PSICO Ψ v. 42, n. 1, pp. 23-30, jan./mar. 2011 Atribuições de significados ao transplante renal Alberto Manuel Quintana Taiane Klein dos Santos Weissheimer Caroline Hermann Universidade Federal de Santa Maria Santa Maria, RS, Brasil RESUMO Este trabalho teve foco na investigação das atribuições de significados ao transplante renal de pacientes com Insuficiência Renal Crônica (IRC) de um Hospital Universitário da Região Sul. Foi utilizado um método qualitativo e participaram doze pessoas na pesquisa. Os instrumentos utilizados foram a entrevista semidirigida e a autofotografia. Para a análise dos dados foi empregada a técnica de análise de conteúdo, o que permitiu que fossem construídas quatro categorias temáticas: a ansiedade da espera, os conflitos ante o doador, as expectativas em relação ao devir e a vida antes e depois do transplante. Constatou-se que a possibilidade deste traz consigo uma série de repercussões psíquicas devido o fato de ser visto como algo que restitui a vida, proporciona bem-estar e sentimento de liberdade, mesmo levando em consideração que ainda persistem os cuidados com o corpo, com a alimentação e com os remédios. Palavras-chave: transplante renal; significados; doença renal crônica. ABSTRACT Meaning attributions to renal transplantation The following paper aimed to research on the meaning attributions to the renal transplantation of the patients with Chronic Renal Failure (CRF) of a University Hospital in the Southern region. A qualitative approach has been applied and twelve people took part in the research. The instruments used were the semi-directed interview and autophotography. In order to proceed with data analysis, the content analysis technique has been applied, allowing four theme categories to be constructed: the anxiety of waiting, the conflicts before the donator, the expectations with regard to the change, and the life before and after the transplant. It was set that this possibility brings a series of psychic repercussions due to the fact that it is seen as something that restitutes life, even taking into consideration the fact that there is still a body care, with diets and medicines. Keywords: renal transplant; meanings; chronic renal failure. RESUMEN Atribuciones de significados al trasplante renal Este trabajo se focalizó en la investigación de atribución de significados dados al trasplante renal por pacientes con Insuficiencia Renal Crónica (IRC) de un hospital universitario de la Región Sur. Fue utilizado un método cualitativo, con la participaron de doce personas en la pesquisa. Los instrumentos utilizados fueron la entrevista semidirigida y la autofotografia. Para el análisis de los datos fue empleada la técnica de Análisis de Contenido, lo que permitió que fueran construidas cuatro categorías temáticas: ansiedad de la espera, los conflictos frente al donador, las expectativas en relación al devenir y la vida antes y después del trasplante. Se constató que la posibilidad de este trae consigo una serie de repercusiones psíquicas en función de ser visto como algo que restituye la vida, proporciona bienestar y sentimientos de libertad, incluso considerando que continúan persistiendo los cuidados con el cuerpo, con la alimentación y con los remedios. Palabras clave: Trasplante renal; significados; enfermedad renal crónica. 