve ser aproveitado para retomar esse debate de
forma mais incisiva, sob pena de se começar a gerar doutrinas que voltem a
valorizar a presença da mulher dentro de casa, pois quando não há mais a
possibilidade de se contratar alguém para exercer as funções domésticas, corre-se
o risco de se recair para somente um dos membros da família, qual seja, aquele
que tradicionalmente já executava esse papel, por mais paradoxal que possa
parecer o raciocínio.
Quando aberto o debate, a primeira a se manifestar foi Dirce Tutu Quadros
(PTB-SP), que novamente se dizia muito preocupada com relação à situação da
mulher. Porém, percebe-se que a preocupação de Dirce Tutu Quadros era outra.
Ela achava pertinente a estabilidade desde o início da gravidez em países como a
Alemanha, que tinham baixo crescimento populacional, mas pensava ser arriscado
no Brasil, em virtude de parecer um estímulo para as populações de baixa renda,
especialmente as mulheres carentes, a ter filhos. “A primeira coisa que a moça
faria seria engravidar. Isso seria um grande benefício para ela”46. Seguia seu
raciocínio perguntando se esse tipo de direito não deveria ser acompanhado do
direito ao aborto e do controle de natalidade por parte do Governo, propostas
essas completamente diferentes do que exigia o movimento feminista. A
fundamentação do aborto para as feministas não era o controle de natalidade, mas
sim com o interesse da tutela da saúde da mulher. Além disso, o controle de
natalidade era rejeitado, sendo diferente do planejamento familiar. Siqueira Castro
46
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 122.
251
respondeu esclarecendo que somente uma Constituição no mundo trazia a
previsão do aborto: a da Iugoslávia. Nos casos da Itália e dos Estados Unidos os
caminhos eram diferentes. A Itália havia passado por um referendo popular
alterando a legislação infraconstitucional e os Estados Unidos viabilizaram o
aborto pela decisão do caso Roe v. Wade, na Suprema Corte Americana em 1973.
Em seguida, Siqueira Castro também foi levado a se manifestar em relação
ao aborto no país. Ele também demonstrava cautela, ressaltando que sua opinião
era “muito pessoal, muito refletida sobre o assunto”47, para, em seguida, afirmar
que a criminalização do aborto era um desserviço à proteção da mulher. Para
fundamentar a sua posição, disse adotar o entendimento que a Suprema Corte
Americana havia adotado no caso Roe v. Wade, em que a questão do aborto e do
início da vida humana não era para ser definida por um tribunal, mas sim dizia
respeito a uma decisão de foro íntimo, de acordo com a filosofia e com a religião
de cada um. Não caberia ao Estado substituir a vontade da mulher em sua decisão
de ter ou não ter um filho, sendo assim, a legislação que criminalizava o aborto
deveria ser considerada inconstitucional. Afirmava que o planejamento familiar
era fundamental e que o Estado deveria assumi-lo, mas sem desconsiderar a
vontade das pessoas. Em relação ao tema do trabalho, apresentava dados
referentes às diferenças salariais entre homens e mulheres, demonstrando que as
funções mais repetitivas e mal remuneradas eram atribuídas às mulheres.
Finalizou sua resposta ressaltando que a descriminalização do aborto deveria
ocorrer por legislação infraconstitucional, ressaltando que ele deveria ser a última
solução, por ser dramático para a mulher, e que ela não deveria ser punida48.
Como relação ao discurso de Siqueira Castro, Costa Ferreira (PFL-MA)
ainda afirmava que entendia a luta da mulher por igualdade, mas que tinham
funções que os homens poderiam fazer melhor e outras que as mulheres tinham
melhor desempenho, mas sem que isso fosse fruto de discriminação. “Parece que
estamos exigindo demais. Devemos participar dessa luta da mulher pelos seus
direitos sem exigir demasiadamente dela, sem exigir coisas que sabemos ela pode
47
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 123.
48
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 123.
252
fazer, mas que ficam muito mais adequadas para o homem”49. E ainda seguia o
Constituinte, com a tradicional defesa da relação complementar entre homens e
mulheres:
se o mundo só tivesse homem seria uma solidão tremenda e todos se matariam.
(...) Tenho a impressão de que a mesma coisa se existisse só mulher. Isso prova
que um complementa o outro. (...) É por isso que tem que se partir a igualdade.
Agora, há coisas que o homem faz com muito mais eficácia e há coisas que a
mulher faz com muita eficácia50.
Após fazer a defesa da “igualdade partida”, ou seja, aquela que repetia a
atribuição de tarefas em virtude dos gêneros, Costa Ferreira afirmou que as
mulheres poderiam contar com ele em diversos aspectos, exceto para a votação do
aborto, em que estaria disposto a realizar restrições apesar de reconhecer que a
mulher seria melhor para pautar a discussão do tema.
Narciso Mendes (PDS-AC) demonstrou preocupação com a extensão da
licença ao homem prejudicar ainda mais o acesso da mulher ao mercado de
trabalho, preocupação essa impertinente, certamente homens de determinada
idade ou ainda sem filhos passariam a enfrentar mais problemas para ingressar no
mercado, assim como as mulheres. A Constituinte Lúcia Braga ((PFL-PB)
também pensava que a licença gestante deveria ficar restrita à mulher, para evitar
danos à produção do país51. Um membro da “Bancada Feminina” não percebeu o
quanto essa proposta poderia ser fundamental para se pensar a família de forma
completamente diferente e não só mais favorável às mulheres, mas também mais
favorável aos homens que desejavam passar mais tempo com seus filhos recémnascidos. Siqueira Castro esclareceu que em sua proposta o homem não se
afastaria do trabalho no período da gravidez, somente após o parto, momento em
que poderia ajudar a mulher, além disso, afirmou que a população brasileira não
teria filhos ao mesmo tempo, portanto, a produção não seria tão afetada.
Foi ainda levado a se manifestar sobre a violência familiar contra a
mulher, o que permitiu ao professor Siqueira Castro resgatar uma experiência
pessoal sua, ao acompanhar uma conhecida à delegacia, para realizar tal registro.
49
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 123.
50
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 124.
51
As ressalvas de Narciso Mendes e Lúcia Braga se encontram em Diário da Assembleia Nacional
Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de 1987. P. 124-125.
253
As dificuldades enumeradas por ele começavam no fato de as mulheres
demorarem a fazer o registro na delegacia em virtude da dependência,
especialmente econômica. Vencida essa etapa, começavam as dificuldades
institucionais. No caso em que ele acompanhou, ele foi obrigado a ameaçar
prender em flagrante pelo crime de prevaricação o escrivão, artigo 319 do Código
Penal, para que o registro da violência fosse feito. Tudo isso porque a violência
doméstica e familiar contra a mulher era tema ainda tratado como algo do âmbito
privado. Superada a etapa da delegacia, ainda havia as dificuldades de se fazer o
promotor dar atenção à situação, que em regra achava ser um problema menor
perto do roubo e do homicídio. Por fim, o problema enfrentado era no Judiciário,
cargo que, na época, era majoritariamente masculino, de acordo com Siqueira
Castro. Todas essas dificuldades se somavam com a falta de estatísticas sobre o
tema. Por fim, como forma de ilustrar como a cultura se encarregava de perpetuar
pequenos hábitos que garantiam as desigualdades de gênero, narrava a sua
experiência na criação dos próprios filhos:
Tenho em minha casa um verdadeiro laboratório sobre esse assunto, porque sou
pai de um casal de filhos. Então, é impressionante vermos o reforçamento (sic)
cultural. É claro que minha filha brinca com bonecas. Eu e minha mulher damos
bonecas para ela, mas o garoto tem bola de futebol. Mas, de vez em quando,
procuramos misturar as coisas, sentamos todos para brincar com os apetrechos da
menina, que às vezes participa do bate-bola com meu filho. Enfim, tentamos
diluir um pouco esse perfil orgânico-funcional, porque isso é forçosamente
hereditário. Por que ela brinca com boneca? Porque a boneca é a imagem da mãe
no lar, antes de mais nada, é o próprio ofício da maternidade prematuramente
exercido. V. Exª hão de contrapor: mas será que a menina não vai ser mãe no
futuro, não vai ter que embalar o filho? É claro que vai, mas ela não pode
investir-se desse ofício com o prejuízo da sua personalidade e sofrendo
discriminação em todo o resto. Esta é a questão. Ela tem que conceber a
maternidade como um grande espetáculo da vida, mas que não a faça sucumbir
como mulher, ou como ser humano. Este é o ponto. E o homem também não pode
utilizar a maternidade para estigmatizar a mulher52.
O grupo Triângulo Rosa se apresentou na décima segunda reunião da
Subcomissão, representado por João Antônio de Souza Mascarenhas. Cabe
ressaltar que esse grupo também se manifestaria na Subcomissão dos Negros,
Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. A fala começava com a
apresentação imediata da única grande reivindicação que os homossexuais fariam
52
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 127.
254
na Constituinte: a proibição da discriminação em virtude de orientação sexual,
conforme já acontecia em países como Holanda, Canadá e Estados Unidos53. Essa
reivindicação era apoiada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, que
também apoiaria, além dos homossexuais, as mulheres negras na Subcomissão de
Minorias. A fundamentação era no sentido de que o machismo gerava não
somente a discriminação contra as mulheres, mas também contra homossexuais.
No Brasil, o palestrante ressaltava que os homossexuais haviam começado a se
organizar no ano de 1978. O nome havia sido escolhido em homenagem aos
sessenta mil homossexuais mortos nos campos de concentração nazistas, que eram
identificados com o triângulo rosa, apontando a orientação sexual. A estratégia
também consistia na apresentação de legislações de diferentes países, como
Noruega, Suécia e Holanda que já davam direitos aos homossexuais. O último
proibia a discriminação e os dois primeiros a manutenção de um relacionamento
estável durante seis meses entre um estrangeiro e um norueguês ou sueco dava
permissão para o estrangeiro permanecer no país e exercer atividades
remuneradas. O discurso do representante do triângulo rosa será também
examinado na Subcomissão de Minorias.
O Constituinte Ubiratan Spinelli (PDS-MT) inicia com argumentos de
ordem moral, afirmando que o problema maior seria com homossexuais
masculinos do que com femininos, pois as mulheres eram “mais recatadas”54. A
preocupação com o “festival gay” já tinha sido expressa assim que foi anunciada a
presença dessa entidade na Subcomissão, demonstrando que tal grupo teria
problemas até mesmo para tratarem de forma séria a sua reivindicação. Na fala de
Ubiratan Spinelli, gays apareciam como pessoas extravagantes, que se envolviam
com drogas e ainda eram responsáveis por desencaminharem jovens de 15, 18 e
20 anos, na medida em que os convenciam a mudar a sua orientação sexual. Nesse
caso, a relação de ofensa era invertida pelo Constituinte. O grupo Triângulo Rosa
reivindicava o tratamento não discriminatório, porém, se via acusado de
corromper os jovens e de ofender a “individualidade de outras pessoas”55. O
Constituinte criou uma divisão de homossexuais em três categorias: homossexuais
53
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 127.
54
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 129.
55
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 129.
255
educados, comedidos, os gays que realizavam as perturbações e os travestis. Na
concepção de Ubiratan Spinelli o homossexual aceitável era aquele que não se
assumia ou que adotava uma performance em regra masculina.
Dirce Tutu Quadros (PTB-SP) também era resistente. Dizia que os
homossexuais poderiam contar com seu apoio, mas se preocupava como mãe de
seis filhos. Ela argumentava que pretendia apresentar projeto de controle de
natalidade, o que implicaria na inclusão da educação sexual em escolas. Nesses
termos, ela afirmava que gostaria que seus filhos tivessem filhos. Pode-se concluir
que o seu receio era que sendo apresentados à concepção de orientação sexual,
seus filhos se tornassem homossexuais e consequentemente não tivessem filhos.
Esse fantasma da educação sexual nas escolas iria percorrer toda a discussão sobre
“orientação sexual” no texto da Constituição. Além disso, ela relacionava a AIDS
aos homossexuais56. Ela perguntava ao representante do grupo Triângulo Rosa se
seria interessante incluir nessas aulas de educação sexual uma prevenção ao
homossexualismo.
A partir desse momento o representante passaria a responder perguntas
bastante agressivas, apesar dos homossexuais terem sido acusados dessa
agressividade, e que o obrigavam a uma exposição ampla de sua vida pessoal. Na
resposta elaborada a Dirce Tutu Quadros, João Mascarenhas afirmava que era
bastante feliz sendo homossexual e que, na verdade, o momento de sua vida em
que havia vivido em conflito e infeliz havia sido antes de se assumir como
homossexual. O Constituinte José Viana (PMDB-RO) ainda afirmava que sabia
que o homossexualismo não era mais considerado doença pelo Conselho Federal
de Medicina, mas ele ainda considerava como tal e que, de acordo com a Bíblia
condenava radicalmente esses atos. Finalizaria sua breve consideração dizendo
que se tivesse um filho assim, procuraria uma forma de tratá-lo, agradecendo o
fato de não ter tido nenhum filho homossexual. João Mascarenhas questionou a
formação profissional de José Viana, afirmando acreditar que ele não seria médico
e que os mais habilitados no país não consideravam a homossexualidade como
doença.
Eliel Rodrigues (PMDB-PA) também se manifestaria no sentido de
lamentar a condição do homossexual, dizendo que como ser humano, ele amava o
56
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 130.
256
seu próximo e que ficava profundamente triste por ver alguém “em tal situação”57.
Esses homossexuais, em sua concepção, eram fruto de grandes traumas e, apesar
de querer assegurar liberdade para os homossexuais, se sentia obrigado a falar que
ficava pesaroso dessas situações, pois um dia “terá de prestar contas diante de
Deus de seus atos, como todos nós”58. Interessante observar que a
homossexualidade, para ele, geraria essa obrigação de “responder diante de
Deus”, mas, como ele mesmo dizia, era uma obrigação pessoal de homossexuais.
Sendo assim, não havia sentido em sua preocupação, uma vez que não era
homossexual. João Mascarenhas esclarecia simplesmente que a Constituição não
obrigaria ninguém a se tornar um homossexual, o número de homossexuais não
aumentaria em virtude da proibição de discriminação pela orientação sexual59.
No mesmo trecho Lúcia Braga (PFL-PB) perguntaria sobre a adequação da
expressão “orientação sexual”, afirmando que também tinha receio em virtude da
educação sexual nas escolas. Nesses termos, por ser expressão ampla, poderia dar
margem a um professor homossexual induzir os alunos ao homossexualismo. A
homossexualidade era aceita pelos Constituintes, desde que escamoteadas e desde
que houvesse alguma garantia de que os membros de suas famílias não seriam
homossexuais. A preocupação era com a estabilidade das relações e com a adoção
das convenções sociais. Esses Constituintes desconsideravam que homossexuais
já existiam e que a proteção legal somente garantiria a possibilidade da não
violência e da felicidade nas relações pessoais. Interessante notar que o problema
era em torno da Constituição trazer ou não o termo “orientação sexual”. Os
homossexuais sequer reivindicavam a possibilidade de reconhecimento de união
estável ou casamento.
João Mascarenhas defendeu a expressão por ser a empregada já em
legislações de diferentes países, além de ser utilizada pela Antropologia e pelo
Direito. A expressão proposta para substituí-la, “particularidade social”,
defendida, inclusive por Cândido Mendes, era muito ampla, além de não encontrar
nenhum apoio em legislação ou literatura sobre o tema. Em relação ao ensino da
educação sexual, João Mascarenhas afirmava que da mesma forma que um
57
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 131.
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Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 131.
59
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 131.
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professor homossexual poderia induzir os alunos à homossexualidade, um
professor heterossexual poderia induzir as alunas à terem com ele práticas sexuais.
Nesses termos, ambos os professores deveriam ser responsabilizados. O problema
era que o homossexual era visto como um ser com sexualidade exacerbada, o que
decorria de preconceitos sociais. Em seguida Lúcia Braga esclareceu que sua
preocupação, na verdade, era com o fato de a expressão “orientação sexual”
passar a impressão de que. Sua preocupação não era propriamente com o receio de
o professor corromper o aluno, pois sabia que professores heterossexuais
corrompiam alunas se não tivessem ética. “Nossa preocupação, como mãe, seria a
de nosso filho ainda adolescente tender para o homossexualismo, induzido pelo
mestre, pela força que o professor tem diante do aluno”60. Nesse sentido, sua
proposta era que o texto constitucional trouxesse o termo “comportamento
sexual”, pois em seu entendimento seria menos ampla.
O único Constituinte a abraçar a causa trazida por João Mascarenhas foi
Luiz Salomão (PDT-RJ), que apontava a necessidade da nova Constituição
reconhecer a homossexualidade como um fato natural não muito explicado ainda e
que, em virtude da não explicação, sofria com os preconceitos sociais,
especialmente em relação à AIDS, que ajudava a estigmatizar o grupo61. Trazia
ainda aspectos de legislação de outros países, como a Suécia, que já discutia a
possibilidade de o parceiro homossexual herdar. Sendo assim, apesar da forma
como os demais Constituintes tratavam a questão, Luiz Salomão perguntava a
João Mascarenhas se não achava melhor o grupo reivindicar ainda mais direitos,
pois os Constituintes “que têm pensamento democrático, esse pensamento
antipreconceituoso, estaríamos dispostos a patrocinar emendas tendentes a
eliminar
essa
fórmula
odiosa
de
discriminação
dos
cidadãos”62.
Surpreendentemente, enquanto os demais grupos minoritários pediriam sempre a
mais, o grupo Triângulo Rosa sabia das dificuldades que seriam enfrentadas.
Nesses termos, João Mascarenhas ressaltava que sabia que a incorporação da
expressão “orientação sexual” para tutelar homossexuais de preconceitos, mas que
esse seria o primeiro passo para, posteriormente, conseguir mais conquistas nas
60
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 132.
61
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 132.
62
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 66). Quarta-feira, 27 de maio de
1987. P. 133.
258
legislações infra-constitucionais. Talvez pensasse que se insistisse em mais
direitos, as portas poderiam se fechar até mesmo para essa proteção. Essa
expressão seria ainda bastante combatida nessa Subcomissão63.
A décima quarta reunião seria dedicada à sétima reunião para audiência
pública da Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, no dia 5 de maio de
1987. Em relação aos temas de gênero, ainda haveria nessa reunião a apresentação
do professor Hélio Santos, do Centro de Estudos Afro-Brasileiros, sobre
“Isonomia nos Direitos e Garantias Individuais” e a apresentação de médico
Herbert Praxedes, professor da Faculdade Fluminense de Medicina, dedicando-se
à palestra “O direito a vida deve ser respeitado desde a concepção”, com a
projeção de um filme sobre o aborto.
A apresentação do professor Hélio Santos foi destinada à defesa da
criminalização da discriminação contra mulheres e negros. Sua fala não foi longa,
porém, foi interessante em virtude de sua defesa conjugando os problemas de raça
e de gênero. Afirmava que essas discriminações eram decorrentes de diferentes
fatores e não da mesma origem, mas ambas decorriam de fatores culturais que
colocavam mulheres e negros em situações de desigualdade. Sua proposta era
“lutar por uma isonomia ampla”64, para combater processos educacionais que
reforçavam os preconceitos de raça e gênero. Apesar da sua proposta de um
mandato de criminalização na Constituição, o tema não suscitaria debate ao longo
da reunião, ao contrário da preocupação de alguns Constituintes com os
homossexuais, que apesar de não terem participado de nenhuma outra reunião,
ainda gerava impacto e desconforto, conforme a declaração de José Mendonça de
Morais (PMDB-MG), que reclamava de um discurso sobre Segurança Pública não
ter merecido a presença da imprensa naquele dia, ao contrário do que havia
acontecido na reunião com o Triângulo Rosa:
63
Para auxiliar a ilustrar as dificuldades enfrentadas pelo grupo Triângulo Rosa, em sua
reivindicação, cabe mencionar uma passagem da segunda reunião da Comissão da Soberania e dos
Direitos e Garantias do Homem e da Mulher, no dia 07 de abril de 1987, em que foi realizada a
divisão dos Constituintes entre as Subcomissões. Sobre homossexuais, dizia o Constituinte João de
Deus Antunes, citando a Bíblia: (...) Mas o Senhor também condena. Ele diz: “Quanto aos
covardes, aos incrédulos, aos abomináveis, aos sodomitas, aos homossexuais, aos feiticeiros e a
todos os mentirosos, a sua parte será anulada no que arde com fogo, enxofre, que é a segunda
morte”. Na tradução bíblica a “segunda morte” quer dizer o poder do inferno. É para eles que está
reservado isso. Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 78). Quarta-feira,
17 de junho de 1987. P.19.
64
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 78). Quarta-feira, 17 de junho de
1987. P. 27.
259
Sr. Presidente, estou estranhando, nesta manhã, a ausência do pessoal da
imprensa (...). Sei que fatos menores trouxeram aqui a imprensa, e o Brasil inteiro
tomou conhecimento, por exemplo, da supervalorização que se deu à exposição
que defendia os direitos dos homossexuais. Quando temos uma pauta rica, como
a de hoje, ninguém vem aqui. (...) Por isso é que a Constituinte é vilipendiada por
aí a fora: os grandes momentos passam despercebidos e os pequenos e até
irrelevantes são exageradamente publicados, através da imprensa65.
Apesar de essa reunião ter contado com o total de seis apresentações de
representantes da sociedade civil sobre os mais variados temas, a exposição que
gerou maior debate foi a de Herbert Praxedes, com a defesa do direito à vida
desde a concepção. Porém, o tema não ganharia a dimensão que teve na
Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso. A estratégia de qualquer
representante que falasse contrariamente ao aborto sempre iniciava de forma
semelhante, com o argumento da cientificidade que dava à questão: “nossa
delegação aqui é para brevemente expor alguns tópicos bastante científicos com
relação aos direitos e garantias do indivíduo desde quando começa a vida.
Cientificamente é indiscutível que a vida humana começa desde a junção dos
gametas”66. O maior problema desse tipo de discurso é atribuir a uma disputa
eminentemente de concepções morais o aspecto de científica a somente um dos
dois lados. Os palestrantes anteriores que haviam se manifestado sobre o tema por
solicitação da Subcomissão eram do Direito e todos eram favoráveis à
descriminalização do aborto, mesmo o professor de Direito Constitucional
Siqueira Castro. O argumento seguinte era a afirmação de que desde o início o
feto responderia à dor, com uma solicitação de apresentação de um filme sobre o
aborto. Porém, o Presidente Antônio Mariz negou a apresentação naquele
momento67. Até esse momento, reação dessa Subcomissão foi diferente da
Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, que cedeu mais facilmente às
solicitações aqueles que falavam contrariamente à interrupção da gravidez.
Seguia, portanto, a exposição com o palestrante confirmando a
possibilidade de o embrião responder à dor um pouco antes dos três meses de
65
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 78). Quarta-feira, 17 de junho de
1987. P. 29.
66
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 78). Quarta-feira, 17 de junho de
1987. P. 31.
67
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 78). Quarta-feira, 17 de junho de
1987. P. 31.
260
gravidez, a partir de constatações como a atividade elétrico-cerebral, cardíaca e
respiratória, além de movimentos espontâneos, para afirmar em seguida que “um
filho não é parte do corpo materno. (...) Não há uma hemácia, um glóbulo
vermelho sequer da mãe que circule no feto, em situação normal ou vice-versa”68.
A estratégia de Herbert Praxedes era descolar completamente o embrião do corpo
materno, mostrando as suas independências. Em seguida, o médico combateria o
dispositivo intra-uterino, que impediria a nidação, e a pílula do dia seguinte como
métodos abortivos, pois a concepção ocorreria dentro da trompa. No final de sua
fala ele afirmaria que o aborto não poderia ser descriminalizado, por ferir o direito
à vida.
Algumas inconsistências podem ser demonstradas na fala do médico, sem
que para isso seja necessário discutir a partir de conceitos médicos. A primeira
delas é a defesa da concepção como marco do início da vida. Se em seu
argumento anterior ele defendia que a partir somente de um determinado
momento da gravidez, o embrião sentiria dor, teria atividade cerebral, cardíaca e
respiratória, esse seria seu argumento forte para impedir o aborto, porém, não o
possibilitaria dizer que a pílula do dia seguinte e o dispositivo intra-uterino
deveriam ser proibidos. A segunda inconsistência percorre os discursos contrários
à descriminalização do aborto: a desconsideração do corpo da mulher. A defesa da
autonomia do embrião procede até um determinado limite, pois fora do corpo da
mulher o embrião ainda não se desenvolve e isso demonstra que o embrião não é
independente e autônomo. Portanto, apesar de ter funções cardíacas e atividade
cerebral a partir de um determinado momento, ele precisa do corpo materno para
se desenvolver. Por conta disso, esse corpo não pode ser ignorado, sob pena de
instrumentalizá-lo. Isso implicaria em reduzir a mulher não à função da
maternidade, desenvolvida socialmente, mas somente à função biológica de
carregar o embrião, o que não é diferente do processo de objetificação da mulher.
Esse processo de objetificação fica mais forte nas defesas realizadas pelos
representantes do movimento pró-vida que tentaram proibir as hipóteses legais de
aborto em caso de risco para a vida da mulher e de aborto em caso de gravidez
decorrente do crime de estupro. No primeiro caso, em regra diz-se que a medicina
já resolveria a situação sem precisar recorrer ao aborto. A inconsistência nessa
68
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 78). Quarta-feira, 17 de junho de
1987. P. 31.
261
primeira hipótese será demonstrada na Subcomissão da Família, do Menor e do
Idoso, na fala do próprio médico que defendeu a completa possibilidade de
intervenção da medicina para salvar mãe e feto. No segundo caso, esses
representantes somente se limitavam a dizer que um erro não justificaria o outro e
que o agressor não era o feto, desconsiderando a mulher que sofreu a violência e
que continuará a conviver com a repetição da violência, utilizando os termos de
Judith Butler69.
A exibição do filme aconteceu ao longo dos debates com os palestrantes e
José Mendonça de Morais (PMDB-MG) e Costa Ferreira (PFL-MA)
manifestaram-se dizendo que apresentariam proposta de artigo para a Constituição
de tutela da vida desde o primeiro momento da concepão. Já Joaquim Hayckel
(PMDB-MA) dizia ter sido favorável ao aborto até o momento em que assistiu ao
filme, que teria “embrulhado seu estômago”, em suas próprias palavras. 70. Porém,
a peculiaridade de Joaquim Hayckel dizia respeito ao fato de defender até então o
aborto em virtude do problema do menor abandonado no país, o que demonstra
que tratava o tema de forma inadequada. O sentido da descriminalização do aborto
defendida pelo movimento feminista nunca havia sido para resolver o problema
do menor abandonado e sim para não punir criminalmente a mulher em uma
situação que ela já enfrentava grandes dilemas morais, cujas consequências tanto
da realização do aborto como da decisão de prosseguir com a gravidez sempre
recaíam, sem exceção, sobre ela e sobre seu corpo.
Nas reuniões seguintes o tema da tutela da vida desde a concepção geraria
muitas discussões na Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, para a
elaboração do anteprojeto da Subcomissão a ser enviado para a Comissão da
Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da mulher. A orientação sexual
também seria constantemente problematizada, talvez sendo esses os grandes
temas de gênero que estiveram em disputa na Subcomissão e na Comissão.
Houve, portanto, uma polarização das discussões sobre gênero para esses dois
temas. Em alguns momentos, discussões sobre censura e liberdade nos meios de
comunicação também aconteceram, com grande destaque para argumentos morais
69
Herbert Praxedes não somente era contrário à descriminalização do aborto como defendia que o
aborto em casos de gravidez de risco e de estupro fosse proibido. Diário da Assembleia Nacional
Constituinte (Suplemento ao n° 78). Quarta-feira, 17 de junho de 1987. P. 44.
70
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 78). Quarta-feira, 17 de junho de
1987. PP. 40-41.
262
e poucas referências para o problema da objetificação do corpo feminino nesses
meios de comunicação. Essa discussão também aconteceu na Subcomissão da
Família, do Menor e do Idoso e aparecerá na análise a ser feita posteriormente. De
qualquer forma, algumas indicações e mapeamentos dos debates serão apontados
em nota de rodapé71.
Em relação aos trabalhos da Subcomissão de Direitos e Garantias
Individuais, a partir desse momento as reuniões seriam destinadas somente para
discussões sobre as propostas dos Constituintes, já estando superada a etapa de
audiências públicas. Cabe ressaltar que qualquer Constituinte poderia encaminhar
sugestão para qualquer Subcomissão ou Comissão, independente de pertencer ou
não a ela. Porém, somente poderiam votar os titulares, e, em caso de ausência, os
suplentes das Subcomissões e Comissões72. Nesses termos, a vigésima reunião,
ocorrida no dia 11 de maio de 1987, foi dedicada à apresentação do Anteprojeto
da Subcomissão pelo Relator Darcy Pozza, que fez a leitura de todo o documento,
ressaltando que foram recebidas 1.121 (mil cento e vinte e uma) propostas, das
quais 730 (setecentas e trinta) haviam sido acolhidas total ou parcialmente por ele.
Em relação aos temas em discussão, o projeto apresentava as seguintes propostas:
Art. (...) São direitos e garantias individuais:
I – A vida. Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de trabalhos forçados,
de banimento ou de confisco, ressalvados, quanto à pena de morte, a legislação
aplicável em caso de guerra externa e, quanto à prisão perpétua, os crimes de
estupro ou sequestro, seguido de morte. Será punido com crime o aborto
diretamente provocado.
II – A cidadania. São assegurados iguais direitos e deveres aos homens e
mulheres, no Estado, na família, no trabalho e nas atividades políticas,
econômicas e culturais. São gratuitos todos os atos necessários ao exercício da
71
A mesma reunião que contou com Herbert Praxedes também teve a participação de Arésio
Teixeira Peixoto, Presidente da Associação Nacional dos Censores Federais, falando sobre
“Censura de Diversões Públicas”. O palestrante defendia a censura de espetáculos, mas somente
classificatória, que considerava a mais pertinente. “A censura existe para isso, não para castrar,
atrapalhar o criador, mas para estabelecer barreiras no sentido de o espetáculo ser adequado à
criança. Com relação ao maior não deve haver censura”. Diário da Assembleia Nacional
Constituinte (Suplemento ao n° 78). Quarta-feira, 17 de junho de 1987. P. 28. Os Constituintes
Eliel Rodrigues e Costa Ferreira reagiram de forma mais incisiva à fala do palestrante. Enquanto
ele somente trazia a proposta de classificar esses espetáculos em virtude da responsabilidade do
Estado com o menor, os Constituintes foram além, passando por condenações religiosas “porque
Ele vai julgar”, pelo resguardo dos valores morais e da família. Essas manifestações podem ser
encontradas no mesmo diário, PP. 42 e 43.
72
Foi realizada uma consulta ao Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, que decidiu que
todos os Constituintes poderiam apresentar propostas para as Subcomissões. Esse esclarecimento
está no Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 82). Quarta-feira, 24 de
junho de 1987. P. 39.
263
cidadania. Todos tem o direito de participar das decisões do Estado e de
contribuir para o contínuo aperfeiçoamento das instituições.
III – A igualdade perante a lei. Será punido, como crime inafiançável, qualquer
tipo de discriminação. Ninguém será prejudicado ou privilegiado, em razão de
raça, sexo, cor, estado civil, idade, trabalho rural ou urbano, credo religioso,
orientação sexual, convicção política ou filosófica, deficiência física ou mental ou
condição social.
§ 21. A lei regulará o direito da presa provisória ou condenada, que tenha filho
lactente. É dever do Estado manter locais apropriados, nos estabelecimentos
penais, para possibilitar a amamentação73.
Após a leitura do anteprojeto, o Constituinte Eliel Rodrigues (PMDB-PA)
se manifestou para parabenizar o trabalho do Relator e para arguir se as emendas
que poderiam ser apresentadas ao anteprojeto poderiam ser supressivas. Ao obter
a resposta positiva, ele avisou em seguida que apresentaria emenda supressiva
para retirar do texto o termo “orientação sexual”, porque “em relação ao problema
do homossexual, tenho uma discordância a fazer”74. Interessante observar como a
orientação sexual no texto constitucional gerava grande desconforto. Também é
interessante observar que, em regra, aqueles que se manifestavam contrariamente
à expressão também eram contrários aos direitos sexuais e reprodutivos da
mulher.
A partir da vigésima segunda reunião da Subcomissão, ocorrida em 14 de
maio de 1987, os Constituintes debateriam a proposta do relator, já indicando
quais seriam os artigos que seriam alvos de emendas. Lúcia Braga (PFL-PB) foi a
primeira a falar combatendo a possibilidade de pena de morte em virtude do que
ocorria mesmo nos casos de estupro, em que somente pobres eram punidos. Na
verdade, ela não percebeu que a proposta fazia referência à prisão perpétua, mas
muito provavelmente ela teria o mesmo entendimento. Esse também era o
entendimento do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, o que não
significava a condescendência com o crime de estupro, mas reconhecia que
haveria disparidade na punição de réus, dependendo da classe deles, o que
implicaria, de acordo com Lúcia Braga, em uma permissão para matar pobres75.
73
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 82). Quarta-feira, 24 de junho de
1987. PP. 33-34.
74
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 82). Quarta-feira, 24 de junho de
1987. P. 35.
75
Nesse debate a Constituinte faz referência ao caso de Ana Lídia Braga, criança que foi estuprada
e morta, cujos responsáveis não foram punidos por pertencerem à elite de Brasília, além da
suspeita do próprio irmão da crianças estar envolvido no crime, acusado de ter entregue a menina
ao assassino. No mesmo ano a menina Araceli Cabrera Cresco também foi estuprada e morta no
264
Também já indicava que apresentaria emenda em relação ao aborto. Ela não
questionava a criminalização do aborto, mas entendia que a redação do
anteprojeto poderia fazer com que as hipóteses permitidas no Código Penal
passassem a ser proibidas. Nesses termos, anunciava que apresentaria emenda
para excluir da vedação constitucional o aborto no caso de gravidez decorrente de
estupro e de má formação do feto.
Um grande debate sobre punições passava a acontecer na Subcomissão,
apesar de Lúcia Braga lembrar que ali não estava em elaboração um projeto de
Código Penal. José Mendonça de Morais (PMDB-MG), por exemplo, era
radicalmente contra o aborto, citando referências da Bíblia e equiparando o aborto
e a eutanásia ao homicídio, além de mencionar a suposta comprovação científica
de que a vida humana estaria completa com a junção de espermatozoide com o
óvulo. Defendeu também nessa reunião a prisão perpétua para o crime de roubo,
afirmando que o roubo era sempre premeditado e o estupro não. Interessante sua
concepção sobre a pena de prisão perpétua, como uma forma de morte civil. A sua
defesa da vida se dizia “absoluta”, mas seu posicionamento absoluto e “cristão”
retirava a guarda constitucional da integridade física e psíquica de homossexuais,
desconsiderava a saúde da mulher e a sua integridade física e permitia que alguém
fosse excluído permanentemente da sociedade como cumprimento de uma pena.
Sua concepção de vida se dizia ampla, mas na verdade, era bastante restrita. A
sociedade teria o direito de eliminar, e esse era o termo usado pelo Constituinte,
alguém de seu convívio social. Como justificar a prisão perpétua e punir o aborto?
O Constituinte dava o limite a Deus, afirmando que não era o ato sexual que
gerava a vida, portanto, a legislação poderia prever prisão perpétua, mas deveria
proibir o aborto.
Acho que de acordo com o instinto de defesa, a sociedade tem que ficar livre do
criminoso, do matador. Mas com base na concepção cristã que tenho da vida e no
respeito que tenho por ela, creio que não podemos invadir a área da atribuição do
Espírito Santo e seus assassinos não foram punidos pelos mesmos motivos, envolvendo mesmo
filhos de políticos, enquanto que o pai da vítima era eletricista. No caso de Araceli, ainda tentaram
incriminar um idoso negro e com problemas mentais que andava pelas ruas da cidade. Informações
sobre o caso de Ana Lidia podem ser encontradas no site do Ministério Público do Distrito Federal
em http://www.mpdft.gov.br/comunicacao/site/arquivos/memoria2.pdf. Já informações sobre
Araceli
podem
ser
encontradas
em
http://diganaoaerotizacaoinfantil.wordpress.com/2007/10/23/araceli-simbolo-da-violencia/. A fala
de Lúcia Braga está em Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 82).
Quarta-feira, 24 de junho de 1987. P. 42.
265
ser superior que dá a vida e pode tirá-la, que é Deus. Não damos a vida; somos
instrumentos de sua transmissão. Eu sozinho, não dou vida a ninguém; há um
concurso da outra parte. Somos agente (sic) da transmissão da vida. Se não
houver a junção dos dois elementos componentes da vida, ela não existirá. E não
é a prática do ato sexual que gera a vida; ele é o meio que possibilita a
transmissão de vida. A vida é uma atribuição de um ser superior, que na minha
concepção é Deus. Tirar essa vida também só cabe a Ele – quem a dá pode tirála76.
O Constituinte Jairo Azi (PFL-BA) tentaria pressionar José Mendonça de
Morais, mostrando o problema que seria a tutela constitucional da vida desde o
momento da concepção. Nesses termos, perguntava a José Mendonça de Morais
se, com a realidade da reprodução in vitro, o que aconteceria se alguém deixasse a
proveta cair com o embrião. Haveria alguma responsabilidade? Ainda caberia a
pergunta sobre que responsabilidade seria essa, se poderia ser de ordem penal.
Haveria nessa hipótese um crime contra a vida? Da mesma forma, Jairo Azi
perguntava como o Direito iria lidar com os crimes contra as mulheres grávidas,
deveriam ser eles considerados em dobro? Essas perguntas irônicas eram
pertinentes, na medida em que José Mendonça de Morais também advogava em
prol da autonomia do embrião em relação à mulher77. Os Constituintes Narciso
Mendes (PDS-AC) e Nyder Barbosa (PMDB-ES) também se manifestavam
contrários à prática do aborto, mas apresentando, como uma contrapartida, a
preocupação com o planejamento familiar e com o crescimento demográfico. Eles
ainda tratavam os temas do planejamento família, aborto e controle de natalidade
como semelhantes, apesar dos movimentos feministas terem diferenciado os três
sempre que possível na Constituinte.
Ao longo da vigésima terceira reunião da Subcomissão, em 15 de maio de
1987, Eliel Rodrigues iria falar em sentido contrário à inclusão da vedação à
discriminação em virtude da “orientação sexual” e Lúcia Braga para defender a
emenda permitindo o aborto em caso de estupro, risco de vida e má formação do
feto, ampliando um pouco o rol de permissões do próprio Código Penal. Em sua
emenda, Lúcia Braga contou com o apoio de Costa Ferreira, que reconhecia que
76
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 82). Quarta-feira, 24 de junho de
1987. P. 43. Ao mesmo tempo, José Mendonça de Morais ingressaria em uma discussão paralela
com Jairo Azi sobre os limites da tutela da vida do óvulo e do espermatozoide e a realidade da
reprodução assistida. Eutanásia e reprodução assistida também geravam problemas semelhantes e
retornavam em algumas das discussões sobre o aborto.
77
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 82). Quarta-feira, 24 de junho de
1987. PP. 43-44.
266
os palestrantes haviam defendido a proibição de qualquer espécie de aborto, mas
que achava que essas ressalvas da Constituinte eram importantes, pois não se
poderia obrigar uma mulher a levar até o final uma gravidez fruto de uma
violência. Além disso, Costa Ferreira chegou a ponderar que fosse concedida ao
médico maior liberdade de atuação caso identificasse uma gravidez de risco, pois
ele, que acompanhava a grávida de perto, seria melhor do que qualquer outro para
decidir sobre o tema de forma precisa, sem considerações genéricas. Por fim,
afirmava que “no concernente os demais, entendo que a vida tem que ser
preservada desde a concepção, e o aborto deve ser proibido terminantemente,
principalmente quando é feito, para, digamos, fazer charme”
78
(grifo nosso).
Resta saber como seria configurada a hipótese de um aborto para “fazer charme”,
com mulheres se submetendo a tal procedimento de forma ilícita e colocando em
risco a própria saúde. Essa hipótese mais se assemelha a um ato desesperado do
que a uma pretensão de “fazer charme”. O Presidente Antônio Mariz defenderia
que o tema sempre havia sido tratado em legislação ordinária, o que era
procedente e que as ressalvas de Lúcia Braga eram importantes para não se excluir
as possibilidades trazidas pelo Código Penal.
Eliel Rodrigues (PMDB-PA), em seguida, iniciava a defesa de sua
proposta, sempre apoiado em “princípio religioso, evangélico”79. Relacionava em
sua fala os casos de AIDS ao fato de homens deixarem “o uso natural da mulher”
para relacionarem-se com outros homens. Sua fundamentação foi completamente
retirada da Bíblia, não apresentando nenhuma outra justificativa para que o texto
Constitucional não vedasse a discriminação de homossexuais pela expressão
“orientação sexual”. Os mis variados posicionamentos sobre o tema seriam
apresentados a partir de então e constantemente as questões apresentadas nos dois
capítulos anteriores surgem nesses diálogos. Rita Camata (PMDB-ES) ressaltou o
aspecto importante: a vedação da discriminação em virtude da orientação sexual
não implicava em uma legalização da homossexualidade, ou em uma grande
transformação na sociedade, na qual os homens de repente se transformassem em
homossexuais a partir da tutela constitucional, porque pelo encaminhamento do
debate, parecia ser esse o receio. Maguito Vilela (PMDB-GO) e Antônio Mariz
78
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 82). Quarta-feira, 24 de junho de
1987. P. 53.
79
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 82). Quarta-feira, 24 de junho de
1987. P. 53.
267
(PMDB-PB), assim como Rita Camata, eram os poucos a defender a proposta
original, ressaltando que tal expressão não seria um estímulo à promiscuidade80.
Costa Ferreira (PFL-MA) entendia que os homossexuais deveriam ser
“recuperados” ou deveriam ter a chance de abandonar essa vida para se casar. “A
mulher foi feita justamente para exercer esse papel feminino, de ser companheira
do homem, complementando o homem e vice-versa”81. Nyder Barbosa (PMDBES) iniciou suas considerações afirmando não ter qualquer ligação com nenhuma
igreja, mas dizia-se preocupado com o aumento de práticas que atingiriam a
moral, sendo um problema tanto a homossexualismo masculino quanto o
feminino. Para dar força a seu argumento, o Constituinte fazia referência a Fidel
Castro, que teria afirmado ser o homossexualismo uma prática do capitalismo, “de
gente que não tem nada para fazer”82. As relações homossexuais eram tratadas
como promíscuas, e, da mesma forma, desconsideravam a possibilidade de que
relacionamentos heterossexuais também podiam ser promíscuos, apesar de
saberem que nem toda a prática de ato sexual entre heterossexuais resguardava
“moral”, “bons costumes” e eram sempre voltadas para o fim último da
reprodução humana.
Ubiratan Spinelli (PDS-MT) defendeu, em seguida, a alteração da
expressão, lembrando novamente a proposta de Cândido Mendes. Em vez de
“orientação sexual”, a nova Constituição deveria trazer “comportamento sexual”,
com o receio de que essa expressão implicasse em uma naturalização da
homossexualidade, no que era acompanhado por Lúcia Braga, que já havia se
manifestado no dia da fala do representante do Triângulo Rosa e agora retomava o
tema. Essa expressão, de acordo com Lúcia Braga, permitiria o respeito à
liberdade individual, sem colocar a aparência de que em termos de sexualidade
haveria muitas opções. O medo era que tal expressão realmente produzisse um
impacto capaz de estimular o aumento de homossexuais83.
80
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 82). Quarta-feira, 24 de junho de
1987. PP. 56-57, respectivamente.
81
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 82). Quarta-feira, 24 de junho de
1987. P. 54.
82
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 82). Quarta-feira, 24 de junho de
1987. P. 55.
83
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 82). Quarta-feira, 24 de junho de
1987. PP. 55-56.
268
Antônio Câmara (PMDB-RN), José Fernandes (PDT-AM) e Lúcia Vânia
(PMDB-GO) também aderiram à alteração da expressão, com receio de que o
Estado indiretamente e as escolas diretamente, nas aulas de educação sexual,
promovessem a homossexualidade. “Essa orientação seria realmente para
propagar no bom sentido o sexo. Daí porque lendo isso, aqui, fiquei assustada,
porquanto dá a impressão de que vamos dar uma aula em relação àquilo que
aceitamos”84. Sobre o aborto, Lúcia Vânia reconheceu que o filme apresentado
tinha a intenção de realizar um convencimento psicológico sobre a mulher,
gerando culpa, mas esquecendo dos reais problemas enfrentados pela mulher
brasileira decorrentes de gravidez indesejada. Logo em seguida Maguito Vilela
(PMDB-GO) mudava sua posição, entendendo que a expressão “comportamento
sexual” seria a mais adequada85.
A discussão sobre “orientação sexual” e as hipóteses de aborto seria
encaminhada até o final dessa reunião, com esses mesmos argumentos retornando
sempre. A reunião seria encerrada com Lúcia Vânia fazendo a defesa do aborto,
chamando a atenção especialmente para o fato de a mulher fazer o procedimento
como uma medida desesperada e da qual não deveria decorrer uma punição,
especialmente nos casos consagrados no Código Penal. Por fim, José Fernandes
(PDT-AM)observava que seriam poucos os itens do anteprojeto que teriam
divergências e gerariam problemas na votação86. Esses itens que geravam tantas
divergências eram os que diziam respeito a gênero e iriam aparecer também nas
reuniões seguintes, com as apresentações de diferentes emendas.
As discussões ocorridas acerca das propostas de emendas em relação aos
direitos e garantias individuais tiveram repercussão entre outros Constituintes. A
vigésima quinta reunião da Subcomissão, ocorrida no dia 19 de maio de 1987,
seria o momento em que José Mendonça de Morais apresentaria a defesa da
inclusão da expressão “desde a concepção até a morte natural” após a palavra
“vida” no artigo que trazia a sua proteção no anteprojeto apresentado pelo
84
Declaração de Lúcia Vânia. A Constituinte já deixava claro que simplesmente as relações
homossexuais não deveriam ser aceitas. Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento
ao n° 82). Quarta-feira, 24 de junho de 1987. P. 57.
