Ciências & Cognição 2007; Vol 12 <http://www.cienciasecognicao.org/> ISSN 1806-5821 - Publicado on line em 03 de dezembro de 2007 © Ciências & Cognição Ciências & Cognição. Ano 4, Vol.12, Dezembro 2007. ISSN 1806-5821. Revista Eletrônica de Divulgação Científica. © ICC - Instituto de Ciências Cognitivas. Ciências & Cognição é uma publicação apoiada pelo Instituto de Ciências Cognitivas (ICC). Revista Ciências & Cognição: A/C Prof. Dr. Alfred Sholl-Franco. Universidade Federal do Rio de Janeiro - Av. Carlos Chagas Filho, S/N, Centro de Ciências da Saúde, Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, Bloco G, sala G2-032/019, Cidade Universitária, Ilha do Fundão – Rio de Janeiro – RJ 21.941-902. Comissão Editorial Editores-chefes da Área de Ciências da Saúde: Alfred Sholl-Franco (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ) e Maurício Aranha (ICC, Juiz de For a, MG). Editores-chefes da Área de Ciências Humanas: Mário César Lugarinho (USP, São Paulo, SP) e Gláucio Aranha Barros (ICC, Juiz de For a, MG; UFF, Niterói, RJ). Produção e Realização: Instituto de Ciências Cognitivas. Editor de Estilo (Normalização): Gustavo Souza da Silva (ICC, Juiz de For a, MG). Editores de Design (Projeto Gráfico): Anderson de Oliveira (Petrobrás, Manaus, AM)) e Gláucio Aranha Barros (ICC, Juiz de For a, MG; UFF, Niterói, RJ). Editor de Conteúdo em Língua Inglesa: Luiz Carlos Dias Franco (ICC, Juiz de Fora, MG). Assessoria de Imprensa: Igor Luiz Mechler (ICC, Juiz de Fora, MG). Contatos Dúvidas: [email protected]. Atendimento: [email protected]. Submissão: [email protected]. Conselho Científico Revisores Nacionais Ciências da Saúde: Adroaldo Viola Coelho (IBMR, Rio de Janeiro, RJ), Alfred Sholl-Franco (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), Ana Lúcia Marques Ventura (UFF, Niterói, RJ), Andréa Gerevini da Fonseca (UNESA, Rio de Janeiro, RJ), Cláudia Domingues Vargas (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), Claudio Alberto Serfaty (UFF, Niterói, RJ), Daniela Uziel (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), Francisco das Chagas Abreu da Silveira (UFF, Niterói, RJ), Marcelo da Silva Alves (UFJF, Juiz de Fora, MG), Maurício Aranha (ICC, Juiz de Fora; UPAC, Barbacena, MG), Patrícia Maria Mendonça Torres (UNESA, Rio de Janeiro, RJ), Patrícia Maura Bastos Marques (PMN, Niterói, RJ), Paula Campello Costa Lopes (UFF, Niterói, RJ), Priscilla Oliveira Silva (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), Renato Miranda (UFJF, Juiz de Fora, MG), Robélius De Bortoli (UNESC e SABAVI, Vitoria, ES), Walter Fonseca Boechat (IBMR, Rio de Janeiro, RJ). Ciências Humanas: Afonso de Albuquerque (UFF, Niterói, RJ), Alex Sandro Gomes (UFPE, Olinda, PE), Ana Lucia Ribeiro de Oliveira (UFU, Uberlândia, MG), Ana Paula Fabrino Bretas Cupertino (UFJF, Juiz de Fora, MG), Aniela Improta (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), Bernard Pimentel Rangé (UFRJ, Rio de janeiro, RJ), Carlos Henrique de Souza Gerken (UFSJ, São João Del Rei, MG), Dulcinéia da Mata Ribeiro Monteiro (IBMR e UCM, Rio de Janeiro, RJ), Elizabeth Veiga (PUC-PR, UNIFIL e UNIPAR, Curitiba, PR), Genicy de Araujo Sena (Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ), Gláucio Aranha (ICC, Juiz de Fora, MG), Heloisa Pedroso de Moraes Feltes (UCS, Caxias do Sul, RS), Leila Regina D'Oliveira de Paula Nunes (UERJ, Rio de Janeiro, RJ), Liliana Seger Jacob (Pesquisadora autônoma, São Paulo, SP), Lúcia Helena Barbosa (Departamento Municipal de Saúde Pública de Barbacena, Barbacena, MG), Luis Fernando Ferreira Vidal (Grupo de Pesquisa em Teorias e Técnicas Psicanalíticas, Barbacena, MG), Jan Edson Rodrigues-Leite (UFPB, João Pessoa, PB), Jeane Gláucia Tomazelli (SESPA e INCA, Rio de Janeiro, RJ), Jorge Campos da Costa (PUC-RS, Porto Alegre, RS), Jorge Luiz Antônio (UAM, São Paulo, SP), Julio Cesar de Tavares (UFF, Niterói, RJ), Mario Cesar Lugarinho (USP, São Paulo, SP), Simone Maria Andrade Pereira de Sá (UFF, Niterói, RJ), Sueli Galego de carvalho (Mackenzie, São Paulo, SP), Sylvia Beatriz Joffily (UENF, Campos dos Goytacazes, RJ). Ciências Exatas: Francisco Antonio Pereira Fialho (UFSC, Florianópolis, SC), Jalton Gil Torres Pinho (CNEN, Rio de Janeiro, RJ), Jorge Bidarra (UNIOESTE, Cascavel, PR). Revisores Internacionais Cristiane Monteiro da Cruz (University of California - Merced, Merced, CA, USA), Jainne Martins Ferreira (New York University, New York, NY, USA). Revisores ad hoc Nacionais Adrian Oscar Dongo Montoya (UNESP, São Paulo, SP), Agnella da Silva Giusta (PUC-Minas, Belo Horizonte, MG), Eduardo José manzini (UNESP, São Paulo, SP), Elaine Vieira (PUC-RS, Porto Alegre, RS), Elsa Maria Mendes Pessoa Pullin (UEL, Londrina, PR), Emerson da Cruz Inacio (USP, São Paulo, SP), Evandro Ghedin (FSDB, Manaus, AM), Fátima Regina Machado (PUC-SP, São Paulo, SP), Franklin Santana Santos (USP, São Paulo, SP), Gerson Américo Janczura (UnB, Brasília, DF), Graciela Inchausti de Jou (PUC-RS, Porto Alegre, RS), Ingrid Hötte Ambrogi (Mackenzie e FACS, São Paulo, SP), João de Fernades Teixeira (UFSCAR, São Carlos, SP), José Carlos Leite (UFMT, Cuiabá, MT), Lauro Eugênio Guimarães Nalini (UFG, Goiânia, GO), Luiz Ernesto Merkle (UTFPR, Curitiba, PR), Magda Damiani (UFPEL, Pelotas, RS), Marcia Regina S. Brito (UNICAMP, Campinas, SP), Marcos Emanoel Pereira (UFBA, Salvador, BA), Paula Ventura (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ), Paulo Gomes Lima (FAECH, Hortolândia, SP), Renata Ferrarez Fernandes Lopes (UFU, Uberlândia, MG), Ricardo Wainer (UNISINOS e PUC-RS, Porto Alegre, RS), Simone da Silva Machado (UNISC, Santa Cruz do Sul, RS), Suzete Venturelli (UnB, Brasília, DF), Tattiana Gonçalves Teixeira (UFSC, Florianópolis, SC), Thomaz Decio Abdalla Siqueira (UFAM, Manaus, AM), Valdemarina Bidone de Azevedo e Souza (PUC-RS, Porto Alegre, RS), Wilson Mendonça (UFRJ, Rio de Janeiro, RJ). Revisor ad hoc Internacional Jorge de Almeida Gonçalves (PhD). Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH). Lisboa, PT. Site: http://www.cienciasecognicao.org. Ciências & Cognição 2007; Vol 12 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Ciências & Cognição ISSN 1806-5821 Vol. 12, Ano 4 Dezembro 2007 Editor: Nome: Prof. Dr. Alfred Sholl-Franco Endereço: Sala G2-032/019, Bloco G – Centro de Ciências da Saúde Programa de Neurobiologia - Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho Universidade Federal do Rio de Janeiro, Av. Carlos Chagas Filho, S/N Cidade Universitária, Ilha do Fundão – CEP 21.941-902 - Rio de Janeiro/RJ E-mail: [email protected]. Website: http://www.cienciasecognica.org. Conteúdo Ciên. & Cogn. 12, 2007. Índice Página Editorial. Editores. 01 Efeito stroop e rastreamento ocularno processamento de palavras. Stroop effect and eye-tracking in word processing. Marcus Maia, Miriam Lemle e Aniela Improta França. 02 Do herói ficcional ao herói político. Of the imaginary hero to the political hero. Hilda Gomes Dutra Magalhães, Luíza Helena Oliveira da Silva e Dimas José Batista. 18 Infância, cinema e leitura: um tripé viável. Childhood, cinema and reading: a possible tripod. Lovani Volmer e Flávia Brocchetto Ramos. 31 Lineamientos para la configuración de un programa de intervención en orientación. Limits for the configuration of a interferation ptogram in orientation. Denyz Luz Molina Contreras. 40 Leitura de estudo: estratégias reconhecidas como utilizadas por alunos universitários. Study reading: strategies recognized as the most used by university students. Elsa Maria Mendes Pessoa Pullin. 51 Criatividade na rede: a potencialização de idéias criativas em ambientes hipertextuais de aprendizagem. Creativity in the network: the potentiality of creative ideas in hypertext learning environments. Ângela Álvares Correia Dias e Karina da Silva Moura. 62 Construindo mapas conceituais. Constructing concept maps. Romero Tavares. 72 Mapas conceituais: estratégia pedagógica para construção de conceitos na disciplina química orgânica. Conceptual maps: pedagogical strategy for construction of concepts in disciplines organic chemistry. João Rufino de Freitas Filho. 86 Obstáculos epistemológicos no ensino de ciências: um estudo sobre suas influências nas concepções de 96 Ciências & Cognição 2007; Vol 12 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição átomo. Epistemological obstacles in science teaching: a study about their influences on the atom conceptions. Henrique José Polato Gomes e Odisséa Boaventura de Oliveira. Integrando o Ensino da Patologia às Novas Competências Educacionais. Integrating the learn of Pathology to new education competences. Mário R. de Melo-Júnior, Jorge Luiz S. Araújo-Filho, Vasco José R. M. Patu, Marcos Cezar F. de Paula Machado, Nicodemos T. de Pontes-Filho. 110 Psicopedagogia: limites e possibilidades a partir de relatos de profissionais. Psychopedagogy: limits and possibilities according from the professionals experiences. Maria Regina Peres e Maria Helena Mourão Alves Oliveira. 115 Pensamento, crenças e complexidade humana. Thinking, beliefs and human complexity. Cristina Satiê de Oliveira Pátaro. 134 Ciência da Computação e Ciência Cognitiva: um paralelo de semelhanças. The computer science and the cognitive science: a similarity parallel. Caroline Andréia Eifler Saraiva e Irani I. de Lima Argimon. 150 Estilo de vida como indicador de saúde na velhice. Life style as health indicator on ageing. Vera Lygia Menezes Figueiredo. 156 Interação e Construção: o Sujeito e o Conhecimento no Construtivismo de Piaget. Interaction and Construction: the Subject and the Knowledge in the Constructivism of Piaget. Isabelle de Paiva Sanchis e Miguel Mahfoud. 165 O que é ser humano? What is to be a human being? Luiz Antonio Botelho Andrade, Edson Pereira da Silva e Eduardo Passos. 178 A teoria da representação cognitiva de Hobbes. Hobbes´s theory of cognitive representation. Cláudio R. C. Leivas. 192 Robôs como artefatos. Robots as artifacts. Dulce Maria Halfpap, Gilberto Corrêa de Souza, João Bosco da Mota Alves. 203 Cognição e texto: a coesão e a coerência textuais. Cognition and text: the literal cohesion and coherence. Carmen Elena das Chagas. 214 O uso de narrativas autobiográficas no desenvolvimento profissional de professores. The use of autobiographical narratives in the professional development of teachers. Denise de Freitas e Cecília Galvão. 219 Membro-fantasma: o que os olhos não vêem, o cérebro sente. Phantom-limb: what the eyes don’t see, the brain feels. Alessandra de Oliveira Demidoff, Fernanda Gallindo Pacheco e Alfred Sholl-Franco. 234 Repensando a função do manicômio na sociedade. Reflexions about the role of lunatic asylum in the society. Maurício Aranha. 240 Normas para publicação. 242 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 01 <http://www.cienciasecognicao.org/> ISSN 1806-5821 - Publicado on line em 03 de dezembro de 2007 © Ciências & Cognição Editorial Falar na falta de fomento para a pesquisa em nosso país e sua divulgação é inevitavelmente cair na redundância. Tratar de questões como a distribuição do pouco valor a esta destinado nem se fala. O Brasil que tinha, ainda, uma certa tradição de investimento em pesquisa básica vê esta ser gradativamente abandonada em prol de projetos incautos, nitidamente dissonantes às necessidades das instituições já existentes e pouco ou nada lembradas. A solução certamente não caminha pelo dito “despir um santo para vestir outro”. A gênese de novos grupos de pesquisa não deve ter como premissa o estrangulamento de outros já estabelecidos, pelo contrário, deve-se estimular o fortalecimento daqueles estabelecidos, assim como a colaboração e o apoio entre os já existentes e os em desenvolvimento, principalmento no que se refere ao Ensino e a Educação, áreas essências para o desenvolvimento do nosso País. É com um suspiro de teimoso empenho que ações como a publicação de Ciências & Cognição deixa em todos os envolvidos a grata sensação de la resistance acadêmica. Grande é o bemestar de se ver envolvido neste projeto e observar, ao fim deste quarto ano de publicação constante e ininterrupta, o reconhecimento por uma larga comunidade de leitores e colaboradores (consultores ad hoc, pareceristas e autores), contando até o lançamento deste último volume (12, dez./2007) com o total de 664.049 visitas. Nestes quatro anos, foram publicados 158 trabalhos acadêmicos (86 artigos científicos, 32 revisões, 15 ensaios, 1 análise de caso clínico, 15 artigo de divulgação científica e 9 resenhas). Tais resultados reforçam a sensação de que estamos trilhando o caminho certo. Ainda mais tendo conhecimento de que se trata de uma iniciativa sem fins lucrativos e sem apoio financeiro de qualquer nível governamental. Iniciativa suportada apenas pelo apoio do Instituto de Ciências Cognitivas (ICC), a firmeza de vontade e pelo propósito de oferecer um canal que trate os pesquisadores e leitores brasileiros com a seriedade, dignidade e respeito que entendemos indispensável. Grata é a verificação de que tal iniciativa atravessou fronteiras, vindo contar com colaborações constantes ao longo deste ano de pesquisadores ligados a instituições estrangeiras (Espanha, Portugal, Alemanha, Venezuela, México), representando, hoje, 12% dos artigos publicados. Fiéis à concepção de que o ambiente virtual seria o melhor meio para a visibilidade da produção acadêmica nacional, estimulando a integração de pólos fora dos eixos do sudeste, percebemos, ao longo destes quatro anos, a constante e valiosa presença de representantes de todas as regiões brasileiras (60% sudeste, 16% sul, 12% nordeste, 10% centro-oeste, 2% norte) e de diversificadas instituições. Encerrar 2007 vendo frutos saudáveis sendo colhidos é ter certeza de que aquele teimoso empenho está nos conduzindo ao propósito de uma missão que não pretende se dar por cumprida. Boa leitura! Editores. 1 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org> S u b me t i d o e m 1 3 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e © Ciências & Cognição e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7 Artigo Científico Efeito stroop e rastreamento ocular no processamento de palavras1 Stroop effect and eye-tracking in word processing Marcus Maia, Miriam Lemle e Aniela Improta França Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil Resumo Como é a organização cerebral do léxico? As palavras são guardadas por inteiro ou existe derivação que forma uma estrutura interna a elas? Usando dois paradigmas experimentais, investigamos se a decomposição morfológica é uma propriedade fundamental do processamento lexical na leitura de palavras isoladas no português do Brasil. O primeiro experimento propõe uma tarefa baseada no chamado Efeito Stroop, no qual processos atencionais concorrentes demonstram a natureza automática das fases iniciais do processamento da leitura. O segundo experimento, usando protocolo de rastreamento ocular durante a leitura, investiga as mesmas palavras, pretendendo identificar, preliminarmente, os pontos de fixação e sacadas na primeira passagem do olhar, bem como nos movimentos regressivos. Os resultados obtidos nos dois experimentos permitem reunir evidências de que, no processo de leitura, as palavras são derivadas morfema a morfema, embora haja também heurísticas globais da visão que atuam simultaneamente no processamento da leitura. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 02-17. Palavras-chave: rastreamento ocular; morfologia interna à palavra; efeito stroop. Abstract How is the lexicon organized in the brain? Are words stored as units or is there a derivational process dynamically combining its pieces at each use? The present study, composed by two experimental paradigms, investigates if morphological decomposition is a property inherent to the lexical processing during a reading task in Brazilian Portuguese. The first experiment deals with Stroop Effect, in which attentional processes demonstrate e the automatic nature of the initial phases of processing during reading. Using an eye-tracking protocol, the second experiment investigates the process of reading the same words, aiming at identifying, preliminarily, the fixation points and the saccades during first eye scan, as well as the regressive movements. The results obtained in the two experiments gather evidences that, during reading, words are delivered morpheme by morpheme, despite the fact that there are concurrent global heuristics that act simultaneously in reading. © Ciências & – M. Maia é Doutor em Lingüística (University of Southern California – USC), com Estágio de Pós-doutorado (City University of New York – CUNY). Atualmente é Professor de Lingüística, Departamento de Lingüística (UFRJ), sendo o atual Coordenador do Grupo de Trabalho de Psicolingüística da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística (ANPOLL). Endereço para correspondência: Rua Evaldo Gonçalves, 151, Itaipu, Niterói, RJ 24355-060. Telefone: (21) 2609-2919. E-mail para correspondência: [email protected]. M. Lemle possui Graduação em Letras (UFRJ), Mestrado em Lingüística (University of Pennsylvania), Doutorado em Lingüística (UFRJ e Estágio de Pós-Doutorado (MIT). Atualmente é Professora Titular (UFRJ) e Coordenadora do Laboratório Computações Lingüísticas: Psicolingüística e Neurofisiologia (CLIPSEN; http://www.letras.ufrj.br/ clipsen). A.I. França é Doutora em Lingüística (UFRJ), com Estágios no Cognitive Neuroscience of Language Lab (University of Maryland) no Instituto de Neurologia (UFRJ) e no Ambulatório de AVC (Universidade Federal Fluminense). Atualmente é Professora (Departamento de Lingüística, UFRJ) e Membro Efetivo do Programa Avançado de Neurociência (PAN; UFRJ). 2 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Cognição 2007; Vol. 12: 02-17. Key Words: eye-tracking; morphology internal to words; stroop effect. 1. Introdução Um tema de pesquisa muito produtivo em psicolingüística nas últimas três décadas é a investigação do papel do processamento morfológico2 no reconhecimento de palavras e na organização do léxico na mente dos falantes. Uma questão importante do processamento lexical consiste em saber como as palavras complexas são armazenadas e acessadas: há decomposição morfológica prévia ao acesso lexical? Desde os estudos seminais de Taft e Forster (1975;1976), que investigaram experimentalmente a armazena-gem e a recuperação de palavras polimorfê-micas na memória lexical, conduzindo ao modelo BOSS, baseado em fatores ortográficos e morfológicos (Taft, 1979), os estudos sobre o parsing perceptual de palavras oferecem evidências contraditórias: de um lado, trabalhos de orientação co-nexionista, como Seidenberg e McClelland (1989) argumentam que os efeitos encontrados em estruturas sublexicais sejam apenas epifenômenos da redundância ortográfica; de outro lado, estudos como Marslen-Wilson et alii (1994) apresentam resultados de experimentos de priming evidenciando que as palavras são, de fato, representadas morfemi-camente ao nível da entrada lexical. Além de sua caracterização conflitante em psicolin-güística, a proposição de segmentos sub-lexicais é controversa também no âmbito da teoria gramatical. Os Modelos Lexicalistas (e.g. Chomsky, 1995), embora admitindo unidades menores do que a palavra, consi-deram a palavra pronta como sendo a unidade que dá entrada na derivação sintática, ao passo que modelos não lexicalistas, como a Morfologia Distribuída (cf. Halle e Marantz, 1993), assumem uma computação sintática operando por fases com unidades desprovidas de som. Ao final de cada fase acontece a competição, seleção e inserção de peças de vocabulário nos nós terminais da sintaxe. Estas peças passam então por operações pós-inserção que dão a forma morfofonológica final à derivação O presente estudo investiga, preliminarmente, se a decomposição morfológica é uma propriedade fundamental do proces-samento lexical na leitura de palavras isoladas em português, usando dois paradigmas experimentais. O primeiro experimento propõe uma tarefa baseada no chamado efeito Stroop, no qual processos atencionais concorrentes demonstram a natureza automática das fases iniciais do proces-samento da leitura. Nessa tarefa, adaptada do estudo de Prinzmetal e colaboradores (1986), solicita-se a identificação da cor de uma letra componente de um morfema em condição na qual há corte morfêmico, comparativamente à condição em que o corte é não morfêmico, incluindo, ainda, como controle, condição de pseudo morfemas ou seja, palavras em que há apenas coincidência fonológica com a forma do morfema (e.g. jornalista x entrevista). O objetivo do experimento é verificar em que medida no processo da leitura a identificação implícita do morfema no interior da palavra fonológica exercerá efeito de facilitação na realização da tarefa de identificação cromática (por exemplo, a cor da letra i da forma ista). Este efeito será medido através de duas variáveis dependentes: o índice de acertos e os tempos de decisão, computados em milésimos de segundos, utilizando-se a plataforma experimental Psyscope em computador Apple Macintosh. Um fator adicional também incluído no design desse experimento é a verificação de eventuais diferenças de desempenho resultantes da renegociação de significado acarretada pela adição do sufixo à raiz, contrastando-se formas como, por exemplo, jornalista com formas como frentista. Note-se que, no primeiro exemplo, o sufixo -ista tem sua computação feita tomando por base aquela da palavra jornal, enquanto que em frentista o significado da palavra frente não é o ponto de partida da computação semântica causada pela introdução do sufixo -ista, embora as duas palavras compartilhem a raiz frent-. 3 Utilizando o equipamento Head-fixed Viewpoint Eye-tracker (CLIPSEN/CNPq), o segundo experimento investiga o rastreamento ocular das mesmas palavras, pretendendo identificar, preliminarmente, os pontos de fixação e sacadas na primeira passagem do olhar, bem como nos movimentos regressivos. Os resultados obtidos nos dois experimentos permitem reunir evidências para avaliar se, no processo de leitura, palavras complexas são parseadas morfologicamente, concatenando-se raízes a afixos, em contraste com os modelos que postulam a ativação lexical indiferenciada de vocábulos plenos. O artigo é organizado da seguinte forma. Na seção 2, faz-se uma breve revisão da literatura sobre o processamento da morfologia em palavras isoladas, com especial atenção para a caracterização dos modelos de reconhecimento de palavras escritas, procurando estabelecer o quadro teórico relevante para a discussão dos experimentos. A seção 3 reporta o experimento de decisão cromática e a seção 4, o experimento de rastreamento ocular. A seção 5 apresenta as conclusões do artigo. 2. Modelos de processamento morfológico Ao ler uma palavra, acessamos o seu significado na íntegra, diretamente no léxico mental, ou precisamos, preliminarmente, realizar operações de decomposição morfo-lógica, concatenação e interpretação composicional? O acesso lexical direto é uma heurística do tipo top-down3, em que se procede diretamente do input sensorial para um nível de representação “mais alto”do item lexical, ou seja, a palavra inteira, tomada como um listema (cf. Di Sciullo e Williams, 1987), sem precisar recorrer à análise de possíveis subcomponentes do item. A decomposição morfológica, por outro lado, é um algoritmo bottom-up em que o acesso lexical é o produto final de operações “menores” de segmentação de morfemas, identificando-se subunidades lexicais que são, então, montadas em todos maiores, os itens lexicais. Os modelos de acesso lexical direto, também denominados de modelos de listagem plena, economizam em recursos computacio-nais, mas precisam contar com alta capacidade de armazenagem mnemônica. Os modelos composicionais ou de parsing pleno, por outro lado, demandam maior custo computacional, mas economizam na armaze-nagem mnemônica. Uma terceira alternativa admite a possibilidade de que os dois tipos de processos –heurísticas top down e algoritmos bottom-up – possam coexistir no proces-samento lexical. São os modelos mistos ou duais, que lançam mão dos dois tipos de recursos, prevendo uma espécie de competição entre eles. O modelo de Affix-Stripping de Taft e Foster (1975) é o precursor dos modelos estruturais. Utilizando uma tarefa de decisão lexical, Taft e Foster demonstraram que palavras com raízes reais precedidas por prefixos (e.g. re+cursion) são mais difíceis de rejeitar do que palavras com pseudo-raízes (re+pertoire). Uma vez que as raízes reais seriam armazenadas separadamente dos afixos, sua rejeição é mais lenta, pois após a operação de isolamento do afixo estas raízes que podem, de fato, ser localizadas no léxico, requerem consideração extra na tarefa de decisão lexical. Por outro lado, as palavras com pseudo-raízes apresentaram tempos de rejeição menores justamente por não poderem ser localizadas no conjunto de raízes possíveis no léxico. Posteriormente, Taft (1979) demonstra que o efeito de decomposição morfológica do modelo Affix-Stripping também pode ser obtido em palavras com sufixos. Taft (1994) faz ajustes no modelo prevendo que a decomposicionalidade morfo-lógica seja a rota default, mas que o fator freqüência possa também exercer um efeito que resulta em pouca ativação dos morfemas nas palavras mais freqüentes, aproximando, na prática, seu modelo dos modelos duais. No extremo oposto, a hipótese Full Listing de Butterworth (1983) propõe que as palavras estejam disponíveis para reconhecimento no léxico já com sua morfologia, sendo acessadas apenas em sua forma plena, sem qualquer operação decomposicional. Também os modelos conexionistas como, por exemplo, o desenvolvido por Seidenberg e McClelland (1989), propõem uma arquitetura 4 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> paralela e distribuída de reconhecimento visual de palavras em que se pretende que ajustes nos pesos das conexões entre unidades ortográficas e fonológicas sejam propagados através de algoritmo de aprendizagem, sendo capazes de simular o reconhecimento de palavras de forma associativa e rápida, sem utilizar a informação morfológica. No caminho do meio, estão os modelos mistos ou duais, que combinam aspectos dos dois modelos anteriores. O modelo de Augmented Addressed Morphology - AAM de Caramazza e colaboradores (1988) propõe que as palavras familiares sejam acessadas de forma plena, enquanto que as palavras desconhecidas sejam alvo de processos decomposicionais. O modelo de dupla rota paralela de Schreuder e Baayen (1995) propõe que tanto uma rota de parsing morfológico quanto uma rota direta sejam acionadas, em paralelo, desde o início do processo de reconhecimento lexical. O modelo de Marslen-Wilson e colaboradores (1994), estabelecido com base em experimentos de priming, propõe que a decomposição morfo-lógica seja mais provável quando a relação entre a palavra composta com afixos e a sua raiz é transparente. Outro modelo, o de Pinker (1991) prevê que as formas regulares, como, por exemplo, os passados simples formados em –ed, em inglês, sejam acessados via concatenação morfológica, enquanto que os passados irregulares, como © Ciências & Cognição taught, por exem-plo, sejam armazenados plenamente no léxico. Stockall e Marantz (2006), por outro lado, apresentam evidências de experimentos utilizando a técnica de Magneto-encefalo-grafia, de que um único mecanismo de conca-tenação morfológica dá conta tanto dos pas-sados regulares quanto dos irregulares em inglês. Como se vê, a literatura apresenta grande divergência de posições teóricas e métodos. Os experimentos reportados nas seções a seguir têm o intuito de investigar preliminarmente a questão a partir do exame de dados do português, procurando avaliar de forma ampla os três tipos de modelos de processamento lexical resenhados acima a partir de dados recolhidos da atividade de leitura. 3. Experimento 1 – Decisão cromática no processamento de palavras isoladas Este estudo baseia-se no chamado “efeito stroop”, estabelecido através de uma série de experimentos clássicos em que se testou a nomeação cromática em palavras para cores escritas com letras em cores que podiam concordar ou não com a denotação das palavras (cf. Stroop, 1935). Conforme ilustrado na Figura 1, abaixo, as respostas eram mais rápidas quando havia conver-gência do que quando havia divergência. Figura 1 - Efeito stroop. A interpretação destes resultados geralmente sugere que a dificuldade em no-mear palavras com discordância entre a nomeação cromática e a cor das letras se deve a competição, neste caso, entre significado literal e outro metafórico 5 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> No presente experimento, estabeleceuse uma outra sorte de discordância cognitiva: morfológica e visual. A hipótese aqui é a de que uma letra poderia ter sua cor identificada mais acertada e rapidamente quando fizesse parte de um morfema em que todas as letras tivessem a mesma cor. A variável independente “recorte cromático” indica, portanto, que a manipulação de cores poderia singularizar o morfema com todas as letras na mesma cor (corte morfêmico) ou não (corte não morfêmico). Outra variável independente do experimento foi chamada de tipo de morfema, incluindo três níveis, a saber, mor-fema concatenado a palavras (MP), pseudomorfema (PM) e morfema concatenado a raízes (MR). As variáveis dependentes do experimento foram os índices de acerto cromático e os tempos de decisão. A variável independente “tipo de morfema” permitiu que se examinasse o papel de três fatores no processamento de palavras em português: 1) Morfemas concatenados a palavras (MP): palavras formadas por concatenação de um morfema a uma palavra, havendo transparência semântica entre a palavra complexa e a base da qual ela é derivada; 2) Pseudo-morfemas (PM): controles ortográficos em que há apenas uma coincidência ortográfica com a forma dos morfemas. 3) Morfemas concatenados a raízes (MR): palavras formadas por concatenação de um morfema a uma raiz, situação em que o significado da palavra é arbitrário e a leitura é dada na enciclopédia. 3.1. Materiais e métodos Participantes © Ciências & Cognição Participaram do experimento, como voluntários, 20 alunos do terceiro período de graduação em Letras da UFRJ, todos com visão normal ou corrigida. Materiais Os materiais experimentais foram três listas de 14 palavras cada, tendo-se procurado controlar o tamanho e a freqüência de ocorrência médios das palavras cada lista. Os tamanhos foram equalizados, tendo cada lista, em média, 45 sílabas e 104 letras. As freqüências tiveram como índice para o seu estabelecimento o número de ocorrências no sistema de buscas Google, à época em que o ex- perimento foi realizado. As diferenças médias entre os índices de ocorrência dos itens das três listas não foram significa-tivamente diferentes. A Figura 2 exemplifica as três listas: Figura 2 - Exemplos dos materiais experimentais O design em quadrado latino permitiu que todos os sujeitos fossem expostos a todas as condições, mas não aos mesmos itens em todas as condições, havendo, portanto, distribuição do tipo de corte between subjects em dois grupos. A Figura 3 ilustra as seis condições experimentais em que se controlou também, sistematicamente, o contraste de cores verde e vermelho. 6 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Figura 3 - Condições experimentais. Além dos 42 itens experimentais, incluiram-se no teste oitenta itens distrativos em que letras no início e no fim das palavras eram destacadas cromaticamente. tela em que uma palavra era apresentada e a segunda tela em que a cor de uma letra era perguntada. Procedimentos Os participantes foram testados individualmente em sala isolada, em que se encontrava o computador Macintosh I-Mac de 360MHz e uma caixa de botões. Ao pressionar a tecla amarela na caixa de botões ao lado do computador, uma palavra era chamada à tela por 4 segundos, sendo, após esse lapso, automaticamente substituída por tela em que uma mesma letra aparecia em verde e em vermelho seguida de ponto de interrogação. Nos itens experimentais, esta letra era sempre a primeira letra do sufixo ou do pseudomorfema. Nos distratores, esta letra estava em outras posições, no início ou no fim da palavra. Os participantes deveriam, então, escolher a cor da letra, apertando a tecla verde ou a tecla vermelha na caixa de botões. O programa Psyscope registrava, então, a decisão do sujeito, bem como os seus tempos de reação. Após sua decisão, os participantes deveriam apertar a tecla amarela para que outra palavra fosse chamada à tela, prosseguindo conforme descrito anterior-mente até que todas as palavras tivessem sido apresentadas, o que era assinalado por uma última tela com a palavra FIM. As Figuras 4, 5 e 6, ilustram respectivamente a caixa de botões, a primeira Figura 4 - Caixa de botões. Figura 5 - Exemplo de tela em que o estímulo era apresentado por 4 segundos. 7 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> Figura 6 - Exemplo de tela com pergunta sobre a cor de letra . 3.2. Resultados Os resultados estão apresentados na Tabela 1 e nos Gráficos 1 e 2 abaixo. Observe-se que o índice de acertos na condição MPC é significativamente maior do que na condição MPN (X2=12,85; p = 0,0003) e que os tempos de decisão de acerto de MPC são Acertos RT MCP 114 1334 MPN 87 1722 PMC 98 1537 © Ciências & Cognição significativamente mais rápidos do que os de MPN (t = 3,797; p = 0,0002), confirmando que há um efeito de recorte cromático atuante nas condições com morfemas. O recorte cromático dos morfemas foi, de fato, um fator facilitador nas decisões, fazendo aumentar o índice de acertos e diminuindo o tempo médio de decisão. Observe-se, em seguida, que o mesmo não se instancia na comparação PMC x PMN que apresentam índices de acerto (X2= 0,2800; p = 0,5967) e de tempos de decisão de acerto (t = 1,120; p = 0,264) indiferenciados. Finalmente, a comparação das últimas duas colunas entre si indica que o efeito do recorte cromático também se instancia significativamente ao se comparar MRC com MRN. O índice de acertos na condição MRC é significativamente maior do que na condição MRN (X2=14,74; p = 0,0001) e os tempos de decisão de acerto de MRC são significativamente mais rápidos do que os de RN (t = 4,645; p = 0,0001). PMN 102 1737 MRC 110 1319 MRN 60 1807 Tabela 1 – Índices de acerto e tempos de decisão por condição. Grafíco 1 – Índices de acertos. 8 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Gráfico 2 – Tempos de decisão. 3.3. Discussão Os resultados obtidos indicam que os sujeitos reconhecem mais acertada e rapidamente a cor da letra alvo nas condições com recorte morfêmico, esteja o morfema em concatenação com uma palavra(MP) ou com uma raiz (MR). Por outro lado, não se observou efeito de recorte cromático significativo, quer nos índices, quer nos tempos de decisão acertada, nas condições com pseudo-morfema (PM). Esses resultados sugerem que os leitores utilizariam um procedimento de parsing morfológico pleno, isolando os morfemas que compõem uma palavra, quer esses morfemas estejam em relação de transparência, quer estejam em relação de opacidade com a base. Nas condições com morfemas concatenados a palavras (MP), os leitores identificariam a palavra e o sufixo. Por exemplo, ao ler a palavra malinha, fariam a segmentação mala+inha para chegar ao significado “mala pequena”. Também nas condições com morfemas concatenados diretamente à raiz (MR), esta segmentação se instanciaria. O que os resultados parecem estar indicando é que existe uma operação crucial de concatenação de morfema com raiz que ocasiona uma negociação de significado, a qual pode ser acrescida de mais uma concatenação, cujo aporte semântico regular é processado em tempo mínimo. Crucialmente, no entanto, as condições com pseudo-morfemas em que não se observam efeitos significativos de recorte cromático, parecem sugerir que os leitores têm conhecimento intuitivo da morfologia, não segmentando morfemas quando há apenas material ortográfico não segmentável, como é o caso das palavras da lista PM. Por exemplo, ao ler a palavra espinha, derivada do latim spina, ae, o processador morfológico não seria ativadopara segmentar, reconhecer e fornecer a interpretação ilegítima “espi pequeno”, uma vez que, nesse caso, não há morfema diminutivo a ser segmentado e processado, apenas material ortográfico semelhante que a competência lingüística do falante saberia diferenciar de um morfema verdadeiro. 4. Experimento 2 – rastreamento ocular Este experimento rastreou os movimentos oculares na leitura do mesmo conjunto de palavras do experimento anterior, sem, no entanto, incluir a manipulação cromática. A hipótese era a de que as palavras com morfemas, sejam as transparentes, sejam as opacas, apresentariam maiores tempos médios de fixação e maiores índices de movimentos sacádicos progressivos ou regressivos do que as palavras com pseudo-morfemas. Esses índices mais elevados de fixação e movimentação ocular nas condições com morfema refletiriam a atividade de concatenação morfêmica 9 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> levada a efeito no processamento visual dessas palavras, em oposição ao acesso mais direto, a ser observado nas condições com pseudo-morfemas, em que não se esperariam níveis significativos de computação interna .à palavra. A literatura sobre rastreamento ocular da leitura reconhece não só que medidas de movimento ocular possam ser usadas para inferir processos cognitivos que variam de momento a momento na leitura, mas também que a variabilidade das medidas refletem o processamento on-line (cf. Rayner, 1983). Mais especificamente, Kuperman e colaboradores (2006) demonstraram que a complexidade morfológica na leitura de palavras isoladas em holandês implica maiores tempos de fixação. Os três fatores da variável independente tipo de morfema (MP, PM e MR) são examinados no presente estudo, que tem como variáveis dependentes os tempos de fixação e os índices de movimentos sacádicos na leitura das palavras. 4.1. Materiais e métodos © Ciências & Cognição Participaram do experimento 16 alunos de graduação do curso de Fonoaudiologia da UFRJ, com visão normal, sem necessidade de uso de óculos ou lentes de contacto. Materiais Os materiais experimentais usados no estudo foram os mesmos usados no experimento 1, sem manipulação cromática: três listas de 14 palavras cada, controladas quanto à freqüência e tamanho, a saber, palavras com morfemas, pseudo-morfemas e morfemas renegociados. Procedimentos Os participantes foram testados individualmente em sala isolada, em que se encontravam o equipamento de rastreamento ocular Arrington View Point Quick Clamp Eye-tracker (CLIPSEN-CNPq), com resolução temporal de 30Hz (640x 480), ilustrado na Figura 7: Participantes Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Figura 7 – Equipamento de rastreamento ocular. 10 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> Os participantes foram instalados no equipamento a distância de cerca de 50 cms do monitor e instruídos a fazer leitura silenciosa auto-monitorada das palavras que íam chamando à tela através do pressiona-mento da tecla F-12 no teclado do compu-tador Pentium IV 2,6GHz a que o rastreador ocular está conectado. As palavras grafadas em fonte times new roman 36 apareciam no centro da © Ciências & Cognição tela, ali permanecendo até que o sujeito apertasse a tecla F-12 novamente. Entre uma palavra e outra aparecia uma tela cinza vazia. A tarefa pedida aos sujeitos era a de que lessem as palavras para compreensão, sendo que ao final seriam testados quanto ao seu significado. A Figura 8 ilustra participante durante a realização do teste. Figura 8 – Participante do experimento de rastreamento ocular. 4.2. Resultados Os resultados estão apresentados na Tabela 2 e nos Gráficos 3 e 4 a seguir. Notese que os tempos médios de fixação diferem significativamente entre morfemas concatenados diretamente a palavras (MP) e pseudomorfemas (PM) na direção esperada (583 ms x 512ms), embora a diferença entre os índices de movimentos sacádicos, ainda que na direção esperada, seja apenas visual, não signifi- cativa estatisticamente (X2= 1,838; p = 0,1752). De qualquer forma, as palavras na condição MP, em que morfemas estão concatenados a palavras, requerem mais tempo de fixação (t = 2,936; p = 0,0034), atestando a maior atividade requerida pela decomposicão morfológica na leitura do primeiro grupo. Entretanto, diferentemente do obtido no Experimento 1, também se atesta-ram diferenças significativas dos tempos de fixação (t = 3.078; p = 0,0021) com a mesma magnitude e 11 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> direção entre as palavras com morfemas concatenados a palavras (transparentes) e as palavras com morfemas concatenados a raízes (opacos), cujo significado é arbitrário. Já entre o grupo de palavras com pseudo-morfemas (PM) e o grupo de palavras com primeira concatenação na raiz (MR) não há diferenças significa- Fixações Sacadas MP 583 609 © Ciências & Cognição PM 512 576 MR 509 575 Tabela 2 – Fixações e movimentos sacádicos. tivas nos tempos de fixação (t = 0,1215; p = 0,9033). Gráfico 3 – Tempos médios de fixação. Gráfico 4 – Índices médios de movimentos sacádicos. 12 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> 4.3. Discussão Os resultados do experimento de rastreamento ocular sugerem uma correlação entre a computação morfológica no interior da palavra e os tempos de fixação médios – palavras com sufixos concatenados a palavras apresentam tempos de fixação médios mais elevados do que palavras com pseudo-morfemas, confirmando parcialmente a hipótese de que a concatenação morfêmica requer maiores latências, já que os índices de movimentação sacádica, embora apresentando médias na direção esperada, diferiram de forma estatisticamente não significativa. Observe-se que a diferença nos cruzamentos entre a condição com morfemas concatenados a palavras (MP) e a condição com pseudo-morfemas (PM) é simétrica às que foram obtidas no experimento 1, onde também se observaram diferenças significativas entre essas duas condições. A falta de simetria entre os dois experimentos, entretanto, se instancia ao se compararem as condições de palavras com morfemas concatenados a palavras (MP) com as condições de palavras com morfemas concatenados diretamente a raízes (MR), no teste de rastreamento ocular. Enquanto que neste último teste, há diferenças significativas nos tempos de fixação entre as duas condi-ções, sugerindo que os dois grupos de palavras são processados diferentemente, no experimento 1, não se obtiveram diferenças significativas entre esses dois grupos, inferin-do-se, ali, que a computação morfológica ocorria de modo idêntico, fossem os morfe-mas concatenados a palavras, fossem eles concatenados a raízes. Uma forma de tentar explicar esta contradição entre os dois experimentos seria atribuir à natureza das tarefas a diferença encontrada entre os dois experimentos no que se refere ao grupo de palavras com concatenação de morfemas a raízes (MR) que, no primeiro experimento, se posicionaram ao lado do grupo de palavras com morfemas concatenados a palavras (MP) e, no segundo experimento, se alinharam melhor com o grupo de palavras com pseudo-morfemas. A tarefa de identificação cromática requeria que se © Ciências & Cognição destacassem com a mesma cor os morfemas, tanto no grupo onde havia composição semântica regular (MP), quanto no grupo em que havia leitura semântica arbi-trária (MR). Esse destaque do morfema pode ter funcionado como um artefato que ativou o procedimento computacional de concatenação morfológica em ambos os grupos, independentemente do significado ter sido fixado por computação composicional ou por fixação mnemônica semanticamente arbi-trária. No grupo de pseudo-morfemas, embora as formas ortograficamente semelhantes a morfemas tenham também sido destacadas, os falantes não as teriam percebido como verdadeiros morfemas, não optando, por isso, pelo procedimento computacional e sim pelo acesso pleno (listema). Já no experimento de rastreamento ocular, em que não se deu destaque nem aos morfemas concatenados a palavras (MP), nem aos concatenados a raízes (MR) e nem aos pseudo-morfemas (PM), pôde-se capturar o acesso com base na computação morfológica apenas no grupo de palavras com morfemas concatenados a palavras, de leitura composicional (MP). Nos dois outros grupos, os leitores teriam optado pelo procedimento de listagem plena, menos custoso em termos de tempos de fixação. No grupo de pseudomorfemas, o procedimento de acesso direto seria o único possível, uma vez que a computação levaria a resultado enganoso. No grupo de morfemas concatenados a raízes (MR), embora o procedimento computacional fosse possível, não foi o preferido, provavelmente também por considerações de natureza econômica já que o acesso top-down é menos custoso computacionalmente e, por isso, menos demorado em termos de tempos de fixação. De qualquer modo, os experimentos parecem haver indicado a disponibilidade dos dois tipos de procedimentos de acesso lexical no processamento de palavras isoladas em português, o acesso direto e o mediado pela computação morfológica, aduzindo evidências em favor dos modelos duais ou de dupla rota. Constatam-se, então, dois procedimentos de acesso - o procedimento mnemônico e o computacional, o primeiro concer- 13 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> nente à ativação da convenção arbitrária, que acontece na primeira concatenação de morfema categorizador a uma raiz acategorial e o segundo concernente ao cálculo da composição semântica, um cálculo que vai sendo efetuado logo após a primeira concatenação de afixo a raiz. Note-se, finalmente, que após a realização do experimento de rastreamento ocular realizaram-se entrevistas com os participantes, indagando-se sobre a ocorrência e os significados de algumas palavras experimentais apresentadas no teste. Registre-se que ao menos uma das palavras experimentais do grupo dos morfemas opacos, a palavra mocinho, apresentou interpretações variáveis entre o sentido computado morfologicamente (moço+inho) e o sentido determinado medi-ante negociação semântica da estrutura Raiz+x © Ciências & Cognição (moc+inho). A maior parte dos sujeitos forneceu como primeira interpretação o sentido negociado, a saber, o de herói, oposto a bandido. Esta interpretação é consistente com o padrão de leitura do tipo top-down com menores índices de fixação e de movimentos sacádicos, ilustrado na Figura 9. Entretanto vários participantes também apresentaram como primeira interpretação o significado de moço jovem que teria resultado do procedimento bottom-up de concatenação da raiz com o sufixo diminutivo, o que poderia ter como correlato padrões de leitura com mais atividade ocular, como o ilustrado na Figura 10. A existência de tais variações sugerem que o controle mais preciso dessas acepções pode ser crucial para se estabelecer com maior precisão os processos de acesso lexical levados a efeito na leitura de palavras isoladas. Figura 9 – Padrão de leitura top-down. 14 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Figura 10 – Padrão de leitura bottom-up. 5. Conclusões Resumem-se abaixo as principais conclusões a que se chegou neste artigo: • • • A tarefa Stroop indicou que os leitores têm conhecimento intuitivo de morfemas computados composicionalmente e morfemas responsáveis por leituras arbitrárias, que atuam como facilitadores dos índices de acerto e dos tempos de resposta, em contraste com as condições com palavras contendo apenas material ortograficamente semelhante a morfemas. Há processamento morfológico no interior da palavra, conforme predito pelas teorias de parsing pleno. O rastreamento da leitura das mesmas palavras indicou maior atividade ocular (fixações) na condição com morfemas com leitura composicional do que nas condi- • • ções com pseudo-morfemas e com morfemas que determinam leitura arbitrária. Houve também ocorrência de padrões oculares indicativos de acesso lexical direto, aduzindo evidências em favor de modelos de dupla rota que prevêem tanto a computação quanto o acesso direto. A contradição entre os resultados obtidos nos dois experimentos poderia ser explicada em termos da natureza diferenciada das tarefas. Enquanto que na tarefa baseada no efeito Stroop os morfemas eram destacados, a tarefa de rastreamento ocular não incluiu esta explicitação dos morfemas. No grupo de palavras com morfemas opacos, que pode admitir duas interpretações, a explicitação dos mor-femas introduz um artefato que favore-ceria o processamento bottom-up, enquan-to a sua não explicitação favoreceria o processamento top-down. 15 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> • Finalmente, tomados em conjunto, os achados dos dois experimentos sugerem que o acesso lexical é um processo extremamente complexo, justificando que se realizem outras pesquisas, controlando-se com maior precisão fatores tais como o ponto de concatenação dos sufixos, as freqüências de ocorrência dos itens lexicais, o grau de familiaridade que dife-rentes grupos de sujeitos podem ter com as palavras, bem como suas polissemias. Referências bibliográficas Butterworth, B. (1983) Lexical representation. Em: B. Butterworth. Language production (Vol.2, pp.257-294). London: Academic Press. Caramazza, A.; Laudanna, A. e Romani, C. 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Depois, rastro se concatena com o morfema verbalizador e forma rastrear. Por fim, o verbo rastrear se concatena a um morfema nominalizador com forma fonológica mento em prol da palavra [[[rastr]nea]vmento]n. 16 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 02-17 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição (3) Heurísticas top down no acesso lexical parecem sempre poder ocorrer, sendo, até certo ponto, imprevisíveis, pois variam em função de fatores tão diversos quanto a freqüência, a familiaridade, a similaridade semântica, prosódica, fonética, ortográfica, etc. Por exemplo, recentemente, pudemos observar alguém recuperar o nome de um grupo de mímicos denominado Mummenshantz, como Haagendaz. Pode-se especular que o acesso se deveu a fatores tão diversos quanto o número de sílabas, a pauta acentual, bem como, talvez, à percepção de que se tratava de termo em língua estrangeira. 17 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 18-30 <http://www.cienciasecognicao.org> S u b me t i d o e m 1 6 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e © Ciências & Cognição e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7 Artigo Científico Do herói ficcional ao herói político From the imaginary hero to the political hero Hilda Gomes Dutra Magalhães, Luíza Helena Oliveira da Silva e Dimas José Batista Universidade Federal do Tocantins (UFT), Palmas, Tocantins, Brasil Resumo Partindo do pressuposto de que a literatura materializa os valores ideológicos de um determinado grupo, pretendemos neste artigo refletir sobre as relações existentes entre o perfil dos personagens das narrativas de massa consumidas pelos eleitores e a imagem de político vendida/administrada pela mídia em campanhas eleitorais. Utilizando como suporte teórico a Análise do Discurso, pudemos observar que tanto nas sociedades capitalistas quanto nas não capitalistas, temos uma mídia que constrói, fabrica e inventa heróis políticos. A mitificação da dimensão política corresponde simetricamente aos desejos e anseios de proteção, amparo e conforto dos eleitores, perdidos num mundo com valores essenciais fragmentados. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 18-30. Palavras-chave: herói; mitificação política; análise do discurso. Abstract Having as principle that the literary art represents the ideological values of one determined group, we want in this article to reflect about the relations between the mass narratives personages profile consumed by the voters and the profile of the political sold / managed by the media during politics campaigns. We observed, using the Discourse Analysis theory, as much in the capitalists societies how much not capitalists, the existence of a media that constructs political heroes. This mystification of the political dimension corresponds symmetrically to the desires and to the protection necessities of voters, lost in a world deprived of basic values. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 18-30. Key Words: hero; politic mitification; discourse analysis. Introdução Discutir a construção ideológica, simbólica e discursiva da figura do “herói” no campo das ciências humanas e sociais remete a uma intrincada teia de reflexões sobre a so- ciedade presente e passada, especialmente quando lidamos com construções/fabricações/ invenções produzidas no universo literário e político. Nesta reflexão, alguns dados poderiam ser considerados para precisar melhor a função social do herói e da heroificação - H.G.D. Magalhães é Doutora em Teoria da Literatura (Universidade Federal do Rio de Janeiro), com Pósdoutorado (Universidade de Paris III e na École des Hautes Études en Sciences Sociale). Atualmente atua como Professora do Curso de Letras e do Mestrado Iterdisciplinar em Ciências do Ambiente (UFT). Endereço para correspondência: Campus de Araguaína - Unidade São João (UFT). Rua 1º de Janeiro, S/N, São João, TO 77.080-000. Telefone: 14 (63) 21122219. E-mail para correspondência: [email protected]. L.H.O. da Silva é Doutora em Estudos da Linguagem (Universidade Federal Fluminense). Atua como Professora do Curso de Letras (UFT/Araguaína-TO). D.J. Batista é Doutor em História (Universidade de São Paulo). Atua como Professor do Curso de História (UFT/Araguaína-TO). 18 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 18-30 <http://www.cienciasecognicao.org/> (compreendido como processo de produção discursiva da figuratividade heróica). As qualidades do herói, suas características no imaginário coletivo e a natureza ideológica atreladas a sua figurativização contribuem, certamente, para a compreensão do problema da consciência. A consciência, nesse caso, vai ser concebida na perspectiva dialógica de Bakhtin como uma produção histórica, opondo-se, portanto, à possibilidade de uma subjetividade absoluta capaz de separarse do mundo para melhor desvendá-lo, como prevista numa abordagem idealista. Para Bakhtin, a consciência não vai ser buscada no interior do sujeito, mas na relação entre os sujeitos constituídos historicamente, conforme analisa em Marxismo e filosofia da linguagem: Se tomarmos a enunciação no estágio inicial de seu desenvolvimento, na “alma”, não se mudará a essência das coisas, já que a estrutura da atividade mental é tão social como da sua objetivação exterior. O grau de consciência. De clareza, de acabamento formal da atividade mental é diretamente proporcional ao seu grau de orientação social. Quanto mais forte, mais bem organizada e diferenciada for a coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e complexo será o seu mundo exterior (Bakhtin, 1995: 114-115). A produção literária, particularmente, a ocidental sobre a figura do herói realmente assenta-se no maniqueísmo, na unilateralidade e no sucesso do herói. Estes elementos são centrais para compreensão da criação discursiva do herói pela reiteração de determinados traços semânticos como a imortalidade, a invencibilidade, a superação do conflito moral e ético, incidindo sobre a ativação de um sentimento de identidade coletiva: o herói fala aos anseios de uma maioria, dá contornos precisos ao que num dado momento representa os seus anseios e angústias. Tais elementos ônticos não vinculam automaticamente a figura do herói a um grupo social específico, embora os processos de heroificação, ao atualizá-los, resignifiquem-nos. Assim, as figuras heróicas das tragédias, epopéias e fábulas greco-romanas porventura © Ciências & Cognição guardariam os mesmos traços dos heróis contemporâneos? Certamente que não, mas uma abstração parece resistir, capaz de subsumir a diversidade de representações e esquemas culturais que definem as especificidades das figuras que as sociedades elegem como heróicas. Neste trabalho, partimos do pressuposto de que a arte literária, mais do que um simples documento estético de um povo, materializa os valores ideológicos que sustentam a cultura de um determinado grupo. Acreditando nisto, podemos entender a produção literária como um termômetro para se compreender a consciência política de um grupo social, o que pode ser observado não apenas no tipo de literatura que essa sociedade produz, mas principalmente na natureza dos textos que ela consome. Isso posto, interessa-nos neste artigo refletir sobre as relações existentes entre o perfil dos personagens das narrativas de massa consumida pelos eleitores e a imagem de político que é vendida/administrada pela mídia em época de campanha eleitoral, na medida em que muitas vezes o representante a ser eleito deve corresponder a uma espécie de herói, capaz de abraçar os interesses de uma maioria, exacerbando-se seus poderes como ator na transformação social e econômica. Mais especificamente, lançamos nosso olhar para alguns recursos mobilizados durante campanha para a eleição do governador do estado do Tocantins, em 2006. Como suporte teórico utilizaremos a Análise do Discurso (AD), que concebe a apropriação do discurso como um processo essencialmente coletivo, social e histórico. Para os representantes dessa corrente, a teoria do discurso deve explicar não apenas a realidade lingüística do texto, visto como algo em si, mas sua relação com a ideologia e, desse modo, ao Poder. As determinações do discurso Althusser (1984), um dos teóricos cujas formulações corroboram para a constituição da Análise do Discurso, nos explica que a classe dominante consegue perpetuar sua hegemonia graças a dois aparelhos fundamen- 19 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 18-30 <http://www.cienciasecognicao.org/> tais: o repressor, representado pela política, pela Administração, pelo Governo, pela Justiça, etc., e o ideológico, constituído pela família, pela escola, pela religião, etc. O primeiro tem como fundamento a repressão, enquanto que o segundo é caracterizado pela disseminação ideológica que perpetua o Poder. Althusser afirma que a ideologia se materializa na maneira como se organizam os aparelhos repressivos e ideológicos, compreendendo por ideologia a forma imaginária como os homens vivem sua relação com as condições reais de existência, caracterizada como mitificação. Neste sentido, a ideologia apresenta uma existência material e tem como finalidade a manutenção do Poder, o que só é possível através da perpetuação da ideologia que o sustenta. Essa perpetuação é garantida, por sua vez, por um contínuo processo de transformação de indivíduos em sujeitos ideológicos, quando estes são assimilados pelo sistema, passando a disseminar a ideologia dominante. Foucault (1999), ao instituir os fundamentos da teoria do discurso, concebe o discurso como um conjunto de enunciados ligados por uma mesma formação discursiva. Para ele, o enunciado se caracteriza pela sua relação com o referencial, compreendido como o que enuncia o enunciado e pela relação do enunciado com o sujeito, considerando que é o sujeito que anima, através de sua forma de ver o mundo, as formas vazias da língua, dispondo para isso de signos, marcas, traços, letras, etc. Outra característica do discurso está na existência de um domínio próprio, ou seja, de um espaço, responsável por integrar o enunciado num conjunto de enunciados, considerando que os enunciados existem sempre em conjunto e nunca isoladamente. Ou seja, não se pode falar em enunciado livre, neutro ou independente, mas sempre em um enunciado contextualizado, fazendo parte de um jogo enunciativo, pois, para Foucault (1999: 9), a linguagem é exatamente isso: jogo, defesa, arma, etc. Finalmente, outra característica do discurso é a sua condição material, que afirma o enunciado enquanto objeto. Assim, a repetição de um enunciado depende de sua materia- © Ciências & Cognição lidade, isto é, depende de seu espaço institucional, e por isso uma mesma palavra ou frase terá significados diferentes conforme a formação discursiva na qual se insere. O conceito de formação discursiva é bastante complexo e polêmico. Utilizamos inicialmente a definição de Orlandi, segundo a qual uma formação discursiva deve ser compreendida como a atualização no discurso das formações ideológicas: “A formação discursiva se define como aquilo que numa formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sóciohistórica dada – determina o que pode e deve ser dito” (Orlandi, 1999: 43). Para Mussalim, os limites de uma formação discursiva (FD) são instáveis, uma vez que esta se inscreve num espaço de embate ideológico: “uma FD se inscreve entre diversas formações discursivas, e a fronteira entre elas se desloca em função dos embates da luta ideológica, sendo estes embates recuperáveis no interior mesmo de cada uma das FDs em relação” (Mussalim, 2001: 125). O conceito de formação discursiva remete, pois, à incompletude como condição da linguagem, uma vez que os sentidos não estão constituídos definitivamente: “Constituem-se e funcionam sob o modo do entremeio, da relação, da falta, do movimento”, nos “limites moventes e tensos entre a paráfrase e a polissemia” (Orlandi, 1999: 52), repetindo ou rompendo com os sentidos de uma dada formação discursiva. O conceito de formação discursiva, compreendida como atualização de uma formação ideológica, é fundamental para a Análise do Discurso, do mesmo modo que os conceitos de enunciado e enunciação. O enunciado é compreendido como a unidade lingüística básica, em substituição a sentença, forma, frase. A enunciação, por sua vez, é a singularização do discurso, aqui compreendido como jogo estratégico e polêmico, ação e reação, pergunta e resposta, dominação e esquiva. Em outras palavras, o discurso, para Foucault, é o espaço em que saber e poder se articulam e é justamente por isso que ele precisa ser controlado, selecionado, organizado e redistribuído (Foucault, 1999: 9). 