24 Quintana, A.M., Weissheimer, T.K.S. & Hermann, C. Introdução No decorrer da vida, apresentam-se diversos acontecimentos. Alguns acontecem subitamente e ainda geram grande sofrimento. Nesse contexto, pode-se considerar a notícia do diagnóstico de Insuficiência Renal Crônica (IRC), que traz consigo a ideia da iminência da morte, ocasionando inúmeros conflitos psíquicos. Também se evidencia uma série de repercussões no decurso do tratamento dialítico e diante da possibilidade de realização do transplante. Romão Júnior (2004) diz que doença renal crônica consiste em lesão renal e perda progressiva e irreversível da função dos rins. O autor refere que na fase terminal de IRC, os rins não conseguem sustentar a sua condição normal de manutenção do meio interno do sujeito. Um fato bastante preocupante é que, no início, a IRC tem forma assintomática e silenciosa e, sendo assim, o paciente não a percebe. Quando este começa a sentir as manifestações da doença é porque os rins já estão bastante prejudicados, devendo o paciente recorrer, então, ao tratamento dialítico (hemodiálise ou diálise peritoneal) ou ao transplante renal. O sujeito imerso nesse novo mundo – o dos doentes – depara-se com diversos problemas emocionais que, conforme Gil, Mota e Ribeiro (2006), associam-se, dentre outros aspectos, à manifestação de uma ameaça à integridade de seus rins e à tomada de consciência da dependência ao tratamento e à possibilidade da morte. O transplante de órgãos surge como uma saída a qual contribui para uma melhor qualidade de vida desses pacientes, visto que possibilita uma alternativa de melhora da doença, já que não teriam expectativa de cura de sua enfermidade. Porém, Romano (1994) relata que desde o momento do diagnóstico até a possível realização do transplante, o caminho do paciente é atravessado por uma série de outras questões que colocam em evidência sua problemática pessoal, “o paciente renal é deserdado da garantia de um bem supremo: a saúde” (p. 86). Além disso, o querer do paciente é confrontado como um fato imutável: o de que apenas um novo rim dará a ele vida saudável novamente. Encontra-se aí um grande conflito, pois esse rim, muitas vezes, não poderá ser desejado sem colocar em risco a saúde de outro ser que, em muitos casos, é de um familiar ou uma pessoa afetivamente próxima. Conforme Borges (1998), no transplante, um dos elementos que aparecem é o medo da cirurgia e do que possa acontecer com o doador quando a doação é em vida. A autora comenta ainda que, embora o transplante renal seja visto pelos médicos como um procedimento Psico, Porto Alegre, PUCRS, v. 42, n. 1, pp. 23-30, jan./mar. 2011 o qual irá proporcionar “qualidade de vida”, entre os pacientes é encarado como algo maior, como “restituidor de vida”, ou seja, os pacientes transplantados vêem, no transplante, o retorno ao estado anterior à doença, um processo que as tornará sãs novamente. Beck (1997) compreende que mais que os eventos em si, são as representações que os indivíduos possuem destes que afetam e orientam a maneira como irão responder afetiva e comportamentalmente a eles. Por isso, acredita-se que as formas como os pacientes representam as vivências que ocorreram em suas vidas, antes e depois do transplante, têm efeitos reais na maneira como eles vão se posicionar em relação a esse tipo de processo. Nesse contexto, é importante pensar que o corpo não significa para os sujeitos um mero conjugado de órgãos; na verdade, é nele que depositam o significado de suas vidas e a relação que tem com os outros. Segundo Bendassolli o corpo é “onde seu desejo consegue encontrar expressão” (2000, § 17). Marinho (2006) coloca que no Brasil, o transplante por meio de doador cadáver precisa realizar-se através de doação ao Estado e “somente pode ser feita após a morte cerebral do doador, que pode ser natural ou acidental, e com o concomitante funcionamento dos órgãos que serão doados, sendo que a morte cerebral deve ser devidamente diagnosticada por uma equipe médica e o transplante autorizado pelo SNT e pelo SUS” (p. 2230), demonstrando que receber um órgão de doador cadáver não é fácil. A doação de um órgão em vida seria a alternativa mais viável para as pessoas que necessitam realizar um transplante de rins. Em relação à fila de transplantes, Marinho (2006) diz que o paciente candidato a receptor é colocado nessa fila, uma vez constatada, por médicos, a necessidade de recebimento do órgão. Porém, Passarinho, Gonçalves