Os Conselhos de Saúde, Participação Social e Reforma do Estado

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Os Conselhos de Saúde, Participação Social
e Reforma do Estado
Antônio Ivo de
Ao
Carvalho
discutir as possibilidades e condi-
ções de participação dos usuários nos Conselhos Municipais de Saúde, Soraya Cortes
refuta, com sucesso, uma conhecida tese, não
rara na literatura internacional, que duvida
da viabilidade da criação de canais participatórios nos países em desenvolvimento, particularmente na América latina, cujas instituições estariam "dominadas
ciedade
participação
popular,
típicas das lutas e movimentos sociais urbanos,
caberia
acrescentar
algo
ao
seu
argu-
mento, de modo a não confundir esses órgãos com as invenções burocráticas de uma
mera auto-reforma do Estado.
Os
Conselhos
de
Saúde,
na
verdade,
são
expressões institucionais de um processo mais
amplo de reordenamento das relaçõesEstado-sociedad
tores tanto endógenos quanto exógenos ao
foi específico da área da saúde, acelerou-se
civil", desabilitando assim uma par-
no final dos anos 80 e instituiu no país um
Recuperando
da
as
fontes
conceituais
inspiradoras e as experiências sociais precursoras dos atuais Conselhos, a autora demonstra a singularidade desses órgãos e sua vocação, desde as origens, c o m o espaços
de
veiculação de demandas sociais não acolhidas pelos canais tradicionais da vida política.
Remete ao cenário político da época para a
explicação dessa singularidade, produzida em
grande
parte
community
graças
à peculiar
que, conhecida
movimento
sanitário,
policy
setorialmente
formulou
e
implementou a agenda da reforma da saúde.
Embora a autora, com razão, afirme que
os antecedentes dos Conselhos estão mais
imediatamente ligados aos canais formais de
integração interinstitucional, criados com propósitos racionalizadores no início dos anos
80 (as Comissões Interinstitucionais), do que
às experiências de participação comunitária,
típicas da proposta de extensão dos cuida==1
de
aparelho de Estado. Tal processo, que não
e pela fraqueza
ticipação social efetiva.
como
ou
so-
elitistas
e
primários,
acer-
tos informais
por pactos
dos
1
Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/FIOCRUZ).
novo padrão de políticas sociais, caracterizado pela extensão universal dos direitos e,
portanto, das prestações sociais.
Os Conselhos nascem, então, como novos arranjos institucionais destinados a dotar
o Estado de ânimo institucional e estrutura
organizacional para implementar as políticas
sociais universalistas, tal como preconizadas
na Constituição de 1988. Uma reforma, portanto, do Estado, dirigida a ajustar seu sentido de "público", assim como a induzir uma
maior responsabilidade perante o conjunto
da sociedade.
Na verdade, as circunstâncias da época
fizeram dos Conselhos de Saúde uma espécie de paradigma de inovação institucional
que se estendeu a outros setores de política
social. Observando os princípios da descentralização e da participação, característicos do
policy-making
social de então, os Conselhos
emergentes assumiam, ao lado de atribuições
de planejamento e controle das políticas, um
papel de "proteção" dos direitos. Nesse sen-
social,
tido, somavam-se ao conjunto de instrumen-
locais, tal como bem apontou a autora. En-
tos institucionais então criados com a finali-
tretanto,
dade de garantir o exercício dos direitos de
cias locais incidem sobre um cenário institu-
cidadania
cional
(Ministério
Público,
Procuradorias
dependerá
parece
fortemente
evidente
sobredeterminado
de
que
as
variáveis
circunstân-
nacionalmente.
Bas-
ta lembrar que cerca de 95% dos Conselhos
especiais, Procons etc.).
Não sendo provenientes nem de uma
hoje existentes foram constituídos a partir de
ocupação do Estado pela sociedade, nem de
1991, quando foi editada a Norma Operacio-
uma benevolência ou concessão do Estado,
nal
disposto a entregar os anéis de uma aparên-
obrigatoriedade
cia democrática para manter os dedos de
municipais e estaduais, para fins de acesso à
uma essência autocrática, os Conselhos po-
descentralização
dem ser enfocados como componentes de
lho, 1995). Desde então, através das sucessi-
uma reforma democrática do Estado. Nesse
vas NOBs, não apenas a existência dos Con-
Básica
n.º
01,
da
de
que
operacionalizou
existência
recursos
de
a
Conselhos
federais
(Carva-
selhos continua deve
como serpré-requisito
a
sentido, seu desempenho como canaisparticipatórios
discutido nopara
contexto
de
habilitação de municípios, quanto esses órsua efetividade democrática, ou seja, de seus
efeitos sobre a vida social e especialmente
gãos têm sido mantidos no desenho legal da
sobre o funcionamento do Estado.
cadeia decisória do SUS nas diversas esferas.