20 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 18-30 <http://www.cienciasecognicao.org/> A contribuição de Foucault é importante porque liga definitivamente língua e realidade sócio-histórica. A partir dele e de Althusser, Pêcheux desenvolve a Análise do Discurso, englobando o materialismo histórico, a lingüística e a teoria do discurso. Para ele, cada indivíduo recebe uma formação discursiva, que define o que pode ou não dizer o sujeito. Nestes termos, quando alguém se manifesta, diz não exatamente o que quer, mas o que pode e deve dizer, pois, assim como uma formação ideológica determina o que o indivíduo pensa, uma formação discursiva determina o que esse indivíduo pode e deve falar. Citando Eni Orlandi (2001:164), “não há sentidos em si”. Do mesmo modo, “os sentidos não dependem de nossas intenções, mas de possibilidades e necessidades reais concretas com seus efeitos simbólicos”. Em outras palavras, existe uma formação discursiva que predetermina o discurso de cada um de nós a partir de um espaço determinado histórico e socialmente. Analisando o discurso literário, Heliane de Castro (1983:17) afirma que o processo de criação da arte escrita acha-se ligado a um assunto, isto é, a uma "idéia ou conjunto de idéias" que dizem respeito aos valores ideológicos. Registra ainda que, nesse sentido, a ideologia "é o fundamento da criação literária, pois a partir dela passam a existir os dados constituintes da obra" (Castro, 1983: 17). Uma das características básicas da obra literária é ser, portanto, ideológica, isto é, a obra se constitui num meio de propagação de idéias, o que a torna um instrumento de repetição dos valores dominantes ou da instauração da possibilidade de ruptura, do novo, de uma outra ordem de coisas e sentidos. Essa ideologia pode estar impregnada nos vários níveis discursivos, dentro da obra literária. Devido à proposta de nosso estudo, deter-nos-emos na análise do personagem, mais especificamente, na figura do herói. O berço do herói Antes de analisarmos os heróis como produtos culturais de massa, é necessário lembrar que o herói está presente no imaginá- © Ciências & Cognição rio desde os primórdios da história humana, quando, numa condição precária em que a própria existência se revestia em mistérios, os primeiros homens procuraram explicar o mundo a partir das divindades. Neste intuito, criaram a figura dos deuses, uma mistura do bem e do mal, aliada aos super-poderes e à imortalidade. Habitando o Monte Olimpo e se alimentando de néctar e de ambrosia, estes deuses detinham o controle sobre o fogo, a terra, o ar e tudo o que neles habita. Suas façanhas, tidas como verdadeiras, eram passadas com idolatria e respeito de boca a boca, indiferentemente de sexo e idade. Na mitologia cristã, esses deuses foram sintetizados em dois pólos: na divina trindade e na imagem de Lúcifer, atualização de Hades, da divindade greco-romana. Ao lado da mitologia cristã floresceu, na Idade Média, uma mitologia laica, absolutizando o Bem e o Mal. Esta se encontra representada principalmente através do contos de fadas, nas figuras da fada madrinha (Bem) e da bruxa (o Mal), ressignificados pelos efeitos especiais das produções cinematográficas de nossos dias e pelos livros ficcionais de natureza mística, como os de Paulo Coelho. O que se percebe é que a busca da verdade sobre o homem e o mundo continua e com isso, a varinha mágica, resquício dos poderes dos deuses gregos, passando também por uma evolução, transmudou-se para continuar a reproduzir, com mais eficácia, a eterna luta entre o bem e o mal, o sim e o não, a vida e a morte. A partir de meados do Século XX, surgem novos produtos culturais que perpetuam a relação Bem/Mal, a partir do maniqueísmo dos símbolos bruxa/fada da Idade Média: é a cultura massificada colocada à disposição nas bancas de jornais, na televisão e na internet, na forma de gibis, jogos infantis, filmes, etc. Iniciado geralmente na infância, o consumo desses produtos não se restringe à faixa etária infanto-juvenil, estendendo-se a uma grande parcela de adultos, tornando-se verdadeiros campeões de venda em distintos países. Entretanto, seja pela estrutura automatizada das histórias, seja pelos referenciais 21 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 18-30 <http://www.cienciasecognicao.org/> que representam os personagens, esses produtos mostram um lado mórbido, posto que são potentes instrumentos de manipulação ideológica, servindo, de diversas formas, à manutenção dos interesses dos sistemas políticos e econômicos. A estória do Tio Patinhas, por exemplo, é uma típica propaganda capitalista. O milionário, além de representar o empresário, ou seja, o dono do capital, é a própria alegoria do capital em si. Sua empresa visa apenas a mais-valia e todos os valores morais desaparecem, sendo substituídos pela perspectiva de lucro. As pessoas, para o Tio Patinhas (incluindo ele próprio) deixam de ter qualquer importância nas estórias. Exemplo disso é a forma como trata o sobrinho Donald, representante da classe proletária, despudoradamente explorado pelo tio. Em nenhum momento existe o questionamento da problemática e a tendência é, pelo automatismo, manter a relação dominante/dominado, que torna o tio a cada dia mais rico e o sobrinho cada vez mais pobre. Os filmes de aventura, além de extremamente violentos, tentam, através dos ícones que compõem o personagem principal, vender a imagem do poder hegemônico dos Estados Unidos tanto para os próprios americanos quanto (e principalmente) para os países emergentes. O leitor passa, desde a mais tenra infância, por um lento e progressivo processo doutrinário, durante o qual introjeta valores que não são necessariamente os de sua cultura, considerando-os, mais do que normais, desejáveis. Gradativamente, o leitor começa a valorizar mais o "ter" em detrimento do "ser", e, ato contínuo, a converter-se em coisa, convertendo-se por seu "livre arbítrio" em força de trabalho explorada pelo sistema. Como sonho de consumo, começa a almejar a posição privilegiada de Patinhas, a força do herói de seu filme preferido e, quando tem a oportunidade de conquistar posições sociais privilegiadas, muitas vezes o faz sem respeitar os interesses de sua classe social. Temos assim a perpetuação de uma ordem econômica (infra-estrutura) por via da ideologia que se manifesta na linguagem, no © Ciências & Cognição simbólico, nos processos de representação por via do aparato das instituições (superestrutura), conforme preconiza a perspectiva althusseriana: A ideologia – parte da superestrutura do edifício – , portanto, só pode ser concebida como um modo de reprodução, uma vez que é por ele determinada. Ao mesmo tempo, por uma “ação de retorno” da superestrutura sobre a infra-estruturam a ideologia acaba por perpetuar a base econômica que a sustenta (Mussalim, 2001: 104). Eu tenho a força Independente da linguagem de que se utilizam, esses produtos de massa apresentam uma estrutura rígida e pobre, fazendo parte do que Flávio René Köthe (1986: 35) chama de narrativa trivial, caracterizada basicamente "pelo automatismo, pela repetição e pelos clichês, em nível de enredo, personagens, temário, valores e final”, aspectos que tornam a leitura de tais textos acessível a qualquer tipo de leitor. Dentre as peculiaridades do gênero, entre as que mais chamam a atenção estão, sem dúvidas, a imortalidade e a invencibilidade do herói, configurando uma figura demiúrgica, cujos poderes se comparam à força da magia. Nesse caso, vamos observar como fato sintomático uma incrível coincidência de identidade entre o herói imaginário e o herói das urnas, o que indica a existência de um determinado condicionamento entre o real e o fictício, entre leitura e leitor. Como exemplos de heróis imaginários, podemos citar uma infinidade de personagens que variam da fada à Cinderela, dos cowboys americanos ao detetive policial do seriado de TV, todos detentores de uma força/saber que lhes possibilita realizar feitos irrealizáveis pelo homem comum, sintetizando, portanto, o mito do superhomem e exercendo sobre o público leitor, mais do que o fascínio, as condições para sua submissão ideológica. Aparentemente, na ficção, o herói é um homem comum, comprometido com os dogmas do bem e da moral convencionados pela sociedade. O super-herói da literatura de 22 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 18-30 <http://www.cienciasecognicao.org/> massa não precisa de palanques para provar que é superior e que é capaz de solucionar os problemas dos mortais, mesmo porque é único, não possui concorrentes e, caso apareçam alguns, são sempre caracterizados como ameaças ao bem-estar da população e por isso devem ser derrotados, exterminados. Outro aspecto a se observar é que, em geral, o super-herói não age em grupo, pois ele representa o poder absoluto e por isso se torna detentor de todas as forças do bem, considerado como tal as diretrizes do poder (ele estará sempre agindo em nome do Estado, da Igreja, do Poder dominante). Assim é que o cidadão Clark Kent pode, num piscar de olhos, transformar-se no imortal super-homem, banir sozinho todos os bandidos que ameaçam a tranqüilidade dos cidadãos e voltar ileso à sua condição de pacato jornalista. Lembremos ainda esse respeito os heróis encarnados por Stalone, Schwarznegger e similares. Ultimamente, temos assistido nas histórias em quadrinhos e nos desenhos animados a uma tendência dos heróis em trabalhar em grupos, porém, nos filmes produzidos por Hollywood ainda predomina a onipotência individual, elemento caro para a ótica neoliberal: é possível vencer a tudo e a todos solitariamente, a despeito das forças contrárias. Por analogia, é também possível o sucesso econômico, desde que haja determinação, força de vontade, determinação, ousadia, qualidades indispensáveis aos homens que “vencem” no mundo dos negócios, derrotando os concorrentes, angariando a simpatia do mercado. Os candidatos de palanque, cujo discurso é anti-analítico por natureza, refletem uma circunstância semelhante à apresentada pelo herói ficcional. Para o candidato da tribuna, a oposição é sempre a ameaça à população e, portanto, o bandido deve ser, à maneira do criminoso da narrativa trivial, derrotado. Assim como o herói da ficção, ao político, na narrativa da política nacional, interessa promover-se como figura individual, utilizando a legenda na medida em que serve a sua autoprojeção, uma vez que, nesse quadro, a ideologia nem sempre está vinculada ao partido, sendo este reivindicado apenas quando há ganhos individuais para o candidato. De fato, ao © Ciências & Cognição candidato interessa, o quanto for possível, vender uma imagem individual e quanto mais biônica ela parecer ao público maiores são suas chances de vitória: tratar-se-ia de um sujeito acima das ideologias, acima dos partidos, para a garantia do interesse de todos. Sabendo disso, cada político, à sua maneira, tenta, através de indexadores, revestir-se de alguma das faculdades extraordinárias do super-herói. De fato, se analisarmos a natureza do discurso do herói ficcional e do "herói" político, veremos que tanto um quanto o outro refletem uma ideologia supra-real. Antes de pretender ser analítico, o discurso de ambos é eloqüente. Na figura do herói fictício, tal eloqüência é mostrada pelo ato efetivado, reiterando, portanto, o seu discurso e a sua condição de super. Para o herói de palanque, a eloqüência é obtida através de associações que o aproximam da figura de Deus ou de determinados políticos ou personagens tidos pela comunidade como mártires ou heróis da pátria. Analisando o personagem He-Man, veremos que, ao empunhar a espada mágica, torna-se o detentor de uma força inigualável e, observemos, o seu discurso é breve, resumindo-se à frase "Eu tenho a força", o que já é a garantia da solução de todos os problemas dos mortais. O mesmo discurso é por várias vezes repetido pelo candidato em campanha. Quando afirma que precisa do voto do eleitor para resolver os problemas do povo, reclama para si a força e a espada mágica de He-Man: eu tenho a força da representatividade, sou, portanto, detentor da legitimidade e das condições para pode fazer. Neste sentido, tanto a espada para HeMan quanto os votos para o político se constituem numa espécie de varinha mágica que os dota de superpoderes. Observemos, todavia, a contragosto, que o discurso do herói imaginário não sofre reversão, isto é, o super, de fato, efetiva o predisposto e seu poder é utilizado em favor do bem-estar da coletividade. Diferentemente, no caso do discurso político, vemos tantas vezes uma espécie de deterioração da manutenção no compromisso assumido, o que com maior ou menor rapidez, confere desgaste a sua credibilidade junto ao 23 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 18-30 <http://www.cienciasecognicao.org/> eleitorado. Assim, os discursos de campanha se perdem ao longo do processo, modificando-se, tornando-se diferentes das falas subseqüentes: o que se declara na condição de candidato não mais se assemelha ao que se diz quando empossado. Enquanto He-Man utiliza a sua força em prol do povo, o político decaído a utiliza em benefício próprio, e por isso mesmo contra a coisa pública. Enquanto, no campo simbólico, temos a confirmação da necessidade dos super-heróis, na vida das relações de poder o heróico não parece alcançar as condições para seu progresso. Assim, muitas vezes assistimos a uma progressiva deterioração da imagem do pretenso herói nas urnas, rumo à decadência de sua figura e desencanto do eleitor com o processo. Daí para a crucificação há uma pequena distância: é quando surgem as imagens dos judas queimados nos Sábados de Aleluia ou os enterros simbólicos, marcando a falência do modelo que havia possibilitado a eleição do político. Já citamos em oportunidade anterior que o herói ficcional, geralmente antes do desenlace da narrativa, sofre uma recaída em que é fartamente enganado e nocauteado, porém, ao final, a estória mostra ao leitor que fatalmente o herói vence, mesmo porque ele é absolutamente invencível. Ora, na história política também isso ocorre: assim que um determinado discurso entra em declínio, os representantes do Poder começam a renegar a própria legenda e a se engajarem em outras facções sob a desculpa de que o partido desviou-se das suas metas iniciais, de que a equipe não está afinada com o Governo, dentre outras. Enfim, prepara-se para abandonar o navio naufragado e, observamos, é quando o seu discurso torna-se mais individualista do que nunca: o suposto herói tenta, ao apontar bodes expiatórios, reverter a situação, reforçando um discurso extremamente individualista. É novamente a imagem do super-herói que entra em cena diante do eleitor, um herói que sobrevive para além dos interesses do grupo e é detentor de um poder inextinguível. Não são raros os casos de anti-heróis que recuperam a imagem diante do público pela © Ciências & Cognição simples troca de bandeira. A inexistência de uma memória histórica tem sido apontada por muitos como sendo o principal motivador deste fenômeno. Nesse caso, seria importante considerar os mecanismos que constroem essa memória social e histórica, silenciando e apagando fatos e processos. Se toda relação do sujeito com o mundo é mediada pela linguagem, constituída pelo discurso, que mecanismos discursivos fazem significar a realidade tendo em vista essas narrativas sociais? O discurso do anti-herói “A esperança é um urubu pintado de verde.” (Mário Quintana) Não existem heróis sem fãs. Não existem textos sem leitores. Não existem, no tocante aos heróis produzidos pelos discursos, heroificação sem leitores que consumam essas figurações heróicas. No entanto, temos que considerar que os fãs/leitores consomem estes produtos culturais que levam a denominação de heróis, às vezes, de modo muito crítico quando satirizam ou simplesmente ridicularizam esses heróis e, assim, a recepção dos leitores/fãs nem sempre são as melhores possíveis. O herói, na tradição greco-romana – matriz das concepções ocidentais das figurações heróicas – é exemplar, modelar, um paradigma. Assim, quando nos deparamos com as construções/fabricações/invenções contemporâneas, pensamos que, nem seria adequado denominá-las de figurações heróicas. As angústias do “homem” – que homem? – contemporâneo fazem com muitas vezes ele busque escapar ao massacrante e insuportável contingente e rotineiro da vida. Seria melhor recolocarmos as figurações heróicas contemporâneas a partir deste sintoma. Ainda mais quando pensamos nos diversos níveis de compreensão possíveis para as figurações heróicas. Isto é, quando pensamos que classes e grupos sociais se apropriam e resignifiam essas figurações. Vejam a enorme teia de aranhas: heróis, discursos sobre heróis, recepção do público das figurações heróicas. Ou seja, uma 24 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 18-30 <http://www.cienciasecognicao.org/> teia de discursos em que o “herói” se torna difuso. Sem ao menos dizermos uma linha inteira sobre: “os heróis anônimos”, os heróis da véspera, os de circunstância e aqueles que se tornam heróis da circunstância, ou seja, os heróis que os mídia constroem. A heroificação, então, seria aquele processo complexo e difuso pelo qual o herói pode ser todos e ninguém. Certamente, quando o processo de heroificação ocorre, envolve uma relação de Domínio e Poder, ou seja, quando um grupo, classe ou nível institucional se apropria e resignifica uma figuração heróica, esta passa a adquirir novos conteúdos, às vezes, diametralmente opostos dos originários. Quando um intelectual faz uso metafórico, metalingüístico ou parafrasal de uma figura heróica, ele o faz com uma intencionalidade política, econômica ou social, a depender do leitor a quem se destina tal discurso. Desta forma, o falante e o lugar do falante determinam o conteúdo das figurações heróicas. Por outro lado, o receptor destas construções/fabricações/invenções das figurações heróicas não poder ser concebido como um mero receptáculo. Existe um espaço de interferência do interlocutor. Há que se considerar ainda que não há um sujeito consciente de um lado, capaz de manipular um sujeito inconsciente e alienado na outra extremidade. A ideologia atravessa os sujeitos (de ambos os lados) que não detêm de controle consciente sobre o que se enuncia, sobre as implicações ideológicas do que seu dizer propõe. Retomando Bakhtin (1995), temos que a interação é a realidade fundamental da linguagem: as trocas interlocutivas constroem-se mediante a negociação de valores, de sentidos, na remissão a outros dizeres, na atualização de um imaginário historicamente compartilhado. Na perspectiva retórica, estamos diante de um sujeito que manipula conscientemente recursos tendo em vista a adesão do interlocutor. Na perspectiva da AD, não há essa autonomia na construção da persuasão. A eficácia depende, pois, da inscrição do dizer numa dada formação discursiva, que prescreve o que pode ou não ser dito, bem como o modo como as palavras aí significam. Persua- © Ciências & Cognição dir depende, assim, da adesão a certos discursos, que materializam determinados valores ideológicos. Desse modo, não há um sujeito onipotente, que regula o que quer dizer, mas um sujeito histórico, interpelado pelo inconsciente e pela ideologia, que diz o que é possível. A construção de uma figura heróica, portanto, não prevê um sujeito que manipula onipotente a massa de cidadãos indefesos, mas negociação, como porta voz do que naquele momento se edifica para estes como poder e esperança. Assim, ao pretender manipular o outro, o sujeito é também por este manipulado, a ele também se submete. Dando continuidade a esse raciocínio, propomos a seguir a análise de um jingle de campanha política em 2006 (anexo) para o governo de estado. Nesse ano, os brasileiros elegeram por voto direto deputados estaduais e federais, governadores e Presidente da República, o que implicou a mobilização de diversas estratégias de marketing, que parecem ser cada vez mais indispensáveis para a garantia da vitória de um candidato. O jingle, repetido à exaustão em barulhentos carros de som pelas ruas das cidades tocantinenses, acaba por ser memorizado, para o que contribui ainda a própria simpatia pelo ritmo musical. Como predomina no gosto popular da região o forró, os candidatos souberam disso tomar partido, apresentando em suas campanhas animadas composições. Cruzando inúmeras vezes as mesmas ruas, os carros instauravam uma espécie de debate em campo aberto, quando, como ocorre com os repentes nordestinos, uma composição dialogava, respondia, provocava a outra. Caberia, pois, ao eleitor, verificar a consistência das idéias expostas, a melhor argumentação, a resposta mais convincente, atribuir estatuto de credibilidade a esta ou àquela fala, analisando a “verdade” dos versos. Para nossas reflexões, escolhemos um dos jingles do candidato Siqueira Campos. Na história do Estado do Tocantins, Siqueira é um dos personagens que recebe maior destaque. Muitos a ele atribuem a própria responsabilidade pela “criação” do Estado, em 1988, tendo em vista sua atuação como senador e, posteriormente, como governador. Nesse pe- 25 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 18-30 <http://www.cienciasecognicao.org/> ríodo, envia cartilhas às escolas, nas quais se narra a luta pela emancipação do Estado. No texto da cartilha e nas imagens que a ilustram, Siqueira surge como uma espécie de herói que representa os interesses do povo esquecido pelo poder público no então norte de Goiás. O jingle escolhido é constituído por três estrofes e um refrão que inicia a composição: “Mamãe, eu já vou mamãe, eu vou já vou votar 45 pro Siqueira retornar.” Temos aqui um enunciador projetado no texto em 1ª. pessoa (eu), que, como eleitor, comunica sua decisão de votar em Siqueira. Ao longo do texto, esse enunciador deixa clara a existência de uma disputa entre dois candidatos, o que apóia em seu dizer, Siqueira, e o seu opositor, Marcelo Miranda1, a ser desqualificado para o cargo. Caberia, assim, aos demais eleitores, a identificação com os discursos que esse “eu” passa em seguida a arrolar, aoncorando sua decisão. Não há, pois, projetada de forma direta uma enunciação assumida pelo ator candidato, que se encontra aqui na posição de não-pessoa, assunto de que se fala, ausente da cena enunciativa. Ainda projetado no texto está o “tu”, com quem o locutor-enunciador dialoga: Preste atenção, amigo compositor. Este locutor representaria, assim, o eleitorado de Siqueira, falando em nome desses eleitores e, do mesmo modo, por extensão, em nome do próprio candidato. Na segunda estrofe do refrão, surgem dois novos versos: “Dar lapada no bezerro que ele pára de mamar.” No diálogo entre as composições, os nomes dos candidatos com maior número de votos são substituídos pelas metáforas bezerro (correspondendo ao oponente, Marcelo Miranda) e boi velho (Siqueira Campos). No cenário econômico, em que a produção pecuária responde como fundamental fonte de renda para o Estado, o emprego de expressões como essas configura adesão a elementos presentes © Ciências & Cognição no imaginário social. Na composição, a oposição bezerro versus boi velho alude à relação juventude/inexperiência versus velhice/experiência. Assim, o boi velho teria melhores condições de governar o Tocantins porque sabe como fazê-lo, tem grande lastro político, enquanto o opositor é bezerro, animal ainda novo, que ainda mama, submisso e dependente. Ainda considerando a cena nessa narrativa política, a composição atualiza novos sentidos para o verbo mamar. É comum a expressão “mamar nas tetas do Estado”, isto é, apropriar-se indevidamente dos recursos públicos para benefício próprio. Ao bezerro se associa agora a imagem de corrupção, o que é reiterado em outros momentos do jingle: “Não voto em marajá (...) Dar lapada no bezerro que ganha 28 mil (...) Eles têm medo da espora e do chicote que o Siqueira está guardando pra bater em marajá.” Aqui surge outra expressão que alude à corrupção, a do marajá. Na política brasileira, a figura do marajá surge nos anos 80 como adjetivação para os políticos que recebem altos salários, beneficiando-se do poder para garantirem por força do aparato legal salários não condizentes com o exercício do cargo. Em 1989, Fernando Collor elege-se presidente como “caçador de marajás”, preconizando para si o papel de moralizador da política nacional. Na fala do enunciador projetado no jingle, Siqueira vai bater em marajá, fazendo uso de espora e chicote. Trata-se, pois, de um sujeito que pretende moralizar a política pelo emprego da força, enunciando, pois, por um processo polifônico (Bakhtin), o modo como se dá a gestão pública no país e o rigor com que deve ser combatida a corrupção: bater, lapada, espora, chicote, metáforas que mais uma vez remetem ao universo da pecuária, base econômica do estado, e ao caráter das relações de poder e força aí legitimadas. Há, porém, aqui, uma coincidência que aproxima os opositores. Nos versos Pois quem mama é bezerro / Que foi boi velho 26 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 18-30 <http://www.cienciasecognicao.org/> quem criou, identificamos a existência de um contrato inicial entre os dois personagens políticos. O bezerro seria uma “criação” de Siqueira Campos, uma vez que este o teria introduzido na política como uma espécie de continuador de suas propostas, aliado político. A partir desses elementos, podemos constatar que a dissidência não se dá necessariamente no plano das concepções políticas e ideológicas, pelo menos num plano inicial. Se o interesse do enunciador locutor é a de denegrir o opositor, Marcelo Miranda, valorizando aspectos positivos de Campos, aqui vemos que a estratégia argumentativa compromete o segundo. Siqueira é quem “cria” Miranda e o que podemos ler na narrativa é a ocorrência um momento de ruptura entre os dois. A idéia de continuidade e similitude é ainda reforçada pelas próprias metáforas. O bezerro de hoje é o boi de amanhã, ambos compactuam de uma mesma essência, distanciando-se apenas pelo aspecto temporal. O verso, portanto, em vez de servir para reiterar a diferença dos opositores, serve para aproximá-los, confundi-los, mostrando que não falam e legislam de diferentes lugares. Na segunda estrofe, ressalta-se o caráter empreendedor de Siqueira: “Ai, que saudade que eu tenho das grandes obras o que fez de nosso Estado o mais lindo do Brasil” Deixando subentendido que, no governo de Miranda, nesse momento buscando o segundo mandato consecutivo, as grandes obras estariam ausentes. Seria Miranda o marajá, uma vez que seu salário seria de 28 mil, devendo, pois, ser rejeitado pelos eleitores. Na última estrofe, a oposição ao adversário se intensifica, incluindo agora um outro sujeito, “eles”: Eles têm medo da espora e do chicote. Certamente a expressão “eles” corresponde aos aliados de Miranda, derrotados nas urnas: Fique tranqüilo que a lapada é do voto. Nesse momento, por efeito polifônico, evidencia-se a intranqüilidade que poderia ser produzida no interlocutor. O enunciador orienta, assim, para a tranqüilidade, explican- © Ciências & Cognição do o raciocínio: a lapada é do voto. Mais uma vez, a argumentação deixa espaço para dúvidas em relação ao comportamento de Siqueira no poder, no uso que fará da espora e do chicote, que funcionam aqui como uma mostra de poder e intimidação. Pelas histórias que se associam ao comportamento intransigente e intempestivo de Siqueira, a argumentação peca por mais uma vez lembrar que existem motivos para intranqüilidade, justificando o pedido do locutor: Fique tranqüilo. Como se verifica, a persuasão pretendida pelo enunciador esbarra em algumas contradições, que vêm à tona em sua fala. Pretendendo elevar Siqueira e denegrir o opositor, o enunciador acaba trazendo à luz elementos polêmicos, que poderiam comprometer o próprio Siqueira. Retomando Orlandi (1999), lembremos que são as formações discursivas que prescrevem o que pode ou não ser dito. Atualizando discursos que alcançaram legitimidade, o que pode ser polêmico e contraditório deixa de sê-lo na medida em que se verifica a filiação a um dado discurso do qual retira sua lógica. Desse modo, o que o enunciador atualiza na figura de Siqueira é a do político empreendedor, mas de mão forte, com o qual parcela da população se identifica. O caráter autoritário não assusta e, de algum modo, é determinante para o culto a sua figura. Num país em que a democracia ainda engatinha, a concentração de poder ainda é vista como aceitável e natural, legitimada pelo discurso dominante. Siqueira representa a ala pecuarista do Estado, os empresários do agro negócio. Votar nele é, assim, dar continuidade a um projeto econômico, que faz o Estado apontar no cenário nacional como região promissora, atraindo levas de migrantes que podem ou não ler nas entrelinhas dos discursos a assimetria das relações de poder aí estabelecidas, o que por esses discursos é silenciado. O herói político surge, pois, como uma figura um tanto decaída, mas que se sobressai como o que tem condições de fazer o que deve ser feito: gerar empregos, combater a corrupção, fazer obras. Seus pecados são enunciados, ecoando em altíssimo e bom som pelas ruas do país, embora nem tudo possa ser lido ou percebido como pecado. 27 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 18-30 <http://www.cienciasecognicao.org/> Considerações finais A vida cotidiana é permanentemente reinventada desde os mais remotos tempos. No mundo contemporâneo isso se tornou um axioma e um anátema. Os meios de comunicação de massa, os mass mídia reelaboram os conceitos e noções que o homem tem de si e dos “outros”. Estas percepções que são construídas diariamente conduzem a reelaboração do próprio homem. As “sociedades anônimas”, as sociedades plurais, pulverizadas e fluidas do mundo contemporâneo abriram um enorme espaço para essa reelaboração do homem. Nesse espaço aberto agem sem freios os meios de comunicação de massa provocando a sensação de participar e de intervir ilimitadas. Esta digressão tem o propósito de colocar em questão o seguinte: tanto em sociedades orientadas pelo capital como em sociedades não explicitamente orientadas por ele temos uma mídia que constrói, fabrica e inventa herói políticos. Os sistemas sociais em que o eleitor vive é apenas um elemento a mais para compreendermos o processo de mitificação da dimensão política. Os sistemas sociais são elementos nada desprezíveis para essa compreensão. Mas pensamos que a mitificação da dimensão política corresponde simetricamente aos desejos e anseios de proteção, amparo e conforto dos próprios eleitores. Isto é, diante de um mundo com valores essenciais fragmentados as pessoas buscam segurança, proteção, amparo. Nos discursos políticos, essa tônica está presente. Os discursos políticos mobilizam ainda outros valores e princípios que os tornam creditáveis ou pelo menos passíveis de crédito. Um exemplo, dentre tantos, o apelo a Deus, ou mais amplamente, aos sentimentos religiosos e espirituais dos eleitores, como vimos se acionados por Bush como justificativa para a invasão do Iraque. Novamente, estamos diante de uma teia de discursos mediados e matizados pelos meios de comunicação. O discurso político passa a ser mais um produto do mercado de idéias. É vendido, doado, emprestado, permutado em função das © Ciências & Cognição contingências e de circunstâncias que o eleitor não está interessado diretamente em analisar. A vida cotidiana assim mediada, matizada e mitificada pelos meios de comunicação envolve o eleitor com uma fina camada ilusória, superficial e frágil segurança social, que para ele nem sempre é suficiente. Neste quadro, o herói ficcional e o pseudo-herói político se fundam e fundem. Aparecem como os salvadores e protetores de eleitor consciente de sua condição sensivelmente insegura. Isso não significa dizer que o eleitor seja uma marionete ou fantoche nas mãos da mídia, do governo, dos sistemas sociais e muito menos dos políticos. O eleitor sabe quem é quem na dinâmica social. Apenas joga o jogo. Constrói um conjunto de princípios e valores que compõem uma cidadania, no caso brasileiro, uma cidadania fragmentada e parcial, pois a mitificação da dimensão política não é total. A célebre frase dá o tom: “a César o que é de César, a Deus o que é Deus” ainda com o intuito de polemizar e problematizar a figura do herói propomos aqui um reflexão final com base nas reflexões de Michel Maffesoli, com seu Elogio da razão sensível (1998). Este autor afirma que é preciso retornar à vida cotidiana do homem comum e ao seu senso comum de realidade. É preciso observar e compreender como o senso comum constrói a sua compreensão do mundo sensível, i.e., da realidade, propondo uma fenomenologia da vida cotidiana. O século que se inicia exige essa fenomenologia da cotidianidade para entendermos as figurações heróicas e seu estrondoso sucesso e popularidade. Podemos dizer que as figurações heróicas são mistificadoras, reificadoras e alienantes, no entanto, elas permanecem e se multiplicam vigorosamente. À guisa de conclusão e ao mesmo tempo nada concluindo, cabe perguntar: elas não são o alimento de que precisamos para suportar o banal, o ritual rotineiro e a insignificância de nossas vidas intimas e privadas? Poderíamos viver sem as figurações heróicas? Por que as figurativizações heróicas ainda fazem sentido na vida do homem contemporâneo? Referências bibliográficas 28 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 18-30 <http://www.cienciasecognicao.org/> Althusser, L. (1984). Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença/Martins Fontes. Bakhtin, M. (1995). Marxismo e filosofia da linguagem. 7ª Ed. São Paulo: HUCITEC. Castro, H. (1983). Ideologia da obra literária. Rio de Janeiro: Editora Presença. Foucault, M. (1999). A ordem do discurso. (Trad. L.F.A. Sampaio). 5ª Ed. São Paulo: Editora Loyola. Maffesoli, M. (1998). Elogio da razão sensível. (Trad. A.C.M. Stuckenbruck). Petrópolis: Editora Vozes. © Ciências & Cognição Mussalim, F. (2001). Análise do discurso. Em: Mussalim, F. e Bentes, A.C. (Orgs.). Introdução à lingüística: domínios e fronteiras (pp. 101-142). Vol.2. São Paulo: Editora Cortez. Orlandi, E.P. (1999). Análise do discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Editora Pontes. Orlandi, E.P. (2001). Discurso e texto: formação e circulação dos sentidos. Campinas: Editora Pontes. Notas (1) É importante lembrar que para o cargo de governador concorriam outros candidatos, aos quais ao jingle não faz menção. Esse apagamento dos demais concorrentes também é significativo para compreender as relações de poder no Estado. Anexo Jingle de campanha eleitoral no Tocantins, eleições 2006 Refrão 1 2 Mamãe, eu já vou Mamãe, eu vou já Vou votar 45 Pro Siqueira retornar. Mamãe, eu já vou Mamãe, eu vou já Dar lapada no bezerro Que ele pára de mamar. Eu sou capaz. Eu não quero confusão, Não voto em marajá Nem pra ganhar um milhão. Preste atenção, amigo compositor, Pois quem mama é bezerro Que foi boi velho quem criou. Ai, que saudade, Que eu tenho das grandes obras O que fez do nosso Estado o mais lindo do Brasil. Chama Siqueira pra botar as coisas em ordem Dar lapada no bezerro Que ganha 28 mil. Eles têm medo da espora e do chicote Que o Siqueira ta guardando 29 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 18-30 <http://www.cienciasecognicao.org/> 3 © Ciências & Cognição Pra bater em marajá. Fique tranqüilo que a lapada é do voto Nas costas desse bezerro Que vai parar de mamar. 30 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 31-39 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 13/10/2007 | Revisado em 29/11/2007 | Aceito em 29/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007 Artigo Científico Infância, cinema e leitura: um tripé viável Childhood, cinema and reading: a possible tripod Lovani Volmer, a, b e Flávia Brocchetto Ramos, a, c a b Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Santa Cruz do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil; Centro Universitário Feevale, Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul, Brasil; cUniversidade de Caxias do Sul (UCS), Caxias do Sul, Rio Grande do Sul, Brasil Resumo A indústria cultural assimilou o público infantil, de modo que, na atualidade, há, cada vez mais, oferta de produtos culturais voltados para a infância e, por conseguinte, uma preocupação em torno desses produtos. O presente artigo, nesse sentido, objetiva analisar, a partir de pesquisa realizada com 4 crianças, procedimentos empregados durante sessão de filme infantil – Shrek 1. Buscou-se refletir sobre os sentidos produzidos a partir do seu enredo e como percebem a desestereotipização de conceitos preestabelecidos pela sociedade vigente. Para tal, apresenta-se um breve estudo acerca da produção cultural infantil, a contextualização do filme, as observações e comentários das crianças, acompanhados da análise propriamente dita. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 31-39. Palavras-chave: infância; produção cultural; produção de sentidos. Abstract The cultural industry got the children in a way that, nowadays, it is growing the offering of cultural goods to that public and the worries about these products, as well. This article aims to analyze, from a research dare with 4 children´s, the processes that happened during a children´s film session – Shrek 1. We wanted to think about the senses produced from the plot, and also how the children perceive the undo of stereotyped concepts in the society today. Thus, we present a brief study about children´s cultural productions, the film contextualization, the comments and observations from the kids, followed by analyzes. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 31-39. Key Words: childhood; cultural production; construction of meaning. 1. Introdução A comunicação humana, ao longo da história, passou por muitos processos. Inicialmente, os homens comunicavam-se entre si apenas oralmente, depois veio a escrita, a cul- - L. Volmer é Mestranda em Letras (UNISC), Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Especialista em Informática na Educação. Atua como Professora (Escola de Educação Básica Feevale – Escola de Aplicação do Centro Universitário Feevale), onde também atua como Professora no Curso de Letras e no Centro de Idiomas. Endereço para correspondência: Rua Gessé Ávila de Souza, 490, Bairro Independênia, São Leopoldo, RS 93020-290. Telefone: 0XX(51) 3588-7352. E-mail para correspondência: [email protected]. F.B. Ramos é Doutora em Teoria da Literatura (PUC-RS). Atua como Professora do Departamento de Letras (UNISC) e na UCS. Atua ainda como Professora na Pós-graduação (Mestrado em Letras – UNISC). E-mail para correspondência: [email protected]. 31 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 31-39 <http://www.cienciasecognicao.org/> tura impressa e hoje estamos em plena cultura eletrônica. O tratamento dispensado às crianças, igualmente, passou por muitos processos e hoje, cada vez mais, há uma preocupação em torno de produtos culturais voltados para a infância. Nesse ínterim, o presente estudo pretende analisar, a partir de observação realizada com 4 crianças, a leitura que fazem de um filme a elas dirigido – nesse caso, Shrek 1, que sentidos produzem a partir do seu enredo e como percebem a desestereotipização de conceitos preestabelecidos pela sociedade vigente. Com o intuito de elucidar tais questões, apresentar-se-á um breve estudo acerca da formação cultural da criança, a contextualização do filme, as observações e comentários das crianças, acompanhados da análise propriamente dita. Os dados discutidos no artigo nascem da análise de uma situação familiar em que 4 crianças e um familiar assistiram a um filme e, para fins de análise, seguem princípios do estudo de caso, uma modalidade de pesquisa qualitativa que vem ganhando crescente aceitação na área da educação. 2. A formação cultural da criança A concepção de infância, tal como a conhecemos, data do final do século XVII, no início da formação da burguesia, e caracteriza a criança, em diferentes contextos históricos, como um vir-a-ser (Ketzer, 2003), ou seja, o mundo do adulto se diferencia significativamente do mundo da criança. Essa realidade, porém, nem sempre foi assim; até a Idade Média não havia nem mesmo um vocábulo específico para designá-la, era vista como um adulto menor e o esforço social consistia em integrá-la o mais rápido possível na vida adulta (Merten, 2003). A esse respeito, podemos, ainda, destacar Zilberman: “Antes da constituição deste modelo familiar burguês, inexistia uma consideração especial para com a infância. Esta faixa etária não era percebida como um tempo diferente, nem o mundo da criança como um espaço separado. Pequenos e grandes compartilhavam dos mesmos © Ciências & Cognição eventos, porém, nenhum laço amoroso os aproximava. A nova valorização da infância gerou maior união familiar, mas igualmente os meios de controle do desenvolvimento intelectual da criança e a manipulação de suas emoções.” (Zilberman, 1998:15) Como podemos ver, essa nova concepção de infância não considera mais a criança como um adulto em miniatura, quando o que era útil para um adulto também o seria para a criança. A realidade do infante é diferente da do adulto, “assim como a sua mente não é a mente de um adulto em escala menor” (Vigotski, 2003: 12); é todo um processo, um modo de vida que leva a criança a passar gradativamente de uma posição subjetiva e egocêntrica para outra, mais objetiva e científica. Esse processo é definido por Piaget (1980), como períodos de desenvolvimento, que, na sua concepção, seriam quatro: período sensório-motor (0-2 anos), período pré-operacional (2-7 anos), período operacional-concreto (711 anos) e período de operações formais (1115 anos). Na atual sociedade capitalista em que vivemos, não é equivocado afirmar que a concepção de infância está diretamente relacionada à classe social a que a criança pertence e, nesse sentido, a sua formação cultural depende também desse fator. Assim, poderíamos dizer que as crianças burguesas são instrumentalizadas para dirigir a sociedade e as crianças da classe trabalhadora formadas para o trabalho; a cultura é coisificada, tornando-se produto que serve tanto para a distinção de classes, como para a alienação e dominação das maiorias. A cultura aparece como sendo simplesmente o resultado de um processo, a herança social, o dado acabado, o objeto estático. Os produtos culturais seriam a expressão de um modo de vida determinado que, enquanto tal, se explicam e se justificam. Reduzido a produto das relações sociais, não se incluiriam no conceito de cultura nem as próprias relações sociais nem os seus determinantes (Perroti, 1990). A coisificação da cultura determina a inserção desta no mundo da produção capitalista, na qual se quantificam, 32 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 31-39 <http://www.cienciasecognicao.org/> secularizam, normatizam e mercantilizam os bens produzidos nas relações de trabalho humanamente significativas. Desse modo, a cultura exerce uma função domesticadora e repressiva nas sociedades divididas em classes, exercendo o papel de veiculação dos conteúdos ideológicos das classes dominantes para todas as classes sociais. Nesse contexto, a criança assume o papel de consumidora de bens culturais impostos socialmente, pois somente assim poderá tornar-se um “ser humano evoluído”, adaptado às regras da sociedade e capaz de assumir suas funções sociais. Conforme Umberto Eco (1976), criam-se “estruturas de consolação”; oferece-se à criança a possibilidade de ela viver através de produtos culturais aquilo que a expansão capitalista lhe nega no real: o roubo do espaço e o bloqueio do lúdico – tenta-se compensar o real com o simbólico. Em outras palavras, a indústria cultural, que ajuda a construir significados simbólicos, encontrase intimamente vincu-lada aos ditames impostos pelas leis de mercado. Com o advento do neoliberalismo e da globalização do capital, o mercado passou a incorporar todos os segmentos da sociedade sob a lógica do consumo, desde recémnascidos até idosos, independente de etnia, raça, credo, classe ou gênero. O mercado observa no público infantil um consumidor potencial de mercadorias culturais e não culturais, criando, dessa forma, condições para se consolidar uma rede de comércio que atenda a demanda de consumo desse novo público. Esse mercado infantil constitui-se desde produtos tradicionais (brinquedos, livros) até a adaptação de produtos adultos e de consumo familiar. A indústria cultural assimilou o mercado infantil, que tem se expandido desde a década de 1980, para a comercialização de bens simbólicos através da segmentação dos meios de comunicação, por exemplo. Nesse sentido, os produtos culturais comercializados para este público formam uma cadeia inesgotável de produção e massificação de mercadorias. Exemplo disso são os desenhos animados explorados pela mídia, produzidos a partir de agenciamento de empresas que irão elaborar, produzir e comercializar uma infinidade © Ciências & Cognição de produtos timbrados com o nome dos mais novos ídolos infantis da moda. Um exemplo dessa produção cultural para crianças é o filme Shrek, com o qual a DreamWorks firma-se como produtora de filmes infantis da melhor qualidade e cujo diferencial está no uso de recursos de computação que torna os personagens, visualmente, quase reais. Eles têm movimentos e recriações de músculos, pele, ossos e cabelos. 3. O filme Shrek 3.1. O enredo Em Shrek 1, é contada a história de um ogro solitário, Shrek, que vive em um pântano distante e vê, sem mais nem menos, sua vida ser invadida por uma série de personagens de contos de fada, como três ratos cegos, o lobo de Chapeuzinho Vermelho disfarçado de vovó, três porquinhos, Pinóquio, sete anões e a Branca de Neve, fadas... Todos foram expulsos de seus lares pelo maligno Lorde Farquaad. Determinado a recuperar a tranqüilidade de antes, Shrek resolve encontrar Farquaad e com ele faz um acordo: todos os personagens poderiam retornar aos seus lares se ele e seu amigo Burro resgatassem uma bela princesa, prisioneira de um dragão, com quem Lorde pretendia se casar. O filme em questão foge, em alguns pontos, de estereótipos da sociedade; conceitos, comportamentos já estabelecidos socialmente são aqui contrapostos. Sob esse aspecto, poderíamos até considerar Shrek como um conto de fadas moderno; oferece ao espectador a possibilidade de rever conceitos. A princesa Fiona esperava que o príncipe que a encontrasse lhe recitasse um poema épico, mas Shrek apenas a põe embaixo do braço e sai correndo para fugir do dragão, sem romantismo. A Princesa Fiona, por sua vez, apesar de ainda ter certa fantasia em relação ao cavaleiro que a salvaria, também é uma mulher decidida, dá golpes para fugir dos inimigos, salta e até arrota, diferentemente das princesas apresentadas nos contos de fadas, que eram totalmente frágeis e românticas. O final, como os clássicos contos de fadas, é feliz e alerta que as diferenças entre 33 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 31-39 <http://www.cienciasecognicao.org/> as pessoas devem ser respeitadas: Shrek e Fiona, após passarem por muitos desafios, ficam juntos, como ogros, e são felizes para sempre. Casam-se numa bela cerimônia com a presença animada das personagens de contos de fadas que haviam invadido o pântano e, a seguir, em uma carruagem, vão para a lua-demel. O esquema tradicional do conto maravilhoso, proposto por Propp (1984), em que há herói, auxiliar, antagonista e princesa, é subvertido aqui. O príncipe, nessa história, assume o papel de antagonista. O ogro Shrek, que seria o antagonista é o herói da narrativa. A princesa Fiona não segue o padrão de princesa que temos no nosso imaginário – é gorda, morena, baixa, cabelos curtos – e transforma-se em ogra. O burro, animal caracterizado pela falta de iniciativa, é o auxiliar do herói Shrek. Há uma subversão da estrutura clássica dos contos de magia apontada por Propp, já os personagens dessa narrativa moderna correspondem a outra esfera de ação. © Ciências & Cognição Shrek é um exemplo de tecnologia de ponta, mas nem por isso um velho conhecido, o livro, introdutor da produção cultural para a criança e uma das primeiras manifestações baratas e acessíveis de entretenimento (Lajolo e Zilberman, 1996), foi esquecido. Em Shrek 1, já nas cenas iniciais, na imaterialidade da tela, surge o livro, de capa dura e vermelha, cujas páginas escritas e ilustradas abrem-se e vão sendo viradas, acompanhadas de uma voz que diz: “Era uma vez uma linda princesa, mas havia um terrível feitiço sobre ela, que só poderia ser quebrado pelo primeiro beijo do amor. Ela foi trancafiada num castelo, guardada por um terrível dragão que cuspia fogo. Muitos bravos cavaleiros tentaram libertá-la dessa horrível prisão, mas ninguém conseguiu. Ela esperou, sob a guarda do dragão, no quarto mais alto da torre mais alta o seu verdadeiro amor e pelo primeiro beijo de seu verdadeiro amor.” 3.2. Shrek 1 sob a ótica da criança Como as crianças lêem o filme? Que sentidos produzem a partir do enredo? Como percebem a desestereotipização de conceitos preestabelecidos pela sociedade vigente? Com o intuito de elucidar tais questões, 4 crianças aqui identificadas por letras do alfabeto: A (3 anos), B (5 anos), C (6 anos) e D (9 anos) assistiram ao filme. Durante a sessão houve interlocução como os sujeitos, a partir de um roteiro previamente estabelecido, focando os itens supracitados, mas com flexibilidade para valer-se das contribuições espontâneas das crianças. Cabe destacar que a pesquisadora possui grau de parentesco com as crianças, de forma que o filme foi assistido num ambiente totalmente descontraído e os sujeitos tiveram total liberdade para se manifestar. Toda a sessão foi gravada em audiotape e, posteriormente, transcrita. Destaca-se que A e C não freqüentam a escola, B está na escola desde os 4 anos e D passou para a 4ª série. O filme foi escolhido por ser considerado emancipatório e por responder as questões propostas pelo estudo. Neste momento, uma enorme mão (de Shrek) arranca a última página narrada e faz o seguinte comentário: “Como se isso fosse acontecer”. Quando as crianças foram indagadas a respeito de isso ser possível de acontecer ou não, D disse que não poderia ser real, pois “ogros não existem”, mas B contrapôs, ponderando: “Ah, mas naquela época podia existir, na época que existia Dinossauro”. A ressalta que existe, pois estava na TV; C disse que não sabia. Quanto à pergunta de onde mais poderia vir a história, a princípio, se calaram, então foram indagadas se essa história poderia sair de um jornal, por exemplo. Imediatamente D disse que não; “jornal tem notícia de verdade, livro tem história”. B concordou e acrescentou: “livro conta história real e não, porque tem coisa que existe e que não existe, como ogro, sereia, isso é tudo lenda”. Então, a pesquisadora perguntou o que era lenda. D disse que é o que não existe e que nunca vai existir. B, que havia estudado a respeito desse assunto na Educação Infantil, exemplificou: “É tipo a sereia, ela cantava e levava os homens para o fundo do mar e de- 34 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 31-39 <http://www.cienciasecognicao.org/> vorava eles e daí cantava de novo, e o curupira e...”. D concordou com o exemplo. A argumentou que poderia sair do computador e, ao ser interrogada acerca do porquê, apenas respondeu: “porque sim, como o livro do Pooh” (vale explicar que A brinca no computador com livros digitais, entre eles o do Pooh). C, mais uma vez, ficou calada. Aqui, podemos perceber a noção que essas crianças já têm acerca dos gêneros textuais, que, para Marcuschi (2003), são propiciados pelas novas tecnologias, o seu uso e suas inferências nas atividades comunicativas diárias, especialmente nas ligadas à comunicação. À medida que o filme ia se passando, os comentários das crianças eram espontâneos e muito apegados a detalhes, tais como: B: Oh, ele escova os dentes e a pasta de dente dele é veneno de bicho. A: Eca, a pasta de dente não é de morango. Cabe destacar que a criança atribui sentido às coisas a partir das suas vivências, ou seja, o sentido nasce a partir do lugar do leitor, sendo que o que é diferente do seu mundo conhecido não é bom; o conceito do que é certo ou errado, do que pode ou não tem como pressuposto o mundo vivido. No momento em que as personagens de contos de fada invadem o pântano de Shrek, as crianças foram indagadas acerca de serem conhecidas ou não. D disse que já lera um livro do Pinóquio e outro da Branca de Neve. B foi além em sua resposta: “Ah, todos são coisas, coisas, ah, assim, de contos de fadas; a Branca de Neve, os três Ratinhos, ah, de livros. Ah, e eu acho que o Shrek já leu todas essas histórias, por isso que ele sabe quem são, ou a mãe dele, a profe contou”. Indagados se ogro ia à escola, B prontamente disse que sim, pois ele sabia ler. Aí podemos perceber claramente a função social da escola na concepção dessa criança, ou seja, ensinar a ler. Além disso, cabe destacar nesse comentário, mais uma vez, a vivência da criança, que atribui a contação de histórias à mãe ou à “profe”, tal qual acontece em seu cotidiano. Quando apareceu a Branca de Neve, B e D dialogaram a respeito: © Ciências & Cognição D: Oh, o espelho mágico da Branca de Neve. B: É, tem uma rainha má que pergunta: “espelho, espelho meu, existe alguém mais linda do que eu?” (ao mesmo tempo em que falava, interpretava e era imitada por A). Alguns estudos apresentados por Caparelli (1990), acerca da fantasia e da realidade no contexto infantil, mostram que com a idade de 3 anos inicia-se o fascínio pelo movimento e as crianças já podem seguir um enredo simples, começam a distinguir as ações do seu mundo cotidiano para lentamente integrá-los no mundo imaginário. Nessa idade, a criança seleciona aquilo que quer ver e tem forte tendência a imitar aquilo que lhe desperta a atenção, o que prossegue até os 4, 5 anos, quando a criança está afirmando seu próprio eu. Em um processo de evolução contínuo, a criança percebe, aos poucos, que os filmes que vê pertencem apenas ao domínio da fantasia. Essa tarefa, no entanto, não é fácil, se levarmos em consideração que muitos adultos enfrentam dificuldades em separar a realidade da ficção quando, por exemplo, assistem a alguma novela. Constatamos que B, com 5 anos, está na fase de transição, pois ora consegue perceber que é “apenas um filme”, ora diz que algo não é possível “porque não existe”. Continuando a conversa sobre a Branca de Neve... D: A rainha era má porque queria matar a Branca de Neve. B: É, ela quer ser a mais bela de todas e quer que todos se apaixonem por ela. Aqui, a presença das personagens de contos de fadas só foi percebida pelas crianças, porque a leitura desses contos fora feita e/ou contada/ouvida anteriormente ao filme, caso contrário não se perceberiam essa intertextualidade. Assim, a leitura, de uma ou outra forma, faz parte do mundo dessas crianças. Destaca-se que C convive num ambiente totalmente adverso; não recebe estímulos acerca de leituras ou um acompanhamento mais direto no que diz respeito à sua educação; seus 35 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 31-39 <http://www.cienciasecognicao.org/> conhecimentos advêm da famosa babá eletrônica, ou seja, ela apenas recebe, de forma passiva, aquilo que a TV veicula, o que reflete nas suas contribuições, que são poucas. Apesar de ser mais velha que B, cognitivamente, está aquém. Aí, podemos perceber o quanto o desenvolvimento humano dá-se de fora para dentro; a aprendizagem promove o desenvolvimento, somos o resultado da interação com o meio (Vigotski, 2003). Em outro texto, esse mesmo estudioso afirma que “a atividade criadora da imaginação se encontra em relação direta com a riqueza e a variedade da experiência acumulada pelo homem, porque esta experiência é o material com o qual constrói seus edifícios de fantasia” (Vigotski, 1996:17). Quando indagadas sobre quem é do mal no filme, responderam: D: O dragão, os guardas e o Lorde Farquaad são do mal. B: É sim, eles querem matar o ogro, o Lorde quer casar com a princesa. D: Eu torço pro Shrek, porque ele é do bem. B: É sim “D”, ele é do bem porque briga com os do mal e quem é do mal é amigo dos do mal, então ele é do bem. A e C não se pronunciaram. Cabe destacar que A falou pouco durante a exibição de todo o filme; passou a maior parte do tempo dançando, conforme a trilha sonora. Interrogadas a respeito da beleza de Shrek e Fiona, B e D consideraram o ogro bonito por ser do bem; A disse que era feio, porque não usava roupa direito e “andá pelado é feio”; já C disse que ele era feio, porque era ogro e ogro é feio. Nesse comentário da criança, podemos perceber certo determinismo, ou seja, as coisas já são preestabelecidas; o estereótipo do que é certo e errado, do que é feio e bonito, conforme os padrões impostos pela sociedade. Quanto à Fiona, B disse que, como “ogra”, ela era mais bonita, porque daí ela não era tão magrinha, “muito magrinha é feio, daí tem aquela doença (referiu-se à anorexia e bulimia), muito gorda também, como eu, aí tá bom”. As outras três apenas concordaram. Aqui podemos perceber a leitura de © Ciências & Cognição mundo feita por essas crianças, além do quanto assuntos tratados pela mídia fazem parte do seu cotidiano, especialmente tomando como referência o comentário de B, que também mostra certo egocentrismo, ou seja, “eu” sou padrão, “se for como eu está bom”. Assistindo às façanhas de Shrek e Fiona, quando estes estavam dirigindo-se ao castelo de Lorde Farquaad, as crianças acompanhavam entusiasmadas a melodia da trilha sonora e perguntavam-se, por vezes, como tal coisa era possível. B, inclusive, disse que pediria para seu pai fazer um churrasco de ratos, pois parecia gostoso. Quando aparece o castelo de Lorde Farquaad, D imediatamente disse: “Parece grande, mas não é, porque o Lorde é anão, mas é príncipe”. Indagada se anão não poderia ser príncipe, B disse: “Se a princesa for (anã), claro que sim, senão não pode; não combina”. Esse comentário demonstra o quanto uma criança de 5 anos já tem alguns preconceitos vigentes na sociedade bem explícitos. Possivelmente, o motivo de comentar que “não combina” deve-se ao fato de, no geral, casais serem formados por homem e mulher, de estatura mais os menos similar. Os outros sujeitos não responderam o questionamento, mas concordaram (C e D) com a resposta de B. A divertia-se, imitando algumas falas e rindo. É interessante, também, destacar a percepção das crianças sobre aquilo que não foi dito, como dados provenientes do cenário, que o olhar permite compreender. Aqui cabe salientar a importância da visualidade; não é preciso falar, basta mostrar; a imagem tem significados próprios, independente do texto que ela acompanha (Camargo, 2003). O autor faz referência à imagem num livro, mas caberia muito bem também para a imagem no filme: B: O Shrek olha assim, porque ele tá apaixonado. D: É sim, ele faz essa cara porque gosta da princesa. Ele acha que não pode casar com ela porque ele é ogro, mas pode sim. Porque não importa, se é branco ou preto, pode ficar junto, também se é separado; ela ama ele. 36 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 31-39 <http://www.cienciasecognicao.org/> Cabe salientar que os pais dessa criança são separados, o que, mais uma vez, permite-nos perceber que a leitura é feita a partir dos elementos do contexto do sujeito. B: Ela pode, mas eu nunca li uma história que uma princesa casou com um lenhador, um trabalhador, um ogro. Se ela virar ogra, ela pode. Nesse comentário, fica claro, mais uma vez, que ela percebeu a subversão, mas como não é algo com que se depare todos os dias, vê com estranhamento. Vale chamar a atenção, ainda, para o seu conceito de leitura, ou seja, ler vai além das palavras; as imagens também são lidas. D: Ah, mas o que adianta se casar com uma pessoa bonita, se ela vai trair. B: É, mas é outra espécie: ogro com ogro, gente com gente. Pato também não casa com peixe só porque nada. Ah, e o Lorde é mais ou menos bonito. Bonito porque é príncipe; feio porque é do mal. Aí, deparamo-nos com certo determinismo, ou seja, as pessoas, por exemplo, são feias ou bonitas de acordo com a sua função social e o comportamento que têm na sociedade, mas, por outro lado, a beleza não é vista como algo fútil, uma vez que a pessoa também é valorizada pela sua subjetividade. As crianças percebem não apenas o que é dito, mas o que é mostrado visualmente no filme, de modo que o estado emocional das personagens é foco de observação e de comentário: A: Olha, a Fiona tá triste. D: É, é porque ela ama o Shrek. B: Ela não pode casar com o Lorde, ela não gosta dele. Meu pai casou com a minha mãe porque gosta dela. C: Olha, o dragão não tá brabo porque é o amor do burro. B: Ah, mas não pode, é outra espécie. Ah, mas é só um filme, né?!? D: É, daí pode. © Ciências & Cognição Essa constatação de B faz lembrar Iser (1996), para quem o texto ficcional contém muitos fragmentos identificáveis da realidade, que, através da seleção, são retirados tanto do contexto sociocultural quanto da literatura prévia ao texto. Assim, retorna ao texto ficcional uma realidade de todo reconhecível, posta, entretanto, sob o signo do fingimento. Com isso, se revela uma conseqüência importante do desnudamento da ficção; pelo reconhecimento do fingir, todo o mundo organizado no texto literário transforma-se em um como se. O como se significa que o mundo representado não é propriamente mundo, mas que, por efeito de um determinado fim, deve ser representado como se fosse. Nesse sentido, como se pode ser denominado de imaginário porque os atos de fingir se relacionam com o imaginário. O mundo relacionado no texto não se refere a si mesmo e, por seu caráter remissivo, representa algo diverso de si próprio; o mundo concebido é apenas um mundo possível, de um lado se diferenciando daqueles mundos de cujo material foi feito e, de outro, oferece uma marcação para uma realidade a ser imaginada. Lembrando Lajolo e Zilberman (1996), que fazem referência aos tipos de leitor, podemos perceber aí um espectador capaz de estabelecer a necessária distância entre o visto e o vivido. Ao final do filme, o livro aberto no início fecha-se e o narrador conclui: “E viveram felizes para sempre”, retomando o final dos contos de fadas. Nesse momento, D comenta: “A história começa e termina com o livro. O livro se fechou, porque no início abriu. Ao invés de ler, a gente viu o filme”. Então, foi perguntado às crianças se haviam gostado desse final e, pelas respostas, é possível perceber que B e D conseguiram estabelecer relação entre o desfecho do filme e o seu enredo, essas crianças inseriram o texto na moldura do livro; enquanto A e C apegaram-se apenas às cenas finais, desconectadas da abertura e do fechamento do filme; ativeram-se apenas à história contada, não percebendo o modo como se dá a conhecer. D: Sim, porque o bem venceu o mal. 37 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 31-39 <http://www.cienciasecognicao.org/> B: É, o mal tem que perder, e o Shrek amava a Fiona e a Fiona amava o Shrek, então ela não podia casar com outro só porque era rei. A: Ah, eu gostei porque o burro fala, é legal. C: Eu gostei, porque a música é legal. O julgamento que possibilita o gostar ou não de um objeto artístico nessa etapa da vida ainda está ligado a aspectos isolados como um detalhe, a atuação de um personagem, a um fragmento da ação. 4. Tecendo algumas considerações Shrek coloca os heróis numa posição de autonomia em relação a uma instância superior e dominadora, por isso, poderíamos considerá-lo como um exemplo de filme emancipatório. Além disso, subverte padrões de integração social tradicionalmente consagra-dos, uma vez que não é preciso, por exemplo, ser belo para ser rei ou rainha ou ser feliz; Fiona ama Shrek como ele realmente é e vice-versa. É importante destacar que essa desesteriotipização, como averiguado nos comentários dos sujeitos dessa pesquisa, é perceptível pelas crianças, o que lhes permite tomar contato com padrões diferentes daqueles que a sociedade lhes impõe a cada dia, especialmente por intermédio da mídia, e questioná-los, não simplesmente e passivamente aceitá-los. O filme permite discutir os valores emergentes na sociedade, principalmente no que diz respeito às relações de dependência e sujeição que se estabelecem entre os indivíduos, bem como do quanto somos “produto” do meio em que estamos inseridos. Nesse sentido, podemos ler a sociedade e os seus valores sendo questionados; o rei, por exemplo, não era aclamado pelo povo, mas as placas indicavam a reação que as pessoas deveriam ter diante do que estava sendo dito ou acontecendo, deixando a falsa impressão de o poderoso estar agradando. A própria reação de Fiona ao ser resgatada - esperava um comportamento-padrão, digno de um rei - também remete-nos à sociedade burguesa e seus valores, cabendo aos cidadãos, burgueses ou não, terem esse determinado comportamento como © Ciências & Cognição pré-requisito para serem aceitos ou não nessa sociedade. A própria instituição casamento nessa classe social é questionada, quando o burro diz que “casamento de gente famosa não dura” – o casamento de Fiona, a princípio era arranjado com o Lorde Farquaad. Todos esses elementos possibilitam à criança um olhar peculiar acerca dos valores da sociedade na qual estão inseridas. Cabe destacar, ainda, que a questão central que move esse estudo é como a criança lê o filme. A partir desse foco, expôs-se um grupo de 4 sujeitos ao filme Shrek e, frente à situação, podemos afirmar que: o fato de o pesquisador conhecer as crianças gerou um clima de descontração, permitindo aos expectadores falar sobre o visto e o vivido; parte dos sujeitos reconhece a presença do livro na abertura e fechamento do filme, associando-o ao ato de ouvir histórias; a significação do texto dá-se a partir das vivências dos infantes, já revelando posturas preconceituosas; e, por último, na discussão do visto, as posições de cada sujeito vão sendo negociadas. Na atualidade, é possível depararmonos com uma oferta cada vez maior de produção cultural direcionada ao público infantil, acompanhada, cada vez mais, de inovações tecnológicas. Os filmes, nesse sentido, podem ser uma ferramenta útil para o (auto) conhecimento das crianças e sua inserção no mundo. É importante, porém, cada vez mais, orientar as crianças para ver filmes que ampliem esse olhar, esse conhecer. Para ler, seja o livro, seja o filme – ambos objetos artísticos - o interlocutor deveria pôr em ação seu imaginário, participando na figuração do universo proposto como um co-autor, identificando-se com os seres fictícios. 5. Referências bibliográficas Camargo, L. (2003). Para que serve um livro com ilustrações? Em: Jacoby, S. (Org.). A criança e a produção cultural. Do brinquedo à literatura (pp. 273-301). Porto Alegre: Mercado Aberto. Caparelli, S. (1990). Televisão, programas infantis e a criança. Em: Zilberman, R. 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Da mesma forma, são definidas as linhas teóricas que orientam a intervenção através de uma determinada perspectiva do conhecimento, onde demonstramos que existe uma teoria totalmente desenvolvida, baseada em uma ampla gama de evidências empíricas e que é factível de ser aplicada a um programa de intervenção orientado. Assim, tomamos como base construções que direcionam as caracteristicas do o que, o por que e o como da orientação no momento que a eleva à prática, através de programas dirigidos aos centros escolares e a sala de aula que tenham a intenção de prevenir, desenvolver, intervir e ajudar a diversidade a partir da relevância social. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 40-50. Palavras-chaves: limites; intervenção programa; orientação; atenção para a diversidade. Resumen En la investigación nos hemos reposicionado líneas de intervención entorno a los presupuestos teóricos, metodológicos y prácticos para la configuración de un programa de intervención educativa a nivel de los centros escolares, aula y contexto comunitario. Así mismo se definen las líneas teóricas que orientan la intervención hacía una determinada perspectiva del conocimiento, donde demostramos que existe una teoría completamente desarrollada, con abundante evidencia empírica y factible de ser aplicada a un programa de intervención en orientación. En consecuencia nos apropiamos de constructos que direccionen el qué, él por qué y el cómo de la orientación al momento de elevarla a la praxis mediante programas dirigidos a los centros escolares y al aula que tengan la intención de prevenir, desarrollar, intervenir y atender la diversidad desde la pertinencia social. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 40-50. Palabras claves: lineamientos; intervención programa; orientación; atención a la diversidad. - D.L.M. Contreras es Doctora en Diseño Curricular (Universidad de Valladolid). Actúa como Profesora Asociado de la Universidad Nacional Experimental de los Llanos Occidentales Ezequiel Zamora, con estudios en Diseño Curricular, especialista en Orientación Educativa y con Postgrado en Orientación y Docencia Universitaria. BarinasVenezuela, Profesora Investigadora Nivel I PPI, Ministerio de Ciencia y Tecnología. Caracas Venezuela. E-mails para correspondência: [email protected], [email protected] y [email protected]. 40 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 40-50 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Abstract In this investigation we repositionate intervention ways about theoretical, methodological and practical assumptions used for the configuration of an educational intervention program at the school centers, classroom and community. Similarly, the theoretical pathways are defined that guide intervention through one perspective of knowledge, which demonstrated that there is a fully developed theory, based on a broad range of empirical evidence and that it is feasible to be applied to a program of oriented intervention. Thus, we take as basic constructions that directed the characteristics of what, why and how of guidance at the time that the amounts to the practice, through programs directed to schools and the classroom that they intend to prevent, develop, operate the diversity and help from the social relevance. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 40-50. Key Words: limits; intervention programs; orientation; attention to the diversity. 1. Líneas teóricas que orientan la investigación 1.1. Conceptualización de programa y de orientación educativa La configuración de un programa de orientación educativa dirigido a los alumnos, agentes educativos y comunidad en general, nos lleva a manejar una diversidad de definiciones sobre programas de orientación, que se han construido a lo largo de las últimas décadas, y van desde concebirlos como instrumentos para la asistencia de la persona, hasta, asumirlos como medios que recogen el concepto de prevención, desarrollo, atención a la diversidad e intervención social. En efecto la investigación que abordamos exige reposicionarse de conceptos y teorías que definen la orientación educativa, programa de intervención, y eleventos que constituyen el hilo conductor del estudio para la configuración de lineamientos finales como principal aporte de la investigación. El concepto de programa que manejamos parte de la orientación como proceso en donde la escuela, familia y sociedad, han de asumir un papel activo, en la definición del conjunto de actividades integradas en los ejes de: enseñar a pensar, enseñar a ser persona, enseñar a convivir, enseñar a comportarse y enseñar a decidirse, facilitan el proceso de intervención en orientación. Si consideramos a la orientación para la prevención, desarrollo y atención a la diversidad, que implica planificación y sistematización de acciones para la toma de decisio- nes e impulsa el desarrollo de habilidades personales y sociales, necesariamente nos inclinamos por un modelo de intervención grupal por programas como la forma más pertinente de ofrecer una orientación ecológica en los centros escolares. En un acercamiento al concepto de programa, encontramos que no existe una definición única, al contrario, contamos con una pluralidad de conceptos con elementos comunes. En sentido general, un programa es un plan o sistema bajo el cual una acción está dirigida hacia la consecución de una meta (Aubrey, 1982: 53). Desde un enfoque similar, Riart (1996: 50), entiende que programa “es una planificación y ejecución en determinados períodos de unos contenidos, encaminados a lograr unos objetivos establecidos a partir de las necesidades de las personas, grupos o instituciones inmersas en un contexto espaciotemporal determinado”. En el ámbito de la enseñanza, Morrill (1990), expresa que el programa “es una experiencia de aprendizaje planificada, estructurada, y diseñada para satisfacer las necesidades de los estudiantes”. Con una visión sistémica, Repetto, et al.(1994), entienden por programa el diseño teóricamente fundamentado que pretende lograr unos determinados objetivos dentro del contexto de una institución educativa. Desde un enfoque más centrado en la orientación, para Rodríguez y colaboradores (1999): 41 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 40-50 <http://www.cienciasecognicao.org/> “Un programa es un instrumento rector de principios que contiene en su estructura elementos significativos que orientan la concepción del hombre que queremos formar. Desde el punto de vista de la orientación, los programas son acciones sistemáticas, cuidadosamente planificadas orientadas a unas metas, como respuesta a las necesidades educativas de los alumnos padres y /o representantes, docentes, insertos en la realidad de un centro.” En esta misma línea, para Bisquerra (1998), un programa es una acción colectiva de un equipo orientador para el diseño teóricamente fundamentado, aplicación y evaluación de un proyecto, que pretende lograr unos determinados objetivos dentro del contexto de una institución educativa, de la familia o de la comunidad, donde previamente se han identificado y priorizado las necesidades de intervención. Siguiendo un enfoque integral, Velaz de Medrano (1998: 256) ha tratado de integrar en una definición los elementos comunes que caracterizan los programas de orientación educativa, considerando que un programa de orientación es un sistema que fundamenta, sistematiza y ordena la intervención psicopedagógica comprensiva orientada a priorizar y satisfacer las necesidades de desarrollo o de asesoramiento detectadas en los distintos destinatarios de dicha intervención. Las definiciones anteriores suministran elementos significativos a partir de los cuales nos hemos reposicionado para construir una definición de programa dirigido a la prevención, desarrollo y asistencia del alumno en edad escolar. Desde esta perspectiva, el programa se concibe como un instrumento teórico-operativo que orienta, guía y contextualiza el acto de orientar, en función de la concepción del hombre que queremos formar, de orientación, de enseñanza y el concepto de currículo, además de las necesidades de los sujetos a quienes va dirigido el programa y los recursos factibles para su operacionalización. © Ciências & Cognição Desde la perspectiva de la integralidad la orientación educativa en la escuela básica se considera un proceso continuo que comienza en el nivel inicial y se ofrece durante toda la vida. Se concibe como parte integrante del proceso educativo y por tanto es responsabilidad de todos los agentes educativos; padres, docentes, directores, comunidad y los propios alumnos. De allí, que en la investigación asumimos, la orientación educativa como un proceso que implica promover la integración, socialización y adaptación del alumno, así como ayudarlo y guiarlo hacia el conocimiento de sí mismo. La actuación orientadora en centros escolares no puede concentrarse al margen de la actividad educativa ordinaria. Al contrario, ha de incorporarse a ella, atendiendo el carácter personalizado de la educación y caracterizándose por ser global, integral y realista en función de las necesidades de sus destinatarios. 1.2. Elementos orientadores para la configuración de una programa de orientación Las líneas teóricas que se manejan en el apartado anterior nos llevo a la realización de las siguientes precisiones con respecto a los elementos orientadores y guías para efectos de construcción de un programa de orientación: A quién va dirigido el programa? es fundamental precisar quienes son los beneficiarios del programa, ya que todos los alumnos tienen derecho a la orientación. Si se trata de un programa de prevención primaria es conveniente integrar el mayor número de alumnos. También, debemos tener presente a los profesores y agentes educativos, como sujetos claves del proceso orientador. ¿Él para qué? es otro de los elementos del programa que implica delimitar los objetivos: estos nos avanzan lo que se pretende conseguir en un ámbito determinado, que puede responder a una o varias áreas del desarrollo: personal-social, escolar o vocacional. Los objetivos generales de carácter más amplio, se pueden pormenorizar a nivel de objetivos específicos. 42 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 40-50 <http://www.cienciasecognicao.org/> ¿El qué? representa los contenidos, que constituyen los núcleos temáticos del programa vinculados a cada objetivo específico. Si lo que planteamos en los objetivos es la formación hábitos de trabajo cooperativo, la autoestima, la promoción del aprendizaje significativo, los contenidos deben representar estos tópicos, los cuales aportan un conjunto de elementos que facilitan el logro de los objetivos que se persiguen. ¿El cómo? determina las estrategias a utilizar para el logro de los objetivos. Para la selección de las actividades debemos tener en cuenta los beneficiarios, los objetivos y contenidos. Las estrategias deben ser flexibles, dinámicas y responder a las necesidades, expectativas e intereses de quienes intervienen en el programa. ¿El con qué? tiene que ver con los recursos humanos, institucionales y financieros que se disponen para la implementación del programa. Este elemento hace posible su ejecución y determina el grado de compromiso de los agentes educativos. ¿El cuándo?, obliga necesariamente al establecimiento de la secuencia de ejecución del programa e incluye su temporalización ó cronograma. Y finalmente ¿El dónde?, invita necesariamente a delimitar geográficamente y espacialmente el ámbito donde se llevará a cabo la intervención, ya sea el centro escolar, la etapa educativa, el grado o los grados o la sección. 