e Garrafa (2003) dizem que “o transplante renal é conseguido por uma minoria dos pacientes em lista de espera, apesar do custo menor e da reabilitação superior à proporcionada pelo tratamento dialítico” (p. 387). Conforme pesquisa realizada por Velloso o transplante renal é considerado por 49,99% da população em tratamento dialítico, como resolução da sua problemática atual. Entretanto, “para 28,57% dessas pessoas o transplante aconteceria de forma inesperada, mágica ou milagrosa” (2000, § 64). Um cuidado que as pessoas em geral, os profissionais envolvidos e o próprio paciente devem ter é de não desconsiderar a pessoa que está envolta nesse processo de doença. Remen (1993) diz que “há uma inegável tendência no pensamento contemporâneo a enxergar, a nós mesmos e aos outros, não como se 25 Atribuições de significados ao transplante renal tivéssemos nossas doenças, mas como se fôssemos nossas doenças” (p. 24). Quando o sujeito é acometido pela doença esta passa a conferir-lhe a representação da perda, geralmente transitória, mas presente: a perda do próprio papel social. Pinkus (1988) considera que aquele que fica doente não pode expressar-se com seu grau de autonomia, nem desempenhar suas tarefas costumeiras. Segundo o autor, o enfermo vivencia reações peculiares como ansiedade, frustração e todas as sensações desagradáveis derivadas da ameaça a própria identidade. Em vista disso, este trabalho teve foco na investigação das atribuições de significados ao transplante renal de pacientes com IRC de um Hospital Universitário da Região Sul. Buscou-se conhecer as expectativas frente à possibilidade de realização do transplante e as repercussões, após o mesmo, na vida desses pacientes, suas fantasias e percepções acerca do doador, como vivenciam as incapacidades físicas adquiridas e como os indivíduos que passaram pelo transplante renal representam suas vidas antes e depois desta intervenção. Método Delineamento do trabalho Nesta pesquisa, foi utilizado um método qualitativo por considerar ser que melhor adequava-se aos objetivos da mesma, a qual não está à procura de leis e sim de significados (Geertz, 1978), e para apreender a dimensão pessoal dos sujeitos participantes (Turato, 2003). Sujeitos Participaram da pesquisa cinco pessoas que aguardam pelo transplante de rim e sete pessoas que já passaram pelo transplante, tendo sido este número definido segundo o critério de saturação da amostra (Fontanella, Ricas e Turato, 2008; Moraes, 2003). Dos doze participantes, sete eram do sexo feminino e cinco do sexo masculino, com idades entre vinte e seis e sessenta e um anos. A escolha dos sujeitos ocorreu de forma acidental. Primeiramente, foi efetuada uma consulta nos prontuários do Serviço de Transplante do Hospital Universitário, onde se obteve uma listagem com o nome, endereço e telefone das pessoas que aguardavam pelo transplante e outra listagem das pessoas que já receberam o rim. Por meio de ligação telefônica, era realizada uma breve explicação sobre a pesquisa e efetuado o convite para a participação nesta; uma vez aceita a colaboração na pesquisa, marcou-se o dia do encontro nas casas dos participantes. Procedimentos de coleta de dados Os instrumentos Foram utilizados dois instrumentos para a coleta dos dados. O primeiro deles foi a entrevista semidirigida que segundo Minayo (1996) é um “instrumento para orientar uma ‘conversa com finalidade’ [...], e deve ser o facilitador de abertura, de ampliação e de aprofundamento da comunicação” (p. 99). Nas entrevistas, procurou-se que as mesmas se aproximassem, tanto quanto fosse possível, de uma conversa informal. Para atingir esta meta evitouse realizar perguntas pré-definidas, sendo utilizados eixos norteadores que consistiram em tópicos que deveriam ser abordados pelos entrevistados, nos quais os pesquisadores basearam-se a fim de orientar as entrevistas. Deste