Acompanhamento terapêutico e infância

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ACOMPANHAMENTO TERAPÊUTICO E INFÂNCIA
Hélida Vieira da Silva Xavier1; Charles Elias Lang2
A escrita deste trabalho desponta do marco clínico do acompanhamento
terapêutico (AT) com crianças diagnosticadas3 com alguma grave psicopatologia.
Tratam-se de crianças com idades entre 3 e 7 anos que, por contingências da vida, não
corresponderam ao ideal parental – seja por efeito de uma lesão real ou por uma lesão
fantasmática – e atravessam dificuldades quanto à inscrição na filiação, posto que os pais
padecem efeitos de destituição de suas funções simbólicas. São crianças que vivenciam
percalços no desenvolvimento dos aspectos estruturais e instrumentais, em que não há
ainda um eu constituído e o brincar também, até então, não está instituído ou é pouco
apresentado à criança (porque os pais não o sabem fazê-lo ou como introduzir o lúdico
nas ações que a criança lhes apresenta).
Convém de início pontuar uma particularidade que perpassa este dispositivo
clínico. O trabalho do AT tem sua especificidade marcada pela intervenção clínica em
abordagem interdisciplinar, com a família e o paciente. No que diz respeito a este
trabalho, o encaminhamento para um acompanhamento terapêutico, comumente, se
efetuou pela fonoaudióloga e/ou psicanalista que já acompanhavam estas crianças no
consultório. Decisão efetivada por ambas, tanto por ser um dispositivo clínico a mais face
aos entraves da resistência ao tratamento entrepostos pelos pais, como também por
considerarem os espaços simbólicos da criança como potencialmente favoráveis à
constituição do sujeito, seu desenvolvimento cognitivo, psíquico, afetivo.
1
Mestranda do Programa de Pós-graduação da Universidade Federal de Alagoas (IP/UFAL), integrante do
Grupo de Pesquisa Psicanálise, Clínica e Contemporaneidade (IP/UFAL), bolsista da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Psicóloga membro do Studio de Psicanálise.
2
Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, 2002).
Mestre em Filosofia Contemporânea pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, Porto
Alegre, RS, 1996). Professor permanente no Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal
de Alagoas (IP/UFAL, Maceió, AL). Pesquisador e Supervisor em Psicologia Clínica no Curso de
Graduação em Psicologia da UFAL. Psicanalista membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre
(APPOA).
3
Na terapêutica do acompanhamento terapêutico destas crianças corroboramos com o que é defendido por
Alfredo Jerusalinsky (2011) em seu livro Para compreender a criança: chaves psicanalíticas. Jerusalinky
ressalta a posição de que as estruturas clínicas na infância são não-decididas, precisamente, porque na
relação entre sintoma e fantasma no sujeito infantil o tempo lógico aparece lançado para o futuro. Daí
denota a essencialidade de o ato analítico tornar viável o “vir a ser” do sujeito.
Outro mote que justificou o AT, refere-se ao fato de que, desde cedo algumas
crianças se depararam com a solidão, ou com algum modo de privação de laços sociais,
como não ter ‘parceiro’ para realizar atividades cotidianas, não circular em turma de
amigos. O acompanhante terapêutico tem a vantagem, em relação aos demais
profissionais, de transpor os limites dos consultórios e adentrar ao que é familiar a criança,
em seus espaços marcados pela dimensão do lazer e também do conflito.
Nos meandros da clínica do AT com crianças inúmeras possibilidades de
intervenções se descortinam, tornando prenhe de sentidos os termos “clínica a céu aberto”
(PALOMBINI, 2007), ou “clínica em movimento” (PALOMBINI, 2004). Dentre elas
estão: a mediação entre a criança e sua família; a tecitura e/ou reinvestimento de laços
sociais; a intervenção na trama familiar; a fomentação da capacidade de criação; a
invenção ou ampliação dos espaços de circulação da criança.
Nestes espaços, ora públicos (praças, ruas, parques), ora privados (casa da criança,
dos avós, etc), desdobra-se o setting terapêutico do AT. Conforme ressalta Julieta
Jerusalinsky (2014, p. 160) o setting no AT não é recortado por uma sala, a criança é
acompanhada em sua “circulação e inclusive na extensão das fronteiras desta circulação,
muitas vezes enquistadas em verdadeiros circuitos fechados, que enquistam também a
articulação do desejo”.
A cidade caracteriza-se como um espaço repleto de marcas simbólicas culturais,
o encontro com estas marcas pode propiciar o despertar do desejo. Contudo, não se trata
de um simples flanar pela cidade, o traçado que se arma junto à criança depende de seus
referenciais significantes. A praça, a garagem, o parquinho, não são espaços de circulação
aleatórios, são traçados constituídos, passo a passo, a partir de um mapeamento sincrônico
entre o desejo da criança e o social (JERUSALINSKY, 2014). A autora ressalta ainda que
esse movimentar-se no espaço público no AT opere no sentido de possibilitar um transitar
socialmente nos códigos da cultura, não mais de um lugar de suposta exceção, que a
condenaria à exclusão.
Como ponto de partida, ao adentrar no espaço privado à criança, a intervenção na
trama familiar tem como perspectiva a inscrição na filiação, pela assunção de um lugar
para o saber consciente e inconsciente dos pais sobre a criança, pelo advento da suposição
de um sujeito, de uma intenção ali onde podemos nos deparar com o vazio de significantes
e significados. Ou pior, nos chocamos com o imperativo de um diagnóstico que determina
formas de ser e traduz um fracasso apriorístico, subjugando a possibilidade de que a
criança advenha como sujeito (JERUSALINSKY, 2002).