2. Objetivos de la investigación • • • Analizar lineamientos a considerar para formular un programa de intervención Determinar el concepto de orientación educativa que manejan los alumnos y agentes educativos Definir lineamientos para la configuración de un programa de intervención en orientación educativa 3. Metodología La metodología que se ha empleado en esta investigación se ubica según los obje- © Ciências & Cognição tivos en el paradigma cualitativo, el cual otorga significado a la valoración de los comportamientos, experiencias y saberes de los actores que intervienen en la investigación. La investigación cualitativa según, Denzin y colaboradores (1994), es “un proceso que integra actividades genéricas, interconectadas entre sí, que toman diferentes nombres incluyendo teorías, métodos, análisis, ontología, epistemología y metodología”. Se destaca desde la perspectiva cualitativa la primacía de que su interés radica en la descripción de los hechos observados para interpretarlos y comprenderlos en el contexto global en el que se producen con el fin de explicar los fenómenos. Dado su carácter de flexibilidad y creatividad, establecimos una relación dialógica con los alumnos, docentes y agentes educativos captando el aspecto axiológico, los valores, que inciden en la investigación y forman parte de la realidad, así como del contexto social y cultural. En consecuencia mediante la investigación cualitativa, no buscamos la generalización sino, la caracterización a profundidad de la realidad de la orientación en los centros escolares y en las aulas, así como, buscamos la comprensión de los casos. Dentro de este marco realizamos una descripción detallada de las observaciones mediante el registro cuidadoso de los casos constituidos en investigación, subrayando la importancia de la categorización que nos permitió ir colocando la realidad en esas categorías, con el fin de conseguir una coherencia lógica en el suceder de los hechos o de los comportamientos que están necesariamente contextualizados y adquieren su pleno significado. En consecuencia, para nuestro estudio lo importante radica en captar y registrar las experiencias, vivencias, actitudes, práctica y significado que le atribuye el docente, los alumnos y padres a los programas de orientación en la Escuela Básica. Retomando los planteamientos que sustentan la investigación que abordamos, consideramos en primer lugar la etapa preparatoria: esta constituye el inicio de la investigación, la cual implica reflexión teórico- 43 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 40-50 <http://www.cienciasecognicao.org/> práctica estando presente la formación del investigador, sus conocimientos, experiencias, vivencias sobre los fenómenos educativos, específicamente sobre los lineamientos para configurar un programa de intervención en orientación educativa. Una segunda etapa que corresponde a la fase reflexiva: la misma implica que el investigador partiendo del marco referencial de valores, conocimientos, actitudes, experiencias y formación cultural, intenta clarificar y determinar el tópico de interés y describir las razones por las cuales elegimos el tema de indagación. Una vez que identificamos el tópico de interés, buscamos toda la información posible sobre el mismo, estableciendo el estado de la cuestión desde una perspectiva amplia, sin llegar a detalles extremos dentro de este orden de ideas la investigación se apoya en la metodología cualitativa ampliamente discutida con apoyo de herramientas que brinda la investigación cuantitativa para fundamentar la caracterización de la orientación en los centros escolares y el aula. Y son objetos y sujetos de orientación. 3.2. Sujetos significativos Utilizando el criterio de selección intencional, la muestra estuvo integrada por veinte docentes (20) docentes, veinte (20) padres y/o representantes, cuarenta (40) alumnos de las Escuela Básicas. Para la selección de la muestra en las investigaciones cualitativas se sugiere según Pérez (1990), utilizar una muestra intencional de acuerdo a unos determinados criterios. No se busca en esta investigación la generalización de los resultados sino más bien lograr un mayor conocimiento del grupo concreto en el que tenemos que llevar acabo una actividad determinada. En este caso conviene describir con claridad las características de la muestra con la que vamos a trabajar. 3.3. Técnicas: observación y entrevista La observación la realizamos en tres escenarios básicos: la escuela, el aula de clase, y la comunidad. Es importante destacar © Ciências & Cognição que cuando empezamos a realizar las observaciones sistemáticas contaba con experiencia previa producto de doce años como docente de educación inicial y básica, y quince años habitando en el municipio Barinas, y tres años asistiendo a las escuelas como profesora del curso “Orientación Educativa”. Este constituye un factor fundamental para la comprensión y análisis de los significados y conceptos que manejan los sujetos de estudio en relación con la orientación educativa. Como principal técnica de recolección de información se utilizó la observación participativa: La cual permitió a los docentes, alumnos y agentes educativos, involucrarse en su construcción y a su vez facilitó la coconstrucción a partir de los encuentros en el contexto por medio de la reflexión de las relaciones que se presentan entre la práctica pedagógica y la elaboración de significados de la orientación educativa, participando del proceso de construcción descubriendo el sentido, la dinámica y los procesos de los acontecimientos que viven los protagonistas en el medio en que se desarrolla la orientación en los centros escolares y el aula. Desde esta perspectiva, aprendimos aspectos de la cultura, las relaciones sociales, la dinámica educativa, el quehacer en el aula, las relaciones entre los centros escolares y la comunidad. Para describir la situación analizada se dedica a descubrir el sentido, la dinámica de los procesos, de los actos, de los acontecimientos y de las afirmaciones textuales de los protagonistas, estas relaciones descriptivas aportaron información sobre las situaciones en que se mueven y las percepciones que tienen los protagonistas sobre la situación en que viven, también tiene en cuenta las expectativas, experiencias, ideas, emociones y sentimientos. Para la recolección de la información se ha empleado con acentuado énfasis la observación la cual constituyó un método dirigido a obtener datos pertinentes y significativos sobre el sentido de la orientación educativa en los centros escolares y el aula. La observación a juicio de Méndez (1988), permite que el investigador tenga en cuenta las experiencias previas, juicios, percepciones y las condicio- 44 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 40-50 <http://www.cienciasecognicao.org/> nes sociales, culturales, educativas y económicas en que se desenvuelve el objeto de observación. a) Para llevar acabo el proceso de observación en nuestra investigación consideramos los siguientes criterios sugeridos por Rodríguez et al -ubicación del contexto de observación en un ambiente natural, social, histórico y/o cultural en las que se sitúa el proceso de observación, precisión del qué y el cuándo de la misma. b) De igual manera establecimos las categorías de análisis definidas como sistemas cerrados en las que la observación se realiza desde categorías (término que agrupa a una clase de fenómenos según una regla de correspondencia única), prefijadas por el observador. La identificación del problema se hace desde una teoría o modelo explicativo del fenómeno, actividad o conducta que va a ser observado. c) Las categorías deben ser homogéneas. En la categorización se considera la lista de control como una variante del sistema de signos, que nos permite determinar si ciertas características están presentes o no en un sujeto, situación, fenómeno o material. La lista de control responde a un modelo teórico en la que los objetivos del estudio son la guía y orientación de lo que vamos a observar. La observación participante me permitió estar en contacto, vivenciar y participar directamente en el aula de clase e interactuar con los niños y docentes. En este escenario fuimos tomando notas, llevando registros tanto de la interacción docente-alumno, como de la metodología de la enseñanza y actividades de rutina. Estos apuntes los revisamos periódicamente para integrarlos a otras observaciones y reorientar la investigación. En síntesis es importante destacar que las experiencias más valiosas y típicas fueron recogidas literalmente, para citarlas después entre comillas como testimonio de las realidades observadas. La utilizamos en el estudio como una técnica que nos facilito el conocimiento de la práctica de la orientación, las necesidades del docente, como de los alumnos © Ciências & Cognição y agentes educativos, en un contexto sociocultural real y natural. 3.4. Instrumentos para la relación de la información El cuestionario: su sentido en la investigación De acuerdo con Kerlinger (1987), el cuestionario es la técnica de investigación más utilizada con la finalidad de obtener, de manera sistemática y ordenada, información sobre las variables que intervienen en el estudio. Para efectos del diseño del cuestionario aplicado consideramos los siguientes aspectos formales: a) Se ubica el título en forma abreviada al tema sobre el que se busca información; b) Se sitúa el cuestionario dentro del contexto institucional; c) Se aclara el marco general del estudio que se aborda; d) Se exponen los motivos por los que se solicita información, se presentan las instrucciones para responder y se agradece la receptividad y el apoyo al responder el cuestionario. Informes, documentos y producciones Otras fuentes de información valiosas la constituyeron los informes y papeles de trabajo elaborados por los estudiantes de las prácticas pedagógicas III y IV Rol de Orientador Educativo como las producciones generadas de las discusiones en el aula, mesas de trabajo, representaciones, informes y representaciones de la realidad sobre la problemática de la orientación educativa en las escuelas básicas. También contamos con algunas producciones significativas aportadas por profesores de la universidad como resultado de la aplicación del programa de orientación propuesto que ha sido utilizado como guía para la operacionalización de los contenidos del subproyecto orientación educativa. 45 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 40-50 <http://www.cienciasecognicao.org/> Diario de campo Se refiere a todas las informaciones, datos, referencias, expresiones, opiniones, hechos, croquis, de interés, tanto para la fase de diagnóstico como para la experimentación y evaluación del programa de orientación educativa. El diario lo utilizamos como un instrumento reflexivo de análisis. Aquí plasmamos no sólo lo que recordamos casi siempre apoyado por las notas de campo, sino sobre todas las reflexiones que se han visto y oído. El diario de campo es un instrumento dirigido a recopilar datos sobre las observaciones realizadas en el aula durante la práctica pedagógica y la orientación educativa, a fin de reflexionar acerca de la dinámica y de los conceptos y acciones de orientación que prevalecen dentro y fuera del aula. Este instrumento además facilitó el registro de experiencias sistematizando, la fecha, hora, lugar, recursos, actividades, objetivos, protagonistas, acuerdos, descripción, interpretación y observación participante. El mismo, recoge un conjunto de aspectos significativos para el análisis y reflexión del sentido y concepto que se le atribuye a la orientación en los centros escolares y el aula, donde intervienen activamente los agentes educativos. Relatos de vida: es el relato de la experiencia vital de los protagonistas, o documento autobiográfico suscitado por un investigador que apela a los recuerdos del protagonista siendo en el ámbito global y no analítico en un intento de hacer una lectura de la sociedad. Permite conocer y comprender los significados que han construido cada protagonista como parte de un proceso social y protagonista de la investigación, recoge información sobre la vivencia social y las prácticas en la memoria colectiva de la cotidianidad, con el fin de extraer de ellas una significación. 3.5. Recursos utilizados: cuadernos, grabadora, lápices Participaron activamente en el proceso investigativo los docentes, alumnos, padres y/o representantes así como el personal directivo de los centros educativos, igualmente uti- © Ciências & Cognição lizamos registros, formatos de observación, fotografías, material instruccional, aulas, instalaciones de los centros educativos, comunidad y contexto comunal. En efecto, que el registro de comportamientos y conductas como actitudes, significado, expresiones, sentimientos y prácticas corresponden a actividades ordinarias y comunes de la dinámica humana. Esta riqueza y diversidad de observaciones tomadas de la variedad de registros que utilizamos, nos permitió realizar un proceso de triangulación de los datos e informaciones, pues no podemos dejar pasar por alto que la técnica de la triangulación implica reunir una variedad de datos y métodos inherentes al problema u objeto de estudio. La aplicación de la estrategia de triangulación permite la depuración de la información obtenida a través de los instrumentos y técnicas aplicadas las cuales han sido comparadas a fin de descubrir los puntos de convergencia en relación con las hipótesis y objetivos planteados. Para la clasificación de los datos, hemos utilizado el sistema de categorización como estrategia de reducción de la información. Los temas cuyos elementos de significado son comunes, han sido agrupados en unidades. Los conceptos manejados surgieron durante el curso de la investigación, tomando en consideración los datos empíricos que facilitaron la generación de las categorías de análisis que las integramos a la base teórica metodológica que desarrollamos con mayor abstracción y generalización en el problema planteado. En el estudio, se hace uso de la estrategia de “triangulación de fuentes de datos”, que en opinión de Denzin y colaboradores (1994), se trata, más bien, sea cual sea la técnica utilizada, de ampliar el tipo de datos de que dispongamos para así fundamentar más adecuadamente nuestras teorías. En este sentido, la triangulación se define como un plan de acción que puede llevar al investigador más allá de los sesgos personales. Para apoyar las entrevistas y cuestionarios aplicados se utilizaron los registros básicos como conjunto de notas y transcripciones que constituyen el registro de referencia para 46 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 40-50 <http://www.cienciasecognicao.org/> mantener la originalidad y veracidad de la información apoyado en registros temáticos que corresponde a los apuntes, descripciones, reflexiones y ensayos que como investigadora fui llevando durante el transcurso de la investigación. De igual manera, utilizamos los registros logísticos que tienen que ver con el empleo de cuadernos o diarios de campo, donde recolectamos notas, sobre dificultades encontradas, necesidades de los alumnos, hechos, interpretaciones y reflexiones personales de carácter general del investigador, así como fue necesario en este proceso de trian- © Ciências & Cognição gulación los registros complementarios que incluyen consultas técnicas especialistas, citas y referencias bibliográficas. 3.6. Correlación entre objetivos, preguntas de indagación y resultados Seguidamente se presenta en el Cuadro 1, la relación entre objetivos, preguntas de indagación y los resultados como elementos implícativos del estudio que nos ha llevado a configurar las conclusiones y recomendaciones. Objetivos de la investigación Preguntas de indagación Sujetos Analizar los lineamientos a considerar para formular un programa de intervención ¿Qué elementos a considerar para diseñar un programa de orientación Directores Docentes Orientadores Psicólogos Determinar el concepto de orientación educativa que manejan los alumnos y agentes educativos Qué concepto de Alumnos orientación mane- Padres jan los alumnos y Docentes agentes educativos Analizar el concepto de pro-grama que manejan los alumnos y agentes educativos Definir lineamientos para el diseño de un programa de intervención en orientación Qué concepto de Alumnos pro-grama manejan Padres los alumnos y agen- Docentes tes educativos Resultados derivados de la aplicación de técnicas e instrumentos de recolección de información Estudios de necesidades de los alumnos(intereses, motivaciones, ne-cesidades, habilidades, competencias) Necesidades de la familia Necesidades de la comunidad Necesidades de la escuela La orientación como proceso asistencial La orientación como proceso remedial La orientación como proceso de ayuda La orientación como proceso inte-grado al acto de enseñar ya prender Instrumento de enseñanza Medio de formación Instrumento de asistencia Conjunto de actividades Necesidades individuales Necesidades de familiares Necesidades del contexto Jerarquización de las necesidades Fundamentación de las necesidades Formulación de un plan de acción Intervención Evaluación Retroalimentación Cuadro 1 - Correlación entre objetivos, preguntas de indagación y resultados (2007). Qué lineamientos Alumnos pueden ser conside- Padres rados para el diseño Docentes de un programa de intervención en orientación educativa 47 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 40-50 <http://www.cienciasecognicao.org/> 4. Discusión de los resultados © Ciências & Cognição De los instrumentos aplicados a los docentes se generaron los siguientes resultados (Cuadro 2): Categorías Frecuencia Porcentaje Necesidades de alumnos y agentes educativos 5 25 Necesidades de la comunidad y de la familia 5 25 Expectativas y motivaciones de los alumnos 10 50 Total 20 docentes 100 Cuadro 2 – Resultados obtenidos de las técnicas e instrumentos aplicados a los docentes. El 25% de los docentes expresan en sus opiniones y discursos, recogidos mediante registros permanentes que un programa de intervención ha de responder fundamentalmente a las necesidades de los alumnos y de los agentes educativos, un 25% considera que a las necesidades de la comunidad y familia y un 50 % expresa que el programa debe tener como principal sustentación las expectativas y motivaciones de los alumnos. Realizando una contrastación entre lo referido por los docen- tes en cuanto a elementos para configurar un programa de intervención en orientación, con lo planteado en la discusión teórica por autores tales como Bisquerra (2002), y más recientemente por Boronat (2007) quién expresa: un programa debe derivarse del estudio de necesidades de los beneficiarios y de una fundamentación de las acciones de intervención. De los alumnos hemos obtenido los siguientes datos significativos (Cuadro 3): Categorías Frecuencia Explorar las necesidades personales, sociales, escolares y vocacio- 20 nales Considerar nuestras diferencias individuales 10 Expectativas y motivaciones de los alumnos 10 Total 40 alumnos Cuadro 3 – Resultados obtenidos de los instrumentos aplicados a los alumnos Un 50% de los alumnos consideran que se deben explorar las necesidades personales, sociales, escolares y vocacionales, un 25 % asumir las diferencias individuales y un 25% las expectativas y motivaciones de los alumnos. 5. Conclusión Producto del análisis de los resultados con respecto a cada uno de los objetivos se configuraron los siguientes resultados: En cuanto al objetivo 1, dirigido a determinar el concepto de orientación educativa que manejan los alumnos y agentes educativos, se precisa que existen tendencias antagónicas entre los que manejan la orientación Porcentaje 50 25 25 100 como proceso dirigido a la resolución y atención a la persona con problemas y los que consideran la orientación como un proceso integrado al acto de enseñar y aprender. Tendencias que se ven ilustradas en los siguientes discursos tanto de padres como de alumnos y docentes: “ la maestra de mi hijo, me expresa que el niño tiene bajo rendimiento en matemática, por lo que me sugiere un especialista en psicopedagogía o un orientador para que lo ayude en su problema?” de allí se deriva que el problema del niño debe ser tratado fuera del aula o en condiciones especiales, denotando un enfoque centrado en el problema, más no en la prevención y el desarrollo durante el acto formativo. 48 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 40-50 <http://www.cienciasecognicao.org/> Con respecto al objetivo 2: Referido al concepto de programa que manejan los alumnos y agentes educativos, se determinó que no existe un concepto claro de programa a nivel de padres y alumnos y en cuanto a los docentes su visión esta más dirigida considerar un programa como medio de enseñanza, más no, como medio para promover experiencias de intervención en orientación educativa en los centros escolares y el aula. Finalmente en el objetivo 3 se consideran una serie de elementos que a juicio de docentes, alumnos y agentes educativos deben ser considerados para el diseño de un programa de orientación: necesidades individuales, necesidades familiares, necesidades del contexto, jerarquización de las necesidades, fundamentación teórica de las necesidades, formulación de un plan de intervención, evaluación, retroalimentación permanente. 6. Recomendaciones De las conclusiones señaladas anteriormente y del fundamento epistemológico en que se sustenta la investigación se derivan las siguientes recomendaciones: Definir un concepto de orientación que responda a los principios de prevención, desarrollo, atención a la diversidad e intervención social. Conceptualizar en el marco de la definición de orientación educativa el programa como instrumento para el desarrollo de estrategias de prevención, desarrollo, atención a la diversidad e intervención social. Establecer a quien va dirigido el programa(los beneficiarios, necesidades de los beneficiarios, características demográficas, sociales, escolares, personales), así como,¿Él para qué? implica delimitar los objetivos, ¿El qué? representa los contenidos, ¿El cómo? determina las estrategias a utilizar para el logro de los objetivos. ¿El con qué? tiene que ver con los recursos humanos, institucionales y financieros que se disponen para la implementación del programa. Este elemento hace posible su ejecución y determina el grado de compromiso de los agentes educativos. ¿El cuándo?, obliga necesariamente al estableci- © Ciências & Cognição miento de la secuencia de ejecución del programa e incluye su temporalización ó cronograma, ¿el dónde?, invita necesariamente a delimitar geográficamente y espacialmente el ámbito donde se llevará a cabo la intervención, qué impacto tiene la intervención en los beneficiarios nos llevaría a establecer criterios de valoración y retroalimen-tación permanente de las acciones del programa, y finalmente alcanzar un proceso de reajuste permanente de acciones y estrategias que nos garantizaría la pertinencia social de la intervención. 7. Referencias bibliográficas Aubrey, R. (1982). A Hause divided: Guidance and Counseling. En Vélaz de Medrano C. (1998). Orientación e Intervención Psicopedagógica. Conceptos, Modelos, programas y Evaluación. Málaga: Aljibe. pp.128. Bisquerra, R. (1998). Modelos de Orientación e Intervención Psicopedagógica. Barcelona: Praxis. Bisquerra, R. (2002). Modelos de Orientación e Intervención Psicopedagógica. Barcelona: Praxis. Boronat, J. (2007). Programas de orientación educativa. UNED. España Denzin, N. y Lincoln, Y.S. (1994). Handbook of Qualitative Research. Cuba: G. Kerlinger, F. (1987). Enfoque Conceptual de la Investigación del Comportamiento. México: Nueva Interamericana. Martínez, A. (1996). El Estudio de Casos para Profesionales de la Acción Social. Madrid: Mareco. Méndez, C. (1998). Metodología. Guía para Elaborar Diseños de Investigación. Editorial México: Mc Graw Hill. Morrill, H. (1990). “Program Development”. En: Vélaz de Medrano (1998). Orientación e Intervención Psicopedagógica. Conceptos, Modelos, Programas y Evaluación. Málaga: Aljibe. Pérez, S. (1994). Investigación Cualitativa. Retos e Interrogantes II. Técnicas y Análisis de Datos. Madrid: Muralla. Repetto, E. (1994). Orientación Educativa e Intervención Psicopedagógica. Madrid: UNED. 49 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 40-50 <http://www.cienciasecognicao.org/> Reyes, P. (1980). Fines del Programa de Orientación Educativa. Mérida: ULA. Riart, J. (1996). Funciones General y Básica de la Orientación. En: M. Álvarez & R. Bisquerra. (Coords): Manual de orientación y Tutoría. Barcelona: Praxis. © Ciências & Cognição Rodriguez, G. (1999). Metodología de la Investigación Cualitativa. Granada: Aljibe. Velaz de Medrano. (1998). Orientación e Intervención Psicopedagógica. Conceptos, Modelos, Programas y Evaluación. Málaga: Aljibe. 50 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 51-61 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 29/10/2007 | Revisado em 01/12/2007 | Aceito em 02/12/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007 Artigo Científico Leitura de estudo: estratégias reconhecidas como utilizadas por alunos universitários Study reading: strategies recognized as the most used by university students Elsa Maria Mendes Pessoa Pullin Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, Paraná, Brasil Resumo O presente trabalho insere-se no campo das práticas de leitura de estudantes universitários e visou identificar as estratégias mais freqüentes de leitura de textos de estudo entre alunos, futuros professores. Compuseram a amostra alunos de graduação de duas licenciaturas e de um mestrado em educação. A Escala de Estratégias de Leitura, traduzida e adaptada por Kopke Filho foi o instrumento utilizado para a coleta de informações. De modo geral, os resultados apontam para o uso de estratégias similares entre os participantes. A importância não só das informações acerca dos modos de ler textos de estudo, especialmente para professores quando prescrevem leituras é discutida, como também a relativa a metacognição sobre essas práticas para os leitores. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 5161. Palavras-Chave: práticas de leitura; ensino superior; formação de professores. Abstract The objective of this study was investigating the reading strategies for study texts most frequently used among future teachers: two licentiates’ undergraduates and one graduate taking a master degree in education. The Reading Strategies Scale, adapted by Kopke Filho (2001), was the instrument used. Results indicate the use of similar strategies among participants. The importance of knowing the possible ways of reading study texts, especially for teachers when prescribing readings is discussed, including the one relative to metacognition about those practices for the readers. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 51-61. Key Words: reading practices; higher education; teacher’s qualification. 1. Introdução “Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem, estudando, o escreveu.” Paulo Freire Paulo Freire (1982) destaca, em seu texto Considerações em torno do ato de estudar, escrito em 1968, que quem estuda deve se sentir desafiado pelo texto em sua totalida- - E.M.M.P. Pullin é Graduada em Pedagogia (Faculdade Estadual de Filosofia Ciências e Letras de Londrina), Mestre e Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano (Universidade de São Paulo). Atualmente é Professora Associada (UEL) e consultora da Fundação de Ciência e Tecnologia do estado de Santa Catarina e da Fundação Araucária do estado do Paraná. E-mail para correspondência: [email protected]. 51 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 51-61 <http://www.cienciasecognicao.org/> de e se apropriar de sua significação. Uma posição crítica, porque fundamental e indispensável ao ato de estudar requer, segundo este educador, que o indivíduo assuma cinco posturas essenciais: a) exercer seu papel de sujeito; b) ter uma postura curiosa, em face do mundo, dos textos e das relações que mantém com os outros, isto é, o estudante não deve perder nenhuma oportunidade e fonte para indagar e buscar; c) sentir a necessidade de que o estudo de um tema específico exige que se coloque a par da bibliografia relativa ao objeto de sua inquietude; d) dialogar com o autor do texto, levando em conta o condicionamento históricosociológico e ideológico do autor, que nem sempre é o seu, de leitor; e) assumir a humildade necessária daqueles que de fato estudam. O processo de construção de sentido(s) de um determinado texto depende, entre outros fatores, do leitor, especificamente das condições de diálogo que ele possa vir a estabelecer com o texto, determinadas estas, em parte por sua experiência, pelo conhecimento prévio do mundo e por sua competência lingüística (Eco, 1985). Tais condições é que permitem ao leitor retirar “o texto da clandestinidade” (Cordeiro, 2004: 97), uma vez que o texto só se vivifica por uma postura dialógica de um leitor em relação ao mesmo. Nos inserimos entre aqueles que explicam a constituição de quaisquer processos psicológicos como provenientes do tipo de interações mediadas/propiciadas por outrem (Vygotsky, 1997), e entendemos, por conseguinte, que as condições individuais para a produção e monitorização do próprio processo de leitura são tecidas pelos efeitos de tais interações. Em suma, compreendemos a leitura como um processo que compartilha com os demais processos capazes de viabilizar para o indivíduo a ocorrência de comportamentos complexos ou não, isto é, compreendê-la como construída socialmente, porque contingenciada pelas condições e modalidades de © Ciências & Cognição sua ocorrência e pelas práticas sociais legitimadas em um dado momento histórico por uma cultura, e definida por tais práticas que legitimam e geram as condições e modalidades de sua ocorrência em uma dada situação. Por compreendermos que ler é um verbo transitivo, consideramos que o grau de responsividade do leitor diante de um texto seja estruturado por sua história de leitor e pelo próprio texto, visto serem os modos e possibilidades de relação do sujeito com qualquer artefato cultural provenientes das práticas culturais formais e informais e serem constituídos pelos efeitos diretos e indiretos das relações propiciadas por outrem com os bens culturais de seu tempo/espaço. Por serem as condições de apreensão de mundo, isto é, a responsividade do sujeito aos eventos e produtos culturais, sua posição, funções dele esperadas e cobradas socialmente, além de estruturadas, estruturantes para cada nova experiência, podemos considerar a leitura como uma prática cultural indissociável das demais práticas sociais (Chartier, 1996, 2000; Cavallo e Chartier, 1998). Em face das metodologias educacionais mais utilizadas no Ensino Superior, a leitura é um dos elementos essenciais para o exercício do ofício desse aluno (Perrenoud, 1995; Teixeira, 2000), pelo fato de exigirem que o aluno tenha uma metodologia individual e eficiente de leitura de estudo. Do aluno se espera que assuma a posição de co-autor na construção dos conhecimentos legitimados nessas instituições, como leitores-acadêmicos (Dauster, 2003). Por conseguinte, não gera estranheza, em face dos déficits continuamente demonstrados pelos resultados de exames nacionais, como os de ENEM e das queixas freqüentes dos professores das instituições de ensino superior (Barzotto, 2005), o fato de que as relações entre leitura, compreensão e metacognição em universitários venham despertando o interesse de diversos pesquisadores brasileiros (Kopke Filho 2001, 2002; Romanowski e Rosenau, 2006), bem como o fato de que um maior número de produções em programas de pós-graduação stricto sensu (Letras/Lingüística; Psicologia; Educação; Biblioteconomia; História; Artes; Comunica- 52 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 51-61 <http://www.cienciasecognicao.org/> ções) tenha investigado a temática de “como se lê" (Ferreira, 2004: 16). Ao nos debruçarmos sobre a literatura acerca das práticas de leitura em instituições de Ensino Superior (IES) registramos a presença de uma relativa subvalorização e subutilização da leitura, por parte dos estudantesleitores universitários (Fraisse, 1993; Witter e Vicentelli, 2001; Carlino, 2002; McNamara e Harbersd, 2006; Pullin, 2007; Pullin e Pullin, 2005). As evidências em nível nacional, mesmo entre estes estudantes, apontam para déficits e dificuldades desses alunos em aprender tendo como fonte textos escritos (Boruchovitch et al., 2005). Apesar de alguns, como Duarte (2003), colocarem em questão os princípios e as conseqüências geradas pelas pedagogias do ‘aprender a aprender’, muitas vezes defendidas pelo aceite não crítico do que vem sendo denominado por sociedade do conhecimento, como uma das razões que justificam tais pedagogias, o fato é que os estudantes não devem contentar-se apenas com os textos orais do professor em sala de aula, mas buscar outras fontes para construir seus saberes, por exemplo, em textos escritos. Para que isso aconteça, é preciso que os alunos sintam a necessidade de que o estudo de um tema específico exige que se coloquem a par da bibliografia relativa ao objeto de sua inquietude, como assinalado por Freire (1982). Em outras palavras, se sintam motivados e, além disso, capazes de ler e conhecer como lêem, isto é, disponham da metacognição acerca das estratégias que utilizam enquanto lêem (Kuiper, 2002; Zimmerman, 2002; Cukras, 2006). Em uma perspectiva ontológica que concebe o homem como ser inacabado (Freire, 2005) e como aquele que constitui seus saberes e suas práticas no e pelo convívio com outros (Vygotsky, 1997; Galantino, 2003; Dijk, 2006), a visão teórica que assumimos sustenta-se na adesão à perspectiva de que o processo de aquisição do conhecimento tem sua feitura gerada em produções configuradas subjetivamente pelos tipos de relação que cada um estabelece a partir de outrem e com os bens culturais. Para que este processo ocorra faz-se necessária a mediação de outros, © Ciências & Cognição visto ser nos espaços das relações intersubjetivas que se estabelecem as condições estruturantes para quaisquer aprendizagens, seja de novos repertórios seja para as mudanças dos já adquiridos. Por conseguinte, concordamos com Vygotsky (1997) quanto a que a educação, de um ponto de vista psicológico, é, de fato, uma re-educação, visto intervir e influenciar o desenvolvimento dos indivíduos, de forma sistemática e objetivar intencionalmente, por um esforço consciente, a apropriação dos modos de ser e dos bens culturais. Neste sentido, eventos de educação contribuem para o processo da seleção social dos aspectos e dimensões da personalidade dos indivíduos, em uma dada sociedade. A metacognição relativa às estratégias e processos envolvidos na leitura de textos acadêmicos vem sendo apontada como relevante e diferenciadora para a constituição de saberes, por parte de seus leitores. Trabalhos como os de Spooren e colaboradores (1998), Cotttrell e McNamara (2002), O’Reilly e McNamara (2002), Graesser e colaboradores (2003), McNamara (2004a, 2004b), assim como os de McNamara e Harbersd (2006) e Romanowski e Rosenau (2006) assinalam para os efeitos positivos da consciência e controle tanto dos processos, quanto das estratégias de leitura e de aprendizagem. De modo geral, a produção em programas de Mestrado e Doutorado, na área de Educação e de Psicologia, a documentada nos encontros anuais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), bem como os da várias edições dos encontros da Associação Brasileira de Leitura (COLE) e do Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (ENDIPE) referem a importância e a urgência de conhecimentos que propiciem a formação de leitores autônomos, capazes de lidar de modo crítico com situações do cotidiano, familiares ou não. E porque concordamos com Freire (2005: 30) quanto a que “[...] ler é procurar, buscar, criar a compreensão do lido”, bem como quanto à importância de que “quando o homem compreende sua realidade, pode levantar hipóteses sobre o desafio dessa realidade e procurar soluções”, podendo, assim, “transformá-la e com seu trabalho pode 53 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 51-61 <http://www.cienciasecognicao.org/> criar um mundo próprio: seu eu e suas circunstâncias”, e porque uma posição crítica, fundamental e indispensável ao ato de estudar, requer de quem estuda que assuma posturas como as assinaladas por esse educador, é que vimos buscando trabalhar com leitura junto a alunos do Ensino Superior, nomeadamente com futuros professores. Apesar do papel mediador do professor ser fundamental para novas aprendizagens, sua função deve ser preferencialmente a de “transferir progressivamente para os alunos o controle de sua aprendizagem, sabendo que o objetivo último de todo mestre é se tornar desnecessário” (Pozo, 2002: 273). Por conseguinte, suas ações devem/deveriam ter como meta a promoção da autonomia e da coresponsabilidade dos alunos para que ocorram não só aprendizagens de conteúdos específicos, mas também das demais relacionadas ao desenvolvimento pessoal e à capacitação profissional dos mesmos. Para tanto, a mediação do professor além de precisar ser planejada e por ele monitorizada, precisa gerar condições propícias que fomentem a metacognição de seus alunos acerca dos próprios estilos de aprendizagem pessoal, por exemplo, como os possibilitados em situação de leitura de estudo. A perspectiva que defendemos implica, em suma, em percebermos a constituição sócio-histórica dos indivíduos, a qual leva não apenas a considerar a posição social objetiva deles, no caso professores e alunos, mas também, e especialmente a de que estes assumem uma posição social subjetiva por considerarmos que a sociedade é “o lugar de produção de sentido, e não se pode compreender essa produção de sentido a não ser em referência a um sujeito” (Charlot, 2003: 25), quanto a que as ações do sujeito com a sua sociedade são mutuamente dependentes. Baseamo-nos nessa perspectiva para configurar a dinâmica interativa que acontece em qualquer sala de aula. E fazemo-lo, por compreender que tais relações são co-responsáveis para a constituição da subjetividade dos atores envolvidos nesse espaço, e, especialmente, porque o professor em face da autoridade que lhe é conferida socialmente, para suas práticas e prescrições, por © Ciências & Cognição exemplo, de leitura, confere sentido aos conteúdos e aos procedimentos, uma vez que seu comportamento afeta de algum modo, ou melhor dito, (con)forma as condições do saber e do conhecimento de seus alunos. Acerca da produção de sentidos, especificamente daquela gerada a partir dos modos da proposição de textos escritos, isto é, decorrente das condições postas simultaneamente pela conjunção da proposição, propriamente dita, do texto com os modos de ler do sujeito-leitor, fundamentamo-nos em Orlandi (2001: 11) quando esta diz que a interação do sujeito-leitor com o texto ”representa a conjugação de duas historicidades: a história de suas leituras e a história de leituras do texto”. Em cursos regulares, ofertados em IES, nas modalidades de cursos de graduação e de pós-graduação, não há como o professor ignorar e deixar de ser instigado pela necessidade de (re)ensinar seus alunos a ler e de trabalhar o efeito-leitor com os alunos, em face seja da multiplicidade e diversidade disciplinar dos textos exigidos (Carlino, 2002; Mostafa, 2004; Pullin, 2007), seja dos modos de leitura e de sentidos, quer legitimados, quer dos atribuídos pelos alunos ao lerem qualquer texto. No encontro dos alunos com um texto prescrito pelo professor em sua disciplina, diferentes são os sujeitos-leitores, por suas histórias de vida e de leitura distintas, em face, entre outros, dos efeitos das práticas anteriores de proposição e dos graus de responsividade exigidos após a leitura, em suma, dos modos constituídos e legitimados para a interação dos alunos com textos (Almeida, 2006: 3). Desse modo, podemos entender os efeitos sobre a história do leitor produzidos pelas práticas, sejam dos modos de proposição de leituras, do tipo de trabalho produzido por ele junto ao texto, ou ainda dos modos como sejam utilizadas as informações em sala de aula, por exemplo. As práticas anteriores de proposição e dos graus de responsividade exigidos após a leitura, em suma, dos modos constituídos e legitimados para a interação dos alunos com textos. Entretanto, os diálogos possíveis com e a partir de textos não só remetem a essas histórias, como podem provocar rupturas 54 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 51-61 <http://www.cienciasecognicao.org/> e/ou conferir novas nuances a elas. Sob este enfoque, a constituição da identidade de leitor, especialmente a prescrita e legitimada para alunos de cursos de Ensino Superior, é configurada como a de um leitor autônomo e crítico, a qual permeia os efeitos da conjunção daquelas historicidades singulares pela freqüente e necessária ruptura com os padrões do saber-ler, quer do mundo cultural no qual ele foi recebido, quer dos exigidos em níveis de escolarização anteriores. Os níveis de leitura possíveis de um texto, conforme Orlandi (2001), são o do entendimento, o da interpretação e o da compreensão, sendo que apenas neste último nível de leitura é gerada a condição de produção de uma leitura reflexiva e crítica. Concordamos com a autora quanto a que compreender um texto implica em (des)construí-lo, isto é, em identificar seus significados e a desvelar os mecanismos utilizados pelo autor para produzi-lo. O leitor, quando assim problematiza para si o texto, assume o papel de co-autor, por ultrapassar o nível de simples identificador de informações, de garimpeiro, e tal postura ativa habilita-o a construir seu conhecimento a partir de textos (Charlot, 2003). As diferenças entre leitores se devem, portanto, aos papéis que cada um assume ou, melhor dizendo, que cada um foi levado a assumir, enquanto lê. Enquanto intérprete, “apenas reproduz o que já está produzido. De certa forma podemos dizer que não lê, é lido, uma vez que, apenas reflete sua posição de leitor na leitura que produz (Orlandi, 2001: 116), em outras palavras, o que produz leitura a partir exclusivamente de sua posição só interpreta. À medida que o leitor se preocupa em identificar e avaliar para si o fato precisar de ler um texto, o contexto da situação, imediato e histórico, e, em vista disso, o relaciona “criticamente com sua posição, que a problematiza, explicitando as condições de produção de sua leitura, compreende” (Orlandi, 2001: 116), é que se pode afirmar que ele conhece e pode controlar suas ações frente ao texto. Portanto, os que apenas interpretam, de fato não lêem, por não participarem conscientemente do processo de constituição de © Ciências & Cognição sentidos, antes submetem-se ao poder do texto e de seu autor. Isso comumente ocorre, ainda, em eventos escolares, mesmo em IESs, com muitos alunos, quando se limitam ao que lhes foi passado oralmente pelos professores, em sala de aula (Kons, 2006), porém este não é o escopo de nossa preocupação com o presente relato. Preocupa-nos, sim, o assinalado por Anne-Marie Chartier (1999) quanto à necessidade de estarmos atentos às “formas pelas quais a leitura (o que é lido e as maneiras de ler) se integra na preparação da profissão de professores”, visto que por elas “transmite-se de forma concreta uma relação com o escrito como ferramenta de trabalho profissional, como espaço de cultura pessoal, como referente compartilhado.” (Chartier, 1999: 96). Em face do corpo teórico e das preocupações que nos inquietam como docente do Ensino Superior, o presente trabalho busca averiguar quais estratégias futuros professores, alunos de graduação e de pós-graduação, (re)conhecem utilizar quando estudam a partir de textos. 2. Método A constituição da amostra dos participantes ocorreu por conveniência, junto aos cursos que tivemos acesso. A participação foi voluntária, após esclarecimentos e assinatura do Termo de Consentimento Esclarecido. O grupo de participantes, alunos de graduação freqüentava dois cursos de licenciatura de áreas distintas (Humanas e Exatas), em uma IES particular. Destes foram selecionados alunos da série inicial e final dos cursos de Letras e de Ciências, doravante designados por GL1 (n=23); GC1 (n=19); GL2(n=27); CC2 (n= 19). Os participantes da pós-graduação realizavam, quando da coleta, sua formação de pós-graduação em um Mestrado de Educação e são identificados para o presente relato como GM (n=16). Para o levantamento das informações foi utilizada uma escala referente à freqüência de reconhecimento quanto ao uso de estratégias no processo/produção de leitura, a qual foi traduzida, adaptada e utilizada por Kopke 55 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 51-61 <http://www.cienciasecognicao.org/> Filho (2001), a partir dos resultados de um estudo exploratório junto a universitários, realizado por Goetz e Palmer, em 1991. Esta escala compõe-se de 20 itens, distribuídos por três fases do processo/produção da leitura: a) de previsão, isto é, antes de iniciada a leitura, composta por quatro itens; b) de acompanhamento, ao longo da leitura, isto é, durante a produção de leitura do texto propriamente dito, com dez itens; c) após a leitura, de avaliação do próprio processo de leitura realizada, com seis itens. Cada item possibilita a escolha de uma de três alternativas (freqüentemente; às vezes; raramente), relativas à freqüência com que cada estratégia é reconhecida como utilizada pelo respondente quando lê textos de estudo. A aplicação desse instrumento com os alunos de graduação foi coletiva e realizada por uma docente da IES, após uma explicação oral e o recebimento por escrito do termo de aceite. Para os participantes da pósgraduação, após o aceite, o instrumento foi remetido por e-mail. Para ambos os grupos de participantes foi solicitado que ao responderem tivessem como foco a leitura de textos acadêmicos. 3. Resultados e algumas considerações A maioria dos participantes informou à pesquisadora que nunca havia posto para si como objeto de análise as estratégias que utiliza enquanto lê, tendo sido instigados para tal ao responder ao instrumento. Este resultado, por ter sido espontaneamente apresentado e, por conseguinte sem razões para um informe controlado, seja pela pesquisadora seja pela forma como o instrumento foi aplicado, em si e em parte desvela como foi a constituição desses alunos como leitores. Isto, porque é de se esperar que quaisquer desses participantes independente do grupo a que pertença (N=104), pela obrigatoriedade da escolarização anterior leram/deveriam ter lido inúmeros e distintos textos. Mas, como diz Eni Orlandi, leram ou foram lidos? Fizeram tais leituras como experiência pessoal significativa ou só © Ciências & Cognição para responder a tarefas propostas por outrem? Como ler é um processo que se antecipa e ultrapassa a escolarização, sobretudo quando relativo aos suportes e gêneros textuais, que condições de (contra)controle não foram ensinadas e aprendidas para que cada um deixasse de conhecer como opera em face de textos, no caso de estudo e para que ao ler se assumisse como sujeito no desenrolar dessas experiências? Considerando que a compreensão da leitura exige a participação ativa dos leitores em relação ao texto podemos afirmar que este processo se inicia por um contato implicado do leitor com o posto/dado a ler, especialmente no caso de textos de estudo, situação esta indicada aos participantes para terem em foco quando das respostas ao instrumento usado. Entre as quatro estratégias arroladas no instrumento usado, para a situação do encontro do leitor com o texto para estudo, isto é, antes de iniciada a leitura propriamente do mesmo, encontra-se uma que possibilita identificar a freqüência com que os respondentes pensam a respeito da finalidade ou necessidade de produzir uma determinada leitura. De modo geral, os participantes indicaram que o fazem freqüentemente (75% do GM; 73,9% do GL1; 63,1% do GC2; 48,1% do GL2), apenas 15% dos participantes do GC1 assim responderam. Entretanto, não ocorre com a mesma freqüência a ação de levantamento de hipóteses acerca do material a ser lido após um exame inicial e geral do texto. Porém é freqüente para 51,8% do GL2, 50% do GM, 42,1% do GC2, 31,6% do GL1 e 21,7% do GL1. Ao longo da leitura boa parte dos participantes freqüentemente relaciona as informações do texto com suas crenças ou seus conhecimentos do assunto (75% do GM; 66,7% do GL2; 30,4% do GL1; 47,4% do GC2; 63,1% do GC1), e pensa acerca das implicações dessas informações (62,5% do GM; 74% do GL2; 56,5% do GL1; 63,1% do GC2; 47,5% do GC1). A preocupação em acompanhar e avaliar o quanto estão compreendendo acerca do texto é comum entre: 87,5% do GM; 92,5 do GL2; 78,3% do GL1; 63,1% do GC2; 84,2% do GC1. 56 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 51-61 <http://www.cienciasecognicao.org/> De modo geral, poucos alunos dos cursos de graduação tomam notas, enquanto lêem, isto é, reescrevem para si, copiando ou não informações do texto, (5,3% do GC2; 10,5% do GC1; 25,9% do GL2), resultado este que os diferencia dos alunos do Mestrado. O recurso de sublinhar idéias ou palavras © Ciências & Cognição é mais usado pelos participantes do GM (93,7%), porém, no caso dos demais participantes quando esse recurso é comparado ao de gerar imagens acerca dos conceitos ou dos fatos descritos no texto ocorre com menos freqüência, como pode ser verificado na figura 1. Figura 1 - Indice percentual por grupo quanto ao uso das estratégias de suporte à leitura. Quando não compreendem, uma palavra, frase ou parágrafo, os recursos mais freqüentes são os de: reler o mesmo trecho (100% do GM; 92,6% do GL2; 95,6% do GL1); voltar a ler as partes que o precedem (87,5% do GM; 85,2% do GL2); continuar a ler na busca de mais esclarecimentos (68,7% do GM; 34,1% do GL1); consultar uma fonte externa (outro livro, ou alguém), é o que fazem freqüentemente 62,5% do GM e 42,1% do GC1. Vale lembrar que a leitura como um processo de produção de sentidos “apenas se revela no movimento de idas e vindas entre texto e leitor” (Cordeiro, 2004, p. 97), as estratégias de parar, refletir, reler o que não se compreendeu são estratégias empregadas freqüentemente por todos os participantes, inde- pendente do nível de escolarização (graduação/pós). Entretanto, esse processo de produção de sentidos pode ser identificado, também, após a leitura. Nesse caso, de modo geral, os movimentos de leitura das participantes já se distinguem quanto à freqüência de utilização das estratégias propostas. Registra-se que mais participantes do mestrado do que os da graduação relêem os pontos mais importantes (81,2% do GM; 59,3% do GL2; 43,4% do GL1; 26,3% do GC2; 31,6% do GC1). Entretanto, em pouco se diferenciam quanto ao refazerem a leitura de todo o texto (37,5% do GM; 33,3% do GL2; 26% do GL1; 21% do GC2; 10,5% do GC1), possivelmente por se preocuparem a57 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 51-61 <http://www.cienciasecognicao.org/> penas em recordar os pontos mais relevantes do texto (50% do GM; 37% do GL2; 31,6% do GC2; 36,8% do GC1). Menos, ainda, são os que escrevem um texto, mesmo que seja uma paráfrase ou resumo do material lido (25% do GM; 11,1% do GL2; 13% do GL1; 10,5% do GC2; 21% do GC1). Interessante foi o resultado registrado relativo à preocupação em verificar quais das hipóteses acerca do conteúdo do texto que haviam levantado antes de iniciada a leitura, se confirmam ou não (56,2% do GM; 33,3% do GL2; 13% do GL1; 15,8% do GC2; 10,5% do GC1). O quadro dos resultados apresentados converge com os verificados em outras pesquisas (Pullin e Tanuri, 2007), quer quanto aos recursos e modos de ler utilizados por estudantes do Ensino Superior quando estudam, quer quanto às preocupações que os afligem quando estudam a partir da leitura de textos. De certo modo, os resultados obtidos no presente trabalho vão na direção dos percebidos e por Vicentelli (2004), referentes à sua investigação acerca do desempenho leitor de estudantes de Ensino Superior na Venezuela. Referida análise indica que uma porcentagem significativa de estudantes subutiliza a leitura. O fato de apenas alguns dos participantes pensarem acerca das implicações das informações contidas no texto é preocupante, especialmente em se tratando do nível de formação acadêmica em que se encontram. Chartier (1999) adverte, ainda, para o fato de que muitos alunos, futuros professores, “têm a sensação de que o proveito que tiram de suas leituras é pequeno, incerto, aleatório” (Chartier, 1999: 89). Seria, então, essa a razão por que tal comportamento ocorre com menos freqüência entre os participantes? Além disso, os resultados obtidos instigam a que concordemos com Carlino (2002) quanto a que é necessário ensinar a ler no Ensino Superior, seja pela natureza dos artefatos culturais comumente recomendados para leitura (Mostafa, 2004; Witter, 1992; Pullin, 2007), seja pelas competências exigidas para o ofício desse aluno, as quais em níveis de escolarização anterior não foram ensinadas. © Ciências & Cognição Pontuam, ainda, na direção da relevância da metacognição dos processos de aprender a partir de textos, a qual viabiliza a autonomia e a inserção profissional e cidadã dos alunos, independente do nível de sua escolarização. 4. Observações finais Apesar da “dimensão capital da formação inicial” (Chartier, 1999: 93), atribuída pelos formadores de futuros professores, pouco se tem investido nesta etapa e mesmo em anteriores, para a formação de leitores competentes. Um dos papéis a ser desempenhado por qualquer um que se nomine/seja nominado de professor é, em nossa opinião, o de “ator social de autonomia” (Giesta, 2001: 3840). Este papel gestor, por natureza, não só é imprescindível como implica em compromissos a serem assumidos por esse profissional, no fato de ser ele um dos principais mediadores sociais para que as novas gerações possam se apropriar dos distintos saberes, declarativos, processuais e outros, legitimados socialmente como essenciais. Tais compromissos constituem-se em condições necessárias, tanto para sua competência pessoal como profissional. Entre essas, destacam-se seus saberes relacionados à leitura e à metacognição, visto que: “O professor pode fazer a diferença na formação de leitores, especialmente despindo-se de seu poderio professoral e vestindo-se de uma nova autoridade – a que sabe mediar a construção de conhecimentos pelos aprendizes.” (Kons, 2006: 7) Incluindo-se nestes os relacionados ao conhecimento e controle metacognitivo, como defendido por Couceiro-Figueira (2004). Concluímos, lembrando Vygotsky (1997) que define a educação, de um ponto de vista psicológico, como uma re-educação, em razão de ela intervir e influenciar o desenvolvimento dos indivíduos, de forma sistemática e objetivar intencionalmente, por um esforço 58 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 51-61 <http://www.cienciasecognicao.org/> consciente, a apropriação dos modos de ser e dos bens culturais. É, nessa perspectiva que os eventos de educação contribuem para o processo da seleção social dos aspectos e dimensões da personalidade dos indivíduos, em uma dada sociedade. Além do mais, em face da responsabilidade assumida por professores, desde a Educação Infantil até à ofertada por IESs, consideramos que a decisão deste profissional continuar a ser professor relaciona-se à das condições que dispõe para a sua formação continuada as quais, por sua vez, produzem reflexos na sua identidade (Giesta, 2001). Tais condições e as habilidades necessárias para que esse profissional possa “aprender a aprender” e a refletir sobre seus saberes não se restringem aos espaços de formação escolar acadêmica. Por isso, algumas dessas competências devem ser ensinadas especificamente nesses espaços, de modo que as condições e as competências para a autonomia pessoal e profissional possam ser desenvolvidas e implantadas, para serem utilizadas ao longo da vida. Instrumentos como o ora utilizado na presente pesquisa podem auxiliar os professores a conhecer as estratégias de leitura que seus alunos utilizam para estudar a partir de textos. Ao conhecê-las, os professores podem auxiliar e, se necessário, propor novas formas e modos dos alunos se relacionarem com esses textos. Larrosa (2002) firma uma posição de escuta para os que lêem. Desse autor emprestamos sua proposição como imprescindível, tanto por parte dos professores quanto dos alunos, isto é, para aqueles que aprendem e, porque aprendem podem ensinar e gerar novos conhecimentos, não só para si, como em favor daqueles junto aos que atuam ou venham a atuar. Em nossa opinião, há que se (re)estabelecer a dimensão formadora do espaço universitário para a construção de habitus e práticas eficientes de leitura e escrita. Para tanto, as atividades de ensino, pesquisa e extensão nas quais os alunos participam, devem induzi-los a que sintam necessidade de produzir leituras autônomas, e a modificar os valores que freqüentemente atribuem à leitu- © Ciências & Cognição ra, conforme defendido por Pullin e Pullin (2005). Ora, tais condições são passíveis de serem efetivadas em ambientes em que as práticas do fazer educativo pressuponham leitura efetiva, tanto por parte dos que ensinam, quanto dos que aprendem. Tais leituras não são, necessariamente, realizadas por prazer ou paixão, mas, com certeza, movidas para atingir metas de realização pessoal, circunscritas ou não a aprendizagens de conteúdos específicos. Referimo-nos, aqui, de modo especial às diversas estratégias e práticas de leitura que possibilitam, pelos modos de sua produção e pelos diversos suportes utilizados, o aprofundamento dos saberes, especialmente dos relativos à formação profissional, sejam estes disciplinares, curriculares ou experienciais (Tardif, 2002). 5. Referências bibliográficas Barzotto, V.H. (2005). Leitura e produção de textos para alunos ingressantes no terceiro grau. Em: Regina Célia de Carvalho Paschoal Lima. (Org.). Leitura - múltiplos olhares. 1 ed. (pp. 97-101). Campinas: Mercado de Letras. Boruchovitch, E.; Costa, E.R. e Neves. E.R.C. (2005). Estratégias de aprendizagem: contribuições para a formação de professores nos cursos superiores. Em: Joly, M.C.R.A.; Santos, A.A.A.; Sisto, F.F. (Orgs.). Questões do cotidiano universitário. (pp. 239-61). São Paulo: Casa do Psicólogo. Carlino, P. (2002, outubro). Alfabetización académica: un cambio necesario, algunas alternativas posibles. 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Todos nós possuímos um potencial criativo, importante para a solução de problemas cotidianos, e esse potencial se desenvolve em resposta aos novos desafios e situações que a sociedade vivencia. Assim, a educação na contemporaneidade tem sido instada a cumprir o papel de oportunizadora e propiciadora do desenvolvimento e formação de cidadãos criativos, preparados para a atuação numa sociedade marcada pelo dinamismo. Nessa perspectiva, adotamos o hipertexto como um ambiente potencializador do diálogo e do compartilhamento de experiências, que subsidiem a introdução/ adaptação e a criação de mudanças significativas para o desenvolvimento de processos de aprendizagem sistemicamente mais criativos. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 62-71. Palavras-chave: criatividade; hipertexto; educação. Abstract This article has as objective presents and to problematize possibilities of the hypertext as strategy for the promotion of favorable educational environment to the development of the creativity. All of us possessed a creative potential, important for the solution of daily problems, and that potential grows in response to the new challenges and situations that the society lives. Like this, the education in the contemporary society has been urged to accomplish the role of promoting the development and creative citizens' formation, prepared for the performance in a society marked by the dynamism. In that perspective, we adopted the hypertext as an potential environment of the dialogue and of the sharing of experiences, that subsidize the introduction/adaptation and the creation of significant changes for the development of processes of learning more creative. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 6271. Key Words: creativity; hipertext; education. - Â.Á.C. Dias é Mestre (Universidade de Nova York), Doutora (Universidade de Londres) e Líder do Grupo de Pesquisa Lattes (CNPq) “Educação Hipertextual”. Atua como Professora Adjunta (Faculdade de Educação, UnB). Endereço para correspondência: HCGN 709, Bloco I, Apto. 202, Asa Norte, Brasília, DF 70.750-709. Telefone: (61) 3275-1029. E-mail para correspondência: [email protected]. K.S. Moura é Graduada em Pedagogia (Faculdade de Educação, UnB), Mestranda em Educação (UnB), na área de Comunicação e Educação e Integrante do Grupo de Pesquisa Lattes (CNPq) “Educação Hipertextual”. Endereço para contato: QN 12B, Conjunto 07, Casa 05, Riacho Fundo II, Brasília, DF 71.881-620. Telefone: (61) 3333-0634 ou (61) 8118-6827. E-mail para correspondência: [email protected]. 62 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 62-71 <http://www.cienciasecognicao.org/> 1. Introdução “Criatividade consiste em ver o que todo mundo vê e perceber o que ninguém percebeu” Maury Fernandes (1998: 164) A criatividade tem sido objeto de diversos estudos acadêmicos e publicações variadas. Essa multiplicidade de discursos a respeito da criatividade se justifica pelo caráter complexo desse constructo que se expressa em diferentes contextos e implica, para sua definição, uma percepção subjetiva que lhe confere certo grau de relatividade. A criatividade se expressa em diferentes áreas da atuação humana – trabalho, educação, relações pessoais, organização empresarial, produção comercial, ciência e tecnologia, esportes, artes, artesanato e outras. Este trabalho, contudo, tem sua fundamentação e subsídios provocadores advindos de estudos a respeito da criatividade em um contexto hipertextual de aprendizagem. “Quando nos referimos à criatividade dos alunos, estamos nos referindo a sua criatividade numa área específica: sua criatividade no processo de aprendizagem.” (Mitjáns Martínez, 2002: 192) As ponderações aqui relatadas fundamentam-se nos estudos relacionados à preparação e desenvolvimento do minicurso “Educação e hipertexto – criatividade na rede”, apresentado na VI Semana de Extensão da UnB – Criatividade e Produção do Conhecimento, no período de 19 a 20/10/2006, constituindo-se em um desdobramento dessa atividade. Neste artigo, – assim como foi realizado no minicurso – são apresentadas reflexões acerca das mudanças nas formas de experienciar o mundo, as outras pessoas e a si mesmo, que são potencializadas pelas vivências em ambientes hipertextuais. Nesse sentido, são apresentadas e problematizadas possibilidades do hipertexto como estratégia para a promoção de ambientes educativos propícios ao desenvolvimento da criatividade. © Ciências & Cognição 2. Tecendo os fios da criatividade O potencial criativo do ser humano se desenvolve em resposta aos novos desafios e situações que a sociedade vivencia. O pensamento criativo é essencial para o desenvolvimento de uma compreensão ampla e ativa nas interações com múltiplos problemas e situações presentes num mundo cada vez mais complexo. Criatividade é um conceito muito amplo e envolve um misto de situações, devido à complexidade desse conceito inúmeras definições são possíveis, sejam elas relativas ao processo criativo, à pessoa criativa, ao produto, ao ambiente, à expressão. Neste trabalho, consideramos criatividade como: “o processo que resulta na emergência de um novo produto (bem ou serviço), aceito como útil, satisfatório e/ou de valor por um número significativo de pessoas em algum ponto no tempo.” (Alencar, 1998: 15) A exigência para que se tenha uma idéia criativa é que esta origine um produto novo, pelo menos para o sujeito que o gerou. No entanto, uma idéia criativa nem sempre é reconhecida de imediato, às vezes são necessário anos até que um produto seja reconhecido e declarado de valor pela sociedade. O reconhecimento desse produto depende de uma das últimas fases do processo criativo, a comunicação. “Durante o processo criativo a pessoa tira algo de si e comunica esse algo ao outro. Comunicar é o melhor momento do processo criativo.” (Sátiro, 2002: 229) Criatividade, apesar de sua amplitude conceitual, não descreve uma pessoa, descreve idéias, produtos que são novos, o que descreve uma pessoa são os seus comportamentos criativos, como motivação, abertura à experiência, independência, flexibilidade, autoconfiança, dentre outros. 63 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 62-71 <http://www.cienciasecognicao.org/> Outro conceito muito próximo ao conceito de criatividade é o do termo inovação. Muitas vezes, por falta de clareza, esses dois conceitos são utilizados como sinônimos. Apesar de esses dois conceitos estarem intimamente interligados, a inovação pressupõe que algo criativo já tenha sido gerado. Inovar significa introduzir novidade, adotar e implementar uma nova idéia (processo, bem ou serviço) em uma dada situação como resposta a um problema percebido, transformando a nova idéia em algo concreto (Alencar, 1998). Assim, inovar depende que idéias criativas tenham sido elaboradas a priori, de modo que estas idéias são reelaboradas e adaptadas a um novo contexto. Esse processo intencional é realizado sempre visando um benefício, transferindo-se uma idéia proveitosa que foi implementada em determinado ambiente para outro contexto que necessita dos mesmos melhoramentos. Nesse sentido, criar exige muito mais do sujeito que o ato de inovar, criatividade é um processo que resulta de um comportamento produtivo, construtivo, contribuição para; atitude que demanda conhecimento, imaginação e avaliação; implica desafiar, ver novas maneiras, arriscar-se, sendo necessário, dessa forma, condições de inventividade que abram espaços para apreensões, dúvidas e perguntas; não é um atributo de indivíduos, mas dos sistemas sociais que fazem julgamento sobre os indivíduos (aquele que imprime em seu contexto suas variações individuais). 3. No labirinto da concepção hipertextual O conhecimento é tecido por fios advindos de inúmeros lugares, de diferentes campos do saber e de diversas naturezas, que se entrelaçam em um constante movimento, tecendo-se e destecendo-se, de modo a formar uma rede hipertextual. O hipertexto1 é uma construção aberta, propícia às relações dialógicas2 entre os caminhantes da rede, e formada por diversos gêneros discursivos – sejam jornais, filmes, poesias, músicas, literatura, pinturas, livros, mídias, esculturas, propagandas, dentre vários outros – que trazem inúme- © Ciências & Cognição ras vozes3 que dialogam de modo a construir os mais diversos conhecimentos. O hipertexto flexibiliza as barreiras entre os diferentes campos do conhecimento, possibilitando infinitas conexões entre as informações de modo reticular. Assim, o hipertexto se configura como um mundo de significação a ser explorado, de maneira que o hipertexto: “é talvez uma metáfora válida para todas as esferas da realidade em que significações estejam em jogo.” (Lévy, 1997: 25) A rede é uma forma de organização democrática, constituída por elementos autônomos, mas que cooperam entre si e se interligam de modo a complementar-se e enriquecer-se. São as articulações que fortalecem e expandem a rede de conhecimentos, demonstrando que uma das principais características das redes é a sua capacidade de existir sem hierarquia. Da mesma forma, a rede não possui um centro único, mas todas as suas conexões se constituem em pontos da rede, locais onde ocorrem as inter-relações entre os diversos elementos da rede, o que constitui a multiplicidade do conhecimento. A rede hipertextual favorece um pensamento não-linear, onde o leitor-caminhante é um sujeito ativo, que está a todo o momento estabelecendo relações próprias entre diversos caminhos4. Nessa perspectiva, é preciso preocupar-se com o percurso, nas múltiplas e ininterruptas conexões e articulações nas quais o sujeito vai descobrindo, revelando, recriando significados. As possibilidades de trajeto que os sujeitos podem estabelecer nas redes de conhecimentos se dão de forma não-linear, em um processo de construção de sentido por meio da conexão de diversos e diferentes textos5 verbais e não-verbais, que possibilitam a articulação de vários conteúdos e a negociação/interpretação dos sentidos6. Assim, o hipertexto é uma rede comunicacional/social alimentada por informações que possibilita aos seus exploradores construírem diferentes compreensões, devido à sua natureza rizomática e estrutura labiríntica. 