modo, procurou-se estabelecer um diálogo o mais descontraído possível com os entrevistados e após a leitura do termo de consentimento livre e esclarecido, foi-lhes solicitado que inicialmente falassem sobre si mesmos e sobre suas vidas. As entrevistas, aconteceram em suas residências, sendo este o local escolhido de forma a possibilitar que os sujeitos se sentissem mais à vontade, facilitando com isso o desenvolvimento da entrevista. A autofotografia é o outro instrumento que foi utilizado para a coleta dos dados. Essa técnica possui “a vantagem de não ser o pesquisador quem direciona ou induz o olhar do participante para determinada categoria de resposta, sendo o próprio participante quem seleciona os estímulos” (Maurente e Tittoni, 2007, p. 34). O uso da fotografia auxilia na comunicação dos significados atribuídos à doença, permitindo uma melhor compreensão destes conteúdos por parte dos pesquisadores. Primeiramente, foi entregue aos participantes da pesquisa uma máquina fotográfica analógica de simples manuseio, sendo orientados quanto ao manejo adequado. Solicitou-se que tirassem 12 fotos, através das quais representassem o momento em que estavam vivendo e como sentiam-se, levando em consideração o fato de serem portadores de IRC. Foi explicado que representassem por meio das fotografias tudo o que considerassem significativo e que quisessem expor por meio delas. Depois da revelação das fotografias, no tamanho padrão 10X15cm, foi realizada uma entrevista com o intuito de que os participantes expressassem suas ideias sobre as mesmas e explicassem de que forma as fotografias representam suas vidas e seus sentimentos em relação a serem portadores de IRC. Nessa entrevista, buscou-se um entendimento do elemento escolhido para a fotografia e sua vinculação com o tema proposto Psico, Porto Alegre, PUCRS, v. 42, n. 1, pp. 23-30, jan./mar. 2011 26 Quintana, A.M., Weissheimer, T.K.S. & Hermann, C. anteriormente – momento da vida e sentimentos em relação a ser portador de IRC. Tanto as entrevistas realizadas com os sujeitos que tiraram fotografias quanto aquelas nas quais não foi usado esse recurso, foram gravadas mediante o consentimento do indivíduo entrevistado e posteriormente transcritas na sua integralidade, para uma posterior categorização e análise. Nessas transcrições, usou-se nomes fictícios para a identificação dos sujeitos com o propósito de manter a privacidade destes. Para a análise dos dados, foi empregada a técnica de análise de conteúdo proposta por Bardin (2008). Método este de reconhecida importância na interpretação dos dados de pesquisas qualitativas, uma vez que o mesmo permite os diferentes sentidos (manifestos e latentes) nos discursos dos entrevistados (Turato, 2003). Primeiramente, fez-se uma “leitura flutuante” das transcrições, de modo que o leitor se sentisse invadido pelas impressões de tais escritos. Depois, os elementos diferentes que constituem um conjunto foram reagrupados em categorias segundo critérios de relevância e repetição. Esta pesquisa cumpriu todos os requisitos éticos referentes a pesquisas com seres humanos contidos na Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 1996), sendo previamente aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria sob o número 23081.016476/ 2008-71. Análise e discussão dos dados A ansiedade da espera O sentimento que mais manifesta-se em decorrência da espera para a realização do transplante é o de ansiedade. Apesar de muitos os exames a serem realizados, também existe o sentimento de felicidade quando descobrem que a possibilidade de realização do transplante é certa. “– Dia 4 de dezembro fomos a Porto Alegre fazer a coleta de sangue [...] e eles foram nos dar o resultado em fevereiro desse ano. E a gente naquela ansiedade, né. E graças a Deus tive a felicidade de ser compatível, e aí... Bom, já é uma grande coisa, daí vamos começar a partir