A operação de inscrição na filiação demanda um trabalho de reconstrução de outro
lugar para a criança no discurso parental, para que estes se interroguem sobre o desejo
que os implica ao filho: quais expectativas narcísicas endereçam a ele, qual futuro
antecipam e o inscrevem. No at torna-se essencial a reconstrução do edifício simbólico
que ampare a criança para além do discurso científico de sintomas que a aliena.
Na prática do AT com crianças o cuidado com o outro ganha dimensões muito
próximas do dia a dia, o acompanhante irá considerar as potencialidades terapêuticas das
atividades e vivências cotidianas do pequeno sujeito (BARRETTO, 1998). Costumamos
pinçar palavra, sílabas, onomatopeia, olhares, gesto tímido e criamos brincadeiras que
possam capturá-la, buscando alinhavar significantes nos quais ela possa vir a se
reconhecer. Na trama deste tecido significante urdido no cotidiano do at, o desejo começa
a ter lugar à medida em passa a ser suposto e escutado, à proporção que se articula uma
expectativa em relação a criança, ao modo de uma antecipação simbólica sustentada pelo
Outro encarnado (JERUSALINSKY, 2014).
Assim, partimos de uma arbitrariedade simbólica, articulada à rede significante
recolhida do discurso parental. São intervenções sancionadoras que introduzem atos
significantes e cunham significações que viabilizam a criação de um hiato para que a
criança possa ali se instalar como sujeito desejante. Tais intervenções se referem não
apenas à criação, mas também ao estiramento simbólico (JERUSALINSKY, 2002).
Nomear as demandas, seus gestos, seu corpo, contribuir com um olhar ampliado
do mundo do paciente, ser seu porta-voz, são atos frequentes no cotidiano do AT
(BENEVIDES & MACHADO, 2004). O acompanhante terapêutico é convocado a
criação de novos espaços de transição da criança. Costumamos ir à praça, ao parque,
brincar no jardim do vizinho, andar de bicicleta na calçada, lugares propícios ao encontro
com o coletivo da troca de palavras e olhares (MEIRA, 2013). Espaços também fecundos
ao enredamento de novos laços sociais, a construção de novas imagens no encontro com
o outro (IDEM). Nesses momentos ao ar livre é a criança que leva o acompanhante
terapêutico, seu tempo é outro, ora frenético, nas corridas pela praça, no subir e descer da
gangorra; ora vagaroso, na contemplação de insetos, na pintura de um desenho, no
empilhamento de objetos.
As atividades de fomentação do universo imaginário da criança se desdobram num
indispensável exercício de expansão ficcional, segundo Jerusalinsky (2011) “o exercício
do saber imaginário próprio da infância” (p. 28). No AT com Lucas – 7 anos –, com
frequência, transformamos sucata em brinquedos, palavras em histórias, desenhos em
gibis, a argila desbancou a massa de modela pela possibilidade da pintura. Indiretamente,
os efeitos do alargamento das fronteiras criativas da criança se estendem na melhora da
coordenação motora, da capacidade de abstração, da dicção.
O trabalho clínico que emerge nas trilhas abertas pelo AT propicia a criação de
novas referências sobre o lugar da criança na família, bem como a criação ficcional.
Abrem-se caminhos para construção de histórias que marcam o desabrochar do sujeito,
em que novas narrativas sobre e para a criança são contadas e escritas a cada encontro.
Ao acompanhante terapêutico cabe a tarefa de colocar em primeiro plano a
constituição de um sujeito desejante, ao operar um corte que rompe com o horizonte de
histórias amarradas a um diagnóstico, de queixas sobre sintomas e limitações esperadas
dos familiares. Acompanhar é suportar o desconhecido, a temporalidade do outro; ampliar
o olhar, as fronteiras simbólicas; nomear, reconhecer, traduzir, compor, inventar,
reescrever, auxiliar os pais na escritura de histórias as quais eles possam contar sobre e
para seus filhos, garantindo um lugar de sujeito no edifício simbólico familiar.
REFERÊNCIAS
BARRETTO, K. D. Ética e técnica no acompanhamento terapêutico: andanças com
Dom Quixote e Sancho Pança. São Paulo: Unimarco Editora, 1998, 210p.
BENEVIDES, L. G.; MACHADO, P. S. Espaço-temporalidades no acompanhamento
terapêutico. In: PALOMBINI, A. de L. (org.). Acompanhamento terapêutico na rede
pública: a clínica em movimento. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004, p. 43-56.
JERUSALINSKY, A. Para entender a criança: chaves psicanalíticas. São Paulo:
Instituto Langage, 2011, 188 p.
JERUSALINSKY, J. Enquanto o futuro não vem: a psicanálise na clínica
interdisciplinar com bebês. Salvador, BA: Ágalma, 2002.
_______. Acompanhamento terapêutico e a construção de um protagonismo. In: Escritos
da Criança, nº 6. 2ª ed. Porto Alegre: Centro Lydia Coriat, 155-169.
MEIRA, A. M. As crianças na cidade e o acompanhamento terapêutico. Psicologia &
Sociedade, 25 (n. spe. 2), 41-45, 2013.
PALOMBINI, A. de L. (org.). Acompanhamento terapêutico na rede pública: a
clínica em movimento. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.
_______. Vertigens de uma clínica a céu aberto: a cidade. Contribuições do
acompanhamento terapêutico à clínica na reforma psiquiátrica. 2007, 247 f. Tese
(Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social,
Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 2007.
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