64 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 62-71 <http://www.cienciasecognicao.org/> Como um labirinto7 a ser explorado, a rede hipertextual promete aos seus exploradores surpresas e percursos desconhecidos. O labirinto rizomático é um labirinto aberto a todos os pontos de vistas e sentidos e totalmente conectável, em todas as direções, possui um “caráter de revelação. Interagir (no amplo sentido [...]) com a obra faz com que a pessoa obtenha uma outra percepção do mundo” (Leão, 2002: 161). Esse tipo de labirinto, porém, exige uma participação especial dos seus exploradores, uma participação mais colaborativa, pois o sujeito: “tem de necessariamente querer penetrar no labirinto. No caso de um labirinto textual, isso significaria o esforço intelectual que é exigido para a compreensão.” (Leão, 2002: 160) Aprender é construir um labirinto, inventar percursos, procurar situações desafiantes, decifrar enigmas. É construir um labirinto com movimentos (uma dança), num ritmo de movimentos alternantes, onde os labirintos se desdobram em infinitos labirintos durante o percurso. As estruturas se reconstroem, desdobram-se e se proliferam à medida que novos caminhos são desbravados, de modo que este é um espaço que se cria mediante o ato de caminhar. “Podemos conceber a complexidade labiríntica também como um território repleto de encruzilhadas no qual os caminhos bifurcam-se o tempo todo.” (Leão, 2002: 32) Assim, o hipertexto se constitui em um labirinto multicursal, onde cada caminho, cada ponto da rede de conhecimento se desdobra em diversos outros caminhos, abrindo inúmeras possibilidades de trajeto. Esses desafios que surgem ao longo da jornada que impulsionam a constante busca por orientação. São as constantes bifurcações que possibilitam diferentes escolhas aos sujeitos/leitores que se aventuram em caminhos desconhecidos, rompendo com a linearidade e © Ciências & Cognição propondo descobertas/leituras mais inusitadas. “Um olhar investigativo das redes revela-nos que existe, por trás do aparente caos, uma ordem complexa. Assim, o labirinto fala-nos desse caos ordenado, de uma estrutura complexa que requer um tremendo esforço para ser decifrada.” (Leão, 2002: 36) Os labirintos exigem simultaneamente criatividade para percorrê-lo, no sentido de quem realiza uma obra, revelando o percurso doloroso da criação, com suas idas e vindas e com seus múltiplos erros e acertos, e um alto grau da ação reflexiva, para penetrá-los e compreendê-los, de modo a “extrair um todo coerente de seus meandros” (Leão, 2002: 22). Os labirintos são construções complexas que evocam inúmeras inter-relações entre referências que seriam contraditórias de acordo com uma visão linear. Nesses ambientes se entrelaçam inúmeros sentidos e significados, em uma constante polissemia. São essas idéias contraditórias que estão nas bases das bifurcações, são pares opostos, mas complementares entre si, que incorporam antinomias como “ordem & caos, prisão & liberdade, linearidade & circularidade, clareza & complexidade, instabilidade & estabilidade” (Leão, 2002: 20). Nessa perspectiva, estabelece-se uma nova forma de julgar os antigos dualismos, propiciando um novo olhar sobre suas complexas relações. Podemos observar que os caminhos se bifurcam, mas um não nega a existência do outro. Ao contrário, para existirem caminhos opostos, pelo menos duas alternativas de percurso devem coexistir, escolhas que não compõem somente numa bifurcação entre certo e errado, mas constroem um “fascinante labirinto de idéias que se entrelaçam e se conjugam” (Leão, 2002: 42). 4. As barreiras e os descaminhos do processo criativo A criatividade é o “recurso mais precioso de que o ser humano dispõe para lidar com os problemas e desafios” (Virgolim, 65 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 62-71 <http://www.cienciasecognicao.org/> 1998: 07). Entretanto, esse dom natural do ser humano, muitas vezes é reprimido desde a infância, como por exemplo, pelo modelo educativo que possuímos atualmente. Esse modelo não estimula o pensamento criativo, levantando barreiras para deixar de fora das aulas a imaginação e a fantasia, privilegiando a reprodução e a memorização como formas de ensino. O processo criativo envolve indepen dência e curiosidade. Aprender sempre mais de forma diferente e flexível. O atual sistema de ensino, ao não valorizar o desenvolvimento da criatividade, tem “subestimado o potencial criativo de seus alunos. Uma possibilidade de explorarmos nosso potencial criativo reside na perspectiva de aprendermos a brincar com nossos pensamentos e idéias. A criatividade apresenta-se como elemento indispensável na prática educacional e na vida diária” (Virgolim, 1998: 28). A educação tem o papel de oportunizadora e propiciadora do desenvolvimento e formação de cidadãos criativos, preparados para a atuação numa sociedade marcada pelo dinamismo. Entretanto, como afirma Alencar (1986), a escola, com freqüência, tem fracassado nessa tarefa de favorecer a criatividade, pois: “dá ênfase exagerada ao conformismo, à passividade e à estereotipia, em detrimento de certas condições que favorecem a manifestação da criatividade, como a intuição, a abertura aos sentimentos e emoções, interesses estéticos e curiosidade.” (Alencar, 1986: 33) E não só a escola, mas a sociedade como um todo, cultivou ao longo do tempo vários pressupostos que impedem que o potencial criativo presente em todos os sujeitos/educandos se desenvolva, pressupostos rígidos segundo os quais: “tudo tem que ter utilidade, tudo tem que dar certo, tudo tem que ser perfeito, não se pode divergir das normas impostas pela cultura etc.” (Alencar e Mitjáns Martínez, 1998: 25) © Ciências & Cognição Uma das formas de se anular totalmente o desenvolvimento de idéias criativas é privilegiando o produto final, trazido pelos educandos, que seu processo de criação. Esse produto final, muitas vezes, ainda é avaliado, comparado de forma taxativa e, se não estiver adequado aos moldes estabelecidos pelo processo de avaliação, são desprezados todos os esforços criativos dos seus criadores. Esse é resultado de um processo educativo autoritário onde a prioridade é a transmissão do conhecimento, ao invés de sua construção. Onde a aprendizagem é vista como um processo individual, na qual é priorizado o produto final e não o processo pelo qual esta acontece, possuindo um fim em si mesma, onde o educando não atua, sendo considerado como um simples objeto do processo educativo. A escola se constitui em um agente responsável pela formação integral do educando, para que no futuro este possa fazer parte da sociedade ao se engajar em uma profissão. Contudo, o aluno não é preparado para o mundo, mas para passar na avaliação, a escola apenas repassa os aportes necessários para que os sujeitos obtenham o sucesso, de forma que esse depende exclusivamente do esforço individual, recaindo sobre os sujeitos toda a responsabilidade pelo seu sucesso ou fracasso. O educando é excluído do processo de construção do conhecimento, seu papel se restringe apenas à memorização de conceitos abstratos que lhe foram ensinados, de modo que todas as diferenças individuais e o contexto ao qual os educandos pertencem são ignorados. A partir de todas essas barreiras que se impõem ao processo criativo, muitas questões nos são levantadas, tais como: Muitos professores não valorizam a criatividade no contexto escolar, será que esses professores não percebem a importância da criatividade na vida das pessoas? Ou será que acreditam que basta transmitir as informações que receberam no passado? Ou será que repetem as mesmas coisas ano após ano por comodismo? Já sabemos qual é o objetivo da criatividade na educação, agora, qual o objetivo da educação 66 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 62-71 <http://www.cienciasecognicao.org/> em uma sociedade que se apresenta cada vez mais criativa? O envolvimento pessoal dos estudantes em seu processo de aprendizagem é essencial, caso o estudante não apresente esse caráter ativo, como é desenvolvido o potencial criativo desse estudante durante o processo ensino-aprendizagem? Como pudemos perceber, inúmeras são as barreiras impostas ao desenvolvimento da criatividade, desde barreiras sociais, que “se identificam com aqueles elementos culturais, institucionais, grupais, ideológicos etc., que, estando presentes no contexto onde o indivíduo atua, limitam sua expressão criativa” (Alencar e Mitjáns Martínez, 1998: 26), até barreiras do próprio sujeito, as barreiras pessoais, “aqueles elementos que freiam o indivíduo internamente, ou seja, aquelas características do próprio sujeito que limitam a sua criatividade.” (idem) Desse modo, as barreiras à criatividade são relativas, dependem tanto dos sujeitos como das situações. Cultivar o pensamento criativo, desenvolvendo com os educandos as habilidades de perceberem lacunas, definirem problemas, coletarem e combinarem informações, elaborarem critérios para julgar soluções, testar soluções e elaborarem planos para implementação das soluções escolhidas, é indispensável no processo educativo. A criatividade é um dos valores mais importantes nessa época em que vivemos porque o que mais se aprecia neste momento são idéias. E as idéias surgem, em geral, no desenvolvimento de um processo educativo prazeroso que fertilize novas idéias e novas visões para nossas vidas. 5. Na teia da criatividade Durante muito tempo, a criatividade foi objeto de estudo apenas do campo da Psicologia. Estudava-se a criatividade como algo inato aos sujeitos, uma característica individual e que, assim, o diferenciava dos demais. Mas com o passar do tempo, verificou-se que a criatividade também era condicionada pelo contexto onde os sujeitos participavam, concluindo-se que não era possível investigar o processo criativo estudando apenas a pessoa e © Ciências & Cognição esquecendo de todas as suas vivências. Assim: “A criatividade depende também em larga escala das características do ambiente interno, como práticas interpessoais, sistemas de normas e valores, presença de incentivos e desafios, que podem estimular ou obstruir a criatividade.” (Alencar, 1998: 14) Por meio da existência de um sujeito único evidencia-se não apenas um modo de ser individual, mas a possibilidade de um mundo transformado segundo os seus ideais. Uma das características de uma pessoa criativa é a sua complexidade, uma pessoa criativa não é facilmente compreendida de um ponto de vista linear, pois se manifesta de diferentes maneiras, em função de contextos distintos. Cada sujeito é diferente, o que gera significações diferentes, diversidade de sujeito, que ao se inserir numa concepção de educação mais dialógica abre possibilidades para um processo criativo de produção de significados. E para que isso seja possível, a Educação Hipertextual contribui para a constituição de uma atitude dialógica, oferecendo um ambiente de aprendizagem social e individual no sentido mais profundo da experiência de aprender. Ao se realizar uma Educação Hipertextual objetiva-se formar um sujeito capaz de “ler” seu ambiente e interpretar as relações, os conflitos e os problemas que surgem. Esta leitura é realizada pelo sujeito, segundo suas condições históricas e culturais, quando este se inter-relaciona com um mundo de significados e, através de um processo de descoberta, encontra soluções criativas para seu dia-adia. Para que essa aprendizagem ocorra, o ato de educar deve tornar-se uma aventura pela qual o sujeito e os sentidos do mundo vivido se construam mutuamente na dialética da compreensão/interpretação. Nesse sentido, o sujeito-intérprete estaria diante de um mundo-texto, mergulhado na polissemia e na aventura de produzir sentidos, construindo sua 67 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 62-71 <http://www.cienciasecognicao.org/> compreensão através da fusão de seus universos compreensivos que se encontram. Esse tipo de educação para a criatividade suscita diferentes estilos de pensar e aprender dos educandos, o que exige a utilização de estratégias variadas de ensinoaprendizagem. Não basta uma educação calcada em uma única forma de ensinar e de aprender, é necessária a constituição de um espaço pluralizado, com variação de textos, gêneros, percursos, bifurcações e encruzilhadas, que possibilitem ao educando a experiência do caminhar e a constituição de um conhecimento múltiplo durante os trajetos da própria viagem. Os percursos percorridos durante o processo criativo são os percursos de um labirinto, pois “atos criativos são atos de coragem. Primeiro, porque o criador de uma inovação técnica ou social está entrando em águas desconhecidas” (Frost apud Alencar, 1998: 16). Segundo, porque o explorador, como leitor/produtor, encontra em sua aventura no labirinto elementos indispensáveis para o desenvolvimento do processo criativo – como motivação, abertura à experiência, independência, flexibilidade, autoconfiança, multiplicidade, além de vários outros citados ao longo do texto. A multiplicidade da rede de conhecimentos8 favorece uma dinâmica de organização que desencadeia processos imprevisíveis de criação. Assim, um ambiente propício ao desenvolvimento da criatividade deve possuir “disponibilidade de meios culturais, abertura a estímulos ambientais, livre acesso aos meios culturais por todos os cidadãos sem discriminação, exposição a estímulos culturais diferentes e mesmo antagônicos” (Alencar e Mitjáns Martínez, 1998: 24). Em outras palavras, uma educação atualizada, que utilize aportes teóricos do dia-a-dia dos educandos de forma a preparar cidadãos críticos para os desafios do mundo contemporâneo. A escola pode estimular o pensamento criativo desenvolvendo e utilizando os talentos e habilidades dos alunos, incentivando-os a soltar a imaginação, explorando suas idéias e soluções criativas para diferentes situações e problemas. © Ciências & Cognição “Os exercícios de criatividade propiciam uma abertura da sala de aula para a expressão do pensamento divergente, influindo no aumento da auto-estima dos alunos e na satisfação do aluno com o sistema escolar.” (Virgolim, 1998: 10) É essencial que as escolas possibilitem aos alunos distintas alternativas para a expressão e o desenvolvimento do potencial criador, pois criar é algo inerente ao ser humano, estamos criando e inventando todo o tempo. Todos nós possuímos um potencial criativo e habilidades e talentos para inovar e inventar, sendo que as emoções, sensações e os sentimentos muitas vezes constituem-se em mola propulsora para o ato criativo. A escola, frente suas dificuldades, deve procurar uma forma criativa para solucionar seus problemas e suprir suas necessidades, além disso, abrir possibilidade para que seus educandos desenvolvam seu potencial criativo, assim, estes “aprendem a sensibilizar-se com seus próprios problemas e a defini-los para solucioná-los criativamente” (Mitjáns Martínez, 2003: 147). A escola deve apresentar um contexto de apoio, ideal para trabalhar as expressões de mundo interna dos seus educandos. Um contexto escolar baseado no compromisso de criar interações dinâmicas com a organização do trabalho pode motivar as pessoas a apresentarem soluções criativas para seus problemas, de modo a não deixar que os trabalhos oferecidos pela escola sejam interrompidos. Assim, as pessoas presentes no contexto escolar, a cada dia que passa, aumentam seu potencial criativo ao se envolver com a escola e ao traçar metas para alcançar seus objetivos. “Os objetivos não têm de ser exatamente os mesmos para todos os estudantes. Os alunos são antes de tudo pessoas diferentes, com níveis diversificados de desenvolvimento motivacional e intelectual e diferentes áreas de interesses específicos. Dentro do possível, precisamos trabalhar com estas diferenças, 68 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 62-71 <http://www.cienciasecognicao.org/> contribuindo para que cada um se desenvolva o máximo.” (Mitjáns Martínez, 2003: 166) Dessa forma, é importante trabalhar com as diferenças como forma de surgimento de diferentes atos criativos, cada um, em sua especificidade, desenvolve suas habilidades criativas e contribui para a escola de maneiras diferentes. E para que esse contexto favorável ao desenvolvimento da criatividade ocorra, é necessário estar sempre: “Incentivando a curiosidade, propondo desafios inovadores e interessantes, reforçando uma auto-estima positiva, permitindo o erro, promovendo um ambiente de conforto emocional e de tolerância para com o fracasso e as frustrações.” (Virgolim, 1998: 24) Nessa perspectiva, uma instituição educacional que valoriza cada pessoa envolvida em seu contexto tem possibilidades de oferecer uma educação de qualidade e incentivar a criatividade, o que irá proporcionar a formação de cidadãos conscientes de sua responsabilidade social. Assim, a escola pode direcionar “seu olhar para o futuro, exercitando a imaginação e a fantasia de seus alunos na tentativa de solucionar problemas e/ou situações que novos tempos sempre trazem” (Virgolim, 1998: 25). Contudo, devemos considerar também que o “desenvolvimento da criatividade na educação passa necessariamente pelo nível da criatividade dos profissionais que nele se encontram.” (Alencar e Mitjáns Martínez, 1998: 31) Contribuir para o desenvolvimento da criatividade dos educandos supõe atitudes dos educadores que implicam certo grau de criatividade, no entanto, muitos educadores “não se sentem preparados para lidar com o desenvolvimento da Criatividade em sala de aula; têm dificuldades em diagnosticar atitudes criativas, em avaliá-las e em promovê-las” (Giglio, 1992: 94). Por outro lado, também ouvimos muito que o “bom educador” é aquele que usa a criatividade, o carisma e ministra uma aula © Ciências & Cognição show, conseguindo conquistar todos os seus educandos. Se valorizarmos apenas a criatividade “inata” desse educador, acreditamos que uma docência de qualidade se baseia em talentos capazes de seduzir os educandos, significa desprezarmos o valor de uma formação profissional e de recursos voltados para o aprimoramento da prática pedagógica, desvalorizamos, assim, uma educação pautada na formação crítica, na construção do conhecimento, no estabelecimento de relações dialógicas e nos diversos recursos onde estão presentes os diferentes olhares, os diferentes discursos. O que caracteriza um professor comprometido com o desenvolvimento da criatividade dos educandos não é o seu conhecimento dos métodos, mas a crença que sustenta sobre os estudantes e sobre si mesmo, pois: “O professor criativo é capaz de transmitir e extrair de seus estudantes vivências emocionais positivas em relação à sua matéria, ao processo de aprendizagem e às realizações produtivas.” (Mitjáns Martínez, 2003: 185) Quando o professor desenvolve sua prática pedagógica de forma lúdica que estimule o processo criativo, o ensino-aprendizagem se torna mais fácil, privilegiando a construção de conhecimentos. 6. Considerações finais No contexto contemporâneo em que a sociedade se caracteriza pela globalidade e pela complexidade das dinâmicas relacionais, se faz necessário que a escola possa desenvolver o potencial criativo dos educandos. Propiciar ambientes de diálogo entre educadores de diferentes instituições, maximizando possibilidades de compartilhamento de suas experiências, configura-se numa ferramenta para o desenvolvimento do pensamento criativo. Assim, propõe-se que a escola esforce-se para cumprir seu papel de “fornecer experiências novas, instigantes, que desper- 69 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 62-71 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição tem a curiosidade” dos educandos, e também dos professores para que estes, em conjunto, possam buscar “soluções originais para os problemas que estão emergindo em decorrência das exigências da modernização dos tempos” (Matos, 2005: 03). O hipertexto, com sua lógica labiríntica, é uma alternativa às práticas educativas autoritárias, oferece oportunidades de desenvolvimento de atividades criativas a serem trabalhadas nas salas de aula dos mais diferentes lugares, transformando-as em ambientes potencializadores do diálogo e do compartilhamento de experiências, que subsidiem a criação de mudanças significativas para o desenvolvimento de processos de aprendizagem sistemicamente mais criativos. fônica, de modo a favorecer o processo criativo e a geração de produtos criativos. “A solução inovadora de problemas, a capacidade de problematizar a informação recebida, as perguntas interessantes, a elaboração própria do conhecimento, a curiosidade, o estabelecimento de relações, às vezes remotas mas pertinentes, são formas de expressão da criatividade no processo de apropriação de conhecimentos que devem e podem ser estimulados no contexto escolar. As atitudes e as ações criativas no processo de produção de conhecimento constituem a base para a capacidade de aprender a aprender, tão valorizada hoje como competência profissional e consequentemente como um objetivo educativo importante.” (Mitjáns Martínez, 2002: 192) Alencar, E.S. (1986). Psicologia da Criatividade. Porto Alegre: Artes Médicas. Alencar, E.S. (1998). Gerência da criatividade. São Paulo: Makron Books. Alencar, E.S. e Mitjáns Martínez, A. (1998). Barreiras à expressão da criatividade entre profissionais brasileiros, cubanos e portugueses. Psicol. Esc. Ed., 2 (1), 23-32. Bakhtin, M. (1981). Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Barros, D.L.P. e Fiorin, J.L. (Orgs.). (1994). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: em torno de Bakhtin Mikhail. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. (Ensaios de Cultura, 7) Chaves Filho, H. (2003). Educação Hipertextual: por uma abordagem dialógica, polifônica e intertextual. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de Brasília, Brasília, DF. Fernandes, M.C. (1998). Criatividade: um guia prático – preparando-se para as profissões do futuro. São Paulo: Editora Futura. Alencar, E.S. (1998). Gerência da criatividade. São Paulo: Makron Books. Giglio, Z.G. (1992). De criatividade e de Educação. Campinas: Editora Unicamp. Leão, L. (2002). A estética do labirinto. São Paulo: Editora Anhembi Morumbi. Lévy, P. (1997). O que é o virtual?. São Paulo: Editora 34. Criar é estabelecer novas coerências, suscitar novos significados, fazer novos relacionamentos, compreender em termos novos, é uma aventura em busca de saídas originais, desbravar novos caminhos, assim, o ato criativo esta diretamente ligado à capacidade de compreensão dos sujeitos, à capacidade de relacionar, de configurar, de significar. O educador, para mobilizar seus educandos a se tornarem pessoas mais criativas, pode utilizar uma metodologia mais aberta, flexível, contextualizada, desafiadora, heterogênea, poli- “A ação criativa do professor em sala de aula demanda não só sua capacidade de elaborar atividades inovadoras que permitam a atingir os objetivos educativos de forma mais eficiente, mas também demanda habilidades comunicativas que lhe permitam criar um espaço comunicativo que se constitua no espaço onde as atividades podem fazer sentido para o desenvolvimento da criatividade.” (Mitjáns Martínez, 2002: 189) 7. Referências bibliográficas 70 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 62-71 <http://www.cienciasecognicao.org/> Matos, D.R. (2005). Criatividade e percepção o clima de sala de aula entre alunos e escolas abertas, intermediárias e tradicionais. Dissertação de Mestrado, Programa de PósGraduação em Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília, DF. Mitjáns Martínez, A. (2002). 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(2) “O dialogismo é, para Bakhtin, um termo usado para designar a negociação de significados socialmente construídos pela interação de vozes múltiplas, caracteriza-se pelo agrupamento de pessoas, permeados por experiências compartilhadas ou interesses, onde a construção de significados de dá por um processo contínuo de comunicação, interpretação e negociação.” (Chaves Filho, 2003: 44) (3) Bakhtin (1981: 32) caracteriza como polifonia a “multiplicidade de vozes e consciências independentes e distintas que representam pontos de vista sobre o mundo”. (4) A multilinearidade possibilita a criação de um espaço para o exercício da autonomia do leitor, que realiza seu trabalho de significação a partir das escolhas que faz nesse ambiente, intervindo, não apenas na seleção de caminhos, mas, também, ou, principalmente, na construção de sentido. (5) “A intertextualidade é o processo de incorporação de um texto em outro, seja para reproduzir o sentido incorporado, seja para transformá-lo.” (Barros, 1994: 30) (6) A comunicação entre os sujeitos que caminham pela rede é fator estruturante. (7) Na metáfora do labirinto como conhecimento, assim como na rede hipertextual, tudo é considerado texto, é uma rede na qual há a conexão dos diferentes saberes. (8) Essa multiplicidade é uma conseqüência da heterogeneidade das redes, possibilidade de interação com diferentes linguagens e múltiplas vozes, é a própria essência do dialogismo. A heterogeneidade é expressa pela inclusão de elementos diferenciados, por vezes conflitantes, num mesmo espaço, exigindo do leitor um desenvolvimento apurado do olhar, de modo a considerar as diferenças, e não as igualdades. 71 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 72-85 <http://www.cienciasecognicao.org> S u b me t i d o e m 1 3 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e © Ciências & Cognição e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7 Artigo Científico Construindo mapas conceituais Constructing concept maps Romero Tavares Departamento de Física, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, Paraíba, Brasil Resumo O mapa conceitual é uma estrutura esquemática para representar um conjunto de conceitos imersos numa rede de proposições. Ele é considerado como um estruturador do conhecimento, na medida em que permite mostrar como o conhecimento sobre determinado assunto está organizado na estrutura cognitiva de seu autor, que assim pode visualizar e analisar a sua profundidade e a extensão. Ele pode ser entendido como uma representação visual utilizada para partilhar significados, pois explicita como o autor entende as relações entre os conceitos enunciados. O mapa conceitual se apóia fortemente na teoria da aprendizagem significativa de David Ausubel, que menciona que o ser humano organiza o seu conhecimento através de uma hierarquização dos conceitos. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 72-85. Palavras-chave: aprendizagem significativa; construção de significados; estrutura cognitiva; hierarquia de conceitos. Abstract A concept map is a schematic framework that represents a group of concepts immersed in a web of propositions. It is considered as a structure maker of knowledge, as it permits to show how knowledge about a topic is organized in the cognitive structure of his author, that can visualize and analyze its deep and extension. It can be seen as a visual representation used to share meanings, because it makes evident how the author understands the relations among the mentioned concepts. The concept map is strongly supported theoretically by the meaningful theory of David Ausubel that says the human being organize their knowledge in a hierarchical way. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 72-85. Key Words: meaningful learning; construction of meanings; cognitive structure; hierarchy of concepts. 1. Introdução O construtivismo tem diversas vertentes, mas todas concordam em considerar a aprendizagem como um processo no qual o aprendiz relaciona a informação que lhe é apresentada com seu conhecimento prévio sobre esse tema. A história da construção do - R. Tavares é Bacharel em Física (UFPE), Mestre em Astronomia (Universidade de São Paulo, USP) e Doutor em Física (USP). Atualmente é Professor Associado I do Departamento de Física (UFPB) e atua na Área de Educação no PPGE/CE/UFPB, com projetos sobre “Aprendizagem significativa e o ensino de Ciências”; “Codificação dual, esforço cognitivo e aprendizagem multimídia”; “Mapa conceitual como estruturador do conhecimento”. Página pessoal: http://www.fisica.ufpb.br/~romero/. 72 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 72-85 <http://www.cienciasecognicao.org/> conhecimento pessoal é a história da vida de cada um de nós, pois construímos esse conhecimento de uma maneira específica e individual. A construção do conceito sobre um objeto de uso corriqueiro, como cadeira, tem características comuns a todos nós, tais como a sua forma e funcionalidade. Mas existe algo de específico na maneira que cada um de nós vê uma cadeira, que reflete a forma idiossincrática que construímos esse conceito. Cada um de nós foi apresentado a uma cadeira e foi construindo esse conceito de maneira absolutamente pessoal. Essa forma idiossincrática foi sendo definida com as condições que encontramos ao nascer e viver as primeiras experiências, o estilo de vida e as oportunidades de vivências que nos foram oferecidos. Numa frase que ficou famosa, Ausubel mencionou que se tivesse que reduzir toda a Psicologia Educacional a um único princípio, diria isto: “O fator isolado mais importante que influencia a aprendizagem é aquilo que o aprendiz já conhece. Descubra o que ele sabe e baseie nisso os seus ensinamentos.” (Ausubel et al., 1980) Segundo David Ausubel o ser humano constrói significados de maneira mais eficiente quando considera inicialmente a aprendizagem das questões mais gerais e inclusivas de um tema, ao invés de trabalhar inicialmente com as questões mais específicas desse assunto: “Quando se programa a matéria a ser lecionada de acordo com o princípio de diferenciação progressiva, apresentamse, em primeiro lugar, as idéias mais gerais e inclusivas da disciplina e, depois, estas são progressivamente diferenciadas em termos de pormenor e de especificidade. Esta ordem de apresentação corresponde, presumivelmente, à seqüência natural de aquisição de consciência cognitiva e de sofisticação, quando os seres humanos estão expostos, de forma espontânea, quer a uma área de conhecimentos completamente desco- © Ciências & Cognição nhecida, quer a um ramo desconhecido de um conjunto de conhecimentos familiar. Também corresponde à forma postulada, através da qual se representam, organizam e armazenam estes conhecimentos nas estruturas cognitivas humanas. Por outras palavras, elaboram-se aqui dois pressupostos: (1) é menos difícil para os seres humanos apreenderem os aspectos diferenciados de um todo, anteriormente apreendido e mais inclusivo, do que formular o todo inclusivo a partir das partes diferenciadas anteriormente aprendidas; (2) a organização que o indivíduo faz do conteúdo de uma determinada disciplina no próprio intelecto consiste numa estrutura hierárquica, onde as idéias mais inclusivas ocupam uma posição no vértice da estrutura e subsumem, progressivamente, as proposições, conceitos e dados factuais menos inclusivos e mais diferenciados.” (Ausubel, 2003: 166) A construção de mapas conceituais na maneira proposta por Novak e Gowin (Novak, 1998; Novak e Gowin, 1999) considera uma estruturação hierárquica dos conceitos que serão apresentados tanto através de uma diferenciação progressiva quanto de uma reconciliação integrativa. A figura 1 mostra um mapa conceitual que apresenta tanto a diferenciação progressiva quanto a reconciliação integrativa. Esses mapas hierárquicos se estruturam de acordo com a Teoria da Aprendizagem Significativa de David Ausubel, e desse modo contribuem, de maneira mais eficiente, para a construção do conhecimento do aprendiz. Na diferenciação progressiva um determinado conceito é desdobrado em outros conceitos que estão contidos (em parte ou integralmente) em si. Por exemplo, na figura1, o conceito Processos engloba os conceitos Avaliação da aprendizagem e Construção do conhecimento, e essa espécie de bifurcação configura uma diferenciação progressiva; estaremos indo de conceitos mais globais para conceitos menos inclusivos. 73 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 72-85 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Figura 1 – Mapa conceitual sobre uma disciplina de Física. Na reconciliação integrativa um determinado conceito é relacionado a outro aparentemente díspar. Um mapa conceitual hierárquico se ramifica em diversos ramos de uma raiz central. Na reconciliação integrativa um conceito de um ramo da raiz é relacionado a um outro conceito de outro ramo da raiz, propiciando uma reconciliação, uma conexão entre conceitos que não era claramente perceptível. No mapa conceitual da figura 1 estão apresentadas duas situações com reconciliação integrativa, e as conexões estão apresentadas num tracejado em negrito. Essas ligações cruzadas podem indicar capacidade criativa (Novak e Gowin, 1999: 52) na percepção de um elo conceitual entre dois segmentos de um mapa. O mapa conceitual hierárquico se coloca como um instrumento adequado para estruturar o conhecimento que está sendo construído pelo aprendiz, assim como uma forma de explicitar o conhecimento de um especialista. Ele é adequado como instrumento facilitador da meta-aprendizagem, possibilitando uma oportunidade do estudante aprender a aprender, mas também é conveniente para um especialista tornar mais clara as conexões que ele percebe entre os conceitos sobre determinado tema. Quando um aprendiz utiliza o mapa durante o seu processo de aprendizagem de determinado tema, vai ficando claro para si as suas dificuldades de entendimento desse tema. Um aprendiz não tem muita clareza sobre quais são os conceitos relevantes de determinado tema, e ainda mais, quais as relações sobre esses conceitos. Ao perceber com clareza e especificidade essas lacunas, ele poderá voltar a procurar subsídios (livro ou outro material instrucional) sobre suas dúvidas, e daí voltar para a construção de seu mapa. Esse ir e vir entre a construção do mapa e a procura de respostas para suas dúvidas irá facilitar a construção de significados sobre conteúdo que está sendo estudado. O aluno que desenvolver essa habilidade de construir seu mapa conceitual enquanto estuda determinado assunto, está se tornando capaz de encontrar autonomamente o seu caminho no processo de aprendizagem. Caso ele não consiga encontrar as respostas nas consultas ao material instrucional, ele ainda assim terá conseguido 74 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 72-85 <http://www.cienciasecognicao.org/> ter clareza sobre as suas perguntas, e desse modo já terá encaminhado a sua aprendizagem de maneira conveniente e segura. Pois quando se tem clareza das perguntas, ou das dúvidas, é mais fácil procurar ajuda de pessoas mais experientes. Normalmente, a aprendizagem por recepção significativa ocorre à medida que o material de instrução potencialmente significativo entra no campo cognitivo do aprendiz, interage com o mesmo e é ancorado, de forma adequada, a um sistema conceitual relevante e mais inclusivo. (Ausubel, 2003: 60). Esse ir e vir entre o material instrucional e a construção do mapa conceitual, colocado anteriormente, possibilita uma elaboração eficaz dos significados sobre um tema. Caso não existam conceitos âncora adequados na estrutura cognitiva, esse ir e vir será uma oportunidade da consecução dessa tarefa, na medida em que são elucidadas as lacunas conceituais sobre o assunto. Embora os mapas conceituais possam transmitir informações factuais tão bem quanto os textos, esses organizadores gráficos são mais efetivos que os textos para ajudar os leitores a construir inferências complexas e integrar as informações que eles fornecem (Vekiri, 2002: 287). Eles também têm o potencial de melhorar a acessibilidade e usabilidade materiais durante uma pesquisa na medida que apresentam marcas visuais-espaciais que podem guiar uma seleção ou categorização. Existe a comprovação empírica sobre a eficiência de buscas, onde se comprova a que os interessados localizam mais informações quando elas são apresentadas em formas de mapas ao invés de textos (O´Donnel, 1993: 222). 2. Alguns tipos de mapas Existe uma grande variedade de tipos mapas disponíveis, que foram imaginados e construídos pelas mais diversas razões. Alguns são preferidos pela facilidade de elaboração (tipo aranha), pela clareza que explicita processos (tipo fluxograma), pela ênfase no produto que descreve, ou pela hierarquia conceitual que apresenta. © Ciências & Cognição Quando se deseja otimizar um determinado processo, a utilização do mapa tipo fluxograma é a representação mais adequada. Esse tipo de mapa deixa claro quais são as confluências e as possíveis opções a serem escolhidas. Ele ainda é extremamente utilizado na elaboração de programas de computador, quando se deseja construir um algoritmo eficiente para determinada função. No entanto, o único tipo de mapa que explicitamente utiliza uma teoria cognitiva em sua elaboração é o mapa hierárquico do tipo proposto por Novak e Gowin (1999). 2.1. Mapa conceitual do tipo teia de aranha (figura 2) Ele é organizado colocando-se o conceito central (ou gerador) no meio do mapa. Os demais conceitos vão se irradiando na medida que nos afastamos do centro. Vantagens: Fácil de estruturar, pois todas as informações estão unificadas em torno de um ou vários temas centrais. O foco principal é a irradiação das relações conceituais, sem preocupação com as relações hierárquicas, ou transversais. Desvantagens: Dificuldade em mostrar as relações entre os conceitos, e desse modo permitir a percepção de uma integração entre as informações. Não fica clara a opinião do autor sobre a importância relativa entre os vários conceitos e o conceito central. 2.2. Mapa conceitual tipo fluxograma (figura 3) Ele organiza a informação de uma maneira linear. Ele é utilizado para mostrar passo a passo determinado procedimento, e normalmente inclui um ponto inicial e outro ponto final. Um fluxograma é normalmente usado para melhorar a performance de um procedimento. Vantagens: Fácil de ler; as informações estão organizadas de uma maneira lógica e seqüencial. 75 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 72-85 <http://www.cienciasecognicao.org/> Desvantagens: Ausência de pensamento crítico, normalmente é incompleto na exposição do tema. Ele é construído para explicitar um © Ciências & Cognição processo, sem a preocupação de explicar determinado tema; na sua gênese não pretende facilitar a compreensão do processo, mas otimizar a sua execução. Figura 2 – Mapa conceitual do tipo TEIA de ARANHA. 2.3. Mapa conceitual tipo sistema: entrada e saída (figura 4) Vantagens: Mostra várias relações entre os conceitos. Organiza a informação num formato que é semelhante ao fluxograma, mas com o acréscimo da imposição das possibilidades “entrada” e “saída”. Desvantagens: Alguma vezes é difícil de se ler devido ao grande número de relações entre os conceitos. Na sua gênese pretende explicar a transformação de insumos em produto acabado. É adequado para explicar processos que impliquem em entrada e saída. 76 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 72-85 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Figura 3 – Mapa conceitual do tipo FLUXOGRAMA. Figura 4 – Mapa conceitual do tipo ENTRADA e SAÍDA (mapa acessado em 19/7/2007, no endereço eletrônico: http://classes.aces.uiuc.edu/ACES100/Mind/graphics/food-map.gif). 77 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 72-85 <http://www.cienciasecognicao.org/> 2.4. Mapa conceitual hierárquico (figura 5) A informação é apresentada numa ordem descendente de importância. A informação mais importante (inclusiva) é colocada na parte superior. Um mapa hierárquico é usado para nos dizer algo sobre um procedimento. Vantagens: Os conceitos mais inclusivos estão explícitos; os conceitos auxiliares e menos inclusivos estão inter-relacionados. Estrutura o conhecimento de maneira mais adequada a compreensão humana, considerando em posição de destaque os conceitos mais inclusivos. Desvantagens: Mais difícil de externar e construir, visto que expõe a estrutura cognitiva do autor sobre o assunto. A clareza do autor sobre o tema fica evidente quando da sua construção. A sua construção sempre representa um desafio, visto que explicita (principalmente para si) a profundidade do conhecimento do autor sobre o tema do mapa. 3. Construindo um mapa Considerando mapas onde os conceitos estão de acordo com o que é aceito pela comunidade científica sobre determinado tema, não existe um mapa certo ou mapa errado. Existem mapas com uma demonstração de grande conhecimento sobre as possíveis relações entre os conceitos mostrados. Dois grandes especialistas sobre um assunto dificilmente construirão mapas iguais. Talvez eles concordem em linhas gerais sobre quais são os conceitos mais importantes, mas dificilmente eles escolherão as mesmas relações entre esses conceitos. Dois especialistas não contestarão os respectivos mapas, visto que esses tra- © Ciências & Cognição balhos serão expressões pessoais que cada um tem sobre o tema. Novak mostra o mapa conceitual feito por um aluno do ensino fundamental, considerando uma lista de conceitos que lhe foi apresentada (ver Figura 7). Esse aluno era o melhor leitor em voz alta da sua turma, mas mostrou pouca compreensão a respeito do que lia. O seu mapa sugere uma abordagem de cor à leitura, que não conduziu à aquisição de significados (Novak e Gowin, 1999: 124). Nós consideramos esse mapa como um MAU mapa, e em contraposição, estamos apresentando um BOM mapa. Um BOM (figura 6) mapa começa com uma boa seleção de conceitos relacionados ao tema principal. Cada conceito pode estar relacionado a mais de um outro conceito. A existência de grande número de conexões entre os conceitos revela a familiaridade do autor com o tema considerado. Mesmo que ele não tenha feito a escolha dos conceitos a serem mapeados, ele conseguirá perceber as relações entre eles se tiver algum domínio sobre o tema. Podemos exercitar as habilidades dos alunos na construção de mapas fornecendo seis ou oito conceitos chave que sejam fundamentais para compreender um tema que se quer cobrir, e pedir aos estudantes que elaborem um mapa conceitual que relacione tais conceitos, e que acrescentem conceitos adicionais relevantes e os ligues de modo a formarem proposições que tenha sentido (Novak e Gowin, 1999: 56). Um MAU mapa (figura 7) conceitual faz uma conexão linear entre os conceitos. Ele evidencia que seu autor não visualiza outras conexões, outras possibilidades de entendimento da questão (Novak e Gowin, 1999: 124). 78 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 72-85 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Figura 5 – Mapa conceitual do tipo HIERÁRQUICO. Figura 6 – Um bom mapa conceitual. 79 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 72-85 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Figura 7 – Um mau mapa conceitual. 4. Mapa como estruturador do conhecimento Existem diversas aplicações em Educação dos Mapas Conceituais (Novak e Gowin, 1999: 56), onde poderemos exemplificar algumas: • Exploração do que os alunos já sabem – Na figura 8, o então estudante de Mestrado, demonstra suas idéias sobre determinado tema. • O traçado de um roteiro para a aprendizagem – Quando um professor fornece uma lista de conceitos sobre determinado tema, e sugere que seus alunos façam um mapa conceitual ele estará traçando um roteiro para a aprendizagem, estará indicando um caminho que funciona como um andaime cognitivo; facilita ao estudante chegar aonde não conseguiria ir sozinho. Com a sua ajuda ou de materiais instrucionais, os alunos irão se debruçar sobre a tarefa, com a percepção clara do estágio cognitivo em que se encontram. A possível dificuldade inicial em traçar um mapa com os conceitos fornecidos pelo mestre será um indício claro do estágio de conhecimento em que eles se encontram. Ao se dirigirem para os materiais instrucionais (ou ao mestre) eles poderão ir construindo significados e desse modo enriquecer o mapa inicial. Se a opção da estratégia for construir um mapa colaborativo, os estudantes terão a oportunidade de entrar em contato com as semelhanças e diferenças entre seus valores (e conceitos) e aqueles de seus colegas; percebendo desse modo que o conhecimento é idiossincrático. Nesse ir e vir, construindo um mapa e buscando novos conhecimentos, o estudante está elaborando as suas habilidades em construir seu próprio conhecimento, está aumentando a sua destreza na metaaprendizagem. • Leitura de artigos em jornais e revistas, ou a extração de significados de livros de texto 80 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 72-85 <http://www.cienciasecognicao.org/> – Na figura 9, temos um mapa conceitual sobre um artigo científico sobre esforço cognitivo. • Preparação de trabalhos escritos ou de exposições orais - Na Figura 5 nós temos um exemplo de mapa hierárquico conveniente para mostrar a estruturação conceitual de uma Dissertação de Mestrado, e que foi utilizado quando da apresentação dessa Dissertação. Esse tipo de estratégia facilita o acompanhamento do desenvolvimento das teorias, modelos, conceitos e idéias que fazem parte de determinado trabalho. • Avaliação formativa – na medida em que ele explicita o estágio da aprendizagem em que se encontra um estudante, o mapa se apresenta como uma radiografia da estrutura cognitiva do aprendiz. Desse modo possibilita ao professor encaminhar o estudante para processos cognitivos adequados a sua situação. Quando os alunos aprendem determinado tema utilizando mapas conceituais, eles desenvolvem seu próprio entendimento através da internalização da informação. Por outro lado, quando os estudantes constroem seu próprio mapa conceitual, eles necessitam desenvolver inicialmente uma compreensão sobre os conceitos que estão estudando, antes de poder representar seu conhecimento através de um mapa pessoal (Vekiri, 2002: 266). Utilizar um mapa construído por uma especialista e construir seu próprio mapa são duas vertentes da utilidade dos mapas no processo ensino/aprendizagem. Eventualmente nos deparamos com a situação de construir um mapa sobre um tema amplo, e com a possibilidade de construir © Ciências & Cognição uma rede de conceitos extremamente densa. Uma solução adotada é o desdobramento de um mapa mais inclusivo em diversos mapas mais específicos. Na figura 10 um mapa conceitual delineia as possibilidades de desenvolvimento do ser humano ao longo de sua vida. Na figura 11, um mapa conceitual apresenta uma rede de conceitos Sobre o desenvolvimento cognitivo durante a infância, segundo duas correntes teóricas. A função mais importante da escola é dotar o ser humano de uma capacidade de estruturar internamente a informação e transformá-la em conhecimento. A escola deve propiciar o acesso à meta-aprendizagem, o saber aprender a aprender. Nesse sentido, o mapa conceitual é uma estratégia facilitadora da tarefa de aprender a aprender. A metaaprendizagem torna possível ao estudante a compreensão da estrutura de determinado assunto. Aprender a estrutura de uma disciplina é compreendê-la de um modo que permita que muitas outras coisas com ela significativamente se relacionem. Por outras palavras, conhecer uma estrutura é saber como as coisas se ligam entre si. O ensino e a aprendizagem da estrutura, ao contrário do simples domínio dos fatos e técnicas, são o centro do clássico problema de transferência. O que importa não é a transferência de uma habilidade mas de uma noção, que pode ser usada como base para reconhecer problemas subseqüentes, como casos especiais da idéia inicialmente dominada. Esse tipo de transferência encontra-se no centro do processo educacional – o contínuo alargamento e aprofundamento do conhecimento, em termos de idéias básicas e gerais (Bruner, 1966). 81 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 72-85 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Figura 8 – Mapa conceitual de um aluno sobre modelos. Figura 9 – Mapa conceitual sobre artigo científico. 82 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 72-85 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Figura 10 – Desdobramento de um mapa - Desenvolvimento do ser humano (mapa acessado em 19/7/2007, no endereço eletrônico: http://cmapspublic3.ihmc.us/servlet/SBRead ResourceServlet? rid=1040074302312 _73323607_11802&partName=htmltext). Figura 11 – Desdobramento de um mapa – desenvolvimento cognitivo na infância (mapa acessado em 19/7/2007, no endereço eletrônico: http://cmapspublic3.ihmc.us/servlet/SBRead ResourceServlet ?rid=1040074302718_1361810910 11833&partName=htmltext). 83 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 72-85 <http://www.cienciasecognicao.org/> 5. Mapa conceitual, codificação dual e aprendizagem multimídia Considera-se que uma representação gráfica é mais efetiva que um texto para a comunicação de conteúdos complexos porque o processamento mental das imagens pode ser menos exigente cognitivamente que o processamento verbal de um texto (Vekiri, 2002: 262). O mapa conceitual é uma estrutura esquemática para representar um conjunto de conceitos imersos numa rede de proposições. Ele pode ser entendido como uma representação visual utilizada para partilhar significados. A teoria da codificação dual de Allan Paivio (1991) indica que existem dois subsistemas cognitivos; um especializado em objetos e/ou eventos não verbais (i.e. imagético), e o outro especializado em lidar com a linguagem (i.e. verbal). Imagens e palavras são códigos diferentes, mas inter-relacionados. Eles podem ser ativados independentemente, mas quando interconectados, as informações são codificadas de modo dual. A informação quando é oferecida de maneira interconectada verbal e visualmente, facilita a construção de conexões, relações e entendimento na estrutura cognitiva; e desse modo facilita o resgate desta informação que usa a codificação dual. Uma apresentação multimídia consiste numa apresentação visual e verbal, e se fundamenta inicialmente na codificação dual. Em contraste podemos comparar uma apresentação multimídia com aquela que consiste unicamente de uma mensagem verbal (Mayer, 2001: 187). A informação visual tem a vantagem de ser organizada de uma maneira síncrona, que permite a muitas partes de uma imagem mental estar disponível para um processamento simultâneo. Quando informações visuais e verbais são apresentadas contiguamente no tempo e espaço, é possibilitado ao aprendiz formar associações entre esses materiais visuais e verbais durante a codificação mental. Essa potencialidade pode aumentar o número de caminhos que o aprendiz pode utilizar para resgatar essa informação, porque um estímulo © Ciências & Cognição verbal (ou visual) pode ativar as representações verbal e visual (Vekiri, 2002: 267). O mapa conceitual apresenta a informação através de uma rede hierárquica, e desse modo oferece essa informação utilizando imagens, apreendidas pelo sistema visual. Por outro lado, cada conceito é definido através de palavras, e essa informação é apreendida usando o canal verbal. Desse modo, o mapa conceitual utiliza a um só tempo os dois subsistemas cognitivos. O caminho entre dois conceitos está claro e evidente visual e verbalmente, deixando explícita e inequivocamente a opinião do autor sobre essa conexão e sobre essa relação hierárquica. As peculiaridades de entendimento (dubiedade, exaltação, etc.) são graficamente evidentes, facilitando o debate, a compreensão clara das posições pessoais, e a possibilidade de uma reestruturação cooperativa do mapa conceitual. 6. Discussão De maneira geral um mapa conceitual torna mais fácil a percepção e compreensão de eventos por diversos motivos, por exemplo, existe uma grande proximidade entre a memória visual e as imagens que são apresentadas, e devido as suas propriedades visuaisespaciais, seu processamento requer um número menos de transformações cognitivas que o processamento de um texto, e desse modo não excede as limitações da memória de curto prazo (Vekiri, 2002: 281). Em outro exemplo, um mapa geográfico (assim como outros tipos de mapas) apresenta uma seleção de facetas gráficas, enquanto uma fotografia aérea apresenta todas as características visuais possíveis de serem captadas por uma câmera, e desse modo revela apenas algumas nuances da realidade, e com essa diminuição do esforço cognitivo poder facilitar o entendimento dessas especificidades. Em um mapa nós enfatizamos as características relevantes aos nossos propósitos; por exemplo, num estudo hidrológico de determinado local pode ser conveniente apresentar apenas os rios dessa região. Noutro estudo mais detalhado pode ser conveniente representar além dos rios, as características topográficas e as matas. 84 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 72-85 <http://www.cienciasecognicao.org/> No processo de representar e organizar o conhecimento do autor sobre um tema, o mapa conceitual transforma em concreto o que antes era abstrato. A principal distinção entre itens abstratos e factuais é em termos de nível de particularidade ou de proximidade com experiências empíricas concretas. Geralmente, também se caracteriza o material abstrato por uma maior conexão ou menor discrição do que o material factual. (Ausubel, 2003: 116). E assim, temas que antes estavam afastados da realidade do autor, ganham relações com seus significados prévios. Um mapa conceitual apresenta uma visão idiossincrática do autor sobre a realidade a que se refere. Quando um especialista constrói um mapa ele expressa a sua visão madura e profunda sobre um tema. Por outro lado, quando um aprendiz constrói o seu mapa conceitual ele desenvolve e exercita a sua capacidade de perceber as generalidades e peculiaridades do tema escolhido. E nesse sentido pode construir uma hierarquia conceitual, iniciando de características mais inclusivas para as mais específicas, tornando clara a diferenciação progressiva, um dos conceitos chaves da teoria de Ausubel. Ele também é instado a construir relações de significados entre conceitos aparentemente díspares, tornando clara a reconciliação progressiva, outro conceito chaves da teoria de Ausubel. Nesse sentido, o mapa conceitual se coloca como um facilitador da meta-aprendizagem, ao facilitar que o aprendiz adquira a habilidade necessária para construir seus próprios conhecimentos. 7. Referências bibliográficas Ausubel, D.P. (2003). Aquisição e Retenção de Conhecimentos: Uma Perspectiva Cognitiva. Lisboa: Plátano Edições Técnicas. © Ciências & Cognição Ausubel, D.P.; Novak, J.D. e Hanesian, H. (1980). Psicologia Educacional. Rio de Janeiro: Editora Interamericana. Bruner, J. (1966). Toward a theory of instruction. New York: W.W. Norton and Company. Krischner, P.A. (2002). Cognitive load theory. Learning and Instruction, 12, 1 . Mayer, R. (2001). Multimedia Learning. Cambridge: University Press. Novak, J.D. (1998). Conocimiento e Aprendizaje: Los mapas conceptuales como herramientas facilitadoras para escuelas y empresas. Madrid: Editorial Alianza. Novak, J.D. e Gowin, D. B. (1999) Aprender a aprender. Lisboa: Plátano Edições Técnicas. Novak, J.D.; Mintzes, J.J. e Wandersee, J.H. (Ed.) (2000). Ensinando ciência para a compreensão: Uma visão construtivista. Lisboa: Plátano Edições Técnicas. O´Donnel, A. (1993). Searching for information in knowledge maps and texts. Contemporary Ed. Psychol., 18, 222. Paivio, A. (1991). Dual coding theory: retrospect and current status. Can. J. Psychol., 45, 255. Rodrigues, G.L. (2005). Animação interativa e construção dos conceitos da Física: trilhando novas veredas pedagógicas - Dissertação de Mestrado – PPGE/UFPB. Silva, J.T. (2006). A representação Social do Pombo no meio urbano - Dissertação de Mestrado – PRODEMA - UFPB – João Pessoa. Tavares, R. (2007). Ambiente colaborativo on-line e a aprendizagem significativa de Física 13º CIED - Congresso Internacional ABED de Educação a Distância – Curitiba. Vekiri, I. (2002). What Is the Value of Graphical Displays in Learning? Ed. Psychol. Rev., 14, 261. 85 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 86-95 <http://www.cienciasecognicao.org> S u b me t i d o e m 0 3 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e © Ciências & Cognição e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7 Artigo Científico Mapas conceituais: estratégia pedagógica para construção de conceitos na disciplina química orgânica Conceptual maps: pedagogical strategy for construction of concepts in disciplines organic chemistry João Rufino de Freitas Filho Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Unidade Acadêmica de Garanhuns (UAG), Garanhuns, Pernambuco, Brasil Resumo Mapas conceituais são propostos como uma estratégia potencialmente facilitadora de uma aprendizagem significativa. Este artigo retrata a pesquisa realizada em três turmas do Ensino Superior, na qual se verificou a interferência positiva do uso de mapas conceituais como estratégia motivadora no ensino de conceitos Química Orgânica. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 86-95. Palavras-chave: mapas conceituais; conceitos; aprendizagem significativa. Abstract Conceptual maps are proposed as a strategy potentially useful to facilitate meaningful learning. This paper reports a research carried through three groups of undergraduate students, in which could be observed a positive interference with the use of conceptual maps as a motivational strategy in the organic chemical teaching. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 86-95. Key Words: concept maps; concept; meaningful learning. 1. Introdução Todo embasamento teórico relacionado ao uso de mapas conceituais está baseada na Teoria de Aprendizagem ou Teoria de Assimilação, de David Ausubel (1968). A teoria explica como o conhecimento é adquirido e em que forma este fica armazenado na estrutura cognitiva do estudante. Segundo Ausubel (1982), o indivíduo constrói significado a partir de um acerto conceitual entre o conceito apresentado e o conhecimento prévio além é claro, de sua predisposição para realizar essa construção. Sua teoria da aprendizagem significativa tem como base o princípio de que o armazenamento de informações ocorre a partir da organização dos conceitos e suas relações, hierarquicamente dos mais gerais para os mais específicos. Baseado nessa teoria, Novak (2002) desenvolveu a metodologia de Mapas Conceituais, procurando representar como o conhecimento é armazenado na estru- - J.R. Freitas Filho é Químico, Graduado em Licenciatura em Química, Mestre em Química Orgânica (UFPE), Doutor em Química Orgânica (UFPE), Pós-doutor em Química (Université Claude Bernard). Atua como Professor (UFRPE, UAG). Endereço para correspondência: Rua Lions Club, 199, Aluísio Pinto, Garanhuns, PE 50292-060. Telefones: (87) 3762-0438 ou (87) 9999-5855. E-mail para correspondência: [email protected]. 86 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 86-95 <http://www.cienciasecognicao.org/> tura cognitiva de um estudante. A estrutura cognitiva pode ser descrita como um conjunto de conceitos, organizados de forma hierárquica, que representam o conhecimento e as experiências adquiridas por um estudante. Conceito é um termo que representa uma série de objetos, eventos ou situações que possuem atributos comuns. Com o uso de mapas conceituais, o conhecimento pode ser exteriorizado através da utilização de conceitos e palavras de ligação, formando proposições que mostram as relações existentes entre conceitos percebidos por um indivíduo (Araújo et al., 2002; Cañas et al., 2000), e representadas pelo tripé conceito – relação – conceito. Os mapas conceituais vêm sendo utilizados nas mais distintas áreas do conhecimento, tendo diferentes finalidades, como na aprendizagem, na avaliação, na organização e na representação de conhecimento. Para promover a aprendizagem significativa (Novak, 1997; Moreira, 1999) recomendam ao professor, como recurso didático, o uso de mapas conceituais com a finalidade de identificar significados (subsunçores) pré-existentes na estrutura cognitiva do estudante que são necessários à aprendizagem. Muitas são as definições de mapa conceitual apresentadas, principalmente se analisarmos os trabalhos de autores como Ontoria e colaboradores (2004). A utilização dos mapas conceituais, tem se apresentado como uma ferramenta de ação pedagógica bastante útil para o ensino de diversos temas, possibilitando que um conjunto de conceitos seja apresentado aos alunos, a partir do estabelecimento de relações entre ele. Em sua forma gráfica, os mapas conceituais podem ser construídos nos formatos unidimensional, bidimensional e tridimensional. Os mapas unidimensionais são apenas alguns conceitos dispostos de forma vertical; os bidimensionais, além de apresentarem a disposição vertical, apresentam disposição horizontal, como na figura 1. Já os mapas tridimensionais apresentam os conceitos e suas relações em três dimensões. Por serem mais completos que os mapas unidimensionais e mais simples de serem interpretados que os © Ciências & Cognição mapas tridimensionais, os mapas bidimensionais são os mais utilizados (Moreira e Buchweitz, 1987). Na prática, porém, por serem mais elaborados que os unidimensionais e mais simples que os tridimensionais, os mapas bidimensionais são os mais usados. Neste trabalho, procurou-se incorporar os mapas conceituais como estratégia de ação pedagógica para abordagem do tema gerador: Alimentos nosso combustível e a partir deste os estudantes construírem os conceitos da química dos carboidratos, lipídios, aminoácidos e proteínas. Dessa forma, o mapa conceitual se apresentou como uma possibilidade para a verificação e o acompanhamento da aprendizagem do aluno. 2. Metodologia A metodologia deste trabalho consiste em avaliar a aprendizagem de conceitos trabalhados nas aulas, com base nos elementos que definem a aprendizagem como significativa. O trabalho foi realizado com três turmas de graduação dos cursos de Agronomia, Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Unidade Acadêmica de Garanhuns (PE), no período de março de 2005 a junho de 2007. Para realização do trabalho foram observadas várias etapas de execução. A primeira etapa consistiu no planejamento das atividades que assim podem ser distribuídas: a) Escolha do tema gerador a ser discutida na disciplina; b) Plano de atividades; c) Seleção dos materiais a serem utilizados. A segunda etapa consistiu no desenvolvimento da atividade em sala de aula. Esta etapa foi dividida em vários momentos, a saber: a) Levantamento das concepções prévias dos estudantes sobre a temática; b) Listagem de várias palavras soltas para os alunos construírem um mapa; 87 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 86-95 <http://www.cienciasecognicao.org/> c) Leitura do texto: Alimentos nossos combustível e construção de um novo mapa. O primeiro momento despertou o interesse dos alunos em relação aos conhecimentos básicos da Química. Algumas atividades experimentais foram realizadas no laboratório da Universidade. Portanto, foi possível superar o modelo de ensino transmissivo, onde só cabe ao aluno ouvir o discurso abstrato do professor e resolver uma série infindável de problemas padronizados que nada dizem sobre as situações da vida cotidiana. Segundo Carvalho (1995): “A didática habitual de resolução de problema costuma impulsionar a um operativismo abstrato, carente de significação, que pouco contribui para uma aprendizagem significativa.” Em seguida foram explorados aspectos da temática a partir de aulas expositivas com atividades experimentais demonstrativas, seguidas de atividades experimentais realizadas por pequenos grupos de alunos no laboratório. Após a construção dos mapas de conceitos realizada pelos alunos, foram formulados questões e problemas de forma não convencional – para evitar a reprodução mecanicista dos conceitos - que exijam dos alunos a externalização, por meio de entrevistas nas próprias aulas, dos conceitos empregados nos mapas, e das relações entre os mesmos. 3. Resultados e discussão Iniciou-se o trabalho fazendo um levantamento das concepções prévias dos estudantes, nesta etapa foram distribuídas palavras (alimentos, nutrientes, carboidratos, proteínas, lipídios, monossacarídeos, glicose, sacarose, dissacarídeos, ácidos graxos, hidrolise, amido, aminoácidos, ligação dentre outras) para os estudantes e solicitado que os mesmos elaborassem mapas conceituais. Os mapas conceituais da figura 1 e 2 foram construídos por estudantes dos cursos de Medicina Veterinária e Zootecnia. © Ciências & Cognição O que chama a atenção nos mapas da figura 1 e 2 é o fato de substâncias está na parte inferior do mapa e não ter nenhuma relação com carboidratos (figura 1) e a amilopectina não ser considerado um carboidrato (figura 2). Também percebe alguns erros conceituais, por exemplo lactose ser classificado como um monossacarídeos. O mapa de conceitos apresentado pelos estudantes do curso de Agronomias no levantamento das concepções prévias foi menos elaborado, ou seja, partiu do mesmo conceito geral. Inclui menos conceitos, associando-os por vezes – alimentos/digestão /nutrientes, amido e oligossacarídeos – e não utilizando setas. Os mapas de conceitos apresentados pelos estudantes do curso de Veterinária e Zootecnia foi melhor elaborado, apesar de partir do mesmo conceito geral. Inclui menos conceitos, associando-os por vezes – alimentos/digestão/nutrientes, monossacarídeo e lactose – e utiliza setas. Em seguida foi distribuído texto sobre à temática alimentos nosso combustível e solicitado após leitura que os estudantes elaborassem novos mapas conceituais. Com relação a mapa conceitual da figura 3, note que algumas noções foram deixadas de fora e nem todas as possíveis ligações foram feitas, a fim de não complicar o diagrama. Ao analisar o mapa representado na figura 4, abaixo, identificamos que o aluno em questão conhece termos utilizados na área de estudos – carboidratos, porém tem dificuldades quanto à identificação do significado dos conceitos e das relações que existem entre eles. Após a comparação dos mapas, os estudantes realizaram outros mapas. Manteve alimentos como o conceito mais geral. Classificou corretamente alguns termos como conceitos. Estabeleceu hierarquias válidas. Recorreram a setas, criou ligações transversais. Empregou como palavras de ligação, frases e definições. Pode-se perceber, em todos os mapas, que há uma similaridade na hierarquização conceitual. Inicialmente os estudantes relutam ao exercício, pois não têm o costume de fazer uso de técnicas. Entretanto 88 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 86-95 <http://www.cienciasecognicao.org/> respondem muito bem à proposta, surpreendendo-se com a prática que passam a adotar em outras disciplinas tanto para estudo © Ciências & Cognição em outras disciplinas tanto para estudo quanto para apresentação de suas produções. Figura 1 - Mapa conceitual do aluno do curso de Medicina Veterinária. 89 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 86-95 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Figura 2 - Mapa conceitual do aluno do curso de Zootecnia. 90 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 86-95 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Figura 3 - Mapa conceitual do aluno do curso de Medicina Veterinária. Os mapas mostrados nas figuras 5 e 6 foram confeccionados após aulas expositivas e experimental dos conteúdos referentes a temática. Os conceitos foram abordados pelo professor no decorrer do curso. A ordem em que os conceitos aparecem não reflete, propositadamente, a de apresentação. No mapa conceitual o estudante procurou explicitar algumas relações entre conceitos através de palavras-chave exemplificando com fórmulas químicas, congregando um conjunto de conceitos tais como monossacarídeo, oligossacarídeos e polissacarídeos. Neste mapa os conceitos estão ordenados logicamente, começando pelo alimento, no "topo", e em seguida nutriente, polímero biológico, carboidratos, transformação e hidrólise como casos mais particulares daquele. No entanto, os conceitos de monossacarídeos e dissacarídeos são colocados como os menos abrangentes. 91 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 86-95 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Figura 4 - Mapa conceitual do aluno do curso de Zootecnia. Já o segundo mapa da figura 6 nos mostra um agrupamento mais ou menos semelhante ao anterior, porém com estruturas integradas. Nele, carboidrato é considerado o conceito mais importante, enquanto dissacarídeos é o de menor importância. Neste, as concepções de oligossacarídeo e polissacarídeos são consideradas mais abrangentes que o conceito de dissacarídeos. Em resumo mapas conceituais não são auto-suficientes; é sempre necessário que sejam explicados por quem os faz, seja o professor ou o estudante. Uma maneira de diminuir um pouco a necessidade de explicações é escrever sobre as linhas que unem os conceitos uma ou duas palavras chave que explicitem a relação simbolizada por elas. 92 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 86-95 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Figura 5 - Mapa conceitual do aluno do curso de Medicina Veterinária. 4. Conclusões Com a temática, alimentos nosso combustível, pretendeu-se mostrar o forte potencial dos mapas conceituais, como uma ferramenta pedagógica capaz de evidenciar aprendizagem significativa; apontando para o fato de que os diversos conceitos não são alvos estáticos na aprendizagem, mas um conjunto, uma teia que se une através de relações entre conceitos que evoluem na estrutura cognitiva do estudante, apoiados em conceitos já existentes e que, tratados de forma articulada nos seus níveis de abstração, formatam o concreto de nosso cotidiano. Os mapas conceitu- ais foram construídos e exemplificados como estratégia pedagógica que podem ser usados tanto na análise e organização do conteúdo, como no ensino e na avaliação da aprendizagem dos estudantes dos cursos de Agronomia, Medicina Veterinária e Zootecnia. Foi uma estratégia pedagógica construídas após aulas em sala de aula e em laboratório cuja maior vantagem estar relacionada com o fato de enfatizar o ensino e a aprendizagem de conceitos da química dos carboidratos, lipídios e proteínas. Pela sua versatilidade utilizou-se o mapa conceitual como um dos recursos de avaliação em sala de aula. 93 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 86-95 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Figura 6 - Mapa conceitual do aluno do curso de Zootecnia. 94 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 86-95 <http://www.cienciasecognicao.org/> 5. Referências bibliográficas Araújo, A.; Menezes, C. e Cury, D. (2002). Um Ambiente Integrado para Apoiar a Avaliação da Aprendizagem Baseado em Mapas Conceituais, Anais do XII Simpósio Brasileiro de Informática na Educação, p. 49-58. Ausubel, D.P. (1968). Educational Psychology, A Cognitive View. New York: Holt, Rinehart and Winston, Inc. Ausubel, D.P. 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São Paulo: Madras. 