de outros exames” (Diego, 37 anos, não transplantado) Embora exista a esperança de realização do transplante, o período é apresentado pelos entrevistados como se fosse de muita espera, causando sentimentos de incerteza, tristeza e frustração, pois os dias passam e eles permanecem na expectativa. Psico, Porto Alegre, PUCRS, v. 42, n. 1, pp. 23-30, jan./mar. 2011 “– Tu deita assim no travessero, todos os dias assim e daí tu pensa: será que amanhã vão me chamá? Será que vai ser depois? E assim tu passa, né. Mas tu tá sempre naquela espera, sempre naquela espera [...], porque às vezes eu penso assim, penso: mas será que um dia vão me chamá? Parece que dá aquela tristeza na gente, né” (Vera, 34 anos, não transplantada) Em alguns casos a ansiedade da espera pode atingir um ponto tão elevado que o paciente passa a desacreditar na possibilidade de que seja realizado, muito provavelmente como resultado de uma defesa para enfrentar a angústia frente à incerteza. “– Ou morre, ou morre. Um dos dois, e pelo andar da carruagem, eu acho que é a segunda. [...] Eu mesmo desanimei, várias vezes”. [...] “Mas não tem perspectiva de transplante, não existe uma coisa certa assim pro transplante, não existe...” (Carlos, 49 anos, não transplantado) Essa espera irrompe no entrevistado que aguarda na fila para a realização do transplante gerando uma grande desesperança, levando-o à necessidade de tomar antidepressivos, pois já lhe ocorreu inclusive tirar a própria vida. A espera acaba por desgastar a pessoa e suas expectativas positivas em relação à realização da cirurgia. “– Faz uns dois anos que tô tomando antidepressivo... Se não fosse eles [...] nós não tava aqui conversando, tanta coisa ruim passo já na minha cabeça. Se eu for falá, eu escrevo um livro... Já pensei em tirá a própria vida. A coragem não falta, a vontade não falta, mas a gente olha pra trás, olha a mãe, olha os sobrinho-neto, olha a família...” (Carlos, 49 anos, não transplantado) Os conflitos ante o doador Há uma preocupação com a saúde da pessoa doadora, existe um medo em relação ao que possa acontecer com ela ao ficar só com um rim e passar a desenvolver IRC, ou ainda, o receio de que algo ocorra durante ou após a cirurgia. Os entrevistados consideram que se isso acontecesse por causa deles, geraria uma culpa que não gostariam de carregar. “– Eu fico preocupada, sabe, de aceitá um rim. Tem um sobrinho meu que queria fazê, mas eu fico preocupada. Eu já é um problema e se, de repente, eu consiga um problema pra um outro familiar? Daí eu prefiro ficá esperando na fila, porque eu tenho medo, sabe, de acabá prejudicando essa outra pessoa”. (Sandra, 50 anos, não transplantada) 27 Atribuições de significados ao transplante renal A doação através de um doador cadáver não está livre de conflitos, como à primeira instância poderia parecer. Com efeito, durante o tempo em que aguarda um órgão o paciente sente que está a espera da morte de alguém para lhe dar vida. “– É complicado... Quando tu vê uma morte te dá um pavor, eu fico assim... com o coração na mão. Tu fica preocupada, né. Dependê de uma coisa que pra ti é bom, daí tu pensa: poxa vida, vai ser bom pra mim e quantas pessoas vão sofrer por causa disso... Ééé, se tu parar p’ra pensá é bem complicado.” (Sandra, 50 anos, não transplantada) Para alguns entrevistados é um conflito muito grande, pois existe o desejo da morte de alguém para que possam realizar o transplante. Ao dar-se conta de que há esse desejo, a culpa e o remorso vêm à tona, porque para eles é inconcebível desejar a morte de alguém, ainda mais tratando-se do proveito que terão da mesma. Existe um grande anseio dos transplantados de conhecer a família do doador, pois há uma grande necessidade de agradecimento pelo rim que receberam. “– Eu queria conhecer a família, [...] eu queria saber p’ra pelo menos agradecer a família pela bondade de doar os órgãos duma pessoa que morreu .