85
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 82). Quarta-feira, 24 de junho de
1987. P. 58.
86
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 82). Quarta-feira, 24 de junho de
1987. P. 61.
269
Relator87, uma vez que já havia demonstrado preocupação com o aborto. Costa
Ferreira afirmava ter apresentado a mesma proposta resguardando a vida desde a
concepção. Porém, a possibilidade de membros de outras Subcomissões
apresentarem propostas permitiu a José Genoíno (PT-SP) apresentar propostas
para a Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais. Provavelmente, em
virtude de ter percebido o encaminhamento das discussões referentes apresentou
emenda que acrescentava após o termo “vida” a expressão “humana”, ao mesmo
tempo em que também pretendia, com sua emenda, a vedação da prisão perpétua
para qualquer crime88.
A sua justificativa para o acréscimo da palavra “humana” era no sentido de
que a vida humana deveria ser qualificada no texto constitucional, sem esclarecer
o que significaria essa qualificação. De qualquer forma, como ele em seguida faria
a defesa da descriminalização do aborto fundamentado na saúde da mulher,
especialmente das mulheres pobres, que não tinham condições de realizar o
procedimento em clínicas seguras, pode-se afirmar que a “vida” qualificada pelo
termo “humana”, em seu entendimento, poderia ser uma abertura para
posteriormente discutir se o embrião até um determinado período da gestação
seria ou não considerado uma forma de vida humana. A defesa da
descriminalização do aborto no país realizada por José Genoíno foi interessante
porque não somente apresentava a realidade das mulheres de baixa renda, tratando
da questão como um problema de saúde pública, mas também porque trazia os
exemplos de países com tradições católicas, como Itália, Espanha e França, que já
contavam com uma legislação em que o aborto não era mais tratado como um
crime. Em sua defesa apresentava a informação de que no Brasil 400 mil mulheres
tinham sequelas decorrentes de aborto realizado em condições precárias89
Novamente a discussão sobre o aborto iria acontecer, agora entre José
Mendonça de Morais e José Genoíno, com muitas interrupções de José Mendonça
de Morais ao longo do tempo de defesa disponibilizado para José Genoíno
87
O referido Constituinte apresentava também proposta para aumentar os crimes que deveriam ser
punidos com prisão perpétua. Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 83).
Quinta-feira, 25 de junho de 1987. PP. 21-22. Além disso, ele ainda queria acrescentar o seguinte:
“serão punidos como homicídio os crimes consumados contra a vida”.
88
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 83). Quinta-feira, 25 de junho de
1987. P. 22.
89
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 83). Quinta-feira, 25 de junho de
1987. P. 23.
270
defender a sua emenda. José Mendonça de Morais até mesmo questionava se a
Itália ainda era um país católico e dizia que poderia até concordar com a retirada
da referência ao aborto, na parte final do artigo que tratava da vida, mas que
insistiria no fato de que todos os crimes contra a vida deveriam ser punidos como
homicídio, para afirmar em seguida que José Genoíno era um defensor do aborto,
tratando tal afirmação como uma forma de acusação a José Genoíno. Este, por sua
vez, demonstrou que havia uma diferença entre ser a favor do aborto e a favor da
descriminalização do aborto. De fato, na medida em que alguém era chamado
como “defensor do aborto” parecia que esse alguém iria promover e estimular a
prática de abortos sendo inimigo da vida ou da gestação, quando, na verdade, o
foco era no resguardo da saúde e da vida da mulher, especialmente da mulher
pobre. Nyder Barbosa (PMDB-ES), ao se inserir no debate sobre aborto
afirmando ser radicalmente contrário, fez a defesa de sua emenda sobre
planejamento familiar como um direito individual e que ajudaria a superar o
problema do aborto, que segundo o Constituinte, deveria estar presente entre os
crimes previstos na Constituição90.
No mesmo trecho acima referido, Narciso Mendes também se manifestava sobre
o tema, defendendo o aborto, mas com preocupação em relação ao crescimento
demográfico no Brasil. Além disso, ele também afirmava que se três milhões de abortos
eram praticados no Brasil anualmente, portanto o crime, para ser combatido, exigiria que
o Governo iniciasse um grande projeto de construção de presídios. Em seguida, concluía
o raciocínio falando sobre a necessidade urgente do planejamento familiar, misturando os
dois temas e aparentemente apresentando o aborto até mesmo como uma forma de
planejamento, o que nunca havia sido defendido por representantes feministas91. Um
projeto sobre planejamento familiar com amplas informações sobre métodos
contraceptivos e saúde e acesso a esses métodos ajudaria a não utilização da
90
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 83). Quinta-feira, 25 de junho de
1987. P. 26.
91
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 83). Quinta-feira, 25 de junho de
1987. P. 27. Narciso Mendes e José Genoíno também falaram sobre censura. O primeiro
defendendo a censura não em ermos políticos, mas em termos morais, preocupado com a abertura
da novela Brega e Chique, em que aparecia um homem nu andando de costas e o segundo somente
defendendo um serviço classificatório, pois espetáculos de teatro e televisão não poderiam ser
tratados como problema de polícia. José Genoíno dizia que a censura somente incidiria em
questões políticas, pois “em relação aos enlatados, às propagandas de violência, não há censura,
porque interessa ao Dr. Roberto Marinho, a esses senhores, mas peças de teatros e filmes são
censurados”. Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 83). Quinta-feira, 25
de junho de 1987. P. 28. Essa referência retornará em comentário à Subcomissão da Família, do
Menor e do Idoso, com o destaque da declaração de Narciso Mendes.
271
última solução que era o aborto, mas ainda assim o problema não seria resolvido,
tanto que os movimentos feministas entendiam serem necessárias as duas
medidas. Lúcia Vânia ressalvava que Nyder Barbosa estava disposto a resolver
um problema econômico, mas não considerava a saúde da mulher com sua
proposta de planejamento familiar.
As emendas foram apresentadas e discutidas e na vigésima sexta reunião
da Subcomissão, no dia 23 de maio de 1987, o Relator Darcy Pozza apresentou o
substitutivo do anteprojeto, com a incorporação das propostas de alteração
trazidas pelos Constituintes. Os itens apresentados ganharam a seguinte redação:
São direitos e garantias individuais:
I – a vida, desde a sua concepção até a morte natural, nos termos da lei.
II – a cidadania; são assegurados iguais direitos e deveres aos homens e mulheres,
no Estado, na família, no trabalho e nas atividades políticas, econômicas, sociais
e culturais; são gratuitos todos os atos necessários ao exercício da cidadania,
incluídos os registros civis; todos têm o direito de participar das decisões do
Estado e de contribuir para o contínuo aperfeiçoamento das instituições e do
regime democrático;
III – a igualdade perante a lei; será punido como crime inafiançável qualquer tipo
de discriminação; ninguém será prejudicado ou privilegiado em razão de raça,
sexo, cor, estado civil, idade, trabalho rural ou urbano, credo religioso, convicção
política ou filosófica, deficiência física ou mental e qualquer particularidade ou
condição social92.
XVIII – a família, reconhecida no seu mais amplo sentido social, nos termos
desta Constituição e da lei;
§9º Não haverá pena de morte, de prisão perpétua, de trabalhos forçados, de
banimento e de confisco, ressalvados, quanto à prisão perpétua, a legislação
aplicável em caso de guerra externa, e os crimes de estupro ou sequestro,
seguidos de morte.
A discussão nessa etapa passaria a tratar não somente das sugestões de
redação dos artigos da nova Constituição, mas também da forma pela qual o
processo de votação estava sendo conduzido. Essa reunião também contou com a
participação de José Genoíno. Este Constituinte insistiria no tema do aborto,
ressaltando que o substitutivo do anteprojeto significava um retrocesso em relação
à legislação da época. Parece que José Genoíno havia ido para a reunião com o
propósito de não permitir o retrocesso na matéria, uma vez que esclarecia que na
reunião do dia anterior na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso havia
ocorrido a proibição do aborto inclusive nos casos de gravidez decorrente de
92
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 87). Quinta-feira, 2 de julho de
1987. P. 51.
272
estupro e que representasse risco para a vida da mãe93. Ubiratan Spinelli ainda
tentou fazer com que José Genoíno fosse impedido de continuar falando, uma vez
que ele não era titular nem suplente da Subcomissão dos Direitos e Garantias
Fundamentais. Porém, citando o §1º do artigo 14 do Regimento Interno, José
Genoíno conseguiu seguir com sua resposta, pois o referido artigo garantia o
direito à palavra para qualquer Constituinte em todas as Subcomissões, Comissões
e no Plenário, ainda que não fosse membro efetivo ou suplente de qualquer uma
delas.
Detalhes dos procedimentos de votação não foram objeto de análise,
ficando esta restrita aos discursos e às propostas de normas constitucionais
trazidas pelos Constituintes. Porém é necessário observar que, aparentemente, no
início das discussões sobre os procedimentos para aprovação de emendas e
destaques e o quorum necessário nesta Subcomissão, ficou constatada uma
irregularidade na forma como o projeto foi votado na Subcomissão da Família, do
Menor e do Idoso, descumprindo o regimento interno. Um diálogo entre Eliel
Rodrigues e o Presidente Antônio Mariz permite identificar o problema. Eliel
Rodrigues perguntou sobre o quorum necessário para aprovar emendas e
destaques. Antônio Mariz afirmava que o regimento interno trazia a previsão de
maioria absoluta para a aprovação. A Subcomissão de Direitos e Garantias
Individuais contava com 23 (vinte e três) membros, o que implicava na
necessidade de 12 (doze) membros aprovando uma emenda. Para que pudesse
haver tanto deliberação quanto instalação da Subcomissão, deveriam estar
presentes 12 (doze) Constituintes, sendo que se houvesse somente doze presentes,
as aprovações deveriam ser por unanimidade. Ao tomar conhecimento de tais
critérios, Eliel Rodrigues reconhecia que na Subcomissão da Família, do Menor e
do Idoso esses critérios não tinham sido preenchidos. Sobre o tema ocorreu o
seguinte diálogo:
O Sr. Constituinte Eliel Rodrigues – O critério adotado na Comissão (sic) da
Família, do Menor e do Idoso diferiu um pouco deste nosso, porque foi dado
como base na frequência média dos que compareciam às reuniões. Então era, em
média, em torno de uns 12 a 14. E foi assegurada, então, a votação mínima de 8.
Com 8 teríamos quorum. Foi essa a interpretação daquela Subcomissão.
93
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 87). Quinta-feira, 2 de julho de
1987. P. 53.
273
O Sr. Presidente (Antonio Mariz) – Na verdade, essa interpretação, com a devida
vênia do Constituinte Eliel Rodrigues, colide com o dispositivo regimental,
porque caracteriza outra figura do Regimento, da maioria simples, quando o
regimento é específico em relação à maioria absoluta, o que significa, como é
sabido, a metade mais um dos membros da Subcomissão. Não temos como fugir
da letra expressa da lei. O art. 21 do Regimento, §2º, diz: “As deliberações nas
Comissões e Subcomissões exigirão maioria absoluta de votos”.
Nesses termos, provavelmente boa parte das deliberações na Subcomissão
da Família, do Menor e do Idoso estaria comprometida. Sendo assim, as
colocações de José Genoíno em relação às medidas aprovadas na Subcomissão da
Família, do Menor e do Idoso ainda poderiam ganhar outra dimensão, se a
insuficiência de quorum fosse constatada. Em alguns momentos já na Comissão
da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher haveria até
mesmo acusações de tentativas de golpe na Comissão, conforme será apresentado
adiante.
Superando o problema formal, a discussão voltaria a ser em relação ao
aborto entre Antônio Câmara (PMDB-RN) e Darcy Pozza (PDS-RS), sempre
disputando qual seria a melhor redação, especialmente, como garantir ou suprimir
as hipóteses legais do aborto. O primeiro entendia que a expressão “a vida, desde
a sua concepção até a morte natural, nos termos da lei” poderia excluir as
ressalvas do Código Penal. Ele tinha receio de que “nos termos da lei” deixasse o
tema ambíguo, fazendo com que as hipóteses de aborto permitidas no Código
Penal fossem, posteriormente, inviabilizadas pela Constituição. O segundo dizia
ter atendido a inúmeras emendas que haviam solicitado a exclusão da expressão
“é crime o aborto diretamente provocado”, mas que cabia à Subcomissão
resguardar a vida, entre outros “direitos naturais”, por isso, a vida humana deveria
ser resguardada desde a concepção. “Nos termos da lei”, de acordo com Darcy
Pozza, seria suficiente para as hipóteses do Código Penal.
No momento seguinte José Genoíno ainda solicitaria que outra emenda sua
fosse votada. Ele viabilizaria o aborto, tendo como a única restrição o tempo de
gravidez e acrescentando o seguinte ao artigo de direitos individuais: “a decisão
de ter ou não filhos com interrupção da gravidez até noventa dias, com garantia de
acesso a métodos anticoncepcionais, assistência e atendimento médico através da
274
rede de saúde pública”94. Ao ler a proposta de José Genoíno, Antônio Mariz
sugeriu que fosse realizada a votação da emenda de Antônio Câmara, por dizer
respeito ao mesmo tema, o que iria prejudicar a emenda de José Genoíno. Na
verdade, fazia referência ao mesmo dispositivo, mas a emenda de José Genoíno
era incomparavelmente mais ampla do que a de Antônio Câmara. O Presidente
sabia disso e, provavelmente, desejava evitar ainda mais discussões sobre o
assunto, com receio de que até mesmo as possibilidades do Código Penal fossem
afetadas. José Genoíno e Roberto Freire (PCB-PE) iriam pedir pela votação da
emenda de José Genoíno. Roberto Freire, especialmente pedia para inverter,
votando primeiro a de José Genoíno, pois se aprovada, esta poderia prejudicar
aquela, por ser mais ampla.
Cabe ressaltar que esse último, posteriormente, ainda se manifestou
contrariamente aos métodos contraceptivos e à proposta de emenda de Nyder
Barbosa, sobre planejamento familiar, por entender que não havia consenso “entre
os religiosos e na própria ciência” sobre que métodos seriam abortivos. Sendo
assim, para Roberto Freire, a Constituição deveria garantir a vida e deixar para
que a lei definisse como ela seria resguardada95. Provavelmente, Roberto Freire
tinha percebido também que, estrategicamente, era mais conveniente deixar esses
temas para legislação ordinária, sem mencioná-los. Antônio Câmara terminou
retirando o seu destaque e José Genoíno defendeu a sua emenda, obviamente, com
o controle do tempo para realizar a defesa de sua proposta devidamente realizado
por José Mendonça de Morais96. A defesa de José Genoíno resultou em uma breve
disputa pessoal entre os dois Constituintes e após sua fala, José Mendonça de
Morais solicitou que ele encaminhasse a votação em sentido contrário, mas Costa
Ferreira já havia solicitado para falar contraditando a proposta de José Genoíno.
94
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 87). Quinta-feira, 2 de julho de
1987. P. 56.
95
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 87). Quinta-feira, 2 de julho de
1987. P. 57.
96
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 87). Quinta-feira, 2 de julho de
1987. P. 58. - O Sr. Constituinte José Mendonça de Morais – Já se passaram os três minutos a que
V. Exª tinha direito.
O Sr. Constituinte José Genoíno – Constiuinte José Mendonça de Morais há um Presidente
dirigindo os trabalhos desta Subcomissão.
O Sr. Constituinte José Mendonça de Morais – Tenho o direito de policiar os excessos.
O Sr. Constituinte José Genoíno – Sr. Presidente, V. Exª foi destituído pelo Constituinte José
Mendonça de Morais?
O Sr. Presidente Antonio Mariz – Está com a palavra o Constituinte José Genoíno.
275
Os argumentos de Costa Ferreira eram no sentido de que o Brasil era
heterogêneo e que no Nordeste, no Norte e no Centro-Oeste as mulheres não
teriam condições de realizar o aborto em segurança por falta de estrutura, sendo
assim, ele não poderia deixar de ser crime, sob pena de aumentar a quantidade de
mulheres que morriam nas tentativas de aborto. Esse raciocínio era a inversão
daqueles que defendiam o aborto como uma forma de proteger a saúde da mulher.
Na medida em que ele deixasse de ser proibido, as mulheres poderiam procurar
lugares e profissionais de saúde preparados para realizar o procedimento com
condições de higiene adequadas e com segurança. Costa Ferreira dizia defender a
saúde da mulher e a vida da mulher, mas utilizando justamente aquilo que, para os
movimentos feministas, configurava um grande risco para a saúde das mulheres, a
configuração do aborto como crime. E a discussão seguiu exatamente como havia
seguido em outros momentos: José Carlos Coutinho (PL-RJ) defendeu a
possibilidade do aborto por ser uma realidade social. José Mendonça de Morais
chamava José Genoíno de “advogado do diabo”, porque era contra a vida e a favor
da morte. Seguia o Constituinte José Mendonça de Morais equiparando o aborto
às hipóteses de tráfico de entorpecentes, roubo, sequestro, tráfico de crianças,
entre outros crimes, e seguia com a valoração moral:
A mulher tem o direito de optar pelo bem. Somos livres para optar pelo respeito
ao direito dos outros (...). Não há liberdade para violar o direito de outrem. E a
criança concebida é uma pessoa autônoma, independente, que tem sua defesa
ampla, principalmente por ser indefesa dentro do ninho, do útero da mulher, feito
com a finalidade especial de proteger a vida na transmissão de gerações para
gerações. Aquelas que quiserem ser assassinas profissionais, mandando praticar o
aborto, que tenham a coragem de assumir as consequências da lei e que, depois,
sejam punidas.
O direito à vida, Sr. Presidente, sobrepõe-se a todas as convicções religiosas, a
todas as ideologias de esquerda, de direita, capitalistas ou socialistas. Vida é vida,
assassinato é assassinato. Então, toda emenda, em qualquer País, que venha a
proteger o assassinato de indefesos, está violando o direito sagrado da vida.
Proponho-me a votar contra a emenda do Constituinte José Genoíno; e quero
justificar com estes argumentos: ou faremos respeitar a sociedade como um todo,
ou vamos anarquizá-la. (...)
Portanto, meus louvores ao texto do Sr. Relator, que dá extensão às exceções, ao
terapêutico, aquele de engravidamento tubário, muitas vezes até do estupro, que a
lei vai determinar em casos especiais. Aí devemos, sim, não estar sujeitos a
pressões de nenhuma assanhadinha ou pessoas radicais, mas, sim, votar com a
convicção de cada um, que é questão de consciência – preservar ou matar 97.
(grifo nosso)
97
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 87). Quinta-feira, 2 de julho de
1987. P. 59.
276
A mulher naquele momento estava reduzida à função do útero e os dilemas
enfrentados por aquelas que se viam levadas à prática do aborto foram ignorados.
Roberto Freire, em resposta a essa colocação, afirmava que deveria ser evitado o
confronto social com a nova Constituição. Ele parecia ter uma preocupação em
preservar a Constituição que estava em elaboração.
Por esse motivo,
determinados temas deveriam ser deixados para a legislação ordinária. Ele
relembrava as discussões sobre o divórcio e os receios de que isso levasse à morte
da família, que estavam ocorrendo na Subcomissão da Família, do Menor e do
Idoso. O texto Constitucional não poderia ficar tão suscetível às circunstâncias da
época, na medida em que era elaborado para perdurar. Os direitos das mulheres,
incluindo os referentes à procriação, deveriam ser preservados. Sendo assim,
apesar de defender a emenda de José Genoíno, especialmente em um primeiro
momento, uma vez que ele mesmo havia apresentado emenda no mesmo sentido,
ele entendia que talvez a melhor solução fosse garantir o direito à vida nos termos
da lei, “retirando-se a questão da concepção, porque vai dar lugar, exatamente, a
discussões desse tipo, e, pior, preconceituosas, como infelizmente alguns
Constituintes aqui pretendem indicar”98. A emenda de José Genoíno foi votada e
rejeitada, obtendo dezessete votos contrários e somente um favorável99.
4.2
A Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da
Mulher
As discussões acerca dos temas de gênero na Subcomissão dos Direitos e
Garantias Individuais haviam se encerrado. Em contrapartida, a Comissão da
Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher iria começar a tratar
do tema, a partir do exame dos anteprojetos encaminhados pelas Subcomissões. A
Comissão era presidida por Mário Assad (PFL-MG). Anna Maria Rattes (PMDBRJ) era a Vice-Presidente e José Paulo Bisol (PMDB-RS) o Relator100. Os temas
98
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 87). Quinta-feira, 2 de julho de
1987. P. 59.
99
Como curiosidade, cabe ressaltar que na mesma reunião foi retomada a discussão sobre censura.
Aqueles contrários ao aborto se preocupavam em estabelecer alguma forma de censura para
resguardar valores familiares.
100
Mário Assad, casado, pai de dois filhos, foi eleito aos 60 anos pelo PFL pelo estado de Minas
Gerais. Era advogado, tendo se formado pela Faculdade de Direito da UERJ. Nas eleições de 1966,
277
referentes a gênero voltaram à discussão a partir da sétima reunião da Comissão,
no dia 1° de junho de 1987. Farabulini Júnior (PTB-SP), logo no início da
reunião, afirmou que o trabalho do Relator da Comissão deveria levar em
consideração os anteprojetos apresentados pelas Subcomissões e, de acordo com
esse Constituinte, parecia que Bisol não havia considerado os projetos para
realizar seu trabalho101. Ele apresentava ressalvas referentes à forma como o
Relator havia tratado a propriedade, a orientação sexual, entre outros temas.
O trabalho encaminhado pelo Relator Bisol parecia ser um primeiro
esboço não oficial, em que demonstrava seu entendimento para os demais
Constituintes sobre diferentes matérias, o que foi devidamente esclarecido pelo
Presidente Mário Assad (PFL-MG). Sendo assim, era uma primeira proposta para
que os Constituintes pudessem apresentar suas emendas. Nessa primeira proposta,
Bisol (PMDB-RS) havia incluído o preconceito em virtude de orientação sexual
entre aqueles que seriam interditados pela Constituição. Narciso Mendes se juntou
a Farabulini Júnior (PTB-SP) afirmando que a expressão havia perdido em
votação na Subcomissão, por dezessete votos a um, tendo sido excluída do texto.
Na verdade, o Constituinte errou ao realizar tal afirmação. A expressão
“orientação sexual” foi retirada já quando o Relator da Subcomissão de Direitos e
Garantias Individuais apresentou o substitutivo do anteprojeto, substituída por
“condição social”. Esse Relator já havia incorporado emenda de Constituintes que
haviam solicitado a retirada da orientação sexual do texto. Essa votação a qual ele
se referia provavelmente era referente à emenda de José Genoíno sobre aborto.
Ainda assim, ambos acusavam Bisol de desrespeitar as votações nas
Subcomissões, bem como José Mendonça de Morais (PMDB-MG) considerava
que haveria o risco de ficarem sujeitos a uma ditadura caso o anteprojeto do
Relator prevalecesse sobre as emendas que não alcançassem maioria absoluta na
Comissão.
1970, 1974 e 1978 foi eleito para deputado estadual pela Arena. Elegeu-se deputado federal em
1982 pelo PDS. Chegou à Assembleia Constituinte com 40.110 votos. José Paulo Bisol, casado,
pai de três filhos, foi eleito Senador pelo PMDB do Rio Grande do Sul aos 58 anos. Intitulou-se
em seu perfil como advogado da TV Mulher. Há sido eleito deputado estadual pelo PMDB em
1982 e chegava à Constituinte com 1.167.474 votos. RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é
quem na Constituinte. Uma análise sócio-política dos partidos e deputados. São Paulo: OespMaltese, 1987.PP. 279, 351-352.
101
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 79). Quinta-feira, 18 de junho
de 1987. PP. 9-10.
278
Seguiam as discussões sobre o procedimento que deveria ser adotado na
Comissão ao mesmo tempo em que os Constituintes começavam a ingressar na
proposta do Relator José Paulo Bisol. Observando a proposta do Relator, de fato,
ele retomou alguns temas que haviam sido rejeitados nas Subcomissões, mas se
aqueles que eram mais retrógrados em relação aos direitos das mulheres e dos
homossexuais tinham seus mecanismos de atuação para conseguir fazer prosperar
suas convicções, sem dúvida aqueles que tinham maior comprometimento com
essas demandas também fariam uso de suas posições para tentar reverter a atuação
daqueles mais conservadores no que dizia respeito a direitos sexuais e
reprodutivos, bem como a orientação sexual.
Costa Ferreira (PFL-MA) demonstraria preocupação com dois itens da
proposta: o artigo 3° inciso I alínea a “Adquire-se a condição de sujeito de direito
pelo nascimento com vida” e o item que trazia a seguinte redação: “a vida intrauterina é inseparável do corpo que a concebeu”. A reação de José Mendonça de
Morais (PMDB-MG) foi imediata: “Não apoiado! Isso é contra a ciência. Todo
ser concebido é autônomo, é independente da mulher. A mãe apenas o suporta,
fornece o ninho. A nidação é isso. (...) essa afirmação aqui é uma aberração contra
a ciência”102. O Constituinte ingressava na mesma inconsistência de considerar o
embrião completamente autônomo, quando, na verdade, essa autonomia era
impossível. O próximo passo seria enfrentar o inciso V alínea f da proposta:
“Ninguém será privilegiado ou prejudicado em razão de nascimento, etnia, raça,
cor, idade, sexo e orientação sexual”. Costa Ferreira afirmava que o termo “sexo”
era suficiente, poderia ser entendido em qualquer sentido, mas as aberrações não
deveriam aparecer na Constituição:
Manter essa expressão seria exagero. Já temos a palavra “sexo”. Ninguém é
discriminado por seu sexo – aí, entendam como quiserem qual é o sexo. Não há
necessidade de mais essa expressão “orientação sexual” em nosso texto, apesar de
todo o nosso respeito àqueles que defendem a sua permanência. Achamos isto
uma aberração, porque todos na sociedade devem ter sua liberdade. No Rio de
Janeiro e em várias outras partes do Brasil, vemos homossexuais vestidos e
pintados como mulher. É uma liberdade, mas que fiquem por lá. Ainda assim, não
se muda a sua origem masculina, a não ser que façam uma operação. No início,
no nascimento, foram registrados como homens.
(...) Alerto aos companheiros para que atentem para este dispositivo, que tem
implicações muito sérias na formação moral, apesar de o Senador Bisol achar que
o conceito de moralidade é quase idêntico ao de axiologia, dos valores, por se
102
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 79). Quinta-feira, 18 de junho
de 1987. P. 12.
279
encarado de acordo com a concepção de cada um. Os homossexuais, na nova
Constituição, terão plena liberdade, como aliás, vêm tendo, sem que sejam
discriminados. Não podemos permitir que homossexuais, por exemplo, se casem,
quer dizer, homem com homem, mulher com mulher. Isso seria um desastre. Não
se pretende discriminar, mas sim proteger a sociedade. Que cada um se
amantilhe, escondido, com quem quiser. Ninguém está contra isso. Se a pessoa
tem condições financeiras de sustentar essa sua vontade, que o faça, mas que não
queira colocar isso na Constituição, porque será um desrespeito, um desastre que
vai comprometer a moralidade da Nação brasileira perante as outras nações103.
Esse talvez tenha sido um dos maiores momentos em que os preconceitos
de gênero e classe foram mais exacerbados sem qualquer constrangimento. O
Constituinte Costa Ferreira, assim como outros presentes, no primeiro momento
afirmava que haveria uma liberdade de se escolher os parceiros. Em seguida,
localizava a existência de homossexuais somente em cidades como o Rio de
Janeiro, no imaginário, uma cidade libertina. Ele ainda remeteu à natureza, ao
corpo macho e corpo fêmea, como se o desejo homossexual pudesse ser fora da
natureza, quando, na verdade, ele é marginalizado pela cultura heterossexual, que
o chamou de aberração. Além disso, criava uma situação de desigualdade, pois
enquanto heterossexuais eram livres para viver seu desejo, os homossexuais
deveriam viver escondidos, sem assumir a homossexualidade, e, para finalizar, o
homossexual teria o direito de exercer sua sexualidade se tivesse condições
financeiras para isso, o que implicava em assumir que pessoas pobres não teriam o
direito de exercer sua sexualidade.
Há ainda uma parte relevante em sua declaração no que dizia respeito ao
casamento, quando afirmava que eles não poderiam se casar e ressaltava, “homem
com homem e mulher com mulher”, ou seja, cabia ao homossexual escamotear a
sua sexualidade, sendo aceito se, por exemplo, vivesse em um casamento
heterossexual. Outro dado relevante é que os homossexuais sequer reivindicaram
possibilidade de casamento ou até mesmo união estável, era simplesmente o
direito de não sofrer violências variadas decorrentes de preconceitos. A
preocupação com o resguardo de uma determinada concepção ou modelo de
família era tão intensa que, em seguida, Costa Ferreira iria se manifestar
contrariamente ao artigo proposto pelo Relator Bisol que trazia a seguinte
redação: “A lei não limitará o número de dissoluções da sociedade conjugal”.
103
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 79). Quinta-feira, 18 de junho
de 1987. PP. 12-13.
280
Costa Ferreira simplesmente iria defender que o número ilimitado de divórcios
também iria destruir as famílias, devendo ficar restrito a uma única possibilidade e
trazia a preocupação com os menores abandonados para legitimar seu
entendimento. Demonstrando estar de acordo com Costa Ferreira, José Mendonça
de Morais afirmaria:
Se prevalecerem, na Constituição, os princípios enunciados neste anteprojeto, o
Brasil será o País mais avançado do mundo em todas as teorias de direitos
individuais, de garantias individuais, de direitos coletivos, de direitos políticos, de
direitos das sociedades, de direitos que são a negação daquilo que é o direito
natural104.
Novamente, o argumento da natureza retornava ao debate. A Constituição
seria avançada em relação aos direitos, mas corria o risco de ferir o chamado
direito natural. Em seguida, a discussão retornava ao tema do aborto. Farabulini
Júnior (PTB-SP) afirmava que a partir da proposta do Relator, eles poderiam
concluir que Bisol (PMDB-RS) desconhecia os direitos do nascituro. .Porém, ele
esquecia que o nascituro, no ordenamento jurídico brasileiro, tinha expectativa de
direito, transformando-se em sujeito de direito justamente com o nascimento com
vida, pois ele não poderia exercer direitos. Em seguida, novamente José
Mendonça de Morais iria defender que o útero era ninho, onde ocorria o
desenvolvimento natural e que o direito à vida deveria ser resguardado desde a
concepção, com os mesmos argumentos já apontados exaustivamente. Anna
Maria Rattes (PMDB-RJ) iria tentar contornar a situação ressaltando a
importância do trabalho do Relator, que tinha apresentado a proposta
informalmente e antes do prazo. Além disso, fez a defesa da redação proposta por
Bisol, em relação ao fato e a vida intra-uterina ser inseparável do corpo da mulher,
explicando o óbvio: “Isto é óbvio, senão já estaríamos fazendo nos laboratórios a
gestação de fetos concebidos em provetas”105.
Anna Maria Rattes explicava os motivos pelos quais as mulheres
realizavam o aborto e os meios inadequados que as colocavam em risco e acabou
sendo pressionada a se manifestar se era favorável ou não ao aborto, no que
prontamente respondeu que não. Na verdade, para aqueles que se dedicam ao
104
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 79). Quinta-feira, 18 de junho
de 1987. P. 13.
105
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 79). Quinta-feira, 18 de junho
de 1987. P. 16.
281
tema, uma coisa é ser pessoalmente favorável ou não ao aborto, outra coisa é
entender que ele deve ser considerado um crime. Ela acreditava que essas
mulheres não deveriam responder por um crime, pois as consequências de uma
gravidez indesejada fatalmente sempre recaía primordialmente sobre mulheres:
Queria, apensas, que meus companheiros presentes não se esquecessem, dentro
de sua postura masculina, de que os homens são co-partícipes quando uma
mulher faz um aborto. Uma mulher não engravida sozinha. Essa postura de V.
Exª deveria ser mais interiorizada e mais aprofundadas, até de acordo com suas
consciências. O homem engravida uma mulher e cai fora, na maioria das vezes, e
ela, então, é responsável pelo que vai fazer do seu corpo e do feto que traz em
si106.
Posteriormente, para garantir a redação proposta pelo Relator, Anna Maria
Rattes também diria que era contra a completa descriminalização do aborto e que
a redação do artigo somente permitia as possibilidades já consagradas pelo
Código Penal. “Também não quero o aborto indiscriminado. Não o quero porque
sou mulher, porque tenho o compromisso de garantir a vida”107. Ela fazia do fato
de ser mulher uma espécie de autoridade para se posicionar sobre o tema, ao
mesmo tempo em que afirmava uma condição natural, o que gerava simpatia entre
esses Constituintes e argumentava por uma redação que, notoriamente, poderia
facilitar uma posterior reivindicação pela descriminalização do aborto, em uma
linha na qual se reconhecia a necessária dependência do embrião do corpo da mãe,
ao invés da total autonomia defendida por aqueles contrários ao aborto. Adiante,
ela ainda defenderia que esse não era tema para se estar na Constituição. A
Constituição deveria ser, nesse sentido, uma carta de princípios e a discussão
sobre o aborto deveria ser feita em legislação ordinária.
Até aquele momento o Relator José Paulo Bisol não estava presente na
reunião, porém ela chegaria no final do debate e a segunda pergunta que
responderia seria a de José Mendonça de Morais sobre o nascituro não ser sujeito
de direitos. Este Constituinte se surpreende com a afirmação de Bisol sobre o fato
de o referente artigo já existir no ordenamento jurídico brasileiro, em que o
nascituro de fato não tinha direitos e sim expectativa de direitos. Como exemplo
106
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 79). Quinta-feira, 18 de junho
de 1987. P. 16.
107
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 79). Quinta-feira, 18 de junho
de 1987. P. 17.
282
Bisol trazia a situação do direito sucessório. Se o nascituro fosse sujeito de
direitos e pudesse herdar, iriam ocorrer diversas confusões na sucessão caso
viesse a ser, na verdade, natimorto. O nascimento fazia com que ele passasse à
condição de sujeito de direito e, como explicava Bisol, isso não tinha qualquer
relação com as possibilidades de aborto. Anna Maria Rattes ainda trazia o
exemplo do direito de ir e vir. Como o nascituro iria exercê-lo? Ele simplesmente
não tinha como exercer direitos. O nascituro não possuía, assim como não possui,
qualquer condição de ser sujeito de direito.
Em relação à vida intra-uterina, Bisol demonstrava até uma certa exaustão:
“Quanto à vida intra-uterina – meu Deus do céu! O que se diz depois é só que ela
é intra-uterina. ‘Intra, ou seja, dentro do útero. E o útero está dentro da mulher.
Portanto, é só uma evidência”108. Posteriormente, reagindo às acusações de que
ele teria redigido o anteprojeto de acordo com suas convicções, Bisol ressaltou
que se ele tivesse colocado suas convicções pessoais sobre o aborto na sua
proposta, ele iria prever uma consulta plebiscitária sobre o tema, por acreditar que
deveria ser resolvido dessa forma, em que se saberia se o aborto seria permitido
até os três meses de gravidez. Acrescentava ainda que em todos os anos de
magistratura, ao todo trinta, ele somente havia visto mulheres pobres respondendo
pelo crime de aborto, sendo prática institucionalizada nas classes média e alta.
Nesses termos, se os Constituintes pretendessem punir o aborto, deveriam
encontrar mecanismos para atingir a todos os casos.
A oitava reunião da Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do
Homem e da Mulher, realizada dia 1° de junho de 1987 na parte da tarde,
começava exatamente da mesma forma como havia sido encerrada, abordando os
mesmos temas, com os mesmos argumentos. Farabuini Júnior (PTB-SP) insistia
no problema de adquiria a condição de sujeito de direito no nascimento com vida
e sua preocupação com os supostos direitos do nascituro. Em seguida, o
Constituinte João de Deus Antunes (PDT-RS) diria que não estava de acordo com
a redação do artigo 3° inciso I alínea a, ou seja, o da vida intra-uterina inseparável
do corpo que a concebeu. Como ele não poderia estar de acordo com essa redação
ele não explicava, para finalizar afirmando que os Relatores demonstravam que se
preocupavam mais em expor seus pensamentos do que com as propostas dos
108
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 79). Quinta-feira, 18 de junho
de 1987. P. 18.
283
demais Constituintes e combatendo a expressão “orientação sexual”109. José
Fernandes (PDT-AM) e João Menezes (PMDB-PA) entendiam que muitos pontos
estavam confusos e que o Relator teria poder para manter dispositivos que eram
controvertidos. João Menezes questionava qual seria a expectativa de direitos e
dizia não ficar claro a partir de que momento a vida humana passava a ser
resguardada, propondo também a troca do termo “orientação sexual” para o termo
“vida sexual”, porque “orientação sexual” “dá margem a que o cidadão pense que
pode dar aulas nas universidades sobre isso”110.
Farabulini Júnior também se indignava pela inviabilidade da pena de morte
na Constituinte e pelo fato de o Relator ter excluído a prisão perpétua, nos casos
de latrocínio, sequestro e estupro. O Constituinte era contrário ao aborto, mas
tinha afinidade com pena de morte e com prisão perpétua: “Em São Paulo, as
mulheres não aguentam mais, as casas são invadidas. Não só os lares mais ricos
dos chamados Jardins, mas também os mocambos, os cortiços, as favelas são
invadidas sim. E as mulheres, estupradas por facínoras que, na verdade, sentem
que a impunidade continua”111.
José Mendonça de Morais a partir desse momento também iria combater o
inciso XVIII que trazia a possibilidade de constituição de família pelo casamento
ou pela união estável entre homem e mulher, entendendo que isso fugia ao padrão
normal. O mesmo entendia que a igualdade entre homem e mulher na relação
poderia ser questionada, “não sei se é básica”112 e que os filhos concebidos dentro
e fora do casamento não poderiam ser tratados como iguais, fazendo questão de
dizer que tinha um filho adotivo, além de combater a não limitação de dissoluções
109
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 80). Sexta-feira, 19 de junho de
1987. P. 5.
110
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 80). Sexta-feira, 19 de junho de
1987. P. 5.
111
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 80). Sexta-feira, 19 de junho de
1987. P. 6. Interessante observar que essa afirmação do Constituinte Farabulini Júnior é contrária a
qualquer pesquisa referente ao crime de estupro. É de amplo conhecimento que esse é um crime
cometido, na grande maioria, por pessoas conhecidas das vítimas, como pai, marido, padrasto, tios,
namorados e outros. Os casos mais raros são esses que configuram a hipótese de preocupação do
Constituinte. Para citar um dentre os inúmeros exemplos de pesquisas sobre o tema, há a referência
de VARGAS, Joana Domingues. Familiares ou desconhecidos? A relação entre os protagonistas
do estupro no fluxo do Sistema de Justiça Criminal. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69091999000200006 o artigo
apresenta dados do início da década de 1990, o que é interessante por estar mais próximo da
Constituinte.
112
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 80). Sexta-feira, 19 de junho de
1987. P. 7.
284
de casamento. Até esse momento, não havia nenhuma novidade nas indignações
dos Constituintes. Porém, não se pode deixar de notar que, quanto mais eles
examinavam a proposta de Bisol, mais dispositivos eles combatiam, como por
exemplo, a própria possibilidade do divórcio, o que, a princípio parecia não ser
mais um problema para a moralidade dominante naquele período.
O Constituinte Francisco Rollemberg (PMDB-S) apresentaria algumas
demandas diferentes do restante. Em relação ao artigo da vida intra-uterina, ele
sugeria que a responsabilidade, em vez de atribuída à mulher, deveria ser atribuída
ao casal em virtude dela não ser apta a se autofecundar. Sendo assim, a
responsabilidade pela criança deveria ser de ambos. A sua proposta era
interessante, pois até aquele momento ele era o único a tentar fazer com que o
homem assumisse algum papel nesse período, além da óbvia função de colaborar
para a gravidez. Essa co-responsabilidade, assim como o discurso anterior de
Siqueira Castro, poderia se tornar também um instrumento interessante de
rearranjos de papeis sociais, mas não foi adiante.
Em seguida, defendia a possibilidade do aborto a princípio para os casos
de estupro e de gravidez em que a vida da mãe estivesse em risco, mas com
possibilidade para ampliar em caso de má formação do feto. Em relação ao item
III alínea e, que trazia a redação “o homem e a mulher são iguais em direitos e
obrigações, inclusive os de natureza doméstica e familiar com a única exceção dos
relativos à gestação, ao parto e ao aleitamento”, ele era favorável à retirada da
segunda parte. Parecia óbvio, e ainda parece, que essa segunda parte era
desnecessária em virtude da impossibilidade física do homem gestar, passar pelo
parto e amamentar. Porém, a questão não é tão óbvia, especialmente se há uma
reflexão sobre a licença parental, em vez de licença gestante, conforme a
Constituição acabou denominando, em que homens e mulheres teriam o mesmo
período de licença para compartilharem os cuidados com a criança. Na época
parece que isso não foi cogitado, a não ser pelo professor Siqueira Castro, no que
não obteve êxito. Por fim, ele ainda defenderia a união estável, fazendo referência
ao Padre Fernando Bastos D’Ávila, que já havia percebido que o número de
casamentos era menor do que o de uniões estáveis, especialmente em países
pobres, e que isso não impedia os casais de viverem como se casados fossem, ao
longo de muito tempo. Por esse motivo, essas uniões precisavam de
reconhecimento.
285
Novamente, José Paulo Bisol enfrentaria, pela segunda vez, as mesmas
questões. Longas considerações sobre os nascituros e a legislação civil brasileira,
bem como sobre as possibilidades de testar em benefício de nascituros e até
mesmo daqueles que sequer foram concebidos foram realizadas por Bisol. “Só
estou mencionando isto para mostrar que não há nenhum escândalo, nenhuma
subintenção, nenhuma malícia, nenhum dolo, nenhuma demoníaca fabulação de
uma mente comunista querendo revolucionar o País. Não! É uma simples tradição
jurídica”113. Em seguida, mais uma vez, faria considerações sobre a vida intrauterina estar dentro do útero, sem que isso tivesse uma relação com a
possibilidade da lei criminalizar ou descriminalizar a prática do aborto. Cabe
ressaltar que o Relator Bisol nunca escondeu ser contrário à penalização do aborto
por entender que ela era ruim em virtude de ser destinada a punir mulheres pobres,
o que não implicava em ser favorável ao aborto. Apesar de sua posição pessoal,
ele não inviabilizou a criminalização do aborto a partir de sua proposta e tentava
esclarecer esse aspecto. Procurava esclarecer também que ele não havia violado o
Regimento e os procedimentos. Aquela era mais uma etapa da Constituinte, que
era composta pelas Subcomissões, já terminadas, Comissões Temáticas, Comissão
de Sistematização e Plenário.
Ele ainda enfrentou os problemas da orientação sexual e da união estável,
em virtude de um dos Constituintes ter suspeitado que ela legitimasse uniões de
homossexuais. Em sua resposta, Bisol dizia não estar preocupado com essas
uniões, que seriam feitas independente do que ele ou outro Constituinte
pensassem sobre o tema. A expressão “orientação sexual” não implicava em
autorizar relações sexuais entre homossexuais em lugares inadequados, conforme
Bisol afirmava ter sido o entendimento de um dos Constituintes, que havia
levantado a possibilidade de autorizar homossexuais a ter relações em quartéis,
por mais incrível que pudesse parecer essa associação. O receio não era
procedente, pois existiam lugares simplesmente inadequados para qualquer
relacionamento sexual, homossexual e heterossexual, como era o caso do quartel.
“Entenderam? Será que não é simples isso? Qualquer cópula, num lugar
113
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 80). Sexta-feira, 19 de junho de
1987. P. 13. Ele ainda desconfiaria desses Constituintes: “Francamente, isso não é discussão, isto é
paixão! Estão lendo aqui o que não existe aqui. Isso é paixão! Não está escrito aqui aquilo que
querem tirar daqui. Não é perigoso isso? Não há um sintoma de fanatismo nisso? Alguma coisa
está sendo estranhamente realizada aqui sem uma nitidez de consciência! Porque estamos lutando
contra aquilo que não existe aqui! Não existe aqui!”. P.14.
286
inadequado, ou em público, é uma transgressão disciplinar”114. A intenção da
expressão “orientação sexual” era, somente, resguardar homossexuais de atos
preconceituosos.
Talvez o momento em que José Paulo Bisol foi mais incisivo em sua
resposta ao longo da reunião em análise tenha sido o referente à igualdade entre os
filhos. A distinção entre os filhos era veementemente combatida pelo Relator. O
filho fora do casamento somente seria herdeiro do pai, que seria seu pai e não da
mulher, que não seria a sua mãe, assim como o filho que a mulher tivesse e não
fosse do marido somente herdaria no que dizia respeito à sua parte e não à parte
do marido. Essa relação era simples para Bisol, mas parece que esses
Constituintes não lidavam bem com isso. A impaciência do Relator em relação às
oposições da igualdade entre filhos havidos no casamento e fora dele era tão
grande que é interessante apresentar a sua resposta para o tema:
Então, saio do meu casamento, crio uma vida intra-uterina, ela se faz vida
humana, sujeita de direitos pelo nascimento, e vai ter direitos diferentes? Não!