95 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 96-109 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 16/10/2007 | Revisado em 28/11/2007 | Aceito em 29/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007 Artigo Científico Obstáculos epistemológicos no ensino de ciências: um estudo sobre suas influências nas concepções de átomo Epistemological obstacles in science teaching: a study about their influences on the atom conceptions Henrique José Polato Gomes, a e Odisséa Boaventura De Oliveira, b a Curso de Graduação em Ciências Biológicas, Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, Paraná, Brasil; bDepartamento de Teoria e Prática de Ensino, Setor de Educação, UFPR, Curitiba, Paraná, Brasil Resumo Muitas estratégias usadas por docentes para tornar o ensino mais atrativo, ou com intenção de facilitálo, na realidade podem se tornar sérios entraves na aprendizagem do ensino científico. Com a equivocada convicção que explicam, metáforas e analogias utilizadas, podem não suscitar interesse pela compreensão do fenômeno. Bachelard chamou esses subterfúgios de obstáculos epistemológicos e o objetivo deste trabalho foi identificá-los em alunos de oitava série do ensino fundamental e de primeiro ano do ensino médio, referentes ao ensino de atomística, procurando compará-los, visto que aprenderam este conteúdo com diferentes materiais didáticos. Para tanto, foram aplicados 291 questionários nos quais foram analisados respostas e desenhos, que evidenciam tais obstáculos. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 96-109. Palavras-chave: atomística; obstáculos epistemológicos; Bachelard; aprendizagem; Abstract Some strategies used by teachers to make a subject more attractive or easier, actually can be a serious impediment to the learning of the scientific concepts. Metaphors and analogies used in the explanation can result in a satisfactory explanation, and consequently, in a lack of interest for the phenomenon. Bachelard called those subterfuges epistemological obstacles, and the objective of this paper were identify them in students at the last level of elementary school and at the first level of high school, in atomistic teaching, and compare them, considering they learned that through different materials. Thus, 291 questionnaires asking about atom conceptions and a drawing of it were applied and they show an evident existence of those obstacles. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 96-109. Key Words: atomistic; epistemological obstacles; Bachelard; learning; - O.B de Oliveira é Graduada em Ciências Biológicas Modalidade Médica, Licenciatura (Organização Educacional Barão de Mauá) e Pedagogia (PUC-Católica), Mestre em Educação (Universidade Estadual de Campinas) e Doutora em Educação (Universidade de São Paulo). Atualmente é Professora (UFPR). E-mail para correspondência: [email protected]. H.J.P. Gomes é Graduando do Curso de Ciências Biológicas, Modalidade Licenciatura (UFPR). E-mail para correspondência: [email protected]. 96 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 96-109 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição 1. Introdução “Quando se acompanham os esforços do pensamento contemporâneo para compreender o átomo, é se quase levado a pensar que o papel fundamental do átomo é o de obrigar os homens a estudar matemática.” Gaston Bachelard É comum o uso, em sala de aula, de diversas estratégias com o intuito de facilitar a aprendizagem. Muitas delas, como analogias, metáforas, imagens, modelos entre outras présentes nos materiais didáticos e amplamente utilizadas por docentes, deveriam ser fonte de reflexão sobre suas implicações. Ainda que empregadas com a intenção de facilitar a compreensão de um determinado assunto, na realidade não auxiliam verdadeiramente, salvo em casos específicos muito bem trabalhados. Ao contrário, esses subterfúgios pedagógicos fazem com que sejam substi-tuídas linhas de raciocínio por resultados e esquemas, o que se por um lado suscita atrativos e interesse, por outro se cristaliza intuições. Assim, práticas como essas podem ser perniciosas à aprendizagem. A assimi-lação de noções inadequadas, sejam elas advindas dos conhecimentos empíricos que o educando vivencia em seu cotidiano ou adquiridas na escola, poderá resultar na constituição de obstáculos epistemológicos (Bachelard, 1996). Os obstáculos epistemológicos são inerentes ao processo de conhecimento, constituem-se em acomodações ao que já se conhece, podendo ser entendidos como antirupturas. O conhecimento comum seria um obstáculo ao conhecimento científico, pois este é um pensamento abstrato. Na visão de Lecourt (1980: 26) os obstáculos “preenchem a ruptura entre o conhecimento comum e o conhecimento científico e restabelece a continuidade ameaçada pelo progresso do conhecimento científico”, podem aparecer na forma de um contra-pensamento ou como paragem do pensamento. São encarados como resistências do pensamento ao pensamento. Segundo Bachelard (1996: 17) não se tratam de “obstáculos externos, como a complexidade e a fugacidade dos fenômenos, nem de incriminar a fragilidade dos sentidos e do espírito humano: é no âmago do próprio ato de conhecer que aparecem, por uma espécie de imperativo funcional, lentidões e conflitos”. Muito dessa problemática, deve-se ao fato dos docentes não levarem em conta o conhecimento que os educandos já possuem e por conceberem a aquisição do novo conhecimento como uma adição, que pode ser atingida através de meras repetições. Além disso, normalmente esses conhecimentos não científicos oferecem uma satisfação imediata à curiosidade, o que indiferente de seu caráter, não se constitui em benefícios, ao contrário passa-se a admirar as imagens e a contentar-se simplesmente com resultados. Na visão de Bachelard (1996), a preocupação dos educadores deveria ser alt-erar essa cultura cotidiana prévia, pois não é possível incorporar novos conhecimentos às concepções primordiais já enraizadas. Para que a aprendizagem ocorra de maneira efetiva, é preciso mostrar ao aluno razões para evoluir. O que significa estabelecer uma dialética entre variáveis experimentais e substituir saberes ditos estáticos e fechados, por conhecimentos abertos e dinâmicos. Contra a formação do espírito científico, um exemplo de obstáculo epistemológico é o que Bachelard (1996) denomina de experiência primeira, a qual gera apego à beleza do experimento e não à explicação científica. É possível minimizar e até mesmo retificar essa experiência primeira por meio de uma ação que o autor chamou de “trazer a bancada do laboratório para o quadro-negro”, ou seja, procurar impedir que aconteçam apenas satisfações e admirações por imagens, preocupando-se com os fundamentos explicativos dos fenômenos presentes nas atividades experimentais. Segundo Bachelard, uma ciência que aceita imagens é vítima de metáforas e experiências repletas delas são, na realidade, sem grande valor se não for extraído o abstra- 97 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 96-109 <http://www.cienciasecognicao.org/> to do concreto, isto é, o experimento deve ser utilizado como uma ferramenta auxiliar ilustrativa e não se resumir a uma sucessão de resultados visual-mente interessantes (Bachelar, 1996). Assim, essa ausência da busca pela explicação do fenômeno faz com que se estabeleça a dita doutrina do geral. A generalização é colocada por Bachelard como outro obstáculo epistemológico e sua utiliza-ção em sala de aula também pode ser igualmente impeditiva da formação do espírito científico, pois generalizações tornam uma lei tão clara, completa e fechada, que dificilmente levantase o interesse por questionar suas premissas. A generalização facilita momentaneamente uma compreensão, mas esse entendimento pode bloquear o interesse pelo estudo mais aprofundado. A lei geral é suficientemente satisfatória para que se perca o interesse por estudá-la. Parte dos obstáculos propostos é, de alguma forma, conseqüência de generalizações inapropriadas, de modo que o conhecimento geral acaba sendo um conhecimento vago (Costa, 1998). O mesmo acontece quando, nas aulas de ciências, fenômenos são explicados por meio de expressões, imagens, metáforas ou analogias, denominadas por Bachelard de obstáculo verbal, isto é, uma tendência a associar uma palavra concreta a uma palavra abstrata. Essa situação ocorre quando uma palavra é tão suficientemente explicativa, que funciona como uma imagem e pode vir a substituir a explicação (Andrade et al, 2002). Bachelard observou, em sua obra A formação do espírito científico (1996), que o uso abusivo da palavra esponja, por exemplo, desencadeou uma imagem que manteve o pensamento preso a ela enquanto objeto, não avançando para o nível da idéia. Ainda assim, alguns autores defendem o uso de analogias como estratégia pedagógica válida para melhor compreensão e integração na estrutura cognitiva (Adrover e Duarte, 1995); também existem trabalhos que apresentam propostas de metodologias de ensino com analogias (Nagem et al., 2001) e há até mesmo os que julgam o raciocínio metafórico e analógico como inerente ao ser humano © Ciências & Cognição (Andrade et al., 2002). E, de fato, há que se considerar que, quando apropria-damente usadas, metáforas e analogias podem ser boas ferramentas para ilustrar uma explicação; mas essas devem ser transitórias, devem ser usados como andaimes (scaffolding), conforme terminologia de Jerome Bruner, isto é, apenas como um suporte para o alcance do conhecimento científico. Talvez pareça incoerente fazer essa analogia ao andaime, explicando como fazer uma analogia por meio de outra, mas a idéia do uso de um andaime deve ser entendida como um auxílio, como algo temporariamente utilizado para atingir um determinado fim; não como algo inicial ou a primeira coisa que deve ser feita para que se aproxime do conhecimento. Bachelard não é perempto-riamente contra o uso de metáforas, contanto que elas venham após a teoria, como um auxílio no esclarecimento. O problema ocorre quando há o uso anterior à explicação da hipótese ou teoria, pois pode ocorrer uma tendência à estagnação do pensamento, o aluno se apega e aceita essa aproximação como um estratagema conclusivo, não havendo necessidades de maiores elucidações o que impossibilita a abstração necessária ao conhecimento. Outro obstáculo proposto por Bachelard (1996) é o substancialista, que pode ser em parte oriundo do materialismo promovido pelo uso de imagens ou da atribuição de qualidades aos fenômenos. Ele cita como exemplo, a teoria de Boyle que atribuía qualidades de viscoso, untuoso e tenaz ao fluído elétrico, é como se a eletricidade fosse uma cola, como se tivesse um espírito material. Também denominou de obstáculo epistemológico animista ao fato de que atribuir vida daria relevância a um determinado fenômeno. Para Bachelard (1996: 191), “vida é uma palavra mágica”, ela marca um valor às substâncias, assim ele relata que no século XVIII a ferrugem era vista como uma doença que acometia o ferro, ou que se comparava a fecundidade dos minerais à das plantas. Para Bachelard (1996: 21). “a noção de obstáculo epistemológico pode ser estudada no desenvolvimento histórico do pensa- 98 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 96-109 <http://www.cienciasecognicao.org/> mento científico e na prática da educação”. Dessa maneira, existem inúmeras formas de obstáculos epistemológicos que, independente de sua natureza, necessitam ser identificados e retificados. Contudo, os obs-táculos e entraves não devem ser compre-endidos apenas como algo falho ou como aspectos pontuais de alunos com dificuldades; eles são importantes à aprendizagem e para que esta ocorra satisfatoriamente é necessário que haja, além de questionamentos e críticas, ruptura entre conhecimento comum e científico, construindo este e desconstruindo aquele (Lopes, 1993). A preocupação com a aprendizagem de determinados conceitos advém de nossa experiência como professor assistente em uma escola da rede particular de ensino, na qual observamos dificuldades nos alunos em manifestarem idéias abstratas, por exemplo, em relação ao modelo atômico e suas estruturas, bem como de suas interações moleculares. A leitura de Bachelard nos instigou a buscar respostas para tais dificuldades, uma vez que observamos grande uso de analogias por parte dos professores regentes em sala de aula, como por exemplo, a distribuição eletrônica em camadas sendo explicada através de uma associação com gavetas que se enchem progressivamente, de maneira que, à medida que uma delas fica cheia de elétrons, essa se fecha e abre-se a próxima gaveta; ou de forma semelhante, a analogia da mesma distribuição com os assentos de um ônibus que vão sendo preenchidos gradativamente pelos passagei-ros. O funcionamento da eletrosfera como um trilho de trem por onde percorreria o elétron e a comparação de ligações covalentes com “salsichões” estabelecidos como conexão compartilhada entre átomos são alguns dos exemplos por nós presenciados. O objetivo desse trabalho é, portanto, identificar alguns destes obstáculos propostos por Bachelard, relacionados ao ensino de química no conteúdo de atomística e analisar o porque dessas manifestações nas respostas de estudantes da 8ª série do ensino Fundamental e 1ª série do Ensino Médio a perguntas correlatas. Assim como comparar os materiais didáticos utilizados em cada situação de a- © Ciências & Cognição prendizagem, pois os alunos que atualmente encontram-se na 1ª série, aprenderam esse conteúdo na oitava série, com o uso de apostila produzida por uma organização educacional da cidade. Esse material didático possui divisão entre matérias, possuindo uma parte específica de química, a qual começa com o estudo do átomo e enfoca principalmente a evolução dos modelos atômicos. Já os alunos que estão atualmente na oitava série estão aprendendo esse conteúdo com auxílio de um livro didático de outra rede educacional, o qual não possui divisão entre física e química e tem o conteúdo de atomística como primeiro assunto de química propriamente dita, enfatizando mais caráter elétrico do que a estrutura dos materiais. Sendo assim, também é objetivo do trabalho verificar se há diferença significativa nos conceitos apresentados pelos alunos que possa ser atribuída a influência do material didático. Para isso, nossas questões de estudo nesta pesquisa são: quais concepções os alunos possuem sobre estrutura e finalidade da eletrosfera? Quais modelos atômicos são representados por eles? O que tem influen-ciado a constituição dessas concepções? 2. Métodos No que tange ao delineamento metodológico, esta pesquisa é de natureza qualitativa, dada a tentativa de compreender aspectos singulares e não meramente a sua caracterização, de levar em consideração o contexto em que foi feita a análise e de procurar explicações para os resultados em variáveis, como os materiais didáticos. Também faz uso de dados quantificáveis na análise das respostas. A presente investigação foi realizada em uma escola da rede particular de educação do município de Curitiba (PR), que atende alunos do Ensino Fundamental, Médio e Educação de Jovens e Adultos. Fizemos um levantamento no mês de abril de 2007, através de questionários aplicados durante algumas aulas cedidas por diferentes professores Esse tipo de instrumento foi utilizado por possibilitar atingir um grande número de pessoas, oti- 99 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 96-109 <http://www.cienciasecognicao.org/> mizar o tempo e garantir o ano-nimato das respostas. O questionário consistiu em 3 perguntas, sendo a primeira objetiva e as outras duas abertas. Na primeira questão, havia 8 alternativas a respeito da estrutura e finalidade da eletrosfera, buscando identificar as concepções que os alunos possuíam dela. Nessa questão, não havia apenas uma alternativa que melhor representasse um ponto de vista; havia, na realidade, três alternativas relativamente complementares que poderiam ser consideradas corretas. As demais questões eram abertas e visavam pesquisar qual modelo de átomo o respondente aceitava como correto, ou que mais se aproximasse da sua compreensão. Para isso, foi pedido que os alunos desenhassem como estariam “visualizando” o átomo caso esse fosse visto através de um microscópio com lentes de aumento muito poderosas e como eles poderiam separá-lo se pudessem manipulá-lo com pinças igualmente sensíveis e poderosas. Optamos por fazer essa relação entre o aluno imaginar como é a constituição de um átomo se fosse possível “vê-lo por dentro” com a elaboração de um modelo, já que concebemos modelo como: “uma imagem que construímos da realidade e que nos ajuda a entendê-la. Nesse sentido, deve haver aspectos em comum entre a realidade e o modelo; uma transformação que ocorre na realidade pode ser representada através do modelo. Isso não significa que o modelo tenha que ser uma cópia exata da realidade e sim que deve representá-la.” (Mortimer, 2000: 189) Por fim a terceira questão, também aberta, perguntava qual a explicação que o aluno dava para a aceitação da teoria atomística, tendo em vista que o átomo nunca foi visualizado. A resposta esperada seria algo relacionado a alguma evidência da existência atômica, como por exemplo, a existência de carga elétrica, campo magnético, emissão de fótons ou a mistura de dois elementos químicos. O ques- © Ciências & Cognição tionário continha apenas três perguntas para que o maior número possível voltasse respondido, ou seja, que não ficasse cansativo para os alunos. 3. Resultados e discussão Obtivemos um total de 291 questionários, desses 156 eram de alunos do primeiro ano e 135 da oitava série. Mesmo os questionários que não estavam completa-mente respondidos foram analisados. Como era de se esperar, as perguntas abertas tiveram um número menor de respostas, acreditamos que por exigir maior esforço. Todos os alunos de ambas as séries responderam a questão 1, primeiro porque ela era uma questão fechada e de grau de dificuldade baixo. A tabela 1 mostra os percentuais obtidos em cada uma das afirmativas propostas na questão 1. Para esta questão, as porcentagens de acerto em relação à alternativa A em ambas as séries mostra que a grande maioria dos alunos tem noção da existência e localização dos elétrons. A resposta esperada para o aluno que tivesse compreendido corretamente os conceitos relacionados à estrutura e finalidade da eletrosfera, era conjuntamente as alternativas A, E, e G. Na 1ª série do Ensino Médio a associação dessas respostas foi obtida em apenas 5 questionários, totalizando 3 % de acerto e na 8ª série essa associação não foi encontrada nenhuma vez. Isso demonstra que embora haja a noção de eletrosfera, o pesquisado não tem clara a dinâmica de movimento de elétrons, o que pode ser verificado pela marcação das afirmativas F e H. Uma associação incoerente encontrada foi a das afirmativas E e F, pois, elas são frontalmente contraditórias. No primeiro ano essa associação aparece em três respostas (2 %), e na oitava série apenas uma vez (aproximadamente 1 %). Além disso, a alternativa E, que era uma das afirmativas corretas, obteve o menor percentual de aparecimento em ambas as séries. 100 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 96-109 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Tabela 1 - Comparação do percentual de respostas à questão 1. Outros obstáculos que podem ser identificados foram os representados pela afirmativa C, em que a camada da eletrosfera eletrônico ocorre linearmente com a condição da camada anterior já estar preenchida, o que é comumente visto em sala de aula sob as funciona como uma gaveta, com altos índices analogias de gavetas ou bancos de ônibus, que de marcação em ambas as séries; e a resposta são preenchidos gradativamente e da frente B, segundo a qual a camada da eletrosfera supara trás. porta uma quantidade máxima de elétrons, A comparação da porcentagem de resmas nunca pode ficar vazia. Esses dois obstápostas simples e combinadas pode ser vista no culos, a nosso ver, são de mesma natureza, gráfico 1. uma vez que dão a idéia que o preenchimento Gráfico 1 - Comparação dos percentuais de resposta da questão 1. 101 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 96-109 <http://www.cienciasecognicao.org/> A questão 2 era dividida em dois itens, no primeiro era requisitado o desenho do átomo sob a possibilidade hipotética de que o estariam vendo através de equipamento próprio; o segundo item perguntava em que partes poderiam separá-lo caso existissem pinças muito sensíveis que possibilitassem essa manipulação. A análise dos desenhos obtidos foi feita enquadrando-os através de semelhanças com os modelos pré-estabelecidos na literatura. No total cinco modelos foram identificados: ANIMISTA (Galiazzi et al, 1997), que coloca características das células dos seres vivos à matéria; MODELO DE DALTON, referente ao átomo como “bola de bilhar”, que seria a menor parte da matéria, sendo portanto, indivisível e indestrutível; MODELO DE THOMSON, que seria o modelo “pudim de passas” e o MODELO DE RUTHERFORD , © Ciências & Cognição com a divisão em um núcleo com prótons e nêutrons e uma eletrosfera com elétrons. O modelo de átomo de Rutherford-Böhr, que mostraria os níveis de energia das camadas, e o modelo atômico de Sommerfeld, no qual a eletrosfera seria composta de órbitas elípticas, com um aspecto de tridimensionalidade, foram contabilizados juntamente com o modelo de Rutherford. Alguns modelos, por não poderem ser classificados como nenhum dos expostos acima, foram classificados como OUTROS; isso se deu pelo fato de se apresentarem em um estado “intermediário”, isto é, com características de mais de um modelo, o que dificulta o seu enquadramento. A comparação entre as respostas pode ser vista no gráfico 2. Gráfico 2 - Comparação entre as respostas à pergunta 2, na parte referente aos modelos atômicos. Conforme pode ser visto no gráfico, o modelo animista foi encontrado na resposta de 9 alunos de primeiro ano. Vale dizer que destes, apenas quatro alunos estavam, dois a dois, na mesma sala, o que elimina a possibi- lidade de cópia ou de alguma forma de influência nessas respostas. Dessa maneira, como pode ser visto na figura 1, é muito evidente a confusão com a idéia de célula, o que provavelmente se deve à aprendizagem recente des- 102 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 96-109 <http://www.cienciasecognicao.org/> se conceito como menor parte do organismo vivo e ao fato de ambos, célula e átomo, possuírem um núcleo. Além disso, na segunda parte da questão que perguntava sobre as possíveis separações, 1 dos alunos escreveu que separaria o núcleo da membrana, o que explicita bem esse equívoco. Figura 1 - Modelo Animista, que apareceu apenas nas respostas de alunos do 1º ano. No que tange ao conceito atômico de Dalton, isto é, de átomo como a menor partícula da matéria, formada de uma estrutura © Ciências & Cognição compacta, maciça e sólida, sendo assim indivisível e indestrutível, foi encontrado que, no primeiro ano, 8 alunos (5 %) permanecem presos a esse conceito, enquanto que na oitava série esse número cai para 2 pessoas (1,5 %). Isso pode estar relacionado de alguma forma ao material didático, pois os alunos de primeiro ano aprenderam esse conteúdo na oitava série, com uma apostila que possuía um tópico sobre Dalton e seu modelo “bola de bilhar”; os alunos atualmente na oitava série estão fazendo uso de um livro didático cujo enfoque sobre esse conteúdo paira predominantemente na natureza elétrica dos materiais, passando diretamente das primeiras noções de átomo de Demócrito a Rutherford, não citando Dalton. Obviamente que, pelo aparecimento desse modelo, a professora deve tê-lo explicado em sala de aula, mas o fato de não ser encontrado no livro didático pode ser um fator que explica a disparidade de resultados. Exemplos de modelos encontrados podem ser observados se na tabela 2: Tabela 2 - Comparação dos Modelos de Dalton obtidos. Entretanto, esse resultado não se repete no que diz respeito ao modelo atômico de Thomson, pois da mesma forma, a apostila traz um tópico explicando seu modelo “pudim de passas”, no qual o átomo seria uma esfera de carga positiva, onde estariam imersas as partícula negativas (elétrons), enquanto que o livro atualmente utilizado também não cita Thomson. Sendo assim, era esperado um resultado semelhante ao modelo Daltoniano, considerando novamente que esse modelo, pelo seu aparecimento, também foi explicado em sala. Contudo, no primeiro ano houve apenas 6 casos (4 %) identificáveis como seguidores do modelo de Thomsom, enquanto que na oitava série obteve-se 13 esquemas (10 %), o que indica que, provavelmente tenha sido dada maior importância à esse modelo em sala de aula, talvez em virtude da ênfase no aspecto elétrico feita pelo livro didático, 103 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 96-109 <http://www.cienciasecognicao.org/> esse modelo tenha sido mais utilizado como base para compreensão dos posteriores. Exemplos de modelos encontrados estão repre- © Ciências & Cognição sentados na tabela 3: Tabela 3 - Comparação dos Modelos de Thomson obtidos. O modelo de Rutherford, por sua vez, foi contabilizado juntamente com o modelo de Rutherford-Böhr , visto que os dois são muito próximos e comumente ensinados conjuntamente, e com o de Sommerfeld , que não é tratado em nenhum dos dois materiais didáticos e foi enquadrado seguindo Galiazzi e colaboradores (1997). Pelo fato do modelo de Rutherford ser ensinado tanto na apostila quanto no livro didático, era esperado que se encontrasse um número semelhante entre as duas séries. Assim, foram encontradas 117 amostras no primeiro ano (80 %), e 105 na oitava série, perfazendo um percentual semelhante de 80 %. Esse resultado majoritário era, de certa forma, esperado, tendo em vista que esse modelo é o atualmente mais aceito para esse nível de escolaridade, sendo muitas vezes tratado como a melhor explicação atual para a estrutura atômica. (Tabela 4). Tabela 4 - Comparação dos Modelos de Rutherford, Rutherford-Böhr, e Sommerfeld obtidos. 104 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 96-109 <http://www.cienciasecognicao.org/> Contudo, comparando-se esse resultado com as respostas da primeira questão, nota-se que na maioria das vezes há uma boa noção na localização da eletrosfera, mas que possivelmente há um obstáculo epistemológico no que tange a sua funcionalidade, sendo essa muito comumente representada como uma “coisa” física e palpável. Ainda assim, foram encontrados alguns modelos que a representaram de uma maneira mais correta, se aproximando do que seria o ideal (tabela 5) esperado para essa idade, visto que esses alu- © Ciências & Cognição nos não possuem conhecimentos sobre modelos quânticos. É evidente que quando se pede que os alunos façam um desenho do que estariam vendo ao microscópio, o resultado também será, de certa forma, um esquema. Mas estas respostas obtidas, apresentam um nível maior de abstração que as demais, pois representaram apenas os elétrons ao redor do núcleo. Foram encontrados 2 amostras no primeiro ano (1 %) e 5 amostras na oitava série (4 %). Tabela 5 - Comparação dos modelos mais próximos ao ideal. Em ambas as séries alguns modelos não puderam ser encaixados em nenhum dos pré-estabelecidos, e foram classificados como “Outros”, aparecendo em 10 respostas (7 %) no primeiro ano e em 12 questionários (9 %) na oitava série. Alguns desses exemplos podem ser vistos na tabela 6. Tabela 6 - Modelos classificados como “Outros”. Na segunda parte da questão, como já citado, foi pedido para que os alunos separassem o átomo nas partes que julgassem possíveis. A separação que indica a noção mais correta seria em: “prótons, nêutrons e elétrons” e foi apontada 23 vezes no primeiro ano (19 %) e 37 vezes na oitava série (14 %). Muitos alunos, entretanto, apresentam algumas evidências de obstáculos, como, por exemplo, a possibilidade de separação da eletrosfera, o que só seria possível considerando-a uma camada física, o que no primeiro 105 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 96-109 <http://www.cienciasecognicao.org/> ano apareceu em 66 respostas (54 %) e na oitava série em 70 respostas, perfazendo um total de 56 %. Como pode ser visto no gráfico 3, pela quantidade de separações encontradas, podese inferir que a estrutura e mesmo a funciona- © Ciências & Cognição lidade atômica, não está clara para os alunos, seja por excluírem partículas importantes na separação ou por equívocos graves, como a separação em número atômico ou de massa, que são apenas conceitos. Gráfico 3 - Comparação das possibilidades de separações atômicas encontradas. Por fim, a questão número três questio-nava os alunos a respeito da exis-tência do átomo, considerando que ele nunca foi visto. Ambos os materiais didáticos apresen-tam evidências de sua existência. O livro didático tenta mostrá-lo através de duas experiências: A verificação da eletricidade estática pela atração de pequenos pedaços de papel em uma régua atritada por uma flanela, e o calor, até então inexistente, resultando da mistura de gesso em pó com água. A apostila, por sua vez, dá exemplos de aplicações tecno-lógicas que dependam do direciona-mento de feixes de elétrons, como por exemplo, em telas de televisores; e propõe um experimento com o aquecimento de diferentes metais, que quando submetidos ao fogo, alteram a coloração da chama. Assim, seria de esperar que respondessem à pergunta com alguma evidência dessa natureza. Mas não houve resposta plenamente satisfatória. Na oitava série a questão foi respondida por 109 alunos (81 %), enquanto que no primeiro ano obteve-se 85 respostas (54 %). As respostas mais freqüen-tes estão no gráfico 4. 106 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 96-109 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Gráfico 4 - Comparação das respostas em comum para a questão 3. Dentre as respostas comuns, na oitava série, das 9 que atribuíram a existência atômica à inovações tecnológicas, 5 justificaram que a certeza ocorre graças a observação do átomo no microscópio; no primeiro ano, isso ocorreu em apenas uma resposta, embora um aluno tenha atribuído a observação a um telescópio. Das amostras que se referem a existência pelo fato do átomo ser a menor parte da matéria, ou seja, se fosse possível dividi-la continuamente, se chegaria até ele, na oitava série as 2 pessoas que escreveram essa resposta apresentaram o modelo atômico de Rutherford-Böhr na questão 2; já no primeiro ano, das 8 respostas, duas apresentaram o modelo de Dalton, as demais também apresentaram o de Rutherford-Böhr. Algumas questões não puderam ser enquadradas em nenhum quesito e foram classificadas como outros, como por exemplo, 2 respostas na oitava série e 1 no primeiro ano, que atribuíam a existência atômica ao registro arqueológico pré-histórico escrito e pictórico, ou ainda um estudante da oitava série que defendia a existência de átomos fossilizados por erupções vulcânicas. Além dessas respostas, na oitava série também apareceram 3 amostras dizendo que o átomo existia porque “a professora disse”. As respostas que mais se aproximaram do ideal foram 6 que atribuíram a certeza da existência atômica às reações químicas e 2 respostas relacionando a sua existência a explosões de bombas atômicas. Ainda assim, boa parte das respostas obtidas são, em ambas as séries, superficiais. Isso dificulta qualquer inferência de nossa parte, pois mesmo as respostas mais próximas do correto, são demasiado simplistas. As respostas que certificavam o átomo por “estudos e experiências realizadas”, por exemplo, não possibilitam identificar se há realmente alguma forma de obstáculo epistemológico na explicação. 4. Conclusão A intenção desse trabalho foi identificar alguns dos possíveis obstáculos epistemológicos propostos por Bachelard (1996) presentes no ensino de química, em alunos de oitava e primeiro ano do ensino médio, além de verificar se sua existência está, de alguma forma, relacionada ao material didático utilizado. Assim, após sua realização, pôde-se evidenciar a existência de alguns obstáculos epistemológicos no ensino de atomística em ambas as séries analisadas. A dificuldade de superação dos modelos utilizados, considerando inclusive que muitos deles não são os atualmente aceitos, mas são mostrados com a finalidade de fazer uma abordagem histórica, 107 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 96-109 <http://www.cienciasecognicao.org/> são bons exemplos de possíveis entraves. Para a aprendizagem do conhecimento científico, é preciso que se tenha um modelo apenas como uma representação, havendo necessidade de abstrair de suas figuras e esquemas para que haja uma verdadeira compreensão. Além disso, não é apenas o conceito que está se constituindo em um obstáculo, as partículas atômicas também não são bem compreendidas pelas séries estudadas. É possível que as duas questões estejam relacionadas, pois as representações podem conduzir a idéias erradas de localização e funcionabilidade. A atuação docente também é certamente muito importante para a aceitação ou refutação de um dos modelos atômicos, pois, considerando que o novo material didático não trazia alguns dos modelos analisados, e ainda assim esses modelos continuaram a aparecer, a ação do professor fica aqui evidente. Isso não representa necessariamente um problema. Na realidade, como o material não trazia essas idéias, é interessante que o professor as mostre, ampliando as abordagens que deverão conduzir ao conceito; mas essa aproximação deve ter o enfoque histórico, formando uma linha de raciocínio, progredindo através de rupturas e incentivando a superação dos modelos. Ademais, é responsabilidade docente a retificação das analogias e metáforas existentes no material didático, bem como a diligência de suas utilizações nas suas explanações, refletindo se seu uso está sendo, de fato, um auxílio. Assim, a mudança do material didático não surtiu grandes efeitos na melhoria das concepções atômicas, tendo em vista que em ambos os materiais, embora a dinâmica de abordagem seja diferente, há noções que podem levar a formação de obstáculos, como por exemplo, as representações atômicas como sistemas planetários. Também se esperava que os alunos de primeiro ano, por se encontrarem em uma idade mais avançada e já terem estudado outros aspectos de maior complexidade das partículas atômicas, como por exemplo, os orbitais e os números quânticos, apresentassem uma maior capacidade de abstração e conceitos mais claros, o que não foi encontrado. © Ciências & Cognição Obviamente que, embora esse conteúdo seja relativamente revisado, a defasagem de um ano desde a exposição desse conteúdo deve ser considerada como um fator. Por sua vez, a oitava série, provavelmente por ter recém o visto, na maior parte das vezes apresentou maior índice de acerto. Podemos traçar algumas implicações desse nosso estudo para o ensino de ciências. A primeira delas diz respeito à aprendizagem de outros conteúdos relacionados à compreensão do átomo, como é o caso da aprendizagem sobre reações químicas. Certamente a compreensão de quaisquer interações moleculares é prejudicada em alunos que aceitem como correto o modelo de Dalton, que ainda não possuía divisão em partículas. Da mesma forma, no modelo de Thomson, que já propõe o conceito de elétron, mas não o de eletrosfera, assuntos como ligações químicas, magnetismo, e emissões de fótons também teriam a aprendizagem seriamente dificultada. Na realidade, defendemos a abstração do modelo, pois mesmo o modelo mais aceito, pode ocasionar entraves, como mostraram Fukui e Pacca (1999), que estudaram a concepção atômica relacionada à compreensão de corrente elétrica. Em seus resultados, o grupo estudado não mostrou apego aos modelos atômicos antigos, mas ainda assim: “A estrutura atômica, o átomo para o aluno, praticamente tem existência própria, sem que esteja vinculado à matéria, a um substrato. O elétron é uma entidade muitas vezes desvinculada de uma estrutura, podendo aparecer sozinho e sem interferir em nada.” (Fukui e Pacca,1999: 9) Outra implicação se refere à necessidade de reconhecimento por parte dos professores das evidências aqui detectadas e da possibilidade de estabilização do pensamento dos alunos num determinado modelo atômico que não o aceito atualmente, para que o docente trabalhe numa perspectiva de questionar essas concepções fazendo o aluno avançar nesta construção. Ou seja, possibilitar ao estudante a compreensão e a conscientização de que um 108 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 96-109 <http://www.cienciasecognicao.org/> modelo rompe com o anterior de tal forma que ele possa apreender a constituição da matéria segundo uma concepção de senso comum, de ciência clássica e de ciência quântica. A essa pluralidade, Bachelard (1984) chama “perfil epistemológico”, isto é, diferentes formas de ver e representar a realidade. Ou ainda em suas palavras: “Poderíamos relacionar as duas noções de obstáculo epistemológico e de perfil epistemológico porque um perfil epistemológico guarda a marca dos obstáculos que uma cultura teve que superar.” (Bachelard, 1984: 30) Para reafirmar nossas conclusões finalizamos recorrendo mais uma vez ao pensamento deste autor (Bachelard, 1984: 84): “Não nos parece com efeito que se possa compreender o átomo da física moderna sem evocar a história das suas imagens, sem retomar as formas realistas e as formas racionais, sem lhe explicitar o perfil epistemológico.” Explicitar os diferentes modelos é importante, mas é preciso ter muito cuidado para que ocorram as rupturas necessárias, ou seja, para que a explanação ocorra construindo uma linha de raciocínio que conduza à real aprendizagem. 5. Referências bibliográficas Adrover, J.F e Duarte, A. (1995). El uso de analogias en la enseñanza de lãs ciências. Programa de estudios cognitivos, Instituto de © Ciências & Cognição investigaciones psicologicas, Facultad de psicologia, Universidade de Buenos Aires. Andrade, B.L.; Zylbersztajn, A. e Ferrari, N. (2002). As analogias e metáforas no ensino de ciências à luz da epistemologia de Gastón Bachelard. ENSAIO- Pesquisa em Educação em Ciências, 2 (2), 1-11. Bachelard, G. (1996). A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto. Bachelard, G. (1984). A filosofia do não. Trad. Joaquim José Moura Ramos, 2ed. São Paulo: Abril Cultural. Costa, R.C. (1998). Os Obstáculos epistemológicos de Bachelard e o ensino de ciências. Cad. Educ. FaE/UFPel, Pelotas, 11, 153-167. Fukui, A. e Pacca, J.L.A. (1999). Modelo atômico e corrente elétrica na concepção dos estudantes. Em: Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências – Atas, II ENPEC (pp.1-9), Valinhos. Galiazzi, M.C.; Oliveira, L.R; Moncks, M.D. e Gonçalves, M.G.V. (1997). Perfis conceituais sobre o átomo. Em: Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências, Anais, I ENPEC (pp.345-356), Águas de Lindóia. Lecourt, D. (1980) Para uma crítica da epistemologia. Lisboa: Assírio e Alvim., 2 ed., p. 25- 32 Lopes, A.R.C. (1993). Contribuições de Gaston Bachelard ao ensino de ciências. Enseñanza de las ciencias, 11(3), 324-330. Mortimer, E.F. (2000). Linguagem e formação de conceitos no ensino de ciências. Belo Horizonte: UFMG. Nagem, R.L.; Carvalhaes, D.O. e Dias, J.A.Y.T. (2001). Uma proposta de metodologia de ensino com analogias. Rev. Port. Ed., 14 (1), 197-213 109 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 110-114 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 05/09/2007 | Revisado em 27/11/2007 | Aceito em 30/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007 Artigo Científico Integrando o ensino da patologia às novas competências educacionais Integrating the learn of pathology to new education competences Mário Ribeiro de Melo-Júnior, a, b, Jorge Luiz Silva Araújo-Filhoa, Vasco José Ramos Malta Patua, Marcos Cezar Feitosa de Paula Machadoa e Nicodemos Teles de Pontes-Filhoa a Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami (LIKA), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, Pernambuco, Brasil; bAssociação Caruaruense de Ensino Superior (ASCES), Caruaru, Pernambuco, Brasil Resumo Buscando integrar o ensino tradicional da patologia geral à construção de novas competências educacionais e baseando-se nos apontamentos preliminares obtidos por pesquisa realizada com 350 alunos de diferentes cursos de graduação da área de saúde da Universidade Federal de Pernambuco, este trabalho propõe uma adequação das técnicas de ensino, com os objetivos de passar os conteúdos programados e de preparar todos os graduandos para utilizarem conhecimentos contextualizados e as competências adquiridas em situações reais da vida profissional. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 110-114. Palavras-chave: novas competências; patologia geral; ensino superior. Abstract With the objective of integrate the general pathology traditional teaching to the construction of new educational abilities, and based on the preliminary notes carried out by 350 different health's sciences undergraduate students of the Federal University of Pernambuco, this work point out an adequacy of the education techniques, with the aims of transmit the programmed contents, and of prepare all the graduates to use contextualized knowledge and the abilities acquired in real situations of the professional life. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 110-114. Key Words: new competences; general pathology; higher education. A patologia e a construção das competências A Patologia Geral é a ponte entre disciplinas básicas e profissionalizantes da área de saúde. O ensino da patologia é um elo fun- damental, já que o estudante implementará na sua prática profissional futura os conhecimentos dos processos patológicos como profissionais de saúde ou pesquisador engajado em diagnosticar e participar das condutas assistenciais para promover a saúde (Chandrasoma - M.R. de Melo-Júnior é Biólogo, Mestre em Patologia (UFPE) e Doutor em Ciências Biológicas (UFPE). Atua como Professor da disciplina de Patologia Geral (PPG) e Patologia Especial na Faculdade Maurício de Nassau (FMN), ASCES e Faculdade do Vale do Ipojuca (FAVIP). Endereço para correspondência: Laboratório de Imunopatologia Keizo Asami (LIKA), UFPE. Av. Morais Rêgo s/n, Cidade Universitária, Recife, PE 50670-910. Telefone: (81) 21012504. E-mail para correspondência: [email protected]. N.T. de Pontes-Filho é Professor Titular do Departamento de Patologia (UFPE). 110 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 110-114 <http://www.cienciasecognicao.org/> e Taylor, 2004). Observamos que nos últimos anos, o déficit do ensino da patologia geral se acentuou, a partir do momento em que a disciplina Processos Patológicos Gerais (PPG) foi instituída pelo Conselho Federal de Educação (LDB, 1996), como obrigatória em todos os cursos superiores da área de saúde (nutrição, ciências biomédicas, fisioterapia, terapia ocupacional, farmácia, fonoaudiologia e odontologia) e não só em medicina e enfermagem. Com isso, ocorreu um aumento brusco no número de alunos, sem que tivessem sido preparadas adequações didático-pedagógicas para o atendimento necessário a cada curso, dentro das competências para esses. Dentre os diversos modelos de gestão pedagógica para que o ensino da Patologia fique condizente com as diretrizes de cada curso, podemos destacar o desenvolvimento de novas competências, tese elaborada pelo sociólogo suíço Philippe Perrenoud, Professor da Universidade de Genebra e especialista em práticas pedagógicas. Ele defende que competências em educação são as faculdades de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos – como saberes, habilidades e informações – para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações, buscando conectar os assuntos trabalhados em sala de aula com a realidade encontrada no ambiente social dos alunos (Perrenoud, 1999). Atualmente, essa contextualização dos saberes é uma das bases do ensino por competências, tornando-se palavra de ordem da educação em vários países e também no Brasil. O processo educacional equivocado que ocorre atualmente consiste em imprimir novas reações sobre pessoas totalmente maleáveis e passivas. Contudo, tem-se observado que, simplesmente dar o conteúdo e esperar que ele seja reproduzido não forma o indivíduo que o mercado de trabalho e a sociedade atual exigem. O ensino por competências baseia-se em princípios complexos que devem ser adequados a realidade de cada área do conhecimento. No caso da patologia, de acordo com nossa vivência em sala de aula e laboratório temos observado um aprendizado mecânico e © Ciências & Cognição desmotivador para a maioria dos alunos, justamente devido à ausência de atualizações e busca de novos recursos pedagógicos que auxiliem o aprendizado dos processos patológicos de uma forma proveitosa e suficiente. De acordo com a visão do ensino pela construção de competências, sugerimos alguns princípios fundamentais para um ensino da patologia geral que, de acordo com algumas correntes pedagógicas aprimora e estimula continuamente alunos e professores (LDB, 1996). Deve-se desde o princípio, estabelecer um “Contrato pedagógico” entre o professor e os alunos, buscando firmar posições que cada uma das partes deverá assumir durante o processo de aprendizado. Os alunos expressam ao docente o que esperam obter com o estudo e quais as suas aspirações. Por outro lado, o professor estabelece quais as diretrizes e parâmetros a serem trabalhados durante o curso. Estabelecido isso, inicia-se o processo de construção de competências que irão auxiliar na apreensão e entendimento dos conteúdos. Aqui sugerimos algumas abordagens que poderão nortear esse processo. O professor deverá saber: • • • • • Gerenciar a classe como uma comunidade educativa. Estabelecer o senso de coletividade, evitando atividades excludentes e particularizadas; Organizar trabalhos utilizando ao máximo os recursos disponíveis. Elaborar aulas diferentes com enfoques diversos, utilizando reportagens, entrevistas, painéis, cartazes, pesquisas, plenárias dentre outros recursos; Conceber e dar vida a dispositivos pedagógicos motivadores. Buscar com o auxílio dos alunos atividades dinâmicas e interessantes que facilitem o aprendizado, utilizar diferentes técnicas pedagógicas; Identificar e modificar aquilo que dá sentido aos saberes e às atividades escolares. Estimular discussões pertinentes a patologia e áreas afins, buscando integrar os alunos ao conteúdo estudado; Criar e gerenciar situações-problema. Motivar o debate sobre relatos de casos 111 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 110-114 <http://www.cienciasecognicao.org/> • • anátomo-clínicos e buscar, através dos conhecimentos dos conteúdos estudados, as possíveis soluções para os casos; Observar os alunos durante a elaboração dos trabalhos. Integrar os alunos às atividades coletivas, buscando resolver ou minimizar as deficiências individuais; Avaliar as competências em construção nos alunos. Elaborar fichas de autoavaliação para monitorar os progressos dos alunos e atividade docente durante o curso. Os alunos deverão desenvolver as seguintes competências: • • • • • • Dominar a leitura e a escrita de termos específicos da área. Na patologia existe uma grande quantidade de termos que se não forem bem trabalhados são motivos de empecilho ao aprendizado; Resolver situações-problema. É de suma importância conectar os processos patológicos aos problemas de saúde e comportamento encontrados a todo momento em nosso meio social; Analisar, sintetizar e interpretar dados, fatos e situações. Desenvolver o senso crítico e o discernimento para que o aluno possa lidar de forma eficiente com situações que exijam uma rápida solução; Compreender seu entorno social e atuar sobre ele. Estimular a conscientização de cada um, do papel social e como, através dos conhecimentos adquiridos, podese melhorar a sua comunidade; Localizar, acessar e usar melhor as informações acumuladas. O essencial não é decorar todo o livro, mas sim, saber como resgatar estes conhecimentos quando for preciso; Planejar, trabalhar e decidir em grupo. Desenvolver a capacidade de atuar em equipe e compartilhar informações traçando planos de ação. Alguns podem questionar a desvantagem do tempo, já que no caso do ensino da patologia geral há uma extensa lista de assuntos diversos que precisam ser trabalhados e © Ciências & Cognição sedimentados, porém na maioria dos casos há pouca carga horária disponível. Como fazer então? É certo que todo esse processo demanda um esforço maior, mas o professor deve gerenciar esta questão estabelecendo o conteúdo programático mínimo e essencial de disciplina de Patologia, para o curso. A questão-chave é criar no processo de ensino da patologia o hábito de estabelecer “conexões teórico-práticas”, capacitando os alunos a buscar informações, onde quer que elas estejam, para utilizá-las nas situaçõesproblema que possam vir a enfrentar. Um bom exemplo de como equacionar esta dificuldade é o uso da criatividade, utilizando métodos motivadores e a discussão de problemas concretos, como o estudo de casos anátomo-clínicos. Nesta modalidade de aula, os tradicionais conteúdos são apenas um dos elementos do processo de aprendizagem. Cria-se uma situação a partir da geração de conflitos que estimula a classe a resolvê-la. Neste caso, a solução de um problema concreto fará com que a teoria ganhe uma finalidade aplicável (Feuwerker, 2002). Quando uma pessoa se depara com uma situação desafiadora, mesmo no campo de aquisição de conhecimentos, sem que seus esquemas mentais disponham de elementos suficientes para enfrentar o desafio, ocorre um desequilíbrio momentâneo. Então, a pessoa ativa seus esquemas assimilatórios, retirando do meio as informações necessárias, e mobiliza seus esquemas de acomodação, reorganizando seus novos dados e superando a situação de desafio; gera-se, dessa maneira, um novo estado de equilíbrio (Ceccin e Feuerwerker, 2004). A interdisciplinaridade na prática de ensino A interdisciplinaridade é uma das ferramentas bastante utilizada para construção de competências, pois se sabe que depois de formado e inserido no mercado de trabalho, o profissional de saúde não encontrará problemas divididos por disciplina. 112 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 110-114 <http://www.cienciasecognicao.org/> Um bom exemplo do seu emprego é observado quando são abordados os processos que geram a calcificação patológica. Neste caso, obrigatoriamente, discutem-se questões ligadas à fisiologia (mecanismo de ação hormonal), bioquímica (metabolismo de melanina), biofísica (efeitos das radiações), clínica médica (reações sistêmicas associadas) e cultura (hábitos alimentares). Em turmas pertencentes a cursos diferentes, é imprescindível atrair a atenção dos alunos com questões pertinentes a sua área de conhecimento e atuação. Não é restringir ou especializar, mas interrelacionar o saber acadêmico com o campo de atuação profissional. Quando se constroem estratégias de ensino como, por exemplo, os mecanismos de hipersensibilidade, em turmas do curso de farmácia, não se deve esquecer de enfatizar as principais substâncias farmacologicamente ativas liberadas pelas células, enquanto no curso de nutrição se dá mais ênfase aos aspectos nutricionais promotores dos processos alérgicos e esta etapa de construção do conhecimento integrado, atualmente, tem se denominado de contextualização de conteúdos. Fica claro que não existem modelos definitivos para ensinar por competências. São as necessidades de cada grupo que devem nortear o processo de ensino-aprendizagem. Não se pode ter o mesmo ritmo, dinâmica e postura didática em turmas diferentes e principalmente em cursos diferentes. O professor deve avaliar os interesses dos alunos adequando os conteúdos a serem trabalhados, personalizando-os a cada realidade. Todo professor sabe muito bem como reagem os alunos à situação global da classe; eles são influenciados não apenas pelo desafio da questão formulada ou do conhecimento novo a ser fixado, mas pelo tom da voz do professor, por sua expressão facial e pela atitude dos outros alunos, enfim o aprendizado está condicionado a uma série de questões sociológicas e comportamentais. Avaliando as competências A avaliação é tradicionalmente associada, na escola, à criação de hierarquias de © Ciências & Cognição excelência. Os alunos são comparados e depois classificados em virtude de uma norma de excelência, definida no conceito de legitimidade absoluta encarnada pelo professor e pelos melhores alunos. No decorrer do ano letivo, os trabalhos, as provas de rotina, as avaliações orais, a notação de trabalhos pessoais criam “pequenas” hierarquias de excelência, sendo que nenhuma delas é decisiva, mas o seu somatório prefigura a classificação do aluno dentro da hierarquia final (Perrenoud, 1999). Surge, então, outro ponto importante, como avaliar as competências? Costuma-se, infelizmente, colocar as provas e os testes previamente marcados, como ponto culminante do processo de aprendizagem, contudo, estudos demonstraram que a avaliação deve ser algo contínuo e não pontual (Cecim e Feuerwerker, 2004). Deve-se mesclar os momentos de avaliação escrita, com atividades orais (seminários, debates), aulas práticas (nos laboratórios e museus de peças anatômicas), estudos dirigidos e outras atividades que motivem os alunos a mostrarem seus conhecimentos. Devemos lembrar que toda a aprendizagem bem conduzida se caracteriza como um processo altamente dinâmico, que depende da atividade mental do educando e que se desenvolve pela mobilização de seus esquemas de raciocínio. Para isso, o ensino deve apelar para atividade mental do aluno, levando-o a observar, manipular, perguntar, pesquisar, trabalhar, construir, pensar e resolver situações problemáticas (Gonçalves, 2001). Em pesquisa realizada com 350 alunos de diferentes cursos de graduação da área de saúde da Universidade Federal de Pernambuco, que estudaram a disciplina de patologia geral nos períodos entre 2002 e 2003, demonstra-se que 35,6% dos alunos encontraram dificuldades em apreender os conteúdos, e, além disso, 50,2% consideraram as aulas desmotivadoras, embora a maioria (320 alunos) não percebesse desmotivação dos professores. Cerca de 98,2% acreditam que atividades didáticas estimulantes como, aulas práticas, estudo de casos, seminários, estudos dirigidos, facilitariam bastante o aprendizado. 113 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 110-114 <http://www.cienciasecognicao.org/> Desta forma, podemos concluir que o problema do aprendizado não está no aspecto motivacional do corpo docente apenas, mas na forma de ensinar (metodologias e didáticas escolhidas), que de acordo com esta amostragem, necessita de um aprimoramento e atualização. Na avaliação, segundo a doutrina da construção de competências, os seguintes aspectos devem ser considerados: • • • • • • © Ciências & Cognição se transformar em um simples concurso classificatório de excelências. Assim concluímos que, o estudo da patologia associado à construção de competências, pode tornar-se algo muito prazeroso, motivador e útil para os graduandos tornandoos mais capazes de se destacar como indivíduos mais críticos e atuarem de forma mais segura dentro das suas áreas profissionais. Referências bibliográficas Desenvolver autonomia progressiva (autoregulação da aprendizagem); Ver o erro, não como um ponto de reprovação, mas como deficiência a ser superada; Não deve haver qualquer limitação rígida de tempo quando da avaliação das competências; Ter domínio do conteúdo sob diferentes aspectos causais e temporais (aprendizagem contextualizada); Decidir a melhor forma de expor os conhecimentos apreendidos; Utilizar instrumentos de auto-avaliação cruzada (o docente avalia o discente, e vice-versa). Contudo, a aplicação desses conceitos pode se tornar algo complexo, enquanto a escola der tanto peso à aquisição de conhecimentos desarticulados e tão pouca importância à contextualização e à construção de competências. Desta forma, toda avaliação correrá o risco de Ceccim, R.B. e Feuerwerker, L.C.M. (2004). Mudança na graduação das profissões de saúde sob o eixo da integralidade. Cad. Saúde Pública, 20(5), 1400-1410. Chandrasoma P., Taylor C.R. (1998). Concise Pathology. Connecticut: Appleton & Lange. Feurwerker L.C.M. (2002). Mudanças na educação médica: os casos de Londrina e de Marília. Tese de doutorado, Faculdade de Medicina de São Paulo, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. Gonçalves, E.L. (2001). “Pedagogia e didática: Relações e aplicações no ensino médico”. Rev. Bras. Educ. Med, 25(1), 20-26. LDB. (1996). Lei de diretrizes e bases da educação nacional. FTD Editora, 5a Ed. Perrenoud, P. (2002). Dez novas competências para ensinar. Porto Alegre: ArtMed Editora. Perrenoud, P. (1999). Avaliação: da excelência à regulação das aprendizagens entre duas lógicas. Porto Alegre: Artmed Editora. 114 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org> S u b me t i d o e m 1 5 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e © Ciências & Cognição e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7 Artigo Científico Psicopedagogia: limites e possibilidades a partir de relatos de profissionais Psychopedagogy: limits and possibilities according from the professionals experiences Maria Regina Peres e Maria Helena Mourão Alves Oliveira Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas), Campinas, SP, Brasil. Resumo A psicopedagogia tem sido uma das áreas de conhecimento que tem gerado grande interesse nos profissionais ligados à educação. Este trabalho tem por objetivo investigar a prática do professor - psicopedagogo, seus desafios, suas limitações, suas possibilidades, frente ao cotidiano da atuação psicopedagógica preventiva em instituições regulares de ensino. São sujeitos dez professores – psicopedagogos de diferentes instituições de ensino. O material utilizado é um questionário de entrevista semi estruturada. Os resultados mostram que 100% dos sujeitos são do sexo feminino, entre 26 a 50 anos. As contribuições obtidas para melhores resultados na atuação nesta área são diminuição do número de alunos nas classes, necessidade da continuidade de estudos, melhor compreensão sobre as possibilidades de realização do diagnóstico psicopedagógico institucional, valorização de uma atuação conjunta com diversos profissionais, ampliação de psicopedagogos em espaços institucionais. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 115-133. Palavras-chave: psicopedagogia; aprendizagem; prevenção; professor – psicopedagogo; atuação psicopedagógica. Abstract Psychopedagogy has been one of the areas of knowledge that has created great interest in professionals attached to education. This work has as its objective to investigate the practice of teacher/pscychopedagogue; his challenges, his limitations, his possibilities concerning the day-to-day routine of preventive psychopedagogy in regular educational institutions. The subjects studied are ten teacher/psychopedagogues from different educational institutions. The material used was a questionnaire of semi-structured interviews. The results show that 100% of the subjects are of the feminine sex between the ages of 26 and 50. The contributions obtained for better results in performance in this area are: diminishing the number of students in the classroom, the necessity of continuing studies, better comprehension concerning the possibilities of institutional psychopedagogic diagnosis, valuing the unified performance of several professionals, and elevating the number of psychopedagogues in educational institutions. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 115-133. - M.R. Peres é Graduada em Biologia (PUC-Campinas) e Pedagogia (ASMEC), Mestre em Metodologia do Ensino (Universidade Estadual de Campinas) e Doutoranda em Psicologia (PUC-Campinas). Atualmente é Professora da Faculdade de Educação e Coordenadora de Curso de Especialização em Psicopedagogia (PUC-Campinas). É integrante do Grupo de Pesquisa Aprendizagem, Linguagem e Leitura (PUC-Campinas). E-mail para correspondência: [email protected]. M.H.M.A. Oliveira é Graduada em Fonoaudiologia (PUC-São Paulo), Mestre em Psicologia Escolar (PUC-Campinas) e Doutora em Psicologia Ciência e Profissão (PUC-Campinas). Atualmente é Professora Titular (PUC-Campinas) e Líder do Grupo de Pesquisa Aprendizagem, Linguagem e Leitura (PUC-Campinas). E-mail para correspondência: [email protected]. 115 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Key Words: psychopedagogy; learning ability; prevention; teacher/ psychopedagogue; psychopedagogic performance. Introdução A busca pela continuidade de estudos, tem-se constituído em uma crescente necessidade quer seja, por questões pessoais e/ou profissionais. Esta constatação nos motivou a realizar este trabalho considerando que uma das áreas de conhecimento que têm apresentado grande demanda para a continuidade de estudos, entre os profissionais oriundos de cursos de formação de professores, tem sido a área de psicopedagogia. Ao se considerar a importância da formação continuada para profissionais de diversas áreas, destacamos as idéias de Batista (2000), ao enfatizar a demanda histórica que os cursos de especialização, ou seja, que os cursos de pós-graduação lato sensu vêm conseguindo na cultura educacional brasileira. Este crescente interesse, dentre outras questões, estaria relacionado às exigências do mercado de trabalho que, juntamente com o tempo de duração dos cursos de especialização, geralmente um ano letivo, vêm atraindo a muitos. A psicopedagogia, concebida como uma área de conhecimento relativamente atual, historicamente apresenta como objeto de estudos, o processo de aprendizagem e suas interfaces com os vários campos de conhecimento. Atualmente, segundo Rubinstein e colaboradores (2004: 227) “o objeto de estudo da psicopedagogia contem-porânea continua sendo a aprendizagem, entretanto passa-se a valorizar a amplitude do fenômeno educacional” e mais intensamente a relação do sujeito com a aprendizagem. Considera-se assim o contexto, a situação e as interações realizadas pelo aprendiz durante o processo de ensino e aprendizagem. Diante destes referenciais é que a ação psicope-dagógica será proposta e desenvolvida. Isto, também contribui para que se possa situar a psicopedagogia como uma área de conhecimento interdisciplinar. Neste sentido temos que a psicopedagogia, além de ter o seu referencial na Psicologia e na Pedagogia, ela também considera as valiosas contribuições, de outras áreas de conheci-mento como a Antropologia, a Sociologia, a Fonoaudiologia, a Medicina, a Neurologia, a Lingüística. Desta forma se valoriza a construção de uma educação mais ampla que integre as diversas áreas de conhecimento, na construção dos saberes do aluno. A prática psicopedagógica prevê além da atuação em clinicas, a atuação em instituições. De modo geral, o atendimento clínico visa intervir em situações de insuces-sos que já se apresentam instaladas. A atuação institucional ocorre, geralmente, em instituições de ensino, empresas, organizações assistenciais. Esta forma de atuação apresenta um caráter preventivo que visa evitar ou minimizar possíveis situações de insucessos. Na prática institucional preventiva, um dos aspectos que merece destaque tem sido a dificuldade dos psicopedagogos em propor procedimentos de avaliação e de intervenção. Esta questão também é uma das preocupações de Bossa (2000) ao enfatizar que uma das dificuldades práticas com que se deparam os psicopedagogos brasileiros, reside nos procedimentos diagnósticos para a intervenção. Segundo a autora, a indefinição quanto ao instrumental utilizado no trabalho psicopedagógico merece ser pensada, de forma que novas perspectivas possam daí surgir e atender as reivindicações inerentes à atividade psicopedagógica. Ela também acrescenta que vários autores já se debruçaram sobre esta questão, entretanto enfatiza que ainda há muito por se fazer. Neste mesmo sentido, quanto aos procedimentos de diagnóstico e intervenção, apresentamos as recentes inquietações de Rubinstein e colaboradores (2004) e Masini (2006). Estas estudiosas enfatizam que a diversidade de práticas psicopedagógicas em função da ampliação do campo de atuação do psicopedagogo impõe o desafio da realização de novos estudos. Esses estudos poderiam se iniciar junto aos cursos de formação do psicopedagogo se estendendo aos programas for- 116 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> mais de pesquisa desenvolvidos nas universidades, especialmente junto a grupos de pósgraduação. Isto contribuiria para obtermos uma visão mais aprofundada que expressasse as atuais tendências da prática psicopedagógica brasileira. Assim diante destas e de outras considerações, o interesse pelo tema psicopedagogia amplia-se e articula-se à experiência de uma das pesquisadoras que atua como professora universitária e coordenadora de curso de psicopedagogia em uma instituição particular de ensino. Merece também destaque, o fato de que este tema se converteu em projeto de pesquisa de doutorado, culminando na elaboração deste artigo entre orientadora e orientanda, junto ao programa de pós-graduação em psicologia. Nesta perspectiva, o presente estudo ao pretender desenvolver uma investigação sobre a atual prática do psicopedagogo utilizou como referencial além de um levanta-mento bibliográfico sobre o tema, uma investigação com professores que também são psicopedagogos e que estejam atuando em diferentes instituições de ensino públicas e particulares. Entendemos que isto nos auxilia a melhor compreender os diversos limites e possibilidades da atuação psicopedagógica institucional preventiva no nosso país. 1. O Objeto de estudo, os fundamentos e as relações da psicopedagogia Existe consenso entre vários estudiosos da psicopedagogia, dentre eles Fernández (1994), Kiguel (1990), Macedo (1992), Rubinstains e colaboradores (2004), Massini (2006) Visca (2002), e outros, de que a psicopedagogia desde a sua origem tem situado o seu objeto de estudo junto às quêstões diretamente relacionadas à aprendizagem. Respeitando-se os estudos, o contexto, as particularidades, dentre outras questões, destacamos as contribuições de Macedo (1992) e Visca (1987), que ao enfatizarem o objeto de estudo da psicopedagogia consideram especialmente as questões de origem metodológica, dentre elas, o como?; o quan- © Ciências & Cognição do? o por que?; o para que?; se ensina e se aprende. Com isto a visão positivista de educação cede espaço a uma concepção de ensino e de aprendizagem decorrente da epistemologia genética. Este novo enfoque, realça a construção do conhecimento por meio do aprender fazendo. Com isto passa-se a considerar as etapas de desenvolvimento cognitivo do aprendiz. Isto segundo Kiguel (1990: 39), vem favorecer a “[...] compreensão do fenômeno da aprendizagem de forma a integrar as várias áreas do conhecimento, considerando ainda, os diferentes níveis evolutivos.” Este mesmo estudioso sugere que será pela interdisciplinariedade, ou seja, por meio da conjugação de esforços das várias áreas do conhecimento e conseqüentemente de vários especialistas, que se poderá intervir no complexo fenômeno da aprendizagem humana. Assim, ao considerarmos a psicopedagogia como uma área de conhecimentos sensível a questões relativas do processo educacional e a contextualizarmos a partir de seus referenciais teóricos, nos defrontamos especialmente com as inegáveis contribuições da psicologia e da pedagogia. Segundo Visca (1987), a psicopedagogia foi sendo construída como uma área de conhecimento ao mesmo tempo independente e complementar da pedagogia, por considerar as questões metodológicas e em especial o trabalho docente. E em relação à psicologia, por considerar especialmente, as contribuições das escolas psicanalíticas, piagetiana e da psicologia social, por meio de Enrique Pichón-Rivière. A partir destes referenciais, a psicopedagogia enfatiza os aspectos cognos-citivos, afetivos, emocionais, sociais, além de outros. Portanto partimos da premissa de que a construção de conhecimentos não pode se limitar a contribuições isoladas de qualquer área que seja, mas sim da inter-relação entre elas em função de um objetivo maior. Assim, a psicopedagogia entendida como uma área de conhecimentos, geradora de uma prática interdisciplinar, não pode ignorar as contribuições das várias áreas de conhecimentos. Diante disto, Lima (1990: 19), apresenta a importância de um “dialogo confronto 117 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> especialmente entre a psicologia e a pedagogia de forma que se faça algo mais efetivo em função do sujeito cognoscente”. Desta forma, não se trata de substituir a psicologia pela psicopedagogia, pedagogia, antropologia, filosofia, lingüística, biologia, fonoaudiologia, medicina, ou por qualquer outra área de conhecimento. Entendemos assim que a busca por melhorias educacionais passa pela articulação das diversas áreas em busca de significados para a atuação profissional. Neste sentido estamos incluindo também a atuação psicopedagógica que, no nosso entender, em muito pode contribuir com o sucesso da dinâmica educador-conhe-cimento-educando. Dentre os estudiosos que abordam as contribuições das várias áreas de conhecimento à área da psicopedagogia, destacamos as de Bossa (2000), e de Stroili (2001). Assim, segundo os estudos desenvolvidos, sobre este tema, temos alguns subsídios que se destacam. Dentre eles, os: da pedagogia que ao estudar as diversas abordagens do processo de ensino e aprendizagem procura embasar a ação docente; da epistemologia e da psicologia genética que analisa e descreve o processo de construção do conhecimento pelo sujeito em interação com outros e com os objetos; da psicologia social que se preocupa com as relações familiares, grupais, institucionais, com as interferências socioculturais e econômicas que permeiam a aprendizagem; da neuropsicologia que possibilita a compreensão dos mecanismos cerebrais que servem de base para o aprimoramento das atividades mentais; da psicanálise que aborda o mundo do inconsciente, das representações, que se expressa por meio de sintomas e símbolos; da lingüística que traz a compreensão da línguagem, da língua enquanto código disponível aos membros de uma sociedade. Com isto, tomando como referencial a idéia de complementaridade das funções em busca de articulá-las as diversas áreas do conhecimento humano para a compreensão do fenômeno educacional, temos que a psicopedagogia, segundo Fagali (1998), se caracteriza como uma área de atuação interdisciplinar desenvolvida por meio das modalidades, clinica e institucional. © Ciências & Cognição A atuação clinica na psicopedagogia apresenta um caráter terapêutico, inferindo a idéia de cura, de resgate da saúde do aprender. Neste sentido, ela atende aos portadores de dificuldades de aprendizagens, que já se encontram instaladas. Nada impede, porém que ao se diagnosticar e proceder a intervenção, visando eliminar ou minimizar os problemas, também se atue de forma a prevenir outras, possíveis dificuldades. Neste sentido, o trabalho psicopedagógico na clinica, pode também ser considerado um trabalho preventivo. Com isto, o psicope-dagogo atua inicialmente realizando o diagnóstico da situação problema para, em seguida buscar as formas mais adequadas para a intervenção. O diagnóstico visa principalmente investigar os quês? e, por quês?, de determinadas situações. A fase de intervenção visa a busca das melhores opções de procedimentos para se efetivar a ação. Na atuação institucional, segundo Fagali (1998), a ênfase do trabalho psicopedagógico reside na construção de conhecimentos desenvolvidos em nível preventivo. Este trabalho pode ser realizado em diversas frentes institucionais visando evitar o desenvolvimento de possíveis problemas de aprendizagem ou de outras situações que possam comprometer a educação para a vida social. Dentre as possibilidades de atuação institucional do psicopedagogo temos trabalhos na área hospitalar, empresarial, familiar, escolar, e outras. Em especial, enfocaremos a atuação psicopedagógica institucional e neste sentido podemos constatar que, em grande parte das instituições, o ‘fazer psicopedagógico’ ocorre, de modo geral, tendo como referencial três vertentes. A primeira, quando o psicopedagogo é contratado temporariamente, para uma assessoria psicopedagógica. Neste trabalho, geralmente as intervenções ocorrem diretamente junto ao grupo de docentes que por sua vez, estão em busca de metodologias diferenciadas de trabalho, visando um melhor aproveitamento escolar por parte do aluno. A assessoria pode se dar também junto a pais ou familiares de alunos que apresentam possíveis dificuldades de aprendizagem. Neste caso, 118 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> geralmente ocorre o encaminhamento para um atendimento psicopedagógico fora do ambiente escolar. Diante disto, o psicopedagogo dificilmente irá criar vínculos com o grupo, uma vez que seu trabalho, na maior parte dos casos, é esporádico, ou seja, se restringe a encontros semanais, quinzenais e até mesmo mensais. A segunda vertente se dá quando a instituição escolar contrata o psicopedagogo para integrar a sua equipe de trabalho. Ao atuar junto a equipe escolar, geralmente composta por diretores, coordenadores, orientadores educacionais, professores, alunos, pais, familiares e outros segmentos o psicopedagogo tem a oportunidade de interagir diretamente com o cotidiano das ações desenvolvidas na instituição. Neste caso, ele passa a realizar um trabalho em conjunto com outros profissionais, contribu-indo assim, dentre outras questões, com: o desenvolvimento de estudos e reflexões sobre os materiais didáticos escolhidos e utilizados; a organização e seleção dos temas de ensino; o processo metodológico e avaliativo; as situações de sucessos e insucessos escolares; os relacionamentos interpessoais e outros temas e questões que sejam de interesse e necessidade da instituição. O psicopedagogo também além de desenvolver trabalhos sistemáticos junto a equipe escolar pode atuar junto a grupos de pais, ou como alguns estudiosos preferem, junto a ‘escola de pais’. Neste caso, dentre outros, o objetivo maior seria a busca de melhorias nas relações entre pais e filhos frente aos desafios de um mundo em constante mudança. Na terceira vertente temos a presença do professor-psicopedagogo, cuja atuação irá ocorrer diretamente com alunos em sala de aula. Isto certamente favorecerá, um relacionamento de proximidade, de confiança propiciando um melhor conhecimento das possíveis dificuldades de aprendizagem dos alunos. Possibilidade semelhante a esta tem sido alvo dos recentes estudos dos pesquisadores franceses Hétu e Carbonneuau (2002), que investigam as contribuições dos psicopedagogos no processo de gestão da sala de aula em instituições de ensino da França. Esses pesquisadores enfatizam, dentre outras questões, a importân- © Ciências & Cognição cia do processo integrado de gestão no interior da sala de aula visando um melhor aproveitamento educacional. Desta forma, ao considerarmos os trabalhos do professor-psicopedagogo, no interior da sala de aula, temos que ele poderá intervir, dentre outras questões, no sentido de prevenir ou minimizar possíveis dificuldades de aprendizagem. Esta tendência se constitui no aspecto central, portanto de maior interesse neste trabalho, pois se vincula diretamente a nossa intenção de investigar o desenvolvimento da prática do professor-psicopedagogo. Nele estaremos enfatizando os possíveis instrumentos utilizados no processo de avaliação e intervenção, visando a realização de uma prática institucional preventiva. 