[...] Eu rezo p’ra esse espírito que pertenceu a esse corpo que doou o rim pra mim, porque fez um bem muito grande que doou não só pra mim, mas fez um bem a várias outras pessoas. Que, tudo bem, esse corpo morreu, esse morreu. Mas quantos ele ajudou, quantos estão vivos hoje com um órgão desse corpo?” (Teresa, 45 anos, transplantada) Ao comparar o cego voltar a enxergar com a realização do transplante, pode-se pensar que é assim que ele se sente: como se estivesse no escuro, onde não há mais as cores e a beleza das coisas. Poder realizar o transplante significa sair do escuro e recuperar a visão, voltar a ver a beleza nas coisas e ter a autonomia novamente. A vida antes e depois do transplante A vida antes do transplante configura-se pelas dificuldades advindas das restrições alimentares e dos afazeres e atividades em geral. Há também a constatação de que apesar de todo sacrifício não existe a possibilidade de cura, permanecendo a necessidade do contato com a equipe de saúde e o comprometimento com as medicações,assim como as limitações tanto alimentares como as que exigem um cuidado corporal. Angerami-Camon (2002) ressalta que o paciente renal crônico perde a independência e a liberdade em função do tratamento e das intercorrências que acometem o paciente e o confinam em sua casa ou a um hospital, ou seja, há um esfacelamento dos seus prazeres. Em relação a isso, um entrevistado relata: “– Eu fazia ciclismo e montanhismo antes de fazer hemodiálise, só que daí, com o problema renal, eu não fiz mais, eu parei; agora até dou umas volta,[...] antes de fazer hemodiálise nós se ia; fui até Cachoeira de bicicleta. [...] Andando de bicicleta não tem como não tomá líquido, porque numa trajetória tu tem que toma um litro, litro e meio, daí tive que abandoná, meio a contra gosto mas tive que abandona.” (Pedro, 26 anos, transplantado) As expectativas em relação ao devir Percebeu-se que há uma ideia, por parte dos doentes, de que a vida voltará ao “normal” depois do transplante. Porém esse juízo não irá se manter por muito tempo, visto que o sujeito continua a se deparar com a questão de manutenção do tratamento; é preciso continuar com as restrições alimentares, as físicas e a dependência da medicação. Assim, o paciente deve novamente se defrontar com a doença e suas limitações gerando um novo processo de luto por aquele corpo que imaginou recuperar através do transplante. “– Vô tê minha liberdade de volta, né. Vô podê trabalhá de volta, né. É a mesma coisa que tu ser cego e voltá a enxergá, né. Tu vai podê fazê tudo de volta. Vô trabalhá, vô tomá água, vô no banhero normal.” (André, 47 anos, não transplantado) Figura 1 – A perda de uma atividade de lazer. Na fotografia (Figura 1) o entrevistado diz ser muito difícil ter que deixar de andar de bicicleta, Psico, Porto Alegre, PUCRS, v. 42, n. 1, pp. 23-30, jan./mar. 2011 28 Quintana, A.M., Weissheimer, T.K.S. & Hermann, C. pois era algo que lhe trazia muita alegria. Não poder mais praticá-lo significa conviver com a privação da autonomia, da liberdade, da saúde, inclusive com perda de parte da identidade. Se antes era ele quem decidia o rumo a seguir pilotando a bicicleta, hoje a sensação é de que a doença é quem lhe fornece as coordenadas, e ele fica nesse lugar de sujeição sendo guiado pela doença. Uma evidência bastante clara disso é que a foto foi tirada dentro de casa, refletindo a possível sensação de enclausuramento em que ele vive. Um elemento que apareceu na pesquisa tanto através das entrevistas como também das fotografias é a restrição à ingestão de água, que é muito limitada enquanto fazem o tratamento. É na água onde parecem condensar-se todas as perdas e restrições a que estão submetidos durante este período. Após a realização do transplante é recomendado aos pacientes que bebam muita água. Poder voltar a tomála propicia a eles desempenhar determinadas