Falam tanto em vida intra-uterina! O pequenino que me sobra como homem, o
meu “espermatozoidezinho”, tão glorificado aqui... Pelo menos me deem o dever
de responder por esta vida! Mas, não fui eu que fecundei? Então, há uma
responsabilidade muito preocupante quanto à vida intra-uterina, mas, quando se
trata de uma saidinha de casa... Aí, vamos prestigiar o homem! É por isso que as
mulheres falam em machismo. E com toda a razão!115
De fato, Bisol observou bem a incoerência dos Constituintes que
pretendiam tutelar a vida intra-uterina, desde a concepção, muitas vezes
demonstrando-se preocupados até mesmo com os métodos contraceptivos, mas
que, no momento em que se pleiteava a igualdade entre os filhos, defendiam um
tratamento diferenciado. Realmente, por um lado esses Constituintes pareciam
incoerentes, pois se a preocupação era com a não relativização do direito à vida,
eles deveriam também se preocupar em garantir às crianças nascidas fora dos
casamentos, aquelas que ficavam em situações mais frágeis, especialmente porque
na época ainda havia a dificuldade do registro, um mecanismo para terem uma
vida digna. Porém, se a questão é analisada com cautela, esse tipo de articulação
não é incoerente, ao contrário, faz parte da lógica patriarcal, em que se a mulher
114
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 80). Sexta-feira, 19 de junho de
1987. P. 15.
115
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 80). Sexta-feira, 19 de junho de
1987. P. 15.
287
pratica o aborto nesses casos ela está sujeita ou as consequências da sanção penal
ou consequências físicas de prejuízo à saúde, enquanto que se ela resolve seguir
com a gravidez, o filho não tem o mesmo tratamento dos demais filhos, e, na
época, não teria também sequer o nome, resguardando a privacidade e o
patrimônio do homem.
Apesar de todas as explicações, José Mendonça de Morais ainda iria
insistir no “problema” do nascituro não ser sujeito de direito e sim ter expectativa
de direito, pois se dizia realmente “apaixonado” pelo direito à vida. “Meu
posicionamento está muito mais preso ao ser do que ao ter”116. A discussão ainda
seguiu com considerações sobre a vida intra-uterina, com uma breve colocação
sobre a possibilidade de o homem compartilhar a responsabilidade por essa vida e
ainda com a insistência de José Mendonça de Morais de que o embrião deveria ser
sujeito de direito, momento no qual Mário Assad encerrou a reunião.
No dia 12 de junho de 1987 foi realizada a décima terceira reunião da
Comissão, destinada à votação do substitutivo do Relator117. Nessa reunião, os
argumentos referentes ao procedimento ingressariam com mais força. O Relator
José Paulo Bisol, antes de iniciar a votação, esclareceria que, em virtude de
conversas com outros Constituintes, preferiu retirar do texto o item que se referia
à vida intra-uterina e concordava com o acréscimo de que essa vida intra-uterina
seria protegida por lei. Ele também havia concordado em retirar a expressão
“orientação sexual”, mas que não faria qualquer objeção caso houvesse o desejo
de incluir a expressão “comportamento sexual”, que a essa altura já se sabia
contar com maior aceitação. No momento seguinte José Mendonça de Morais
iniciaria um esforço para questionar o Regimento Interno, dizendo que ele não
esclarecia a forma como a votação deveria ocorrer. Ele pretendia que a votação
fosse realizada por títulos e capítulos, aplicando os dispositivos que faziam
referência à Comissão de Sistematização, artigos, 27 e 29 do Regimento Interno.
José Genoíno reagiu à proposta de José Mendonça de Morais, acusando-o de
tentar realizar o mesmo golpe que havia protagonizado na Comissão da Ordem
116
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 80). Sexta-feira, 19 de junho de
1987. P. 17.
117
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 87). Quinta-feira, 2 de julho de
1987. PP. 2-48.
288
Econômica, em relação à reforma agrária118. Sendo assim, para Genoíno, se a
Mesa da Comissão acolhesse tal pedido, o Regimento Interno seria desrespeitado.
José Mendonça e Morais, já havia expressado o desejo de votação por
títulos e capítulos com o intuito de ter supostamente maior objetividade, mas ao
mesmo tempo, dizia que iria votar contra o texto, por entender que a Comissão
tratava de princípios fundamentais que feriam a sua dignidade, especialmente de
“cidadãos que respeitam as leis naturais, que respeitam os princípios fundamentais
da Noção brasileira, que deseja fazer mudanças, mas não extravagantes e
revolucionárias a ponto de desestabilizarem a Nação”119. Ao constatar que sua
proposta de encaminhamento da votação não conseguiria êxito, determinou que
aqueles que pensassem como ele votassem em bloco pela não aprovação do
substitutivo do projeto e, posteriormente, pela aprovação das emendas. João
Menezes ainda iria acusar, mais uma vez, Bisol de ter esquecido dos trabalhos
produzidos pelas três Subcomissões e pela própria Comissão.
Em relação a duas das Subcomissões, em virtude do objeto em questão,
não se pode confirmar se o Relator de fato abandonou as propostas elaboradas
pelos Constituintes, mas o fato é que, no que dizia respeito aos debates na
Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais, especialmente nas demandas
trazidas pelos movimentos sociais, especialmente o movimento feminista e o
movimento de homossexuais, Bisol parecia ter sido bastante atento ao que
acontecia nesses trabalhos. Nesses termos, essa acusação seria infundada. Aluízio
Bezerra (PMDB-AC) também defenderia, junto com Anna Maria Rattes e José
Genoíno, o trabalho do Relator. Após a defesa realizada por Aluízio Bezerra, o
Presidente Mário Assad anunciava que o Substitutivo estava em votação120. O
Substitutivo apresentado pelo Relator foi aprovado com 41 (quarenta e um) votos
favoráveis e 17 (dezessete) votos contrários. Com isso, os anteprojetos das
Subcomissões estavam prejudicados.
118
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 87). Quinta-feira, 2 de julho de
1987. P. 9.
119
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 87). Quinta-feira, 2 de julho de
1987. P. 12.
120
A votação foi interrompida por uma discussão entre José Genoíno e Samir Achôa (PMDB-SP).
José Genoíno esclarecia que primeiro seria votado o Substitutivo e, posteriormente, destaques
supressivos, aditivos e modificativos. Parece que José Genoíno foi impaciente com o outro
Constituinte por ter entendido que a interrupção geraria distúrbios. Diário da Assembleia Nacional
Constituinte (Suplemento ao n° 87). Quinta-feira, 2 de julho de 1987. PP. 13-14.
289
Antes de iniciar as votações dos destaques, Bisol, novamente fez a ressalva
da alteração que já havia efetuado, suprimindo do texto o dispositivo referente à
vida intra-uterina. Também havia retirado a “orientação sexual”, ficando o
dispositivo com a seguinte redação:
Ressalvada a compensação para igualar as oportunidades de acesso aos valores da
vida e para reparar injustiças produzidas por discriminações não evitadas,
ninguém será privilegiado ou prejudicado em razão de nascimento, etnia, raça,
cor, idade, sexo, comportamento sexual, estado civil, natureza de trabalho,
religião, convicções políticas e filosóficas, deficiência física ou mental, o
qualquer outra condição social ou individual121.
Em relação aos temas de gênero, definitivamente, o esforço passava a ser
no sentido de não permitir o retrocesso em relação aos direitos, especialmente no
que dizia respeito às hipóteses permitidas de aborto pela legislação penal. Se
possível também seria tentar incluir alguma expressão que vedasse a
discriminação em virtude da orientação sexual, ainda que com a utilização de
outros termos. Sendo assim, a proposta de artigo acima exposta, por exemplo,
ainda era bastante progressista, pois trazia abertura para a possibilidade de ações
afirmativas e a expressão “comportamento sexual”, apesar de não ser esta
utilizada nem pelo movimento homossexual nem pelos acadêmicos que se
dedicavam ao estudo da sexualidade. Apesar, do esforço do Relator, mesmo a
expressão “comportamento sexual” passaria, a partir desse momento, a encontrar
resistência. Farabulini Júnior (PTB-SP) e Darcy Pozza (PDS-RS) se manifestaram
nesse sentido.
Na verdade, como o Relator alterou o texto após o prazo para que os
Constituintes enviassem os destaques, Darcy Pozza solicitava que as alterações
realizadas deveriam estar sujeitas a pedido de destaque para votação de forma
separada,
nesses
termos,
“comportamento
sexual”
deveria
ser
votado
separadamente. Bisol afirmou que já havia pedido de destaque que seria votado
adiante sobre ambas as expressões, portanto, em momento posterior da reunião, o
termo “comportamento sexual” foi votado. Farabulini Júnior defendeu a exclusão
do termo e Bisol, ao defender a redação do artigo foi bastante breve, somente
afirmando que se a pretensão do texto era proibir a discriminação entre pessoas e
em relação a minorias, seria contraditório tal artigo trazer nele próprio uma
121
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 87). Quinta-feira, 2 de julho de
1987. P. 15.
290
discriminação. Sendo assim, o Relator afirmava que aqueles desejassem a
discriminação de homossexuais deveriam votar sim e os contrários votariam não
para a retirada da expressão. Nesse momento, a expressão foi mantida,
conquistando 29 (vinte e nove) votos “não” e 12 (doze) votos “sim”.
O próximo item a ser submetido à votação e que interessa à análise era a
possibilidade de divórcios de forma ilimitada: “A lei não limitará o número de
dissoluções da sociedade conjugal”. Darcy Pozza defendia que a Constituição não
poderia permitir um número ilimitado de divórcios, mas não justificava seu
entendimento, dizendo somente que aparentemente experiências constantemente
renovadas estavam sempre destinadas ao fracasso. Bisol defendia a possibilidade
de inúmeros divórcio constatando que se ele fosse dificultado, as pessoas não
teriam estímulos para oficializar as novas uniões. Além disso, nada iria impedir as
uniões estáveis e a limitação do divórcio somente poderia fazer com que elas
aumentassem, pois seriam preferíveis ao casamento. Foram 31 (trinta e um) votos
contrários à limitação da quantidade de divórcio e 11 (onze) votos favoráveis a tal
limitação122.
Em relação aos temas referentes a gênero, a Comissão não votaria mais
nenhum dispositivo. Dos debates na Subcomissão dos Direitos e Garantias
Individuais e das votações na Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias
do Homem e da Mulher a grande surpresa foi a expressão “comportamento
sexual” ter conseguido êxito, apesar de não ser a almejada pelo grupo Triângulo
Rosa. Obviamente, já se sabe que esse não seria seu destino final. De qualquer
forma, apesar de todas as manifestações preconceituosas sobre homossexuais, o
problema enfrentado não foi nesses dois momentos.
A cogitação de limites às quantidades de divórcios também foi uma
surpresa, porém no sentido negativo. Não se poderia pensar na possibilidade de
que esse direito tivesse encontrado qualquer resistência entre os Constituintes,
uma vez que essa era uma demanda do início do século XX, que havia ingressado
tardiamente no ordenamento jurídico brasileiro, em 1977. As próprias militantes
do movimento feminista não demonstraram preocupação com um retrocesso nessa
área, pois a manutenção da possibilidade de divórcio não foi uma demanda.
122
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 87). Quinta-feira, 2 de julho de
1987. P. 23. Nesse mesmo trecho se encontra a votação anterior, referente à expressão
“comportamento sexual”.
291
Por fim, os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, na verdade, não
tiveram grandes chances, apesar de terem sido alvo de demanda por parte do
movimento feminista. A ameaça de retrocesso em relação às hipóteses permitidas
pela legislação penal ainda fez com que houvesse um claro esforço para que o
tema fosse retirado da pauta de discussão das Subcomissões, especialmente a
Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais e da Subcomissão da Família, do
Menor e do Idoso, conforme ainda será visto.
Com a análise dos debates na Subcomissão quanto na Comissão é possível
afirmar que aqueles estereótipos de gênero instaurados a partir do final do século
XIX e início do século XX se perpetuaram e produziram impacto na Constituinte,
ao menos nesta Subcomissão e Comissão já examinadas. Além disso, é
interessante também observar a forma como os argumentos de ordem científica
foram utilizados, e ainda retornariam em outras Subcomissões, bem como os
mecanismos pelos quais as mulheres Constituintes se apropriaram da “condição
de mulher” para ter autoridade para falar em determinados momentos, lembrando
o processo pelo meio do qual o feminismo surgiu na imprensa, a partir de uma
reapropriação das chamadas “virtudes femininas”, pleiteando direitos para as
mulheres no que se referia à participação política.
5
Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores
Públicos, Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio
Ambiente e Subcomissão dos Negros, Populações
Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias: o trabalho da
mulher e a condição da mulher negra, o papel social da
mulher brasileira e a reivindicação minoritária pela não
discriminação. Os reflexos desses debates na Comissão
da Ordem Social
As Subcomissões vinculadas à Comissão da Ordem Social enfrentaram os
temas correlacionados a gênero e direitos das mulheres sem grandes
manifestações contrárias nessas áreas. Essas Subcomissões pareciam ser mais
abertas às reivindicações dos movimentos sociais. Foram poucos os momentos em
que houve declarações explicitamente contrárias às demandas relacionadas a
gênero. Em regra, essas manifestações não surgiam de forma incisiva e direta, mas
podiam ser percebidos nas entrelinhas dos discursos. Até mesmo Florestan
Fernandes, por exemplo, na sua análise sobre a condição do negro no país,
diminuiria a intensidade da violência sobre a mulher negra, na comparação com o
homem negro. A ordem no enfrentamento das Subcomissões será a seguinte: a
primeira será a Subcomissão dos Trabalhadores e Servidores Públicos, a segunda
será a Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente, e, por fim, a
Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias.
A última etapa será a análise do anteprojeto da Comissão da Ordem Social. Cabe
ressaltar que as duas primeiras Subcomissões não trouxeram grandes debates
sobre gênero. Nesse sentido, decidiu-se por reuni-las em um mesmo tópico,
realizando uma análise integrada para facilitar a articulação posterior com a
Comissão da Ordem Social.
5.1
A Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores
Públicos: considerações sobre trabalho rural, urbano e doméstico,
medidas protetivas e licença gestante.
A Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos foi
instalada no dia 07 de abril de 1987. Geraldo Campos (PMDB-DF) foi eleito
Presidente da Subcomissão, como Primeiro Vice-Presidente Osmar Leitão (PFL-
293
RJ) e para Segundo Vice-Presidente Edmilson Valentim (PC do B- RJ). Mário
Lima (PMDB-BA) foi nomeado Relator da Subcomissão. A pretensão ao
selecionar essa Subcomissão para acompanhar os debates foi em virtude de uma
preocupação acerca do trabalho da mulher. Os entendimentos sobre esse tema
apontam as expectativas em relação ao papel que a mulher deve exercer
socialmente, assim como as discussões na Subcomissão da Família, do Menor e
do Idoso, abarcando os domínios públicos e privados. Por esse motivo foi
importante acompanhar esses debates. Direitos trabalhistas, normas protetivas do
trabalho da mulher e direitos específicos de licenças, bem como normas
específicas para a aposentadoria apontam para essas diferenças de papeis a serem
exercidos entre homens e mulheres, tanto em âmbito público quanto em âmbito
privado.
A primeira reunião em que surgiriam discussões sobre temas de gênero
seria a décima quarta e ocorreria no dia 4 de maio de 1987. O debate no qual o
tema surgiu envolvia condições de trabalho, desde higiene, passando por
segurança no ambiente de trabalho. O Constituinte Paulo Paim (PT-PE) afirmava
que a única forma de fazer com que os empregadores observassem os interesses
de empregados sobre o tema seria aumentar drasticamente o adicional de
insalubridade. Sobre isso, o Constituinte Edmilson Valentim (PC do B-RJ)
defenderia que, em virtude da diversidade de categorias, essas questões deveriam
ser deixadas para a legislação ordinária, mas a nova Constituição deveria trazer
princípios norteadores. Nesses termos, Edmilson Valentim apresentaria três
propostas para discussão:
É garantida a assistência sanitária, hospitalar e médico preventiva, assim como a
proteção adequada aos trabalhadores em locais de trabalho insalubres ou
realizadas em circunstâncias perigosas. Especial proteção será dada às mulheres e
aos menores de 18 anos.
A gestante terá descanso remunerado antes e depois do parto, sem prejuízo do
emprego e do salário integral.
Não será permitido o trabalho de mulher e menor de 18 anos em indústria com
nível de insalubridade que ponha em risco sua saúde, bem como qualquer
trabalho a menores de 14 anos1.
1
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 95). Quinta-feira, 16 de julho de
1987. P. 110.
294
As sugestões apresentadas traziam proteções ao trabalho feminino que não
tinham fundamentação. O trabalho insalubre era prejudicial à saúde de homens e
mulheres. Por esse motivo, a vedação desse tipo de trabalho deveria ser para
homens e mulheres. Nesse sentido, a preocupação de Paulo Paim (PT-PE) era
pertinente, pois na medida em que não houvesse estímulo financeiro para
submeter o trabalhador, homem e mulher, a essas condições, Paulo Paim
acreditava que os empregadores observariam mais as condições de higiene e de
segurança no ambiente de trabalho. O excesso de normas protetivas ao trabalho da
mulher implicava em duas desvantagens: em primeiro lugar, na restrição das
possibilidades de emprego por parte de mulheres, em segundo lugar, implicava
em uma resistência por parte de empregadores à contratação de mão de obra
feminina, o que já era observado pelo movimento feminista.
A condição da mulher grávida era, de fato, peculiar, havendo necessidade
de maior proteção, com o intuito de evitar as práticas abusivas em ambientes de
trabalho, que violavam a intimidade da mulher. Nesse sentido, a proposta de
Edmilson Valentim (PC do B-RJ) sobre a gestante não era adequada para alterar
essa condição. Na verdade, a partir do momento em que fosse rediscutida as
funções desempenhadas por homens e mulheres em âmbito doméstico e,
especialmente, nos cuidados com filhos, essa proteção poderia ser estendida aos
homens, e contribuiria para que a possibilidade de gravidez por parte de mulheres
de uma determinada idade não se transformasse também em maior dificuldade
enfrentada para ingresso no mercado de trabalho.
Ao longo dos debates sobre as condições de higiene e de segurança dos
trabalhadores, o Presidente Geraldo Campos (PMDB – DF) anunciou a presença
da comissão de empregadas domésticas na Subcomissão para que fosse entregue
um documento, o mesmo que seria também apresentado na Subcomissão dos
Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. A sra. Lenira de
Carvalho, representante da categoria, foi convidada para sentar-se à Mesa e
proferir a sua fala, bem como realizar a entrega do referido documento. Lenira de
Carvalho iniciaria seu discurso afirmando que tinha consciência de que os
Constituintes chegavam até aquele lugar na condição de representantes do povo,
e, por esse motivo, deveriam acolher as demandas das empregadas domésticas,
que também exerciam o voto. Em seguida, afirmava que, apesar do trabalho da
empregada doméstica ser produtivo, ele não era reconhecido como tal. Relatava
295
também que essas representantes haviam enfrentado grandes dificuldades para
conseguirem estar ali, como uma viagem de três dias de ônibus, em péssimas
condições e sem alimentação suficiente para ter a oportunidade de levar à
Constituinte as suas demandas. De fato, era realidade que o trabalho doméstico
implicava em uma função eminentemente feminina, sendo, na época, a maior
possibilidade de emprego para grande parte da população feminina, especialmente
pobre e negra, representando ¼ (um quarto) do emprego de mulheres do país,
conforme os dados trazidos pela representante apresentados no V Congresso
Nacional de Empregadas Domésticas, ocorrido em 1985.
O documento, elaborado nos dias 18 e 19 de abril de 1987 na cidade do
Rio de Janeiro, apresentava as demandas da categoria. As condições de trabalho
dessas mulheres não refletiam a importância das funções exercidas, como os
cuidados com limpeza, segurança e alimentação, bem como com a educação de
crianças, funções atribuídas tradicionalmente às mulheres e, repassadas, quando
possível, às mulheres pobres. Por isso, eram pouco valorizadas. As demandas
eram, aparentemente, simples, pois somente desejavam ser reconhecidas como
uma categoria profissional, com direito à sindicalização, salário mínimo
estabelecido nacionalmente, jornada de trabalho de quarenta horas semanais, 13°
salário, estabilidade após dez anos no emprego, ou então o Fundo de Garantia do
Tempo de Serviço, entre outros direitos trabalhistas já consolidados para
diferentes categorias. Sendo assim, não havia qualquer especificidade da
categoria. Elas somente desejavam serem alçadas às mesmas condições dos
demais trabalhadores. Ao contrário do que iria ocorrer na Subcomissão dos
Negros,
Populações
Indígenas,
Pessoas
Deficientes
e
Minorias,
nesta
Subcomissão a intervenção das empregadas domésticas iria implicar em
mudanças no debate. Porém, elas não encontrariam qualquer antipatia ou
resistência nesta Subcomissão, ao contrário, as manifestações de apoio foram
grandes. Essas demandas, chamadas de “aparentemente simples”, posteriormente
não seriam todas atendidas, demonstrando que a matéria ainda encontrava fortes
resistências.
Essas manifestações começaram pelos Constituintes Osvaldo Bender
(PDS-RS) e Santinho Furtado (PMDB-PR). O segundo parabenizou Lenira de
Carvalho porque ele já pretendia apresentar projeto envolvendo as donas de casa e
as empregadas domésticas possibilitando que ambas se filiassem à Previdência
296
Social2. Paulo Paim (PT-PE) afirmava que apresentaria proposta pela estabilidade
no emprego desde o primeiro dia, não somente após dez anos, e que iria defender
a extensão de todos os direitos dos trabalhadores para essa categoria. Ulisses de
Guimarães (PMDB-SP), Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, também
prestaria homenagens à categoria, pois estava se dirigindo até a Subcomissão para
receber o documento pessoalmente. As homenagens à categoria também
perpassaram o discurso do Constituinte Mansueto de Lavor (PMDB-PE). O
Constituinte aderiu às reivindicações das empregadas e ressaltou a importância da
empregada doméstica “para o equilíbrio e a formação da família”. Seguiu o seu
discurso prestando homenagem à sua própria empregada, a quem considerava
uma assessora importante para ele tanto de economia quanto de política. Na esfera
econômica, ela sabia todos os preços de produtos e cobrava ao final de cada
semana a posição do Ministro da Economia sobre o tema. Na esfera política ela o
lembrava da ausência de direitos para a sua categoria. Ressaltou que a
consideração dele pela empregada era tão grande que não a considerava uma
doméstica e sim como um membro da família3.
O discurso de Mansueto de Lavor, apesar de uma homenagem, era um
retrato da situação das relações domésticas. A importância da empregada “para o
equilíbrio e a formação da família” era uma simbólica, pois demonstrava que
aquelas funções da casa ainda eram femininas e que, caso a esposa não as
realizasse, deveria haver a presença de outra mulher para cobrir aquelas
atividades. Nesses termos, pode-se constatar que a saída das mulheres a partir da
classe média para o mercado de trabalho dependia dessa outra presença, uma vez
que aquelas funções não haviam sido renegociadas. A empregada doméstica
garantia esses cuidados e evitava o conflito. O fato de se considerar uma
empregada doméstica como membro da família demonstrava o vício dessa
relação, pois na condição de membro da família, ela não precisaria de direitos
referentes ao seu trabalho, como restrição da jornada de trabalho, salário mínimo,
décimo terceiro. Por outro lado, ser considerada como membro da família não
fazia com que ela tivesse direitos referentes às relações familiares, como o direito
sucessório ou à prestação de alimentos. O Constituinte demonstrava afeto por sua
2
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 95). Quinta-feira, 16 de julho de
1987. P. 115.
3
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 95). Quinta-feira, 16 de julho de
1987. P. 115.
297
empregada e prestava homenagem às empregadas domésticas ali presentes.
Porém, a sua declaração era permeada justamente pela inadequação dessa relação
do emprego doméstico.
O Relator Mário Lima (PMDB – BA) também prontamente faria
homenagens à sua própria empregada doméstica, sempre com o intuito de
reconhecer a importância de profissão tão pouco valorizada. Assim como o
discurso de Mansueto de lavor, a fala de Mário Lima apareceria repleta de
indicações de como essa era uma relação inadequada. No caso do Relator, o seu
discurso ainda estava mais impregnado dos estereótipos de gênero em relação às
atividades domésticas, pois apareciam de forma explícita, sem necessidade de
qualquer interpretação sobre a sua fala:
Gostaria de dizer, rapidamente, que se há quem entende o trabalho da empregada
doméstica ou tem que entendê-lo sou eu. Sou desquitado, moro sozinho e a minha
casa é dirigida por uma empregada doméstica. Não sei quanto custa nada.
Dificilmente teria uma atuação parlamentar boa, se não tivesse uma pessoa como
a Maria que eu tenho. (Palmas!) A lei que vier, não me obrigará a nada, porque
desde que cheguei à Brasília, há três anos, ela está comigo, as obrigações
previdenciárias estão pagas, não como favor, mas como obrigação. Não poderia
ser Presidente de Sindicato, de mente aberta, de consciência tranquila, se
explorasse um trabalhador. (...)
(...) Não sei o que é dirigir minha casa. Primeiro, porque não teria quem a
dirigisse. Realmente, quando a Maria viaja fico em dificuldades, porque eu não
sei de nada. Vê-se isso em todos os lares4.
O Relator, sendo desquitado, ou seja, não tendo a presença feminina na
figura de uma esposa, precisava ainda mais do apoio da empregada doméstica,
que além de se encarregar das atividades de limpeza, cozinha e cuidados com a
roupa, ainda precisava ocupar o lugar dessa esposa na gestão da casa, pois “ele
não sabia de nada”. Em seu discurso ele ainda assumia que a sua empregada era
fundamental para que ele pudesse exercer a sua função na esfera pública. Nesses
termos, para que ele desempenhasse seu trabalho no mundo público de forma
eficiente, precisava contar com uma presença feminina gerindo seu espaço
doméstico também de forma eficiente, ou empregada, ou esposa, ou então, ambas.
4
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 95). Quinta-feira, 16 de julho de
1987. PP. 115-116. Importante registrar que o Constituinte Domingos Leonelli seria o único a
apontar a incongruência do discurso sobre a empregada doméstica como membro da família,
mostrando que em regra todos pensavam dessa forma, afirmavam que suas empregadas eram
membros da família para, em seguida, negar-lhes direitos. Denunciava que essas mulheres no
Nordeste eram tratadas como escravas, comendo restos de comida e sendo usadas sexualmente na
puberdade dos filhos do patrão. P. 116.
298
Ao mesmo tempo, tal afirmação garantia que o fracasso do homem em sua
profissão, em sua carreira, era uma espécie de reflexo do fracasso dessas mulheres
em âmbito privado. Da eficiência de sua empregada decorria a eficiência dele no
mundo público. De qualquer forma, ele estava disposto a trabalhar para a
alteração da situação das empregadas domésticas nas relações de trabalho e seguiu
com suas considerações nesse sentido.
Ulisses Guimarães (PMDB-SP) chegaria, em seguida, à Subcomissão para
fazer um breve pronunciamento sobre a importância da participação das
empregadas domésticas, garantindo a elas que encontrariam nos Constituintes
componentes de tal Subcomissão o apoio necessário para transformar suas
demandas em direitos, concluindo seu discurso afirmando ser essa Constituinte, a
Constituinte dos pobres. Domingos Leonelli (PMDB-BA), em seguida, lembraria
também da condição da dona de casa, que eram “empregadas nas suas casas
quando não tinham empregada”. Em seu entendimento, o trabalho doméstico
deveria ser compreendido como valor econômico, que agregava ao processo
produtivo,5. Apesar disso, o seu valor econômico era inexpressivo no caso da
empregada doméstica, e completamente esvaziado na situação da dona de casa,
por não ter qualquer contrapartida em troca de sua realização. Sendo assim,
Domingos Leonelli defendia que a nova Constituição deveria consagrar o trabalho
doméstico como um trabalho que dizia respeito à produção e ao processo
econômico6. Sobre as propostas de Domingos Leonelli, Benedita da Silva (PT-RJ)
ainda afirmaria:
Esqueceram-se de que, na verdade, quando vamos discutir na ordem econômica,
não podemos deixar de lado a força de trabalho da mulher, que não se constitui
apenas em maioria agora, mas foi e é sustentáculo da economia deste País.
(|Palmas!)
E nós, mulheres, nós mães-pretas, nós babás, nós mulheres maravilhosas, enfim,
donas de casa, avós, amigas, companheiras, não tivemos até agora o direito que
pudesse reconhecer toda essa contribuição e até afetiva que temos dado a essa
sociedade. (...)
E aí, nessa luta, tenho um testemunho pessoal, como empregada doméstica e hoje
na Assembleia Constituinte: apenas com meus labores, consegui passar de
empregada doméstica, sem todo o direito do que é comum a um trabalhador nessa
área, quando faz no restaurante os seus bolinhos, quando nas manifestações
políticas até serve o grande banquete, mas tem a garantia do seu 13° salário,
5
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 95). Quinta-feira, 16 de julho de
1987. P. 116.
6
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 95). Quinta-feira, 16 de julho de
1987. P. 117.
299
enfim, o direito a suas férias; e nós somos levadas, ainda, a ser (sic) afetivas,
boas, dedicadas, numa dupla jornada de trabalho, porque, além disso, somos
também chefes na família. (Palmas!)
E é árduo para nós chegarmos aqui agora, no Congresso Nacional, e saber que
estamos, anos a fio, neste Congresso com projeto que pudesse atingir à
sensibilidade daqueles que nos antecederam, que têm em suas casas as
empregadas mais dedicadas, que têm em seu lar a esposa mais dedicada, a sua
filha mais dedicada, não foram sensíveis no momento em que estávamos pedindo
o reconhecimento da profissionalização das empregadas domésticas com todos os
direitos que nós temos. (Palmas!) (...) Nós estamos aproveitando o momento
constitucional, porque temos, agora, a plena convicção de que, se não for agora,
não o será jamais (...)7.
Entre os membros da Subcomissão presentes nesta reunião, todos
demonstrariam simpatia pelas demandas das empregadas domésticas, porém,
somente Benedita da Silva, membro de outra Subcomissão, mas que acompanhava
as representantes da categoria, e Domingos Leonelli demonstraram ter real
dimensão do problema que deveria ser enfrentado ali e que combinava os fatores
de gênero, raça, classe e atribuição de valores diferentes para as atividades
consideradas mais importantes economicamente e a completa desvalorização para
um trabalho tradicionalmente reservado à mulher. Se os trabalhadores tinham
ainda muitas demandas para levar à Constituinte, as empregadas domésticas
pretendiam, primeiro, serem igualadas às condições desses trabalhadores. A
função da dona de casa ainda teria mais dificuldades para ser compreendida como
produtiva economicamente.
A próxima reunião em que ocorreriam discussões sobre o trabalho da
mulher seria a décima oitava, no dia 6 de maio de 1987, com a participação de
Maria Elizete de Souza Figueiredo, do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias
de Fiação e Tecelagem de Salvador, e Antônia da Cruz Silva, coordenadora do
Movimento da Mulher Rural do Brejo Paraibano. A primeira a se manifestar foi
Antônia da Cruz, que apresentava a realidade da trabalhadora do campo, sem
qualquer direito trabalhista. O trabalho dessas mulheres era desconsiderado, pois
era compreendido socialmente como trabalho doméstico. Além da realidade do
campo não ser considerada para efeitos trabalhistas, ainda incidiam todas as
questões referentes ao trabalho doméstico examinadas anteriormente. Havia o
desamparo na esfera trabalhista e, além disso, essas mulheres não contavam como
nenhum amparo no que dizia respeito à saúde e à maternidade, nem de serviços
7
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 95). Quinta-feira, 16 de julho de
1987. P. 117.
300
que deveriam ser prestados pelo Estado, nem dos companheiros, que no máximo
as abandonavam na porta do hospital mais próximo, segundo o depoimento de
Antônia da Cruz8.
A ausência de apoio do direito e dos serviços de saúde não era o único
problema. A violência no campo ainda incidia com mais intensidade sobre essas
mulheres, de acordo com os relatos da representante. Nesse sentido, em regra, nos
conflitos de terra tanto agentes do Estado quanto seguranças de fazendeiros
preferiam agir contra mulheres em suas ameaças, e ainda estavam suscetíveis às
violências sexuais. Essa foi somente uma das denúncias ocorridas na Assembleia
Constituinte em relação à violência de gênero no campo. Em relação às demandas
jurídicas, elas pleiteavam a aposentadoria aos quarenta e cinco anos, pois em regra
começavam a trabalhar aos sete anos. Tal aposentadoria deveria ser independente
da aposentadoria do marido e referente ao trabalho no campo ou ao trabalho
doméstico e correspondente a, pelo menos, um salário mínimo. Também pediam
para que a titulação da terra fosse realizada no nome do casal, ou então que a
mulher chefe de família recebesse o título em seu nome, pois era comum ou o
marido morrer ou desistir da luta do campo e fugir, deixando a mulher e os filhos.
A mulher, portanto, enfrentava maiores dificuldades justamente por não possuir
aquela terra e seu nome.
Maria Elizete de Souza Figueiredo trazia a realidade da mulher urbana.
Naquele período, de acordo com estatísticas trazidas pela palestrante, as mulheres
já compunham 34% da força de trabalho do país9. Apesar do acesso ao trabalho
ter sido bastante importante no processo de emancipação das mulheres, essas
mulheres ainda enfrentavam discriminações nesses ambientes de trabalho, bem
como uma maior exploração de sua força de trabalho, estando sujeitas a salários
inferiores, com base no argumento da menor qualificação, apesar de as pesquisas
desenvolvidas por Elizabeth Souza-Lobo terem desmistificado esse tipo de
justificativa.
Em seguida, Maria Elizete apresentou a realidade da empregada
doméstica, que contava com férias reduzidas e, em regra, recebia no máximo,
60% do valor do salário mínimo, além de ter jornada de trabalho muito superior
8
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 98). Domingo, 19 de julho de
1987. P. 84.
9
Este dado era referente obviamente ao trabalho fora de casa, pois o trabalho como dona de casa
não era compreendido como trabalho.
301
em relação aos demais trabalhadores, sem sequer dispor de 8 horas de repouso
entre uma jornada e outra e, por fim, ter direito a somente um domingo de folga
por mês. Além de todos esses fatores, a mulher trabalhadora ainda sofria
discriminação tanto em relação ao estado civil quanto na maternidade. Quando ela
casava ou revelava que tinha filhos, era comum não ser aceita em emprego, ou
então ser demitida. A palestrante denunciava práticas de empresas que solicitavam
o absorvente da empregada, comprovando a inexistência de gravidez como
requisito para continuar no emprego, pois a maternidade era percebida como um
ônus para o empregador. O artigo 389 da CLT determinando a criação de creches
em empresas e fábricas que tinham mais de trinta mulheres em seus quadros de
funcionários ou era desconsiderado, ou as tais creches eram depósitos de crianças.
O requisito “boa aparência” se tornava um fator de discriminação sofrida por
mulheres, especialmente as mulheres negras, que de acordo com a palestrante,
eram as mais atingidas, o que as levava a ter como saída os trabalhos de menor
remuneração. A lista de reivindicações trazidas por Maria Elizete era bastante
interessante, especialmente em relação às garantias de participação igualitária de
mães e pais na responsabilidade de cuidados com os filhos:
1) Licença à maternidade, antes e após o parto, sem prejuízo de emprego e
salário, pelo período mínimo de três meses; 2) estabilidade no emprego
durante a gravidez e pelo período mínimo de 12 meses após o parto; 3)
proteção especial às mulheres durante a gravidez; nos tipos de trabalho
comprovadamente prejudiciais à sua saúde e à do nascituro, com
remanejamento de função, quando for necessário e com garantia do mesmo
salário; 4) berçários e creches nos locais e proximidades para as crianças de
zero a três anos e 11 meses, no mínimo, e em dois períodos diários, pelo
menos, para aleitamento durante o horário de trabalho; 5) licença à
paternidade durante o período natal e pós-natal, pelo período pré-natal e no
mínimo 12 meses após o parto; 6) extensão desses benefícios para ambos os
sexos, homens e mulheres no momento da adoção; 7) que seja garantida da
extensão dos direitos previdenciários das trabalhadoras urbanas às
trabalhadoras rurais como auxílio natalidade, salário maternidade, auxílio
doença e aposentadoria10.
Essas demandas haviam sido elaboradas no Congresso Nacional da Mulher
Trabalhadora, realizado em 1986. Apesar da contradição entre os itens 1 e 5 da
lista de reivindicações, as propostas eram inovadoras. A proteção ao homem em
virtude da paternidade poderia diminuir os preconceitos em relação à contratação
10
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 98). Domingo, 19 de julho de
1987. P. 84.
302
de mulheres. O que esses movimentos de trabalhadoras defendiam, bem como de
feministas, era que a licença maternidade fosse a única medida protetiva do
trabalho da mulher, para que ela não sofresse desvantagens nas possibilidades de
contratação. Caso houvesse a extensão da licença aos pais, as desvantagens não
incidiriam mais sobre as mulheres. Além de diminuir o preconceito contra
mulheres, a concessão de licença ao homem alteraria o entendimento de que a
licença maternidade era um direito da mãe, passando tal licença a ser tratada como
um direito da criança. Cabe ressaltar que até mesmo a extensão dessas licenças
para as mães adotivas não foi simples e não ocorreu em seguida à entrada em
vigor da Constituição de 1988.
A Constituinte Lídice da Mata (PC do B-BA) não pertencia a essa
Subcomissão, mas afirmava que acompanhava as apresentações de representantes
de mulheres trabalhadoras pelo seu interesse no tema. Nesse sentido, ela entendia
ser necessária a busca pela concretização da igualdade, sem que a legislação
trabalhista provocasse distorções nessas situações, conforme eram as leis que
traziam proteções ao trabalho da mulher. Sendo assim, eram necessárias
alterações na legislação. No primeiro momento, a preocupação seria reverter as
demissões de mulheres em decorrência do casamento e garantir que as mulheres
grávidas não fossem demitidas. Além disso, as mulheres grávidas também sofriam
dificuldades para serem contratadas, portanto, a demissão nesse período era ainda
mais grave para a sua condição. Ela ainda repetia a argumentação de uma das
palestrantes na qual as relações de trabalho não entendiam a maternidade como
uma função social.
Diante desse quadro, Lídice da Mata (PC do B-BA) pretendia apresentar
propostas em que a licença deveria contemplar homens e mulheres. Se, por um
lado, a necessidade de tal licença ser dada à mulher decorria do fato da
amamentação, por outro lado, o auxílio do homem era fundamental,
especialmente no período após o parto para dividir as tarefas de cuidados com o
filho. “Afinal, o filho não é só da mulher, mas também do homem”11. O que ela
pretendia era avançar na ampliação da licença concedida ao homem. Trazia a
realidade de alguns países nos quais a licença era concedida para pai e mãe,
11
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 98). Domingo, 19 de julho de
1987. P. 88.
303
acrescentando que sugeria que tal licença fosse optativa, ou para o homem ou para
a mulher12.
As representantes que haviam participado dessa reunião também pareciam
conquistar o apoio dos membros da Subcomissão, assim como havia ocorrido com
a representante das empregadas domésticas. A Constituinte Wilma Maia (PDSRN) ressaltava que as mulheres Constituintes, ou seja, a Bancada Feminina estava
apresentando proposta para que a maternidade não fosse mais considerada
meramente um estorvo para empregadores, valorizando a função paterna, com a
seguinte redação: “A função social da maternidade e da paternidade deve ser
considerada como valor social fundamental, devendo o Estado assegurar os
mecanismos do seu desempenho”13. Reconhecia que na medida em que a função
social da paternidade fosse afirmada, a rotatividade de mulheres, especialmente
das grávidas iria diminuir, garantindo uma posição melhor para a mulher no
mercado de trabalho.
O último problema suscitado sobre o trabalho da mulher nessa reunião
disse respeito às relações das mulheres trabalhadoras com os sindicatos, em uma
pergunta realizada pelo Constituinte Edmilson Valentim. Maria Elizete afirmava
que a relação naquela época já havia melhorado, mas ainda estava distante de ser
uma participação equilibrada. A pouca atuação das mulheres no movimento
sindical era decorrente da dupla jornada de trabalho, de acordo com Maria Elizete,
pois as mulheres não tinham tempo disponível para participar de atividades após o
período do trabalho, nem sequer contavam com o apoio dos companheiros para
que pudessem deixar suas casas por período superior ao horário da jornada de
trabalho para estar presentes em reuniões e em assembleias. Interessante observar
12
Sua preocupação parecia passar também pelo argumento da produção do país não ser afetada
com o afastamento de ambos do trabalho. Porém, Lídice da Mata não percebeu que se essa
possibilidade de escolha fosse dada, provavelmente recairia sobre a mulher o dever moral de
solicitar a licença, com o argumento da recuperação física e do aleitamento. Dificilmente as
disparidades em contratações, por exemplo, seriam solucionadas. Por isso, o ideal seria a licença
compartilhada por ambos. O argumento da amamentação, da função biológica da mulher para
determinar uma preferência em tal licença, a princípio, é forte, porém pode não ser sustentado,
pois o fato de a mulher não conseguir amamentar não faz com que a licença seja interrompida.
Esse aspecto ajuda a desnaturalizar a concessão da licença e afirmar a função social dos cuidados
com a criança, compartilhados entre homens e mulheres.
13
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 98). Domingo, 19 de julho de
1987. P. 89. Interessante observar que, apesar de muito se falar em Bancada Feminina na
Assembleia Constituinte, atuando em conjunto independente de partidos políticos, essa foi uma
das poucas referências realizadas a ela nas Subcomissões examinadas. Direitos sexuais e
reprodutivos, por exemplo, não contavam com esse apoio, e, em muitos debates, a Bancada
Feminina se concentrava na pessoa da Constituinte Benedita da Silva.
304
a adequação de seu discurso com o posicionamento de representante sindical que
havia participado de reunião na Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais e
afirmado que as mulheres não deveriam competir com os homens, e sim serem
companheiras, compreendendo os momentos em que eles não estivessem
disponíveis em suas casas por causa do movimento sindical. Antônia da Cruz
narrou as próprias dificuldades para fazer parte do Sindicato dos Trabalhadores
Rurais, na Paraíba, ouvindo o seguinte discurso: “as mulheres não precisam
frequentar o sindicato, seus maridos já o frequentam, vocês são muito teimosas” e
seguia Antônia da Cruz afirmando que “nós não tivemos, por parte dos
companheiros, nenhum apoio. (...) É uma barreira muito grande. Queríamos
avançar, mas assim mesmo, havia quem não quisesse”14. Quando as desvantagens
trazidas pela legislação não colocavam as mulheres em seus devidos lugares,
cabia a algum companheiro, ou na família ou no mundo do trabalho, essa tarefa.
Ainda haveria dois dias em que temas referentes aos direitos das mulheres
no âmbito do trabalho apareceriam. A vigésima reunião extraordinária, no dia 7 de
maio de 1987, traria o tema de forma pontual, na participação de José Francisco
da Silva, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura. Entre as
reivindicações apresentadas por José Francisco estava a licença gestante pelo
período de 180 dias. Interessante observar que, apesar de as mulheres
trabalhadoras não serem alvo direto de seu discurso, ele havia incluído essa
demanda. Porém, sua perspectiva era a tradicional, na qual a licença era concedida
somente à mulher. Posicionamentos como os de Lídice da Mata e de Maria Elizete
eram raros, tendo aparecido algo semelhante somente no discurso de Siqueira
Castro na Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais. Em seguida, Jair
Antônio Meneghelli, representante da Central Única dos Trabalhadores, pediria,
de forma breve, para que os direitos trabalhistas fossem estendidos às empregadas
domésticas. Posteriormente, o Constituinte Osvaldo Bender (PDS-RS) perguntaria
a José Francisco da Silva sobre a situação específica da mulher camponesa.
Porém, o representante se furtou a responder especificamente sobre o tema,
somente esclarecendo que eles trabalhavam de forma articulada em outras
14
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 98). Domingo, 19 de julho de
1987. P. 93.
305
Subcomissões e Comissões, como a da Ordem Econômica, para garantir os
interesses dos trabalhadores rurais, sem refletir sobre a condição da mulher15.
A vigésima quarta reunião, ocorrida no dia 22 de maio de 1987, já seria
dedicada ao anteprojeto apresentado pelo Relator, com a incorporação de algumas
emendas apresentadas pelos Constituintes. Antes de ingressar na votação do
anteprojeto, ainda houve discussão acerca do número de Constituintes
componentes da Subcomissão, que não será examinada aqui. Porém, cabe
ressaltar que o interesse dos Constituintes nessas definições estava relacionado ao
andamento da votação, já que mais Constituintes de um ou outro partido político
poderia ser algo que implicasse na alteração de prováveis resultados. No caso em
exame, a Subcomissão contava, até então, com vinte e quatro membros, porém, o
PMDB havia conquistado o direito de realizar mais três indicações para a
composição da Subcomissão, mas realizou somente mais uma indicação. O
Constituinte Osvaldo Bender demonstrava insatisfação com essa indicação e dizia
que a maioria da Subcomissão havia se posicionado em sentido contrário a essa
indicação. Porém, a Mesa considerou matéria já vencida, afirmando a regularidade
dessa indicação, pois atendia aos requisitos do Regimento Interno. Com o apoio
do Constituinte Francisco Küster (PMDB-SC), o Presidente Geraldo Campos
(PMDB-DF) encerrou a discussão sobre o tema. Essas alterações aconteciam
também em outras Subcomissões.
A maior discussão sobre direitos trabalhistas e gênero foi em relação à
licença maternidade. No anteprojeto apresentado, o prazo previsto era de 120 dias,
com a seguinte redação: “Licença remunerada da gestante, antes e depois do
parto, por período não inferior a 120 dias”16. Até aquele momento, o prazo
previsto era de 90 dias e a redação proposta aumentava, portanto, em 30 dias esse
período. O Constituinte Vivaldo Barbosa (PDT-RJ) requereu destaque em virtude
do prazo ter sido reduzido em relação à proposta de 180 dias. Mário Lima
justificava o período de 120 dias se apoiando na preocupação dos movimentos e
mulheres, que haviam demonstrado o receio de que um prazo mais longo fosse
criar ainda mais dificuldades de inserção de mulheres no mercado de trabalho.
Para defender a emenda dos 180 dias Vivaldo Barbosa fez uso de uma
15
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 101). Quarta-feira, 22 de julho
de 1987. P. 101.