2. Algumas concepções de prevenção e prevenção em psicopedagogia As primeiras concepções sobre prevenção, historicamente aparecem associadas à idéia de saúde, a idéia de bem estar físico e emocional. Entretanto, Durlak (1997) conceitua a prevenção como um conhecimento multidisciplinar que envolve as diversas áreas de conhecimentos, dentre elas a educação, a psicologia, a medicina, a sociologia, além de outras. Isto se justifica em função da multicausalidade dos fatores e dos objetivos que devem contemplar, os programas de prevenção, em função das necessidades pessoais ou dos grupos. Diante disto, os trabalhos preventivos deverão considerar objetivos múltiplos, dentre eles os de: evitar o aparecimento de problemas, evitar que os problemas já existentes se agravem, reduzir a gravidade de novos problemas ou mesmo, retardar o desenvolvimento do problema. Historicamente temos, segundo Albee e Gullotta (1997), que as primeiras propostas formais de intervenção em sentido preventivo, consideraram o aspecto mental, emocional e educacional. Essas ações ocorreram no século XX e tiveram como referencial a segunda guerra mundial e a guerra do Vietnã. Assim ao final dos anos setenta, os Estados Unidos foi o primeiro país a oficializar a criação da primeira comissão de prevenção à saúde. Esta 119 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> proposta envolvia a participação de diversos profissionais, dentre eles, os médicos, os paramédicos, os psicólogos, os educadores que atuavam junto a vitimas de problemas emocionais. Dentre os problemas mais comuns, entre as vítimas das guerras, estavam a pobreza, a depressão, a raiva, a discriminação, o desemprego. Com o tempo as ações preventivas se ampliaram e passaram a ser desenvolvida junto a famílias e instituições escolares, não somente para as vitimas da guerra, mas sim em sentido preventivo, para toda a comunidade. Desta forma se amplia a importância e a necessidade do desenvolvimento de programas de intervenção. Os estudos e pesquisas sobre este tema também se expandem. Com isto, podemos encontrar em Albee e Joffe (1977) uma das mais significativas contribuições, ao proporem diferentes níveis para um trabalho preventivo. Assim segundo estes autores, temos a prevenção primária, a secundária e a terciária. A prevenção primária se constitui de ações a serem realizadas visando evitar as situações problemas. Elas ocorrem especialmente por meio do desenvolvimento de programas educacionais. Esses programas são destinados à todos e não somente a um determinado grupo da população. A prevenção secundária consiste em, após o diagnóstico de um determinado problema, propor uma intervenção focalizada a um determinado grupo. Com isto ela tem por objetivo proteger determinadas populações de risco. A prevenção terciária é mais ampla que as anteriores tendo por objetivo a intervenção em populações ou grupos onde os problemas já estão instalados. Desta forma ela visa reduzir os efeitos, as conseqüências desses problemas. Diante disto, podemos constatar a importância das ações de prevenção, em especial da prevenção primária, pela possibilidade de se trabalhar de forma ampla, ou seja, com toda a população. Isto contribuiria para evitar o surgimento de possíveis problemas, para impedir a instalação de situações indesejáveis, antes mesmo que elas se manifestem concretamente. Programas como este também colabora para o envolvimento e conseqüente comprometimento da coletividade, o que cer- © Ciências & Cognição tamente implicará em melhorias sociais. Com isto, podemos observar que o nível de maior abrangência para o desenvolvimento das ações psicopedagógicas preventivas é o que vai atuar junto aos processos educativos no sentido de evitar ou diminuir os problemas de aprendizagem. 2.1. Intervenção psicopedagógica institucional preventiva Ao tomarmos como referencial os níveis de prevenção, Bossa (2000) propõe três níveis de intervenção psicopedagógica. No primeiro nível, o psicopedagogo atuaria junto aos processos educativos visando evitar os possíveis problemas de aprendizagem. Para isto, é proposto um trabalho que considere as questões didático-metodológicas, e também a formação e a orientação de professores, além do aconselhamento aos pais. No segundo nível, a finalidade esta em, ao mesmo tempo, diminuir e tratar os problemas de aprendizagem que já se encontram instalados. Para isto, a proposta reside na elaboração de um diagnóstico da realidade institucional, a partir daí se iniciaria a elaboração dos planos de intervenção. Esse plano deverá considerar tanto o currículo como o trabalho dos professores, visando evitar que os problemas, os transtornos, se repitam. No terceiro nível, o objetivo consiste na eliminação dos trans-tornos que já se encontram instaladas. Neste caso, o caráter preventivo estaria em prevenir o aparecimento de outros problemas, decorrentes ou mesmo diferentes dos já eliminados. Para isto, a proposta de intervenção deverá ser a de propor alternativas para minimizar as decorrências dos problemas, além de atuar para prevenir o surgimento de outras conseqüências. Ao ampliar essas idéias, e enfatizar concretamente a elaboração de ações para o desenvolvimento de propostas de intervenção em nível preventivo, com o objetivo de aprimorar o processo de construção do conhecimento, Fagali e Vale (1994) também propõe algumas alternativas. Essas alternativas consideram a importância da: revisão dos programas curriculares das instituições bem como a articulação dos mesmos aos aspectos 120 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> afetivo-cognitivos; atenção para a utilização de diferentes formas de trabalhar o conteúdo programático; elaboração de diversos materiais para uso do próprio aluno de forma a integrar o raciocínio, a afetividade, a cognição, o conhecimento. Assim, a intervenção psicopedagógica preventiva proposta, toma como referencial a ação curricular e os aspectos afetivo-cognitivos dos aprendizes. No que se refere a questão curricular, se torna evidente a necessidade do desenvolvimento de práticas que sensibilizem os docentes sobre a importância da reflexão critica e possível revisão de: concepções de educação; orga-nização e seleção dos conteúdos de ensino; metodologia e avaliação. Aliado a isto se destaca a importância de se considerar a existência de vínculos afetivoemocionais, como possíveis elementos facilitadores do processo de ensino e aprendizagem. Entretanto, se torna oportuna a constatação de que as propostas apresentadas, apesar de serem muito adequadas e pertinentes, nas ações que são sugeridas, para a intervenção psicopedagógica institucional, não se considera a possibilidade, do professor ser um psicopedagogo. Neste sentido partimos do pressuposto de que, em tese, o professorpsicopedagogo, sendo um profissional especializado e estando diária-mente inserido no ambiente da sala de aula, poderia também intervir preventivamente. Esta nova configuração, em principio, oportunizaria a reflexão e a possibilidade de revisão da prática do professor-psicopedagogo e talvez, até mesmo da proposta pedagógica da instituição. Diante disto, consideramos que, este profissional estaria mais sensível a buscar propostas de trabalho que, ao mesmo tempo em que, atendessem aos interesses e necessidades pessoais e sociais de seus alunos, propicias-sem possíveis melhorias nos relacionamentos e no próprio ato de ensinar e de aprender. No que se refere ao aluno, esse professor especializado em psicopedagogia por meio do convívio diário, poderia, dentre outras questões, estar atento para melhor auxiliar no desenvolvimento cognitivo, afetivo, emocio-nal, psicomotor, dos mes- © Ciências & Cognição mesmos. Desta forma, o professorpsicopedagogo também estaria trabalhando no sentido de fortalecer as relações do grupo, não deixando de considerar a influência da escola, da família e da sociedade. Ao abordarmos a importância da prevenção e da intervenção psicopedagógica, não podemos ignorar a fase que precede a essas ações. A etapa de avaliar, ou seja, a avaliação psicopedagógica, que deverá anteceder a toda e qualquer proposta de intervenção, seja ela clinica ou institucional. A avaliação psicopedagógica, de modo geral, aparece associada a uma queixa. Segundo Barbosa (2001), os sintomas registrados em uma queixa, são em princípio, originários das observações desencadeadas na instituição. Essas observações deverão, por um lado, considerar as atitudes da criança ou adolescente ao assistirem as aulas, durante os intervalos e recreios, nas atividades extra classe, nos relacionamentos com os colegas e professores. Por outro lado, na avaliação psicopedagógica a instituição de ensino também deverá ser considerada. Desta forma, a análise da adequação dos materiais didá-ticos, da proposta pedagógica, da método-logia, da avaliação, associadas a entrevistas com professores, tem se constituído em importante instrumento de avaliação. Assim diante das diversas possibilidades de intervenção psicopedagógica, podemos constatar, que no Brasil os recursos mais utilizados para a avaliação na instituição, têm sido as entrevistas, as observações, os inventários, as pesquisas, as dinâmicas grupais e em especial os jogos pedagógicos. Comtudo a importância da ação psicopedagógica preventiva, deverá sempre considerar a subjetividade do aluno, bem como as particularidades de cada situação, além da complexidade dos fatores que a permeiam. Uma realidade diferente da brasileira, no que se refere a avaliação e intervenção psicopedagógica, pode ser encontrada na Argentina. Neste país, é prática comum, o psicopedagogo utilizar, tanto na clinica como na instituição, diversos testes como instru-mento para a avaliação do aluno. Entretanto o refe- 121 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> rencial para o atendimento tanto clinico como institucional está na família e na escola. Desta forma, as propostas de intervenção, de modo geral, se iniciam a partir de entrevistas estruturadas ou semi-estrutu-radas com pais ou familiares, com os docentes ou coordenadores das escolas e com o aluno. Essas entrevistas se constituem em uma anamnese que, com os pais ou familiares, tem por objetivo principal conhecer o histórico de vida do aluno e as relações que permearam essas histórias. As entrevistas com os docentes, coordenadores ou orientadores, visam obter informações sobre o processo de ensino e aprendizagem, conhecer a proposta da instituição, a metodologia, a avaliação, o material didático, e especialmente as relações professor e aluno e entre os alunos. A entrevista inicial com o aluno, dentre outros, tem por objetivo o levantamento de hipóteses sobre os comportamentos, os relaciona-mentos, os interesses, e até mesmo os pos-síveis silêncios do aluno diante de algumas questões. Juntamente com a entrevista, o psicopedagogo argentino, também utiliza com as crianças, alguns instrumentos específicos de avaliação. Dentre os instrumentos que irão nortear as propostas de intervenção psicopedagógicas estão os testes de inteligência, as provas de nível do pensamento ou também chamadas de piagetianas, a avaliação do nível pedagógico, a avaliação perceptomotora, os testes projetivos, os testes psicomotores e outros. Também merece destaque como forma de instrumento mais amplo e subjetivo de avaliação o que Fernández (1990: 44) denomina de “o olhar e a escuta psicopedagógica”. Segundo a autora, essa postura é revelada por meio da disponibilidade do psicopedagogo ouvir atentamente a família, a instituição escolar e o aluno visando formular hipóteses sobre determinados fatos, situações, contextos. Temos ainda que o referencial teórico mais utilizado na avaliação psicopedagógica argentina, é o da “Epistemologia Convergente em Psicopedagogia” . Nesta proposta o psicólogo argentino Visca (2002) parte da concepção de que a psicopedagogia conver- © Ciências & Cognição gente deve considerar as contribuições das escolas de Genebra, da Psicanalítica e da Psicologia Social. Dentre outros fatores, os trabalhos da escola de Genebra subsidiariam os fundamentos sobre a construção do conhecimento, os da escola psicanalítica auxiliariam na explicação de questões relaci-onadas a afetividade e os trabalhos da psicologia social enfocariam as questões culturais, os processos grupais e suas relações com o individuo. Assim, ao abordarmos a diversidade de recursos da avaliação psicopedagogia institucional na Argentina e confrontá-la com a realidade da avaliação psicopedagógica no Brasil, podemos constatar a existência de um enorme distanciamento entre elas. Talvez a mais significativa diferença relacionada à avaliação e intervenção psicopedagógica resida na própria questão da formação do psicopedagogo. Na Argentina os cursos que formam o psicopedagogo apresentam disci-plinas comuns nos dois primeiros anos à formação do psicólogo e do psicopedagogo. Além disso, os currículos dos cursos de psicopedagogia apresentam uma significativa carga horária para disciplinas de técnicas de diagnóstico psicopedagógico, diagnóstico psicopedagógico institucional, intervenção psicopedagógica em instituições escolares, além de outras disciplinas. Isto, dentre outros fatores, favorece a possibilidade da liberação do o uso de testes tanto para os psicólogos como para os psicopedagogos argentinos, além de propiciar uma melhor possibilidade de preparação para o exercício profissional. No Brasil a avaliação por meio do uso de testes psicológicos, de inteligência, projetivos e outros, são de uso exclusivo dos psicólogos. No nosso entender isto é muito coerente, especialmente com os pressupostos que norteiam a formação do psicopedagogo no Brasil que é muito diferente dos valorizados em alguns outros paises. Assim temos que dentre outros paises, na Argentina, a formação básica do psicopedagogo ocorre após quatro anos de estudos, em nível de graduação. Em continuidade a formação inicial, são propostos cursos de especia-lização, mestrado ou doutorado. 122 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> Na França, a formação inicial ocorre por meio dos programas de ciências da educação. A formação continuada ocorre nos cursos de pós-graduação na área de psicopedagogia. Isto caracteriza uma enorme diferença em relação a atual formação do psicopedagogo no Brasil. Podemos afirmar que, exceto raríssimas exceções, são os cursos de especialização, geralmente com duração de aproximadamente 360 horas distribuídas em um ano letivo, que teoricamente formam o psicopedagogo brasileiro. Não podemos nos esquecer também que estes cursos de especialização recebem profissionais de diversas formações iniciais, porém de ‘áreas afins’. Isto certamente se constitui em um diferencial altamente significativo, para o exercício desta atividade, que já se inicia na formação, perpassa pela atuação e reflete diretamente na identidade e na questão da regulamentação da profissão. No Brasil a psicopedagogia não possuem o status de profissão regulamentada, ela esta oficialmente catalogadas, junto ao Código Brasileiro de Ocupação – CBO, como uma ocupação. Este fato não desmerece o trabalho do psicopedagogo. Ao contrário, partimos do pressuposto de que este posicionamento além de mais coerente em sentido educacional contribui para se evitar dificuldades que esbarram, sobretudo, na construção da identidade e da legalidade para o exercício profissional. Se por um lado o exercício da psicopedagogia esbarra na questão da legalidade, por outro lado, temos também a realidade de que vários municípios, especialmente nos estados do Sul e de São Paulo, ignoram o reconhecimento da profissão e realizam concursos públicos para psicopedagogos. No estado de São Paulo, também temos a aprovação do projeto lei n.º 128/2000, que estabelece a assistência psicológica e psicopedagógica em todas as instituições de ensino básico, abrindo a possibilidade do psicopedagogo se integrar profissionalmente na área educacional. Acreditamos que, fatos como estes contri-buem com idéias popularmente dissemi-nadas entre os psicopedagogos de que, apesar da psicopedagogia ainda não ter conquistado o status de ser uma pro- © Ciências & Cognição fissão regulamentada no nosso país, ela encontra-se legitimada. Desta forma, a questão da formação interfere diretamente na avaliação psicopedagógica perpassando pela possibilidade de construção e sedimentação de um referencial teórico que irá servir de parâmetros para a organização de instrumentos avaliativos e, sobretudo para analises dos resultados obtidos. 3. Objetivos Diante do exposto são objetivos deste estudo descrever e analisar a prática de professores que também são psicopedagogos, investigar seus possíveis limites e possibilidades. São objetivos específicos: • caracterizar o professor – psicopedagogo, a partir de alguns dados pessoais e profissionais; • identificar a instituição em que estes profissionais estão atuando; • descrever a prática cotidiana do professor psicopedagogo; • verificar a opinião dos entrevistados sobre as influências da formação inicial na prática psicopedagógica; • verificar os trabalhos de intervenção psicopedagógica preventiva e os procedimentos de diagnósticos mais utilizados; • descrever as propostas de intervenção psicopedagógica considerada como bem sucedida; • identificar, segundo os participantes, as contribuições da psicopedagogia institucional preventiva, os seus desafios e suas sugestões, para a obtenção de melhorias na prática psicopedagógica. 4. Metodologia Assim, visando atingir os objetivos propostos buscamos, por meio da trajetória metodológica, dos relatos e das ações, descrever os limites e as possibilidades da prática cotidiana do professor – psicopedagogo. Para isto utilizamos como referencial os dados obtidos por meio de questionário semi estrutura- 123 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> do além da análise qualitativa para os dados obtidos. Para isto, utilizamos inicialmente um pré-teste com dois psicopedagogos, tivemos com isto, o objetivo de verificar validade do instrumento. Diante dos resultados obtidos, o instrumento sofreu pequenas adequações visando atender ao novo universo da pesquisa que passou a considerar o grupo de professores – psicopedagogos que deveriam estar atuando em sala de aula, junto ao Ensino Fundamental, em instituições publicas ou particulares do estado de São Paulo. Participantes Os dez professores – psicopedagogos participantes desta pesquisa, foram convidados pela pesquisadora, para que pudéssemos obter um universo variado em termos de tempo de experiência profissional e de realidades de instituições de ensino. Os entrevistados foram escolhidos intencionalmente em função de pertencerem a diferentes realidades educacionais e atenderem aos objetivos da pesquisa. Isto segundo Thiollent (1986), se apresenta como um princípio perfeitamente adequado ao contexto de uma pesquisa que enfatiza aspectos qualitativos. Apesar do convite, a participação na pesquisa, se deu de forma voluntária, sendo possível que o participante se retirasse em qualquer momento sem que houvesse nenhuma espécie de penalidade ou ônus. Também foi destacado o nosso compromisso em respeitar a privacidade e o sigilo em relação aos dados ou informações obtidos, bem como o nosso objetivo de retornar aos participantes os resultados obtidos com este trabalho. apresentou três partes, sendo que na primeira buscamos informações referentes a dados pessoais dos entrevistados. Na segunda parte, buscamos situar o professor – psicopedagogo quanto a sua formação inicial e continuada e seu tempo de atuação. Na terceira parte, enfocamos os relatos sobre a atuação profissional e a possível existência de intervenções psicopedagógicas preventivas. Procedimento No contato inicial com os participantes apresentamos o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Este termo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa, por meio do protocolo 362/06, tendo também sido registrado junto a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa – CONEP, por meio da folha de rosto – FR 97120. Ao apresentarmos o termo aos participantes da pesquisa, ressaltamos a importância do registro de aceite, bem como explicitamos os objetivos da mesma além da forma de participação dos envolvidos, e do caráter sigiloso das informações a serem obtidas. Enfatizamos assim que todo o desenvolvimento da pés-quisa considerou a preservação da integridade física, cognitiva, afetiva e moral dos partici-pantes. Atendendo assim as normas éticas implícitas nas pesquisas com seres humanos. Os procedimentos utilizados na pésquisa foram desdobrados nas seguintes etapas: • • Material O material utilizado consistiu de um questionário semi-estruturado. Os participantes da pesquisa tiveram acesso a este instrumento de diferentes formas, conforme a manifestação explicitada. Assim o questionário chegou aos participantes, nos meses de março e abril de 2007, via correio eletrônico ou pessoalmente, isto é em mãos. O questionário © Ciências & Cognição • Elaboração de pré-teste. O pré-teste foi realizado de forma voluntária com dois psicopedagogos; Contato inicial com os professores – psicopedagogos. Neste encontro, foram apresentados os objetivos do trabalho de pesquisa, sendo questionado o interesse ou não em participar da mesma. Em caso afirmativo, o termo de consentimento livre e esclarecido foi entregue, formalizando assim a concordância na participação; Encaminhamento dos questionários. Essa etapa ocorreu para os pesquisados que no contato inicial manifestaram o desejo de colaborarem com a pesquisa. Conforme a opção de cada participante, o questionário 124 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> • já foi entregue ao final do contato inicial para que depois de respondido, fosse devolvida por meio de correio, via carta selada. Para outros participantes que desejaram responder por correio eletrônico, foi solicitado o e-mail pessoal, sendo o questionário encaminhado posteriormente; Sistematização e análise dos dados obtidos. 5. Resultados e discussão Os entrevistados são todos professores – psicopedagogo pertencentes ao sexo feminino com idades entre 26 a 50 anos. Do total de entrevistados, 60% são formados exclusivamente em pedagogia, 20% fizeram cursos de licenciatura, sendo, português e inglês e matemática, 10% possui dupla formação, publicidade e propaganda e pedagogia e 10% apresenta a formação em psicologia. Neste último caso, podemos constatar a existência do psicólogo, atuando como professor em sala de aula. Isto não nos causou grande surpresa, pois é de conhecimento público, a existência de vários outros profissionais que embora não apresentem a formação desejada para a atuação, desenvolvem seus trabalhos como coordenadores, como orientadores educacio-nais e até mesmo como gestores, especial-mente junto a instituições particulares de ensino. Para isto, partimos do pressuposto de que, neste caso, embora não se justifique, o curso de psicopedagogia deve ter contribuído para auxiliar na preparação deste profissional para o desempenho da função de professor - psicopedagogo. Temos também que 70% dos entrevistados realizaram seus cursos de formação inicial em instituições particulares e 30% são provenientes de instituições públicas de ensino. O tempo de formação inicial dos entrevistados varia entre dois anos a vinte e dois anos. Dos participantes, 90% atuam na formação de origem e somente 10% não atua na formação de origem. Também temos uma variação que compreende a faixa de um a nove anos, para o tempo de formação como especialista em psicopedagogia. © Ciências & Cognição Em relação a instituição de Ensino Fundamental em que os participantes atuam como professores – psicopedagogos, temos que 50% delas são instituições de origem pública, 40% de origem particular. Temos também 10% do total de participantes que atuam ao mesmo tempo em instituição publica e particular. Ao relatarem como desenvolvem os seus trabalhos os entrevistados indicaram como principais procedimentos metodoló-gicos: aula teórica, aula prática (jogos variados, musica, alfabeto móvel), exercícios de compreensão e aplicação, leitura e releitura de textos, produção de textos. Os recursos didáticos relatados foram: livro didático, livro paradidático, materiais concretos, televisão e vídeo. Os dados obtidos revelam a predominância de duas áreas de conheci-mentos, a de língua portuguesa e a de matemática. Isso ocorreu apesar de contarmos somente com um entrevistado formado em língua portuguesa e um formado em matemática que atuam especificamente nestas áreas de conhecimento. Os demais estão atuando preferencialmente nestas áreas, no ensino de 1ª. a 4ª.série. Podemos considerar que isto já era esperado em função das orientações da atual LDB 9394/96, que no artigo 32, enfatiza que o Ensino Fundamental, dentre outros, deverá ter por objetivos o desenvolvimento da capacidade de aprender, tendo como meios básicos o pleno domínio da leitura, da escrita e do cálculo. Desta forma se ressalta o desenvolvimento das habilidades diretamente ligadas à essas áreas. Justamente as duas áreas de conhecimento mais enfatizadas pelos entrevistados. Entretanto, se por um lado a atual LDB ressalta a importância de um trabalho nas áreas de língua portuguesa e matemática, por outro lado, no mesmo artigo 32, da LDB, outros objetivos são propostos. Dentre eles destacamos os relacionados à compreensão do ambiente natural e social do sistema político, da tecnologia, das artes e dos valores em que se fundamenta a sociedade. Neste sentido também se valoriza o trabalho com outras áreas de conhecimentos, como as de ciências naturais, história, geografia, artes. Entendemos como altamente significativa essa falta 125 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> de referências a outros componentes curriculares. Esperamos que isto não signifique a ausência de um trabalho com as áreas de ciências, história, geografia, dentre outras, pelos professores – psicopedagogos, em detrimento da exclusividade para a realização de um trabalho isolado somente com as áreas de língua portuguesa e de matemática. Os procedimentos metodológicos mais utilizados pelos entrevistados são a aula teórica, a aula prática, exercícios de compreensão e aplicação, leitura e releitura de textos, produção de texto. No nosso entender são procedimentos viáveis que devem ser utilizados de forma variada. Entretanto, independentemente do procedimento que se utilize, enfatizamos a importância de que o professor psicopedagogo incentive os alunos para que registrem as atividades desenvol-vidas. Esta estratégia se constitui em um referencial significativo, pois auxilia na melhor compreensão dos temas estudados, possibilitando a organização de idéias e estimulando a aprendizagem dos alunos. Ela também pode se constituir em parte do processo avaliativo. Partindo do referencial de que os professores - psicopedagogos utilizam nas aulas práticas, materiais concretos, recorre-mos a Lorenzato (2006), que se refere aos materiais concretos como recursos didáticos que agem diretamente no processo de ensino e aprendizagem, dependendo dos objetivos a serem atingidos. Assim é de fundamental importância que ao utilizar esses materiais em sala de aula, o professor planeje muito bem o seu trabalho, selecione e organize os conteúdos a serem desenvolvidos bem como a possibilidade de utilização dos mesmos. Diante disto, se torna interessante ressaltar a importância de um trabalho com uma grande variedade de materiais concretos bem como, com a exploração de atividades diversas com um mesmo tipo de material, atendendo assim as diferentes, mas complementares áreas de conhecimentos. Assim, diante dos dados obtidos junto aos entrevistados, seria altamente relevante que o professor - psicopedagogo construísse uma prática apoiada em sólidos referenciais teóricos e que ao exercê-la, não se limitasse ao ensino de língua portuguesa e matemática. © Ciências & Cognição Outro diferencial a ser considerado na prática do professor - psicopedagogo, se refere a opção de escolha do material didático a ser utilizado. Assim, mesmo que a instituição escolar imponha determinados materiais e recursos didáticos, em especial, o livro didático, que o professor - psicopedagogo não se detenha a este único material. Que ele tenha a sensibilidade de possibilitar aos seus alunos a experiência de trabalhar com diferentes materiais, por meio de diversos procedimentos metodológicos. Também seria fundamental que o professor – psicopedagogo considerasse a possibilidade da efetivação da avaliação diagnóstica. Ela poderia se consti-tuir em um projeto, visando inicialmente, dentre outras questões, a própria organização do como e do quando seria mais oportuno realizá-la. Neste sentido esta proposta possibilitaria melhor situar o aluno, frente as diferentes áreas de conhecimentos, além de se transformar em um recurso de trabalho do professor - psicopedagogo, que se somaria a outros visando uma aprendizagem mais real e significativa. No nosso entender, isso também é atuar preventivamente na sala de aula. Obtivemos também como resultado que 90% dos entrevistados percebem as influências da formação inicial na atual prática. Eles afirmam que, de modo geral, isto se revela por meio do desenvolvimento de atividades na escola. Isto vem de encontro às idéias de Castanho (2001) ao explicitar que na atualidade se valoriza a formação inicial bem como a formação continuada com base na realidade da prática e na constituição da profissão docente. Deste grupo que consegue perceber as influências da formação inicial na atual prática, se destacam 60% de professores – psicopedagogos que se referem às dificuldades de aprendizagem. Essas dificuldades aparecem compreendendo vários fatores, dentre eles, os de origem cognitiva, emocional, disciplinar. Relacionamos situa-ções como estas às idéias de Visca (2002) ao se referir a psicopedagogia como uma área de conhecimento que favorece inter-relações com outras áreas, não deverá se prender somente a busca de respostas que envolvam a questão cognitiva de forma isolada. Ao contrário, é na interação 126 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> dos vários fatores, dentre eles os de origem cognitiva, afetiva, emocional, social, familiar, neurológica, que estão as respostas mais precisas e coerentes às questões de aprendizagem. Juntamente a isto, temos que 70% dos entrevistados afirmam realizarem um trabalho psicopedagógico preventivo. Constatamos uma tendência, em indicar os jogos como um dos recursos mais utilizados para o diagnóstico visando um trabalho preventivo. Além dos jogos, os entrevistados indicaram os brinquedos, as brincadeiras, os desenhos, as produções escolares, os questionários para entrevistas com a família, a observação, o olhar e a escuta psicopedagógica, o inventário com os registros dos dados. A importância dos jogos como instrumento avaliativo, para a realização de um trabalho preventivo é inegável, entretanto, Lorenzato (2006), lembra que por melhor que seja um material didático, ele não é garantia sucesso na aprendizagem. Isto vai depender muito de como o material será utilizado. Isto obviamente também vai depender dos referen-ciais teóricos do psicopedagogo. Também ressaltamos que os jogos, os brinquedos, as produções do aluno, por exemplo, podem ser utilizados inicialmente como instrumento de diagnóstico e posteriormente como junto às práticas de intervenção, como um recurso metodológico, visando à superação de possíveis dificuldades de aprendizagem. Os dados obtidos revelam a existência de professores - psicopedagogos que apresentam maior clareza sobre que a atuação preventiva, chegando a apresentar algumas ações concretas. Outros se referem a importância do trabalho preventivo, mas não chegam a apresentar ações para a sua realização, eles apresentam a intenção, mas explicitam como seria o desenvolvimento do trabalho preven-tivo institucional. Temos também um significativo grupo representado por 30% dos entrevistados, que apesar de estarem atuando como professores psicopedagogos em instituições de ensino afirmaram não realizarem um trabalho psicopedagógico preventivo. © Ciências & Cognição Esta realidade é altamente preocupante, uma vez que a psicopedagogia institucional se caracteriza especialmente pelo desenvolvimento de um trabalho em nível preventivo. Desta forma, segundo Bossa (2000), o trabalho psicopedagógico preven-tivo na instituição, está diretamente relacio-nado ao processo de ensino e aprendizagem de forma individual ou grupal. Neste sentido caberá ao psicopedagogo, dentre outras ações, identificar as possíveis perturbações no processo educacional, atuar conjuntamente com demais profissionais da instituição, contribuir na orientação do trabalho didático metodológico junto aos docentes, buscar melhorias educacionais. Como, estamos aqui com um grupo de professores – psicope-dagogos, entendemos que ações como estas, além de outras, que considerassem especial-mente a questão metodológica, afetiva, o envolvimento dos pais e familiares bem como dos demais profissionais da escola, deveriam ser uma constante na rotina de possibilidades de trabalho dos entrevistados. Ao serem questionados sobre o(s) procedimento(s) diagnóstico(s) utilizados para a intervenção psicopedagógica, os professores – psicopedagogos mais uma vez indicaram os jogos e em seguida as atividades de leitura e escrita. Outros procedimentos também foram citados como: atividades matemáticas, atividades lúdicas, representações, dramatiza-ção, desenho, brincadeiras, entrevistas com pais, entrevistas com alunos, observações e a avaliação dinâmica do potencial da aprendizagem – LPAD. Este ultimo proce-dimento proposto por Reuven Feuerstein, se refere Programa de Enriquecimento Curricu-lar – P.E.I. que dentre outras questões, compreende um trabalho de avaliação do potencial cognitivo. Os resultados também revelam a dificuldade de muitos dos entrevistados em relatarem ou até mesmo de situarem e se posicionarem sobre a utilização de procedi-mentos para um diagnóstico institucional. Isto pode ser constatado quando os professores – psicopedagogos confundem procedimentos com materiais utilizados. Assim, temos entrevistados que diante da solicitação de registrarem os procedimentos mais utilizados indicaram 127 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> materiais como: noticias de jornais e revistas; atividades que envolvem o uso da visão, da audição, de coordenação motora grossa e fina; histórias clássicas e em quadrinhos. Diante disto, seria fundamental que os professores – psicopedagogos não tomassem um único instrumento como fonte exclusiva para a avaliação, mas sim considerassem a possibilidade de utilização de vários procedimentos bem como das várias frentes de investigação, dentre elas a escola, a família, as relações sociais, os interesses pessoais e outros. Também deve ser analisada a possibilidade de se recorrer a avaliação de outros profissionais em função das necessidades apresentadas. Assim temos segundo Rubinstains e colaboradores (2004), que as práticas avaliativas e de intervenção psicopedagógica são extremamente variadas no Brasil uma vez que os psicopedagogos ancorados em suas formações, em seus referenciais teóricos desenvolvem um estilo próprio de avaliação e intervenção psicopedagógica. Elas ainda explicitam que apesar das particularidades, podemos encontrar pontos comuns na prática psicopedagógica brasileira. Isso se revela especialmente na opção em atuar utilizando recursos como os jogos, a observação, o P.E.I., os projetos de trabalho. Ao serem convidados a relatarem uma intervenção psicopedagógica considerada bem sucedida muitos professores – psicopedagogos a fizeram em várias instan-cias. Desta forma eles destacaram interven-ções realizadas diretamente com os alunos, com os pais e com outros profissionais da instituição. Os entrevistados também utilizaram ou mencionaram a importância da utilização de vários recursos para isto. Com os alunos os recursos cognitivos mais utilizados foram: histórias, caderno, lousa, leituras, figuras, representações gráficas, materiais concretos para alfabetização, atividades pedagógicas. Com os alunos também foram destacadas situações que envolvem a afetividade, a estimulação, a observação, a auto-avaliação. Com os pais foram destacadas as conversas informais e as entrevistas. Com os demais profissionais as © Ciências & Cognição intervenções para a realização de um trabalho integrado. A importância do trabalho integrado, já foi apontada por Barbosa (2001), Visca (2002), Saravali (2004) dentre outros, como um dos diferenciais da prática do psicopedagogo. Neste momento, entretanto, retomamos e ampliamos estas idéias destacando a relevância de que o professor – psicopedagogo realize um trabalho diagnóstico e de intervenção, articulado com as equipes interna e externa da escola. Diante dos relatos de intervenções bem sucedidas, podemos perceber que muitas das questões relacionadas a aprendizagem se misturam as relacionadas a afetividade. Neste caso o professor – psicopedagogo parece assumir a posição de um mediador entre conhecimentos formalmente exigidos pela escola, o interesse dos alunos, o nível de desenvolvimento cognitivo dos mesmos, as expectativas da família, as relações afetivas, dentre outras, que permeiam o processo educacional. Ao considerar a indicação das contribuições essenciais da psicopedagogia obtivemos junto aos entrevistados resultados que se referem a: busca de melhorias na aprendizagem; melhor compreensão do processo de construção do conhecimento; revisão da própria prática docente; prevenção a problemas de aprendizagem; diagnostico das dificuldades de aprendizagem; consideração do contexto emocional e cognitivo do aprendiz; possibilidade de realização um trabalho conjunto; avaliação do aluno como um todo; aprendizagem para a ouvir o aluno e sua família; compreensão da complexidade dos diversos fatores envolvidos no processo educacional; desenvolvimento de um olhar diferenciado para a aprendizagem e para as dificuldades de aprendizagem; analise do processo de ensino e aprendizagem a partir do sujeito que aprende e da instituição que ensina; busca de metodologias diferenciadas de trabalho. Como pode ser constatado, a grande parte dos entrevistados, atribuem como contribuições da psicopedagogia, os fatores que se articulam diretamente ou indiretamente a obtenção de melhorias relacionadas ao processo de ensino e aprendizagem. Entre-tanto 128 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> entendemos que a psicopedagogia vai além disto pois, segundo Kolyniak Filho (2001) também seria importante que os psicopedagogos que atuam em escolas, não se limitassem a considerar somente a superação de possíveis dificuldades de aprendizagem. Eles poderiam e deveriam, criar mecanismos pelos quais os alunos pudessem interagir com mais segurança, apreço, solidariedade, respeito, dentre outros valores. Enfim, que a psicopedagogia também pudesse contribuir para a formação ética e cidadã do aluno. Ampliando os dados obtidos junto aos entrevistados, temos também os estudos e pesquisas dos educadores franceses Hétu e Carbonneuau (2002), que dentre outras questões, apontam que uma das atuais contribuições da psicopedagogia institucional reside em auxiliar na reflexão individual e do grupo sobre a prática dos docentes e sobre a adequação e diversidade dos projetos da instituição. Essa diversidade se refere, aos projetos institucionais, objetivos esperados, interesses e necessidades dos alunos, seus possíveis limites e suas possibilidades, seus vínculos afetivos, emocionais, familiares e mais recentemente as situações de violência por eles enfrentados. A seguir registramos os resultados obtidos diante da solicitação de tomar como referencial a relação teoria e prática e indicar os principais desafios na área psicopedagógica. Mais uma vez se destaca a preocupação com elevado número de alunos em sala de aula. E novamente esta situação é apontada como elemento que dificulta o bom desenvolvimento do processo educacional. Juntamente a isto, os entrevistados agora, evocam esta realidade também como elemento desafiador para um trabalho psicopedagógico institucional. Outros fatores também foram apontados como desafiadores da área de psicopedagogia como: a ausência de supervisão que acompanhe o trabalho psicopedagógico; a existência de trabalho psicopedagógico na escola; a existência da psicopedagogia na rede pública de ensino; a ampliação do número de professores – psicopedagogos; a ampliação dos atendimentos psicopedagógicos nas escolas; a possibilidade de auxiliar na superação das dificuldades de © Ciências & Cognição aprendizagem, promovendo a aprendizagem; a realização de um trabalho integrado; o reconhecimento profissional e cientifico. Ao retomarmos a idéia do excessivo número de alunos em sala e da dificuldade de se fazer um bom trabalho ou um trabalho psicopedagógico por causa disto, os entrevistados reforçaram as idéias de Angelini (2006) que destaca a existência de condições que impedem ou comprometem a qualidade da educação no Brasil. Dentre elas, esta pesquisadora destaca as classes numerosas; o que se entende por progressão continuada; a ausência de condições mínimas para o trabalho; a desestruturação das famílias; a inadequada formação de muitos professores; a má remuneração dos professores. Essas questões, com exceção da que se refere a má remuneração, já haviam sido apontadas em outros momentos também pelos entrevistados. Assim entendemos que seria importante que, de um lado, as instituições de ensino, sejam elas públicas ou particulares revissem as questões de caráter estruturais e pedagógicas que possam estar comprometendo a qualidade da aprendizagem. Por outro lado, também se torna fundamental que o professor, se prepare para o trabalho educacional, que após a sua formação inicial, dentre outras questões, ele invista na continuidade de seus estudos. Neste sentido, a expectativa de trabalho com o professor – psicopedagogo, se torna uma alternativa, se considerarmos que esse profissional já apresenta um diferencial que reside na formação continuada. A isto acrescentamos a expectativa de que ele também apresente uma sensibilidade maior para o desenvolvimento de uma prática diferenciada, que não ignora as possíveis dificuldades dos seus alunos, mas que diante dela, trabalha à partir das possibilidades do mesmo. A coerência entre a relação teoria e prática, é o elemento essencial que irá fundamentar as ações psicopedagógicas. Isto talvez se constitua em um dos maiores desafios da psicopedagogia, resgatar a concepção de educação do professor - psicopedagogo e sensibilizá-lo para a sua importância no trabalho de diagnóstico e intervenção junto a seus alunos. 129 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> Neste sentido temos as contribuições de Moojen (2004), que resgata a importância de um trabalho de diagnóstico e de intervenção coerentes, subsidiados por teorias atuais que, dentre outras questões, considerem os avanços do mundo cultural. Ao serem questionados sobre as contribuições visando melhorias na atuação psicopedagógica, 90% dos professores – psicopedagogos se manifestaram indicando a necessidade de: diminuição do número de alunos nas classes; investir na continuidade de estudos, melhorias no diagnóstico psicopedagógico, atuar de maneira conjunta considerando o envolvimento da família e dos diversos profissionais, ampliar o número de psicopedagogos nas instituições. Muitas das indicações já haviam sido apresentadas em momentos anteriores, é o caso do elevado número de alunos em sala de aula, da importância a continuidade de estudos, do diagnóstico psicopedagógico e da atuação conjunta com os diversos profissionais. Ao considerarmos as contribuições apresentadas pelos professores - psicopedagogos, partimos do pressuposto que elas se caracterizam como elementos complementares. Os elementos ou atitudes isoladas, dificilmente se caracterizam como melhorias. Se tomarmos como referencial, por exemplo, a importância da continuidade de estudos, isto certamente influirá na realização de um melhor diagnóstico, na sensibilidade para a formação de uma equipe de trabalho, no desenvolvimento de ações conjuntas, dentre outras questões. A queixa sobre a dificuldade de se fazer um trabalho de melhor qualidade, por causa do alto número de alunos em sala de aula e a proposta de se diminuir a quantidade considerada como excessiva, não se caracteriza como uma dificuldade exclusiva do professor - psicopedagogo. Temos vários estudos que, dentre outras questões, apresentam a necessidade de se rever o excesso de alunos em salas de aula, especialmente em algumas regiões do nosso país. Dentre esses estudos e propostas, destacamos as do “Projeto Brasil 2022 – Do país que temos para o país que queremos” – que enfoca o tema “A educação que quere- © Ciências & Cognição mos”. Esses estudos foram realizados pelo Instituto PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais) que tem a sua principal atividade centrada na educação e contou com a participação de renomados educadores. Os resultados obtidos foram divulgados no ano de 2003 visando a obtenção de melhorias para o país em diversos setores. No que se refere a educação e ao estado de São Paulo, temos por meio do relatório apresentado em 27.04.06, a ênfase dada a necessidade do desenvolvimento de estudos, para que se possa diminuir o número de alunos em sala de aula. Segundo esse mesmo estudo, o estado de São Paulo conta hoje com a média de quarenta estudantes em sala de aula, o que tende a comprometer a qualidade do ensino. Diante disto, torna-se evidente a necessidade da redução do número de alunos em sala de aula. Entretanto, entendemos que isto não poderá se constituir como condição isolada para a obtenção de melhorias educacionais e muito menos para a realização de um trabalho psicopedagógico preventivo. Outros fatores merecem consideração dentre eles, a própria formação do professor e do psicopedagogo; as condições físicas, estruturais da instituição escolar; a questão curricular; o projeto pedagógico da escola; a avaliação e intervenção psicopedagógica em nível preventivo; a formação de uma equipe para o desenvolvimento de um trabalho integrado. 6. Considerações finais Os resultados indicam por um lado, a existência de vários elementos limitantes, ou dificultadores do trabalho psicopedagógico institucional. Estas questões perpassam, em muitos casos, pela própria dificuldade de conceber em que se constitui um trabalho institucional preventivo. Juntamente ao desafio de se elaborar e realizar diagnósticos e intervenções na instituição. Estas dificuldades, no nosso entender, dentre outras, se relacionam diretamente a ausência deste tipo de experiência que deveria ter sido propiciada, especialmente pelos cursos de especialização em psicopedagogia e também pelas próprias instituições onde estes profissionais atuam. 130 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> Por outro lado, os resultados também apontam para a enorme possibilidade que se constitui o trabalho do professor - psicopedagogo realizado de maneira preventiva na instituição. Como este trabalho estaria sendo realizado diretamente pelo professor - psicopedagogo, portanto, de maneira natural, mas intencional, ele excluiria a necessidade de novos espaços, bem como a de novos profissionais da psicopedagogia que fariam o contato com o professor, visando obter informações para trabalhar com o aluno. Não estamos com isso, excluindo a necessidade de um trabalho extra-instituição, mas estamos atentando para a possibilidade de que este trabalho também seja realizado pelo professor – psicopedagogo, de forma rotineira e preventiva em sala de aula. Assim, os resultados obtidos revelam uma tendência na direção da importância de se ampliar os trabalhos institucionais preventivos em função de minimizar o surgimento de possíveis dificuldades de aprendizagem, ao mesmo tempo em que contribui com a autonomia, com a cidadania, com o preparo do aluno para o enfrentamento de novos e constantes desafios. Neste sentido temos segundo Tonet (2004), que as mudanças sociais estão alterando as características da sociedade e conseqüentemente de seus grupamentos humanos. Isto implica diretamente em alterações na escola e no perfil desejado pela mesma, para seus professores. Desta forma o professor psicopedagogo se constitui como um profissional qualificado que dentre outras questões, promove condições para que seus alunos tenham de forma continua e independente, o acesso a cultura. Isto contribui para a melhor preparação do aluno para o desenvolvimento de suas potencialidades e, conseqüentemente para a vida. Diante disto, apresentamos algumas contribuições que consideramos essenciais para a ampliação do trabalho a ser realizado pelo professor – psicopedagogo em sala de aula. Assim sugerimos que: • os cursos de especialização em psicopedagogia passem a considerar uma propos- • • • © Ciências & Cognição ta voltada para o trabalho do professor psicopedagogo, investindo na preparação de seus alunos também para este tipo de atuação; os professores – psicopedagogos sejam incentivados a construir instrumentos próprios para uma melhor investigação das situações apontadas como dificuldades no processo de ensino e aprendizagem. Esses instrumentos deveriam considerar a proposta pedagógica da escola, o material didático, o próprio trabalho do professor – psicopedagogo, as expectativas do aluno, da família, os relacionamentos familiares a estabilidade afetivo – emocional, dentre outras; a auto avaliação da própria atuação dos professores – psicopedagogos seja uma prática constante, assim como a realização de atividades que desenvolvam a construção e a formação da autonomia e de um autoconceito positivo por parte do aluno; a atuação do professor – psicopedagogo seja registrada, discutida e apresentada em fóruns especiais, produzindo material cientificamente qualificado, com conseqüente aumento nas publicações da área. Essas contribuições, no nosso entender, são viáveis, apesar de ainda convivermos com questionamentos sobre a validade do trabalho psicopedagógico. Questionamentos estes veementemente contestados por vários estudiosos, dentre eles, Bossa (2002), Fernández (2001), Hétu e Carbonneau (2002), Visca (2002), ao enfatizarem que a psicopedagogia busca respostas onde as outras áreas de conhecimento parecem ter deixado lacunas. Desta forma, o valor da psicopedagogia preventiva, já se encontra comprovado, em uma dimensão institucional, ao ser aceita e considerada como um diferencial para a aquisição de melhorias educacionais. A psicopedagogia também já adquiriu o status de ser reconhecida como objeto de pesquisa nos cursos de graduação e pós-graduação, ampliando assim a possibilidade de se estender cada vez mais aos educadores e áreas afins. Mais recentemente estamos constatando a exigência desta especialização ou mesmo a indicação de 131 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 115-133 <http://www.cienciasecognicao.org/> literatura referente a esta área de conhecimento, em concursos públicos para professores. Podemos também acrescentar a estas situações, os resultados obtidos neste trabalho, onde os professores – psicopedagogos entrevistados legitimam, por meio de suas ações, a possibilidade da atuação psicopedagógica institucional preventiva. 7. Referências bibliográficas Albee, G.W. e Gullotta, T.P.(1997). Primary prevention’s evolution. Em: Albee, G.W. e Gullotta, T.P Primary prevention works. (pp 03-21). New Delhi: Sage Publications. Albee, G.W. e Joffe, J.M. (1977). The issues: an overview of primary prevention. University of Vermont by the University Press of New England, Hanoverand London: Albee and Joffe editors. Angelini, R.A.V.M. (2006). A qualidade da educação no Brasil: um problema de metodologia? Rev. Assoc. Bras. Psicopedagogia, 23(72), 213-220. Barbosa, L.M.S. (2001). A psicopedagogia no âmbito da instituição escolar. Curitiba: Expoente. Batista, S.H.S. (2000). Formação de professores: discutindo o ensino da Psicologia. Em. Azzi, R. e Sadalla, A.M.A. (Orgs.). 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São apresentados os resultados de uma investigação cujo objetivo foi verificar possíveis influências das crenças no pensamento. A pesquisa envolveu a aplicação de questionário a quatro grupos (católicos, adventistas, espíritas e estudantes universitários sem considerar a religião), totalizando 100 sujeitos. As questões, sobre temáticas de sexualidade, solicitavam do sujeito, primeiramente, um posicionamento pessoal e, em seguida, a postura de sua religião. Os dados evidenciaram a influência das crenças no raciocínio humano e, ao mesmo tempo, a existência de outros fatores atuantes nos processos do pensamento, ressaltando a efetiva complexidade do funcionamento mental e das relações entre aspectos culturais e sujeito. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 134-149. Palavras-chave: crenças; cultura; complexidade; modelos organizadores do pensamento. Abstract Considering the complexity of mental and psychic functioning, this article discusses the relations between beliefs and human thinking. It assumes that processes of human thinking involve not only cognition but also suffers the influence of other aspects such as affective or cultural (beliefs). The article presents the results of a research that studied the possible influences of beliefs in human thinking. A questionnaire was applied to four groups (Catholics, Adventists, Spiritualists and academic students without considering the religious tendency), a total of 100 persons. The questions are concerning human sexuality themes; it was asked the personal positioning and subject’s religion positioning. Results indicated the influence of beliefs and, simultaneously, the influence of other factors in human thinking, that indicate the complexity of mental functioning and of relations between culture and subject. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 134-149. Key Words: beliefs; culture; complexity; organizing models of thinking. 1. Introdução O presente artigo busca discutir a influência de aspectos culturais no pensamento - C.S.O. Pátaro é Graduada em Pedagogia (Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP), Mestre em Educação (UNICAMP) e Doutoranda (FE/USP). Atualmente é Professora Substituta (UFSCar). E-mail para correspondência: [email protected]. 134 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org/> humano, compreendendo que o funcionamento mental se dá a partir de elementos que não se limitam apenas à cognição, à lógica e racionalidade. Neste percurso, nosso intuito será o de apontar a perspectiva da complexidade como um caminho possível na compreensão não apenas das certezas e regularidades que possam permear o funcionamento psíquico e mental, mas também das ambigüidades, aleatoriedades e incertezas presentes nas relações entre sujeito, cultura e pensamento humano. Nossa referência para as idéias que configuram a Teoria da Complexidade é o trabalho de Edgar Morin (1991, 1994, 2002a). De acordo com Morin, a complexidade do mundo real – dos objetos e fenômenos da natureza – só pode ser compreendida a partir de uma perspectiva multidimensional (em lugar de unidimensional e fragmentada) e que tenha em vista as incertezas e incompletudes de todo o conhecimento. Nesse sentido, a perspectiva de complexidade considera, na compreensão do mundo real, a ordem, a certeza e a regularidade tanto quanto a desordem, a incerteza, as não-regularidades. Busca conhecer as partes sem desvinculá-las da existência de um todo e vice-versa, levando em conta, assim, as grandes quan-tidades de interações e unidades existentes na realidade, de forma que as determinações e previsões dão lugar às nãodeterminações, às possibilidades e aos fenômenos aleatórios. A partir desta perspectiva de complexidade, nossa intenção será a de buscar compreender o funcionamento psíquico e mental do ser humano. Para tanto, apresen-taremos os resultados e discussões de uma investigação realizada que teve como objetivo analisar as possíveis relações entre o pensamento do sujeito e os aspectos vinculados à cultura, em especial, as crenças. Assim, levando em conta os pressupostos aqui discorridos, pretendemos inicialmente apresentar, neste artigo, de que forma compreendemos o sujeito psicológico e as diferentes dimensões que o constituem. Em seguida, discutiremos acerca das relações entre sujeito e cultura, analisando de que forma os elementos culturais (como é o caso das crenças) passam a fazer parte da individuali- © Ciências & Cognição dade dos sujeitos. Em um terceiro momento, nosso olhar estará voltado para a Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento, referencial teórico e metodológico que orientou a pesquisa apresentada, e que permite considerar o pensamento humano a partir da articulação de aspectos de diferentes naturezas (cognitivos, mas também afetivos, socioculturais, biológicos, etc.). Por último, apresentaremos a pesquisa realizada, os resultados encontrados e as análises e discussões levantadas a partir dos dados da investigação. 2. Dimensões constituintes do sujeito Compreender o psiquismo humano de uma forma que seja coerente com os princípios de complexidade, expostos anteriormente, exige que consideremos o ser humano em sua totalidade e multidimensionalidade, levando em conta os inúmeros elementos e relações que influenciam o funcionamento psíquico. Encontramos essas características no trabalho de Araújo (1999; 2003). Este autor apresenta um modelo cujo objetivo é explicar o funcionamento psíquico em uma perspectiva complexa e não-fragmentada, que considere a influência de fatores diversos, tanto externos quanto internos ao sujeito, que ocorrem simultaneamente. Segundo Araújo, cada ser humano, seu modo de ser, agir, pensar e sentir, é resultado da interação de diferentes dimensões, com características específicas, mas que se interrelacionam, e que, em conjunto, fazem parte de um sistema mais complexo que define a individualidade do sujeito. O autor afirma que o sujeito psicológico é, ao mesmo tempo, um ser biológico, que sente fome, frio e sede, mas que também tem sentimentos, emoções, desejos. Este mesmo sujeito interage com a realidade externa (objetiva) e também interna (subjetiva) e, nesta relação, constrói uma capacidade cognitiva de organizar suas experiências (Araújo, 2003). Todos os aspectos constituintes do sujeito (biológico, afetivo, sociocultural e cognitivo) atuam simultaneamente, influenci- 135 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org/> ando a maneira de ser, pensar, agir e sentir de cada ser humano. Adotar este modelo como explicação para o funcionamento psicológico do sujeito implica considerar que em qualquer situação da vida cotidiana entram em ação diferentes aspectos relativos às diferentes dimensões constituintes do sujeito: o funcionamento biofisiológico do organismo, as estruturas cognitivas, os sentimentos, emoções, valores, crenças, desejos do indivíduo, bem como a inter- © Ciências & Cognição relação deste conjunto como um todo junto ao meio. Segundo a representação de Araújo (2003: 156), a seguir, o sujeito psicológico é constituído por diferentes dimensões – cognitiva, afetiva, biológica e sociocultural – e seu funcionamento se dá a partir das interrelações destas entre si e com o mundo externo – físico, interpessoal e sociocultural – com o qual o sujeito interage: Figura 1 – Modelo para o sujeito psicológico, segundo Araúo (2003). Os estudos feitos a partir deste modelo psicológico, de acordo com Araújo, não podem perder de vista a sua totalidade e a noção de organização interna e externa das dimensões propostas, de forma que é possível estudar, separadamente, cada uma das dimensões – afetiva, cognitiva, sociocultural e biológica – mas não podemos deixar de considerar que estes aspectos se inter-relacionam e que esta dinâmica exerce e recebe influências da maneira como o sujeito psicológico lida e interage com o mundo interno e externo. Dadas estas considerações, é possível dizer que o funcionamento psíquico ocorre a partir de um certo grau de previsibilidade, de certezas; ao mesmo tempo, entretanto, abre-se espaço ao inesperado, ao aleatório, à possibilidade de desordem e incerteza. Estes pontos são de fundamental importância se queremos uma teoria que explique o funcionamento psíquico, o sujeito da vida real, e que esteja de acordo com os princípios de complexidade. É neste contexto, e a partir deste olhar de complexidade, que devem ser compreendidas as discussões propostas no presente artigo. Assim, sem perder a noção do funcionamento do sujeito psicológico como um todo, nosso foco, a seguir, estará voltado para a dimensão sociocultural, a partir da discussão a respeito das crenças pessoais e das relações entre sujeito e cultura. 