atividades até o momento restritas; restitui a sensação de satisfação e controle; remete a ter vontade de fazer coisas e poder realizá-las novamente; coloca-os em lugar de poder escolher; devolve a sensação de autonomia, isto fica bastante expresso na fala da seguinte entrevistada, a qual diz: “– Umas das coisas que mais me alegra assim é poder tomá água né. Podê tomá à vontade, podê abri a tornera ali e tomá né, e chimarrão que eu adoro né. Antes eu tomava um só, agora se eu quisé tomá duas térmica de chimarrão né, eu tomo.” (Ana, 42 anos, transplantada) Marcas que ficam por fora e por dentro As marcas corporais representam todo o processo da doença e o registro que ela deixa. A dor não é sentida apenas fisicamente, mas também na esfera emocional; conforme o sujeito aceita a doença, parece que esta dor vai diminuindo. “– Eu não gosto [de cicatrizes], não tem nada a vê, não tem porque me envergonhá, mas fico né. É um erro humano a pessoa tê vergonha. Cada um tem que sê o que é né, cada um tem suas marcas, azar.” (Pedro, 26 anos, transplantado) Figura 2 – A satisfação em tomar água, algo restrito antes do transplante. Figura 3 – A água representa o retorno da sensação da autonomia depois do transplante. Psico, Porto Alegre, PUCRS, v. 42, n. 1, pp. 23-30, jan./mar. 2011 “– É... é uma coisa estranha né, é tudo novo, assusta né... Assusta tu vê a fistula crescê né. Dói tudo o teu braço, [...] Parece que dói menos depois né, [...]. Depois tu começa a te acostumá com aquilo ali né.” (Maria, 28 anos, transplantada) Pinkus (1988) refere que diante de uma alteração “violenta” do próprio corpo, o enfermo deve conseguir reestruturar uma nova imagem de si, adaptando-se flexivelmente à perspectiva de que seu corpo será diferente após a realização da cirurgia. Ainda o autor afirma que, do ponto de vista psicológico, a intervenção cirúrgica é vivenciada pelo indivíduo atingido pela doença, como uma agressão externa, que é dirigida a própria identidade pessoal, ao próprio eu-corpóreo e a própria segurança psicológica. O entrevistado Carlos tirou cinco fotos de seu corpo, de suas cicatrizes; elas estão em seus braços, pernas, pescoço e peito. Pressupõe-se que, através das fotografias teve a intenção de mostrar o quanto essas marcas significam para ele, que não marcam apenas fisicamente seu corpo, mas representam a dificuldade em ter que passar pelo tratamento, as dores, as inseguranças e as renúncias no decorrer da doença. Na entrevista, quando Carlos comentou sobre as cicatrizes, Atribuições de significados ao transplante renal sua fala teve tom de revolta, mostrando que ele ainda não aceita a ideia de ter que conviver com tais marcas, dores e inseguranças em relação a si e seu corpo. Figura 4 – As marcas corporais deixadas durante o tratamento pré-transplante. O significado que as cicatrizes carregam é de que as marcas não ficam inscritas apenas fisicamente, mas também psíquica. Pedro coloca essa questão da seguinte forma: “– É difícil, é complicado, que mesmo agora depois de sê transplantado minha vida não vai sê como era antes de eu adoecer entendeu. Não é a mesma coisa, tu vai ficá com marcas, cicatrizes e lembranças.” (Pedro, homem, 26 anos, transplantado) Neste depoimento fica evidente que a doença deixou tanto cicatrizes físicas como feridas simbólicas,que trazem a ideia de que o conjunto de situações e emoções vivenciadas jamais serão esquecidas. São medos, angústias, inseguranças e lembranças que o marcarão para sempre, compondo as atribuições de significados construídos durante toda sua trajetória pela doença. Considerações finais A partir deste estudo foi possível identificar pontos significativos em relação ao processo que passa o portador de IRC: desde o diagnóstico, tratamento, enfrentamento da doença, frustrações, esperas, perdas, até os novos sentidos dados à vida e sua própria existência. E é através deste processo