Por que o Brasil parou? - Instituto de Economia

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Valor Econômico, 5 de maio e 2017
Por que o Brasil parou?
Por: Armando Castelar Pinheiro
Em "Sapiens: A Brief History of Humankind", Yuval Harari atribui o
sucesso do homo sapiens em relação a outros homos que o antecederam ou que
com ele conviveram - e, de fato, às demais formas de vida no planeta - a sua
capacidade de compartilhar narrativas imaginadas e tratá-las como se realidade
fossem. Entram nessa categoria coisas como religião, dinheiro, Estados nação,
marcação do tempo e outras.
São todos elementos em torno dos quais organizamos nossas vidas, mas
que não são de fato reais como o são a biologia, as rochas, os eventos
climáticos. São antes "realidades virtuais", que facilitam a interação entre os
seres humanos e ampliam sua capacidade de somar esforços, às vezes aos
milhões, em busca de objetivos comuns, inclusive para alterar a realidade, da
biologia ao clima. Na economia, por exemplo, teria sido impossível atingirmos
o padrão de vida que hoje temos sem que "existissem" coisas imaginárias como
um pedaço de papel ou um registro eletrônico a que chamamos de dinheiro e
em troca do qual outros aceitam dar seu trabalho ou coisas que possuem.
Faz algum tempo, tenho utilizado o instrumental proposto por Harari
para pensar sobre porque o Brasil não consegue sair da prolongada
estagnação em que mergulhou no início dos anos 1980. Por que um país que
nas primeiras oito décadas do século XX multiplicou sua renda per capita
por 12, só conseguirá elevá-la em meros 30% nos 40 anos seguintes?
A força do mito do Estado onisciente é tamanha que o Brasil permanece
inconsciente de seu próprio fracasso
Vou repetir: por que um país que em dois períodos seguidos de 40 anos
multiplicou sua renda per capita em média por 3,5 em cada um deles, no terceiro
não irá conseguir mais que 30% de expansão? Isto em um período em que a
renda per capita mundial terá sido multiplicada por 3,4!
Ao longo dos anos ouvi, e eu mesmo ofereci, várias explicações para esse
fracasso: a crise do petróleo nos anos 1970, a má gestão da demanda agregada
na segunda metade do ciclo militar, a forte expansão fiscal com a Constituição
de 1988, o descaso que levou à hiperinflação, a Nova Matriz Econômica e por
aí vai. São todas explicações pertinentes, mas limitadas no tempo. A
explicação que precisamos é por que, ao longo de quatro décadas, erramos tão
sistematicamente.
Não foi por desconhecimento ou falta de conselho. Não faltaram estudos,
seminários, artigos de jornal, exemplos de outros países etc. para informar que
havia algo errado. Mas preferimos não ver e insistir no erro. Ou melhor,
optamos por ver as coisas de outra forma.
É aqui que o instrumental de Harari pode ser útil para entendermos nosso
quadro de estagnação. Harari enfatiza a criação de coisas imaginárias que
ajudaram os humanos a progredir, mas também é possível a uma sociedade
acreditar em coisas imaginárias que atrapalham o progresso ou que, depois de
favorecê-lo por algum tempo, deixaram de ser funcionais e passaram a
atrapalhá-lo.
Penso que no Brasil essa "realidade virtual" está construída em torno do
papel do Estado e da crença de que ele tem todas as soluções para nossos
problemas econômicos e só não as põe em prática devido à sua captura por
"elementos do mal": políticos corruptos, o mercado financeiro, os oligopólios,
a "mídia golpista", as corporações etc.
A construção do mito em torno do Estado onisciente se deu a partir dos
anos 1930, levando à bem-sucedida transição de uma economia
agrária-exportadora para um país urbano e industrializado, com padrão de
vida muito mais alto. Ela foi adaptada nos anos 1980 para lhe dar um foco
mais social, mas de outra forma permaneceu igual. Ocorre que essa construção
imaginária perdeu sua funcionalidade, mas em vez de se reconhecer isso se
buscam culpados para explicar porque ela não mais dá resultados.
A força dessa "realidade virtual" é tamanha que tanto tempo depois o
Brasil permanece inconsciente do seu próprio fracasso ao longo destas quatro
décadas. Seguimos tratando nossos problemas como se fossem apenas de
natureza cíclica, resolvíveis com a queda dos juros, a ampliação da oferta de
crédito barato do BNDES ou a eleição de um salvador da pátria. A coisa é bem
mais complicada que isso.
A acelerada transição demográfica pode ser o elemento de realidade que
vai colocar em cheque a construção imaginária que segue guiando nossas
opções de política econômica, por conta de seus impactos sobre as contas
públicas, o mercado de trabalho e a poupança. Mas não estou seguro disso;
nossa sociedade parece surpreendentemente capaz de se acomodar ao fracasso
econômico. O caso da Venezuela também sugere que os limites de tolerância
com o fracasso são mais elásticos do que às vezes se imagina.
A criação de realidades virtuais e a caminhada rumo ao sucesso do homo
sapiens tiveram início a partir da "revolução cognitiva" ocorrida entre 70 e 30
mil anos atrás, explica Yuval Harari. O Brasil também está precisando de uma
revolução cognitiva, se não quiser continuar estagnado, enquanto o resto da
espécie continua avançando.
Armando Castelar Pinheiro é coordenador de Economia Aplicada do Ibre/FGV
e professor do IE/UFRJ. twitter: @ACastelar. Escreve mensalmente às
sextas-feiras.
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