16
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 104). Sábado, 25 de julho de
1987. P. 191.
306
argumentação que afirmava o modelo de mãe e o papel da mulher, lembrando
aqueles discursos do início do século XX, sobre as responsabilidades e as funções
que, na época, a mulher moderna deveria realizar, valorizando, inclusive o aspecto
maternal:
Em qualquer atividade empresarial não é possível que ela seja bem-sucedida com
o ser humano, que não recebeu um tratamento adequado, alimentação adequada,
que não se apresenta para o trabalho nas condições melhores de saúde, de
inteligência e de disposição. Não há dúvida que a vida, por milênios, já nos
ensinou que a mãe é quem melhor tem condições de propiciar assistência
psicológica, material, afetiva às crianças. A criança, no seu primeiro ano de vida,
se não receber adequadamente essa assistência material do leite materno, da
assistência materna, o carinho materno, a alimentação preparada com cuidado,
que só a mãe insubstituivelmente tem condições de preparar, sem dúvida
nenhuma, essa criança será um trabalhador deficiente depois, será um trabalhador
com menos energia, com menos inteligência, com menos criatividade no seu
trabalho.
Estranho e me preocupa a posição que alguns setores do Movimento de Mulheres
tiveram a esse respeito17.
Seria interessante que tal licença fosse por prazo mais amplo, em virtude
da necessidade dos cuidados com a criança. O problema da argumentação de
Vivaldo Barbosa era a naturalização dessa função. A preocupação manifestada
pelo Constituinte com relação aos movimentos de mulheres é simbólica nesse
sentido, como se eles traíssem esse papel natural, ensinado, em suas palavras, pela
vida. De fato, os movimentos de mulheres, especialmente os feministas, violavam
essas concepções, mas porque pensavam a partir do interesse das mulheres e não
de supostas posições decorrentes da biologia. Apesar das demandas das
trabalhadoras e a momentânea receptividade pelos Constituintes, esse aspecto
parece ter sido deixado de lado, provavelmente em virtude de encontrar mais
resistência no momento em que a proposta saísse da Subcomissão e passasse ao
exame das outras esferas da Constituinte, em que os interesses dos trabalhadores
não encontrariam o mesmo apoio. Não foi por outro motivo que a Constituinte
Wilma Maia (PDS-RN) se manifestou em defesa dos 120 dias, dizendo que havia
o receio que as mulheres sofressem preconceitos no mercado de trabalho e
esclarecendo que os movimentos de mulheres somente apoiavam os 180 dias se
17
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 104). Sábado, 25 de julho de
1987. P. 191.
307
não fosse conquistada a estabilidade nesse período. Realizada a votação, por
unanimidade, a proposta que aumentava a licença para 180 dias foi rejeitada.
Os dois últimos aspectos a serem tratados dessa reunião dizem respeito à
insalubridade e a tutela do trabalho e à necessidade de manutenção de creche em
determinadas empresas, que se relacionam com o tema. A proposta do Relator
Mário Lima (PMDB-BA) sobre insalubridade não apresentava a vedação em
virtude do gênero, atendendo às demandas feministas e tinha a seguinte redação:
“Proibição de trabalho em atividades insalubres e perigosas, salvo se autorizado
em convenção ou acordos coletivos; que tenha a remuneração do trabalho, nessas
condições, acrescidas de pelo menos 50%, sendo proibido o trabalho nessas
atividades aos menores de 18 anos”18. O fato de não haver restrição ao trabalho
feminino nessa proposta indicava que a perspectiva havia mudado, a preocupação
com a saúde, de fato, não fazia sentido ser vinculada ao gênero.
Em relação à manutenção de creches, Paulo Paim (PT-PE) apresentou
emenda somente para incluir uma expressão. O anteprojeto dizia que a empresa ou
departamento em que trabalhem mulheres deveria manter creches para crianças
até os seis anos e Paulo Paim propunha que a redação fosse alterada para “pelo
menos até os 6 anos”, dando margem para que se pudesse negociar um prazo
maior com o empregador. Edmilson Valentim também apresentou emenda em
relação ao mesmo artigo, mas para estabelecer um número mínimo de mulheres na
empresa para se exigir creche, com o argumento de que isso tornaria mais fácil
fazer cumprir a norma, pois não se montaria uma estrutura dessas para atender
poucas mulheres. Sua proposta era a presença de pelo menos 30 mulheres para se
exigir a creche, o que, em suas palavras, seria um avanço em relação à legislação
que estabelecia a presença de 100 mulheres. A emenda de Paulo Paim foi rejeitada
e a de Edmilson Valentim foi aprovada. Nenhum dos Constituintes propôs que
para a exigibilidade das creches passassem a ser contabilizados os empregados
homens, não somente as mulheres. Vinculando esse direito à mãe, não percebiam
que repetiam performativos de gênero que poderiam ensejar discriminação contra
a mulher no mercado de trabalho. Porém, essa vinculação persistiu na proposta.
18
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 104). Sábado, 25 de julho de
1987. P. 196.
308
5.2
A Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente e o
problema do corpo
A Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente, em 07 de abril
de 1987, fez sua primeira reunião, para eleger aqueles que seriam o Presidente,
Primeiro Vice e Segundo Vice. Entre os Constituintes presentes, havia Maria de
Lourdes Abadia (PFL-DF) como representante da “Bancada Feminina”. Como
Presidente da Subcomissão foi eleito José Elias Murad (PTB-MG), como Primeiro
Vice-Presidente foi eleito Fábio Feldmann (PMDB-SP) e para Segundo VicePresidente foi eleita Maria de Lourdes Abadia. Carlos Mosconi (PMDB-MG) foi
designado como Relator da Subcomissão19. Os temas de gênero não foram alvo de
muitos debates nessa Subcomissão e, quando eles surgiam, também não
proporcionavam grandes confrontos permeados por divergências de ordem moral
e religiosa entre os Constituintes e entre eles e representantes da sociedade civil.
A décima reunião da Subcomissão de Saúde, Seguridade e Meio
Ambiente, realizada no dia 28 de abril de 1987, foi a primeira na qual surgiram
propostas referentes a gênero, com a participação de Rodolfo Repullo Junior e
Maria Luiza Jaeger, representantes da Central Única dos Trabalhadores. Entre o
rol de demandas trazidas por Rodolfo Júnior, aparecia, em um dos primeiros itens,
a aposentadoria diferenciada entre homens e mulheres, com o período de 30 anos
de serviço para os homens e 25 anos de serviço para as mulheres, ou então aos 60
anos para ambos. Maria Luiza, ao tratar do tema da saúde, trazia propostas que
envolviam garantias às grávidas em ambiente de trabalho, bem como a saúde da
mulher, incluindo a possibilidade do aborto, mas sem mencionar essa palavra. O
teor das propostas era o seguinte:
- Transferência da gestante para outro local de trabalho ou atividade, sempre que
as condições de trabalho possam causar prejuízos à sua saúde ou a do feto, sendo
proibido o trabalho de mulheres em ambientes capazes de lesar a sua capacidade
de reprodução.
- Assistência à saúde pública, estatal, integral, e gratuita a toda a população, sem
qualquer discriminação ou distinção de condições individuais ou sociais, segundo
modalidades que assegurem a igualdade dos indivíduos em relação à prestação de
serviços, com garantias de opção de tratamentos.
19
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de
1987. P. 177. José Elias Murad
309
- Assistência integral à saúde da mulher em todas as fases da vida, independente
da sua condição biológica procriadora, exclusivamente, através de programas
governamentais, amplamente discutidos com as mulheres e o restante da
população, implementados com a sua participação e sob o seu controle.
- Opção quanto a ter ou não ter filhos, inclusive com a interrupção da gravidez,
com a garantia de acesso aos métodos anticoncepcionais e atendimento através do
Sistema Nacional de Saúde20.
Após a leitura dessas propostas não houve qualquer discussão sobre esses
temas, sequer sobre a possibilidade de aborto. Esse dado é relevante, uma vez que,
em outras Subcomissões, como na já apresentada Subcomissão dos Direitos e
Garantias Individuais, e na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, a
interrupção da gravidez ganhou muita proporção e as hipóteses permitidas pelo
ordenamento jurídico brasileiro correram o risco de serem proibidas. Nessas duas
Subcomissões em todos os momentos nos quais o tema surgiu houve muita
discussão, ao contrário do que aconteceu nessa reunião. Provavelmente, isso
decorria do fato de essas Subcomissões que compunham a Comissão da Ordem
Social terem sido, em regra, mais abertas aos movimentos sociais do que as outras
examinadas, especialmente se comparadas à Subcomissão da Família, do Menor e
do Idoso.
Considerações breves realizadas sobre a saúde da mulher também
apareceram na décima primeira reunião, ocorrida no dia 29 de abril de 1987, e na
décima segunda reunião, no dia 30 de abril de 1987. A própria Presidente da
Subcomissão, Constituinte Maria de Lourdes Abadia (PFL-DF), ao longo da
décima primeira reunião, traria a sua experiência como administradora de
trabalhos em favelas para colocar a questão da discriminação de mulheres pobres
nos atendimentos em hospitais públicos, em que médicos comumente se
recusavam a atender mulheres que vinham da comunidade de Ceilândia, pois
reclamavam que “estavam fedorentas”21, desconsiderando as dificuldades daquela
localidade, que não contava com água potável, e os problemas de saúde que esse
fato gerava. Além desses problemas de saúde, aquelas mulheres ainda lidavam
com discriminações que as faziam não ter acesso ao tratamento de doenças
decorrentes de condições precárias de higiene. No dia 30 de abril, o tema foi
20
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 98). Domingo, 19 de julho de
1987. PP. 96-07.
21
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 98). Domingo, 19 de julho de
1987. PP.124-125.
310
trazido por Antônio Sérgio Arouca, representante da Associação Brasileira de
Órgãos, mas que dedicaria uma parte de seu discurso às dificuldades no acesso às
maternidades, na região da Baixada Fluminense e o elevado índice de mortalidade
materna em virtude de ausência do setor público na região e do tratamento
inadequado prestado por clínicas particulares que atuavam na região22. Porém, em
nenhuma dessas reuniões houve debates sobre esses temas.
O planejamento familiar e o aborto surgiriam com maior notoriedade na
décima quarta reunião, realizada em 6 de maio de 1987. A participação que
colocou o tema do planejamento familiar foi a de José da Rocha Carvalheiro,
representante de uma sociedade que reunia diferentes associações científicas das
mais variadas áreas de conhecimento, chamada Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência. Interessante perceber que José da Rocha Carvalheiro
assumia que, apesar de no quotidiano a atividade do cientista ser isenta, na
verdade, os cientistas não eram neutros e não poderiam ser em um momento como
uma Assembleia Constituinte23. Essa afirmação era exatamente o oposto do
discurso que os médicos representante do Movimento Pró-Vida realizavam nas
Subcomissões. A proposta de artigo para a Subcomissão trazida pela SBPC
tratava do planejamento familiar como um mecanismo de assistência à mulher e
tinha a seguinte redação: “O direito a uma orientação sanitária correta, que
permita o acesso a métodos seguros de planejamento da prole e garanta meios de
controle da fecundidade e da infertilidade, compõem as múltiplas ações de
assistência à condição da mulher”24. Nessa Subcomissão parecia não haver tanta
resistência em relação ao tema, podendo ser constatada, posteriormente que, na
Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, em todos os momentos que se
mencionava o planejamento familiar, fatalmente a discussão era levada para o
tema do aborto.
A mesma reunião contaria com a Participação de Jacqueline Pitanguy, do
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, demonstrando que o referido
Conselho estava percorrendo as Subcomissões que poderiam tratar dos temas
22
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 98). Domingo, 19 de julho de
1987. PP. 140-141.
23
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 99). Segunda-feira, 20 de julho
de 1987. P. 174.
24
O discurso e a proposta do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher estão presentes em:
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 99). Segunda-feira, 20 de julho de
1987. PP 191-193.
311
referentes a gênero e direitos da mulher. Ao contrário do que aconteceu na
Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, nesta Subcomissão, a
representante do Conselho começava o seu discurso agradecendo o convite
realizado para que pudesse falar sobre saúde da mulher, uma vez que na
Subcomissão da Família, esse convite não teria ocorrido, conforme ressaltava o
Presidente da mesma, ao agradecer pela fala da representante do Conselho, apesar
de não ter sido convidada, conforme será exposto adiante. A saúde da mulher
dependia do acesso a condições materiais e psicológicas de existência, que
significavam desde alimentação adequada, acesso à água potável, saneamento
básico, habitação, acesso ao trabalho e lazer até apoio do Estado em relação às
situações de violência sexual, física e psíquica que muitas mulheres enfrentavam,
justificando-se a atuação do Conselho em tal Subcomissão25.
A saúde da mulher, de acordo com a exposição de Jacqueline Pitanguy,
passava por temas relevantes como maternidade, contracepção, infertilidade,
esterilização e aborto. A luta dos movimentos de mulheres era no sentido de
alterar legislações, hábitos e costumes que colocavam as mulheres em condições
desiguais, apesar dos consideráveis avanços ao longo do século XX. Uma das
maiores questões que deveriam ser enfrentadas parecia ser ainda a biologização da
experiência sexual, mas o esforço das lutas feministas envolvia demonstrar que a
sexualidade decorria de experiência sexual e não estava simplesmente relacionada
à biologia e, portanto, a reprodução decorria da sexualidade e não o contrário.
A reprodução, portanto, deveria ser tratada dentro do aspecto mais amplo,
que era a saúde integral da mulher. Nesses termos, Jacqueline Pitanguy tentava
inverter a relação que se realizava sujeitando a saúde da mulher à função
reprodutiva. O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher rejeitava práticas de
controle de natalidade, reduzidas a objetivos demográficos “que veem no útero da
mulher a causa da pobreza prática nas quais sejamos tratadas como meros objetos,
nas quais nosso corpo seja visto apenas como útero, desvinculado do quadro
maior de nossa saúde integral”26. Sendo assim, medidas de esterilização em massa
e uso indiscriminado de métodos contraceptivos, sem qualquer observância da
25
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 99). Segunda-feira, 20 de julho
de 1987. P. 191.
26
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 99). Segunda-feira, 20 de julho
de 1987. P. 192.
312
saúde da mulher eram combatidos pelo Conselho, ao mesmo tempo, rejeitava a
submissão da mulher aos ritmos biológicos.
Receber informações sobre o funcionamento do nosso corpo e ter acesso aos
métodos de regulação da fecundidade mais adequados às características de nosso
organismo, são condições básicas para o efetivo exercício deste direito e o
domínio de nosso ciclo reprodutivo.
É, portanto, fundamental que o Governo permita que o expressivo contingente da
população feminina do País, que, por diversas razões, especialmente de ordem
econômica, não tem acesso à informação nem a métodos de regulação da
fecundidade, possa, enfim, libertar-se da lei totalitária de submissão ao
biológico27.
A proposta formulada pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher era
a seguinte:
Art. Compete ao Estado:
I – prestar assistência integral e gratuita à saúde da mulher, nas diferentes fases de
sua vida;
II – garantir a homens e mulheres o direito de determinar livremente o número de
filhos, sendo vedada a adoção de qualquer prática coercitiva pelo poder público e
por entidades privadas;
III – assegurar o acesso à educação, à informação e aos métodos adequados à
regulação da fertilidade, respeitadas as opções individuais;
IV – regulamentar, fiscalizar, e controlar as pesquisas e experimentações
desenvolvidas no ser humano28.
Na justificativa de tal projeto, argumentava que o atendimento pelo
sistema de saúde estava restrito à maternidade, limitando-se à gravidez e ao parto
e, ainda assim, era ineficiente. Outros aspectos da saúde da mulher, como
assistência preventiva e diagnóstico precoce de doenças, prevenção de doenças
sexualmente transmitidas e repercussões biológicas e psíquicas de gravidez
indesejada
e
de
aborto
e
acesso
aos
métodos
contraceptivos
eram
desconsiderados, o que não correspondia à importância que a mulher havia
conquistado no mundo do trabalho e à importância da mulher na família. A
Constituição deveria, portanto, trazer o planejamento familiar e o Estado deveria
fornecer informações e técnicas contraceptivas com eficácia comprovada. Além
disso, Estado e entidades privadas deveriam se abster de efetuar qualquer tipo de
27
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 99). Segunda-feira, 20 de julho
de 1987. P. 192.
28
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 99). Segunda-feira, 20 de julho
de 1987. PP. 192-193.
313
coação sobre os indivíduos, diferenciando o planejamento familiar do controle de
natalidade.
Nessa mesma reunião, seriam ouvidos Cora Montoro e Amauri de Souza
Melo, representantes de oitenta e oito entidades femininas no Brasil, que, de
acordo coma Cora Montoro, não tiveram a oportunidade ainda de se manifestar na
Constituinte. Na verdade, Amauri de Souza Melo, Procurador de Justiça do
Distrito Federal e representante da Sociedade Beneficente de Estudos de Filosofia
faria uma breve colocação garantindo que todos os métodos contraceptivos eram
abortivos, mas esclarecendo que ele não teria condições de apresentar os
“argumentos científicos”. Por esse motivo, solicitava que o médico Herbert
Prachedes, da Academia Nacional de Medicina, pudesse participar de uma reunião
na Subcomissão. Em seguida, falaria brevemente que o único método não
prejudicial à saúde da mulher e não abortivo era o método natural, já apontando
para a palestra sobre método de Billings, que foi apresentado na Subcomissão dos
Direitos e Garantias Individuais e teria muito espaço também na Subcomissão da
Família, do Menor e do Idoso.
O Presidente José Elias Murad insistiu, então que Amauri de Souza Melo
explicitasse sobre quais seriam os métodos abortivos e ele repetia: “Todos os
anticoncepcionais são abortivos, todos!”29. Em seguida, o palestrante faria um
discurso sobre os debates na Constituinte, que envolviam questões importantes
como ecologia, educação e saúde, mas eram considerados por esses representantes
como ‘Direitos de ter” enquanto que a proposta deles era sobre “direitos de ser”,
para emendar em uma fala sobre a permissividade da época, que possibilitava a
utilização indiscriminada da liberdade sexual, sem qualquer responsabilidade:
“Assim a utilização do corpo também pode se constituir numa poderosa arma. E é
essa utilização indiscriminada do corpo que vai transformando este País, em uma
região de profunda permissividade, e é dessa permissividade que sai,
evidentemente, esse terrível flagelo que é a possibilidade do aborto”30.
Novamente percebe-se que essa Subcomissão era diferente das outras nas
quais o tema surgiu. Nenhum dos Constituintes ali presentes ingressava no tema
por argumentos religiosos ou pelo valor absoluto do direito à vida. O aspecto mais
29
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 99). Segunda-feira, 20 de julho
de 1987. P. 197.
30
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 99). Segunda-feira, 20 de julho
de 1987. P. 198.
314
importante de todos foi o fato de esse tipo de discurso não ter servido para
combater as hipóteses estabelecidas pelo artigo 128 do Código Penal, sobre a
possibilidade de aborto em gravidez de risco e em gravidez decorrente de estupro,
como aconteceu na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso. Ao contrário,
naquele momento, somente o Constituinte Eduardo Jorge (PT-SP) se manifestou
sobre o tema, mas em um sentido contrário da forma como as manifestações de
outros Constituintes aconteciam. Eduardo Jorge afirmava ter tido conhecimento
dos discursos sobre o aborto em outras Subcomissões e dos debates calorosos que
aconteciam após esses discursos. Por esse motivo, ele pensava ser importante que
a Subcomissão de Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente se manifestasse sobre o
tema, para que chegassem à Comissão de Sistematização diversas posições sobre
o assunto. Por ser um tema complexo, que envolvia sequelas violentas para
mulheres, ineficácia de métodos contraceptivos, valores religiosos e interesses de
clínicas particulares, ele precisava ser tratado pela Subcomissão, por pessoas que
se dedicavam ao tema da saúde, pois não deveria ficar suscetível a somente uma
posição religiosa. Além disso, afirmava também que o problema por trás desse
tipo de discurso dessas associações era o poder masculino político-administrativo
sobre a mulher31.
O Presidente José Elias Murad (PTB-MG) posteriormente passou a palavra
para Jacqueline Pitanguy, que ressaltou o fato de em nenhum momento o
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher ter apresentado proposta específica
sobre o aborto. Somente demandavam que o Estado garantisse que homens e
mulheres determinassem livremente a quantidade de filhos desejada e o
espaçamento entre eles, sem interferência do poder público e de interesses
privados. Em seguida, trazia o argumento de que a discussão sobre o aborto não
deveria ser feita na esfera constitucional. Sendo tema de saúde pública, deveria ser
realizada no âmbito da saúde pública. Jacqueline Pitanguy ainda afirmava que
qualquer pretensão de garantir o direito à vida desde a concepção violava um
direito adquirido das mulheres, positivado no Código Penal, nas hipóteses de
estupro e de risco para a vida da mulher. Sendo assim, ressaltava que naquela
Constituinte havia o risco de um retrocesso em relação à matéria, fazendo
referência aos rumos debates sobre o tema nas Subcomissões dos Direitos e
31
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 99). Segunda-feira, 20 de julho
de 1987. P. 199.
315
Garantias Individuais e na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso e nas
Comissões correspondentes. Por fim, reafirmava que o Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher entendia ser uma questão de saúde pública e se posicionava no
sentido de entender a discussão como necessária, mas não para ocorrer na
Constituinte e sim nos debates nas sociedades médicas em conjunto com grupos
de mulheres, a partir da perspectiva da saúde pública. O tema não deveria ser
tratado como uma forma de método contraceptivo, pois essa nunca foi a proposta
da militância feminista, apesar do Movimento Pró-Vida sempre relacionar os dois
temas.
Nelson Aguiar (PMDB-ES), Presidente da Subcomissão da Família, do
Menor e do Idoso, estava presente nessa reunião e foi um dos responsáveis pela
confusão ocorrida sobre o tema em tal Subcomissão. Desculpava-se pelo ocorrido,
garantindo que quando apresentou a emenda também para a Comissão da
Soberania e dos Direitos do Homem e da Mulher não imaginava que o tema seria
discutido de forma tão passional, mas entendia que se não houvesse concepção,
também não haveria vida. Justificava sua proposta na tutela da mulher desnutrida
e grávida, e como forma de proteger aquela criança, o direito à vida dela já
deveria estar resguardado, na medida em que a mãe estaria tutelada em prol da
criança. Nesse sentido, garantia que não havia pensado na restrição ao aborto para
apresentar sua proposta de tutela da vida desde a concepção. Apontava como um
dos problemas o fato de mulheres não ficarem restritas à realização do aborto
dentro das hipóteses legais. Afirmava, de forma contraditória, que entendia que tal
matéria deveria ser alvo de consulta popular e não ingressar na Constituição, pois
em suas pesquisas garantia não haver em nenhum lugar do mundo o aborto na
Constituição. Porém, encerrava sua fala afirmando que lutaria pela tutela da vida
desde a concepção, levando seu posicionamento até o Plenário da Constituinte32.
Após a fala de Nelson Aguiar, Carlos Mosconi (PMDB-MG) demonstrou
apoiar o argumento de Jacqueline Pitanguy de que o aborto não era tema para a
Constituição e o assunto era tratado, em regra, de forma equivocada e emocional,
desconsiderando as mulheres. Nessa Subcomissão, as reações definitivamente
eram diferentes. Na décima sétima reunião da Subcomissão da Saúde, Seguridade
e do Meio Ambiente, realizada no dia 13 de maio de 1987, haveria a participação
32
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 99). Segunda-feira, 20 de julho
de 1987. P. 201.
316
de Dermival da Silva Brandão, inscrito para proferir palestra sobre saúde33. Na
verdade, ele se dedicaria a combater o planejamento familiar, afirmando ser um
eufemismo para o controle de natalidade e combater também o Programa de
Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM) como elaborado puramente com
uma mentalidade anticoncepcional. Seu discurso faria caminho semelhante aos já
narrados na Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais e que serão
apresentados na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso. Em suma,
criticava a forma como o sexo era tratado ou banalizado pela sociedade, assim
como um suposto estímulo para que adolescentes se iniciassem sexualmente e
passassem a fazer uso de contraceptivos. Nessa lógica, a gravidez era considerada
um subproduto e, por isso, se reivindicava o aborto. Além disso, ele relacionava
sexo a drogas, afirmando que estas estavam invadindo as casas. Sendo assim, não
era fornecendo pílula que a saúde física e mental da juventude ficaria resguardada.
Posteriormente, ainda combateu o uso do dispositivo intra-uterino e da pílula.
Aquele era abortivo e esta possuía efeitos antifisiológicos:
(...) uma mulher toma a pílula justamente porque ela é uma mulher normal, tem
uma ovulação que é um fenômeno fisiológico, em torno do qual gira a sua
feminilidade; e esse fenômeno tem que ser destruído, porque ele envolve a
ovulação, e a ovulação é o que vai possibilitar a formação de um novo ser, o
neném. Então é uma antimedicina, é dado um remédio, uma droga que vai
desequilibrar o organismo, a fisiologia feminina34.
Após a análise das desvantagens e malefícios da pílula para a fisiologia
feminina, capaz de destruir aquilo que garantia a “feminilidade da mulher”, o
médico traria para a Subcomissão os slides sobre o aborto, que também foram
apresentados nas outras duas Subcomissões, afirmando que aquilo era um ser
vivo, humano e completo. O desenvolvimento do debate sobre o tema continuou
sem a intensidade das outras Subcomissões. O Constituinte Eduardo Moreira
(PMDB-SC) apoiava os projetos de planejamento familiar que pretendiam
informar às populações pobres e disponibilizar a essas mulheres possibilidades de
controlar a possibilidade de engravidar. A desinformação atingia até mesmo o
método natural, defendido pelo médico. O Constituinte Raimundo Resende
33
Conforme Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 100). Terça-feira, 21
de julho de 1987. P. 163.
34
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 100). Terça-feira, 21 de julho de
1987. P. 169.
317
(PMDB-MG) se manifestou contrariamente ao aborto, ressaltando que era
favorável à permissão dele nos casos já estabelecidos pelo Código Penal.
Solicitou, portanto, que o palestrante se manifestasse sobre o tema.
Nesse sentido, o discurso do médico era o mesmo elaborado nas outras
Subcomissões, ou seja, o feto não era responsável pelos atos do pai e não podia
sofrer as consequências decorrentes dele. “Sei do drama desta moça que vai
carregar nove meses uma gravidez. Mas posso matar o seu filho por causa disso?
É a pergunta que deixo. Posso matar? É um ser vivo humano e inocente, cuja vida
deve ser protegida por lei”35. Se o feto não podia responder pelos atos do
estuprador, de acordo com esse entendimento, a mulher, por causa da biologia,
tinha a obrigação de suportar as consequências. Em cada discurso desses
representantes da militância contrária ao aborto sobre a gravidez decorrente de
estupro e a gravidez de risco ficava evidente o quanto a mulher era secundária, ou
nas palavras de Jacqueline Pitanguy, vistas como um “mero útero”. O Constituinte
Adylson Motta (PDS-RS) perguntaria ao palestrante sobre a hipótese de gravidez
de risco para a mulher e o médico insistiria em afirmar que a medicina entendia
não existir mais casos com esse tipo de indicação. Adylson Motta, em seguida,
faria uma defesa equivocada do controle de natalidade, em parte confundindo com
o planejamento familiar e em parte também preocupado com a explosão
demográfica, ressaltando que parecia que o palestrante desconhecia a realidade do
país. Em que pese a discussão ter se prolongado nessa reunião, em nenhum
momento esses Constituintes fizeram uso de argumentos morais ou citações a
textos religiosos para justificar o seu posicionamento e a sua pretensão de estendêlo para o texto constitucional, mesmo aqueles que se manifestaram contrariamente
ao aborto.
Na décima nona reunião da Subcomissão, ocorrida no dia 19 de maio de
1987, já foram colocadas questões sobre a elaboração do anteprojeto e de emendas
que seriam apresentadas pelos Constituintes para ingressarem na proposta do
Relator. Nessa reunião foram discutidos alguns temas de gênero, porém, de forma
superficial e sem que nenhum deles gerasse grandes debates. O Constituinte Paulo
Macarini (PMDB-SC) trouxe a questão das mulheres dona de casa que
35
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 100). Terça-feira, 21 de julho de
1987. P. 171.
318
trabalhavam no campo e que trabalhavam na cidade, para mencionar que
precisavam ser pensadas em relação à Previdência Social.
O Constituinte Eduardo Jorge ( PT-SP) falou sobre as emendas que o
Partido dos Trabalhadores estava elaborando para auxiliar na redação do
anteprojeto. Uma dessas emendas seria sobre seguridade e maternidade,
aumentando o período da licença maternidade para 180 dias, para que a mãe
amamentasse mais tempo auxiliando no desenvolvimento da criança, fazendo com
que o tema fosse abordado também nessa Subcomissão. A licença paternidade não
foi mencionada pelo Constituinte. Sobre essa questão o Relator Carlos Mosconi
(PMDB-MG) tinha dúvidas. Não pensava ser viável conceder uma licença de 180
dias, pois não havia tradição no país de proteção às questões sociais. Ao mesmo
tempo, reconhecia que o fato de não haver creches disponíveis para que a mãe
voltasse ao trabalho também deveria ser considerado. Em relação à possibilidade
da aposentadoria, o Relator e o Constituinte Floriceno Paixão (PDT-RS)
defenderam a aposentadoria por tempo de serviço, para mulheres aos 25 anos e
para homens aos 30 anos. A aposentadoria com um menor tempo de serviço para
as mulheres sempre era defendida em virtude da dupla jornada, conforme a
colocação da Constituinte Abigail Feitosa (PMDB-BA), que também aderia à
licença maternidade de 180 dias36. Era difícil que a lei determinasse que caberia
ao homem a divisão do trabalho doméstico. Portanto, objetivamente era mais fácil
prever essa diferença e compensar a dupla jornada na aposentadoria, assumindo
que essas funções sociais se perpetuavam da forma tradicional, em que as
mulheres ficavam responsáveis pelos cuidados com a casa e a família.
A apresentação do texto do anteprojeto ocorreu na vigésima quarta
reunião, no dia 25 de maio de 1987. Os artigos que trariam os temas referentes a
gênero eram os seguintes:
Art. 13. Compete ao Poder Público prestar assistência integral à saúde da mulher,
nas diferentes fases da sua vida; garantir a homens e mulheres o direito de
determinar livremente o número de filhos, sendo vedada a adoção de qualquer
prática coercitiva pelo Poder Público e por entidades privadas; assegurar o acesso
à educação, à informação e aos métodos adequados à regulação de fertilidade,
respeitadas as opções individuais.
Art. 17. Os planos de seguro e assistência social do sistema atenderão, nos termos
da lei, aos seguintes preceitos:
36
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao n° 100). Terça-feira, 21 de julho de
1987. P. 189.
319
III – proteção à maternidade, notadamente à gestante, assegurado descanso antes
e após o parto, com remuneração igual à percebida em atividade.
Cabe ressaltar que em nenhum momento o tema da orientação sexual
esteve em pauta na Subcomissão. Por esse motivo, não esteve em pauta o tema
referente à proteção de companheiros do mesmo sexo pela Previdência, por
exemplo. Nesses moldes foram encerradas as atividades na Subcomissão de
Saúde, Seguridade e do Meio Ambiente, sem muitas divergências em relação aos
temas de gênero. Não houve nenhum posicionamento mais radical no sentido de
ampliação de direitos, contrariamente ao que aconteceu, ainda que pontualmente,
na Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos, em relação
à proposta de Lídice da Mata sobre a licença paternidade. Por outro lado, também
não houve nessa Subcomissão nenhum perigo de retrocesso, conforme havia
acontecido na Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais e na
Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, em relação à possibilidade de
interrupção da gravidez decorrente de estupro ou que gerasse um risco para a vida
da mãe.
5.3
A Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas Pessoas
Deficientes e Minorias: interseccionalidades, ou a condição da
mulher negra e da orientação sexual.
A Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e
Minorias iniciou seus trabalhos no dia 07 de abril de 1987. Foi eleito como
Presidente da Subcomissão o Constituinte Ivo Lech (PMDB-RS) , como Primeiro
Vice-Presidente Dodreto Campanari (PMDB-SP) e para Segundo Vice-Presidente
Bosco França (PMDB-AL). Alceni Guerra (PFL-PR) foi nomeado como o Relator
da Subcomissão. Foi essa Subcomissão que primeiro discutiu temas pertinentes a
gênero dentro da Comissão da Ordem Social e foi essa mesma Subcomissão que
contou também com a participação bastante ativa da deputada Benedita da Silva
(PT-RJ) . A primeira fala do Presidente foi toda no sentido da valorização das
minorias que aqueles constituintes estavam dispostos a representar, e Benedita foi
colocada da forma como ela mesma se apresentara até então, como mulher negra:
“Não exerceremos a Presidência de uma maneira autoritária. Gostaria de repartir
essa Presidência com todos os companheiros. Constato com alegria a presença da
320
mulher, a Deputada Benedita da Silva, da mulher negra, que vem somar e
qualificar esta Subcomissão”37. A presença de Benedita foi em diversos
momentos bastante celebrada por outros companheiros, mas difícil ali pareceu ter
sido realmente o mergulho na especificidade da mulher negra brasileira.
Benedita da Silva se manifestou logo no início, ressaltando a importância
do momento vivido, além de agradecer pelo fato de poder fazer parte dele, assim
como tantos outros constituintes faziam, lembrando que era a primeira vez que
uma mulher negra chegava à Constituinte. Não se pode afirmar que nas demais
Constituintes não havia, por exemplo, um deficiente físico, mas o fato era que se
havia, ele não conseguiu chegar à Constituinte como deficiente físico, assumindo
essa causa. Desde o início, a deputada demonstrou que sua proposta ia além das
propostas dos demais Constituintes, pois, como uma decorrência de sua própria
experiência, demonstrava preocupação com a condição de minorias que eram alvo
de discriminações em mais de um aspecto, as interseccionalidades, como era o
caso das mulheres negras, sujeitas às opressões de gênero e raça. Benedita estava
constantemente atenta em relação ao tema, sempre lembrando de prováveis grupos
que não tivessem condições de se organizar para a participação das audiências
públicas nas Subcomissões.
E quero, neste momento, para que também conste em Ata, dizer que não somos
minoria, somos maioria que ficou até então marginalizada de todo esse processo,
e que hoje, quantitativamente, não temos uma grande representação. Nós temos
uma representação digna, como tantas outras, e a nossa Constituição fará justiça
com o resgate dessa dívida social que a sociedade tem para com cada um desses
segmentos que se encontram marginalizados. Não somente com aqueles que têm
deficiência, não somente com os negros, ou com os indígenas, nós também
estamos preocupados com as chamadas minorias. Nós ainda temos uma
representação. Os indígenas não têm esta representação neste momento histórico.
Nós sabemos também que essas minorias, que envolvem desde o
homossexualismo à prostituição, todos esses segmentos são marginalizados e não
têm uma representação. Mas eu quero crer que todos nós aqui estamos com o
propósito de fazer valer o direito de cada um desses cidadãos e dessas cidadãs38.
Alguns pontos importantes podem ser extraídos desse trecho. O primeiro
diz respeito ao entendimento do que seriam as minorias. Ela ressaltou que, muitas
das minorias eram, na verdade, maiorias na perspectiva quantitativa, mas isso não
37
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de
1987. P. 179.
38
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de
1987. P. 180.
321
implicava em participação política com peso correspondente à quantidade de
negros ou de mulheres, por exemplo, existentes na população. Essa questão da
maioria quantitativa, apesar de ser um argumento bastante simples, sempre
retornava nas discussões envolvendo minorias e era necessário relembrar que as
definições de minoria e maioria não eram elaboradas seguindo o critério
quantitativo. Além disso, a deputada ainda reconheceu que existiam grupos que
sequer puderam ter um representante ou estavam aptos a elegerem alguém para
cuidar de seus interesses no momento de elaboração da nova Constituição e que,
por pior que fossem as condições dos negros, por exemplo, ou dos deficientes,
eles ainda poderiam contar com gente que observaria seus interesses.
Nesse sentido, caberia à Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas,
Pessoas Deficientes e Minorias garantir que esses outros interesses fossem
representados na Constituinte, justamente em virtude de contar com a expressão
“Minorias” em seu título. A deputada parecia estar aberta para ouvir aqueles que
sentissem necessidade de se manifestar, citando como exemplo dos que se
encontravam em situação de maior fragilidade os homossexuais e as prostitutas.
Esse entendimento foi compartilhado por grande parte dos membros dessa
Subcomissão, mas sempre há exceções e a situação dos homossexuais era um dos
fatores controvertidos em três das Subcomissões, ou nas três nas quais eles
participaram. Nessa dedicada às minorias, foi por pressão de Benedita que eles
conseguiram um espaço mínimo, em outras Subcomissões eles foram deixados de
lado. Um dos poucos que também trouxe o tema foi José Carlos Sabóia (PMDBMA), em seu esforço de levantar os possíveis temas que deveriam ser discutidos
na Subcomissão: “Não esqueçamos do que significa ser homossexual, nessa
sociedade, e o que os códigos dizem, como eles reprimem, como eles discriminam
e estigmatizam todas as pessoas, que por opção, ou porque por qualquer motivo,
são homossexuais”39
No que diz respeito à colocação “resgate dessa dívida social que a
sociedade tem para com cada um desses segmentos que se encontram
marginalizados”, pode-se extrair desse trecho a noção de ações afirmativas.
Apesar de as reflexões sobre as medidas de ação afirmativa terem se iniciado
naquele momento, elas não encontraram forças para sua concretização. Seria a
39
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de
1987. P. 186.
322
ação afirmativa mais uma das diversas questões minoritárias que sairiam
pendentes da Constituinte, entre um rol respeitável, que iria desde a possibilidade
de união estável entre casais homossexuais, passando pela licença parental e
chegando à discussão do direito ao corpo40. Somente em momento posterior as
minorias encontrariam forças para colocar o tema na agenda política41.
Ocorreu também grande discussão sobre a ordem dos trabalhos nessa
Subcomissão, especialmente em que momento as audiências públicas iriam
acontecer. O Presidente Ivo Lech esclareceu que seria destinado às audiências
públicas o número máximo de dias previstos como possíveis, o que significava
oito dias. Desde o início, algumas entidades já haviam manifestado interesse em
falar e fazer mobilizações nacionais para que viessem representantes de diversos
estados, como foi o caso da APAE. O Presidente falava sobre os deficientes
físicos como exemplo de mobilização por diferentes estados. Nesse sentido, ele
demonstrava preocupação uma vez que pensava que esses representantes não
ficariam satisfeitos de ir até Brasília para falar somente durante dez minutos. Essa
Subcomissão foi a que mais demonstrou interesse em garantir ao maior número
possível de grupos a possibilidade de defenderem seus interesses conforme expôs
o próprio Presidente: “Estou pedindo, também, aos amigos e companheiros, que
estão aí presentes que também nos ajudem, Paulo Roberto, o pessoal do
Ministério da Cultura, que nos ajudem a sugerir qual a maneira mais democrática,
qual a maneira mais profícua, mais criativa de ouvirmos toda essa gente”42.
É importante notar como a questão do tempo, da gestão do tempo e do
cumprimento dos prazos perpassou as Subcomissões provocando impactos
diferentes. Na Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais houve um impasse
maior em relação ao tempo, com personagens que claramente queriam limitar o
40
É interessante reparar ao longo desse capítulo como essas questões que saíram pendentes da
Assembleia Constituinte conseguiram ganhar força posteriormente para retornarem à agenda
política. As próprias medidas afirmativas retornaram, assim como o movimento LGBT, agora já
constituído e organizado conseguiu reverter a situação da união estável. A discussão sobre a
possibilidade de interrupção da gravidez provavelmente será um dos próximos passos, e o
movimento feminista deverá estudar mecanismos de condução dessa discussão para não ser
deixado de lado.
41
desde as ações afirmativas mais facilmente identificadas, como as cotas para negros em
Universidades, até mesmo uma nova legislação para tratamento adequado do problema da
violência doméstica, que somente se transformou em causa para as feministas no fim da década de
1970 e somente teve reformulação no campo jurídico em 2006. Esses problemas não apareceram
diretamente discutidos nessa Subcomissão, especialmente o da violência doméstica, mas são
exemplos recentes de medidas de ação afirmativa.
42
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de
1987. P. 184.
323
máximo possível a participação da sociedade civil na Constituinte. Porém, esse
parece não ter sido o caso da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas,
Pessoas Deficientes e Minorias. Ao contrário, em todo o tempo os membros de tal
Subcomissão se empenhavam em pensar em interessados na participação das
audiências públicas, querendo garantir que aqueles que haviam procurado por
Constituintes para expor o seu desejo de falar sobre suas demandas fossem
devidamente ouvidos. Nesses termos, os Constituintes sugeriram que a Federação
Nacional das APAEs estivesse presente, assim como a Federação das Pestalozzi,
ambas com atuação primordialmente com deficientes mentais. Também foram
mencionados representantes dos cegos, surdos, deficientes físicos e outras
deficiências43.
O Presidente Ivo Lech (PMDB-RS) ainda mencionou o fato de ter sido
procurado pelos grupos dos talassêmicos e ostemizados. O Constituinte Nelson
Seixas (PDT-SP) havia ressaltado que um dos dias deveria ser deixado para as
minorias, sem uma preocupação de dizer quais seriam essas minorias. Após a
colocação do Presidente sobre os talassemicos e osteomizados, Nelson Seixas
entendeu que esses grupos deveriam ser deixados para esse suposto dia das
minorias44. Essa afirmação é interessante na medida em que não estabelece
nenhum critério definindo o que seria um grupo a ser deixado no dia atribuído às
minorias em vez de incluí-los nos grupos dos deficientes. Demonstra que eles
estavam de fato em um projeto de esforço conjunto para garantir a participação
popular. Nelson Seixas foi o primeiro a demonstrar preocupação com o que dizia
respeito à matéria constitucional, colocando que seria mais importante um bom
artigo, um artigo bem escrito que trouxesse uma série de direitos do que a
inclusão de todas as particularidades na Constituição, pois as minorias sairiam
frustradas com o projeto. Benedita da Silva demonstrou estar preocupada com isso
e entendeu que as Subcomissões deveriam contar com o auxílio de juristas para
identificar essas matérias, em vez de deixar para a Comissão de Sistematização
selecionar o que seria matéria constitucional e o que seria matéria para legislação
43
Conforme consta no anexo à ata da segunda reunião dessa Subcomissão, ocorrida no dia 09 de
abril de 1987, em uma fala de um Constituinte não identificado. Diário da Assembleia Nacional
Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de 1987. P. 185.
44
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de
1987. P. 185.
324
ordinária45. Esse diálogo ilustra como a definição do que seria matéria
constitucional esteve presente nas Subcomissões e como poderia ser utilizada
politicamente para determinar a inclusão ou exclusão de uma matéria no rol de
assuntos a serem debatidos nas Subcomissões.
Tal Subcomissão teve o início de seus trabalhos bastante celebrado entre
os Constituintes que a compunham, mas ao mesmo tempo eles sabiam também
que alguns dos temas poderiam até mesmo contar com maior simpatia dos
membros da própria Subcomissão, como também teriam encaminhamento melhor
na Comissão, mas a maior parte poderia sofrer reflexos dos preconceitos sociais
existentes em relação a eles. Não foi por outro motivo que Benedita da Silva
demonstrava estar preocupada em dar publicidade a esses temas, em divulgá-los
em um esforço para conquistar a opinião pública: “Nós temos ainda que
sensibilizar muito, nós pegamos os temas malditos, então nós temos que
sensibilizar muito ainda o Congresso, a sociedade, a imprensa para essa
questão”46.(grifo nosso).
Esse início das atividades da Subcomissão ainda apontava outro fator que
sempre foi alvo de disputa entre os movimentos minoritários: quem poderia
representá-los? Quem falaria em nome deles? O próprio movimento feminista já
havia sido obrigado a enfrentar essas perguntas, na medida em que sua
legitimidade para a representação dos grupos de lésbicas e de mulheres negras
havia sido questionada nos Estados Unidos, por exemplo, com a chamada
“ameaça lilás”47, e começava a ser questionada no Brasil. Esses são problemas
vivenciados pelas minorias, em virtude da afirmação da identidade. Afirmar
identidade sempre seria repetir um processo de exclusão. A mulher do feminismo
liberal era diferente das demais. Ao mesmo tempo, na medida em que essas outras
mulheres afirmavam essa exclusão e se constituíam como identidades específicas
elas também repetiam a exclusão. A partir da constatação desse procedimento,
caberia uma reflexão sobre a adequação de defender a impossibilidade das
identidades, somente apontando o seu problema ou se isso implicaria em uma
45
O diálogo entre os Constituintes Nelson Seixas e Benedita da Silva se encontra em Diário da
Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de 1987. P. 185.
46
Final da fala de Benedita da Silva. Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao
nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de 1987. P. 186.
47
Referência feita ao movimento de lésbicas nos Estados Unidos, que apontou os processos de
exclusão praticados pelo próprio movimento feminista, acusado de ignorar demandas em relação à
sexualidade dessas minorias.
325
recaída no discurso do “sujeito universal”. Certamente, a saída não poderia ser a
última. Esses são problemas que sempre são colocados para as minorias, por isso,
também retornam ao longo do presente trabalho. Essas questões, estudadas pelas
feministas especialmente pós-estruturalistas, estiveram marcadas na Subcomissão,
não de forma específica pela questão da mulher, mas em virtude da diversidade
dos movimentos minoritários, permeando o discurso do Constituinte José Carlos
Sabóia (PMDB-MA):
Uma segunda colocação que eu queria fazer seria com relação a diversidade dos
movimentos sociais e das instituições que reivindicam para si, em alguma
situações, o monopólio político da reivindicação sobre determinada categoria. (...)
Existem divergências com relação aos movimentos negros, então que sejam
colocadas, que não sejam privilégio de uma única visão, daquele que é
reconhecido. Nós estaríamos negando aí o próprio sentido da nossa comissão, de
entender o porquê de sociedade estigmatizar as minorias (...).
Então a minha preocupação seria basicamente esta, de reconhecer uma existência,
a importância das instituições que representam esses movimentos, reconhecemos
que existe uma diversidade na representação. (...) Reconhecer e ter a preocupação
de chamarmos aqui os maiores especialistas nessa área, e não termos a
preocupação de negar-lhes tempo48.