Assim, embora na contramão da cultura
Tomados como instituição nacional, na
política do país, o advento dos Conselhos de
medida em que estão implantados por todo
Saúde como fenômeno nacional foi fruto de
o território, os Conselhos podem ser analisa-
forte indução legal e administrativa, origina-
dos a partir de
da na esfera federal, num contexto político
uma
dupla
abordagem
(Putnam, 1996). Como variável dependente
de um projeto de remodelagem institucional
do contexto histórico e das circunstâncias
do Estado visando, via "descentralização e
políticas e sociais. E como variável indepen-
participação", habilitá-lo para a implementa-
dente, isto é, como instância produtora de
ção de políticas sociais universalistas.
efeitos sobre funcionamento do Estado e da
sociedade.
Embora a conjuntura atual seja bastante
distinta, permanece vigente o arranjo institu-
Como variável dependente, é bom sem-
cional nacional que dá destaque e fomento
pre enfatizar que os Conselhos são fruto,
aos Conselhos, reiterando a possibilidade de
antes de tudo, de um processo de caráter
disseminação das experiências sociais por eles
nacional. A abrangência de sua implantação,
suscitadas. Alternativamente, poderíamos es-
envolvendo hoje cerca de 3.500 municípios,
pecular que a perda hipotética desse
segundo estimativas recentes do Conselho
normativo produziria um cenário em que as
Nacional de Saúde, só pode ser explicada
possibilidades de participação
por fatores desencadeadores
tonus
propiciadas
vigência
pelos Conselhos seriam privilégio apenas das
nacional. A participação suscitada ou propi-
regiões e municípios em que as circunstân-
ciada por essa rede - algo em torno de 70
cias locais fossem especialmente favoráveis.
de
a 100 mil "postos" de conselheiros - repre-
O enfoque dos Conselhos como variável
senta uma oferta institucional de oportunida-
dependente, em busca de verificar seus efei-
des de participação sem precedentes na his-
tos ou impactos sobre o processo
tória política do país.
apresenta a dificuldade da escassez de mate-
social,
É claro que as características dessa par-
rial empírico, em função do pouco tempo
ticipação, e seu significado concreto para o
decorrido de vigência desses órgãos e da
desempenho dos Conselhos e para a vida
diversidade de situações locais. Entretanto, é
possível,
consi-
Conselho
de
Saúde
derar que sua contribuição para a democra-
influente
na
definição
cia esteja se dando em pelo menos dois ei-
saúde, bem acima do Legislativo, de políticos
xos:
maior
isolados e de outros órgãos municipais. Por
e
ao
outro lado, uma grande maioria de secretários
emer-
referiu prestar contas de sua gestão à socie-
gência de novos sujeitos políticos e identida-
dade e a outras áreas do governo, sendo que
des coletivas (Carvalho, 1997).
53,9% deles prestam contas regularmente aos
ao
pelo
nível
responsabilidade
nível
No
da
menos
do
como
Estado,
pública
sociedade,
primeiro
dos
hipótese,
induzindo
governos;
possibilitando
nível,
a
funcionando
como
a
força
municipal
mais
das
prioridades
em
respectivos Conselhos.
espaços públicos de veiculação e tematização
Sobre a sociedade, os Conselhos de Saú-
de interesses sociais vigentes na área da saú-
de tendem a exercer efeitos estimulantes para
de, pode se supor que os Conselhos favore-
um exercício mais extensivo da cidadania.
çam não apenas a ampliação do espectro
Conferindo "status público" a grupos de in-
social a ser atendido pela política pública,
teresse até então excluídos, os Conselhos
quanto uma maior demanda por mecanismos
funcionam também c o m o catalisadores da
de
disseminação de organizações civis que, in-
responsabilização
dos
gestores
(accountability). Estudo recente, envolvendo
dependentemente
da participação
formal
1.422 secretários municipais de saúde, revela
nesses órgãos, vão se constituindo
importantes mudanças na cultura institucio-
sujeitos políticos e aumentando sua capaci-
como
nal, expressivas de um novo padrão de rela-
dade de intervenção do processo da política
ção Estado-sociedade, e de responsabilização
pública. Numerosos grupos de interesse ga-
do governo (Fleury & Carvalho, 1997). Em
nharam identidade e organicidade na sua
mais de 7 0 % dos casos, verificou-se a exis-
interação c o m os Conselhos. Exemplo notá-
tência de alguma inovação institucional, vol-
vel é dado pelas organizações de pacientes
tada para a ampliação da participação da
ou portadores de patologias, de importância
sociedade na gestão da saúde. Na mesma
crescente na arena da saúde, dentro e fora
pesquisa, 62,7% dos secretários consideram o
dos Conselhos.
Referências
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Cidadã
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A Experiência
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Democracia:
Rio de Ja-
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RIBEIRO, J.M. ( 1 9 9 7 ) - Conselhos de Saúde, Comissões Intergestoras e Grupos de Interesses no
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Pública
13(1):81-92.
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