136 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org/> 3. Crenças, cultura e sujeito Ao tecer suas considerações acerca da mente humana, Morin (2002a) considera a existência de dois tipos de pensamento: o pensamento racional, ligado à lógica, ao cálculo e à razão, e o pensamento mítico, relacionado a um âmbito mitológico, do imaginário, das analogias e dos símbolos. Segundo o autor, o raciocínio humano acontece a partir da articulação destes dois tipos de pensamento, que não podem ser vistos separadamente, de forma que a esfera imaginária – dos mitos, religiões, crenças – adquire para o ser humano tanta importância quanto a esfera do pensamento racional. Diante de tal constatação, Morin coloca que o conhecimento é uma re-construção do real pelo ser humano e que, portanto, não é completo, nem pode ser encarado como uma cópia exata do mundo objetivo, sendo sempre permeado por constantes “erros e ilusões”. Tudo isso leva o autor a ressaltar que o conhecimento humano não se encerra nos princípios da razão e da lógica, e deve ser sempre considerado dentro de seus limites e incertezas. A partir desta premissa, passamos a nos debruçar sobre o estudo das relações entre as crenças pessoais e o pensamento humano. Considerando, desta forma, que tanto o pensamento quanto a construção do conhecimento são permeados não apenas por processos relativos à racionalidade e à lógica, mas também por fatores de outra natureza, fomos em busca de investigar em que medida as crenças – enquanto construção cultural, proveniente do imaginário, da “esfera mitológica” (Morin, 2002a) – podem vir a influenciar a organização do pensamento. Ao optarmos por estudar as crenças, elegemos assim um elemento relativo à cultura, a fim de investigar até que ponto essa dimensão cultural, que se incorpora ao indivíduo a partir de seu contato com diferentes grupos e com a sociedade, exerce influências no pensamento dos sujeitos. Partindo do pressuposto de que as crenças, provenientes do meio cultural e social, passam a fazer parte da individualidade do ser humano, é necessário explorarmos um © Ciências & Cognição pouco mais de perto as relações entre sujeito e cultura, buscando compreender como se dá a internalização dos aspectos culturais pelo indivíduo. O estudo de tais relações entre cultura e sujeito são pontos altamente discutidos em estudos de diferentes campos do conhecimento, em especial da Psicologia. Para abordarmos estas relações a fim de orientar a discussão do presente artigo, iremos nos ater mais especificamente nas perspectivas trazidas por Morin (2002b), Vygotsky (1998) e também por Martins e Branco (2001). Para Morin (2002b), o ser humano está em constante interação com o mundo físico, com os fenômenos naturais, e, principalmente, com outros sujeitos ao seu redor. É desta interação entre os seres humanos que nasce a cultura. Própria da natureza humana e da vida coletiva, a cultura é definida por Morin (2002b: 35) como sendo constituída pelo: “Conjunto de hábitos, costumes, práticas, savoir-faire, saberes, normas, interditos, estratégias, crenças, idéias, valores, mitos, que se perpetua de geração em geração, reproduz-se em cada indivíduo, gera e regenera a complexidade social.” Em cada sociedade, de geração em geração, a cultura é protegida, nutrida, regenerada e, ao mesmo tempo, modificada, para que não seja destruída, não caia em extinção. Segundo o autor, da mesma forma que não existe cultura sem as competências proporcionadas pelo cérebro humano, também não haveria linguagem ou pensamento sem a cultura. De acordo com Morin, as relações entre cultura e sujeito são estreitas e mútuas. Se, por um lado, a cultura depende da vida em sociedade, por outro, o ser humano, em sua constituição, também possui muito da cultura à qual pertence. Essa “reprodução” da cultura em cada sujeito é o que o autor denomina imprinting. Para Morin, o imprinting pode ser compreendido como uma marca, uma inscrição, impos- 137 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org/> ta à mente humana pela cultura. Desde o nascimento, através da cultura familiar e, posteriormente, através da cultura social, o imprinting vai impondo sua marca e, tal qual uma cicatriz, passa a fazer parte da constituição do sujeito, sua individualidade, e com ele permanece continuamente. Entretanto, a cultura exerce suas influências não apenas externamente, impondo sua marca, mas também internamente, fazendo emergir do próprio sujeito o poder de suas idéias, suas crenças e paradigmas. Em muitos casos, estas influências vão além, de modo que a cultura – através das idéias, de suas influências no pensamento e na visão de mundo – age também em outra direção: é ela que igualmente “impede de aprender e de conhecer fora dos seus imperativos e das suas normas, havendo, então, antagonismo entre o espírito autônomo e sua cultura” (Morin, 2002b: 35). Assim, para Morin, a cultura passa a fazer parte do sujeito e não imprime apenas suas marcas, mas traz também uma consignação de como deve o sujeito organizar, conceber, lidar com o mundo ao seu redor e com os demais seres humanos. Diante de tais considerações e partindo do pressuposto de que as crenças possuem suas raízes na cultura, conforme colocamos anteriormente, é possível afirmar que o sujeito, ao mesmo tempo em que possui determinadas crenças e tende a agir de acordo com elas, é também, em certa maneira, tomado por suas crenças, passando assim a pensar e a enxergar o mundo através delas. Neste aspecto, a crença é ao mesmo tempo uma forma de guiar as condutas e também de limitá-las. Entretanto, é preciso considerar que, se por um lado o imprinting imprime as marcas da cultura no sujeito, por outro, como já afirma o próprio Morin, o sujeito não é passivo nesta relação. Vejamos. Adentrando mais especificamente o campo da Psicologia, encontramos os estudos do psicólogo russo Lev S. Vygotsky. Dentre seus estudos sobre as relações entre cultura e sujeito, destacaremos, no presente trabalho, suas considerações acerca do conceito de internalização. © Ciências & Cognição De acordo com Vygotsky (1998), a internalização é a reconstrução interna de uma operação externa ao sujeito e implica uma série de transformações psicológicas, a seguir: a) Uma operação externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente ao sujeito; b) Um processo inicialmente interpessoal torna-se intrapessoal. As funções superiores (como é o caso do pensamento), segundo Vygotsky, originam-se das relações entre os indivíduos e, no desenvolvimento da criança, aparecem inicialmente no nível social, entre pessoas (interpsicológica) e posteriormente no nível individual, no interior da criança (intrapsicológica). c) A transformação do processo interpessoal em intrapessoal vem como resultado de um longo processo de desenvolvimento. Nas palavras do autor, “O processo, sendo transformado, continua a existir e a mudar como uma forma externa de atividade por um longo período de tempo, antes de internalizar-se definitivamente. (...) [as funções] somente adquirem o caráter de processos internos como resultado de um desenvolvimento prolongado. Sua transferência para dentro está ligada a mudanças nas leis que governam sua atividade; elas são incorporadas em um novo sistema com suas próprias leis.” (Vygotsky, 1998: 75) As idéias de Vygotsky, como é possível notar, auxiliam na compreensão dos processos psicológicos envolvidos na internalização dos aspectos culturais pelos seres humanos, a qual está intimamente relacionada ao próprio desenvolvimento do sujeito. A partir dos estudos de Vygotsky, Martins e Branco (2001) abordam igualmente o conceito de internalização, ao discutirem as relações entre cultura e sujeito. A partir de uma perspectiva sociocultural construtivista, propõem considerar a relação bidirecional que caracteriza a transmissão da cultura para o sujeito. De acordo com estes autores, os parti- 138 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org/> cipantes do processo de transmissão cultural estão ativa e constantemente transformando as mensagens culturais. Assim: “Emissor e receptor organizam e reorganizam ativamente a informação cultural de forma que a cultura se encontra continuamente em transformação mediante a ação de todos os participantes da experiência social.” (Martins e Branco, 2001: 171) Esta perspectiva nos traz amplas possibilidades na relação entre sujeito e cultura, abrindo espaço para a participação de ambos na construção do novo ao longo deste processo de constante interação. Para Martins e Branco, embora o estudo do conceito de internalização venha recebendo a atenção de vários pesquisadores e de diferentes áreas do conhecimento, a noção apresentada por Vygotsky é a que mais trouxe contribuições para o campo de pesquisa do desenvolvimento humano. Nas palavras dos autores, o processo de internalização pode ser entendido como: “[um] processo através do qual sugestões ou conteúdos externos ao indivíduo apresentados por um ‘outro social’ são trazidos para o domínio intrapsicológico (do pensar e do sentir subjetivos), passando a incorporar-se à subjetividade do indivíduo. Este ‘outro’ são pessoas, instituições sociais ou mesmo instrumentos mediados culturalmente.” (Martins e Branco, 2001: 172) A compreensão apresentada por estes autores evidencia a dinâmica entre indivíduo e cultura, demonstrando de que forma ocorrem as influências mútuas recebidas e exercidas por ambos os pólos desta relação: “No que se refere ao indivíduo, a internalização de aspectos culturais é antecedida e orientada por elementos motivacionais, afetivos, que elegem e priorizam objetivos e conteúdos culturais, atribuindo-lhes um significado próprio © Ciências & Cognição no interior de um universo amplo de possibilidades. Por outro lado, a cultura à qual o indivíduo está ligado, e na qual ele se constitui, orienta suas expectativas e comportamentos em uma certa direção, sem com isto impor-lhe, necessariamente, um padrão definido de crenças, valores e comportamentos. Em função de aspectos motivacionais próprios, o indivíduo pode se opor de forma mais ou menos intensa às orientações apontadas pelas sugestões sociais, dando origem à singularidade de sua constituição subjetiva e, em conseqüência, permitindo-lhe introduzir novos aspectos na cultura coletiva.” (Martins e Branco, 2001: 172) No trecho que acabamos de citar, tanto o indivíduo quanto a cultura estão abertos à transformação, à formação de novos significados, que ocorrerão em função da forma como se dá a relação entre ambos. Ou seja, não é possível considerar cultura sem indivíduo ou vice-versa. Realizando um paralelo entre tais colocações e as considerações de Edgar Morin (2002b), apresentadas anteriormente, pudemos verificar nestas últimas, de forma análoga, as estreitas inter-relações entre cultura e sujeito. Segundo Morin, através do imprinting, a cultura inscreve no indivíduo um conjunto de práticas, saberes, crenças, valores, idéias, conhecimento, que influenciam o desenvolvimento da individualidade do sujeito. Mas evidentemente, embora todos os indivíduos de um determinado grupo sejam submetidos ao mesmo imprinting cultural, cada sujeito, em sua individualidade, irá constituir-se e construir-se de maneira diferente, uma vez que não é a cultura unicamente que influencia o ser humano – o qual, para Morin, deve ser considerado de maneira multidimensional, como um sujeito ao mesmo tempo físico, biológico, psíquico, afetivo, cultural e social (Morin, 2002b, 2002c). Ou seja, entram em ação, entre outros fatores, os “aspectos motivacionais” próprios de cada sujeito (Martins e Branco, que acabamos de citar), que possibilitarão que os aspectos culturais sejam apreendidos pelo indivíduo adquirindo 139 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org/> didos pelo indivíduo adquirindo significado próprio. Diante do quadro exposto até agora, entendemos que uma compreensão das relações entre cultura e indivíduo, que leve em conta toda complexidade inerente a estes elementos, necessita, por um lado, de uma noção de cultura que esteja aberta a transformações, que exerça suas influências sobre o indivíduo em uma relação não-unilateral e nãodeterminista. Por outro lado, exige também uma noção de indivíduo ativo que, embora possua, em sua subjetividade, traços da cultura e da sociedade da qual participa, tenha possibilidades de (re)significar e (re)construir os aspectos culturais. Esta noção de indivíduo só se faz, do nosso ponto de vista, à medida que encaramos esse ser humano de forma complexa e multidimensional (como já nos propõe Morin), e nos parece coerente com o modelo de sujeito psicológico apresentado no início deste artigo (Araújo, 1999, 2003) – o qual considera as diferentes dimensões constituintes do ser humano, a partir de uma perspectiva de complexidade. Neste contexto, em busca de analisar as relações entre as crenças e o pensamento humano, os pressupostos apresentados até agora nos conduziram à opção pela Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento, que discorreremos a seguir. 4. A Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento A Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento (Moreno et al., 1999; Arantes, 2000) é uma das bases que fundamenta a pesquisa aqui apresentada e constitui-se, assim, na base teórica e metodológica para a mesma. Esta teoria foi inicialmente proposta por Moreno, Sastre, Leal e Bovet, e parte dos trabalhos de Jean Piaget, e também da teoria de modelos mentais de Johnson-Laird. Vejamos. As autoras adotam como um dos pontos de partida os estudos de Jean Piaget acerca dos aspectos estruturais do pensamento e o funcionamento cognitivo. Reconhecem a importância e abrangência de tais idéias – que inovam ao constituírem uma teoria acerca dos © Ciências & Cognição estádios do desenvolvimento cognitivo, colocando o sujeito como organizador da realidade – mas também apontam para suas limitações. Neste sentido, Moreno e colaboradores (1999) consideram que o desenvolvimento cognitivo, na perspectiva de Piaget, é tomado apenas a partir do ponto de vista estrutural, sem dar muita atenção ao fato de que o emprego de determinadas operações depende não apenas dos estádios, mas também dos conteúdos aos quais se aplicam. Assim, as autoras propõem que o funcionamento mental se dê não apenas em vista dos aspectos estruturais, internos ao sujeito, mas também, de maneira articulada, considerando os conteúdos presentes na realidade – ou seja, os elementos, enquanto “um produto da interpre-tação que o sujeito faz dos objetos e fatos perceptíveis” (Moreno et al., 1999: 77). Um segundo ponto em que se baseia a teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento é a idéia defendida por Philip JohnsonLaird de que o raciocínio humano opera por meio de modelos mentais. Johson-Laird considera que o raciocínio não segue unicamente a lógica formal, mas envolve a compreensão de significados e a manipulação de modelos mentais, estes vistos como uma representação interna que o sujeito realiza do mundo ao seu redor (Johson-Laird, 1993, apud Moreno et al., 1999). De acordo com este autor, por meio de modelos mentais, o ser humano representa a realidade que o cerca e é capaz de raciocinar, verificar hipóteses e alternativas. Assim, a compreensão envolve a elaboração de modelos do mundo, e o raciocínio consiste na manipulação de tais modelos. O papel da representação na teoria dos modelos mentais é de fundamental importância para explicar a elaboração dos modelos, bem como sua manipulação, que se dá através do pensamento. A partir da articulação entre as idéias da teoria dos modelos mentais e da epistemologia genética de Piaget – conforme destacamos – Moreno e colaboradores (1999) desenvolvem então a teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento, segundo a qual o ser humano, a fim de orientar-se e conhecer o mundo que o cerca, constrói modelos da realidade em sua interação com os objetos, pes- 140 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org/> soas e relações ao seu redor, e também consigo mesmo. Os Modelos Organizadores do Pensamento – que influenciam a forma de agir, pensar, ser e sentir do sujeito, assim como a própria construção do conhecimento – são construídos com base em elementos estruturais internos ao sujeito, mas também externos a ele, ou seja, os conteúdos da realidade. De acordo com as autoras, “Concebemos um modelo organizador como uma particular organização que o sujeito realiza dos dados que seleciona e elabora a partir de uma determinada situação, do significado que lhes atribui e das implicações que deles se originam. Tais dados procedem das percepções, das ações (tanto físicas como mentais) e do conhecimento em geral que o sujeito possui sobre uma certa situação, assim como das inferências que a partir de tudo isso realiza. O conjunto resultante é organizado por um sistema de relações que lhe confere uma coerência interna, a qual produz, no sujeito que o elaborou, a idéia de que mantém também uma coerência externa, ou seja, uma coerência com a situação do mundo real que representa.” (Moreno et al., 1999: 78) De acordo com o trecho acima, é possível verificar que, como se baseiam na representação e interpretação do sujeito, os modelos organizadores nem sempre correspondem exatamente à situação do mundo real. Desta forma, embora confiram ao sujeito uma “coerência interna”, a qual, por sua vez, “produz a idéia de uma coerência externa”, isso não significa que o modelo construído corresponda exatamente à realidade que representa. Segundo Moreno e colaboradores (1999), o sujeito constrói os modelos organizadores a partir da avaliação que faz diante de determinada situação do mundo real, processo em que estão envolvidas as seguintes atividades cognitivas: abstração de elementos, atribuição de significados e estabelecimento de implicações e/ou relações. Vejamos: © Ciências & Cognição A abstração de elementos ocorre uma vez que o sujeito seleciona alguns elementos da realidade observada para que constituam o modelo organizador. Assim sendo, nem todos os elementos da situação observada são necessariamente abstraídos e, ao mesmo tempo, o modelo organizador pode contemplar elementos que não se encontram na realidade e que são, assim, inferidos pelo próprio sujeito. Na elaboração do modelo organizador, os elementos que não são vistos como significativos ou pertinentes são desconsiderados e passam a não fazer parte do modelo elaborado. Aos elementos que são abstraídos, o sujeito atribui significados. Não há, portanto, no modelo organizador, elemento sem significado. Entretanto, segundo as autoras, contextos diferentes podem levar um mesmo sujeito a atribuir significados diferentes a um mesmo elemento, da mesma forma que, a este mesmo elemento, sujeitos diferentes podem atribuir significados diferentes. O estabelecimento de implicações e/ou relações diz respeito às conseqüências que o sujeito atribui na relação entre elementos e significados do modelo em questão. A construção do modelo organizador depende de como estes três processos, que ocorrem simultaneamente, são articulados internamente pelo sujeito: um determinado elemento é abstraído em função do significado que lhe é atribuído no contexto da construção de um determinado modelo, e destes dois aspectos dependem as implicações estabelecidas. Um aspecto importante a ser ressaltado é que a construção dos modelos organizadores permite a imaginação do sujeito, a inferência de novos elementos (Arantes, 2000), pois o modelo organizador pode ser constituído também de alguns elementos não necessariamente presentes na realidade. Tais elementos passam a integrar o modelo organizador construído, adquirindo tanta importância quanto os demais na constituição do modelo. A imaginação do sujeito pode se basear em aspectos da razão, de natureza lógicomatemática, mas também de outra natureza. E, desta forma, podemos dizer que a Teoria dos Modelos Organizadores avança no senti- 141 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição do de considerar que a organização do pensamento está relacionada não apenas a aspectos (e processos) cognitivos, mas também aos sentimentos e emoções, desejos, fantasias, representações sociais, crenças, que influenciam os próprios processos mentais de seleção de elementos, atribuição de significados e estabelecimento de implicações. É neste sentido que a Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento permitenos considerar que as crenças pessoais podem exercer tanta influência no pensamento humano quanto os aspectos cognitivos. É neste contexto, portanto, que se desenvolveu a pesquisa apresentada a seguir. lher?” e Questão B – “Para sua religião, qual o papel da relação sexual no relacionamento entre um homem e uma mulher?”. Para a análise dos dados, foram identificados os modelos organizadores aplicados pelos sujeitos, a partir das respostas dadas em cada uma das questões. De posse destes dados, foram analisadas as relações entre a distribuição dos modelos organizadores dentro de cada um dos grupos entrevistados, bem como as relações entre o posicionamento de um mesmo sujeito diante de ambas as questões. 5. Objetivos da pesquisa Na seqüência, temos os modelos organizadores encontrados e a distribuição dos mesmos dentro dos diferentes grupos entrevistados, considerando primeiramente a Questão A e, em seguida, a Questão B: O problema central da pesquisa foi investigar se os modelos organizadores aplicados diante de situações da vida cotidiana estão de alguma forma relacionados às crenças do sujeito, ou, dito de outra maneira, verificar em que medida as crenças influenciam a organização do pensamento. O tipo de crença considerado foi a crença religiosa, e o conteúdo das situações apresentadas aos sujeitos foi a sexualidade. 6. Metodologia Para atender aos objetivos da pesquisa, foi aplicado um questionário a um total de 100 sujeitos adultos, entre 20 e 40 anos, divididos em 4 grupos: 25 Católicos, 25 Adventistas, 25 Espíritas e 25 estudantes universitários sem que fosse considerada a religião. O questionário foi aplicado a cada grupo, em seu próprio espaço religioso, o que, no caso dos estudantes, foi feito na própria Universidade. Ao responder às questões, que versavam sobre temáticas de sexualidade, os sujeitos deveriam, primeiramente, dissertar sobre seu posicionamento pessoal diante da temática apresentada e, em um segundo momento, colocar a postura de sua religião. As duas questões analisadas foram: Questão A – “Na sua opinião, qual o papel da relação sexual no relacionamento entre um homem e uma mu- 7. Resultados e discussões • Análise da Questão A: “Na sua opinião, qual o papel da relação sexual no relacionamento entre um homem e uma mulher?” Dos dados da Questão A é relevante destacar, por um lado, a presença do Modelo 1, que agrega em si elementos e significados associados à religião (Deus, casamento, procriação). Este modelo se faz presente nos 3 grupos religiosos entrevistados, principalmente dentro do grupo Católico, e evidencia que de fato as crenças religiosas parecem influenciar a organização do pensamento. Por outro lado, é importante ressaltar que, mesmo sendo composto por uma maioria de sujeitos que declararam possuir alguma religião, nenhum dos entrevistados do grupo de estudantes aplicou o Modelo 1 ao responder à primeira questão. Este dado indica que o grau de influência das crenças parece variar de acordo com o contexto social, e que deve haver outras variáveis que influenciam igualmente o pensamento dos sujeitos ao organizarem seu pensamento diante do tema solicitado (experiências pessoais, emoções e sentimentos, crenças de outra natureza). 142 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Modelos Organizadores % Modelo 1 Relação sexual pautada em princípios religiosos tradicionais (criação de 37 Deus, casamento, procriação) Modelo 2 Relação sexual como elemento que define a continuidade ou não do relacio- 8 namento entre o casal Modelo 3 Relação sexual como fator de união entre o casal 24 Modelo 4 Relação sexual como complemento do relacionamento entre o casal 24 Modelo 5 Relação sexual valorada de diferentes maneiras, em função do tipo de rela- 7 cionamento entre o casal Tabela 1 - Modelos organizadores e freqüência (%) considerando o total de sujeitos na Questão A. Gráfico 1 - Distribuição dos modelos organizadores referentes à Questão A nos diferentes grupos. • Análise da Questão B: “Para sua religião, qual o papel da relação sexual no relacionamento entre um homem e uma mulher?” Analisando os dados da Questão B podemos notar uma grande quantidade de sujeitos aplicando o Modelo 1, pautado em princípios ligados tradicionalmente à religião, correspondendo a 61% da amostra como um todo e à maioria dos sujeitos dos grupos católico e adventista. O que chama a atenção, entretanto, é o grupo de estudantes, onde encontramos uma parcela de 6 sujeitos aplicando o Modelo 5, que considera a postura religiosa insuficiente e antiquada para explicar o papel da relação sexual. Ao notarmos que todos os estudantes que aplicaram este modelo afirmaram ser católicos, e que a maioria dos sujeitos do grupo católico aplicou o Modelo 1, veremos que, em nossa amostra, uma mesma religião deu origem a raciocínios diversos, orientados em direções opostas. Este dado nos faz considerar que as crenças, relacionadas a uma cultura, não são internalizadas de uma mesma maneira por todos os sujeitos, sendo que outros aspectos subjetivos (ex: sentimentos, valores, conhecimentos do sujeito) parecem atuar na forma como os indivíduos incorporam suas crenças. 143 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Modelos Organizadores Modelo 1 Relação sexual pautada em princípios religiosos tradicionais (criação de Deus, casamento, procriação) Modelo 2 Relação sexual exige responsabilidade, pois traz conseqüências Modelo 3 Relação sexual como fator de união entre o casal Modelo 4 Relação sexual como complemento do relacionamento entre o casal Modelo 5 A postura religiosa é insuficiente, antiquada, ortodoxa, para explicar o papel da relação sexual ----Não respondeu à Questão B % 61 12 7 7 6 7 Tabela 2 - Modelos organizadores e freqüência (%) considerando o total de sujeitos na Questão B. Gráfico 2 - Distribuição dos modelos organizadores referentes à Questão B nos diferentes grupos. Partindo agora para uma análise das respostas dadas por um mesmo sujeito às diferentes questões, temos os gráficos a seguir, que apresentam a freqüência de sujeitos que mantiveram ou alteraram seu raciocínio em suas respostas às questões A e B, primeiramente considerando o total da amostra e, em seguida, levando em conta os diferentes grupos entrevistados: Gráfico 3 - Distribuição dos sujeitos que aplicaram o mesmo modelo organizador e modelos diferentes nas questões A e B. 144 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Gráfico 4 - Distribuição, por grupo entrevistado, dos sujeitos que aplicaram o mesmo modelo organizador e modelos diferentes nas questões A e B Como mostram os dados, embora as crenças religiosas tenham exercido um certo grau de influência nas respostas, levando uma parcela dos sujeitos a manter seu raciocínio nas duas questões, a maioria da amostra aplicou raciocínios diferentes ao responderem sobre o papel da relação sexual, primeiramente segundo sua opinião pessoal e, em seguida, sob a postura de sua religião. Os dados da investigação sugerem que a cultura, internalizada pelos sujeitos, embora influencie a individualidade de cada membro da sociedade, não anula os demais aspectos subjetivos que se manifestam na dinâmica do funcionamento psíquico. Ao mesmo tempo, os resultados obtidos permitem considerar que tal funcionamento deve ser entendido a partir de uma visão de complexidade, a qual, ao considerar as diferentes variáveis que podem atuar no pensamento humano de forma não previsível, ajuda a explicar a tendência à mudança no raciocínio dos sujeitos, verificada em nossa amostra. Por outro lado, os dados demonstraram também que cada uma das três religiões consideradas influenciou de forma diferente a organização do pensamento, levando em conta as variações intrapessoais diante das questões analisadas. Este fato anuncia que o grau de influência exercida pelas crenças na organização do pensamento de um sujeito pode também estar, de alguma maneira, relacionado à própria natureza da crença. 7.1. Regularidades e não-regularidades Como vimos, os resultados gerais obtidos demonstraram que efetivamente os modelos organizadores aplicados pelos sujeitos, ao se posicionarem diante de tematicas de sexualidade, tiveram associados a seus elementos, significados e implicações, aspectos e conteúdos relativos às crenças religiosas, mesmo quando estas não estavam explicitamente presentes no contexto. Como exemplo do que acabamos de colocar, dentre os modelos organizadores encontrados a partir das respostas da amostra entrevistada, podemos citar o Modelo 1 da Questão A, que, por sua vez, correspondia ao Modelo 1 da Questão B. Nestes casos, o raciocínio empregado pelos sujeitos fundamentava-se em princípios religiosos tradicionais para explicar o papel da relação sexual no relacionamento de um casal, citando elementos como Deus, procriação e casamento, de maneira coerente com alguns dos pressupostos encontrados nas religiões com as quais trabalhamos. Na primeira questão, que não fazia referência explícita a princípios religiosos, tal raciocínio foi aplicado por 37% dos sujeitos, correspondendo a 18 católicos, 12 adventistas e 7 espíritas. Já na Questão B, que solicitava do sujeito a postura de sua religião, 61% de nossa amostra aplicou o Modelo 1, sendo 23 católicos, 22 adventistas, 9 espíritas e 7 estudantes. Diante da ocorrência destes dados, podemos afirmar que os seres humanos incorporam elementos vinculados às suas crenças 145 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org/> na forma de pensar e de posicionar-se frente às situações cotidianas, o que indica que, de uma maneira geral, os aspectos culturais, internalizados pelos indivíduos em sua relação com os grupos e com a sociedade, podem influenciar a própria organização de seu pensamento. Tal fato, portanto, confirma, em parte, a hipótese central, de que as crenças influenciam a organização do pensamento humano. Assim sendo, como já propôs Morin, é possível dizer que as crenças e a cultura – que, confirme vimos, relacionam-se ao “pensamento mítico”, da criação, do imaginário e das analogias – são aspectos de fato tão importantes para o ser humano quanto a esfera do “pensamento racional”, já consagrado e exaltado desde a Modernidade, com as idéias Iluministas e o pensamento cartesiano. Nesse sentido, consideramos que os resultados contribuem com uma perspectiva recente, dentro dos estudos da Psicologia, que busca compreender os processos do pensamento para além dos aspectos e processos cognitivos da mente humana. Entretanto, como um trabalho de Psicologia que adota o referencial da Teoria da Complexidade, a análise dos dados obtidos com nossa investigação contempla não apenas as regularidades presentes, mas atenta também para as não-regularidades, as incertezas e aleatoriedades que regem os fenômenos observados. Desta forma, o que chama a atenção na investigação é o fato de que, mais do que as regularidades, as permanências, foram encontradas mudanças, variações, tanto na forma com a qual os sujeitos organizaram seu pensamento quanto no grau de influência exercida pelas crenças religiosas nos modelos organizadores identificados. Sendo assim, em busca de compreender as relações entre as crenças e a organização do pensamento, foi encontrado um número maior de hipóteses e de novos questionamentos do que propriamente respostas e/ou considerações conclusivas. A seguir, discutiremos rapidamente cada uma das não-regularidades identificadas diante dos dados apresentados, as quais vêm, do nosso ponto de vista, confirmar a comple- © Ciências & Cognição xidade dos processos que envolvem o pensamento humano e as relações entre o sujeito e a cultura: • Uma mesma situação apresentada aos sujeitos da investigação deu origem a raciocínios diversos, de modo que foram encontrados, em cada uma das questões analisadas (Questão A e B), cinco modelos organizadores diferentes, dentre os quais nem todos haviam sido elaborados levando em conta aspectos relativos a crenças religiosas. Tal fato pode ser explicado pela própria Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento, e demonstra que a elaboração dos modelos organizadores passa pela interpretação do sujeito, o qual (re)organiza internamente a realidade objetiva a partir daquilo que, estando ou não presente no contexto, considera significativo. • Uma mesma “cultura religiosa” deu origem a raciocínios diversos. Mais especificamente, diferentes indivíduos que se declararam Católicos incorporaram, nos modelos organizadores aplicados, elementos relativos a esta religião, integrando, contudo, raciocínios orientados em direções opostas. É o que pudemos observar ao comparar os Modelos 1 e 5 da Questão B: enquanto um deles fundamentava-se em princípios religiosos tradicionais para explicar o papel da relação sexual, o outro considerava a postura religiosa como insuficiente para explicar tal papel. Nos dados apresentados, verificamos que 23 sujeitos do grupo católico (92%) aplicaram o Modelo 1 em suas respostas à Questão B. Por outro lado, o Modelo 5 foi aplicado por 6 sujeitos do grupo de estudantes, sendo que, deste total, 5 deles afirmaram ser Católicos. Assim, diferentes sujeitos de uma mesma religião, ao responderam à mesma questão, fundamentados em suas crenças religiosas, partiram para direções completamente diferentes. Estes dados deixam claro que a internalização dos elementos da cultura ocorre de forma não-linear, e em meio a outros processos subjetivos 146 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org/> (ex: valores, estruturas cognitivas, sentimentos, representações sociais) que podem levar o sujeito a aceitar ou contestar, de forma mais ou menos intensa, aquilo que lhe é sugerido pela cultura (Martins e Branco, 2001). Desta maneira, a organização do pensamento do sujeito não necessariamente é determinada por aquilo que é veiculado pela cultura da sociedade ou grupo do qual este participa. • • Diante de temáticas de sexualidade apresentadas de formas diferentes, a tendência dos sujeitos foi de alterar seu raciocínio, isto é, de uma maneira geral, um mesmo sujeito aplicou modelos organizadores diferentes ao responder às questões apresentadas. Resgatando os dados encontrados, temos que, ao compararmos as respostas dadas pelos sujeitos às questões A e B, 39% mantiveram o mesmo tipo de raciocínio – isto é, aplicaram modelos organizadores análogos nas duas respostas –, ao passo que a maioria, 54%, aplicou raciocínios diferentes. Este dado indica que a influência das crenças na organização do pensamento, no caso dos sujeitos que participaram de nossa investigação, não foi tão intensa a ponto de garantir uma coerência no pensamento dos mesmos. O que fica evidente, portanto, é que a influência das crenças religiosas no pensamento não foi determinante, e isso, por sua vez, conduz-nos para o fato de que os modelos organizadores elaborados pelos sujeitos diante de situações semelhantes podem variar de acordo com o contexto, influenciados por outros fatores como os sentimentos, os valores, as experiências anteriores do sujeito, apenas para citar algumas hipóteses. Foi possível verificar variações no grau de influência das crenças no pensamento dos sujeitos, de acordo com os diferentes contextos sociais e também com o conteúdo da própria crença. Assim foi que, no caso dos sujeitos que estavam em contato com seu grupo e espaço religioso, a influência das crenças no pensamento parece ter sido © Ciências & Cognição mais acentuada. Isso fica claro quando observamos, por exemplo, que, ao contrário do que encontramos nos grupos religiosos, nenhum dos sujeitos do grupo de estudantes (entrevistados no espaço da Universidade) fez referência às suas crenças religiosas ao responderem à Questão A; dentro deste grupo, entretanto, mais da metade dos sujeitos declarou vincular-se a alguma religião. Ao mesmo tempo, as diferentes crenças religiosas com as quais trabalhamos influenciaram de formas e em níveis diferentes o pensamento dos sujeitos entrevistados. Basta verificarmos, dentro de cada grupo religioso, a quantidade de sujeitos que, influenciados por suas crenças religiosas, aplicaram o mesmo raciocínio ao responderem às questões A e B: enquanto que, no grupo católico, 80% dos sujeitos mantiveram a coerência, nos grupos adventista e espírita, esta porcentagem corresponde a 48% e 24%, respectivamente. Assim, consideramos que a influência exercida pelas crenças na organização do pensamento humano pode ser mais ou menos acentuada, a depender de seu conteúdo e da maneira com a qual o sujeito relaciona-se ao grupo cultural no qual se insere. A partir dos pontos aqui discutidos, podemos afirmar que os resultados obtidos com a pesquisa que aqui se coloca, embora confirmem a hipótese inicial, também trazem indícios para considerar que as relações entre as crenças – e por extensão os aspectos culturais – e o pensamento humano são permeadas por uma série de outros fatores que atuam simultaneamente durante a organização do raciocínio, isto é, na elaboração dos modelos organizadores. Tais fatores podem ser de ordem inter e intrapsíquica, sendo que, neste último caso, podem estar relacionados, supomos, a diferentes dimensões constituintes do sujeito: afetiva (através da atuação de sentimentos e valores); biológica (com o próprio funcionamento cerebral); cognitiva (influenciada pelos esquemas de ação e estruturas cognitivas) e até mesmo outros aspectos da 147 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org/> própria dimensão sociocultural (influência da linguagem e representações sociais). Para finalizar, devemos ter em vista que este trabalho centrou-se apenas nas possíveis influências exercidas pelas crenças religiosas no pensamento humano, e que há outros aspectos também relacionados à cultura (contexto familiar, linguagem, crenças de outra natureza) que, julgamos, certamente exercem sua parcela de influência na organização do pensamento dos sujeitos. 8. Considerações finais O presente artigo buscou discutir as relações entre as crenças e o pensamento humano, a partir de uma perspectiva de complexidade. Partimos do princípio de que as crenças pessoais, ao fazerem parte da individualidade do sujeito, passam a influenciar o próprio funcionamento mental, a organização do pensamento, atuando juntamente aos processos cognitivos. Para as discussões, apresentamos os resultados de uma investigação embasada na Teoria dos Modelos Organizadores do Pensamento. Esta teoria considera que o sujeito constrói modelos da realidade em sua interação com os objetos, pessoas e relações presentes ao seu redor, e também consigo mesmo. Os modelos organizadores do pensamento são construídos a partir não apenas de processos cognitivos, mas também diante da influência de aspectos de outra natureza, como afetiva (sentimentos, emoções) e sociocultural (crenças). A pesquisa apresentada teve como objetivo investigar as relações entre as crenças religiosas e os modelos organizadores do pensamento aplicados por sujeitos diante de situações que envolviam questões relacionadas ao tema da sexualidade. Em uma perspectiva mais ampla, a pesquisa buscou verificar até que ponto os aspectos culturais (aqui representados pelas crenças), que são internalizados pelos sujeitos, passam a influenciar a organização de seu pensamento. Os dados da pesquisa, obtidos a partir da aplicação de um questionário a sujeitos de diferentes religiões, demonstraram que os © Ciências & Cognição modelos organizadores aplicados incorporaram elementos relativos às crenças religiosas, indicando que estas de fato influenciam a organização do pensamento. Por outro lado, foi verificado também que tal influência atuou em conjunto a outras variáveis concernentes ao funcionamento psíquico dos sujeitos em questão, evidenciado pelas variações nos modelos organizadores encontrados, tanto entre os diferentes grupos entrevistados quanto na análise das respostas de um mesmo sujeito. Diante de todo o exposto, gostaríamos de encerrar as discussões com algumas considerações suscitadas pelo estudo feito e pelos resultados obtidos. Não nos resta dúvida de que o funcionamento mental do ser humano deve ser compreendido a partir de uma perspectiva de complexidade. Pensamos, assim, que os resultados apresentados vêm por confirmar ainda mais a necessidade de considerarmos que os processos do pensamento humano, diante da infinidade de variáveis que nele atuam, só podem ser de fato compreendidos levando-se em conta que as não-regularidades existem tanto quanto as regularidades, que as possibilidades não são necessariamente previsíveis, que aquilo que influencia não determina. O intuito, portanto, não foi delinear um caminho único, com teorias acabadas e que se pretendem absolutas. Pensamos que novos estudos, que tenham como ponto de partida uma perspectiva ampla, encarando o ser humano em sua totalidade e complexidade, podem esclarecer ainda mais nossa compreensão da realidade humana e de suas relações com o mundo. Ao mesmo tempo, na intenção de estudar as influências das crenças na organização do pensamento, a pesquisa traz também contribuições para a discussão acerca das relações entre o sujeito e a cultura, ao modo com o qual os elementos culturais são internalizados pelos sujeitos e até que ponto estes mesmos elementos passam a ser incorporados à forma de pensar do ser humano. E, neste sentido, os resultados de nossa pesquisa apontam para o fato de que os aspectos culturais, criações humanas que têm sua origem na vida social dos indivíduos, e- 148 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 134-149 <http://www.cienciasecognicao.org/> xercem sua parcela de influência, orientando o modo de pensar dos sujeitos e sua atuação no mundo e que, no pensamento humano, tais aspectos adquirem tanta importância quanto outros, de ordem cognitiva ou afetiva, por exemplo. Por outro lado, essa mesma cultura não pode ser vista como determinante na constituição da individualidade do ser humano, uma vez que, como discutido, as crenças (em especial as religiosas) não foram suficientes para orientar por si só a organização do pensamento diante das questões cotidianas, em direção à homogeneidade e constância dos raciocínios aplicados pelos sujeitos, já que atuam em meio a outros fatores subjetivos. Desta forma, estamos inclinados a considerar que a cultura, ao ser internalizada – através de aspectos como as crenças (que aqui elegemos para nosso estudo) – passa a fazer parte da dinâmica do funcionamento psíquico e mental do ser humano, mas não anula os demais fatores que influenciam este processo, tanto vinculados à própria dimensão sociocultural, como a demais dimensões do ser humano. Isso parece ser coerente com as perspectivas que consideram a relação entre a cultura e o indivíduo, bem como o processo de internalização desta pelo sujeito, de uma maneira não unilateral, apresentadas ao longo do presente artigo através das idéias de Morin (2002b), Vygotsky (1998) e Martins e Branco (2001). Assim, ao ser incorporada à individualidade do sujeito, os aspectos culturais passam, neste processo, pela subjetividade de cada ser humano, de forma que a internalização não representa simplesmente a reprodução dos elementos da cultura no indivíduo. Diante disso, ressaltamos que, em nossa opinião, qualquer estudo que tenha como objetivo compreender o funcionamento mental e psíquico do ser humano e sua atuação no mundo deve fazê-lo sempre levando em conta as influências exercidas pelo contexto cultural nesta dinâmica. Isto é, o ser humano não pode ser visto desvinculado da cultura e da sociedade nas quais se insere. Ademais, acreditamos que estudos futuros sobre as relações entre o funcionamento men- © Ciências & Cognição tal e a influência da cultura podem contribuir para uma compreensão ainda maior destes processos. 9. Referências bibliográficas Arantes, V.A. (2000). Estados de ânimo e os modelos organizadores do pensamento: um estudo exploratório sobre a resolução de conflitos morais. Tese de Doutorado. Barcelona: Facultat de Psicologia, Universitat de Barcelona. Araújo, U.F. (1999). Conto de Escola: a vergonha como um regulador moral. São Paulo: Moderna; Campinas: Editora UNICAMP. Araújo, U.F. (2003). A dimensão afetiva na psique humana e a educação em valores. Em: Arantes, V. (Ed.) Afetividade na escola: alternativas teóricas e práticas (pp. 153-169). São Paulo: Summus. Martins, L.C. e Branco, A.U. (2001). Desenvolvimento moral: considerações teóricas a partir de uma abordagem sociocultural construtivista. Psicologia Teoria Pesq., 17 (2), 169-176. Moreno, M.; Sastre, G.; Leal, A. e Bovet, M. (1999). Conhecimento e Mudança: os modelos organizadores na construção do conhecimento. São Paulo: Moderna; Campinas: Editora UNICAMP. Morin, E. (1991). O paradigma de complexidade (Matos, D., Trad.). Em: Introdução ao Pensamento Complexo (pp. 83-113). Lisboa: Instituto Piaget (Original publicado em 1990). Morin, E. (1994). Epistemologia da Complexidade (Rodrigues, J. H., Trad.). Em: Shniman, D. Novos paradigmas, cultura e subjetividade (pp. 274-289). Porto Alegre: Artes Médicas. Morin, E. (2002a). O Método 1: a natureza da natureza (Heineberg, I., Trad.). Porto Alegre: Sulina (Original publicado em 1977). Morin, E. (2002b). O Método 5: a humanidade da humanidade (Silva, J. M., Trad.). Porto Alegre: Sulina (Original publicado em 2001). Vygotsky, L.S. (1998). A formação social da mente (Cipolla Neto, J.; Menna Barreto, L.S.; Afeche, S.C., Trads.). São Paulo: Martins Fontes (Original publicado em 1978). 149 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 150-155 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 01/10/2007 | Revisado em 27/11/2007 | Aceito em 28/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007 Artigo Científico Ciência da computação e ciência cognitiva: um paralelo de semelhanças The computer science and the cognitive science: a similarity parallel Caroline Andréia Eifler Saraiva e Irani I. de Lima Argimon Programa de Pós-graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil Resumo O presente artigo tem por objetivo apresentar a inter-relação existente entre a área da Ciência Cognitiva e a área da Ciência da Computação, fazendo um paralelo entre suas concepções. Foram abordados aspectos históricos de cada ciência, suas definições, aplicações e críticas. Constatou-se a permanente investigação sobre os processos da mente em ambas áreas de conhecimento, criando uma intersecção de visões onde a mente segue o funcionamento do computador e o computador busca imitar as funções da mente. Nesse contexto, a Ciência Cognitiva, por ser multidisciplinar, busca encontrar uma teoria unificada de cognição, integrando as diversas áreas do conhecimento em torno do estudo da mente. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 150-155. Palavras-chave: ciência cognitiva; ciência da computação; inteligência artificial; redes neurais; conexionismo. Abstract The aim of the present paper was to present the relations between the Cognitive Science Area and the Computer Science Area, making a parallel between their conceptions. Historical aspects of each science were approached, as well as their implications, censures and definitions. It was identified evidences of a great search on the processes of the mind in both knowledge areas, creating a correlation of views, in which the mind follows the functioning of a computer and the computer recreates mind’s functions. In this context, the Cognitive Science, intends to find a unificated Cognition theory, putting all the knowledge areas together around mind's study. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 150155. Key Words: cognitive science; computer science; artificial inteligence; neural nets; conexionism. 1. Introdução A história do processamento de infor- mação teve origem em tempos muito remotos, quando os primeiros habitantes viviam em cavernas. Ao se comunicar através de pinturas - C.A.E. Saraiva é Bacharel em Informática (PUC-RS), com MBA em Tecnologias da Informação e da Comunicação em Educação (PUC-RS) e Mestranda do Programa de Pós-Graduação de Psicologia (PUC-RS). Atua no ensino de informática para idosos. E-mail para correspondência: [email protected]. I.I.L. Argimon é Doutora em Psicologia. Atualmente é Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Avaliação e Intervenção no Ciclo Vital” do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Psicologia (PUC-RS). E-mail para correspondência: [email protected]. 150 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 150-155 <http://www.cienciasecognicao.org/> rupestres, o homem primitivo já trocava idéias, demonstrando sentimentos e preocupações cotidianas. Na antiga Mesopotâmia, com a invenção da escrita, iniciou-se o processo de tratamento da informação que incluía não apenas escrever, mas armazenar, combinar e transmitir o que estava sendo produzido. Segundo Levy (1993), o advento da imprensa, por Gutemberg, em 1445, foi um grande marco para os meios de comunicação, iniciando o período denominado de “oralidade secundária”, quando a oralidade cedeu espaço à objetividade da palavra escrita. Desde então, houve um processo evolutivo intenso em toda a forma de comunicação, com o aparecimento das transmissões de voz, em seguida de imagens e culminando com a transmissão de dados. Para esta, o computador apresenta-se como condutor mestre de um processo de facilitação de tratamento de informação, pois armazena, classifica, compara, combina e compartilha dados, de forma eficiente e com grande velocidade. Em razão da capacidade dessas máquinas para lidar com materiais simbólicos, muitos pesquisadores se convenceram de que uma ciência da cognição poderia ser moldada à imagem do computador (Gardner, 2003). Na primeira metade do século XX, tem início, então, a ciência cognitiva que, por sua conceituação, estuda o funcionamento mental baseado no modelo computacional, sendo caracterizada como uma área de estudos interdisciplinar que se inter-relaciona com a Psicologia, a Lingüística, a Ciência da Computação, as Ciências do Cérebro e a Filosofia, entre outras (Lima, 2003). 2. Uma breve história da Ciência Cognitiva Os primeiros movimentos rumo a uma nova ciência, denominada ciência cognitiva, aconteceram em 1948, no Congresso sobre Mecanismos Cerebrais do Comportamento, também chamado de Simpósio de Hixon, no Califórnia Institute of Technology, onde a questão clássica de discussão foi a forma pela qual o sistema nervoso central controla o comportamento. Além dessa abordagem, como cita Gardner (2003), esse Congresso foi © Ciências & Cognição especialmente importante por dois fatores: a ligação que fez entre cérebro e o computador e o desafio implacável que lançou ao Behaviorismo. O Behaviorismo de orientação positivista, cuja idéia principal baseia-se na análise de condutas observáveis, ou seja, evitando conceitos “mentais”, teve lugar durante as décadas de 20 a 40. Por não tentar explicar os processos cognitivos, Eysenck e Keane (1994) destacam sua falha no sentido de ser superficial, o que deu lugar ao surgimento de novas idéias. No Simpósio de Hixon, alguns inputs teóricos foram lançados por John Von Neumman - matemático, por Warren McCulloch – neurologista e Karl Lashley – psicólogo, estabelecendo comparações sistemáticas entre o funcionamento do cérebro humano e máquinas do tipo computador eletrônico. Na metade do século XX, nos Estados Unidos, surgiram os primeiros computadores eletrônicos, criados para operarem com a grande quantidade de números da Guerra Mundial. Conforme cita Hodges (2007), Alan Turing, em 1936, concebeu a idéia de uma máquina simples que utilizava a lógica para executar cálculos. Mais adiante, Turing sugeriu a avaliação de uma máquina que simulasse o pensamento humano, implementada por Neumann com o armazenamento de um programa em memória. Com isso, as operações podiam ser preparadas e executadas internamente, sem que fosse necessário reprogramar as tarefas a cada vez que era ligado o computador. A partir destes estudos, Claude Elwood Shannon, matemático norte-americano, no final dos anos 30, formalizou o conceito da teoria da informação. Shannon considerou a utilização de duas alternativas possíveis de resposta através da ocorrência de bits (binary digit em inglês), baseado nos estados dos relés eletromecânicos, ligado e desligado. Pela teoria da informação de Shannon, a informação poderia ser reduzida, assim como os termos verdadeiro e falso do cálculo proposicional, a um dígito binário, que é a quantidade mínima de informação necessária para escolha de uma mensagem afirmativa ou negativa, 1 ou 0. 151 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 150-155 <http://www.cienciasecognicao.org/> Foram os insights de Wiener que levaram Shannon à proposição de dissociação da informação e seu meio transmissor. “Informação é informação, não matéria ou energia. Nenhum materialismo que não admita isto pode sobreviver nos dias atuais” (Wiener, 1961). Posteriormente a esses fatos, Warren McCulloch e Walter Pitts, no início dos anos 40, defenderam a tese de que uma rede neural formada pelas conexões dos neurônios poderia ser modelada em termos da lógica, ou seja, um neurônio sendo ativado impulsionaria outro neurônio e isso implicaria numa proposição. Uma analogia entre neurônios e lógica poderia ser pensada em termos elétricos – como sinais que passam ou deixam de passar através de circuitos. Em função disso, a ciência da computação recorreu às pesquisas sobre neurônios e suas conexões para projetar máquinas ou programas cada vez mais parecidos com o cérebro humano. Mas a consolidação do reconhecimento da ciência cognitiva, por um consenso quase unânime, deu-se a partir do Simpósio sobre Teoria da Informação realizado no Massachusetts Institute of Technology em setembro de 1956. Gardner (2003) cita as publicações que tiveram fundamental importância para tal fato: • • • • “The Magical Number Seven”, de George Miller: um artigo que discutia a capacidade da memória humana de curto prazo limitar-se a aproximadamente sete itens; “Logic theory machine”, de Newell e Simon: a primeira prova concreta de um teorema executada em uma máquina computadora; “A study of thinking” de Bruner, Goodnow e Austin: obra capital da psicologia do pensamento que abordou também conceitos artificiais; “Syntatic Structure” de Noam Chomsky: versava sobre suas idéias a respeito da nova lingüística, baseada em regras formais e sintáticas, próximas às formalizações matemáticas. © Ciências & Cognição Nas décadas seguintes, houve vários movimentos no sentido de estudar a ciência cognitiva, com muitas publicações de livros sobre o assunto. Em Harvard, um grupo de doze estudiosos, com o objetivo de descobrir as habilidades representacionais e computacionais da mente e sua representação funcional e estrutural do cérebro, elaborou o hexágono cognitivo – um hexágono que mostra as inter-relações entre os seis campos constituintes da ciência cognitiva, que são as áreas da Filosofia, Lingüística, Antropologia, Neurociência, Inteligência Artificial e Psicologia. A reação da comunidade científica foi extremamente negativa a essa proposição, causando a não publicação desse documento. 3. Uma breve história da Ciência da Computação A Ciência da Computação ensaiou seus primeiros passos através da máquina de Turing, criada nos meados dos anos 30, que serviu de referência para John Von Neumann, dez anos mais tarde, na construção dos primeiros computadores. Neumann revolucionou a concepção do funcionamento de um computador, quando afirmou que era possível colocar no mesmo plano, instruções e dados, não sendo necessário o uso de duas memórias. Na área da computação o termo “arquitetura de von Neumann” é muito conhecido, o que define que a arquitetura permite autonomia entre hardware e software (Teixeira, 1998). Ao mesmo tempo, Norbert Wiener apresentava o termo “cibernética”, definindo em modelos matemáticos toda a atividade psicológica humana. Enfatizou a necessidade das máquinas seguirem o funcionamento do organismo vivo no controle de suas próprias atividades. Passados os anos cibernéticos, a possibilidade de elaborar programas que simulassem o comportamento inteligente, tomou forma através da expressão “inteligência artificial”, cunhada por John McCarthy no campus do Dartmouth College, em Hanover. Segundo Eysenk e Keane (1994), o homem era visto como um processador de informações, criando uma proximidade na relação entre a 152 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 150-155 <http://www.cienciasecognicao.org/> mente e o computador, através da inteligência artificial, que propõe um modelo baseado em sistemas neurais, tentando imitar o homem em sua complexidade, ensinando o computador a pensar. A Inteligência Artificial proporcionou o passo fundamental para se tentar relacionar mentes e computadores e estabelecer o “modelo computacional da mente” (Teixeira, 1998: 13). Não se sabe ainda se seu propósito foi totalmente realizado, mas, como afirma Teixeira, nos obrigou a refletir sobre o significado do que é ser inteligente, o que é ter vida mental, consciência e muitos outros conceitos que freqüentemente são empregados por filósofos e psicólogos. 4. Inteligência artificial e os sistemas especialistas Com o advento da Inteligência Artificial, preconizado por nomes como John McCarthy e Marvin Minsky, futuros diretores do Laboratório de Inteligência Artificial do MIT e Herbert Simon e Allen Newell, pesquisadores que criaram em Pittsburgh outro Laboratório de Inteligência Artificial, surgiram as primeiras máquinas de jogar xadrez e de demonstrar teoremas. Na visão de Newell e Simon, o computador era um sistema simbólico físico como o cérebro humano e exibia muitas propriedades iguais às do ser humano, sendo ambos sistemas que processavam informação no decorrer do tempo, procedendo em uma ordem mais ou menos lógica. Mas essa visão gerou polêmica e críticas. Alguns estudiosos argumentavam que toda informação do programa do computador havia sido colocada por um humano; logo, o solucionador de problemas estava apenas fazendo o que fora programado para fazer. Uma outra linha de crítica versava sobre a capacidade dos seres humanos de criar atalhos para solução de problemas, enquanto que os computadores apenas repetiriam processos prédefinidos. Conforme Gudwin (2005) relata, os filósofos tais como John Searle, Daniel Dennet, Patrícia Churchland, entre outros, ocupavamse com questões como: pode haver máquinas © Ciências & Cognição dotadas de inteligência comparável à inteligência humana? Paralelamente a esse embate, os cientistas e os engenheiros de computação, passaram a dotar as máquinas de “mentes artificiais”, seguindo os modelos definidos nas ciências cognitivas. Segundo Pozzebon e colaboradores (2004), surgiram diferentes teorias na Inteligência Artificial, em razão da indefinição do principal conceito que é o de inteligência humana. Dentre elas, a de Vignaux (1995) questionava se era necessário fornecer ao computador uma avalanche de dados, ou se era necessário basear o estudo da cognição no nível inferior da percepção, conciliando essas duas vertentes em uma terceira teoria híbrida, segundo a qual a máquina seria capaz de raciocinar utilizando conceitos complexos e de perceber o seu meio envolvente. Por volta dos anos 40 havia dois paradigmas vigentes relacionados à Inteligência Artificial, o simbólico e o conexionista. A Inteligência Artificial Simbólica privilegiou estudar a mente humana, utilizando-se de simulações e representações mentais através de programas autônomos em relação ao hardware. Já a Inteligência Artificial Conexionista acreditava que, construindo-se um sistema que simule a estrutura do cérebro, este sistema apresentará inteligência, ou seja, será capaz de aprender, assimilar, errar e aprender com seus erros. Na primeira vertente, os sistemas especialistas foram o grande sucesso nas décadas de 70 e 80. Os sistemas especialistas são sistemas dotados de inteligência e conhecimento, que trabalham com bancos de memórias, sendo capazes de estender as facilidades de tomada de decisão para muitas pessoas. Ou seja, são sistemas providos de mecanismos de aprendizagem, capazes de analisar e gerar novas regras na base de dados, ampliando a capacidade de resolver problemas a cada vez que são utilizados (Mendes, 1997). Os primeiros Sistemas Especialistas que obtiveram sucesso em seu objetivo foram o sistema DENDRAL e MYCIN. O sistema DENDRAL é capaz de inferir a estrutura molecular de compostos desconhecidos a partir de dados espectrais de massa e de resposta 153 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 150-155 <http://www.cienciasecognicao.org/> magnética nuclear. O sistema MYCIN auxilia médicos na escolha de uma terapia de antibióticos para pacientes com bacteremia, meningite e cistite infecciosa, em ambiente hospitalar (Harmon e King, 1988). Atualmente os Sistemas Especialistas estão sendo revistos, uma vez que se apresentaram limitados em seu potencial de “aprender” novos conceitos. Estudos apontam para um novo conceito dentro da inteligência artificial que é a utilização de redes neurais. Para Teixeira (1998), computadores e cérebros são sistemas cuja função principal é processar informação e, assim, podem-se utilizar redes artificialmente construídas para simular esse processamento. As redes neurais, representantes do segundo paradigma anteriormente citado, consistem em um sistema com circuitos que simulam o cérebro humano, inclusive seu comportamento, sendo capaz de aprender regras. Tais redes constituem um intrincado conjunto de conexões entre as neuron-like units que estão dispostas em camadas hierarquicamente organizadas. De acordo com Fischler (1987), Rabuske (1995) e Barreto (1997), a abordagem conexionista trouxe uma nova visão na tentativa de construir um modelo da mente, baseando-se em redes neurais. Apesar das limitações computacionais da época, destacaram-se algumas conquistas relevantes, como o surgimento da cibernética, a modelagem de redes de neurônios como um novo paradigma para a arquitetura computacional e o desenvolvimento de alguns programas computacionais inteligentes que imitavam o comportamento humano. 5. Conclusão A semelhança de conceitos existentes entre a Ciência Cognitiva e a Ciência da Computação surge desde a primeira geração de cientistas, que acreditaram em uma ciência da cognição moldada à imagem do computador. Conforme Gardner (2003) afirma, poderia haver ciência cognitiva sem o computador, mas ela não teria surgido quando surgiu, nem tomado a forma que tomou, sem o aparecimento do computador. © Ciências & Cognição Os fatos se entrelaçaram em toda a história, criando uma intersecção de visões onde a mente segue o funcionamento do computador e o computador busca o funcionamento da mente. Mas a Ciência Cognitiva é uma área em ebulição que ainda tenta firmar seus próprios caminhos – uma área onde o consenso ainda está muito distante (Teixeira, 1998). Para superar esse problema é necessária uma integração entre as várias abordagens no que tange ao estudo da mente e do cérebro. A Ciência da Computação, por sua vez, tem buscado simular o pensamento humano em sua essência, uma tarefa nem um pouco fácil, que vem se aperfeiçoando ao longo dos anos e atualmente trabalha com o conceito de redes neurais. Os sistemas especialistas que tiveram seu auge nos anos 70 e 80 ressurgem com esta abordagem, combinando a arquitetura convencional com uma arquitetura conexionista. Não há dúvida de que o computador tem sido uma ferramenta útil àqueles que querem testar virtualmente suas teorias sobre o funcionamento da mente. Nesse sentido, os cientistas vêm usando cada vez mais o computador como instrumentos de análise de dados e como laboratório para simulação dos processos cognitivos. Mas, como aborda Gardner (2003), ainda existem alguns cientistas que o consideram um mero brinquedo, atrapalhando ao invés de acelerar os esforços para entender o pensamento humano. Nos campos da lingüística e da psicologia ainda existem reservas com relação à abordagem computacional. Nesse contexto, a Ciência Cognitiva, por apresentar-se um elemento multidisciplinar, pode buscar a integração do conhecimento sobre o estudo da mente, encontrando uma teoria unificada da cognição, juntamente com estudiosos de várias áreas do conhecimento. Para Teixeira (1998), o grande desafio da Ciência Cognitiva continua sendo efetuar progressos conceituais e empíricos que permitam saber do que se está falando quando a referência é a mente ou a consciência. 6. Referências bibliográficas 154 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 150-155 <http://www.cienciasecognicao.org/> Barreto, J.M. (1997). Inteligência artificial no limiar do século XXI. Florianópolis: PPP Edições. Eysench, M.W. e Keane, M.T. (1994). Psicologia Cognitiva: um manual introdutório. Porto Alegre: Artes Médicas. Fischler, M.A. e Fischler, O. (1987). Intelligence – The eye, the brain, and the computer. Addison-Wesley Massachusets: Publishing Company. Gardner, H. (2003). A nova ciência da mente. 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A conclusão sugere que estilo de vida possa ser utilizado com um indicador de saúde, recebendo assim cuidadosa atenção quando se objetiva promover ou prevenir a saúde na senescência. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 156-164. Palavras-chave: velhice; estilo de vida; qualidade de vida; saúde coletiva; gerontologia. Abstract A gerontological literature review aimed to explore the healthy ageing emphasizing the contributive factors for the maintenance of a life quality. Among the factors researched, life style is considered as an important promoter of social-emotional stimuli that improve the cognitive functioning The conclusion suggests that life style may be used as a health indicator and it should earn careful attention when the objective is to promote or prevent health in senescence. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 156-164. Key Words: ageing; life style; life quality; collective health; gerontology. Introdução "Quantos velhos obstinados morrem intestados! Para eles, trata-se menos de conservar até o fim seu tesouro ou seu império já meio desligados dos seus dedos entorpecidos, do que de não se instalar demasiado cedo no estado póstumo de um homem que já não tem decisões a tomar, surpresas a causar, ameaças ou promessas a fazer aos vivos." Marguerite Yourcenar (1980: 96-97) – V.L.M. Figueiredo é Psicóloga Clínica, Especialista em Psicologia Hospitalar (CPF) e Gerontologia (UFF). Atua como voluntária pelo Programa Interdisciplinar de Geriatria e Gerontologia (HUAP/UFF) e como Coordenadora do Plantão Psicológico e de uma Oficina de Estimulação Cognitivo-Expressiva em Grupo, voltados para idosos de comunidade. E-mail para correspondência: [email protected]. 156 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 156-164 <http://www.cienciasecognicao.org/> Nas sociedades modernas industrializadas, um fenômeno mundial recorrente é a saída do indivíduo do cenário social via a aposentadoria e, comumente, coincidente com a entrada na velhice. Apesar de a realidade demográfica apontar para um crescimento progressivo e expressivo da população idosa, que já vêm alcançando com facilidade faixas etárias longevas, o reengajamento funcional ou mesmo ocupacional (que significaria o acesso aos núcleos socioculturais) não é estimulado ou mesmo valorizado por conta de imagens ainda preconceituosas e/ou estereotipadas do indivíduo envelhecido. Assim, inexpressivos e insuficientes estímulos socioculturais aliam-se à sensação de inabilidade pessoal para conviver em um mundo estranho aos seus hábitos e padrões adquiridos em gerações passadas, seja por uma tendência pessoal à desvalorização de suas capacidades e habilidades, ou bem devido a uma dificuldade para abrir-se ao novo e permitir novas aprendizagens. O indivíduo idoso pode, paulatinamente, desobrigar-se de resgatar o seu sentido de pertencimento social, deixando de ser alguém 'desejante'. Além do desestímulo social, e por uma série de fatores ligados às histórias pessoais e às experiências de vida, muitos idosos permitem que o seu prazer de viver envelheça, impondo-se um isolamento social ou permitindo que outros o façam. Outros há que vivem bem, porém com uma vida bastante rotinizada e pouco estimulante em termos cognitivos. E ainda há outros idosos que, por desajustamentos psicológicos diversos, vivem sob uma qualidade de vida inferior ao esperado. Em comum para esses estilos vivenciais humanos descritos, pode-se então destacar: uso deficitário das funções cognitivas, retração da expressividade emocional, e redução das trocas relacionais e com o meio. Este empobrecimento da qualidade de vida na velhice não encontra respaldo científico: principalmente no primeiro terço da velhice, a grande maioria dos idosos é saudável, tanto do ponto de vista orgânico como cognitivo, ou tem as suas cronicidades ainda sob contro- © Ciências & Cognição le, garantindo assim a possibilidade de manutenção da autonomia e da independência. Envelhecimento populacional e o conceito de saúde O interesse pelo estudo dos fenômenos do envelhecimento é gerado pelas projeções de crescimento da população idosa nos Estados Unidos e em vários países da Europa, na virada do século XX e em plena era industrial. Tanto nos países desenvolvidos como naqueles em desenvolvimento, guardadas as devidas proporções diferenciadoras, três índices epidemiológicos vêm mantendo-se em declínio: a mortalidade infantil, a mortalidade materna, e a mortalidade por doenças crônicas. O resultado desta combinação vem significando um crescente número absoluto de idosos que, paulatinamente, irão somando ao contingente populacional já existente. Há um consenso no meio científico de a expectativa de vida ser um dos indicadores mais importantes de saúde. No entanto, somente por volta da década de trinta é que a Geriatria surge nos meios científicos como uma disciplina médica, dedicando-se ao estudo das patologias compreendidas como senis e dos seus aspectos curativos (Debert,1999). Da mesma forma acontece com a Gerontologia, quando a partir da década de cinqüenta os seus estudos são sistematizados para a área do envelhecimento normal, da prevenção e da qualidade de vida na idade tardia, como apropriadamente justifica Néri (1995: 27), "{...