O Constituinte conjugou esse argumento da multiplicidade das
representações com o problema do tempo. É importante perceber como o tempo
foi usado em sentido diferente da Subcomissão de Direitos e Garantias
Individuais, pois em regra, os Constituintes que se manifestaram na Subcomissão
dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, entendiam a
escassez de tempo, mas pensavam em mecanismos para contornar a situação sem
que a diversidade nas audiências públicas fosse prejudicada. No momento em que
se iniciar a análise dos debates na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso,
também será percebido que o tempo era um dado relevante e a sua gestão foi
completamente distinta da Subcomissão em análise. Para demonstrar que a
atuação dessa Subcomissão em relação à preocupação com o tempo era
diferenciada, cabe citar uma passagem do próprio Presidente Ivo Lech (PMDBRS), em que manifestava o seu esforço de apontar quais seriam as minorias. Seria
esse trabalho possível?
48
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de
1987. P. 186. A manifestação de apoio do Ministro Paulo Roberto se encontra na página 187 do
mesmo documento.
326
(...) pelo que eu entendi, nós passamos por um trabalho de identificação das
minorias. Então eu fui anotando aqui, começando pelos deficientes físicos,
deficientes visuais, deficientes auditivos, os negros, as populações indígenas, a
PAS, Pestalozzi, minorias, aí eu coloquei ainda uma subdivisão, osteomizados.
Eu conversava também com Deputados hansenianos, conversava com o Deputado
Seixas sobre a questão do supradotado, que eu não sei se nós vamos contemplar
ou não aqui, homossexuais. Então passa por essa identificação que nós temos que
ter clara49.
A definição das minorias que seriam ouvidas por tal Subcomissão ainda
gerava dificuldades adicionais além do fato de se determinar quais seriam os
grupos minoritários e se haveria possibilidade de se receber somente um
representante ou se a representação muitas vezes não era em si mesma um
problema, em virtude da existência de pessoas pertencentes à mesma categoria
não se sentirem representadas por aqueles que falariam na Subcomissão. Benedita
constatava a necessidade de se garantir a palavra para as mais diversas
comunidades negras. “E não é apenas a comunidade negra da igreja, é a
comunidade negra do samba, comunidade negra homossexual, é toda esta situação
da comunidade negra”. Outra dificuldade era o fato de os temas de determinadas
minorias pertencerem a interesses de diferentes Subcomissões, como era, por
exemplo, a própria situação das feministas, mas era também o caso das minorias
que apresentavam problemas específicos de saúde e haviam pleiteado participação
nessa Subcomissão. Nesses casos, havia a necessidade de se pleitear medidas que
diziam respeito à saúde propriamente dita, mas também medidas que garantissem
um tratamento não discriminatório para essas pessoas. O próprio Presidente Ivo
Lech ressaltava a necessidade de se garantir o espaço para essas pessoas nas duas
Subcomissões, pois poderiam ser duas propostas diferentes, além do fato de a
49
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de
1987. P. 187. A preocupação em estar perto das minorias é tanta que essa foi a única Subcomissão
examinada em que houve proposta de realização de audiência pública fora do Congresso Nacional.
Benedita trouxe o tema em virtude de ter ido a uma audiência dentro de um presídio, “porque é
impossível que eles tenham um representante que venha até aqui”. Caberia, portanto a essa
Subcomissão ir até as minorias que não teriam possibilidade de ir à Brasília nem mandar qualquer
tipo de representação. “Acho que é meio complicado quando temos um trabalho com minorias e
nem todas elas poderão estar aqui presentes; temos que nos locomover, temos que ir e discutir com
as pessoas”. Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 56). Sexta-feira, 08 de
maio de 1987. P. 128. Na página seguinte o Constituinte Salatiel Carvalho (PFL-PE) demonstrou
apoio à proposta de Benedita, ressaltando que havia decorrido quase três meses de trabalho na
Constituinte e esse período inicial havia sido dedicado ao regimento interno. “Quando chegamos
exatamente no que é essencial, no que é mais importante, quando vamos nos debruçar sobre os
problemas, quando vamos pesquisar, analisar, para que possamos fazer uma lei dentro da
realidade, (...) defrontamo-nos com essas dificuldades regimentais de datas, com essas limitações
que, sem dúvida alguma, poderão reduzir a legitimidade, a importância do nosso trabalho”.
327
outra Subcomissão ter que dividir os seus dias de audiência pública entre os temas
da saúde, da seguridade e do meio ambiente50.
Esses temas que envolviam minorias e saúde também poderiam envolver
questões de gênero. O depoimento de uma mãe de criança com Síndrome de
Down ilustra como essa relação acontece na ata da quinta reunião, no dia 27 de
abril de 1987. A Sra. Gláucia Gomes de Oliveira51 foi à audiência pública como
representante da AMPARE (Associação de Mães Protetoras Amigas e
Recuperadoras de Excepcionais). O seu relato foi fundamental para demonstrar o
despreparo de médicos e de instituições do Estado para prestar auxílio a mães de
crianças excepcionais. O problema não era restrito à falta de preparo técnico de
profissionais e instituições, mas envolvia também a abordagem preconceituosa do
tema, que acabava responsabilizando a mulher, mãe da criança, integralmente
pelos cuidados com seu filho excepcional. Ainda que médicos, hospitais e postos
de saúde não tivessem qualquer condição de atendimento para essas crianças,
cabia a essa mulher reverter a situação, e sem qualquer espécie de apoio e
orientação.
A narrativa de Gláucia Gomes de Oliveira começou com o relato do
nascimento de sua filha, quando ela tinha 23 anos. Após uma espera de 14 horas,
o médico informou a ela que sua “filha era mongolóide”. Ela disse ter se sentido
constrangida, pois não sabia o que isso significava, apesar de se considerar uma
pessoa informada, já que frequentava a Universidade. Quando o médico ouviu a
pergunta de Gláucia sobre o significado daquilo a resposta foi que sua filha “era
uma retardada mental, que só iria andar com 3 anos; que não sugaria e que eu
deveria cuidar dela como se fosse um bichinho, um cachorrinho de estimação”.
Gláucia ainda afirmou ter procurado inúmeros médicos. Ao levar sua filha ao
posto de saúde para tomar vacinar. A enfermeira responsável se recusou a vacinar
a criança sem autorização do pediatra dela. Quando a filha tinha entre 4 e 5 meses,
ela resolveu começar a procurar ajuda especializada em associações e hospitais
em Brasília, lugar onde vivia, porém, era sempre orientada a esperar que a filha
50
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 56). Sexta-feira, 08 de maio de
1987. P. 130. Na mesma página da referida ata, Ruy Nedel (PMDB-RS) foi quem percebeu a
necessidade de se estabelecer um contato com a Subcomissão da Saúde para que não houvesse
superposição de propostas em relação às minorias com problemas de hanseníase, hemofilia e
outras doenças.
51
Seu relato pode ser encontrado em Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao
nº 56). Sexta-feira, 08 de maio de 1987. PP. 149-150.
328
fizesse 7 anos para que fosse atendida. Gláucia ainda se preocupou em relatar que
se empenhava em sua função e buscava leitura especializada com a assinatura de
revistas como Pais e Filhos, mas nunca saía qualquer espécie de artigo sobre
crianças excepcionais. Seu depoimento é um bom exemplo no que dizia respeito
às minorias relacionadas a algum tipo de deficiência e a relação de gênero.
Um problema social, como o de Gláucia Gomes de Oliveira, era tratado
como de ordem individual, em que caberia a uma mulher conseguir compreender
e resolver situações que médicos, enfermeiros e outros especialistas não estavam
até então preparados para lidar. Era um problema da mulher, especificamente da
mãe. É interessante observar como a maternidade em alguns momentos na
Constituinte foi tratada como um ônus puramente da mulher e em outros
momentos, em regra quando dizia respeito a direitos reprodutivos, foi tratada
como algo que envolvia muita gente, Constituintes, representantes religiosos,
ginecologistas e pediatras, exceto a mulher, conforme foi demonstrado na
Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais e ainda retornará na
Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso. O Relator, Alceni Guerra,
aproveitou para confirmar o depoimento de Gláucia ao relatar a sua experiência na
pediatria com os diagnósticos dessa espécie. “Trouxe à lembrança um dos mais
sérios problemas, hoje, na sociedade brasileira: o mau relacionamento médicopaciente que existe de uma maneira geral”52, e que nesse caso produzia reflexos
nas relações de gênero. Nesse sentido, são diversos os depoimentos de
representantes de associações de amparo a deficientes em que mulheres estavam
envolvidas e falaram sobre as dificuldades referentes ao tema. Apesar de não ter
aparecido o gênero expressamente ao longo dessas falas, ele pode ser percebido na
estrutura dessas associações.
A Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e
Minorias dedicou o início das suas reuniões para as audiências públicas a ouvir
palestras sobre minorias em geral, sem que os palestrantes detalhassem as
peculiaridades de cada minoria, mesmo porque seria impossível um palestrante
conseguir abordar de forma profunda cada questão minoritária. O passo seguinte
seria dedicar o espaço às demandas específicas. Nesses termos, no dia 23 de abril
de 1987, ao longo da quarta reunião, Florestan Fernandes (PT-SP) foi proferir
52
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 56). Sexta-feira, 08 de maio de
1987. PP. 154-155.
329
palestra para a Subcomissão na condição de professor de Sociologia e não na
condição de Constituinte, a convite de Benedita da Silva. Sua fala foi dedicada às
minorias a partir da perspectiva de dois temas: índios e negros, porém para falar
de minorias em geral a partir desses dois exemplos. Nesse sentido, ele apresentou
uma definição de minoria bastante interessante e que cabe ser reproduzida:
Considerar um grupo humano como uma minoria é, em certo sentido, dizer que
pertence à Nação, mas que, ao mesmo tempo, ele não tem a plenitude dos direitos
civis e políticos que são desfrutados por aqueles que formam a maioria desta
Nação. Quer dizer, existem cidadãos de primeira categoria e cidadãos que são
parte das minorias, e que estão sujeitos a alguma forma de restrição, inclusive
constitucional, inclusive de proteção daqueles que se arvoram em consciência do
outro53.
A definição acima é precisa, pois reconhece que as minorias são
produzidas a partir de procedimentos de exclusão, por pertencerem, a princípio, a
um grupo, mas serem constituídos como subcategorias pela via de inúmeras
privações, inclusive de ordem constitucional e de ordem legislativa. Essas
privações são as responsáveis pelas situações de desigualdade, e não uma maior
ou menor aptidão natural para determinadas atividades. Apesar dos direitos das
mulheres não terem sido alvos diretos dessa Subcomissão, muitos argumentos
elaborados por aqueles que falaram nessa Subcomissão poderiam ser utilizados
para as análises da condição das mulheres, até porque o gênero esteve presente na
fala do representante do grupo Triângulo Rosa, que será apresentada adiante. Os
processos de exclusão que dão origem às identidades são semelhantes.
A fala de Florestan Fernandes possui ainda outros aspectos interessantes.
O professor dedicou boa parte de seu tempo para explicar como ocorreu o
procedimento de exclusão dos negros no Brasil, e os motivos pelos quais, ao
contrário dos europeus, eles não conseguiram se integrar socialmente e tiveram
possibilidades muito mais restritas de ascensão social do que esses outros grupos
que vieram para o país. Os motivos apresentados são inúmeros, entre eles, o fato
de europeus terem conseguido vir para o país com seus núcleos familiares e
contarem com rede de apoio de pessoas do mesmo país, enquanto que os núcleos
53
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 56). Sexta-feira, 08 de maio de
1987. P. 138.
330
familiares de negros eram completamente desintegrados durante o período de
escravidão, o que dificultava a constituição de uma rede de apoio.
Porém, o que realmente interessa da perspectiva de gênero está na análise
realizada por Florestan Fernandes da forma como ocorreu a integração de negros
no Brasil após o fim da escravidão e na relação deles com o trabalho. Florestan
afirmava que como o custo do trabalho livre era o mesmo do trabalho escravo, o
negro não se percebeu como alguém livre após o fim da escravidão. Em virtude
desse fator, o negro passaria a repudiar o trabalho. O problema de sua fala se
encontra na relação que ele estabelecer do trabalho com a mulher negra e com a
função da mulher branca, sem perceber que essas duas categorias também
constituíam minorias, que poderiam não ter sofrido exatamente o mesmo
procedimento de exclusão que o homem negro havia passado, mas que sofriam
exclusões próprias e que as colocava também como minorias.
– por que o trabalho era repudiado? Por que o negro não queria trabalhar? Não é.
Ele achava que as formas de trabalho estavam associadas a modalidades de
degradação humana que eram comparáveis àquelas que se produziram sob a
escravidão. (...) Já a mulher negra, principalmente aquelas que estavam
vinculadas ao trabalho no sobrado, não ao trabalho no eito, já tinham uma
experiência na relação com o branco, e a crise para a mulher negra foi menor.
Como o Professor Samuel Laurim mostra nos estudos de população de São Paulo,
houve um momento em que a cidade de São Paulo, como Buenos Aires, era uma
cidade de italianos. A maioria da população trabalhadora, 80%, era de origem
italiana. Como o negro poderia concorrer com o trabalhador branco? Já a mulher
negra tinha condições de trabalhar, porque a maior parte das mulheres
brancas estavam protegidas por uma ética pela qual elas deveriam ser donas
do lar. E, se cooperavam com o marido no trabalho, era em formas de trabalho
cooperativo, que eram fundamentais para a formação do pecúlio e a ascensão
social da família. (grifo nosso)
O que vai suceder, então é uma marginalização do negro, que é excluído, não
totalmente, mas em proporções muito grandes, do sistema de trabalho livre, e a
mulher acaba incorporando-se a um tipo de trabalho subvalorizado, aquele que é
definido pelos brancos – que podiam concorrer com trabalhos melhores – como
um trabalho sujo. Até hoje as domésticas não conseguiram definir o seu tipo de
trabalho como um trabalho digno e protegido pela lei de forma plena. De
qualquer maneira, a mulher tinha uma proteção, ela possuía um meio de vida de
subsistência, e é em torno da mulher negra que vai se dar a preservação do meio
negro na cidade de São Paulo. De uma forma muito destrutiva porque a mulher
negra acaba sendo a fonte de subsistência do homem que não trabalha, vítima da
sua incompreensão da realidade, incompreensão que levava o homem a ser o que
ele chamava de “colecionador de cabaços”, quer dizer, o prestígio; ele não tinha
onde competir por prestígio; para competir por prestígio tinha de ser
independente, não trabalhar tinha de ficar nas esquinas ou nos bares bebendo e
tinha de colecionar cabaços, para mostrar a outros que ele era um homem muito
viril.
331
(...) Àquela época não existiam favelas, existiam moradias coletivas, como o
Buraco da Onça, que subsistiu. Quando a nossa pesquisa foi feita, o Buraco da
Onça ainda existia. Eu próprio vivi na Bela Vista e convivi com negros e com
mulatos, e pude ver as condições terríveis de vida a que eram submetidos. Nas
histórias de vida que fizemos há uma pessoa, como Correia Leite, por exemplo,
que descreve como viu a violentação de mulheres, ele criança pequena por parte
de companheiros que viviam naqueles cortiços. (...)– eram os cortiços mais
medonhos, mais perigosos e nos quais a população estava sujeita à promiscuidade
e a condições subumanas de existência54.
O fato de a mulher negra ter sido incorporada mais facilmente ao trabalho
livre em virtude de estar acostumada ao contato com os brancos, na medida em
que era responsável pelo trabalho doméstico, não torna a situação menos
dramática. O interessante foi que Florestan Fernandes compreendeu que a situação
da mulher negra era bastante precária, mas ele não percebeu a mulher negra como
uma categoria que enfrentava problemas de raça e gênero, pertencendo a uma
minoria com reivindicações próprias, apesar de ele ter reconhecido as dificuldades
enfrentadas em decorrência do trabalho desvalorizado exercido majoritariamente
por mulheres negras. O olhar que Florestan Fernandes projetou nessa relação foi
eminentemente masculino, que enxergava a condição da mulher branca, como
uma condição de proteção e não de restrição. A “proteção” da mulher branca, na
verdade, era uma restrição, pois o trabalho fora de casa ou era proibido ou era
permitido caso fosse complementar ao do marido ou ainda caso ela não tivesse
outra perspectiva para a sua sobrevivência.
O termo adequado definitivamente não era proteção para caracterizar a
condição da mulher branca. Atreladas ao papel de mães, esposas e filhas
exemplares, elas estavam completamente sujeitas economicamente, seja por conta
da impossibilidade do trabalho, afinal poderia não ficar bem para o marido a sua
mulher trabalhar, seja porque seu trabalho somente era possível na forma de
cooperação com o homem e não para a sua independência financeira. Além disso,
dentro da própria fala de Florestan Fernandes não há como se entender a situação
a mulher negra como um pouco mais vantajosa do que a do homem negro,
especialmente após a leitura dos relatos de violência contra as mulheres. Se as
mulheres negras eram aquelas únicas responsáveis pelo sustento de seus lares, elas
também não tinham qualquer autonomia em relação ao fruto de seu trabalho.
54
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 56). Sexta-feira, 08 de maio de
1987. PP. 139-140.
332
Além disso, elas, suas filhas e netas ainda estavam sujeitas às violências
cometidas por seus companheiros, os “colecionadores de cabaços”. Na verdade,
pode-se interpretar a condição da mulher negra como uma situação de violência
constante, uma vez que essa violência tinha início nas suas relações de trabalho,
em condições precárias e com remuneração inadequada, e terminava no espaço
doméstico, conforme demonstrou Florestan Fernandes com as narrativas de
estupros rotineiros em cortiços55.
A percepção da “vantagem” apareceu novamente com o tema do gênero
atrelado à idade. A Sra. Maria Leda Resende Dantas esteve presente nessa
Subcomissão no dia 27 de abril de 1987, na Sexta reunião, para abordar o tema do
idoso. O Constituinte Nelson Seixas interrogou-a sobre o impacto da idade entre
homens e mulheres. Na concepção de Maria Leda, as mulheres sentiriam menos o
peso da idade porque já estariam acostumadas na condição de oprimidas.
Portanto, com o avançar da idade, em um casal, a relação de opressão seria
invertida. O homem perderia o poder e a mulher que nunca teve coragem de sair
de uma relação de opressão aproveitaria esse momento para uma espécie de
vingança. Essas mulheres, de acordo com Maria Leda, seriam absolutamente
cruéis com seus maridos, nesses momentos. Importante observar que a Sra. Maria
Leda entendia ser essa situação uma consequência do machismo nas relações,
conforme o seguinte trecho, bastante confuso, de sua resposta:
(...) Então, as mulheres deveriam sair de certas relações, mas não saem porque
não têm coragem de enfrentar a sociedade, ficam 30, 40, 50 anos numa relação
injusta e desamorosa dentro da sociedade do casamento. Quando chega (sic) ao
final da vida, esses homens que foram muito poderosos do ponto de vista de
trabalho, de economia e de força política mesmo, eles se sentem muito chocados
com essa perda. A mulher não tem tanto choque, porque ela nunca o teve. Então
observa-se acontecer um fenômeno terrível, que a mulher oprimida de repente se
torna uma verdadeira aranha, e não há nada mais triste do que ver a impiedade
dessas velhas bruxas sobre seus maridos opressores. Toda aquela opressão que
elas receberam durante 50 anos ou 60 anos, nas lindas bodas de diamantes, elas
dão com juros e correção monetária nos cinco últimos anos da existência desses
homens, a pretexto da sua saúde, do seu bem-estar. (...) V.Sª disse que as
mulheres estão mais nesses movimentos; eu gostaria de dizer a minha percepção:
é o machismo. Mas repare V.Sª que o machismo é uma doença terrível, eu só
tenho um amigo que morreu de AIDS até hoje, no entanto o que tenho de amigos
que morreram de machismo o senhor nem imagina. Eles morrem como moscas,
explodem seus corações, suas úlceras implodem e explodem no machismo. Então
55
Cabe aqui relembrar que Florestan Fernandes havia orientado a tese de doutorado de Heleieth
Saffioti, marco do feminismo acadêmico e, ainda assim, as formas de violência contra mulheres
negras e brancas não foram percebidas.
333
fica uma relação de um homem para 15 mulheres, o que me leva a crer que dentro
de pouco tempo nós teremos prospectivas de que esse tipo de família que hoje
nós conhecemos seja inviável, porque a proporção entre homens e mulheres é
absolutamente incompatível. V. Exª. vai ver 12 viúvas e 1 homem casado, e um
viúvo que nunca ficará viúvo mais de 6 meses, porque ou ele morre de paixão,
pela morte da bem-amada, ou ele casa com uma garotinha logo em seguida, para
renovar suas forças. As mulheres têm mesmo é que andar em grupo56.
A palestrante reconhecia que o problema era de ordem não individual, mas
de uma estrutura patriarcal na sociedade. Apesar disso, ainda avaliava de forma
desigual as condutas de mulheres e homens. O primeiro aspecto confuso foi a sua
afirmação de que os homens sentiriam mais o impacto da idade, em virtude de
perderem, com ela, poder econômico e político. De fato, se ainda hoje essas
formas de poder fazem mais parte da realidade masculina do que da realidade
feminina, na época não devia ser diferente. Ainda assim, ela não demonstrava que
o impacto da idade era mais cruel em homens do que em mulheres. As mulheres
poderiam não estar habituadas a essas formas de poder, mas sabe-se que a
juventude, ou pelo menos a aparência de juventude, é fundamental para elas.
Além disso, apesar de reconhecer que o suposto tratamento cruel que as
mulheres idosas destinavam a seus maridos idosos era fruto de décadas de
opressão naquele relacionamento, Maria Leda Resende ainda atribuiu um maior
peso negativo à conduta das mulheres do que às condutas de seus maridos, apesar
destes, de acordo com sua própria fala, terem dispensado tratamento cruel ao
longo de mais tempo. Tem-se aqui configurado um exemplo de como os
julgamentos morais incidem de forma desproporcional sobre as mulheres. Mesmo
tendo a palestrante assumido que essas mulheres em regra foram alvo de violência
por parte de seus maridos, elas eram as “bruxas velhas” que aproveitariam
momentos de fragilidade vividos pelos maridos ao longo de seus últimos anos
para exercerem uma espécie de “vingança”, em virtude de longo período em
situação de opressão. A palestrante parecia exigir um comportamento heroico por
parte dessas mulheres, que na década de 1980 já eram idosas, enquanto que não
exigia algo semelhante para os homens, colocando-os meramente na condição de
vítima quando idosos.
56
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 112. A mesma, representante de grupos de idosos, esteve também presente na
Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso.
334
A reunião seguinte, a Sétima reunião da Subcomissão dos Negros,
Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, em 28 de abril de 1987, foi
dedicada à condição dos negros, naquele momento, não mais com falas genéricas
sobre minorias, mas com falas de militantes. Entre os nomes do dia, encontrava-se
Lélia Gonzales, o marco do feminismo negro no país. A expectativa na análise
desse discurso era a de encontrar muitas referências à situação específica da
mulher negra. Se essa condição não fosse tratada nesse momento, dificilmente
teria espaço em outra Subcomissão ou em outras falas. Porém, Lélia Gonzales
dedicou-se a analisar mais condição dos negros do que na mulher negra, apesar de
ter mencionado as formas de opressão que incidiam sobre a mulher negra. Porém,
não esteve presente a relação conflituosa que as feministas negras tinham com o
movimento negro o que seria interessante para demonstrar como o processo de
criação de identidades hegemônicas acontece dentro dos próprios movimentos
minoritários, como o feminismo e o movimento negro. A opressão sofrida pela
mulher negra somente foi identificada nas relações com os brancos, nos campos
do trabalho e da exploração da imagem da mulher negra como reduzida a símbolo
sexual, mas não foi apontada a opressão que a mulher negra sofria dentro da
própria comunidade negra, por parte de homens negros.
Seu discurso foi bastante rico no que diz respeito a demonstrações da
importância da mulher negra e a forma como a cultura negra lidava com a mulher,
além de ressaltar a violência simbólica, a violência da linguagem na constituição
das minorias, aspecto fundamental para o presente trabalho e que nem sempre é
facilmente reconhecido como uma forma de violência, apesar de ser estruturante
dos corpos de mulheres, negros e mulheres negras, por exemplo. Logo no
princípio, ela argumentou que o papel da mulher na civilização africana era
diferente das relações que as culturas formadoras da sociedade européia tinham
com as mulheres, mas apesar disso, optava-se por estudar a história a partir da
perspectiva européia, desprezando a grande parcela de negros que compunham a
sociedade brasileira.
Sabemos o que significou o encontro das populações africanas com o europeu,
sobretudo nós que nos preocupamos com a situação da mulher negra. Nós
sabemos que as civilizações africanas desenvolveram, no que diz respeito ao
papel da mulher, um (sic) ação social que não vamos encontrar no mundo
ocidental e não vamos encontrar nas famosas civilizações greco-romana, judaicas
ou cristãs, etc. Vamos perceber que essas civilizações são absolutamente
335
desconhecidas entre elas, são omitidas no interior de uma sociedade como a
nossa, que é constituída por cerca de 60% de descendentes de africanos.
Desconhecemos totalmente a história das culturas e das civilizações africanas, e
nos afirmamos num país europeu. (...)
A sociedade que se construiu no Brasil é como a sociedade que se estratificou
racialmente. Vemos que no Brasil, as relações de poder se dão de uma forma que
absolutamente hierárquica. É uma sociedade hierárquica que temos, sociedade
onde cada um conhece o seu lugar; é a sociedade do “você sabe com quem está
falando?” Ou uma sociedade cuja língua aponta para essa hierarquia porque
nossos representantes têm de chamar-se mutuamente de Excelência. (...) Vejam
que a própria língua aponta para essas diferenças, para essas desigualdades que se
estabelecem numa sociedade hierárquica como a nossa. Hierárquica do ponto de
vista das relações de classe; hierárquica do ponto de vista das relações sexuais,
porque sabemos o papel da mulher dentro desta sociedade, fundamentalmente da
mulher negra; e hierárquica do ponto de vista social.
(...) Não se atentou, por exemplo, que o português que falamos aqui, nós todos,
negros e brancos, é um português profundamente africanizado, português esse
que foi transformado nos seus falares graças à presença da mulher negra nesta
sociedade que com sacrifício de seus filhos, que muitas vezes jogadas na
prostituição, e muitas vezes explorada pelo seu senhor e pelo seu patrão nos dias
de hoje, ela trouxe a sua contribuição. Anonimamente transformou o português
camoniano cuja pronúncia não sabemos exatamente57.
A valorização dos negros e, especialmente, da mulher negra, aconteceu ao
longo do discurso acima exposto. Como já mencionado, eventualmente as
minorias constroem, como o movimento negro parece ter feito, ou incorporam,
como as feministas do início do século XX, discursos nos quais se colocam em
posições virtuosas para valorização de seus papeis. Sabe-se que essa é uma
estratégia complicada e limitada, mas ao mesmo tempo, tem importância. No caso
das feministas foi o primeiro passo para reivindicar participação política, no caso
dos negros, especialmente das mulheres negras, foi para resgatar a relevância de
sua presença para a formação histórica e lingüística do país, uma vez que a
participação desse grupo costuma ser drasticamente ignorada na história, a não ser
quando se trata diretamente do problema da escravidão, porém, no que diz
respeito à inventividade da língua ou de outras formas de relação, de fato, a
participação criativa da mulher negra ficou esquecida, por carregar condição
duplamente desfavorável: mulher e negra.
Questão relevante trazida por Lélia foi a identificação de formas de
violência simbólica que sujeitam as minorias, desde o jargão extremado “você
sabe com quem está falando?” até as formas como se dão os tratamentos
57
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 122.
336
interpessoais, as expressões que expõem demarcações hierárquicas, que ajudam a
manter as assimetrias de gênero e de raça. Essa é uma violência que atinge
minorias de raça e gênero, entre outras. Esse argumento também foi enfatizado
por Helena Theodoro, também professora: “Todo mundo conhece a violência
institucionalizada, quando vemos farda, quando vemos tanque, quando vemos
arma. Todo mundo conhece a violência interpessoal (..) mas a dita violência em
estado latente, a violência que agride só com o olhar, a dita violência simbólica
(...) é difícil de ser detectada objetivamente”58. No caso do gênero, apesar de não
ser o problema específico da palestrante, essa forma de violência pode vir
travestida de brincadeiras, piadas e cantadas, para citar alguns exemplos, o que
torna sempre mais difícil o combate à discriminação, por conta de um processo de
ridicularização dispensado às lutas feministas59. Esse procedimento que
desqualifica as lutas feministas a partir da ridicularização da militância feminista é
semelhante ao argumento que desqualifica a luta contra o racismo no Brasil a
partir das falácias da democracia racial e da miscigenação, e que ainda vem sendo
enfrentado pelo movimento negro60.
Um dos aspectos mais relevantes trazidos por Lélia Gonzales e Helena
Theodoro passava pela educação. A aposta das grandes modificações sociais para
combater o racismo estava vinculada, por exemplo, à modificação da estrutura das
grades curriculares de escolas, com o intuito de que fossem incluídas disciplinas
dedicadas ao estudo da história da África e de personagens negros importantes
para a história do Brasil. Dessa forma, esperava-se formar crianças que não
58
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 122 Helena Theodoro também colocou as diferenças entre as funções da mulher no
mundo europeu e na denominada pela professora como cultura negra. Segundo a professora, na
cultura negra o papel da mulher seria mais ativo: “a mulher que procria, é a mulher que
transforma, é a mulher que participa, é a mulher que é companheira. É preciso conhecer um pouco
mais de cultura negra, é preciso conhecer um pouco mais os valores do Brasil”. P. 124. Nesse
trecho de sua fala, Helena Theodoro retoma a estratégia de valorização, não somente da cultura
negra, mas especialmente da mulher negra. A forma como essa estratégia opera foi exaustivamente
demonstrada, bem como a possibilidade de se reinventar usos diferentes para o mesmo argumento,
ora para oprimir, ora para liberar. Porém, como estratégia discursiva, deve-se lembrar que essa
valorização tem sua importância, para, por exemplo, modificar a estrutura dos currículos escolares,
como Lélia Gonzales, representante do feminismo negro, iria reivindicar.
59
O exemplo que pode ser retomado é o da charge da ex Ministra Iriny Lopes..
60
Lélia Gonzales chamava a atenção para a dimensão do mito da democracia racial no país na
Constituinte, alertando que as esquerdas assumiam um discurso próximo ao direita na medida em
que desconsideravam que a grande maioria dos trabalhadores brasileiros era composta por negra e
que a simples transposição da luta de classes para o Brasil não seria suficiente para resolver o
problema. Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de
maio de 1987. P. 122.
337
fossem racistas e que conhecessem a contribuição das comunidades negras na
formação do país. Essa medida era relevante, pois elas não ficariam sujeitas
somente a eventuais perpetuações de posições preconceituosas dentro de suas
famílias ou núcleos de amigos. A missão educativa deveria ir além das escolas. A
publicidade foi apontada por Lélia Gonzales como um dos grandes mecanismos
de perpetuação de estereótipos racistas e sexistas61, o que ainda é um problema
atual, assim como outros já levantados e que ainda surgirão ao longo desse
capítulo. A criança negra aparecia pouco em comerciais e no entender de Lélia
Gonzales, em regra, somente vinculada a anúncios de chocolate. O homem negro
surgia como um trabalhador braçal por excelência e a mulher negra se
transformava em mero objeto sexual. Sem dúvida, a mídia é um grande
perpetuador desses estereótipos. Nem sempre ela os cria, mas ela costuma se
aproveitar desses estereótipos para vender produtos e estilo de vida, e fatalmente
contribui para que eles sejam reforçados e para que persistam socialmente.
Novamente, cada um seria mantido e lembrado, inclusive pela publicidade,
de seu “devido lugar”, a criança negra, o homem negro e, especialmente, a mulher
negra. Nesses termos, a reivindicação não passava sequer por um trabalho
específico voltado para a mulher negra, mas ficava em uma etapa anterior, que
exigia, antes de qualquer outra coisa, uma ressignificação do papel dos negros,
para se desconstruir a imagem da mulher negra como objeto sexual por
excelência, a ser consumido, e em virtude disso, sujeita a diversas violências, das
físicas às simbólicas. Assim como a Constituinte Benedita da Silva, a participação
de Lélia Gonzales também trouxe uma perspectiva peculiar para a Assembleia
Constituinte, pois se propunha a abraçar diferentes causas. Lélia Gonzales disse
ter se inspirado no documento apresentado pelo Conselho Nacional de Direitos da
Mulher, que abordava inúmeros temas a partir da perspectiva de gênero, para
elaborar as sugestões a partir da perspectiva negra62. Lélia Gonzales se encontrava
em um ponto entre a sensibilidade demonstrada pela Constituinte Benedita da
Silva em sua compreensão das interseccionalidades e a ação das feministas do
Conselho Nacional de Direitos da Mulher, que abraçava em suas propostas
61
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 126. Na mesma fala também há referência à necessidade de se incluir história da África
nas escolas.
62
Lélia Gonzales participou do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, garantindo essa troca
direta entre esses movimentos.
338
inúmeras causas que somente aparentemente eram diferentes daquelas diretamente
ligadas à militância feminista.
As propostas de artigos apresentadas por Lélia Gonzales para a
Constituição sobre igualdade não se limitavam a enunciar a igualdade, trazendo
também a previsão de retribuição penal em virtude de qualquer discriminação, não
somente a de raça, bem como a possibilidade de ações afirmativas por parte do
Estado para que a igualdade pudesse ser alcançada:
Homens e mulheres têm iguais direitos ao pleno exercício da cidadania, nos
termos desta Constituição, cabendo ao Estado garantir sua eficácia formal e
materialmente, Parágrafo único: ficam liminarmente revogados todos aqueles
dispositivos legais que contenham qualquer discriminação.
Art. 2° Todos são iguais perante a lei, que punirá, como crime inafiançável,
qualquer discriminação atentatória aos direitos humanos.
§1° Ninguém será prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, raça, cor,
sexo, estado civil, trabalho rural ou urbano, orientação sexual, convicções
políticas ou filosóficas, deficiência física ou mental, e qualquer particularidade ou
condição.
No §2° - Não constitui discriminação ou privilégios a aplicação de medidas
compensatórias, visando a implementação do princípio constitucional da
economia às pessoas pertencentes a, ou a grupos historicamente discriminados.
Todos são iguais perante a lei, que punirá, como crime inafiançável, qualquer
discriminação atentatória aos direitos humanos §1°: Ninguém será prejudicado ou
privilegiado, em razão de nascimento, raça, cor, sexo, estado civil, trabalho rural
ou urbano, religião, orientação sexual, convicções políticas ou filosóficas,
deficiência física ou mental, e qualquer particularidade.
§2° O poder público, mediante programas específicos, promoverá igualdade
social, política, econômica e social.
§3° Não constitui discriminação ou privilégio a aplicação de medidas
compensatórias, visando a implementação do princípio constitucional da
isonomia a pessoas pertencentes a, ou grupos historicamente discriminados63.
A sugestão de Lélia Gonzales não obteve êxito. Em primeiro lugar, já
havia ocorrido uma discussão sobre a competência da Subcomissão para abordar
esse tipo de matéria, em virtude da igualdade nesses termos tradicionalmente ser
tratada pela Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais. Não foi por outro
motivo que Lélia havia dito anteriormente que as propostas seriam enviadas a
diferentes Subcomissões, tendo como uma das representantes do movimento a
Constituinte Benedita da Silva, responsável pelo encaminhamento dessas
63
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 139.
339
propostas64. Além disso, tais propostas retratam uma das dificuldades enfrentadas
ao longo dos trabalhos da Assembleia Constituinte: da perspectiva dos
movimentos minoritários, especialmente o feminista, em regra, a Constituição
ficou aquém das reivindicações, porém, da perspectiva do perfil dos Constituintes
e do encaminhamento de algumas discussões, a Constituição significou um grande
avanço.
A Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e
Minorias seria uma das mais abertas a grupos discriminados, mas ainda assim,
nem sempre os temas contavam com a simpatia de alguém que estivesse ali para a
conferência. Esse aspecto torna ainda mais necessária a valorização de posições
como a de Benedita e a de Lélia Gonzales. O Sr. Natalino C. de Melo, funcionário
da Câmara e qualificado na ata da reunião como professor, se definiu como um
negro subversivo, “porque nesse país, ou negro é submisso e subserviente, ou
então subversivo”65. Em seu entendimento, ele era subversivo porque era negro e
havia alcançado determinada estatura social, obtendo três diplomas universitários,
e superando dificuldades políticas, já que ele havia constatado que mesmo os
partidos de esquerda somente há pouco tempo haviam começado a abrir espaços
para negros em seus quadros. Apesar da sua denominada subversão, ele tinha
posições complicadas tanto no que dizia respeito à raça quanto ao gênero.
Entendia haver um “racismo formal” no país, “que tem forma mas não tem
conteúdo. Não é um racismo real, primeiro porque nós não temos raça, daí não se
pode praticar o racismo” 66. Ele não conseguia entender que colocar em xeque a
existência de raças, ou da raça negra, ou da necessidade de afirmação de
identidade, não implicava no fim do racismo, na inexistência de preconceito
estruturado a partir da cor da pele, assim como apontar os problemas das teorias
feministas que se fundavam em identidades de gênero e na afirmação da mulher
não implicaria em defender que não existe violência doméstica contra a mulher.
Defendia sua perspectiva com o argumento da mulher brasileira: “A
mulher branca brasileira é distinguida em todos os países da Europa exatamente
64
Sobre esse aspecto, um dos trechos no qual o problema de se escolher uma Subcomissão
apareceu foi na fala da própria Benedita Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento
ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de 1987. P. 140.
65
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 140.
66
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 140.
340
por sua anca negra. Todo mundo sabe que a branca brasileira (...) é fácil de ser
distinguida pelas costas, é a branca brasileira, apesar todos os seus traços são de
negro, apesar de ter a pele branca”67. Se havia miscigenação no país, para ele, o
racismo não se concretizava. Além disso, outro problema relevante de seu
argumento era o fato de reforçar o estereótipo da mulher brasileira, especialmente
da mulher negra, no processo de objetificação: a identificação da “anca negra”
implicava em recortar uma parte do corpo e tratar o imaginário sobre a mulher
brasileira a partir de somente essa parte do corpo. Nesses termos, Natalino de
Melo parecia até mesmo saber das dificuldades enfrentadas pelos negros, havia
vivido as suas próprias, mas confundia a forma como se dava o racismo no Brasil
além de não perceber que reproduzia com a “mulher brasileira” aquele mesmo
processo que o sujeitava, ou havia tentado sujeitá-lo até que ele se tornasse um
“negro subversivo”. Não tinha, portanto, despertado para o problema trazido pelo
gênero, além de demonstrar a insuficiência de seu conceito de minoria, tratada
somente pelo viés numérico:
(...) eu, como negro, não me considero como minoria, sou maioria marginalizada,
social, política e economicamente. Não aceito, por exemplo, a agregação dos
negros brasileiros às minorias, até porque esta vinculação de negro à minoria tem
uma conotação colonialista e racista, colocar o negro, por exemplo, ao lado do
homossexual. Se me perguntarem: você é contra a discriminação ou vai praticar a
discriminação? Não, até porque dentro do contexto da raça negra quero que
alguém me prove se nos navios negreiros, nos quilombos, nas senzalas, existia a
prática do homossexualismo, que desconheço no meio de nossa raça68.
Além de ser uma afirmação complicada a de que não existiria
homossexuais, ou “práticas de homossexualismo” entre os negros, nos navios
negreiros ou nas senzalas, ele ainda entendia que inserir os negros na categoria de
minorias assim como os homossexuais, implicaria em racismo. Portanto, para ele
era racismo afirmar que poderiam existir homens negros homossexuais. O fato de
ele desconhecer tais hipóteses já o autorizava, na condição de professor na qual se
colocava, a afirmar sem qualquer comprovação que negros não poderiam ser
homossexuais. A Subcomissão, ou pelo menos aqueles membros com mais
presença e participação, não se esquivaram de afirmar a necessidade dela se
67
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 140.
68
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 141.
341
preocupar com as minorias, especialmente com os homossexuais, resguardando o
direito da presença deles e demonstrando que não haveria qualquer problema em
relação a colocar na mesma Subcomissão negros e homossexuais. Sem surpresas,
quem se levantou contra a fala de Natalino de Melo foi Benedita da Silva: “Eu
conheço negros homossexuais, eu conheço negros deficientes, eu conheço negros
de toda a sorte que possa haver neste nosso País”69. Posteriormente ela ainda
retomou o tema, demonstrando o seu incômodo com as considerações de
Natalino: “Não quero, de maneira nenhuma (...) resolver a questão do racismo;
tem que resolver também a questão do machismo, porque eu sou mulher negra
(...) eu sei o quanto é duro ser discriminada várias vezes, por ser negra, por ser
pobre, por ser mulher e, aí, por ser homossexual (...)”70. A interseccionalidade
fazia parte de Benedita da Silva.
A presença de João Antônio de Souza Mascarenhas, enviado à
Constituinte como representante do Grupo Triângulo Rosa e de outras entidades
representantes de homossexuais, fez com que o assunto ainda perdurasse na
Subcomissão. O representante ressaltou o ineditismo do evento, pois era a
primeira vez em que o Congresso Nacional ouvia um homossexual falando a
partir dessa condição e representando diferentes entidades que tratavam do tema.
João Antônio inaugurou sua fala colocando a grande reivindicação dos
movimentos de homossexuais: a proibição da discriminação em virtude de
orientação sexual, esclarecendo que a expressão não pretendia assegurar somente
uma proteção aos homossexuais, pois abarcava a heterossexualidade, a
homossexualidade e a bissexualidade. O Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher também serviu de referência para as mobilizações dos homossexuais,
assim como havia inspirado a militância feminista negra, tendo sido celebrado o
fato de tal Conselho ter incluído em suas reivindicações o fim da discriminação
69
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 142.
70
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 146. Nesse sentido, os homossexuais não contavam com o apoio de todos os que se
manifestavam nessa Subcomissão, menos ainda em outras. É possível entender, dessa forma, o
horror causado pela expressão “orientação sexual”. José Carlos Sabóia (PMDB-MA) também e
Ruy Nedel (PMDB-RS) também defenderam perspectivas semelhantes à de Benedita, afirmando o
primeiro os diversos problemas enfrentados pela mulher negra, mulher negra trabalhadora,
demonstrando que o encontro da raça com o gênero poderia implicar em uma situação mais cruel e
o segundo que as minorias deveriam ser defendidas como se fossem problemas individuais desses
Constituintes: “a minoria é a grande maioria no número, mas é a minoria no dinheiro, é a minoria
no poder”. PP. 145-146 respectivamente.
342
decorrente da orientação sexual71, o que somente ajuda a comprovar o papel
fundamental exercido por essa entidade na organização de uma pressão na
Constituinte para a defesa de direitos das mulheres e de minorias sexuais.
Interessante observar que todos os grupos minoritários surgiam com
propostas para que a Constituição proibisse expressamente a discriminação contra
aquele determinado grupo, tendo como referência a proibição da discriminação
em virtude do sexo e da raça. Muitos também pleiteavam que se tornasse crime
inafiançável, assim como o racismo. Uma minoria se inspirava nas demais e os
que surgiam nas audiências públicas desejavam alcançar certo “prestígio” atingido
pelo movimento negro, tentando demonstrar que suas demandas eram tão
relevantes quanto as dele, ou ainda tentavam alcançar a condição da militância
feminista. Apesar de enfrentar temas conturbados, nenhuma das Subcomissões
examinadas, especialmente a dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias, se recusava, em 1987, a considerar reprovável a
discriminação em virtude do sexo, apesar de alguns Constituintes, especialmente
na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, terem afirmado, sempre que
possível, que as mulheres não poderiam se esquecer de suas funções primordiais:
os cuidados com a família e com a casa.
Portanto, a estratégia do grupo Triângulo Rosa era demonstrar que a
discriminação sofrida pelas mulheres não era a única que decorria do patriarcado,
ou de uma sociedade profundamente marcada pelo machismo. “Porque se a
discriminação em relação à mulher é proveniente, é resultado do machismo, a
discriminação em relação aos homossexuais é, também, um produto do
machismo. Logo, acreditamos que elas devem aparecer juntas, lado a lado”72. Se
as mais variadas formas de discriminação apareceriam como interditadas pela
nova ordem Constitucional, não parecia a João Antônio que com a orientação
sexual deveria ocorrer algo diferente. A partir de todas as considerações expostas
sobre a teoria de Butler, pode-se perceber que a argumentação do representante foi
pertinente. Para a autora, o problema central está no modelo heterossexual, que
cria papeis sociais diferenciados para homens e mulheres, instituindo relações
71
O discurso de João Antônio de Souza Mascarenhas nessa Subcomissão, com as referências
históricas sobre a militância homossexuais no país e a adesão do CNDM, se encontra em Diário da
Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de 1987. P.
165.
72
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 165.
343
assimétricas e exige também um determinado comportamento sexual, instaurando
as identidades de gênero, que são reproduzidas por famílias, publicidade,
jornalismo, medicina, igrejas, ambientes de trabalho, legislação, entre outros.
A legislação brasileira aparentemente contava com um facilitador: a
homossexualidade não era criminalizada. Na mesma época, vinte e quatro estados
americanos ainda criminalizavam “condutas homossexuais”. Porém, ela ainda era
tratada no Brasil como doença por muita gente em virtude da classificação da
Organização Mundial de Saúde, que considerava a homossexualidade como uma
forma de desvio ou de transtorno sexual, incluído entre os transtornos mentais. O
apoio para se dar outra forma de tratamento para a homossexualidade foi bastante
significativo se consideradas a época e o curto período de ativismo do grupo, se
comparado a outros grupos minoritários: o grupo havia conseguido o apoio de sete
Câmaras Municipais – Florianópolis, Olinda, Maceió, Porto Alegre, Pompéia e
São Paulo – e três Assembleias Legislativas – Bahía, Rio de Janeiro e São Paulo,
conforme apresentado no próprio discurso de João Antônio, além de contar com o
apoio expresso de líderes políticos como o Deputado Ulysses Guimarães e o
Senador Mário Covas. Algumas entidades científicas que se dedicavam ao estudo
do tema também aderiram à causa, como foi o caso da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência, Associação Brasileira de Antropologia, Associação
Brasileira de Estudos Populacionais e da Associação Nacional de Pós-Graduação
em Ciências Sociais. No ano de 1985 o Conselho Nacional de Medicina excluiu a
homossexualidade do rol de doenças, mas se oficialmente havia acontecido
transformação, a discriminação ainda era realidade.