que constroem e atribuem significados ao transplante. Como pôde ser observado no relato dos entrevistados, os pacientes que aguardam o transplante, 29 ou os que já o realizaram, todos comentaram suas experiências ao terem que passar por uma série de exames, perdas (hábitos, atividades, momentos de lazer, estética corporal), intervenções cirúrgicas e sentimentos como de ansiedade – pois é demorado o processo até a realização do transplante – o sentimento de medo das cirurgias , assim como o receio da não compatibilidade – pois ocorre a possibilidade do rim ofertado não ser compatível com o seu organismo – e a preocupação com uma série de restrições a que devem se submeter tanto antes como após a realização do transplante, como por exemplo o comprometimento com a rotina de medicação. Por tratar-se de uma doença crônica, há uma especificidade no que diz respeito a ser portador de IRC. Ao decorrer desta advém uma série de consequências, que podem ser físicas, psíquicas, emocionais ou familiares, gerando uma desestabilização do sujeito. Essas implicações acometem o portador da doença de forma que este sinta-se muitas vezes desanimado, impotente, frustrado. Constatou-se também que mesmo tendo que passar por esse complexo, que é a vivência do diagnóstico e do tratamento, tanto quem já realizou o transplante como quem ainda o aguarda nas filas de espera, acreditam que ele modificou ou modificará suas vidas para melhor. Relataram também que através dele, adquirem maior liberdade, mesmo levando em consideração que ainda persistem os cuidados com o corpo, com a alimentação e com os remédios. O transplante é visto por estes pacientes como algo que restitui a vida, proporciona-lhes novamente bem-estar, possibilita vivenciar de forma quase igual – pois ainda existem algumas restrições e cuidados – atitudes que eram possíveis anteriormente e que com o passar do tempo tiveram que ser abandonadas. No entanto, isto somente é possível se o paciente deixa de ver o transplante como uma forma de negação da doença e aceitá-lo com as melhoras e também com as limitações que ele ainda impõe. Portanto, os profissionais da saúde envolvidos neste contexto, em especial os psicólogos, devem possibilitar a esses sujeitos a reconstrução de sua nova identidade, perpassada e re-significada por tudo o que lhe acometeu. Em vista disso, considera-se que é também tarefa dos psicólogos possibilitarem a essas pessoas a reprocessar sua história, pensar e refletir a doença e todas as implicações que ela traz para suas vidas; auxiliando-os na compreensão da situação que se apresenta, pois o doente, sentindo-se compreendido, fica mais seguro, amparado e assistido como um todo. Reconhece-se que é preciso haver uma melhor compreensão por parte dos profissionais da saúde Psico, Porto Alegre, PUCRS, v. 42, n. 1, pp. 23-30, jan./mar. 2011 30 Quintana, A.M., Weissheimer, T.K.S. & Hermann, C. sobre este sujeito adoecido. Isso implica ir além do entendimento da doença, é preciso considerar todas as facetas desse sujeito, não se restringindo nem as biológicas nem as psíquicas, mas como um todo constituído também por representações culturais, ambientais e inter-relacionais. Referências Angerami-Camon, V.A. (2002). Novos rumos na Psicologia da Saúde. São Paulo: Pioneira Thomson Learning. Bardin, L. (2008). Análise de conteúdo (11ª ed.). Edições 70. Beck, J.S. (1997). Terapia cognitiva: teórica e prática. Porto Alegre: Artes Médicas. Bendassolli, P.F. (2000). Do lugar do corpo ao não-lugar da doação de órgãos. [Online] Psicologia Reflexão e Crítica, Porto Alegre, 13(1), 143-157. 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Caroline Hermann – Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria. Enviar correspondência para: Alberto Manuel Quintana Rua Tiradentes, 23/701 – Centro CEP 97050-730, Santa Maria, RS, Brasil Tel.: (55) 3028-0936 E-mail: [email protected]