A militância homossexual ainda deveria convencer que existia uma forma
de discriminação a partir da orientação sexual, que além de ser um impeditivo
para a conquista de direitos por parte de homossexuais, causava confusões e
realizava associações inusitadas da perspectiva homossexual, mas naturalizadas
no modelo heterossexual. João Antônio Mascarenhas chamava a atenção de sua
platéia para a forma como as notícias jornalísticas abordavam fatos que envolviam
minorias de gênero. Ao relatar algum crime, por exemplo, os jornais, ao saberem
que o criminoso era homossexual, ressaltavam a sua orientação sexual, não se
contentando com apresentar uma versão dos fatos do crime. A princípio isso
poderia parecer inofensivo, mas o fato era que quando o criminoso era
344
heterossexual
os
jornais
não
faziam
qualquer
ressalva
ressaltando
a
heterossexualidade do acusado do crime.
Um dos exemplos citados era uma notícia do Jornal do Brasil, sobre uma
operação da polícia civil que havia prendido prostitutas e travestis-prostitutos. Ao
longo da reportagem, as prostitutas eram chamadas como prostitutas. Os travestisprostitutos eram denominados somente como travestis e no desenvolvimento do
texto passaram a ser chamados como homossexuais73. A preocupação de João
Antônio era pertinente, na medida em que a citada reportagem não deixava em
nenhum momento de se referir às prostitutas como prostitutas para denominá-las
como “heterossexuais”. No caso dos travestis, eles não eram somente travestis,
eles exerciam a prostituição, e de acordo com o título da reportagem – “Operação
pudor” – esse fato era importante porque o problema que originou a operação foi a
prostituição ou um fator ligado a ela e não o fato de serem travestis. O abando do
termo “travesti” e a adoção somente do termo “homossexual” tornava a questão
confusa. Parecia que o motivo da prisão estava vinculado à homossexualidade ou
ao fato de serem travestis.
Outra reportagem trazida para a audiência pública foi uma narrativa de um
furto de imagem sacra cometido por um homossexual: “homossexual furta
imagens sacras”. De que forma a homossexualidade se relacionava a esse crime?
A reportagem não fazia nenhuma ligação entre a homossexualidade do autor do
crime com o crime em si. Cabe novamente a questão: e se o autor do fato fosse
heterossexual, a reportagem seria “heterossexual furta imagens sacras”?
Provavelmente não, provavelmente seria “homem furta imagens sacras”.
Acrescentar a ressalva da homossexualidade ajudava a perpetuar preconceitos,
especialmente em situações como essas narradas, na medida em que se criava uma
ligação falsa entre a sexualidade do autor da conduta e a conduta reprovável
socialmente: o furto de imagem sacra. Os homossexuais eram associados a
comportamentos desviantes em relação à sexualidade, a sexualidade exacerbada
que leva à prostituição e a atos contra imagens com significados religiosos.
Os meios de comunicação ainda contribuíam para o reforço de um duplo
estereótipo de gênero, a partir dos programas humorísticos, de acordo com João
Antônio. Nesses casos, os homossexuais sempre apareciam como homens muito
73
Esse exemplo de reportagem e a seguinte são encontrados em Diário da Assembleia Nacional
Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de 1987. P. 166.
345
afeminados, fúteis e beirando o ridículo74. Tal fator atribuía aos homossexuais
características “tipicamente femininas”, ou seja, a ofensa era dirigida para
homossexuais e para mulheres, de forma indireta, pois o estereótipo envolvido era
o da mulher fútil, afetada, ou seja, uma visão negativa da mulher. Na verdade, a
homossexualidade é um nome que denomina um conjunto bastante diversificado
de orientação sexual, alguns homens homossexuais de fato adotam uma
performance próxima ou até mesmo além daquelas performances atribuídas às
mulheres, assim como algumas lésbicas adotam performances muitas vezes mais
masculinas do que boa parte dos homens, isso não implica na realidade de todo e
qualquer homossexual, não implica na realidade da maior parte de mulheres –
como mulheres fúteis – e não implica no fato de que aqueles que realizam
performances muito afeminadas sejam piores ou homossexuais “mais intensos” do
que os demais, que não são tão afeminados. Constituem simplesmente formas
diferentes de exercício da sexualidade, mas o estereótipo de gays ainda era, e é, o
do exagerado, bastando relembrar a preocupação manifestada na Subcomissão de
Direitos e Garantias Individuais para aquilo não virar um “festival gay”.
Os Constituintes que demonstraram apoio expresso às colocações do grupo
Triângulo Rosa foram Benedita da Silva (PT-RJ) e José Carlos Sabóia (PMDBMA), Benedita já reconhecia que esse seria um tema problemático para ser
abordado, na medida em que iria mexer com a estrutura familiar. A Constituinte
associou a violência contra o homossexual a uma forma de violência contra o
próprio prazer, na medida em que eram colocadas diversas regras a esse prazer,
como a reprovação da homossexualidade, por uma sociedade que até mesmo
usufruía desse tipo de prazer, mas não enfrentava o tema quando tinha a
oportunidade e não permitia que aqueles que desejavam enfrentá-lo, assumindo
sua condição, pudessem fazê-lo75.
74
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 166-167.
75
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 167. Como exemplo de dificuldade que deveria ser enfrentada pode-se citar o caso trazido
pelo próprio representante do Triângulo Rosa sobre o crime de homicídio contra homossexual.
Alegava o representante do grupo que o argumento da legítima defesa da honra também estava
sendo utilizado para defender homens que matavam homossexuais após levá-los para a sua casa,
com o argumento de que a vítima teria tentado obrigá-lo a exercer um “papel passivo”. Nesse
sentido, a sociedade, no caso o homem, usufrui daquela relação, mas depois encontra somente no
homicídio, na destruição do outro, uma solução para o seu conflito interno, com a justificativa de
que ele pretendia somente o papel ativo, como se o papel ativo fosse o do “verdadeiro homem” e o
afastasse da condição de homossexual.
346
Benedita também observava no mesmo trecho que essas dificuldades
invadiam diferentes aspectos da vida, como o mercado de trabalho. Ela aproxima
mulheres e homossexuais nos problemas no mundo do trabalho, pois ambos
deveriam trabalhar mais, fazer um esforço maior para exercer a mesma função de
um homem. Cabe ressaltar que talvez isso fosse mais sentido por homossexuais
associados à figura feminina, na medida em que se exercessem performance
masculina, não se poderia conhecer de antemão no trabalho a sua orientação
sexual. Um dos problemas centrais das discussões sobre a orientação sexual
colocados por Benedita dizia respeito ao fato de essas discussões serem sempre
conduzidas por pessoas que se diziam heterossexuais, que tinham uma
sexualidade considerada como normal. Já José Carlos Sabóia observou também
dificuldades semelhantes às apontadas por Benedita, ressaltando seu apoio à
causa, mas considerando que a sociedade brasileira sempre havia sido bastante
repressora em relação ao corpo e à sexualidade, sendo um dificultador para tratar
o tema na família e nas instituições educacionais76.
A décima primeira reunião da Subcomissão dos Negros, Populações
Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, no dia 05 de maio de 1987, contou
com uma breve participação da representante dos trabalhadores domésticos, Nair
Jane, que realizou a leitura de carta com as demandas da categoria. A esperança
de Nair Jane era a Constituição que estava em processo de elaboração: “como já
disse uma companheira, se não for nesta Constituição não será em outra, porque
esta é a Constituição do povo, é a Constituição do pobre – é o que dizem – nós
acreditamos muito pouco que isto seja verdade, mas vamos lutar”77. O documento
havia sido elaborado em Nova Iguaçu, em reunião de vinte e três associações de
trabalhadoras domésticas de nove estados da Federação, nos dias 18 e 19 de abril
de 1987, e seria apresentado na Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e
Servidores Públicos, conforme já foi demonstrado.
A categoria de empregadas domésticas representava a grande massa de
mulheres brasileiras que estavam incorporadas no mercado de trabalho, ou seja,
era o principal acesso ao mundo do trabalho para parcela relevante da população
feminina, especialmente das mulheres negras. Além disso, era um trabalho que
76
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 168.
77
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. P. 150.
347
ainda se confundia com o histórico das relações escravocratas, conforme exposto
no próprio discurso do Constituinte Florestan Fernandes, sem limites reais em
relação à carga horária e sem qualquer garantia trabalhista. Era o trabalho do
cuidado em seu aspecto mais fundamental: higiene da casa, das roupas,
preparação de alimentos e, muitas vezes, criação de filhos, compartilhada com as
mães, na medida em que os pais estavam, em regra, afastados dessa função. O
trabalho feminino por excelência, quando era remunerado, como no caso das
empregadas domésticas, era mal remunerado, e se encontrava em posição de
desvantagem em relação às outras categorias no que dizia respeito aos direitos
trabalhistas. A nova Constituição representava um momento de ruptura que
deveria ser aproveitado pelas empregadas domésticas. O que pediam em sua carta
era simplesmente o reconhecimento como categoria profissional, com direito à
sindicalização, autonomia sindical, 13° salário, estabilidade após dez anos de
prestação de serviços ou o FGTS, extensão de direitos previdenciários já
conquistados pelas outras categorias profissionais e interdição da exploração do
trabalho do menor de idade, especialmente porque em muitos casos, sob o
pretexto da família garantir a educação do menor, sua mão de obra era explorada
gratuitamente.
O fato é que na Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias elas não tiveram muito destaque. Após o discurso de Nair
Jane, não houve qualquer discussão sobre a carta trazida. O momento que havia
sido escolhido para a intervenção da categoria em tal Subcomissão não foi muito
adequado, pois foi interrompida a reunião com as comunidades indígenas para a
leitura da breve carta. Após a leitura, a discussão voltou a ser sobre povos
indígenas. Elas conseguiriam maior destaque posteriormente, na Subcomissão dos
Direitos dos Trabalhadores e Servidores Públicos. É importante ressaltar a
inadequação do momento, na medida em que caso a reunião escolhida para
apresentação da carta fosse, por exemplo, a de participação de Lélia Gonzales, o
tema não iria ser apresentado sem que houvesse um debate sobre ele.
O anteprojeto realizado pelo Relator Alceni Guerra (PFL-PR) seria votado
na décima sexta reunião da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas,
Pessoas Deficientes, e Minorias, realizada em 25 de maio de 198778. O
78
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 103). Sexta-feira, 24 de julho de
1987. PP. 150 ss. Nessa referência há todo o anteprojeto do Relator.
348
anteprojeto era dividido em seis itens: direitos e garantias, negros, populações
indígenas, pessoas portadoras de deficiência, minorias e eficácia constitucional.
Os artigos referentes a gênero estavam distribuídos entre os grupos de direitos e
garantias e de negros, já os artigos de minorias estavam mais relacionados à
diversidade religiosa. Nesses termos, os artigos interessantes para o presente
trabalho eram os seguintes:
Direitos e Garantias
Art. 1°. A sociedade brasileira é pluriétnica, ficando reconhecidas as formas de
organização nacional dos povos indígenas.
Art. 2°. Todos, homens e mulheres, são iguais perante a lei, que punirá como
crime inafiançável qualquer discriminação atentatória aos direitos humanos e aos
aqui estabelecidos.
§1° Ninguém será prejudicado ou privilegiado em razão de nascimento, etnia,
raça, cor, sexo, trabalho, religião, orientação sexual, convicções políticas ou
filosóficas, ser portador de deficiência de qualquer ordem e qualquer
particularidade ou condição social.
§2° O Poder Público, mediante programas específicos, promoverá a igualdade
social, econômica e educacional.
§3° Não constitui discriminação ou privilégio a aplicação, pelo Poder Público, de
medidas compensatórias, visando a implementação do princípio constitucional de
isonomia a pessoas ou grupos vítimas de discriminação comprovada.
§4° Entende-se como medidas compensatórias aquelas voltadas a dar preferência
a determinados cidadãos ou grupos de cidadãos, para garantir sua participação
igualitária no acesso ao mercado de trabalho, à educação, à saúde e aos demais
direitos sociais.
Negros
Art. 4° A educação dará ênfase à igualdade dos sexos, à luta contra o racismo e
todas as formas de discriminação, afirmando as características multiculturais e
pluriétnicas do povo brasileiro.
Art. 5° §6° Caberá ao Estado, dentro do sistema de admissão nos estabelecimento
de ensino público, desde a creche até o segundo grau, a dotação de uma ação
compensatória visando à integração plena das crianças carentes, a adoção de
auxílio suplementar para alimentação, transporte e vestuário, caso a simples
gratuidade de ensino não permita, comprovadamente, que venham a continuar seu
aprendizado.
Art. 9° O País não manterá relações diplomáticas e não firmará tratados, acordos
ou convênios com países que desrespeitem os direitos constantes da “Declaração
Universal dos Direitos do Homem”, bem como não permitirá atividades de
empresas desses países em seu território.
Minorias
Art. 31 Os presidiários e as presidiárias têm direito à dignidade e integridade
física e mental, à assistência espiritual, educacional, jurídica, sanitária, à
sociabilidade, à comunicabilidade, ao trabalho produtivo e remunerado, na forma
da lei.
349
Parágrafo único: É dever do Estado manter condições apropriadas nos
estabelecimentos penais, para viabilizar um relacionamento adequado entre as
presidiárias, seus esposos ou companheiros e filhos79.
O anteprojeto do Relator Alceni Guerra foi aprovado em bloco, com a
requisição de alguns destaques. O primeiro destaque que aparecia de matérias
afins ao objeto de investigação foi realizado por Benedita da Silva, solicitando
que o artigo 6° fosse deslocado para a parte de direitos e garantias, pois não estava
restrito somente aos negros. Alceni Guerra concordou em deslocar o artigo
entendendo que era muito abrangente. Havia decidido incluí-lo na parte de negros
para homenagear a Constituinte Benedita da Silva, que havia se empenhado na
inserção desse artigo no anteprojeto, mas isso não impedia o deslocamento do
artigo. Foi votada a proposta e o artigo seria deslocado. Um dado interessante foi
o posicionamento de Sandra Cavalcanti em uma discussão paralela sobre o artigo
34 do anteprojeto, que previa o seguinte: “A omissão no cumprimento dos
preceitos constitucionais será de responsabilidade da autoridade competente para
sua aplicação, implicando, quando comprovada, em destituição do cargo ou na
perda do mandato eletivo”80. Havia proposta para exclusão desse dispositivo
elaborada por Ruy Nedel (PMDB-RS), que pretendia fazer com que esses
dispositivos constitucionais fossem, de fato, concretizados, com o argumento de
que artigos semelhantes poderiam ser elaborados em outra Subcomissão. Sandra
Cavalcanti fez uma defesa de manutenção de tal artigo e, caso houvesse propostas
semelhantes, caberia à Comissão de Sistematização tomar a decisão sobre em que
parte da Constituição esse dispositivo deveria ficar, para garantir a efetividade dos
demais artigos, garantindo os direitos das minorias. Benedita da Silva entenderia
no mesmo sentido. O surpreendente na manifestação de Sandra Cavalcanti era o
fato de essa Constituinte ter posições bastante conservadoras em outras matérias.
Provavelmente isso pode ser atribuído ao fato de Sandra Cavalcanti ter defendido
os interesses de portadores de deficiência física e mental.
O próximo passo seria a votação de uma emenda proposta por Salatiel
Carvalho (PFL-PE) com a finalidade de retirar a expressão “orientação sexual” do
artigo 10, §1°. O Constituinte entendia que a Constituição não deveria tutelar os
79
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 103). Sexta-feira, 24 de julho de
1987. PP. 151-153.
80
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 103). Sexta-feira, 24 de julho de
1987. P. 153.
350
chamados
“comportamentos
anormais”,
por
solicitação
de
grupos
de
homossexuais. A tutela deveria ser para homens e mulheres e não resguardar uma
terceira opção. Além disso, ele tinha o receio de que essa tutela facilitasse
posteriormente uma demanda por parte de homossexuais para terem os mesmos
direitos de homens e mulheres de constituição de família. Sua preocupação era
com a preservação da moral e dos bons costumes. Os direitos pretendidos por
homossexuais, em seu entendimento, prejudicavam a família e à formação e
educação de jovens. Em seguida associaria os homossexuais ao problema da
AIDS. Se o Estado realizasse a proteção desse grupo, fatalmente, em seu
raciocínio, não haveria prevenção por parte do Estado em relação a essa doença, e
sim a legalização de uma situação que poderia até mesmo extinguir os
homossexuais. Salatiel Carvalho argumentava, nesse sentido, que a tutela dos
homossexuais passava pela negação de direito a eles, em um raciocínio
semelhante aos que defendiam a continuidade da criminalização do aborto para
resguardar a saúde da mulher81.
Benedita da Silva, em seguida, ressaltaria a inconsistência desse
argumento afirmando que não era a retirada dessa expressão que iria impedir os
avanços da referida doença. O único sentido de excluir a “orientação sexual” do
dispositivo seria para não impedir a discriminação de homossexuais pela
sociedade. Além disso, a homossexualidade não deveria ser tratada como uma
anomalia, pois não cabia aos Constituintes invadir a intimidade, a vida pessoal
para fazer tal avaliação da sexualidade. Ainda afirmava que, apesar das
preocupações de Salatiel Carvalho sobre a moral e o avanço da AIDS, essa não
era uma doença restrita aos homossexuais, cabendo à área da Saúde tratar desse
problema e não à Subcomissão em questão. Bosco França (PMDB-SE) afirmaria a
sua condição de médico para apoiar Benedita, uma vez que a medicina ainda não
conseguia entender a doença, seus meios de transmissão e como combatê-la.
Portanto, ela não podia ser atribuída a um grupo.
Salatiel Carvalho defenderia que, ao menos, a expressão fosse trocada pela
tutela expressa do homossexual, evitando que qualquer tipo de orientação sexual
pudesse ser alvo de tutela constitucional. Ele não entendia que “orientação sexual”
já era um termo em uso na legislação estrangeira, bem como em textos
81
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 103). Sexta-feira, 24 de julho de
1987. P. 159.
351
acadêmicos e se justificava afirmando que essa expressão poderia tutelar até
mesmo o tráfico de pessoas para a prostituição. Em seu discurso ele parecia mais
preocupado também com a ideia das opções que essa expressão poderia
representar, não limitando os modelos em homem e mulher. José Carlos Sabóia
(PMDB-MA) e Benedita da Silva (PT-RJ) ainda defenderiam a expressão,
dizendo, José Carlos Sabóia que se tratava de uma defesa da pluralidade,
reconhecendo que existiam deferentes compreensões sobre a sexualidade. Já
Benedita apontava para o fato de isso não resultar na tutela de “tara” sexual,
ressaltando que, em regra, aqueles que pretendiam excluir a expressão “orientação
sexual” do texto com o argumento de não tutelar práticas sexuais exageradas, ou
de “tarados”, eram os mesmos que também não queriam permitir a possibilidade
de realização de aborto em casos de gravidez decorrente de estupro82. O chamado
“tarado” sujeitava o outro ao seu desejo, o que era completamente diferente do
homossexual, tanto que existiam tarados heterossexuais, que inclusive cometiam o
crime de estupro, de acordo com sua argumentação.
Diferentemente do que aconteceu com o tema na Subcomissão de Direitos
e Garantias Individuais, realizada a votação, a expressão “orientação sexual” foi
mantida no anteprojeto. Apesar de essa demanda não ter enfrentado dificuldades e
resistências semelhantes às encontradas na Subcomissão de Direitos e Garantias
Individuais, as discussões em relação a essa emenda significaram boa parte da ata
dessa reunião. Porém, os Constituintes mais facilmente se disponibilizaram a
defender a expressão e Salatiel Carvalho ficou isolado, somente contando com o
apoio de Sandra Cavalcanti (PFL-RJ), que votou pela retirada da expressão, mas
não realizou a defesa dessa retirada. O projeto enviado à Comissão da Ordem
Social carregaria a expressão amplamente combatida na outra Subcomissão.
5.4
A Comissão da Ordem Social
Ultrapassadas as etapas nas Subcomissões, cabe agora a dedicação ao
estudo das propostas que saíram da Comissão da Ordem Social sobre direitos das
mulheres. Não foi em todas as reuniões que algo nesse sentido esteve em
discussão. A primeira vez em que isso ocorreu foi na quinta reunião da Comissão
82
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 103). Sexta-feira, 24 de julho de
1987. P. 161.
352
da Ordem Social, no dia 27 de maio de 1987, quando a Comissão discutia o
projeto elaborado pela Subcomissão dos Direitos dos Trabalhadores e Servidores
Públicos, especialmente a questão da estabilidade no emprego no caso da
empregada doméstica. A situação da estabilidade é até bastante interessante de ser
narrada. Um Constituinte83 iniciaria suas colocações se justificando, ao dizer que
era favorável à estabilidade, reforçando que tinha muito respeito por todos os
tipos de trabalho, mas que o instituto da estabilidade não seria adequado para
todas as categorias, como era o caso específico da empregada doméstica. Em seu
raciocínio, seria complicado conceder a estabilidade a alguém que participaria da
intimidade da casa e que, posteriormente, poderia haver a vontade de que aquela
pessoa deixasse de compartilhar dessa intimidade. Ele ressaltou que nunca havia
pago menos de dois salários mínimos para uma empregada e que sempre teve
gente de confiança dentro de casa, para finalizar com a afirmação de que suas
empregadas domésticas sempre foram tratadas “como gente da família”.
A resposta a essa indagação foi dada, em primeiro lugar, por Edmilson
Valentim. A estabilidade se justificava em virtude de previsão de contrato de
experiência por noventa dias. Nesse período, o empregador, até mesmo no caso da
empregada doméstica, avaliaria a forma como o trabalhador se comportava, a sua
competência e a sua conduta, e na hipótese da empregada doméstica, a
conveniência daquela presença dentro de sua casa. O Constituinte afirmava saber
da existência de empregados que não eram confiáveis, mas estes eram a minoria
frente ao universo de trabalhadores. Nesse sentido, o objetivo da norma era
garantir que não houvesse a rotatividade, que beneficiaria a todos os
trabalhadores.
A defesa da estabilidade para essa categoria ainda seria realizada pelos
Constituintes Paulo Paim (PT-PE) e Geraldo Campos (PMDB-DF)84. Paulo Paim
retomaria a presença de mais de trezentas empregadas domésticas na Subcomissão
para apresentar as suas demandas na Constituinte. Elas somente solicitaram que
tivessem as mesmas condições dos demais trabalhadores, o que foi garantido por
83
O nome que aparece na ata da reunião é Edmilson Valentim. Porém, acredita-se que há um
equívoco no registro, pois o nome seguinte que responde à colocação sobre a empregada
doméstica também é o de Edmilson Valentim. Pelas falas de ambos os Constituintes, parece que a
resposta está mais adequada ao perfil de Edmilson Valentim do que a pergunta. De qualquer
forma, fica registrado que um dos dois não é Edmilson Valentim. Diário da Assembleia Nacional
Constituinte (Suplemento ao nº 86). Quarta-feira, 01 de julho de 1987. P. 100.
84
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 86). Quarta-feira, 01 de julho de
1987. PP. 101-102.
353
Paulo Paim e outros membros da Subcomissão. Além disso, conforme narrado
pela representante da categoria eram elas que estavam mais suscetíveis à violência
decorrente dessa relação de trabalho, pois em muitos lugares ainda eram usadas
como instrumento de iniciação sexual para os filhos do patrão. Por esses motivos,
Paulo Paim pedia para que não houvesse qualquer tipo de discriminação no caso
das empregadas domésticas. Geraldo Campos reforçaria que o anteprojeto da
Subcomissão dos Trabalhadores e Servidores Públicos havia sido elaborado
considerando todas as audiências públicas e as reivindicações realizadas nela.
Reafirmava que, em regra, não eram as empregadas domésticas que vitimizavam
os seus patrões e sim o inverso, pois elas eram as destinatárias dos maus tratos.
Ainda assim, lembrava que a estabilidade não vedava a demissão por justa causa.
De fato, o que o instituto da estabilidade fazia não era inviabilizar a rescisão do
contrato de trabalho e sim tornar os seus motivos mais objetivos. Nesses termos,
em uma situação em que a empregada colocasse a família ou um de seus
membros, ou ainda o patrimônio daquelas pessoas em risco, certamente haveria a
configuração da justa causa, possibilitando a demissão. Porém, já se sabe que
nenhuma categoria conseguiu a estabilidade, e no caso da empregada doméstica,
ela ficou sem a contrapartida do FGTS.
No dia 12 de junho de 1987, na nona reunião da Comissão da Ordem
Social, foi realizada a apresentação do Substitutivo do Relator da Comissão da
Ordem Social, Almir Gabriel (PMDB-PA), e a votação dos pedidos de destaque.
A reunião teve início com longa discussão sobre os procedimentos de votação,
bem como sobre as dúvidas em relação à composição da Comissão. Em regra,
discussões sobre o procedimento de votação tomaram uma parte significativa do
tempo inicial das reuniões das Comissões para apresentação e votação de
anteprojetos. A primeira emenda que trataria de gênero foi proposta por Salatiel
Carvalho (PFL-PE) e tinha como proposta excluir a expressão “identidade sexual”
utilizada pelo Relator da Comissão da Ordem Social. Em relação ao mesmo
artigo, Benedita da Silva propôs emenda para que a expressão “identidade sexual”
fosse substituída por “orientação sexual”. A expressão “orientação sexual” havia
sido utilizada no artigo da Subcomissão de minorias que vedava discriminações,
porém, na Comissão da Ordem Social, havia se transformado em “identidade
sexual”. Na defesa de sua emenda, Salatiel Carvalho defendia que os
homossexuais já seriam tutelados como pessoa humana, não cabendo à
354
Constituição ingressar em uma questão de foro íntimo. O primeiro argumento era
facilmente enfrentado, na medida em que, para os grupos minoritários, as tutelas
gerais somente perpetuavam situações de discriminação. Além disso, a tutela
constitucional da orientação sexual não dizia respeito ao foro íntimo e sim à
proteção dos homossexuais em relação às discriminações de terceiros decorrente
da sexualidade. Por fim, ele afirmaria que a Constituição deveria tutelar a moral,
os bons costumes e que a média dos brasileiros era “majoritariamente contra a
legalização do homossexualismo e de outros desvios quaisquer”85.
A emenda de Benedita da Silva (PT-RJ) seguia o sentido oposto à de
Salatiel Carvalho (PFL-PE). Pretendia ser fiel à única reivindicação elaborada por
representantes dos homossexuais, através do grupo Triângulo Rosa, que seria a
expressão “orientação sexual”. Isso porque a referida expressão já estava sendo
utilizada nas legislações de diferentes países, assim como já era utilizada em
textos acadêmicos. Além disso, tal expressão abarcava a homossexualidade, a
heterossexualidade e a bissexualidade, não ficando restrita somente aos
homossexuais. Nos demais aspectos da redação do artigo, Benedita da Silva
estava de acordo.
Ainda existia uma terceira proposta de redação do referido artigo,
elaborada pelo Constituinte Carlos Sant’anna (PMDB-BA). Em sua proposta a
redação do artigo ganharia a seguinte forma: “Ninguém será prejudicado ou
privilegiado em razão de nascimento, etnia, raça, cor, sexo, trabalho, religião,
orientação sexual, convicções políticas ou filosóficas, doenças, deficiências físicas
sensorial ou mental, e qualquer particularidade ou condição social”86. Em relação
à proposta do Relator, essa emenda acrescentava o termo “doença”, alterava de
“identidade sexual” para “orientação sexual”. Seu pedido de acréscimo do termo
“doença” se devia à sua preocupação com aqueles que tinham hanseníase. A
votação das três propostas foi realizada de forma separada. A emenda de Salatiel
Carvalho foi rejeitada, por 58 votos, obtendo somente 3 votos favoráveis. A
emenda de Benedita da Silva foi aprovada, obtendo 33 votos favoráveis e 25 votos
contrários. Por fim, a emenda de Carlos Sant’anna (PMDB-BA), que após a
aprovação da emenda de Benedita passaria a incluir somente a expressão
85
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 115). Quarta-feira, 05 de agosto
de 1987. P. 143.
86
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 115). Quarta-feira, 05 de agosto
de 1987. P. 143.
355
“doença” também foi vencedora, obtendo 56 votos favoráveis, 2 em sentido
contrário e duas abstenções. Definitivamente esta Comissão Temática refletia a
abertura das Subcomissões que a compunham.
Outra discussão que seria travada na Comissão era referente às condições
da empregada doméstica, da trabalhadora rural e da dona de casa. O Constituinte
Osvaldo Bender (PDS-RS) pediria pela inclusão da dona de casa e da mulher
trabalhadora rural no caput do artigo sugerido por Francisco Küster (PMDB-SC),
que traria a previsão dos direitos dos trabalhadores. Nesses termos, a primeira
redação proposta seria sem os funcionários públicos, com a seguinte redação:
“São assegurados aos trabalhadores urbanos, rurais e domésticos e aos servidores
públicos civis, federais, estaduais e do Distrito Federal, dos Territórios e
Municípios, da administração direta e indireta, os seguintes direitos, além de os
seguintes direitos, além de outros que visem a melhoria de sua condição social”87.
Osvaldo Bender defenderia que fossem incluídas na emenda a trabalhadora rural e
a dona de casa. Seriam abertas algumas frentes de debate a partir dessa
solicitação. A Constituinte Raquel Cândido (PFL-RO) entendia que havia uma
diferença entre empregada doméstica e dona de casa, pois a primeira era uma
profissional, enquanto a segunda era aquela com dupla jornada, aquelas que
chegavam em suas casas depois de um dia de trabalho e ainda cuidavam dela,
inclusive administrando as empregadas domésticas. Apesar dessa diferença, ela
defendia a emenda de Osvaldo Bender, como sendo “uma questão de justiça”88
abordar essas duas figuras no texto constitucional. Solicitava que o texto não
consagrasse somente a expressão masculina “trabalhador rural”.
O Relator Almir Gabriel (PMDB-PA), em seguida, sustentaria a sua
proposta. Para ele, as donas de casa e as mulheres camponesas tinham uma
relação diferente da relação de trabalhador, não havendo uma relação jurídica de
trabalhador com a casa, pois esta não era o mesmo que uma empresa. Nesses
termos, eram trabalhadoras porque trabalhavam mais do que os outros
trabalhadores, mas não eram trabalhadoras no sentido jurídico do termo89.
Posteriormente faria a mesma ressalva em relação às empregadas domésticas, com
87
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 115). Quarta-feira, 05 de agosto
de 1987. P. 148.
88
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 115). Quarta-feira, 05 de agosto
de 1987. P. 149.
89
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 115). Quarta-feira, 05 de agosto
de 1987. P. 149.
356
o argumento da relação com a casa. Porém, no mesmo raciocínio, pareceu mudar
o seu entendimento, acatando a demanda em relação às donas de casa:
Aqui, na questão da dona de casa e também no caso da empregada doméstica,
embora reconheço por inteiro o trabalho absolutamente difícil e ruim em que elas
se empenham, não se encontram, no entanto, dentro da categoria, dentro da
condição jurídica que aqui queremos dar. Absorvendo uma orientação de uma
discussão que tivemos com todas as suas representantes, passamos agora a
considerar as donas de casa e a empregada doméstica como categoria
profissional. Então, como categoria profissional, elas passam a ser
trabalhadoras90.
Em relação à condição da dona de casa, ainda iriam expor seus
entendimentos Wilma Maia (PDS-RN) e Abigail Feitosa (PMDB-BA), ambas
defendendo outro entendimento sobre o tema. Wilma Maia ressaltava que em
relação à dona de casa, diversos Constituintes apresentaram propostas no sentido
de que as donas de casa pudessem pagar a Previdência para, posteriormente, poder
se aposentar. Em relação à questão da mulher camponesa, entendia que o Relator
deveria colocar a expressão também no feminino, para evitar os problemas
referentes à interpretação, que, tradicionalmente, excluíam as partes mais fracas
do rol de direitos. Abigail Feitosa iria diferenciar também a condição da dona de
casa da condição da empregada doméstica, pois dona de casa não era profissão.
Nesse sentido, a questão da dona de casa seria para efeitos de aposentadoria,
podendo se aposentar na condição de autônoma, já os trabalhadores domésticos
deveriam contar com os mesmos direitos que os demais trabalhadores.
Passada para a fase de votação, a primeira proposta, de Francisco Küster
(PMDB-SC), foi rejeitada por unanimidade. Paulo Paim ((PT-PE) ainda
apresentou outra proposta, que era igual à redação dada pelo Relator na primeira
parte, mas que tinha uma segunda parte para incluir qualquer trabalhador: “São
assegurados aos trabalhadores urbanos e rurais, servidores públicos federais,
estaduais, municipais e a todos os demais, independente de lei, os seguintes
direitos, além de outros que visem a melhoria de sua condição social”91. A
90
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 115). Quarta-feira, 05 de agosto
de 1987. P. 149.
91
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 115). Quarta-feira, 05 de agosto
de 1987. P. 150.
357
emenda foi rejeitada e os temas ensaiados anteriormente envolvendo donas de
casa e trabalhadoras domésticas foram deixados de lado nesse momento92.
O próximo tema a ser votado era a licença maternidade, que originalmente,
na redação dada pelo Relator, era prevista da seguinte forma: “Licença
remunerada à gestante, antes de depois do parto, no período não inferior a 120
dias”. O Constituinte Carlos Benevides (PMDB-CE) havia elaborado emenda para
extensão desse direito à mãe adotiva, nos seguintes termos: “e à mãe adotiva, nos
termos que a lei estabelecer”93. O Relator entendia que a emenda não deveria ser
procedente, pois a mãe poderia adotar uma criança mais velha, que, em seu
entendimento, não fundamentaria essa licença. José Elias Murad (PTB-MG)
defendeu a emenda, pois seria um estímulo à adoção para reduzir o problema do
menor abandonado. Além disso, o texto ressaltava que a lei definiria o período,
portanto, a questão da idade poderia ser tratada dessa forma, sendo a licença
proporcional à idade da criança adotada. O Relator esclareceria, em seguida, que o
anteprojeto já contemplava algo nesse sentido, na parte destinada à Previdência
Social: “Proteção à maternidade e à paternidade naturais e adotivas, notadamente
à gestante, assegurando o descanso antes e após o parto”94. O argumento não era
suficiente, na medida em que o texto ressaltava a condição de gestante. A emenda
obteve 30 votos favoráveis e 28 contrários, com uma abstenção. Portanto, ela não
contava com a maioria absoluta e o texto do Relator iria prevalecer.
Posteriormente, Raquel Cândido (PFL-RO), que havia votado contrariamente à
emenda solicita esclarecimentos, pois não havia entendido como a mãe adotiva
teria a licença se não sabia se teria a situação de mãe, uma vez que a licença
começava antes do parto, no caso da gestante. A Constituinte não percebeu que a
emenda tinha a função de conceder um período de adaptação para criança e mãe,
após a chegada da criança e não necessariamente seria de 120 dias.
92
A próxima manifestação em relação a gênero seria do Constituinte Augusto Carvalho, mas não
dizia respeito somente a gênero e sim afirmava a necessidade de se consagrar a estabilidade, pois
havia em andamento, de acordo com tal Constituinte, um golpe arquitetado pela UDR para
bloquear a reforma agrária na Ordem Econômica. O mesmo grupo havia atuado na Comissão da
Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e Tecnologia e haviam conseguido fazer com
que a Comissão não apresentasse anteprojeto para a Comissão de Sistematização, conforme
aparecerá adiante. Nesses termos, a estabilidade era urgente, inclusive para frear as demissões de
mulheres grávidas que aconteciam. Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº
115). Quarta-feira, 05 de agosto de 1987. P. 154.
93
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 115). Quarta-feira, 05 de agosto
de 1987. P. 173.
94
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 115). Quarta-feira, 05 de agosto
de 1987. P. 173.
358
Surpreendentemente, no decorrer da votação surgiria uma emenda
proposta pelo Constituinte Jofran Frejat (PFL-DF), que trazia uma medida
protetiva ao trabalho da mulher, com a seguinte redação: “As mulheres
trabalhadoras, que tenham família constituída, com filhos menores de 12 anos,
terão o direito de optar por horário especial de 6 horas corridas”95. Apesar de
todas as ressalvas feitas em relação às normas que pretendiam proteger a mão de
obra feminina, a proposta do Constituinte foi repleta de elogios por parte dos
seguintes Constituintes: Cunha Bueno (PDS-SP), João da Matta (PFL-PB),
Raquel Cândido (PFL-RO), Stélio Dias (PFL-ES) e Odacir Soares (PFL-RO). O
Relator seria o único a se manifestar contrariamente à emenda, ressaltando que tal
medida poderia resultar em maiores dificuldades de contratação a serem
enfrentadas por mulheres, na medida em que os empregadores soubessem que
eram mães de crianças com menos de 12 anos de idade. Os demais Constituintes
elencados ressaltavam a importância da presença materna, do aconchego que
somente a mãe poderia dar nesse período. Eram justamente essas crianças que, de
acordo com Cunha Bueno, “precisavam da presença materna junto ao lar e junto
aos seus filhos”96. João da Matta afirmaria, em seguida que não havia como
substituir o carinho materno e seguia da seguinte forma: “Aprovada esta emenda,
a família brasileira ou a mãe brasileira, poderá dedicar-se aos seus filhos e,
consequentemente, se formar uma geração dentro da educação própria do lar e,
evidentemente, dentro dos conceitos da sociedade brasileira”97. Raque Cândido
solicitava, na condição de mulher e mãe, o voto dos companheiros para aprovar
essa emenda. Mais cedo ou mais tarde, sempre havia alguém disposto, com a
melhor das intenções, a lembrar à mulher a sua vocação em ou decorrência da
identidade de gênero ou então atrelada até mesmo à questão biológica. Ninguém
se preocupou em estabelecer essa possibilidade para pai e mãe ou ainda pai ou
mãe de criança menor de 12 anos. Apesar de todos os elogios por parte desses
Constituintes, a emenda foi rejeitada, obtendo 15 votos favoráveis e 43 contrários.
A última votação referente a trabalho e gênero foi a que retomou o tema da
estabilidade da empregada doméstica. Na verdade, a Subcomissão dos
95
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 115). Quarta-feira, 05 de agosto
de 1987. P. 195.
96
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 115). Quarta-feira, 05 de agosto
de 1987. P. 195.
97
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 115). Quarta-feira, 05 de agosto
de 1987. PP. 195-196.
359
Trabalhadores e Servidores Públicos havia consagrado a estabilidade para todos
os trabalhadores a no primeiro anteprojeto da Comissão essa estabilidade também
aparecia, porém, no Substitutivo ela foi retirada. Sendo assim, o Constituinte
Osvaldo Bender apresentou emenda para que não se diferenciasse a empregada
doméstica dos demais trabalhadores em relação aos direitos. O Relator havia
justificado a rejeição dessa estabilidade argumentando que esse trabalho não era
lucrativo. Além disso, afirmava ser complicado manter uma empregada doméstica
que “batesse em seu filho”. Esse segundo argumento era fácil de ser enfrentado,
retomando a existência da justa causa. A agressão a uma criança ensejaria uma
justa causa, conforme já mencionado. Sendo assim, esse receio era infundado. O
argumento mais forte era o que o Relator Almir Gabrilel afirmava ter sido trazido
a ele por uma representante da categoria, que tinha receio de que a estabilidade
tornasse mais difícil conseguir emprego. Osvaldo Bender defendeu a lucratividade
desse trabalho com o seguinte argumento: “um casal, ou uma família que não tiver
alguém que faça as coisas em casa, a esposa não pode trabalhar”98.
A defesa feita por Osvaldo Bender (PDS-RS) é curiosa porque aponta para
diferentes aspectos. O primeiro deles era o reconhecimento de tal realidade, pois,
como já mencionado, a saída das mulheres, especialmente da classe média, para o
mercado de trabalho, não havia ocorrido em virtude de necessidade de
complementação de renda, estando mais relacionada com um movimento de
emancipação. A afirmação do Constituinte somente ajuda a comprovar que essa
emancipação não resultou em uma redistribuição de obrigações domésticas entre o
casal e foi viabilizada sem conflito em virtude da presença da empregada
doméstica. Por outro lado, o trabalho dessa empregada era lucrativo, na medida
em que ele permitia, de fato, que a mulher saísse de casa e que, em decorrência
disso, a renda da família fosse melhorada. Em última instância, aquelas eram
atividades femininas, e esse fator era constantemente lembrado. A emenda de
Osvaldo Bender foi rejeitada na votação. A Comissão da Ordem Social tinha sido,
como um todo, a mais aberta e aquela cujos membros menos manifestariam
expressamente os preconceitos de gênero,
afirmando
as performances
hegemônicas de gênero de maneira mais sutil, nesses momentos em que havia
uma valorização da figura materna, ou ainda nesse reconhecimento da forma
98
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 115). Quarta-feira, 05 de agosto
de 1987. P. 220.
360
como o trabalho pelo menos de parte das mulheres havia sido viabilizado. Por
outro lado, foi a única Comissão que não problematizou o termo “orientação
sexual”.
6
Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso: os usos do
corpo, a biologia e o destino da mulher. A Comissão da
Família, da Educação, Cultura e Esportes, da Ciência e
Tecnologia e da Comunicação e a não aprovação do
anteprojeto
Entre as Subcomissões examinadas, a Subcomissão da Família, do Menor
e do Idoso seria a menos simpática em relação às propostas vindas da militância
feminista, inclusive com a participação do Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher. Nesta Subcomissão, quase acontecerem alguns retrocessos em relação às
matérias trazidas pelo referido Conselho, o que fez com que houvesse um esforço
de retirar determinados temas da pauta da Constituinte, assim como obrigou as
representantes do movimento feminista a algumas articulações para evitar esses
retrocessos. O anteprojeto foi enviado à Comissão temática pertinente, porém,
como será visto, tal Comissão não conseguiu elaborar um anteprojeto próprio e
enviá-lo à Comissão de Sistematização, por uma estratégia que impossibilitou a
aprovação da proposta do Relator. Nesse sentido, as ameaças de retrocesso foram
combatidas, posteriormente, na Comissão de Sistematização e no Plenário. Cabe
ressaltar que, apesar de problemático do ponto de vista dos direitos das mulheres,
o anteprojeto da Subcomissão em destaque não foi incorporado na proposta que o
Relator da Comissão temática apresentou para votação.
6.1
Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso: os usos do corpo, a
biologia e o destino da mulher
A primeira reunião da Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, em
07 de abril de 1987, elegeu como Presidente o Constituinte Nelson Aguiar
(PMDB-ES), para Primeiro Vice-Presidente Roberto Augusto (PTB-RJ) 1,
Antonio Salim Curiatti (PDS-SP) foi eleito para Segundo Vice-Presidente. Eraldo
Tinoco (PDS-BA) foi designado como Relator. Teoricamente, a Subcomissão da
Família, do Menor e do Idoso poderia ser aquela responsável por traçar um
1
Nelson Aguiar e Roberto Augusto pertenciam a igrejas evangélicas. O primeiro era membro da
Igreja Batista, tendo o apoio de outras Igrejas Evangélicas para a Constituinte. O segundo era
pastor da Igreja Universal do Reino de Deus. RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem na
Constituinte. Uma análise sócio-política dos partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese,
1987. PP. 246 e 264.
362
desenho completamente inovador no que diz respeito às relações de gênero.
Porém, após a verificação dos principais perfis de Constituintes da Subcomissão
em análise, e com o avançar dos debates, na verdade, torna-se surpreendente não
ter havido um retrocesso nas matérias tratadas por essa Subcomissão. Ao longo
dos discursos, as mulheres foram algumas vezes “colocadas em seus devidos
lugares” das mais variadas formas, desde a valorização da função de mãe e da
dona de casa, até mesmo passando pela “lembrança” das responsabilidades que
todas as mulheres deveriam ter antes de se pensar em igualdade no trabalho ou na
família.
O problema do tempo surgiu também nessa Subcomissão. Assim como na
Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais, quando as audiências públicas
foram mencionadas, os dois nomes de entidades nacionais que surgiram como
sugestões imprescindíveis foram a Ordem dos Advogados e a Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil. Conforme já afirmado no início da análise da
Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais, as duas entidades foram
relevantes para a democratização. Porém, haveria um fator relevante nessa
Subcomissão: um número significativo de representantes religiosos participava
dela como Constituinte, conforme a fala do próprio Presidente. Portanto, a
reivindicação da presença da CNBB era ainda mais compreensível. O Presidente
Nelson Aguiar chegou a sugerir que a dilação dos prazos fosse reivindicada para
que representantes da sociedade civil pudessem ser ouvidas pela Subcomissão,
sempre começando pela OAB e pela CNBB:
Por exemplo, tínhamos até feito algumas sugestões e essas sugestões
naturalmente serão ampliadas aqui no sentido de que nominássemos algumas
entidades de abrangência nacional que deveriam ser ouvidas, como a OAB,
CNBB ou uma entidade representativa do mundo evangélico. Alguém
representando a FUNABEM, alguém representando a Associação dos Juízes e
Curadores de Menores e outras entidades de cunho nacional2.
2
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de
1987. P. 205. Outra passagem em que o Presidente se manifesta ressaltando a necessidade de se
convocar entidades religiosas é a seguinte: “Relacionamos aqui algumas. Colocamos a UNICEF e
a Associação Nacional dos Juízes e Curadores de Menores, uma entidade representativa dos
Evangélicos. Deve ser convocada a CNBB. No entando, há uma decisão para ser tomada aqui.
Mesmo porque, estamos sabendo as posições do mundo católico com respeito a algumas questões
éticas que estão colocadas: sobre o aborto, sobre a indissolubilidade do casamento. É fundamental
que essas entidades sejam ouvidas”. Essa colocação foi realizada logo após a sugestão de Eunice
Michiles para incluir a UNICEF no rol de convidados. Novamente, não se mencionou qualquer
entidade representante de grupos de mulheres. Diário da Assembleia Nacional Constituinte
(Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de 1987. P. 211.
363
O Constituinte Roberto Augusto (PTB-RJ) insistiu no tema do prazo, mas
reforçou a sua adesão ao plano de trazer, especialmente, CNBB e representantes
de grupos evangélicos, bem como a FUNABEM. Ao mencionar a liderança
evangélica, chegou a utilizar a expressão “de vital importância” para definir essa
participação3. Parecia, portanto, que a OAB seria chamada a falar mais por uma
questão de reverência, mas esses membros que lideravam a Subcomissão da
Família, do Menor e do Idoso consideravam como mais relevantes as falas ligadas
a grupos religiosos, aparentemente os com mais legitimidade para resguardar a
família. A FUNADEM foi resguardada também em virtude da experiência do
próprio Presidente da Subcomissão como Presidente dessa mesma instituição.
Grupos ou organizações que fugissem de um determinado padrão de moralidade
quase não apareceram como possíveis candidatos a terem a palavra na
Subcomissão, somente o Conselho Nacional de Direitos da Mulher foi lembrado,
mas somente no final da reunião em que discutiam sobre as entidades que
deveriam ser convidadas. Ao contrário da Subcomissão de Negros, Populações
Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, o esforço era no sentido de se produzir
um rol mais limitado daqueles que iriam ser chamados para a participação das
audiências.
Obviamente, os movimentos sociais acompanhavam de perto o que se
passava nas Subcomissões e essa limitação nos moldes que a Subcomissão
desejava acabou sendo inviabilizada, como será visto adiante, com a participação
do próprio Conselho Nacional de Direitos da Mulher. Outro fator que diferenciava
essa Subcomissão da Subcomissão de Minorias em relação às audiências públicas
era o desejo de se ouvir primeiro os próprios Constituintes acerca dos temas que
seriam enfrentados, antes de se abrir os debates com a sociedade civil4. Pode-se
extrair desse tipo de determinação que, na verdade, o espaço de intervenção da
sociedade civil seria muito restrito ou quase nulo. Os Constituintes pareciam já ter
convicções fortes o suficiente para que qualquer novidade que aparecesse entre os
membros da sociedade civil pudesse interferir na formulação do projeto de
3
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de
1987. P. 206.
4
Essa decisão de se ouvir primeiro os Constituintes está na fala do Relator Eraldo Tinoco e do
Presidente Nelson Aguiar. Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53).
Sexta-feira, 01 de maio de 1987. PP. 207-208.
364
Constituição no tema da família5. A situação era mais complexa porque sequer
parecia haver nessa Subcomissão uma real diversidade de pensamento sobre os
temas de família, menor e idoso. Nesse aspecto, a nova Constituição corria o risco
de reger um país inteiro refletindo valores de um grupo muito limitado.
Os estereótipos traçados no início do século XX foram retomados algumas
vezes ao longo das falas proferidas nesse espaço, de forma bastante direta. Na
Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso temas como divórcio,
planejamento familiar e paternidade responsável foram tratados de forma
equivocada. A inclusão do divórcio no ordenamento jurídico brasileiro, na época
bastante recente, quase foi responsabilizada pelo problema do excesso de menores
abandonados. Além disso, o divórcio também foi considerado o responsável pela
desestruturação dos lares, ou seja, foi considerado a causa e não a consequência
dos problemas familiares.
Planejamento familiar e paternidade responsável são pontos importantes a
serem enfrentados a partir da perspectiva de gênero, porém ganharam sentido
diferente nessas discussões. Já no início de suas atividades, foi demonstrado
como a figura da mulher seria retratada naquele espaço, sempre trazendo com ela
a sua condição de mãe e de dona de casa, apesar de ali ser Constituinte assim
como os demais. Interessante observar que o espaço privado não abandona a
mulher, ele a segue, bem como a sua responsabilidade pelos valores da família, ao
contrário dos homens que não foram lembrados em momento algum da condição
de pais e maridos. O seguinte trecho da fala de Flávio Palmier da Veiga (PMDBRJ) retrata essa situação:
5
Nesse sentido é a seguinte fala de Iberê Ferreira (PFL-RN), “Cada um de nós já tem as suas
ideias, os seus propósitos. Aproveito esta sugestão do companheiro Roberto Augusto, no sentido
de cada um dos Srs. Coloque, em termos de artigos, propostas, justificando naturalmente, como se
fossem projetos efetivamente a serem encaminhados ao Plenário; e mesmo antes de encaminhar
esse projeto ao plenário, pudesse colaborar com o Relator, oferecendo uma cópia desse trabalho,
para que o Relator já possa ir captando as opiniões e as idéias dos Srs. Membros da Subcomissão,
a fim de que o trabalho final possa, realmente, retratar esse conjunto de opiniões”. Diário da
Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de 1987. P. 209.
Outro Constituinte que demonstrou preocupação e pretendia limitar a participação popular era
Sotero Cunha (PDC-RJ), também pastor evangélico: “Estou procurando ajudar, que tenhamos, por
exemplo, a coisa bem acertada, porque se acabamos de falar que podemos trazer alguma entidade
para expor aqui o seu ponto de vista em dez minutos, o que seria também muito pouco, para quem
vem do Rio de Janeiro trazer um trabalho para apresentar à Comissão, uma entidade dessas
naturalmente quer ter dez minutos para falar. Quero que as coisas sejam feitas de maneira que não
cheguemos aqui com várias entidades”. Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento
ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de 1987. P. 211. RODRIGUES, Leôncio Martins. Quem é quem
na Constituinte. Uma análise sócio-política dos partidos e deputados. São Paulo: Oesp-Maltese,
1987. P. 266.
365
Um país, no meu modo de entender, que não tem uma família bem estruturada,
que não tem a criança amparada nem defesa do velhinho, é um país sem sorte.
(...) E compreendo a dificuldade que teremos em consolidar a família brasileira
tão destruída no momento, com tantas separações, tantas incompreensões.
Haveremos de construir, aqui, artigos e projetos que possam amparar mais o
sentimento de unidade e de grandeza da família, para construirmos, com este
trabalho, um mundo melhor.
Queria dizer da satisfação também que temos aqui, de ver três mulheres que
representam tão bem o sentimento da mãe, da dona de casa, e especialmente da
família – as Constituintes Rita Camata, Eunice Micheles(sic) e Maria Lúcia, e
que, por certo, trarão a esta Comissão, ao nosso Presidente, uma experiência que
vai consagrar as ações, os debates aqui e daquilo que iremos aprovar, oferecendo
ao Plenário um trabalho sério, objetivo, sucinto e, acima de tudo, honesto6.
O tratamento moralista que seria dado a grande parte das discussões
travadas ao longo dos trabalhos nessa Subcomissão também foi colocado logo nos
primeiros momentos da primeira reunião. Se a Subcomissão dos Negros,
Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias queria a diversidade de
manifestações,
procurava,
pelo
menos
discursivamente,
maximizar
as
possibilidades de fala entendendo ser esse um pressuposto da democracia, na
Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, de início já havia um esforço para
se evitar os conflitos, o que implicaria em uma consequente diminuição do debate
democrático e na presunção de que os valores de alguns seriam aqueles que
deveriam ser compartilhados por todos que se sujeitariam à nova Constituição. A
expectativa de Democracia sem conflito, especialmente em momento de redação
de uma nova Constituição, após um longo período de regime ditatorial, parece
colocar em xeque a própria noção de Democracia. O Presidente Nelson Aguiar se
expressou manifestando o desejo da ausência de conflito:
Esta Comissão é a mais bonita da Constituinte, e esta Subcomissão tenho a
certeza, está ultimando a realização deste trabalho sem conflito, sem choque,
colocando o interesse maior da elaboração constitucional acima dos interesses
pessoais. Temos sabido das dificuldades, até tumulto, que vêm ocorrendo em
todas as Subcomissões e Comissões. Aqui, não poderia ocorrer porque esta é a
Comissão da Família e temos, com muita gratidão para o nosso coração, a
presença de três senhores, o que vai dar um conteúdo, não um colorido, mas um
conteúdo muito especial aos trabalhos. Temos a presença, também, de quatro
irmãos evangélicos, Pastores, inclusive, que vêm trazer também a sensibilidade
dos seus conhecimentos cristãos e ajudar muito. Trarão para cá, naturalmente os
seus conceitos de família, principalmente da família monogâmica, que
6
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de
1987. P. 200.
366
encontramos nas Escrituras Sagradas, e que representam, segundo o nosso
conhecimento, o nosso aprendizado no Livro Santo, a mais antiga instituição da
Humanidade, a família, instituição divina, segundo as Escrituras Sagradas.
Devemos zelar por ela e temos oportunidade de trabalhar neste objetivo. Tenho a
certeza de que vamos trabalhar muito e bem7.
A preocupação em relação ao tema da família monogâmica tinha ligação
com o receio de que o excesso de divórcios e a permissividade da lei com relação
a formação e desestruturação de uniões, bem como a estruturação de um lar fora
do casamento formal afetasse a estabilidade da família como há muito estava
concebida, gerando um caos em temas como guarda de filhos, sucessão e a
divisão do patrimônio do casal com o término da união.
Essa abordagem da família atrelada à moral e à religião ficou cada vez
mais aparente ao longo dos debates sobre aqueles que seriam convocados para a
fala nas audiências públicas e novamente apareceram como temas que poderiam
ser colocados na Subcomissão. É interessante o grande número de referências às
mesmas entidades. Temas como aborto e divórcio, que começaram a ser
abordados no início da reunião nas entrelinhas, surgiram expressamente e havia a
preocupação aberta de que os Constituintes ouvissem sempre representantes da
CNBB e representantes de Igrejas Evangélicas, conforme foi novamente foi a fala
de Roberto Augusto (PTB-RJ):
Sr. Presidente, de fato, nesta colocação aborto, divórcio, são temas
importantíssimos que vão ser debatidos aqui, a CNBB tem uma colocação clara, e
a liderança evangélica, outra. Então, é necessário, como disse o Presidente, trazer
aqui a CNBB, porque já é um grupo formado. Com o convite, claro, virá um
Líder da CNBB. E do grupo evangélico, aqui, neste Plenário, não sei quem são os
dezenove. Pela manhã estávamos em seis e poderíamos estudar aqui um líder
nacional, colocando um dos nomes8.
Parecia que o tema do aborto, por exemplo, não era de interesse de
qualquer entidade de mulheres. Ainda que não se pensasse na possibilidade de
uma entidade feminista, as mulheres até então haviam sido desconsideradas. Os
homossexuais, obviamente, enfrentariam problema semelhante no que dizia
7
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de
1987. P. 200.
8
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de
1987. P. 212.
367
respeito ao casamento. Esses não foram cogitados em tal Subcomissão. Outros
nomes de entidades surgiram para auxiliar nos trabalhos da Subcomissão, como a
presença do Ministro da Previdência para trazer dados sobre saúde e assistência ao
menor, o Ministério da Educação e alguma associação de pediatras, que também
falaria sobre o aborto. O Relator Eraldo Tinoco (PFL-BA) sugeriu que fosse
dedicado um espaço para o planejamento familiar, por entender ser matéria
própria da Subcomissão, mas iniciou uma defesa de que o aborto não deveria ser
alvo de debate na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, argumentando
que poderia haver superposição de tratamento e que essa era uma matéria que
seria abordada em outra Subcomissão9. Aqui a estratégia da divisão de
competências entre as Subcomissões parece ser preparatória para a defesa
posterior que o Relator faria da exclusão do tema do aborto da Constituição, por
entender ser matéria de legislação ordinária.
Ao final da reunião a Constituinte Eunice Michiles (PFL-AM), de forma
muito rápida, quase que para passar despercebida, defendeu a presença do
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher: “Sr. Presidente, sugiro também a
presença do Conselho Nacional da Mulher, já para discutir os Direitos da Mulher
dentro da legislação. Esta Subcomissão é o fórum apropriado”10. Se o tema tivesse
que ser tratado pela Subcomissão, se o Relator não conseguisse excluir de lá o
tema do aborto, era imprescindível a presença de alguma liderança feminista. É
sempre importante lembrar que essa não é uma defesa do aborto, mas
inegavelmente esse é um tema que diz respeito às mulheres, por se dar no corpo
delas, portanto, fazia sentido trazer um grupo diferente dos sugeridos até aquele
momento. Eunice Michiles, mais adiante, iria até mesmo apresentar proposta que
restringiria os debates sobre o tema da interrupção da gravidez, mas com o
objetivo de afirmar as possibilidades já permitidas pelo Código Penal, no art. 128.
Em seguida, o Presidente Nelson Aguiar encerrou a reunião sem que não
houvesse comentários acerca da sugestão de trazer o Conselho Nacional dos
Direitos da Mulher.
Ao longo da terceira reunião realizada por tal Subcomissão, no dia 13 de
abril de 1987, ficou estabelecido que as entidades não seriam convidadas e sim
9
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de
1987. P. 212.
10
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 53). Sexta-feira, 01 de maio de
1987. P. 212.
368
comunicadas sobre os períodos reservados para a oitiva de representantes da
sociedade civil, com a seguinte agenda estabelecida: 21 de abril dedicado à
natureza da sociedade conjugal, dias 22 e 23 de abril dedicados ao planejamento
familiar, dia 27 de abril voltado para a influência da comunicação na família, dia
28 de abril seria dedicado à dissolução da sociedade conjugal, 29 de abril voltado
para proteção à gestante, à mãe e à família, dias 30 de abril e 5 de maio sobre
direitos e deveres do menor, dia 6 de maio sobre sistema de adoção e 8 de maio
sobre proteção ao idoso11. Por essa agenda, pode-se perceber que ao menos dias
21, 22, 23, 28 e 29 de abril seriam dedicados a temas diretamente relacionados
com interesses de movimentos feministas. Além disso, o tema poderia surgir na
discussão sobre a influência dos meios de comunicação sobre as famílias. Esses
foram definidos pela Presidente como temas de interesse geral da Subcomissão.
Ao longo da reunião para a definição dos temas percebe-se que o procedimento na
Subcomissão seria peculiar: menos aberto, conforme já mencionado, e também
mais formal, na medida em que se pretendia fazer com que os Constituintes
apresentassem suas sugestões e defesas de projeto também na forma de um
trabalho escrito. O Presidente havia assumido que alguns temas suscitariam
discussões intensas, como por exemplo, a proposta da Carta das Mulheres de se
ampliar o conceito de família para a sociedade de fato12.
Interessante notar que logo no início da definição temática e da
organização da agenda, Eunice Michiles (PFL-AM), ao sugerir que os trabalhos
produzidos pelos Constituintes pertencentes a essa Subcomissão fossem enviados
também a outras Subcomissões temáticas que tivessem matérias afins, deu como
exemplo sua proposta de inserir a mulher em um serviço civil, assim como
acontecia com o serviço militar obrigatório para os homens. Esse não é o
problema em si mesmo, mas sim a espécie de serviço sugerido: fazer com que as
mulheres brasileiras fossem obrigadas a trabalhar com os menores abandonados:
11
A agenda bem como as discussões sobre as definições de temas podem ser conferidos em Diário
da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de 1987. P.
185 e ss.
12
Essa justificativa do Presidente da Subcomissão se encontra em Diário da Assembleia Nacional
Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de 1987. PP. 186-187. Esse pedido
foi reforçado pelo Constituinte Roberto Augusto logo em seguida, que solicitou trabalhos sobre
planejamento familiar, formação e dissolução da família e sobre pena de morte. Uma vez que,
segundo ele, temas como divórcio e pena de morte trariam divergências, os membros dezenove
membros da Subcomissão já deveriam estar com esses temas discutidos antes de ouvirem
entidades civis.
369
“(...) eu sugeriria a convocação da mulher para um serviço civil, a exemplo do
homem no serviço militar e usar essa mão de obra preciosa, para, quem sabe,
tentar resolver o problema do menor abandonado”13.
Apesar de Eunice Michiles ter lembrado da importância da presença do
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher nessa Subcomissão e, posteriormente,
ter sido responsável por defender outros interesses do movimento feminista, neste
caso, ela sugeria uma solução para o problema do menor abandonado que
reproduzia as performances de gênero consolidadas socialmente: ao homem
caberia garantir a segurança, a proteção da pátria, já à mulher caberia exercer não
somente a função de mãe quando tivesse seus próprios filhos, mas as funções de
cuidados com os chamados menores abandonados. Ainda que essa mulher, por
exemplo, não gostasse de criança e resolvesse não ter filhos futuramente, ela
estaria encarregada desse papel, bem como o homem. Um dos aspectos mais
interessantes de serem observados nesse sistema de fundação e reprodução de
identidades, de papeis sociais, é a forma pela qual ele ocorre sem que seja
percebido. Sua dinâmica é tão naturalizada que esse sistema demora a ser
problematizado e aqueles que problematizam, que apontam as assimetrias de
gênero, as desigualdades nas relações, encontram resistência para que suas
demandas sejam reconhecidas, ou consideradas pertinentes.
Esse pequeno exemplo de Eunice Michiles ajuda a entender esse
mecanismo, ao mesmo tempo em que demonstra a sua profundidade, a dificuldade
de percepção. Cabe ressaltar que a mesma crítica produzida para essa proposta de
serviço civil obrigatório para mulheres para trabalhar com menores abandonados
pode e deve ser realizada ao serviço militar obrigatório para homens. Além disso,
o que está em jogo não é o caráter obrigatório desses serviços. Uma sociedade
pode definir que seus cidadãos devem ter a obrigação de prestar alguns tipos de
serviço para que ela se desenvolva da forma mais plena possível. Da perspectiva
do gênero, o problema se encontra na definição das naturezas dessas funções a
serem desempenhadas a partir dos estereótipos definidos para homens e mulheres.
No caso da proposta era como se a mulher brasileira fosse obrigada a passar pela
experiência de “mãe”, concretizando a sua suposta missão natural. Por fim, cabe
ressaltar que não foi realizado o exame para se saber qual foi a trajetória de tal
13
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 189.
370
proposta, preferindo-se acompanhar outros debates, mas o exemplo do deslize de
Eunice Michiles, ainda assim, pode ser aproveitado para ilustrar a situação na qual
os debates sobre gênero se encontravam na Constituinte, especialmente nessa
Subcomissão.
Na quarta reunião da Subcomissão, dia 21 de abril de 1987, compareceu à
audiência pública a Sra. Comba Marques Porto, representante do Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher, enviada por Jacqueline Pitanguy, para falar
sobre o tema da “natureza da sociedade conjugal”14. Porém, ela conseguiu se
posicionar sobre os mais diferentes temas. O discurso de Comba Marques Porto
foi dedicado à exposição dos dispositivos de leis que criavam situações de
desigualdades entre homens e mulheres na vida conjugal. Seu argumento partia da
afirmação de que a igualdade entre os sexos estabelecida no ordenamento jurídico
brasileiro a partir da Constituição de 1934 estava muito distante de sua
concretização na legislação ordinária. Sua função ali foi a de apresentar as
diferentes leis que ainda contribuíam para a manutenção da desigualdade entre
homens e mulheres nas relações conjugais15. Além disso, outro ponto central para
o movimento feminista era a reivindicação da equiparação da união de fato ao
casamento, uma vez que, especialmente em áreas rurais, as uniões dificilmente
eram oficializadas na forma do casamento.
A Consolidação das Leis Trabalhistas, por exemplo, permitia ao marido
uma espécie de vingança ao possibilitar a solicitação de extinção do contrato de
trabalho, quando ele discordasse do trabalho fora de caso de sua esposa, na
medida em que ao se sustentar, a mulher poderia ter recursos para colocar fim em
um relacionamento do qual já não queria fazer parte, comprometendo a renda da
esposa para evitar um divórcio. Além disso, os dispositivos que concediam ao
homem a chefia da sociedade conjugal e a última palavra em situações de
divergência entre marido e esposa no exercício do pátrio poder não eram
adequados à realidade social daquele momento. Nesse sentido, Comba citava
14
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 193.
15
isso implicou em uma exposição bastante abrangente, que passava pelo art. 233 do Código Civil
de 1916, dando ao homem a chefia da sociedade conjugal, o art. 380 que conferia aos dois o pátrio
poder, porém ao pai o exercício dele, prevalecendo a vontade de pai em casos de divergência até o
art. 446 da Consolidação das Leis Trabalhistas que possibilitava ao marido o direito de pleitear a
rescisão do contrato de trabalho caso entendesse que o emprego da mulher colocava em risco a
estrutura familiar. O Código de Processo Penal, no art. 35, também impossibilitava a apresentação
de queixa-crime sem o consentimento do marido.
371
pesquisa realizada indicando que havia crescido o número de famílias chefiadas
por mulheres em virtude do abandono do marido ou companheiro, físico ou
financeiro. O fato de o ordenamento jurídico brasileiro ainda diferenciar o
casamento das uniões de fato ainda agravava a situação, uma vez que o Estado
somente se comprometia a auxiliar as famílias fundadas no casamento. Como
exemplos de Constituições que já na época não qualificavam as famílias que
deveriam ser assistidas pelo Estado, Comba trazia os casos de Portugal, Polônia,
URSS, Cuba e Iugoslávia. A Espanha ainda estabelecia a proteção integral dos
filhos independente do estado civil da mãe16.
Além das permissões legais que criavam a situação de desigualdade, ainda
havia outro fator decorrente do patriarcado no Brasil reforçado e perpetuado por
esses dispositivos: o problema da violência doméstica, que começou a ser
reconhecido e apontado como um problema tardiamente, inclusive entre as
feministas, a partir da década de 1970. Sobre a violência vivida por mulheres em
suas relações conjugais falava Comba Marques Porto:
Acrescente-se que o conceito de chefia fundado na condição de sexo determina,
no plano dos costumes e das práticas cotidianas, o exercício de um poder que
ultrapassa o limite de suas atribuições legais. O cabeça-de-casal tende a assumir
não tão-somente a direção da sociedade conjugal, como também o controle sobre
a vida da cidadã mulher que tem como esposa. (...)
No Brasil, a prática de violência na constância das relações familiares decorre, no
plano mais abrangente, de uma educação diferenciada que, secularmente
discriminatória, em relação à mulher e que a tornou submissa ao homem; eu me
convenço de que a violência constante na relação da família no plano mais
restrito, tem suas raízes na hierarquia inscrita na lei, a qual transforma o marido
em patrão da mulher.
A violência doméstica – coações, espancamentos e assassinatos cometidos por
maridos contra suas mulheres – requer medidas preventivas que passam
fundamentalmente por uma série e profunda mudança nos dispositivos legais que,
a despeito da efetiva participação das mulheres em diversos setores da vida
nacional, ainda lhes conferem uma cidadania menor, em flagrante confronto aos
direitos elementares da pessoa humana, muitos dos quais consagrados em
convenções e tratados internacionais, a exemplo do que dispõe a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher,, da
ONU, de 1979, adotada no Brasil sob a forma de lei, publicada no Diário Oficial
da União de 21 de março de 1984.
Recomendo a todos os Constituintes não (sic) deixem de ter em mãos, durante
seus trabalhos, o texto completo dessa Convenção que, embora tenha sido
16
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 194.
372
convertida e adotada no Brasil como lei, não operou ainda em nossa Legislação
as mudanças que, desde 1984, já poderiam ter sido operadas17.
Comba parecia atribuir excessivamente a situação da mulher a esses
dispositivos legais. Não é simples estabelecer o vínculo direto e estreito somente
entre a violência doméstica contra a mulher e tais dispositivos legais. Se essas
normas não são diretamente responsáveis pela violência contra a mulher, elas
ajudam a manter a situação de violência e, novamente, a perpetuar determinadas
performances de gênero, fundamentando os papeis sociais, ou as ações
desempenhadas por homens e mulheres. Alei não era a grande responsável pela
violência, ela era fruto de uma sociedade marcada pelo sexismo, ao mesmo tempo
em que essas leis eram importantes para a perpetuação do patriarcado, em um
mecanismo em que a lei era alimentada pela discriminação contra as mulheres ao
mesmo tempo em que alimentava a discriminação.
Além desse fator, esse sistema não tornava o marido uma espécie de
patrão da mulher, a relação era mais intensa, na medida em que não era permitido
aos patrões ter o controle até mesmo da integridade física de seus empregados,
mas a violência doméstica era tolerada socialmente. Nesses termos, a relação era a
de proprietário da mulher, em que marido tinha respaldo legal para dispor do
trabalho da mulher, da relação conjugal e dos filhos e contava com a tolerância
legal para dispor, inclusive, da integridade física. A assinatura da referida
Convenção e sua incorporação no ordenamento jurídico, conhecida pela sigla
CEDAW, parece não ter produzido grandes impactos na legislação do país, tanto
que as transformações na legislação acerca do tema somente foram mais
significativas em 2006, com a já referida Lei 11.340, após muito esforço da
militância feminista e a condenação do Brasil na Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, ou seja, mais de vinte anos após a incorporação da CEDAW
no ordenamento jurídico brasileiro. Mesmo assim, a Lei 11.340/06 enfrentou
muita resistência entre os juristas, especialmente os estudiosos do Direito Penal.
Após a sua exposição, Comba teve a oportunidade de se manifestar em
nome do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher sobre diversos temas a partir
das perguntas de Constituintes. De início, o Presidente Nelson Aguiar (PMDBES) reconheceu que no caso da mulher, o Direito ainda funcionava como um
17
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 195.
373
aparato de perpetuação de injustiças, da mesma forma com que promovia
facilidades para os homens na vida conjugal18. As discussões seguintes
anteciparam temas como o planejamento familiar e permitem constatar a forma
como a família foi trabalhada por alguns dos Constituintes, a partir de uma
concepção bastante vinculada à moral, desconsiderando a resolução dos
problemas da desigualdade na sociedade conjugal e, menos ainda, com a questão
da violência doméstica. Nesse sentido, o Constituinte Flávio Palmier da Veiga
(PMDB-RJ) demonstrava preocupação com a desestruturação das famílias e com
o elevado índice de separações: “Como fazer para criar obrigações e evitar, talvez,
às vezes por causas primárias, irrelevantes, destruição daquela célula mater, a
grandeza da vida, que é a manutenção daquilo que é instrumental para tudo, que é
a família?”19.
Comba Marques Porto não enfrentou o argumento do Constituinte de
forma incisiva, preferindo contorná-lo, apesar da colocação dele ter sido em um
sentido de manutenção da família no seu formato pai, mãe e filhos
independentemente do custo disso. Nesses termos, Comba ressaltava as
transformações na função desempenhada pelas mulheres em âmbito doméstico.
Realmente, a mulher já havia iniciado o processo de saída para o mundo do
trabalho há cinquenta anos, portanto, a divisão tradicional de papeis precisava ser
repensada, com a educação tendo uma função importante, na medida em que
afirmava que sua geração ainda havia sido educada para a constituição da família
a qualquer custo, sem a necessidade da manutenção do afeto ao longo da vida
conjugal. Ela afirmava a vocação da mulher para a maternidade, “que é uma
vocação fortíssima dentro de nós”20, o que parece ter sido para evitar um conflito
direto sobre o tema do que uma afirmação de característica da suposta
feminilidade, pois, ao mesmo tempo, ressaltava que as mulheres tinham outras
vocações fortes também, como o trabalho e a participação da vida pública. Em sua
concepção o problema estava na forma como o casamento havia sido estruturado,
pois fora pensando como algo que deveria dar sempre certo, não prevendo
possibilidade de fracasso. Por esse motivo, a ruptura do casamento gerava
18
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
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1987. P. 196.
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1987. P. 196.
374
conflitos, e ressaltava que as mulheres nem sempre eram responsáveis pela
ruptura, pois em inúmeros casos os homens tomavam a iniciativa, o que deixava a
situação mais traumática, pois ele rompia não somente com a esposa, mas também
com os filhos.
A estrutura que garantia o exercício do pátrio poder aos pais tornava a
questão mais conflituosa, pois naquele momento, os filhos ainda ficavam
predominantemente com as mães. Culturalmente as próprias mulheres eram
educadas para não admitirem a separação dos filhos e preferencialmente a guarda
era mantida com elas, enquanto que o pátrio poder era exercido pelos pais, de
acordo com a legislação da época. Se havia separação, as decisões já não eram
mais tomadas em conjunto. Sua experiência demonstrava que esse fato gerava
bastante problema, pois os filhos ficavam com as mães, mas precisavam de
autorização dos pais para, por exemplo, para realizar uma viagem. “(...) há toda
uma arrumação, de ponto de vista jurídico e do ponto de vista da prática, que foi
feita para que aquilo desse sempre certo, entretanto não dá, e quando não dá, ficase sem os mecanismos de operar isso”21. Portanto, a solução não se encontrava em
forçar a manutenção de uniões fracassadas, mas sim em admitir a existência de
outras formas de família. Dizer o óbvio parecia ser necessário nessa Subcomissão
para justificar os motivos pelos quais o ponto central não deveria ser a
manutenção da união não importando as consequências disso:
Existe possibilidade de haver família, independentemente da sociedade conjugal,
com a característica que a lei atualmente lhe dá. E ainda tem o seguinte: a lei é
uma coisa dinâmica. Nós é que criamos as leis; nós, homens, com toda a nossa
historicidade, com nossos valores, nós podemos escrever leis que permitam maior
flexibilidade a esse processo todo22.
Além de gerar situações desiguais entre homens e mulheres no casamento,
a lei ainda trazia outra contribuição negativa. Não havia uma obrigatoriedade de o
Estado contribuir para aquela sociedade conjugal. A falta de estruturas como
creches, escolas em período integral, e ainda as lavanderias públicas citadas por
Comba, entre outras demandas feministas, contribuíam para que surgissem
conflitos nos casamentos. Na medida em que o Estado fornecesse essa assistência,
21
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 196.
22
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 196.
375
as mulheres poderiam exercer plenamente funções no mundo público, poderiam
trabalhar fora de casa sem que houvesse conflito no casal. Interessante observar
que a representante do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher havia evitado
problematizar o fato de tais funções recaírem sobre as mulheres. O problema, não
considerado por ela nesse momento, era a distribuição dessas tarefas, a
arbitrariedade naturalizada pelas performances na atribuição dos cuidados com a
casa e com os filhos recair principalmente sobre mulheres. Talvez o conflito nas
relações fosse importante para expor essa questão da redistribuição dos cuidados.
A rede de suporte que deveria ser prestado pelo Estado viria como um suporte
para ambos e não como uma forma de se evitar o conflito no casal para que o
homem fosse convencido de que sua esposa poderia trabalhar tranquilamente fora
de casa sem que houvesse prejuízo para o casamento.
Obviamente a argumentação era no sentido de tentar facilitar o tema na
Subcomissão e evitar conflito parecia ser a ordem na Subcomissão da Família, do
Menor e do Idoso, o que estrategicamente poderia ser válido para a obtenção de
avanços na futura Constituição. Porém, o processo de ressignificação, como a luta
para demonstrar que a função desempenhada pela mulher primordialmente com os
cuidados diretos da casa e da família não era natural e sim construída socialmente,
era importante para se conseguir mudar o real sentido da reivindicada rede de
apoio estatal, apoio esse que deveria ser dado àqueles que pretendiam ter filhos,
ou ainda aos mais idosos, para que em última instância, o trabalho fora de casa
exercido pela mulher não fosse uma simples concessão, uma exceção pela qual ela
deveria ser grata.
Apesar de aparentemente Comba ter tido o cuidado de não aparentar estar
apresentando uma hipótese subversiva, essas suas propostas ainda suscitavam
confusões entre Constituintes como Flávio Palmier da Veiga (PMDB-RJ), que
após ouvir a resposta de Comba e comentários da Constituinte Maria Lúcia
(PMDB-AC) em apoio à palestrante, ainda perguntava: “O problema, então, é o
homem?23” Ambas, Maria Lúcia e Comba, responsabilizariam a cultura em vez do
homem diretamente, na medida em que ele também estava inserido nessa
dinâmica.
23
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 197.
376
As relações conjugais e o seu término ainda, bem como os diversos
problemas decorrentes de seu fim ainda suscitariam outras discussões. As
experiências pessoais das próprias Constituintes em alguns momentos facilitavam
a relação entre elas e as representantes dos movimentos feministas. Rita Camata
(PMDB-ES) assumia que havia vivenciado o drama da mãe solteira e da falta de
assistência à qual estavam submetidas foi um problema enfrentado por ela quando
atuou ao longo de três anos na área social do Espírito Santo, no governo de seu
marido. Não se pode medir, pelo discurso, o real poder de intervenção que ela
tinha administrativamente, mas o fato é que ela havia percebido a complexidade
do tema e ainda afirmava ter que enfrentar pessoas que diziam que prestar
assistência a essas mães implicava em um risco de se estimular outras situações
semelhantes. Ela não era feminista, mas a sua função administrativa a fez tomar
ciência das dificuldades enfrentadas por mães solteiras pobres: “porque esses
homens a cada dia constituem uma família de fato, não de direito, eles têm um,
dois, três filhos e quando realmente está difícil para sustentá-los, ele pula para
outra (...) e essa mulher fica sem creche, sem assistência médica, sem educação
para esses filhos”24.
Estavam indicados nesse trecho o problema não somente das dificuldades
materiais das mães solteiras sem qualquer prestação de marido ou do Estado e o
problema também do registro das crianças, da atribuição de nome e sobrenome a
elas, alvo de reivindicação também do Conselho Nacional de Direitos da Mulher.
Para o Conselho, a Constituição não deveria ser detalhada, mas deveria haver uma
forma de se concretizar os mandamentos constitucionais na legislação ordinária,
para que a igualdade fosse concretizada. A proposta de redação apresentada pelo
CNDM sobre a constituição da família tinha a seguinte redação: “A família
constituída civil ou naturalmente tem direito à proteção do Estado e à efetivação
de condições que permitam a realização pessoal de seus membros”. Para o CNDM
essa proteção abarcava uma reestruturação da ordem econômica, com garantias de
trabalho e estabilidade no trabalho para os adultos, homens e mulheres,
permitindo a realização pessoal e profissional e a educação pública para as
crianças, com a garantia de creche para crianças entre zero e seis anos de idade.
Essas creches não deveriam ser vinculadas a contrato de trabalho e sim à ideia de
24
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 198.
377
creche comunitária, perto de casa, para deixar os filhos ao longo da jornada de
trabalho dos pais25. A ausência dessa estrutura implicava em uma presunção de
que um dos dois, em regra a mulher, estaria disponível ao longo do dia
integralmente para os cuidados com os filhos. Dessa forma, as crianças não
ficariam nas ruas ou, quando filhos de classe média, não ficariam presas à
televisão.
Apesar dessas considerações, o Constituinte Flávio Palmier da Veiga
(PMDB-RJ) entedia que o problema do abandono de crianças no país somente
seria superado com o planejamento familiar e com o controle de natalidade. Sua
preocupação era com um suposto crescimento demográfico excessivo no país,
porém, para a militância feminista a questão não era resumida em planejamento
familiar ou aumento do crescimento populacional. Esse tema deveria ser tratado
em outros termos, na medida em que dizia respeito ao corpo da mulher. O
problema do controle ou do aumento é que eles ocorriam de forma “não
democrática” nas palavras de Comba. Isso significava que a decisão deveria ser do
casal, e este deveria ter acesso às informações necessárias para decidir sobre
quando ter filhos e quantos eles deveriam ser, sem intervenção do Estado ou de
organismos internacionais para forçar ou impedir o nascimento de crianças.
Parecia nessa Subcomissão que alguns Constituintes associavam a pobreza e o
problema dos menores abandonados ao nascimento de filhos de mães pobres.
Nesses termos, qualquer direito dado ou assistência prestada poderia implicar em
um estímulo ao nascimento de novas crianças.
A preocupação do CNDM era garantir que, em primeiro lugar, a
responsabilidade do nascimento de filhos fosse partilhada entre homens e
mulheres. Além disso, ambos deveriam ter acesso a melhores informações sobre
os métodos de contracepção e, por fim, esses métodos precisavam se tornar mais
seguros e mais baratos, na medida em que eles eram precários e lesivos à saúde,
especialmente à saúde da mulher. O planejamento familiar não deveria ficar a
cargo do Estado e de qualquer política interventiva e sim deveria ser decisão do
casal. Caberia ao Estado disponibilizar os meios adequados para que o casal
evitasse filhos, com métodos baratos, seguros e eficazes filhos, ou tivesse filhos,
com sistema de saúde e educação. O Presidente Nelson Aguiar (PMDB-ES), bem
25
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. PP. 198-199.
378
como o Relator Eraldo Tinoco (PFL-BA), entre os homens componentes da
Subcomissão, foram os mais aderiram às propostas apresentadas por Comba, além
de Maria Lúcia (PMDB-AC) e Rita Camata (PMDB-ES).
Além das questões sobre planejamento familiar, Comba ainda precisou se
justificar sobre censura, a união de fato e o que pensava sobre o término da
sociedade conjugal e as funções atribuídas a homens e mulheres nessas relações,
especialmente dialogando com Fausto Rocha (PFL-SP), Iberê Ferreira (PFL-RN),
Eliel Rodrigues (PMDB-PA) e Roberto Augusto (PTB-RJ). Eliel Rodrigues
demonstrava apoio à proposta do reconhecimento da união estável para
constituição de família, mas a sua justificativa era diferente. Assumia que, como
evangélico, o ideal seria a luta para que a família fosse constituída e se mantivesse
unida nos termos da lei, mas reconhecia que a realidade deveria ser considerada,
na medida em que existiam casais vivendo em união estável há cinquenta anos.
Era uma espécie de concessão que ele admitia fazer. Em sua fala ele tecia
considerações somente a partir da perspectiva religiosa, especialmente ressaltando
que os homens, mais do que as mulheres, até eram responsáveis pela decadência
moral vivenciada naquele período, momento de “extrema corrupção”. Terminava
sua fala com uma menção sobre o momento em que Cristo iria estabelecer o “Seu
Reino”26. Os argumentos evangélicos apareceram de forma exaustiva, porém,
como se fosse um processo de resignação vivido pelo Constituinte Eliel
Rodrigues, em que culmina com sua conformação com a união estável.
O enfrentamento do tema da censura de programas televisivos e
manifestações artísticas se devia a outra confusão realizada: assim como alguns
constituintes atribuíam o problema dos menores abandonados aos benefícios
concedidos em virtude de nascimento de filho e ao aumento do número de
divórcios, eles também entendiam que determinados programas de televisão eram
os responsáveis pela degradação da família. O problema da falta de qualidade de
programas de televisão, ou do uso de mulheres na televisão ou em revistas era
sempre trazido por Constituintes a partir de uma perspectiva moralista, associando
esses fatos à destruição de lares e de valores familiares e nunca se mencionava a
construção de certa imagem da mulher a partir desses programas e publicações –
de subserviência, disponibilidade, padronização de corpos, entre outros. O tema
26
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 201.
379
da censura a programas de televisão percorreu alguns debates nas Subcomissões.
Um dos inúmeros exemplos foi o de Iberê Ferreira (PFL-RN), que mereceu
destaque em virtude de ter recebido a única resposta identificada ao longo dos
Diários das Subcomissões que tratava do tema a partir da perspectiva de gênero:
Não digo o termo, meio forte – censura, mas acho que teremos que votar uma
censura moral, não uma censura política; mas uma censura moral é fundamental.
Não podemos pensar em encontrarmos soluções para manter a família, para dar
tranqüilidade ao menor, no momento em que vermos, assistimos periódicos sendo
vendidos, revistas sendo vendidas, em todas as bancas de jornais sem nenhuma
censura, a qualquer criança, a qualquer pessoa; televisão entrando na nossa casa,
pregando a destruição do lar, da família etc. (...) Assim, tudo isso vai destruindo e
de nada vai adiantar o nosso trabalho, mudando os artigos, mudando o Código
Civil, se não houver também um trabalho educativo e até certo ponto de censura
nos meios de comunicação27.
O aspecto contraditório do argumento de que deveria haver uma forma de
censura para impedir a baixa qualidade dos programas de televisão e a “destruição
da família” ruía com a resposta de Comba, ao lembrar que o país acabava de sair
de um período em que a censura era intensa, e que servia para inviabilizar
produtos culturais de excelência, atingindo peças teatrais de melhor qualidade e
letras de música de artistas renomados, enquanto permitia o desenvolvimento e
crescimento elevado da indústria pornográfica no país. Portanto, a censura não
seria capaz de resguardar esses “valores familiares”, ao contrário, ela havia
servido na história recente para destruir a produção cultural. Por outro lado,
Comba foi a única, pelo menos no material investigado, a trazer o problema da
imagem da mulher nesses meios de comunicação. Esse mesmo problema havia
sido apontado na Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas
Deficientes e Minorias, por Lélia Gonzales ao tratar do uso da imagem da mulher
negra. O trecho seguinte traz a preocupação de Comba com os usos do corpo da
mulher, após ela ressaltar que já havia uma melhora nas propagandas no que dizia
respeito ao retrato da mulher inspirado no modelo de dona de casa.
Quanto aos meios de comunicação, as propagandas de televisão até que
melhoraram um pouco, se bem que começou a entrar num outro domínio também
supercomplicado (sic), que é a questão da exploração do objeto sexual, que é uma
coisa para consumo de qualquer criança no horário das sete. Mas, enfim, nos
27
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 202.
380
meios de comunicação há uma visão estereotipada da mulher. À mulher está
destinado o papel de futilidade; ela só está preocupada com o cabelo, com o
“shampoo”. Se vai anunciar um pneu, tem que pôr uma mulher nua ao lado para
anunciá-lo; quer dizer, o nosso corpo, diante dos meios de comunicação, é
absolutamente vilipendiado, vendido como coisa, como objeto mesmo de apelo
sexual, para a venda de qualquer produto, seja margarina ou pneu. (...) Na questão
do nosso corpo, as bancas de jornal, do ponto de vista de um desvirtuamento até
da questão da sexualidade, estão cheias daquelas revistas de apelo sexual. Até que
ponto aquilo contribui para o desenvolvimento da sexualidade humana, dos
homens e das mulheres? Acho que no fundo reproduz um padrão: a mulher tem
que ter corpo escultural. Acho aborrecido quando, dentro de casa, à noite, o
homem tem ao lado dele aquela mulher que não é o padrão, mas outra pessoa que
está marcada, que traz as marcas da vida, as estrias de várias gravidezes. Tudo
isso acaba criando até um contexto de sexualidade completamente distorcido que
se baseia, primeiro, pela falta de respeito ao próximo, do homem sobre a mulher,
sobretudo porque na verdade esse tipo de prática induz ao desrespeito do homem
sobre a mulher28.
Obviamente do consumo de pornografia ao estupro há um salto muito
grande e certamente Comba não quis dizer que todo aquele que consumia
pornografia seria um provável estuprador. Porém, a sua fala permite identificar
que a representante do CNDM compreendia ambas as questões como problemas
com a mesma origem. Em intensidades diferentes, pornografia e estupro
decorreriam da objetificação da mulher e, nesse sentido, conforme esclarecido na
nota acima, ela não ficaria sem companhia, ao contrário, era um debate posto por
importantes feministas na ordem internacional. De qualquer forma, é importante
ressaltar que sua perspectiva deve ser valorizada por trazer considerações
diferentes daquelas que surgiam quando o tema dos meios de comunicação era
28
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 202. Interessante observar que o debate sobre a forma de exploração do corpo feminino
nos meios de comunicação estava em andamento em âmbito internacional. Nesse sentido, a
militância feminista no Brasil demonstrava que suas preocupações acompanhavam esses debates
em países em que o feminismo já havia conseguido mais destaque. Em 1989 a professora
americana de Direito Constitucional, Catharine MacKinnon, lançaria Toward a Feminist Theory of
The State, obra em que se propunha a utilizar a metodologia marxista para demonstrar o papel
estruturante do patriarcado no Estado. Na referida obra ela enfrentava temas como estupro, aborto
e pornografia, como vertentes desse mesmo sistema de dominação sobre a mulher. Esse livro
mereceu destaque em virtude de ter aquecido os debates acerca dos limites da pornografia nos
Estados Unidos. Sua teoria foi bastante criticada entre as feministas, mais em função de sua
solução – a completa interdição da pornografia por não se conhecer uma pornografia não sexista
em um Estado patriarcal, inviabilizando a concretização da igualdade – do que por causa de sua
análise. Esta sofreu críticas semelhantes às análises que marxistas sofriam, de desprezar outras
formas de dominação além da de classe de determinadas feministas que já trabalhavam com
interseccionalidades. No seu caso, ela foi acusada de desprezar formas de dominação além das de
sexo. De qualquer forma, apesar de sua solução controvertida, a autora apresentava uma crítica
bastante forte ao Estado liberal que se dizia aparentemente neutro, mas que, através de suas
instituições, como o Poder Judiciário, ou de políticas públicas, ou mesmo na ausência dessas,
instituía um Estado patriarcal.
381
posto, na medida em que Comba acertava na constatação de que havia sim uma
exploração da imagem da mulher, e uma perpetuação de determinado modelo de
mulher, mas na mesma reunião demonstrava entender que a solução não se
encontrava na censura, mas sim na forma como a Constituição iria estruturar as
concessões das televisões, por exemplo.
Em regra aparecia a proposta da censura moral, conforme o exemplo
citado do Constituinte Iberê Ferreira, com a preocupação da estruturação da
família. O debate passava pelo uso do corpo da mulher, mas terminava sempre
com demonstrações de incômodo com relacionamentos homossexuais que a
televisão mostrava e até mesmo com abertura de novela, não somente nessa
Subcomissão, como na Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais29, mas
não se discutia a objetificação da mulher. A preocupação com a preservação dos
chamados valores familiares estava sempre presente e atravessava das discussões
sobre meios de comunicação, até as possibilidades de divórcio, passando pelas
disputas sobre o papel de homens e mulheres na família e a educação de crianças e
adolescentes, ora para afirmar a relevância de se desenvolver culturalmente as
crianças, ora para marcar uma posição em que a concepção de educação estava
mais próxima da imposição de determinada moralidade nessas crianças do que da
preocupação com a formação educacional propriamente dita. Após a fala de
Comba, nenhum dos Constituintes retomou o tema do tratamento dispensado
pelos meios de comunicação ao corpo feminino. Sobre a educação, Comba
apresentava a seguinte proposta:
§1° É responsabilidade do Estado assegurar a educação pública e gratuita em
todos os níveis.
§2° As creches serão consideradas unidades de guarda e educação de crianças do
0 aos 6 anos de idade.
29
Nesse sentido foi a declaração do Constituinte Narciso Mendes (PDS-AC), na vigésima quinta
reunião da Subcomissão dos Direitos e Garantias Individuais: “Com relação à censura, tenho uma
consideração a fazer. Acho que a censura por questões políticas e filosóficas, não tem sentido.
Cada um deve exprimir o pensamento político que bem lhe convier. Mas, como proteção à
sociedade, ela tem de existir. Estamos hoje assistindo, estarrecidos, no horário da novela das 19h,
na televisão, a um homem nu, às vistas dos nossos filhos. Hoje ele está andando de costa e, se não
dermos um basta nisso, na próxima novela das 20h, virá de frente – e, então, será a degeneração da
nossa sociedade e dos nossos filhos. Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao
nº 83). Quinta-feira, 25 de junho de 1987. P. 28. Interessante observar que a indignação maior do
Constituinte foi a um nu masculino, que poderia ser capaz de colocar em risco não somente os
filhos, como a sociedade. A referência era à abertura da novela Brega e Chique.
382
Art. A educação obedecerá aos seguintes princípios: a igualdade entre o homem e
a mulher, o repúdio a qualquer forma de racismo e discriminação, a convivência
pacífica entre os povos, o pluralismo cultural do povo brasileiro30.
Em contrapartida, a resposta que obtinha do Constituinte Roberto Augusto
(PTB-RJ) era a seguinte: “o que está faltando para uma mudança em todos os
sentidos, no Brasil – como estamos tratando do eixo da família, a união do homem
e da mulher, a submissão e os direitos – só há uma maneira que é a orientação
prática, para a mudança desta formação moral, social, inclusive espiritual da nossa
sociedade”31. A representante do CNDM mostrava uma sugestão suficientemente
clara e concreta para o texto constitucional, ao mesmo tempo em que não se
prendia a detalhamentos, acusação enfrentadas por diferentes minorias, e o
Constituinte tecia comentários de ordem “espiritual”. A educação a qual o
Constituinte se referia era uma formação voltada para a manutenção do
casamento. Ainda que ele assumisse que em vez do simples exercício da
autoridade por parte do marido, a harmonia nas decisões da vida em comum e
referentes à formação de filhos deveriam ser buscadas, ele ressaltava a
necessidade de uma orientação para o casal voltada para a continuidade da vida
em comum, porque “é na vivência que surge o amor (...). E ainda que venha um
problema de separação, deverá haver um processo, no nosso Brasil, na nossa
sociedade, de orientação, para que este casal, ainda que na iminência de uma
separação, possa se reconciliar”32. Ainda assim, no mesmo trecho, o referido
Constituinte ao menos entendia a necessidade da previsão da possibilidade de
divórcio e de se garantir direitos à ex-mulher e ao filho, para viabilizar o sustento
material de ambos, o que era vantajoso se comparado a posicionamentos de outros
membros da Constituinte.
Mesmo Eraldo Tinoco, que seria um aliado para as feministas no momento
importante de definição de propostas de artigos, solicitou à Comba
esclarecimentos sobre as propostas do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher
para a Subcomissão em exame. Ele tinha receio de que a tutela da família
constituída civil ou naturalmente, conforme solicitavam as feministas, fosse
30
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 202.
31
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 202.
32
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 203.
383
implicar em um estímulo à bigamia. Também era reticente em relação à
possibilidade de a mulher declarar a paternidade do filho, pensando que ela
poderia ser contestada pelo pretenso pai e, inclusive, não ser reconhecida
judicialmente, após longos anos de espera. Nesses termos, sua preocupação era o
fato de não haver como reparar o dano material e o dano moral que o homem
sofreu ao longo da espera do julgamento. Além disso, também pensava que a nova
Constituição não precisava trazer por escrito que homens e mulheres tinham
igualdade de condições nas relações conjugais inclusive na fixação do domicílio
do casal. Entendia que dessa forma ela iria ser muito detalhada. Seu argumento
era no sentido de que na prática a mulher já seria ouvida sobre o domicílio do
casal e que violações a lei persistiam, não importando o fato de estar na
Constituição. Nesses termos, para ele era óbvio que a mulher tinha direito sobre o
próprio corpo, mas existiam maridos que não respeitavam esse fato e que havia
violência sexual entre casais, mas isso não significava que a lei deveria dizer que
as relações sexuais entre casais deveriam ser consensuais. Aparecer essa
referência à igualdade entre homem e mulher no casal para definir até mesmo
domicílio seria somente uma forma de homenagear a mulher 33.
Rita Camata (PMDB-ES) interrompeu Eraldo Tinoco (PFL-BA) algumas
vezes ao longo de sua justificativa para ressaltar que ainda assim isso deveria
aparecer no texto constitucional, mas não como uma forma de homenagear a
mulher e sim de afirmar um direito: “lutamos por democracia. Vamos escrever
democracia neste artigo”. No que foi complementada por Comba Marques Porto:
“Nesse plano das relações familiares também”34. Ambas demonstravam que na
prática nem sempre homens e mulheres tomavam decisões com o mesmo peso no
casamento, inclusive na definição do domicílio. Na verdade, Comba trazia
exemplos de casais em que o homem havia a procurado como advogada para
exercer o direito trazido pelo art. 233 do Código Civil de 1916, com o argumento
de que estava desempregado e que havia aparecido uma proposta de emprego para
ele em outra cidade, mas que sua esposa não aceitava ser transferida para a outra
cidade. Portanto, ele pretendia reivindicar a sua possibilidade de definição do
domicílio do casal. Sendo assim, essa era uma norma que ainda viabilizava uma
33
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 204.
34
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 204.
384
concreta situação de assimetria no casal. Por esse motivo, o CNDM entendia que
a Constituição deveria expressamente trazer a previsão da igualdade no casal,
inclusive na decisão sobre o domicílio. Apesar disso, Comba entendia que um
casamento que chegava ao ponto de o homem forçar a transferência da esposa já
havia acabado de fato. Porém, isso não implicava em uma real ruptura do casal.
Por esse motivo, se justificava a norma no texto Constitucional.
No que dizia respeito ao incentivo à bigamia ou à morosidade da justiça,
ela argumentava justamente que a lei já interditava a bigamia e não
impossibilitava a existência dela, sabendo-se que os homens praticavam a bigamia
de forma até mesmo instituída, pois casavam com uma mulher, tinham outra
mulher e registravam com seus próprios nomes os filhos da “concubina”, como se
casado fosse com ela. O fato era que o reconhecimento da constituição da família
tanto civilmente quanto naturalmente constituída dizia respeito à tutela de famílias
constituídas naturalmente, sem a formalidade do casamento, mas cujos
companheiros se comportassem como casados, o que acontecia em virtude até
mesmo de motivos econômicos, pois o casamento implicava em gastos
financeiros para sua formalização. Nessas relações constituídas somente de fato, a
mulher e os filhos tinham direitos limitados. Além disso, no caso da bigamia, os
filhos não poderiam deixar de ter uma paternidade reconhecida em virtude de uma
situação de desigualdade afirmada em lei. Portanto, eram problemas de ordens
diferentes. A questão da morosidade do Poder Judiciário não poderia servir para
acobertar a situação do homem. O esforço era o inverso, dever-se-ia trabalhar para
a eficácia do Poder Judiciário e não tutelar uma situação de desigualdade
contando com a demora da solução final. “Não é possível que um processo se
arraste por cinco anos quando ele pode ser resolvido em três meses”35. Nos temas
referentes a gênero, os receios de Constituintes nessa Subcomissão se agravavam
porque diziam respeito a afirmação de determinada moralidade, em que em última
instância, poderia afetar muitos homens com famílias paralelas, ao serem
obrigados a assumirem filhos que desejariam não assumir, ao serem descobertos
por suas famílias “oficiais”, constituídas pelo casamento, ao verem seus bens
repartidos por não se sabe quantos herdeiros. Eram temas que produziriam
impactos no patrimônio e na vida pessoal de muitos homens.
35
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 205.
385
A quinta reunião, no dia 22 de abril de 1987, foi dedicada ao tema do
planejamento familiar, com a participação exclusiva dos médicos representantes
do Movimento Pró-Vida de Brasília, Daniel Barbato e Geraldo Hideu Osani. O
tema do planejamento familiar foi tratado pelo grupo com o único intuito de
justificar a completa interdição do aborto no país, inclusive com a proibição das
possibilidades já consagradas na época no Art. 128 do Código Penal. Daniel
Barbato e Geraldo Hideu Osani fariam uso da condição de médicos, aqueles
responsáveis por trazer os argumentos científicos, para apoiar suas concepções
morais. Ao longo dos diálogos em torno do tema, esses argumentos supostamente
científicos foram apresentados com fins muito além do científico. O primeiro
dado interessante é justamente observar que uma reunião sobre planejamento
familiar acabou se transformando em uma militância contrária às hipóteses de
aborto permitidas no ordenamento jurídico. Não se pretende ao longo do presente
texto combater qualquer tipo de militância. Se havia a participação das militâncias
feministas, de negros e outras minorias outras militâncias também participariam.
O problema era a tentativa de se converter a demanda em argumento científico,
como se fosse a única justificativa cientificamente viável a completa interdição do
aborto.
Daniel Barreto, desde o início de sua fala, trazia a conexão entre o controle
de natalidade e o aborto citando supostos exemplos dos chamados países
desenvolvidos, em que o aborto haveria sido permitido como forma de controle de
natalidade e o resultado dessa medida não teria sido satisfatória, provocando, por
exemplo, o envelhecimento da população italiana36. É interessante observar o
encadeamento das idéias de Daniel Barreto no seguinte trecho:
Os leigos acham que o aborto é sinônimo de planejamento familiar e sabe-se que
os países superdesenvolvidos, onde o aborto foi adotada como forma de controle
de natalidade, o resultado tem sido negativo.
(...) E para mostrar este aspecto, porque a qualidade de vida da família tem vários
ângulos que têm que ser enfocados, quando se fala em planejamento familiar,
logo podemos dizer que resolvemos dois problemas: um é o do aborto e outro é o
do menor abandonado.
O menor abandonado, não tenho dúvida, terá o seu problema resolvido no dia em
que cientificamente o homem planejar a família. O mal será cortado pela raiz e
não contemporizado. Vou mostrar um audiovisual para que V. ExªS conheçam
melhor o problema do aborto, porque muita gente só fala em relação ao conceito
36
Sua fala pode ser encontrada em Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº
62). Quarta-feira, 20 de maio de 1987. P. 208.
386
e não se preocupa com o que se passa com a mulher. Nós temos que dar muita
importância para as conseqüências de um aborto. Aqui em Brasília temos perdido
muitas e muitas senhores (sic) em aborto provocado e é a classe média baixa, na
classe paupérrima, onde se observa isso.
É importante ressaltar que aqui não se faz uma defesa do aborto, somente
se demonstra a estratégia discursiva utilizada por aqueles que argumentaram de
forma contrária a ele. O próprio médico demonstrava que havia uma confusão
entre os “leigos”, em que se associavam os temas do controle de natalidade, do
planejamento familiar e do aborto. Quem seriam esses leigos? Além dos grupos
religiosos e movimentos pró-vida, as únicas que estiveram presentes para falar
sobre esses temas foram aquelas que militavam no feminismo, além dos juristas
que foram levados a se manifestar sobre o tema na Subcomissão dos Direitos e
Garantias Individuais. Feministas e juristas portanto, seriam os leigos. A primeira
medida desses médicos era desqualificar o discurso da militância feminista como
um discurso sem cientificidade, uma fala desinformada, sem autoridade, ao
contrário da suposta fala do médico, a fala qualificada. O médico começava a
fazer uso de seu “título científico” para justificar sua posição pessoal e para
desqualificar o discurso de oposição. Além disso, ele atribuiu a essas supostas
leigas uma confusão que não era realizada por elas.
As feministas em momento nenhum ao longo das reuniões das
Subcomissões de Direitos e Garantias Individuais, das reuniões da Subcomissão
da Família, do Menor e do Idoso, e das reuniões na Subcomissão da Saúde,
Seguridade e do Meio Ambiente confundiram planejamento familiar, com
controle de natalidade e com o aborto. Ao contrário, planejamento familiar, na
perspectiva feminista envolvia o direito do casal decidir sobre a quantidade de
filhos, contando com informações sobre métodos contraceptivos adequados e
seguros, sem prejuízo da saúde, bem como com as prestações positivas do Estado
no acesso à saúde e educação para eles e para seus filhos. O controle de natalidade
era algo rejeitado pelas feministas, pois se associava a políticas interventivas por
parte do Estado, determinando a quantidade de filhos que o casal poderia ter e,
incidindo, dessa forma, de maneira mais gravosa no corpo da mulher. Por fim, a
prática do aborto nunca foi incentivada entre as feministas, mas o que era
combatido era a criminalização, a tutela penal de tal fato, por incidir somente em
387
mulheres pobres e por criar situações de desigualdade no que dizia respeito à
saúde da mulher. Portanto, as “leigas” não confundiam esses problemas.
Parecia ser essa uma confusão criada pelos próprios militantes de
movimento
Pró-Vida
para
que
eles
pudessem
argumentativamente
e
“cientificamente” combater a confusão. Além disso, o médico foi taxativo no
sentido de entender que o controle absoluto do planejamento familiar por parte do
homem resolveria o problema do menor abandonado, quando, na verdade, a
condição de menor abandonado estava mais relacionada com a ausência de
política sociais por parte do Estado de prestação de serviços de saúde, educação e
rede de creche para crianças e para apoio aos pais, do que com a definição da
quantidade de filhos dentro do casal. Ainda assim, a confusão temática era
atribuída às “leigas”. Portanto, leigos precisariam de informação científica trazida
pelos médicos. Essa informação se iniciaria com a apresentação de um vídeo
impactante sobre o aborto, mostrando fetos abortados, produzido nos Estados
Unidos. A medida para causar impacto continuou em seguida, quando Daniel
Barbato trouxe um suposto fato sem qualquer referência mais específica: em
países europeus esses fetos estavam sendo abortados para uso na produção de
cosméticos.
Apesar da inconsistência, seu discurso era sempre pretensamente fundado
na ciência37. Esse dado é relevante na medida em que o discurso científico produz
um impacto muito forte no auditório. Além do agradecimento do Constituinte
Antônio Salim Curiati (PDS-SP), a própria Constituinte Maria Lúcia (PMDBAC), membro da “Bancada Feminina”, iria se mostrar bastante perturbada com o
mencionado vídeo e com as primeiras considerações acerca dos métodos
contraceptivos tecidas pelo médico Geraldo Hideu Osanai. “Tive duas filhas,
felizmente Deus me deu somente dois filhos, e eu desconhecia totalmente esse
assunto. Sempre fui e continuarei sendo contra a legalização do aborto,
principalmente, agora, e sempre que puder levarei ao público o que aprendi aqui
porque antes desconhecia o que fosse um aborto”38. A Constituinte não percebia a
37
A afirmação do uso de fetos em indústria de cosméticos se encontra em Diário da Assembleia
Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de 1987. P. 208. Na mesma
página há um agradecimento do Constituinte Antônio Salim Curiati ao Presidente da Subcomissão
por trazer “uma pessoa do gabarito do Dr. Daniel Barbato, que faz uma exposição de caráter
científico, altamente comunicativa e que elucida realmente todos os presentes”.
38
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 209.
388
parcialidade do suposto discurso científico e do vídeo informativo. Ela não
conseguiu constatar que o vídeo focava no procedimento do aborto, não
abordando o que levou aquela mulher a realizar o aborto, as condições nas quais
aquele feto havia sido concebido, qual era a trajetória da vida daquela mulher ou
daquelas mulheres. Se o objetivo final é discutir a vida, por que não falar da vida
daquelas mulheres? Eram vidas que mereceriam serem desconsideradas? Por que
motivos elas deveriam ser desconsideradas ou ter uma avaliação inferior a outras
formas de vida? Essas são questões que deveriam mobilizar alguém
comprometido com uma Bancada Feminina. Além disso, é um fato curioso o
agradecimento que a Constituinte faz a Deus por tê-la poupado de ter mais de
duas filhas. Novamente, não se faz uma defesa do aborto, mas apenas se
apresentam as falhas dos argumentos dos médicos e o comprometimento somente
parcial da Bancada Feminina com as demandas feministas.
Um aspecto relevante a ser apontado ao longo das discussões com Daniel
Barbato e Geraldo Hideu Osanai é a forma como se desenvolve posteriormente o
argumento do que seria um adequado planejamento familiar. Ambos iniciaram
seus discursos preocupados com as estatísticas sobre o aborto no país e os índices
de mortes de mulheres em decorrência deles, pois tinham a pretensão de levar a
todos as informações sobre os variados métodos de se evitar filhos, até mesmo o
aborto. O problema é que no decorrer das falas, parece que não restava qualquer
método que conjugasse os requisitos necessários de acordo com os critérios dos
palestrantes.
A pílula anticoncepcional seria a responsável pelo aumento de mulheres
que morreram de infarto do miocárdio. Geraldo Osanai assumia que não tinha
estatísticas para demonstrar essa ligação, mas assegurava a veracidade da
informação, na sua condição de médico ginecologista39. O interessante é que o
médico ainda afirmava no mesmo trecho que “a incidência do infarto do
miocárdio entre homem e mulher está quase igual”. O médico presumia que essas
mulheres que morriam por infarto haviam feito uso de pílula ao longo de suas
vidas, mas isso não era sequer o suficiente para igualar os índices de mortes por
essa causa entre homens e mulheres. De fato, a pílula tinha riscos e o movimento
feminista reivindicava métodos cada vez menos danosos à saúde da mulher, mas
39
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 209.
389
parecia haver outros fatores de risco que ensejavam o infarto e que faziam com
que os homens ainda morressem em maior número por esse motivo. Portanto, a
responsabilidade do aumento de infarto entre mulheres não poderia ser
simplesmente atribuída ao uso de pílula anticoncepcional.
Outros fatores vividos por diferentes mulheres podiam ter relação também
com essa estatística, como o ingresso da mão de obra feminina no mercado de
trabalho, o que implicava em uma adoção de estilo de vida entre mulheres muito
próxima ao estilo de vida dos homens. Isso sequer foi cogitado pelo palestrante.
No raciocínio do palestrante, portanto, qual seria a solução? Retirar as mulheres
do mercado de trabalho para evitar o aumento do número de mortes de mulheres
por infarto? O argumento de Geraldo Osanai tinha a pretensão de cientificidade,
mas não se sustentava. O que pretendia era simplesmente desqualificar a
utilização da pílula despertando uma forma de medo. O dispositivo intra-uterino
também foi alvo de combate, tendo sido considerado pelo palestrante como
abortivo, ainda que este tenha reconhecido que somente era abortivo em 2% ou
3% dos casos. A camisinha foi igualmente desqualificada, pois supostamente
atrapalharia a excitação da mulher. “No momento em que vai colocar a camisinha,
a excitação da mulher passa, o homem atinge o orgasmo, a mulher sente somente
um orifício de prazer. A verdade é esta. Então o homem evita, mas a mulher sofre
as conseqüências também”40. Porém, a preocupação com o grau de excitação da
mulher deveria ser da própria mulher. Por fim, foram enfrentados ainda o
diafragma, com o argumento de que eles não eram colocados de forma adequada
por muitas mulheres e a vasectomia e ligadura de trompas, por serem métodos
irreversíveis, ou de difícil reversão. Nesses termos, de acordo com Geraldo
Osanai, o melhor método seria o de Billings, ou “método natural”, que
resumidamente consistia em um acompanhamento diário realizado pelo casal do
muco vaginal e da temperatura do corpo feminino, para se determinar o exato
período de ovulação e se evitar relações sexuais nesse período.
Ambos os médicos afirmavam a eficácia maior do chamado método
natural em relação aos métodos químicos, barreiras mecânicas, após realizarem
longa palestra sobre esse método e sobre detalhes do funcionamento do corpo
feminino. Ambos desconsideravam a possibilidade de existirem mulheres que não
40
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 209.
390
tinham parceiros fixos ou cúmplices o suficiente para esse nível de observação do
corpo feminino e ambos esqueciam algo lembrado pela Constituinte Eunice
Michiles (PFL-AM) lembrava: “No meu Estado não sei se o Sr. Dr. Barbato teve
oportunidade de constatar que as mulheres não têm condições de distinguir um
fluxo que seja por uma infecção uterina, pois estão permanentemente nesse
estado, daquele fluxo de pré-ovulação”41. Em termos práticos Eunice Michiles
ressaltava que o uso do método proposto não seria adequado em larga escala por
dificuldades que diziam respeito até mesmo à ausência do acesso à saúde, como
disponibilizar a quantidade de profissionais de saúde acompanhando de forma tão
próxima cada casal brasileiro, nos moldes apresentados pelos projetos
desenvolvidos pelos dois médicos. Além disso, nessa concepção, poderia haver
vida sexual fora do casamento ou pelo menos de uniões estáveis?
O problema não era o fato de parte dos brasileiros religiosos preferirem a
adoção do “método natural”. O problema não era sequer o fato de este ser o
método recomendado pelas igrejas Católica ou Evangélica aos seus fiéis. Se esse é
o único método realmente permitido por uma determinada religião, nada mais
compreensível do que essa religião estimular seus fiéis a adotarem o referido
método. O problema era pretender tornar esse o grande método de planejamento
familiar, inclusive para pessoas que não fossem adeptos de determinadas religiões,
e, sob o argumento da cientificidade, fazer predominar uma determinada
moralidade. A partir desse ponto toda a discussão sobre planejamento familiar foi
direcionada para o tema do aborto, ou melhor, o combate às hipóteses legais de
aborto.
Quando Eraldo Tinoco (PFL-BA) interrogou os conferencistas sobre o
aborto em gravidez decorrente de estupro ou de risco de vida para a mãe42,
Geraldo Osani respondeu que em seu projeto eles entendiam ser importante
informar a essas mulheres o que elas estariam fazendo ao abortar, com o auxílio
dos psicólogos ligados ao movimento pró-vida. A informação prestada a mulheres
grávidas em situação de risco ou com gravidez decorrente de estupro consistia em
apresentar os slides sobre fetos abortados. O corpo violentado da mulher, o corpo
41
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 210.
42
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 212.
391
em risco e os traumas psíquicos de uma violência sexual ou de uma gravidez de
risco, esses dilemas eram esquecidos.
Geraldo Osani narrou um fato impactante em sua carreira que o fez ser
radicalmente contra qualquer hipótese de aborto. Em sua experiência como
médico, ele realizou um aborto terapêutico em uma gestante em que não somente
o útero crescia com a gravidez, mas também os rins da mulher. O médico reuniu
uma comissão de nefrologistas que concluiu que se não houvesse o aborto a mãe e
o feto iriam morrer. No entanto, ao realizar o procedimento do aborto, o médico
disse que se sentiu um assassino naquele procedimento e que não tinha sido
preparado para tirar uma vida43. A vida da mulher salva foi desconsiderada. Em
uma omissão sua, iria, certamente, haver a perda de duas vidas: a da mulher e a do
embrião, conforme esclarecido pela junta médica. Com sua intervenção houve a
perda do embrião somente, ou seja, ele minorou os danos, salvando a vida da
mulher, que se seguisse com a gravidez, certamente morreria junto com o feto. O
salvamento da vida da mulher, ainda que a do feto não fosse de qualquer forma
viabilizada não era justificativa suficiente para o médico realizar o aborto, em sua
concepção. A mulher então estaria somente realizando o seu destino ao morrer
com o feto em virtude de gravidez de risco. Se ela não tinha condições de saúde
para desenvolver aquele feto, então sua vida não mereceria tutela, devendo
sucumbir junto com o feto.
Aspectos relevantes sobre a situação de mulheres grávidas foram trazidos
pelos palestrantes e devem ser considerados, como a discriminação sofrida por
mães solteiras, a não aceitação dessa situação na família da mãe, o desprezo
demonstrado por pais que não se responsabilizavam pela gravidez e que fugiam às
obrigações decorrentes do nascimento de filhos, entre outros. Essas situações, de
acordo com os médicos, não poderiam fundamentar uma legislação mais
permissiva sobre o aborto. De fato, a compreensão desses temas por parte dos
médicos era progressista, pois reivindicavam outro olhar sobre mulheres que
engravidavam fora do casamento e que não contavam com o apoio dos pais das
crianças Eles pessoalmente produziam esforços para que essas mulheres fossem
aceitas em suas casas, em vez de forçadas a abortar nessas situações, ou em
virtude de uma imposição da própria família, ou por se encontrarem sem qualquer
43
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 212.
392
suporte financeiro e emocional, com medo de revelar a gravidez para os pais ou
responsáveis. Porém, era notória a atribuição, em última instância, da
responsabilidade da gravidez sobre a própria mulher, sugerindo até mesmo uma
justificação de comportamentos hostis contra mulheres que rejeitassem a condição
de mães em uma sociedade que admitisse o aborto:
Então, oficializar o desrespeito à vida é o meu medo, porque pensamos que é para
o momento atual, não vai ficar na educação. E colocam, inclusive para as
mulheres – se a gente tira, o pessoal diz que é hipocrisia e que o maior amor é o
da mãe pelo filho. Se a gente oficializa que a mãe não precisa amar o filho, qual
outro amor que a gente vai ter? Se oficializamos isso: a mãe não precisa amar o
filho. Ora, se a mãe não precisa amar seu filho, então por que ela vai ser amada?
Por que ela vai exigir também amor? Colocamos isto. Então o meu medo é que o
desamor sobre as mulheres aumente, porque oficializa, legaliza. A mulher não
ama o filho: por que eu vou amar a mulher? A mentalidade vai atrás disso aí. O
machismo existe em lugares onde o aborto é legalizado44.
Essa breve passagem ilustra boa parte da discussão teórica cunhada no
primeiro capítulo a partir da demonstração dos atos performativos na construção
dos gêneros e da análise da construção do papel da mulher ao longo do segundo
capítulo. Dessa passagem, podem ser extraídas algumas conclusões. A frase
“maior amor é o amor da mãe” é bastante simbólica. Parte-se do pressuposto de
que a mãe ama seus filhos naturalmente, ao mesmo tempo em que se sabe de
todas as performances para que se constituíssem homens e mulheres e a separação
de funções e atribuições de cada um, cabendo à mulher mãe o “amor
incondicional”45. Sendo natural e incondicional, por que seria necessário garantir
por lei que esse amor não deixasse de existir? Ou por que a preocupação em
estabelecer vedação legal às hipóteses de aborto? É interessante notar o quão
perturbador pode se tornar o questionamento a esse amor materno, pois se a mãe
não precisa amar o filho, qual seria outro amor possível? Essa era a angústia do
palestrante. É como se ao demonstrar que não ama o filho, a mulher provocasse
uma ruptura em algo que até então era líquido e certo: toda mãe ama seu filho, a
grande certeza. Ao romper tamanha certeza, o palestrante entendia que a mulher
deixava de ser digna de receber qualquer outra forma de amor. A realização de um
44
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 213.
45
Também sobre o tema da construção do papel da mãe, além do já apresentado nos capítulos
anteriores, referentes à teoria de Butler e ao desenvolvimento do papel da mulher a partir da
segunda metade do século XX, cabe citar a obra de referência sobre o tema: BADINTER,
Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
393
aborto, na perspectiva do palestrante, implicaria nessa ruptura, justificando
comportamentos hostis em relação a essa mulher, e justificando também a
existência do machismo. A responsabilidade pela existência do machismo seria,
portanto, da mulher, alvo do machismo. Isso é relevante na medida em que
realmente refletia um setor da sociedade civil no momento da Assembleia
Constituinte. A responsabilização de vítimas de violência sexual e violência
doméstica pela própria situação de violência vivida não estava posta e justificada,
para citar uma das consequências do raciocínio do palestrante.
Ao longo dessa reunião, a única manifestação que realmente enfrentava o
discurso do palestrante, trazendo estatísticas sobre a prática do aborto era do
Constituinte Chico Humberto (PDT-MG). Assim como o palestrante, ele fazia
questão de se apresentar como médico, angiologista e cirurgião vascular, talvez
em uma estratégia de também tentar trazer a força do argumento científico para
ele. Outro aspecto na qualificação desse Constituinte merecia destaque: ele se
apresentava como alguém religioso, um Kardecista, de uma família também de
espiritualistas. Ele foi o único que até aquele momento conseguiu distinguir suas
convicções pessoais de sua função na Assembleia Constituinte, ressaltando que
era pessoalmente contrário ao aborto, mas que se preocupava com os altos índices
de mulheres que morriam ou que perdiam a capacidade reprodutiva em
decorrência de aborto realizado de forma inadequada. Em seu raciocínio, o Estado
contribuía com a morte dessas mulheres ou com a perda da capacidade de
procriar, “intercedendo num ciclo de vida”46. O seu próximo passo era realizar
referências a países que legalizaram a prática do aborto e conseguiram fazer com
que os índices de aborto caíssem após a legalização, como Estados Unidos e
Cuba.
Interessante observar novamente o desconforto gerado pelo tema, pois
justamente Eraldo Tinoco (PFL-BA) e Eunice Michiles (PFL-AM) responderam
ao médico. O primeiro afirmava que os médicos deveriam ser recusar a atender
pacientes que solicitavam o referido procedimento, pois “se o médico não intervir,
não aceitar a procura da mulher, ela naturalmente continuará e terá o filho
normalmente”(grifo nosso), equiparando a situação do aborto à prática do roubo:
“quantos assaltos são praticados no Brasil? Por isso nós vamos legalizar o
46
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 214.
394
assalto?”47. A segunda com receio de que a legalização gerasse um aumento na
prática do aborto. Eraldo Tinoco ressaltava que as estatística sobre o tema não
eram confiáveis e que a prática de aborto de forma ilegal era em virtude da “falta
de educação, uma falta, digamos assim, até de preparo social”. Ele afirmava que a
mulher teria o filho naturalmente e normalmente caso houvesse a recusa de
qualquer profissional de realizar o procedimento. Suas concepções do que era
normal e natural remetiam claramente à afirmação da suposto natureza maternal
da mulher. Na realidade, dificilmente uma mulher que procurasse um profissional
para realizar o aborto e não encontrasse ninguém disposto teria o filho
“normalmente e naturalmente”, como se nada tivesse ocorrido. Além disso, ele
havia comparado duas situações completamente distintas: roubo e aborto. Todas
as consequências do aborto, bem como os dilemas anteriores recaíam sobre
mulheres que praticavam a própria ação. Somente em seguida Eunice Michiles
voltou atrás em sua posição, observando que as consequências do aborto recaíam
somente sobre a mulher sem que as condições que a conduziu até esse ato fossem
observadas, inclusive a participação do homem, pois o peso de uma gravidez
indesejada estava somente nos ombros das mulheres. A discussão do que era ou
não crime ou era ou não imoral havia tomado um rumo no qual as condições das
mulheres eram desprezadas. A partir de sua colocação, os Constituintes Nelson
Aguiar (PMDB-ES) e Roberto Augusto (PTB-RJ) afirmaram que a grande
responsável pela situação não era a mulher e sim a falta de uma formação cristã
sólida, que gerava esse tipo de problema48.
O sexto dia de reunião, 23 de abril de 1987, também foi dedicado ao
“planejamento familiar”, com um roteiro bastante próximo da condução da quinta
reunião. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil enviou os médicos
Dernival da Silva Brandão e João Evangelista dos Santos Alves. A trajetória do
discurso teve início com a apresentação de slides sobre aborto e sobre métodos
contraceptivos. Porém, a reunião se iniciava de forma diferente: O Presidente
Nelson Aguiar (PMDB-ES) abria o debate com um aviso: “o tema proposto é
planejamento familiar e não especificamente o aborto. Aliás temos recebido
algumas observações de desagrado. Ontem mesmo, através de um telefonema,
47
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 214. Todo esse diálogo se encontra nesse mesmo trecho.
48
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 215.
395
alguém cujo nome deixo de mencionar, observava que aborto não é assunto para
a Constituição (...)”49. A notícia de que havia ocorrido uma discussão
primordialmente sobre aborto, bem como o teor que a discussão teve já havia
corrido entre os Constituintes e entre o movimento feminista. O Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher entrara em contato com a Presidência para
solicitar o retorno de uma representante para falar sobre o tema, uma vez que ele
estava em pauta, e ainda retomava o item 9° da Carta das Mulheres, que pretendia
estabelecer que as mulheres tinham o direito de evitar ou interromper uma
gravidez sem prejuízo de sua saúde. A partir desse ponto, teve início também um
esforço para retirar o tema do aborto da pauta das Subcomissões, que já apareceu
na análise da Subcomissão de Direitos e Garantias Individuais e que apareceria
também na Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso.
Apesar do aviso de Presidente, a reunião prosseguiu, com a primeira
manifestação da Constituinte Sandra Cavalcanti (PFL-RJ) afirmando que a Carta
das Mulheres representava uma parte ínfima das mulheres brasileiras e que
provavelmente boa parte jamais assinaria tal documento, afirmando em seguida
que ela mesma não assinaria50, o que coloca novamente em xeque a chamada
Bancada Feminina como uma bancada realmente passível de pleitear acima de
tudo direitos das mulheres, bem como a adesão das componentes dessa bancada
aos projetos apresentados pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. João
Evangelista atribuía o problema ao estímulo cada vez mais precoce à sexualidade.
Para o palestrante o acesso sem qualquer restrição aos meios de contracepção
estimulava o “desordenado sexo sem compromisso”51. Esses fatores seriam os
responsáveis pelo aumento do número de abortos e pela reivindicação a favor da
legalização. A saída seria, portanto, um “saneamento do ambiente moral e
espiritual da sociedade (...)”. O palestrante incide também nos mesmos equívocos,
tratando como se fossem um único tema o controle de natalidade e o planejamento
familiar, para demonstrar os diferentes métodos contraceptivos, desconsiderando
que controle de natalidade implica em intervencionismo estatal sobre a quantidade
de filhos por casal. Além disso, também passa boa parte de sua fala apontando os
49
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 217.
50
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 217.
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Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 217.
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malefícios dos métodos contraceptivos, especialmente a pílula e combatendo o
uso do DIU. O corpo da mulher foi dissecado ao longo de sua fala, com detalhes
sobre as consequências no miocárdio e de um suposto aumento de obesidade, para
finalizar com a observação de que a fertilidade humana não era doença a ser
tratada e sim indicativo de saúde e que cabia aos casais o seu profundo
conhecimento, para um controle fisiológico. Em seguida entraria Dermival da
Silva Brandão com a defesa do método de Billings novamente. “É um modo de
viver, é um sentido de vida. É um sentido em que o método é aberto à vida. Não é
um método antinatalista”52. Como o próprio palestrante afirmara, era um modo de
viver, modo de viver esse plenamente válido para aqueles que compartilhassem
desses mesmos valores, mas que não deveria ser discutido de forma tão detalhada
em Subcomissão de Constituinte.
O Constituinte Cássio Cunha Lima (PMDB-PB) afirmou a importância de
se convidar entidades que pensavam de forma diferente para apresentar as suas
perspectivas sobre os temas discutidos, garantindo uma espécie de contraditório,
ressaltando que não desejava ingressar na matéria discutida, mas estava
preocupado em ampliar o debate, no que foi respondido por Nelson Aguiar
(PMDB-ES), que reiterou o fato de a Subcomissão não realizar convites
específicos e ainda afirmou que o CNDM já havia manifestado o desejo de estar
presente para defender sua proposta, além de lembrar da participação do
Constituinte Francisco Humberto, que ressaltava o desejo de ser chamado de
Chico, como Chico Xavier, e que havia defendido posição diferente da dos
palestrantes53.
Como não poderia ser diferente, todo o debate posterior seria feito em
torno do problema do aborto, incluindo o combate às já mencionadas hipóteses
autorizadas pela legislação penal: a gravidez de risco para a mãe e a gravidez
decorrente de estupro. Em relação ao argumento do risco de vida para a mãe, os
palestrantes afirmavam que para o aborto ser terapêutico ele deveria ser feito na
iminência de uma morte e se realizado nessa condição, a morte aconteceria.
Porém, o próprio relato da experiência profissional do médico do dia anterior
dizia o contrário. No caso, em questão, a vida da mulher fora salva. Em relação à
52
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 222.
53
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 223.
397
gravidez decorrente de estupro, o argumento dos palestrantes, e, posteriormente,
da Constituinte Sandra Cavalcanti (PFL-RJ), membro da chamada “Bancada
Feminina”, seria no sentido de que um erro não justificaria outro erro54. Ou seja, o
estupro não justificava no cometimento de outro crime em relação a uma vida
diferente da vida da mãe, uma vida autônoma.
Esses médicos optariam por defender a manutenção a qualquer custo de
uma gravidez decorrente de um estupro em virtude da autonomia da vida do feto,
pois possuía DNA próprio e tinha metabolismo, esforçando-se para demonstrar a
autonomia da vida do feto. Ocorre que a vida nesse momento ainda não é
autônoma, pois se fosse, não precisaria estar dentro de outro corpo, o corpo
materno, para conseguir se desenvolver e ter possibilidade de vida fora do corpo
da mãe. Novamente, importante ressaltar que não se faz aqui uma defesa do
aborto, mas o fato é que essa autonomia que foi tão defendida em relação à vida
do feto não existe. Tanto os palestrantes quanto Sandra Cavalcanti desprezavam
esse fator relevante e desprezavam também a própria vida e o corpo da mulher, o
impacto de uma violência sexual e de se forçar a continuidade de uma gravidez
nesses termos. Isso não seria outra forma de tornar a mulher um objeto?
Obviamente, qualquer mulher de qualquer religião que se sentisse desconfortável
em realizar um aborto em caso de gravidez decorrente de estupro seria
merecedora de apoio e assistência física e psicológica por parte do Estado e,
especialmente, de sua comunidade religiosa para seguir com a gravidez.
Eraldo
Tinoco
(PFL-BA)
finalmente
resolveu
colocar
questões
semelhantes a essas ao interrogar os palestrantes sobre o fato de as mulheres
traumatizadas por um crime de estupro serem obrigadas por lei a seguirem com a
gravidez, assim como colocava o fato de a mulher não ser obrigada a levar uma
gravidez de risco até o fim. Essas colocações são importantes, pois a
permissividade da lei não implicava em uma obrigação de abortar, somente em
uma possibilidade de realização do aborto. A permissão legal viabilizava qualquer
grupo religioso de trabalhar com suas fiéis para que elas não praticassem a
interrupção da gravidez, já a interdição do aborto nessas hipóteses impediria a
realização do procedimento para todas as mulheres. Iberê Ferreira (PFL-RN)
também se mostrava reticente sobre a obrigatoriedade da mulher vítima de estupro
54
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 229.
398
ser obrigada a ter o filho, especialmente com o receio de que o trauma passasse de
alguma forma para a criança. No que o médico afirmou categoricamente que não
tinha nenhuma substância química que poderia ser passada em virtude do
trauma55. Porém, o trauma da mulher era, novamente, desconsiderado. A
discussão sobre o tema nesse dia se encerrou, mas retornaria em outros momentos.
A sétima reunião da Subcomissão da Família, do Menor e do Idoso, em 27
de abril de 1987, foi dedicada ao tema da “influência dos meios de comunicação
na vida familiar”. A princípio, a reunião não teria relação direta com o objeto de
análise do trabalho. Porém, os discursos retrataram que espécies de interesses e de
valores familiares deveriam ser tutelados, ao menos na concepção dessa
Subcomissão. O Constituinte Artur da Távola (PMDB-RJ) apresentava em sua
exposição considerações relevantes no que dizia respeito aos diferentes tipos de
meios de comunicação, sendo a principal dessas o fato de que alguns dependiam
de concessão de serviço público, como rádio e televisão, e outros não, como
jornais e revistas. Nesse sentido, talvez os que dependessem dessa concessão
deveriam cumprir alguns requisitos, mas a dificuldade encontrada pelo
Constituinte era justamente para veículos que não precisavam de concessão. De
qualquer forma, ele ressaltava ser favorável a códigos de ética produzidos pela
própria categoria, mas nunca a censura56.
O Presidente Nelson Aguiar (PMDB-ES), em seguida, direcionaria a
discussão para o rumo dos chamados “valores familiares”, com a alusão a uma
cena de novela, que, de repente, era jogada na sala da família, para as crianças,
para as esposas. Essa cena, segundo o Presidente, poderia agredir a família e a
televisão, ou o dono da emissora, jamais iria ser capaz de ouvir as reclamações de
tal família. Como o Estado deveria se portar diante desses fatos57? Essa era a
questão devolvida a Artur da Távola, que prontamente esclarecia a inaptidão do
Estado para fazer essa censura moral. A censura moral implicaria em algo que
poderia se transformar em censura política, certamente algo que deveria ser
evitado em virtude de experiência recém vivida naquele momento. Em suas
palavras “Defendo a existência de um conselho ético interno que represente a
55
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 62). Quarta-feira, 20 de maio de
1987. P. 228.
56
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. P. 176.
57
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. P. 177.
399
sociedade, sob o ponto de vista profissional, e da empresa. Mas acredito também
que as empresas são as maiores interessadas, já que vivem numa relação com o
mercado, num bom contato com a sociedade e, portanto, com a família”58.
Obviamente, é fácil perceber atualmente o quanto essas empresas se distanciam de
uma suposta oitiva de representantes da sociedade civil para estabelecer a grade
da programação. Porém, a posição de Comba, deve ser retomada aqui para
lembrar que os mecanismos de censura haviam se prestado até mesmo à
perpetuação dessas “agressões” à família, na medida em que somente
inviabilizavam produções artísticas importantes. Nesses termos, os chamados
valores familiares não estariam resguardados pela censura. O Constituinte Ervin
Bonkoski (PMDB-PR) acompanhava a proposta de Artur da Távola de criação do
referido conselho no mesmo trecho, mas dizia ser necessário o estabelecimento de
uma punição se a empresa se recusasse a incorporar as demandas desse conselho,
em virtude do Estado ser o responsável pela concessão.
Sem ingressar no mérito da discussão sobre as concessões, o interessante é
perceber quais eram os valores familiares alvos dessas agressões por parte da
televisão, especialmente. Eliel Rodrigues (PMDB-PA), por exemplo, se dizia
contrário às censuras políticas, mas entendia ser necessária uma censura quando a
expressão de pensamento “fere a sensibilidade e a formação da família e da
sociedade, no aspecto moral (...)59”. Apesar das preocupações em relação à
qualidade dos programas de televisão, os principais problemas apontados não
diziam respeito à qualidade deles, mas sim à busca de um mecanismo de tutela da
moral, mas que moral seria essa? Novamente, a objetificação do corpo feminino
não era percebida como um problema em si, como algo que perpetuava
determinada concepção de mulher, a mulher para ser “consumida”, sendo esse
mais um mecanismo de reprodução de estereótipos de gênero. As críticas dos
Constituintes eram sempre destinadas aos “valores familiares”, conforme o
exemplo de Flávio Palmier da Veiga (PMDB-RJ): “Porque estamos cansados,
principalmente nos horários nobres, de não assistirmos a um programa que possa
contribuir com a vida, com o sentimento, com a formação moral, ética e cultural
58
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. P. 177.
59
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. P. 178.
400
da família, do jovem e do povo”60. A moral era constantemente reivindicada, mas
não se tinha qualquer preocupação em esclarecer qual seria essa moralidade a ser
resguardada.
Os Constituintes Hélio Costa (PMDB-MG) e Artur da Távola (PMDB-RJ)
analisavam com mais cautela o problema. Artur da Távola dizia ser mais eficaz
investir em educação, pois em decorrência disso o interesse em relação a
determinados programas seria reduzido e Hélio Costa chamava a atenção para o
fato de as próprias notícias serem violentas. Portanto, não haveria como controlar
a violência na televisão. Tal veículo de informação, para ambos, deveria ser
bastante aberto, seguindo apenas alguns parâmetros estabelecidos por um código
de ética , caso contrário, o risco poderia ser a perda de uma das funções da própria
televisão, configurando a impossibilidade de informar61. Artur da Távola ainda
reconhecia que a televisão não deixava também de ser um reflexo de valores
produzidos socialmente. Sendo assim, ela influenciava, mas era influenciada,
apesar de não se poder negar que sua capacidade de afetar socialmente era
bastante intensa, em decorrência do seu alcance. Esse também era um tema que
retornava entre os membros dessa Subcomissão constantemente, sempre com a
preocupação de resguardar “valores familiares” ou a “união da família”, como se
as famílias tivessem ruindo em virtude desses programas de televisão. Não se
cogitava o fato de as relações entre os casais terem sofrido mudanças, inclusive
em decorrência dos esforços dos movimentos feministas, de propostas de
empoderamento de mulheres. Os números de divórcio poderiam estar
aumentando, mas porque era um instituto novo, e casais antigos separados de fato
poderiam se utilizar dele, e porque no final da década de 1980 muitas mulheres ou
casais poderiam pensar ser desnecessária a manutenção de um casamento em
decorrência de questões financeiras ou morais.
Nesse sentido, com a preocupação em relação ao aumento do número de
separações e divórcios no país, ou com a “ruína da família”, iria ocorrer a oitava
reunião da Subcomissão, em 28 de abril de 1987, com o tema “Dissolução da
Sociedade Conjugal”. O convidado a falar sobre o tema era o Constituinte Nelson
60
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. P. 178. Nesse mesmo sentido foi também a fala de Nelson Aguiar, sobre a sua preocupação
com o programa da Xuxa. P. 180.
61
Diário da Assembleia Nacional Constituinte (Suplemento ao nº 63). Quinta-feira, 21 de maio de
1987. PP.178, 180, 181.
401
Carneiro (PMDB-RJ), o responsável pela elaboração e aprovação da Lei do
Divórcio, em 1977. Nas palavras do próprio Constituinte, desde o momento de
ingresso da possibilidade de divórcio no direito brasileiro, ele estava sendo
chamado de “um destruidor de famílias”62. O fato é que nessa Subcomissão da
Constituinte o divórcio também era um tema controvertido. Apesar das acusações
realizadas a Nelson Carneiro, ele nunca defendeu, por exemplo, a ext
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