} de explicar os determinantes e as características das mudanças da velhice, que se tornam cada vez mais visíveis e, quando patológicas, cada vez mais onerosas para a sociedade”. As interfaces da Gerontologia com diversas disciplinas, alcançando campos até mesmo transdisciplinares, abrem dimensões de estudos e pesquisas enriquecedores. A velhice, hoje, é uma realidade que tem longevidade. O crescimento da população de idosos, em números absolutos e relativos, já é um fenômeno mundial. Em 1950 eram cerca de 204 milhões de idosos no mundo e, 157 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 156-164 <http://www.cienciasecognicao.org/> já em 1998, quase cinco décadas depois, este contingente alcançava 579 milhões de pessoas - um crescimento de quase oito milhões de idosos por ano. Segundo Paschoal (apud Papaleo Netto, 1996), a expectativa média de vida da população em geral (limite biológico) encontra-se atualmente projetada em torno de oitenta e cinco anos; para o Brasil de 2005 este índice já era de setenta e dois anos (Néri, 1995:36), o que contrasta enormemente com aquela expectativa de vida do século passado de até uns sessenta e oito anos de idade. Envelhecer com saúde vem sendo, portanto, o atual desafio para este século XXI, como bem expressa a Organização Mundial de Saúde (OMS)1: "It is time for a new paradigm, one that views older people as active participants in an age-integrated society and as active contributors as well as beneficiaries of development.” (WHO, 2002:43)2 A ciência já acumula pesquisas e estudos que oferecem algumas respostas sobre o que é ser idoso, o que é a velhice, e o que produz o envelhecimento humano. As diferenças individuais, entretanto, por estarem delimitadas por eventos de origem psicológica, sócio-histórica e genético-biológica, trazem dificuldade para conceituar de um modo homogêneo a tamanha heterogeneidade. O conceito de saúde, redefinido pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1947 como um estado de completo bem-estar físico, psíquico e social, é conceituado em 1994 pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como a busca de uma qualidade de vida: "It is an individual perception of his or her position in life in the context of the culture and value system where they live, and in relation to their goals, expectations, standards and concerns. It is a broad raging concept, incorporating in a complex way a person's physical health, psychological state, level of independence, social relationships, personal beliefs and relationship to salient © Ciências & Cognição features in the environment." (WHO, 2002:13)3 Este ampliado conceito de saúde, designado como 'Envelhecimento Ativo' (Active Ageing), define o processo de otimizar oportunidades para a saúde, sendo o bem-estar biopsicossocial uma de suas vertentes principais, e para uma participação ativa e em segurança de modo a aumentar a qualidade de vida das pessoas que envelhecem. Importante destacar que o planejamento estratégico desenvolvido no documento da OMS prioriza os direitos e já não tanto as necessidades do indivíduo idoso. Em outras palavras, o objetivo é a não paternalização do indivíduo idoso, devendo ser estimulado a uma participação conjunta tanto no plano de políticas públicas quanto na vida social e comunitária. Os seus direitos passam a ser destaque, principalmente nos aspectos da igualdade de oportunidade e do tratamento de saúde à medida que envelhece. No Brasil, a Política Nacional do Idoso, implementada em janeiro de 1994, mostra preocupação na formulação de uma política voltada para a velhice e também para os que ainda irão envelhecer; através do seu 'Plano de Ação Governamental' (MPAS, 1996), a questão da prevenção é um dos destaques, justificado por tratar-se de ações com menores custos e que produzem resultados sociais melhores. Freitas e colaboradores (2001), a partir de uma consistente revisão da literatura científica sobre pesquisas em Gerontologia e Geriatria, produzidas nos últimos vinte anos, apontam um equilíbrio nos estudos sobre a velhice e o envelhecimento: 53,8% em Geriatria e 45,8% em Gerontologia. “Tal fato reforça o sentido de que, na velhice, o declínio das habilidades físicas e mentais não resulta somente das conseqüências do avanço da idade, mas também dos fatores socioculturais que contextualizam o idoso”. Outra análise feita pelos autores diz respeito à ênfase das pesquisas na promoção de saúde através da educação para o autocuidado. Senescência e a capacidade funcional 158 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 156-164 <http://www.cienciasecognicao.org/> Senescência é a condição humana de quem está envelhecendo. Há um consenso na literatura científica para designar, com este termo, o envelhecimento humano normal, sendo partes deste processo as alterações funcionais, orgânicas e morfológicas. Já para o envelhecimento patológico, senilidade é o termo mais utilizado, concorrendo às doenças crônicas e/ou os quadros neurodegenerativos que incapacitam ou restringem sobremaneira a autonomia do indivíduo idoso. Um estudo feito em janeiro de 1991, no Canadá (apud Papaleo Netto, 1996: 314), com uma população de idosos com mais de 75 anos, conclui que "quanto mais velho maior a incidência de problemas relacionados à saúde e ao desempenho das atividades da vida diária quando comparado com grupos etários de 60-64 anos e 65-74 anos". Esta pesquisa confirma resultados semelhantes de estudos já realizados sobre a prevalência da demência em idosos velhos; no Brasil, entre outras pesquisas, pode-se citar um estudo epidemiológico de 1998, realizada no interior de São Paulo e conhecido como ‘Estudo de Catanduva’ (Herrera Jr et al., 1998). Segundo a Organização Mundial de Saúde (WHO, 2002), as doenças crônicas são causas significativas e custosas de incapacidade e de reduzida qualidade de vida; isto tanto para os países desenvolvidos como para os países em desenvolvimento. Porém, "incapacidades associadas com o envelhecimento e o início da doença crônica podem ser prevenidos ou retardados" (WHO, 2002: 35). Enfatiza o órgão governamental que o alerta para o envelhecimento patológico tem a ver com o fato de que o declínio na capacidade funcional pode ser prematuramente estimulado ou acelerado, bem como pode ser reversível em qualquer idade através de medidas individuais e das políticas públicas. Dentre os fatores precipitantes de incapacidade funcional destaca-se a área cognitiva. Sua importância vem merecendo esforços por parte dos pesquisadores, em nível mundial, para estudar o perfil cognitivo do envelhecimento. Dada a heterogeneidade do envelhecer, os estudos esbarram em dificuldades para classificar déficits cognitivos, © Ciências & Cognição principalmente aqueles relativos à memória. Têm sido propostos diversos termos, tais como: alteração de memória associada à idade; transtorno cognitivo leve; déficit cognitivo leve; e etc., que alguns estudiosos do assunto acreditam poderem ser condições intermediárias entre o normal e o patológico. Por outro lado, quando se intenta classificar as alterações cognitivas leves (ACL) como distúrbios ou síndromes associados ao envelhecimento (Korten et al., 1997; Petersen et al., 1999, 2001; Elias et al., 2000), por exemplo, os resultados das pesquisas não apresentam expressão significativa de modo a se poder inferir que aquelas alterações venham a ser um fator de risco para o desenvolvimento posterior de um quadro de demência. Isto porque as ACL não costumam comprometer as atividades sócio-ocupacionais e/ou as atividades diárias, não mostram significância clínica, não se enquadram nos critérios diagnósticos para síndromes demenciais ou transtornos psiquiátricos graves, e mais, somente a memória primária (curto prazo) parece ser a função cognitiva atingida; em termos de tratamento clínico, ainda pouco se pode oferecer para modificar tal condição alterada. Destarte, não se pode afirmar que o declínio das funções cognitivas globais seja típico do envelhecimento, já que dados de pesquisas efetivadas com idosos normais de idades até avançadas mostram-se inconclusos (Rubin et al., 1998). A depressão é apontada em alguns estudos como causadora de problemas de memória e, em outros, como sendo um dos sintomas primários de quadro demencial do tipo de Alzheimer. Apesar de ser considerada como o segundo mais comum distúrbio psiquiátrico na velhice (Wetterling e Junghanns, 2004), ainda mostra-se clinicamente inconcluso distinguir déficits cognitivos vistos na depressão com aqueles no demenciamento progressivo (Lamberty e Bieliauskas, 1993; Flicker et al., 1993; Fischer et al., 2002). Em poucas palavras, se define falhas mnêmicas, popularmente conhecidas como ‘falhas de memória’, como alterações funcionais genéricas quando não comprometem a autonomia e a independência de indivíduos idosos. 159 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 156-164 <http://www.cienciasecognicao.org/> A conhecida expressão de alerta dos estudiosos das Neurociências – ‘tudo que não é usado é perdido’ vem a ser produto de inúmeros estudos e pesquisas sobre o funcionamento cerebral. Citando alguns: Izquièrdo (2004: 46) comenta que “a maior parte dos esquecimentos resulta da falta de uso das sinapses (...) o uso reiterado das sinapses causa o seu crescimento e sua melhora funcional”; além disso, traça uma conexão direta entre memórias e emocionalidade ao dizer que “(…) os maiores reguladores da aquisição, da formação e da evocação das memórias são justamente as emoções e os estados de ânimo”. Ainda segundo este autor, “a atenção e a concentração são as capacidades mais exigidas para tal” (2002: 12). Damásio (1996: 117) destaca a interação do organismo com o ambiente, sendo suas relações “mediadas pelo movimento do organismo e pelos aparelhos sensoriais”, e onde “a comunicação dos setores de entrada entre si e dos setores de entrada com os de saída não é direta, mas antes mediada pela utilização de uma arquitetura complexa de agregados de neurônios interligados” (Damásio, 1996: 119). Néri (1995) informa que pesquisas conduzidas por Baltes e colaboradores, no Instituto Max Planck4, apontam para uma possível compensação de perdas mnêmicas com treino da memória, associando os melhores resultados com boas condições biológicas. Estudos conduzidos com animais sobre novas experiências e mudanças nos padrões neuronais corticais mostram que a experiência muda preferências neuronais, a partir de novas aprendizagens; um desses estudos é o de Sheinberg e Logothetis (2001). Apesar dos esforços empreendidos a produção científica, até o momento, exibe resultados controversos quanto à possibilidade de falhas mnêmicas poderem servir como marcadores da condição do envelhecimento humano para uma diferenciação entre uma condição benigna de declínio cognitivo e uma pré-morbidez demencial. O que se depreende dos vários estudos e pesquisas efetivados vem reforçar a importância de se pensar o idoso a partir do que ele preserva em si e do que é possível de ser otimizado. Para se ter uma velhice saudável a questão central não é impedir © Ciências & Cognição o declínio funcional biológico, porém disponibilizar instrumentos que auxiliem na preservação daquilo que é fundamental à condução da vida (qualidade de) no idoso: capacidade funcional. Manter esta capacidade na velhice significa, por conseguinte, otimizar recursos que retardem a deterioração das habilidades individuais e/ou que expandam potenciais inéditos, dentro dos parâmetros normais considerados aceitáveis para esta população específica. Capacidade funcional tem como principais atributos a autonomia e a independência, considerados como os fatores diferenciadores no resvaladiço terreno entre a senescência e a senilidade. Consoante a Organização Mundial de Saúde (WHO, 2002: 13), autonomia: “(…) is the perceived ability to control, cope with and make personal decisions about how one lives on a day-by-day basis, according to one's own rules and preferences". Independência, por sua vez, “(…) is commonly understood as the ability to perform functions related to daily living – i.e. the capacity of living independently in the community with no and/or little help from others.”5 Estilo de vida como indicador de saúde na velhice A prática profissional junto à população idosa costuma defrontar-se com queixas de falhas mnêmicas relatadas pelos próprios e/ou pelos seus familiares, preocupados com o espectro dos quadros demenciais. Descartados os principais fatores precipitantes (hereditários, alterações ou doenças orgânicas, induções por substâncias), e quando não se encontra respaldo objetivo para as ditas queixas, Figueiredo (2003) alerta para serem investigados os aspectos psicossociais e comunicacionais (relação eu-mundo); pois, muitas das vezes, a desarmonia nas emoções, a insuficiente estimulação intelectual e o retraimento na vida de relação podem ser os propulsores de falhas mnêmicas, por efeito contraposto e de forma cumulativa. Canongia e colaboradores (2004) alertam para a morte em vida, caracterizada por um abandono existencial 160 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 156-164 <http://www.cienciasecognicao.org/> auto-imposto, isto é, pelo próprio indivíduo idoso, tendo como pano de fundo as situações vividas ao longo de sua existência, paralisantes do seu viver pelo alto custo emocional envolvido. Smits e colaboradores (1999) apontam os fatores psicológicos e a capacidade cognitiva como fortes preditores do envelhecimento ativo e da longevidade. Para esses autores, os declínios no funcionamento cognitivo são disparados pelo desuso, enfermidades, fatores comportamentais, fatores psicológicos e sociais, mais do que pelo envelhecimento em si. Bassuk e colaboradores (1999), face os resultados de um estudo longitudinal, concluem que o desengajamento social é um fator de risco para o comprometimento cognitivo em adultos idosos. Herculano-Houzel (2002: 166) aponta a rotina e o cotidiano repetitivo em que estacionam alguns indivíduos como responsáveis por pouco exercício para o cérebro. “É sabido que problemas novos colocam para funcionar muito mais neurônios no córtex do que outros que podem ser resolvidos ‘sem pensar’, no ‘modo automático’”. Pode-se entender, então, porque estilo de vida e cognição compartilham uma estreita relação: a redução da qualidade de um afeta diretamente a qualidade do outro. A qualidade de vida na senescência vem sendo uma preocupação hodierna da Gerontologia, enfatizando-se a importância da promoção e prevenção de saúde. Pois, apesar de o declínio na capacidade funcional poder estar influenciado tanto por fatores ligados ao estilo de vida do adulto como ao seu ambiente externo, estudos conduzidos em diversos países, na área da biogerontologia, vêm apontando a supremacia do estilo de vida entre os fatores de saúde e longevidade, no processo de envelhecimento. A OMS traça, em suas publicações, uma estreita relação entre manutenção de comportamentos favoráveis e envelhecimento saudável (WHO, 2002). Conforme Silva (2001), a autonomia e a saúde mental são apontadas como contribuintes principais para a satisfação de viver, possibilitando a vivência de uma velhice bem–sucedida. Guimarães (1999: 100) afirma que "o maior indicador do bem-estar na maturidade e na velhi- © Ciências & Cognição ce é o conceito que as pessoas têm de si mesmas e não a presença de problemas ou indicadores clínicos". Néri (1995) discrimina a velhice bem sucedida em perspectivas socioculturais e individuais; no tocante a esta última, diz que "[...] depende, pois, do delicado equilíbrio entre as limitações e as potencialidades do indivíduo, o qual lhe possibilitará lidar, com diferentes graus de eficácia, com as perdas inevitáveis do envelhecimento” (Néri, 1995: 34). Freire e Rezende (apud Néri, 2001) entendem que velhice bem sucedida é um conjunto de recursos necessários à pessoa para enfrentar eventos estressantes, envolvendo habilidades e capacidade para solucionar problemas, bem como a capacidade social. Resultados de pesquisas originadas do Seattle Longitudinal Study6 (Schaie, 1993) revelam pertinente relação entre flexibilidade comportamental e adaptação na velhice. Destes estudos mencionados se depreende que a capacidade de adaptação a mudanças está diretamente associada a altos graus de abertura à experiência. Bem-estar subjetivo, enquanto uma das vertentes do atual paradigma do ‘Envelhecimento Ativo’ (WHO, 2002: 43), é considerado pela literatura científica como um dos principais propulsores para a competência adaptativa7 do indivíduo idoso; isto porque envolve uma abertura à experiência e uma flexibilidade comportamental. Importante lembrar que mudanças no estilo de vida podem e devem ser estimulados junto ao idoso, porém não é algo que se adquire no meio exterior. Estudos gerontológicos concluem consensualmente para a importância de o indivíduo idoso ser o promotor de atitudes positivas que o levarão a enfrentar, com qualidade, esta sua etapa evolutiva (WHO, 2002; Silva, 2001; Baltes, 1994). Assim explica Wood, ao discorrer sobre mudanças atitudinais (1994: 271): “Os seres humanos, ao mudarem as atitudes internas de suas mentes, podem mudar os aspectos externos de suas vidas”; este autor entende que estar-se receptivo para mudanças advém, essencialmente, de um processo sentido pelo indivíduo, de uma receptividade nem sempre conscientizada ou pronta - uma prontidão em po- 161 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 156-164 <http://www.cienciasecognicao.org/> tencial. E. Rogers (1991: 166), ao conceituar o objetivo do processo do viver, argumenta: “A ‘vida plena’ é um processo, não um estado de ser. É uma direção, não um destino. A direção representada pela ‘vida plena’ é aquela que é escolhida pelo organismo total, quando existe liberdade psicológica para se mover em qualquer direção.” (grifos do autor) Considerações finais A linha divisória entre senescência e senilidade pode ser traçada a partir da capacidade funcional e da cognição. Por outro lado, ao se focalizar promoção e prevenção de saúde, o estilo de vida de um indivíduo idoso deve ser levado em alta consideração, dentre os outros indicadores de saúde. A revisão da literatura gerontológica efetivada aponta a importância do estilo de vida para a qualidade do viver na velhice. Deve ser salientado que estilo de vida e bem-estar subjetivo são produtos da conscientização do indivíduo de suas necessidades, desejos, limitações, potencialidades e, principalmente, do grau de abertura individual à aceitação e incorporação de novas experiências; enquanto aspectos passíveis de oscilações temporais necessitam de eventuais adaptações ou ajustamentos. A adaptação a este novo ciclo vital, para dar conta de transformações plurais que estarão acontecendo ao longo do processo de envelhecimento, traz a necessidade de mudanças na postura frente à vida e o viver. Utilizando-se as habilidades individuais e os potenciais ainda disponíveis (às vezes até mesmo alguns inéditos), em forma de aprendizagem, o indivíduo idoso terá condições de responder aos desafios. Referências bibliográficas Baltes, P.B. (1994). Lifespan Psychology/Central concepts/Living with boundaries. Center of LifeSpan Psychology. Max Planck Institute for Human Development. (s.n.) 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(4) Max Planck Institute for Human Development and Education. Berlim, Alemanha. (5) Tradução livre: “Autonomia é a habilidade percebida para controlar, lidar com e tomar decisões pessoais sobre como se viver no dia-a-dia, de acordo com suas próprias regras e preferências". Independência, por sua vez, "é comumente compreendida como a habilidade para desempenhar funções relacionadas ao viver diário, e.g., a capacidade de viver independentemente na comunidade com nenhuma ou com pequena ajuda dos outros” (6) Estudo longitudinal de Seattle.Trata-se de um estudo longitudinal investigativo de diferenças individuais e padrões diferenciais de mudança para habilidades psicométricas selecionadas, efetivado ao longo de trinta e cinco anos, sobre o desenvolvimento intelectual adulto. (7) Termo utilizado por Freire (Néri e Freire, 2000: 24), que designa "{...} a capacidade generalizada para responder com flexibilidade aos desafios resultantes do corpo, da mente, e do ambiente. {...} Como competência adaptativa, o envelhecimento envolve a preservação e a expansão das reservas para o desenvolvimento pessoal". 164 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 165-177 <http://www.cienciasecognicao.org> S u b me t i d o e m 1 6 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e © Ciências & Cognição e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7 Revisão Interação e construção: o sujeito e o conhecimento no construtivismo de Piaget Interaction and construction: the subject and the knowledge in the constructivism of Piaget Isabelle de Paiva Sanchis e Miguel Mahfoud Programa de Pós-graduação em Psicologia, Departamento de Psicologia, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil Resumo O construtivismo de Piaget trata o conhecimento como uma construção, a partir da ação do sujeito, numa interação com o objeto do conhecimento. Este artigo trata da importância da interação, na teoria de Piaget, não apenas para a construção do conhecimento, mas também para a própria constituição e construção do sujeito. São analisados os conceitos construtivistas que se referem aos mecanismos gerais de funcionamento da inteligência, através dos quais as noções de interação e de construção podem ser definidas; e aludidos conceitos presentes nas últimas obras de Piaget, com o objetivo de mostrar o fio condutor entre os mecanismos mais gerais e mais específicos da inteligência humana como sendo a ação, dentro de uma interação. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 165-177. Palavras-chave: construtivismo de Piaget; sujeito; interação; conhecimento; construção. Abstract The constructivism of Piaget treats the knowledge as a construction, from the action of the subject, in an interaction with the object of the knowledge. This article deals with the importance of the interaction, in the theory of Piaget, not only for the construction of the knowledge, but also for the constitution and construction of the subject. The constructivists concepts related to the general mechanisms of functioning of intelligence are analyzed, through which the notions of interaction and construction can be defined; and concepts of the last workmanships of Piaget are alluded, with the objective to show the permanence of the importance of the action, in a interaction, in his whole work. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 165-177. Key Words: constructivism of Piaget; subject; interaction; knowledge; construction. Piaget, ao longo de sua obra, discutiu questões colocadas em diversas áreas da ciência. Questões propriamente biológicas, em seus primeiros trabalhos; sociológicas, como em “Estudos Sociológicos” (1965/1973b); as relações entre ciência e filosofia, em “Sabedo- ria e Ilusões da Filosofia” (1965/1969); as relações entre psicologia e pedagogia, em “Psicologia e Pedagogia” (1969/1970b); ou ainda questões sobre a história da ciência, em “Psicogênese e História da Ciência” (1983/1987a), em parceria com Rolando Gar- - I.P. Sanchis é Psicóloga e Mestre em Psicologia Social (UFMG). E-mail para correspondência: [email protected]. 165 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 165-177 <http://www.cienciasecognicao.org/> cia. Mas as questões que ocuparam a maior parte de sua produção e que nunca o abandonaram eram questões epistemológicas: o que é o conhecimento, qual sua origem, como se transformam o conhecimento e o sujeito do conhecimento ao longo do tempo? As respostas para essas perguntas foram buscadas por ele através do ponto de vista do sujeito que conhece, visto como construtor e ao mesmo tempo resultado desse processo. O fato de Piaget ter se preocupado com o que acontece no sujeito suscitou interpretações que tomam sua teoria como uma psicologia cognitiva individual. Como coloca Lajonquière (1997), há interpretações que, mesmo reconhecendo a importância da interação, reduzem-na a uma interação entre duas realidades previamente separadas: o sujeito e a realidade. Queremos mostrar aqui que a interação está no fundamento mesmo da construção de um e outro pólo. Através do método clínico, Piaget buscou conhecer o desenvolvimento das formas de interação do sujeito com a realidade (Delval, 2000), e a construção do conhecimento delas decorrente. A partir de 1936, com “O Nascimento da Inteligência na Criança”, e logo em seguida (1937) com “A Construção do Real”, Piaget procurou pelo início do conhecimento, pela passagem do biológico ao cognitivo através da interação mediada pela ação do sujeito dirigida ao objeto; e pela relação que o sujeito e o objeto mantêm, cada um, com a construção do conhecimento, como também um com o outro. É nesse momento que ele coloca explicitamente a ação do sujeito, em uma interação com o objeto, como fonte do conhecimento (Parrat-Dayan, 2006), ainda que só fale explicitamente em sujeito epistêmico mais tarde, no fim dos anos 50 (Montangero e Maurice-Naville, 1994/1998). Os conceitos fundamentais tratados nessas obras, que se referem aos mecanismos mais gerais de funcionamento da inteligência (adaptação, organização, assimilação e acomodação), já trazem a idéia de que o sujeito se constitui na interação com o objeto; e que é a própria interação que permite a construção do sujeito, do objeto e do conhecimento. Idéia que permanece até sua última obra. Assim, a © Ciências & Cognição interação entre o sujeito e o mundo tem não apenas um caráter construtivo, mas também constitutivo. Gênese de uma teoria No construtivismo de Piaget, o processo de construção do conhecimento confunde-se com o próprio processo de constituição e de desenvolvimento do sujeito, na sua relação com o mundo, que é físico e ao mesmo tempo simbólico. Esse sujeito se define como tal a partir do momento em que se constitui junto com o objeto do conhecimento, que não é apenas, nem necessariamente, físico. Dessa forma, falar em construção do conhecimento significa falar ao mesmo tempo em construção do sujeito que conhece e do objeto a ser conhecido. Ambos “aparecem como resultado de um processo permanente de construção” (Coll, 1987: 186). Piaget opôs-se ao mesmo tempo ao apriorismo, que considera o processo de conhecimento como fruto de uma estrutura pronta do sujeito; e ao empirismo, que parte do princípio que o conhecimento provém exclusivamente do que é externo ao sujeito. No primeiro caso, o sujeito já nasce “pronto”; enquanto que no segundo, o sujeito é dissolvido, se transforma no próprio objeto, por adquirir como conhecimento uma cópia do real. Para ele, a natureza de todo conhecimento consiste na constituição de uma relação entre o sujeito e o objeto: “(...) o conhecimento repousa em todos os níveis sobre a interação entre o sujeito e os objetos, (...) mesmo quando o conhecimento toma o sujeito como objeto, há construções de interações entre o sujeito-que-conhece e o sujeitoconhecido.” (Piaget, 1967b: 590, tradução dos autores)1 Isto significa, por um lado, que as estruturas cognitivas do sujeito não estão prontas ao nascer2, e por outro, que o sujeito conhece e interpreta o mundo a partir de estruturas próprias, apesar de não serem estanques. A palavra construtivismo se refere exatamente 166 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 165-177 <http://www.cienciasecognicao.org/> a essa relação entre a estrutura e o processo que permite a transformação da própria estrutura. E esse processo se funda na interação entre o sujeito e o objeto, o que faz com que as estruturas sejam construídas ao mesmo tempo pelos dois, ou melhor, pela relação estabelecida entre eles. A interação é mediada pela ação do sujeito. Ou seja, todo conhecimento está, em todos os níveis, ligado à ação: “Conhecer não consiste, com efeito, em copiar o real, mas em agir sobre ele e transformálo” (Piaget, 1967/1973a: 15), dentro de um sistema de interações. Como colocam Becker e Franco (1999: 7): “(...) o conhecimento se constitui na medida em que ele se desfaz - ele não é coisa, mercadoria, mas relação criada pela ação humana”. Isso significa que o conhecimento não é cumulativo. O que é estável num determinado momento deve se desestabilizar, para que um novo arranjo seja feito. E essa ação se dá através dos mecanismos subjacentes aos processos construtivos das estruturas do sujeito, mais especificamente a assimilação e a acomodação. Piaget define pela primeira vez com precisão esses conceitos no momento em que procura pelas relações entre o funcionamento dos seres vivos em geral e a inteligência, e quando busca compreender a constituição do sujeito em seu início, num processo que leva à construção de uma estrutura sensório-motora. Mesmo que Piaget tenha abandonado os estudos propriamente biológicos, presentes em seus primeiros trabalhos, suas questões iniciais sobre a adaptação dos seres vivos permaneceram. Ao desenvolver sua teoria da epistemologia genética, buscou encontrar as relações entre o biológico, o psicológico e o epistemológico. Sua obra “Biologia e Conhecimento” (1967/1973a), publicada originalmente em 1967, tem essa preocupação explícita em seu sub-título: “Ensaio sobre as relações entre as regulações orgânicas e os processos cognoscitivos”. Mas já em “O Nascimento da Inteligência na Criança” (1936/1975c), de 1936, 31 anos antes, essas relações são enfatizadas, principalmente na introdução, com o título de “O Problema Biológico da Inteligência”. © Ciências & Cognição Nestas duas obras, Piaget (1967/ 1973a, 1936/1975c) trata detalhadamente do que ele acredita ser a continuidade entre o biológico e o intelectual, a partir de dois tipos distintos de fatores hereditários para o ser humano. No entanto, Piaget não fala de uma continuidade linear, e alerta para os reducionismos possíveis decorrentes dessa interpretação: “Há dois métodos que não devem ser seguidos. (...) o método que conduz a projetar nas estruturas ou fenômenos de ordem inferior os caracteres das estruturas ou fenômenos de ordem superior (inteligência, consciência intencional, etc); (...) ou o método que consiste em suprimir as características originais dos níveis superiores para reduzi-los de uma vez só (...) aos níveis inferiores (redução da compreensão inteligente a associações condicionadas, etc). Nos dois casos a comparação entre as funções cognoscitivas e as formas elementares de organização torna-se inoperante.” (Piaget, 1967/1973a: 51-52) O primeiro tipo de fator hereditário é de ordem estrutural, e se refere ao sistema nervoso e aos órgãos sensoriais, que colocam certos limites ao nosso conhecimento e à nossa percepção (e ao mesmo tempo possibilitam a construção do conhecimento propriamente humana). Dessa forma, só conseguimos escutar um som, por exemplo, que esteja dentro de uma determinada escala. Esses fatores estruturais influem na construção de noções fundamentais (como o espaço) de modo a restringir as nossas possibilidades de percepção: “As nossas percepções são tão-somente aquilo que são, entre todas as que seriam concebíveis” (Piaget, 1936/1975c: 14). Já o segundo tipo diz respeito ao funcionamento da inteligência, e não à transmissão de uma ou outra estrutura específica. Esse funcionamento é traduzido pelas duas grandes invariantes funcionais: a adaptação e a organização, que, como diz Abib (2003), dizem respeito a uma propensão para a transformação e para a cons- 167 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 165-177 <http://www.cienciasecognicao.org/> trução de um sistema de relações e coordenações, respectivamente. A adaptação e a organização são as características fundamentais de qualquer ser vivo. Mas, se: “O organismo adapta-se construindo materialmente novas formas para inserilas nas do universo, [a inteligência] prolonga tal criação construindo, mentalmente, as estruturas suscetíveis de aplicarem-se às do meio.” (Piaget, 1936/1975c: 15-16) E Piaget completa: “Afirmar que a inteligência é um caso particular da adaptação biológica equivale, portanto, a supor que ela é, essencialmente, uma organização e que sua função consiste em estruturar o universo tal como o organismo estrutura o meio imediato” (Piaget, 1936/1975c: 15, grifo nosso). Assim, se a inteligência estrutura o universo, ele é o universo humano, que supõe o mundo físico, assim como a cultura, as redes simbólicas, os valores, as relações e seus significados (Becker, 2003; RamozziChiarottino, 1997). Além do quê, não há uma equivalência entre as funções gerais de qualquer ser vivo e as funções especificamente humanas: “(...) se as funções que caracterizam os mecanismos cognoscitivos fossem exatamente as mesmas que as grandes funções do organismo em geral, isto significaria que o conhecimento não contém nenhuma função própria. Daí decorreria duas conseqüências igualmente absurdas, a saber, ou a inteligência já está presente em todos os níveis da vida orgânica, ou nada introduz de novo e não contém, assim, nenhuma razão funcional de desenvolvimento.” (Piaget, 1967/1973a: 170) © Ciências & Cognição Os conceitos de inteligência e de intencionalidade só fazem sentido se referidos ao ser humano. Pode-se falar em coordenação de esquemas conceituais ou sensório-motores como inteligência, mas “nada disso se aplica ao genoma” (Piaget, 1967/1973a: 53). E quanto ao conceito de intencionalidade3, ele só “tem sentido no caso da consciência, e não tem mais nenhum fora dos atos mentais.” (Piaget, 1967/1973a: 54). A adaptação, na perspectiva de Piaget, não significa um estado, e nem pressupõe um equilíbrio com o ambiente, uma adequação do sujeito com o meio. Pelo contrário, ela é o próprio processo -dialético- que permite uma transformação permanente, tanto de um, como do outro. O processo de adaptação é regido por dois mecanismos, que supõem, ambos, a ação do sujeito (por isso há transformação): a assimilação e a acomodação, que são “os dois pólos de uma interação que se desenvolve entre o organismo e o meio, a qual constitui a condição indispensável de todo funcionamento biológico e intelectual” (Piaget, 1937/ 1975a: 328). Mas as formas biológicas de assimilação são hereditárias, enquanto que “aquilo que é característico das assimilações cognitivas é construir sem cessar novos esquemas em função dos precedentes ou acomodar os antigos” (Piaget, 1983/1987a: 246). Adaptação, nesse sentido, confunde-se com a própria inteligência. Melhor dizendo, a inteligência seria a forma de adaptação humana, que, enquanto assimilação, “(...) incorpora nos seus quadros todo e qualquer dado da experiência” (Piaget, 1936/1975c: 17), conservando o ciclo de organização anterior, e coordenando os dados para que seja possível incorporá-los a esse ciclo. E enquanto acomodação modifica o próprio ciclo já organizado, de modo a responder às exigências do meio. A inteligência, vista dessa perspectiva, se distingue de uma concepção pré-formista, como também daquela que a toma como o resultado de um processo. Ela é o próprio processo. Tanto que os esquemas mesmos de ação “são ‘formas’ da organização vital, mas formas funcionais de estrutura dinâmica e não material” (Piaget, 1967/1973a: 45). A adaptação não é, então, o equilíbrio progressivo entre o 168 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 165-177 <http://www.cienciasecognicao.org/> sujeito e o meio, mas sim entre os mecanismos de assimilação e acomodação, através de um processo em que sujeito e objeto são construídos em parceria. Ela não tem como objetivo atingir uma harmonia perfeita entre os sujeitos e o mundo. Pelo contrário, supõe um desequilíbrio permanente, para que novas estruturas possam surgir. Significa, em suma, a abertura para as possibilidades de compreensão e de relacionamento com o mundo. Apesar das diferenças de natureza que separam a vida orgânica, a inteligência prática ou a inteligência reflexiva, a adaptação em todos os casos é possibilitada pela assimilação dos objetos (que também são de naturezas diferentes) pelo sujeito4. E a partir daquilo que é incorporado, o sujeito se reorganiza de modo a se incorporar ao objeto: “A assimilação nunca pode ser pura, visto que, ao incorporar os novos elementos nos esquemas anteriores, a inteligência modifica incessantemente os últimos para ajustá-los aos novos dados. Mas, inversamente, as coisas nunca são conhecidas em si mesmas, porquanto esse trabalho de acomodação só é possível em função do processo inverso de assimilação.” (Piaget, 1945/1975b: 18) A organização, segunda invariante funcional, caminha necessariamente junto com a adaptação, como a outra face de um mesmo mecanismo. Nas palavras de Piaget, ela é “(...) o aspecto interno do ciclo do qual a adaptação constitui o aspecto exterior” (Piaget, 1936/1975c: 18). Ou seja, enquanto a adaptação diz respeito à relação do sujeito com o que é exterior a ele (experiência), a organização atua na relação do sujeito consigo próprio (atividade racional), permitindo novas maneiras de adaptação, que por sua vez permitem novas formas de organização. Nenhum esquema ou operação intelectual está desconectado de todos os outros. “Todo e qualquer ato de inteligência supõe um sistema de implicações mútuas e de significações solidárias” (Piaget, 1936/1975c: 19). A partir disso, pode-se ver que conhecimento significa necessariamente relação. Tanto do sujeito com o © Ciências & Cognição mundo, como entre os esquemas e as estruturas próprias do sujeito. A possibilidade de o sujeito se constituir como tal, assim como o objeto, está na existência desta relação, sendo que “(...) a atividade do sujeito é relativa à constituição do objeto” e que há “uma interdependência irredutível entre a experiência e a razão” (Piaget, 1936/1975c: 26). A própria conservação, procurada pela autoorganização, diz respeito à transformação: “Não se trata, porém, da manutenção de estados ou estruturas, mas, isto sim, da preservação do processo, ele mesmo, de auto-organização: o que se preserva é a invenção incessante de novas possibilidades.” (Abib, 2003: 64)5 Através desse duplo processo de adaptação e organização, e consequentemente da assimilação e da acomodação, há uma relação permanente entre estrutura e gênese, pois são esses processos que permitem a construção das estruturas. As estruturas são construídas ao longo do tempo através de um processo dialético. Uma estrutura tem o caráter de totalidade, de transformação e também de auto-regulação (Piaget, 1970a). No entanto, Piaget reivindica a todo momento a existência de um sujeito como centro organizador das próprias estruturas: “Se as estruturas existem e comportam mesmo, cada uma, sua auto-regulação, fazer do sujeito um centro de funcionamento não significa reduzi-lo à posição de simples teatro, como o censurávamos à teoria da Gestalt e não é voltar às estruturas sem sujeito, com as quais sonham um certo número de estruturalistas atuais? Se elas permanecessem estáticas, é evidente que seria este o caso. Porém, se por ventura se pusessem a estabelecer ligações entre si, de outro modo que por harmonia pré-estabelecida entre mônadas fechadas, então o órgão de ligação volta a ser, de direito, o sujeito.” (Piaget, 1968/1970a: 58) 169 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 165-177 <http://www.cienciasecognicao.org/> Ou seja, o sujeito existe apesar das estruturas, ou porque “de maneira geral, o ‘ser’ das estruturas é sua estruturação” (Piaget, 1968/1970a: 114). Dessa forma, pode-se pensar a relação entre o ser e o tornar-se como um dos pontos mais importantes do construtivismo piagetiano (Macedo, 1994). O processo dialético é caracterizado pela construção de “interdependências não estabelecidas até então entre dois sistemas, [de] interdependências (...) entre as partes de um mesmo objeto” (Piaget, 1980/1996a: 199), de superações que levam a uma nova totalidade. Como também pela “intervenção de circularidades ou espirais na construção das interdependências” e por desembocar em relativizações, já que “um caráter até então isolado” é posto “em relação com outros pelo jogo das interdependências” (Piaget, 1980/1996a: 198200). Isso significa que há interdependência em todos os níveis: entre a assimilação e a acomodação, entre os esquemas e também entre as estruturas e a totalidade. Ou seja, a principal característica da dialética é a “construção de interdependências entre domínios ou subsistemas concebidos anteriormente como opostos ou sem relação entre si” (Montangero e Maurice-Naville, 1994/1998: 72). Piaget refere-se ao papel da dialética como sendo o de constituir “o aspecto inferencial de toda equilibração” (Piaget, 1980/1996a: 200), sendo que a equilibração não é a manutenção de um estado ou estrutura, mas sim um “processo construtivo que conduz à formação de estruturas” (Piaget, 1980/1996a: 200). O processo dialético gera superações (equilibração majorante) que constituem uma mudança qualitativa em relação ao estado anterior, sem que, com isso, os elementos presentes anteriormente deixem de fazer parte da nova organização: “Enfim, o construtivismo relacional ou dialético, por sua dupla preocupação com a totalização e a formação histórica, é naturalmente levado a fazer a síntese entre as considerações de estrutura e de gênese.” (Piaget, 1967a: 1238, tradução dos autores)6. © Ciências & Cognição Então, a constituição das estruturas não pode “ser dissociada do desenrolar histórico da experiência” (Piaget, 1936/1975c: 359). E essa importância da formação histórica vem desde os esquemas mais elementares: “Um esquema resume em si o passado e consiste sempre, portanto, em uma organização ativa da experiência vivida” (Piaget, 1936/1975c: 56). Piaget diz ainda “da impossibilidade de divorciar qualquer conduta, seja ela qual for, do contexto histórico de que ela faz parte” (Piaget, 1936/1975c: 56). O construtivismo apresenta, por defender uma construção possibilitada pela interação, um modo de existir relacional, tanto do sujeito quanto do objeto (Abib, 2003). Dessa forma, o objeto nunca é “coisa”, é sempre relação, pois ele também depende da interação para se constituir como objeto. Até mesmo características físicas de um objeto, por exemplo, o fato de ser sólido, é já um fenômeno constituído por sua relação com o sujeito. Não há outra maneira de perceber e significar um objeto, a não ser a partir das estruturas e da ação do sujeito. No entanto, isso não significa que o sujeito crie o objeto, independente do próprio objeto, pois ele é, de fato, um dos dois pólos a constituir a relação. Em “A Construção do Real na Criança”, Piaget trata especificamente desse ponto, fundamental, do papel da relação na constituição do sujeito e do objeto, desde o nascimento de toda criança: “(...) assimilar significa, desde esse momento [em que se instaura um conjunto de relações elaboradas pela atividade do sujeito com os objetos], compreender e deduzir, e a assimilação confunde-se com a relacionação.” (Piaget, 1937/1975a: 7) E continua: “(...) o sujeito assimilador entra em reciprocidade com as coisas assimiladas: a mão que apanha, a boca que chupa ou o olho que observa, deixam de limitarse a uma atividade inconsciente de si própria; embora concentrada em si pró- 170 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 165-177 <http://www.cienciasecognicao.org/> pria; passam a ser concebidas pelo sujeito como coisas entre coisas, mantendo com o universo relações de interdependência.” (Piaget, 1937/1975a: 7) Quando a criança nasce, o universo para ela não é composto por objetos permanentes, presentes em um espaço objetivo; também as noções de tempo ou de causalidade ainda não se constituíram. Mas desde esse momento ela começa a elaborar esse universo exterior, que vai sendo construído e identificado na medida em que ela identifica e constrói a si própria: “(...) essa construção não é o produto de uma dedução a priori, tampouco é devida às tentativas e explorações puramente empíricas” (Piaget, 1937/1975a: 90). E Piaget enfatiza a construção mútua: “(...) ao descobrir o objeto, a criança organiza seus esquemas motores e elabora relações operatórias, ao invés de sofrer passivamente uma pressão dos fatos” (Piaget, 1937/1975a: 90). A interação entre o sujeito e o objeto se refere também aos mecanismos que tornam possível o conhecimento: “(...) a interação do sujeito e do objeto é tal, dada a interdependência da assimilação e da acomodação, que se torna impossível conceber um dos termos sem o outro.” (Piaget, 1936/1975c: 388) Piaget se refere, neste momento, a uma organização prática do universo, numa época em que a criança ainda não domina a linguagem, que por sua vez está subordinada ao exercício da função simbólica (Piaget, 1945/1975b). No entanto, o desenvolvimento, em qualquer época da criança ou do adulto, se dá de acordo com esse mesmo processo dialético de construção mútua (Piaget, 1936/1975a, 1945/1975b). A tomada de consciência, por exemplo, não é uma espécie de iluminação de algo que já existia e estava apenas escondido. Ela é uma construção, que tem como fundamento uma interação mediada pela ação: “(...) o estudo da tomada de consciência nos conduziu a colocá-la na perspectiva geral da relação circular entre o sujeito © Ciências & Cognição e os objetos, o primeiro não aprendendo a se conhecer senão agindo sobre estes e os segundos só tornando-se conhecíveis em função do progresso das ações exercidas por eles.” (Piaget, 1974: 281-282, tradução dos autores)7 A progressiva construção do real (na medida em que há também construção do sujeito) implica a definição de dois conceitos de extrema importância para a constituição de uma noção de sujeito na teoria de Piaget: objeto e interação. Pois é precisamente através da interação com o objeto do conhecimento que o sujeito se constitui. Como já dito, o objeto não pode ser considerado “coisa”, mas deve ser pensado como “um fragmento de cultura a ser reconstruído” (Lajonquière, 1997, sem página), pois ele é um “objeto situado ou intelectualizado por outras inteligências, mais ainda, ele é, por sua vez, um fragmento da interação sujeito-objeto” (Lajonquière, 1997, sem página). Além do que, ele se torna objeto apenas quando o sujeito o constitui como significante (Piaget, 1937/1975a). Se é através de sua relação com o objeto que o sujeito se transforma, o objeto é, então, “a mediação entre o sujeito atual e o sujeito que se constrói a partir dessa interação com o objeto” (Franco, 1999: 16). Lembrando-se também da constituição do sujeito paralela à constituição do real, não se deve pensar a interação como sendo simplesmente a presença simultânea de um sujeito e de um objeto. Piaget define o tipo de interação na teoria construtivista, contrapondo a outras visões que ele buscava combater: “(...) de fato em todas as epistemologias clássicas, o conhecimento é interpretado sob o modo da contemplação ou do pensamento, e o problema dos papéis do objeto e do sujeito reduz-se então a determinar se esse pensamento ‘especulativo’ (no sentido estrito) se limita a apreender, sob a forma de um tipo de cópia, uma realidade exterior e ele, ou se ele retira em parte esse conhecimento dele próprio, enquanto fonte de estrutu- 171 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 165-177 <http://www.cienciasecognicao.org/> rações. A posição construtivista ou dialética consiste, ao contrário, em sua própria raiz, a considerar o conhecimento como ligado a uma ação que modifica o objeto e que, por conseguinte, não o atinge senão por intermédio das transformações introduzidas por essa ação. Nesse caso o sujeito não está mais frente ao objeto, e num outro plano, olhando-o tal como ele é ou através de lentes estruturantes: ele mergulha no objeto por seu organismo, necessário para a ação, e reage sobre o objeto enriquecendo-o com as contribuições da ação; quer dizer que o sujeito e o objeto estão doravante situados exatamente no mesmo plano, ou melhor, sobre os mesmos planos sucessivos ao longo das mudanças de escalas espaciais e do desenrolar genético e histórico. Enfim, em princípio, não há mais fronteira entre o sujeito e o objeto (...).” (Piaget, 1967a: 1244, tradução dos autores, grifo nosso)8 Vê-se, então, que o sujeito e o objeto do conhecimento não são construídos pela interação entre duas realidades previamente constituídas, estanques e separadas. Mais do que isso, a interação através da ação (assimilação e acomodação) permite que tanto um quanto o outro passem a ser conhecidos, não simplesmente por suas próprias características, mas sim pelas características da relação estabelecida entre elas: “A inteligência não principia, pois, pelo conhecimento do eu nem pelo das coisas como tais, mas pelo da sua interação; e é orientando-se simultaneamente para os dois pólos dessa interação que a inteligência organiza o mundo, organizando a si própria.” (Piaget, 1937/1975a: 330, grifo nosso) Pode-se definir a constituição do sujeito se dando precisamente pela interação. Não porque essa interação permita que o sujeito assimile o objeto; o mais importante é que ela possibilita a assimilação da própria interação, © Ciências & Cognição o que contém, simultaneamente, um e outro. O sujeito do conhecimento “É subjectum, isto é, emerge das profundezas de um organismo, mas não se reduz a esse organismo, pois interage com a cultura abstraindo - não só dessa cultura, mas, sobretudo do resultado dessa interação - os mecanismos de seu desenvolvimento.” (Becker, 2003: 26) A partir das interações, o conhecimento se direciona simultaneamente para os dois pólos. Isto é, há um duplo processo de interiorização e exteriorização, na direção de uma compreensão do sujeito e do objeto, respectivamente. O sujeito se constrói, então, nesta dupla relação de construção do conhecimento do outro e de si, na interação mesma com o outro. Pode-se pensar num diálogo constante do sujeito com o mundo e com sua própria subjetividade, que se transforma por causa mesmo desse diálogo. Daí a importância do conceito de ação na teoria piagetiana, pois é ela que faz a mediação na interação do sujeito com o mundo, é ela que permite haver a assimilação e a acomodação, inclusive a assimilação da própria interação. Mesmo a percepção só tem sentido se ligada às ações (Piaget, 1967/1973a: 16): “Perceber uma casa, dizia o neurologista v. Weiszäcker, não é ver um objeto que entra pelos olhos, mas, ao contrário, assimilar um objeto no qual se vai entrar”. Essa idéia é compartilhada por Piaget, que coloca a ação como a explicação para o papel da assimilação, que por sua vez “exprime o fato fundamental de que todo o conhecimento está ligado a uma ação (...)” (Piaget, 1967/1973a: 15). Uma ação que é na verdade interação, pois não se dá no vazio, mas se direciona para o objeto. Da mesma forma que um objeto não pode ser entendido como um objeto apenas físico e sim como qualquer objeto do conhecimento para o sujeito, a ação também deve ser considerada a ação humana em todos os seus aspectos: “Ação física, ação 172 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 165-177 <http://www.cienciasecognicao.org/> simbólica, ação social, ação cultural, ação lingüística, ação concreta, ação formal, ação de primeiro grau, ação de segundo grau...” (Becker, 2003: 53). A operação é uma ação, diz Piaget, como também a reflexão (Piaget, 1974/1996b, 1977/1995). Uma ação que é ao mesmo tempo, e permanentemente, estruturada e estruturante. Permanência e prospectiva de uma teoria Piaget, através desses conceitos, discutia as relações entre a possibilidade de conhecimento e o sujeito conhecedor. Um sujeito epistêmico, nas suas palavras, abstrato e universal, presente em todos os sujeitos reais, que se constitui na sua relação com o mundo. Essa relação não é uma relação qualquer, mas uma interação com o(s) objeto(s) do conhecimento mediada pela ação do próprio sujeito, que dessa forma assimila – não o objeto puro, mas o resultado da interação – e acomoda-se, construindo, assim, novas estruturas de compreensão da realidade. Através de um processo dialético, as estruturas são reconstruídas, assim como também as estruturas do mundo na medida em que este adquire significado para o sujeito. Isto é, para falar em constituição do sujeito, faz-se necessário falar em constituição do objeto e construção do conhecimento, pois é exatamente nesse processo – de uma determinada relação de um sujeito com um objeto, tendo como resultado o conhecimento - que surge, se constitui e se constrói qualquer sujeito. Os mecanismos fundamentais de adaptação (ou seja, assimilação e acomodação) e de organização traduzem, respectivamente, o diálogo do sujeito com o mundo externo e consigo próprio, que é também o duplo processo resultante da interação. Estrutura e gênese não podem ser dissociadas, já que não existem estruturas inatas/prontas. Elas se constroem, na medida mesmo em que há construção de conhecimento. E têm, no sujeito, seu centro organizador. Piaget passa a se preocupar mais, nas últimas décadas de sua produção, com a explicação para o aparecimento de conhecimentos realmente novos, não sendo “nem predeterminados no espírito do sujeito nem retira- © Ciências & Cognição dos tais quais do meio” (Montangero e Maurice-Naville, 1994/1998: 68). Assim, num primeiro momento a construção das estruturas foi explicada apenas em termos de um funcionamento geral dos seres vivos (mesmo que analisado em termos de um sujeito e um mundo humano, com suas características próprias): a assimilação e acomodação. Neste momento, passam a ser enfatizados modos de construção do conhecimento específicos do ser humano. Mas os novos conceitos introduzidos nesta época aperfeiçoam, detalham e enriquecem os conceitos mais gerais, sem, no entanto, contradizê-los. Assim, por exemplo, Piaget (1974) explica a tomada de consciência como uma reconstrução, necessária, na passagem entre o inconsciente e a consciência, não podendo ser reduzida a um simples processo de iluminação. E insere este conceito também em suas conclusões mais gerais de que “o conhecimento procede a partir, não do sujeito, nem do objeto, mas da interação entre os dois” (Piaget, 1974: 263)9. Novamente, procura definir a posição construtivista, desta vez apoiando-se na formação dos “possíveis”: “Para justificar nossa epistemologia construtivista contra o inatismo ou o empirismo, não é suficiente mostrar que todo conhecimento novo resulta de regulações, de uma equilibração portanto, pois sempre se poderá supor que mesmo o mecanismo regulador é hereditário (...), ou ainda que resulta de aprendizagens mais ou menos complexas. Procuramos, por isso, abordar o problema da produção de novidades de outro modo, centrando as questões na formação dos ‘possíveis’.” (Piaget, 1981/1985: 7) Pois o possível “não é algo observável, mas o produto de uma construção do sujeito” (Piaget, 1981/1985: 7), que interage com o objeto, mas que o insere em interpretações devidas à sua própria atividade sobre ele. A obra “Vers Une Logique des Significations” (Piaget e Garcia, 1987b)10 traz a idéia de que existe uma lógica das significações (baseada na ação) que precede a lógica dos enunciados. Isso significa que, uma ação 173 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 165-177 <http://www.cienciasecognicao.org/> não sendo nem verdadeira nem falsa, as implicações entre as ações são suscetíveis de verdade ou falsidade. A lógica das significações estaria fundada, então, sobre as implicações entre as ações, ou entre as significações, pois toda ação ou operação é carregada de significações para o sujeito. Talvez este conceito traga uma relação mais próxima entre forma e conteúdo. Mas pode-se ver a idéia de significação do objeto pelo sujeito já contida no conceito de assimilação, pois todo conhecimento supõe uma assimilação, que “consiste em conferir significações (...) ao que é percebido ou concebido” (Piaget, 1967/1973a: 17). E a significação é ligada à ação: “A importância da noção de assimilação é dupla. De um lado implica, como acabamos de ver, a noção de significação, o que é essencial, pois todo conhecimento refere-se a significações (...). Por outro lado, exprime o fato fundamental de que todo o conhecimento está ligado a uma ação (...).” (Piaget, 1967/1973a: 14-15) A assimilação, ao permitir a significação, constrói novos conhecimentos, mas está também em no fundamento mesmo de qualquer conhecimento: “Julgar (...) é assimilar, isto é, incorporar um novo dado a um esquema anterior, num sistema de implicações já elaborado. Portanto, a assimilação racional supõe sempre, é verdade, uma organização prévia. Mas donde vem essa organização? Da própria assimilação, pois todo conceito e toda relação exigem um julgamento para se constituírem.” (Piaget, 1936/1975c: 382) Piaget procurou encontrar, por um lado, as estruturas cognitivas do sujeito e, por outro, o funcionamento da inteligência que permite a construção do conhecimento, e das próprias estruturas. Isto é, um sujeito universal que se direciona para a aquisição de uma lógica capaz de interpretar o mundo, de forma cada vez mais abrangente. O olhar de Piaget voltado para os aspectos lógicos do conheci- © Ciências & Cognição mento gerou diversas críticas, como por exemplo a de Boesch11, que aponta para uma insuficiência na teoria de Piaget, justamente por se concentrar nesses aspectos lógicos: “Podemos, como Piaget demonstrou, estudar a construção de conceitos lógicos amplamente sem levar em conta as ações que levaram a eles. Entretanto, se quisermos olhar para resultados individualmente ou culturalmente diferentes do processo de construção, não podemos divorciá-los das experiências nas quais estão baseados. A ação se torna assim um conceito de muito maior importância do que Piaget alguma vez tenha a ela atribuído.” (citado por Simão, 2002: 116) No entanto, Piaget mostrou a importância da ação precisamente (ou até mesmo) para a construção de conceitos lógicos. Não apenas para a construção do conhecimento, mas para a própria constituição do sujeito: “O intermediário entre os objetos e os acontecimentos, por um lado, e os instrumentos cognitivos, por outro lado, é de facto, como foi possível verificar por diversas vezes, a acção. O modo como a acção participa no processo de conhecimento, na perspectiva própria da epistemologia genética, dá a esta posição epistemológica um sentido preciso, que, ao mesmo tempo que converge para uma linha de pensamento já clássica em filosofia dialética, confere-lhe entretanto uma identidade em si própria, na medida em que a prática é analisada nas suas acções constituintes que aparecem então como factores essenciais no ponto de partida do processo cognoscente.” (Piaget e Garcia, 1983/1987a: 228) A ação, portanto, é fundamental, mas também seu contexto, já que todo esquema é “uma organização ativa da experiência vivida” (Piaget, 1936/1975c: 56), e que qualquer ação de um sujeito “é sempre coordenada por outros porque não existem acções isoladas, 174 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 165-177 <http://www.cienciasecognicao.org/> [sendo que] os seus significados são sempre solidários” (Piaget, 1983/1987a: 247). Na ação está também implicada a significação, pois o objeto é conhecido pelo sentido atribuído a ele. O sujeito adquire conhecimento dos objetos em contextos determinados, “com o tipo de significados sociais que lhe são atribuídos” (Piaget, 1983/1987a: 244). Afinal, como diz o próprio Piaget: “o que é a criança em si mesma se não existem crianças a não ser em relação a certos meios coletivos bem determinados?” (Piaget, 1965/1973b: 26). A ação não é realizada em função de impulsos internos; pelo contrário: “na experiência da criança, as situações com as quais ela se depara são engendradas pelo seu ambiente social envolvente, as coisas aparecem em contextos que lhe conferem significados particulares.” (Piaget e Garcia, 1983/1987a: 228) Em conclusão, o mais fundamental é que essa ação se dá numa interação que não permite apenas a construção do conhecimento, mas que é constitutiva do próprio sujeito: as “relações entre o sujeito e seu meio consistem numa interação radical” (Piaget, 1936/1975c: 386). O sujeito aparece, assim, “imerso num sistema de relações” (Piaget e Garcia, 1983/1987a: 244), que se dá com os objetos e com os outros sujeitos. Mas os próprios objetos não são “puros”, não são “definidos por seus parâmetros físicos” (Piaget e Garcia, 1983/1987a: 228). Eles são já construídos em função de outras interações, carregados de significações construídas por outros sujeitos. Pode-se pensar então em uma intersubjetividade constituinte, a partir da qual o sujeito se constrói, ao mesmo tempo que o conhecimento, de si, do outro e do mundo. Piaget se aproxima do sujeito ao pensar na possibilidade de conhecimento, dada pela interação constituinte entre o sujeito e o mundo (significado já por outros sujeitos); e pelo reconhecimento de uma relação permanente entre o presente (do qual o passado faz parte) e o futuro, entre estrutura e gênese, que é o lugar, de fato, da construção. © Ciências & Cognição Referências bibliográficas Abib, J.A.D. (2003). O Sujeito na Epistemologia Genética. Disponível no endereço eletrônico: http://72.14.207.104/search?q=cach e:4vgR0iSorwJ:www.scielo.br/pdf/pe/v8n2/v n2a06.pdf+abib+sujeito+genetica&hl=ptBR& gl=br&ct=clnk&cd=1. Becker, F. (2003). A Origem do Conhecimento e a Aprendizagem Escolar. São Paulo: Artmed. Becker, F. e Franco, S.R.K (1999). Introdução. Em F. Becker; S.R.K. Franco (Orgs.). Revisitando Piaget. (pp.5-8). 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Segundo Flavell (1975), Piaget considera a intencionalidade como uma das características distintivas da inteligência humana. (4) Piaget distingue a assimilação presente no processo de construção do conhecimento da assimilação físico-química: “a assimilação é apenas uma noção funcional e não estrutural. (...) é, pois, evidente que a assimilação cognoscitiva deve representar formas completamente diferentes(...)” (Piaget, 1973a, p71). (5) Piaget enfatiza esse ponto tanto em “O Nascimento da Inteligência na Criança”, como em “O Estruturalismo”. (6) “Enfin, le constructivisme relationnel ou dialectique par sa double préoccupation de la totalisation et de la formation historique est naturellement conduit à faire la synthèse entre les considérations de structure et de genèse.” 176 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 165-177 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição (7) “(...) l’étude de la prise de conscience nous a conduit ainsi à la replacer dans la perspective générale de la relation circulaire entre le sujet et les objets, le premier n’apprenant à se connaître qu’en agissant sur ceux-ci et les seconds ne devenant connaissables qu’en fonction du progrès des actions exercées par eux”. (8) “(...) en fait dans toutes les épistémologies classiques, la connaissance est interpreté sur le mode de la contemplation ou de la pensée, et le problème des rôles de l’objet ou du sujet revient alors sans plus à déterminer si cette pensée ‘spéculative’ (au sens propre) se borne à appréhender, sous la forme d’une sorte de copie, une réalité estérieur à elle, ou si elle tire en partie cette connaissance de son propre fonds, en tant que source de structurations. La position constructiviste ou dialetique consiste au contraire, en son principe même, à considérer la connaissance comme liée à une action qui modifie l’objet et qui ne l’atteint donc qu’à travers les transformations introduites par cette action. Em ce cas le sujet n’est plus face à l’objet, _et sur un autre plan_, à le regarder tel qu’il est ou à travers des lunettes structurantes: il plonge dans l’objet par son organisme, nécessaire à l’action, et réagit sur l’objet en l’enrichissant des apports de l’action; c’est à dire que le sujet et l’objet sont désormais situés exactement sur le même plan, ou plutôt sur les mêmes plans successifs au fur et à mesure des changements d’échelles spatiales et des déroulements génétiques et historiques. Em bref, il n’y a plus en droit de frontière entre le sujet et l’objet (...)”. (9) “la connaissance procède, non pas du sujet, ni de l’objet, mais de l’interaction entre les deux”. (10) Piaget faleceu antes de poder terminá-la. (11) Boesch, E.E. (1991). Symbolyc Action Theory and Cultural Psychology. Berlin, Heidelberg: Apringer, Verlab. 177 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org> S u b me t i d o e m 2 4 / 0 9 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e © Ciências & Cognição e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7 Ensaio O que é ser humano? What is to be a human being? Luiz Antonio Botelho Andrade, a, Edson Pereira da Silvab e Eduardo Passosc a Departamento de Imunobiologia, Instituto de Biologia, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, Rio de Janeiro, Brasil; bLaboratório de Genética Marinha, Departamento de Biologia Marinha, UFF, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil; cDepartamento de Psicologia, ICHF, UFF, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil Resumo Este artigo tenta mostrar que o humano do ser humano é mais o resultado de um devir do que o apogeu de um acabamento biológico capturado e engessado por uma concepção tipológica de espécie. A partir do processo evolutivo e de algumas etapas da evolução humana, ressalta-se a importância da sociabilidade para o surgimento da linguagem articulada e desta para a explosão da inventividade humana, o surgimento da cultura e a emergência da autoconsciência. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 178-191. Palavras-chave: australopithecus; autoconsciência; cultura; evolução; linguagem; ser humano. Abstract This essay tries to demonstrate that the adjective “human” attached to the term “human being” is not given as the result or the end of the biological process; it can not be understood under a typological concept of species. Using the evolutionary process and especially some of its steps, the importance of the sociability to the development of language which explains the explosion of human creativity, the appearance of the culture and the emergence of the self-consciousness is underlined. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 178-191. Key Words: australopithecus, self-consciousness, culture, evolution, language, hu - L.A.B. Andrade é Doutor em Imunologia (Instituto Pasteur, França). Atua como Professor Adjunto do Departamento de Imunobiologia, Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação Superior da Faculdade de Educação da UFF. O professor Andrade se dedica ao estudo e desenvolvimento das idéias de Humberto Maturana e Francisco Varela à educação. Endereço para correspondência: Departamento de Imunobioloiga, Instituto de Biologia, Outeiro São João Batista, s/n, Campus do Valonguinho, Niterói, RJ, Brasil. E-mail para correspondência: [email protected]. E.P. Silva é Doutor em Genética (Universidade de Wales-Swansea). Atua como Professor Adjunto do Instituto de Biologia e Chefe do Laboratório de Genética Marinha (UFF), onde trabalha com genética de populações utilizando métodos moleculares. O professor Edson é responsável por artigos científicos nas áreas de Genética e Evolução, bem como sobre a epistemologia e aprendizagem nestas áreas. Endereço para correspondência: Laboratório de Genética Marinha, Instituto de Biologia, UFF, Niterói, RJ, Brasil, 24.001-970. E-mail para correspondência: [email protected]. E. Passos é Doutor em Psicologia (Universidade do Rio de Janeiro). Professor Associado I do Departamento de Psicologia (UFF). Atua como Professor na Graduação e Pós-graduação (Departamento de Psicologia, UFF). Endereço para correspondência: Departamento de Psicologia, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Campus do Gragoatá, s/n, bloco O, segundo andar, UFF, Niterói, RJ. E-mail para correspondência: [email protected]. 178 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição man being. 1. Introdução O principal objetivo deste ensaio é ressaltar o devir e o inacabamento biológico e histórico do ser humano usando, para tanto, o ferramental teórico da Biologia do Conhecer (Maturana e Varela, 1990, 1997; Maturana, 1997). Assim, para dar início à nossa empreitada intelectual, analisamos a questão colocada no título desse artigo a partir de duas etapas importantes do processo evolutivo humano, a saber: (a) do andar bípede ao gênero Homo e (b) do gênero Homo ao Homo sapiens, para alcançar a questão que nos interessa discutir: (c) do Homo sapiens ao vir a ser humano. Ou seja, o que é ser humano? Na primeira parte, chamaremos atenção para o bipedismo e para algumas espécies de australopitecos situadas em pontos chave do processo de hominização. Na segunda parte, destacaremos o surgimento dos artefatos de pedra lascada e as características anatômicas e comportamentais de algumas espécies do gênero Homo, chamando atenção para a dispersão desse gênero para fora da África, berço da humanidade. Na terceira e última parte, avançaremos a idéia e discutiremos a questão de que o humano do ser humano é mais o resultado de um devir do que o apogeu de um acabamento biológico capturado e engessado por uma concepção tipológica de espécie. Assim, ao invés de darmos ênfase à corporalidade do Homo sapiens, ressaltaremos o devir, ou seja, o vir a ser humano. 2. Do andar bípede ao gênero Homo Nossa aventura poderia começar com a descoberta de uma trilha de vinte e sete metros de comprimento com pegadas deixadas por dois indivíduos que caminharam juntos numa superfície mole de cinzas vulcânicas que endureceu por volta de 3,6 milhões de anos atrás. Haja vista as marcas feitas pelo calcanhar, pelo arco das plantas dos pés e pelo dedão não-opositor, as pegadas de outrora se assemelham ao andar bípede humano, de agora (Leakey, 1995). Pela marca temporal e pe- los registros fósseis encontrados, tudo indica que essas pegadas pertenceram a dois indivíduos da espécie Australopithecus afarensis (Johanson e Edey, 1981). A partir de várias evidências fósseis, os especialistas deduziram que o A. afarensis possuía um cérebro pequeno, se comparado ao do homem moderno, mas de igual tamanho ao cérebro de um macaco. Sua estatura corporal era, também, pequena, sendo os machos maiores e mais pesados do que as fêmeas. Os dentes caninos dos machos eram significativamente maiores do que os das fêmeas, acentuando o dimorfismo sexual. Como característica comum da espécie, as mandíbulas do A. afarensis se projetavam mais para frente (prognatismo) do que em qualquer outra espécie pertencente à família hominídea. Com relação às suas proporções corporais - intermediárias entre o macaco e o homem - os braços eram muito longos em relação às pernas e o antebraço longo e forte. Essas características, combinadas com a curvatura dos ossos dos dedos das mãos e dos pés (falanges), permitiam aos membros dessa espécie uma grande agilidade para subir em árvores, à semelhança dos macacos. Pela análise de todos os fósseis encontrados até agora, datados de 3,8 e 2,9 milhões de anos atrás, o A. afarensis atravessou um período de mais ou menos um milhão de anos, sem muita mudança (Leakey, 1995; McHenry e Coffing, 2000; Klein e Edgar, 2005). Embora alguns estudos demonstrem que a marca temporal de 3,6 milhões de anos para o bipedismo deva ser recuada no tempo evolutivo, nenhuma demonstração do andar bípede é mais convincente do que os registros fósseis deixados pelo A. afarensis (Klein e Edgar, 2005). O leitor poderá indagar agora: muito bem, macacos bípedes, mas por que o bipedismo é tão importante? Várias hipóteses têm sido propostas para responder a pergunta acima formulada: (a) adaptação às savanas, (b) vigília contra a ação de predadores, (c) aumento da eficiência locomotora, (d) liberação das mãos para o transporte de alimentos ou da prole (McHenry 179 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> e Coffing, 2000, Klein e Edgar, 2005). Embora todas estas hipóteses sejam plausíveis, elas se apóiam em um argumento muito questionável em biologia – o finalismo. Por tanto, na ausência de uma boa explicação, nos resta um consolo, ou melhor, um consenso: o bipedismo constituiu uma novidade evolutiva importante uma vez que a linhagem de macacos bípedes diversificou e proliferou. Além disso, depois de iniciado o bipedismo, o processo de hominização “sempre caminhou por dois pés”. Embora ainda exista um debate sobre o provável ancestral do gênero Homo (Asfaw et al., 1999), algumas simplificações podem ser feitas sem comprometer os objetivos desse ensaio – ênfase no processo de humanização. Nesse sentido, é importante ressaltar a descoberta de fragmentos de um hominídeo descoberto em Afar, na Etiópia, em 1999. Esse material foi datado em 2,5 milhões de anos e, após análise, classificado como uma “nova” espécie - Australopithecus garhi (Asfaw et al., 1999). Como afirmam vários autores, essa espécie se encontra no lugar certo e na localização temporal correta para ser considerada como um possível ancestral do gênero Homo. O primeiro registro fóssil do gênero Homo – um pedaço de crânio - foi encontrado por Jonathan Leakey na garganta Olduvai, Tanzânia, África (Leakey, 1964). A pouca espessura relativa do crânio indicou que este indivíduo tinha uma constituição ligeiramente mais leve do que qualquer uma das espécies conhecidas de australopitecíneos. Ele tinha dentes molares menores e, o que é mais significativo, seu cérebro era quase 50% maior (650 cm3) do que o cérebro de qualquer outro australopiteco já encontrado (350 cm3). Ele recebeu o nome de Homo habilis - homem habilidoso - pela grande correlação temporal e estratigráfica existente entre os registros fósseis dessa espécie e os primeiros artefatos de pedra lascada (Leakey, 1995; Klein e Edgar, 2005). 3. Do gênero Homo ao Homo sapiens Em torno de dois milhões e quinhentos mil anos atrás uma criatura bípede e franzina © Ciências & Cognição descobriu que se batesse uma pedra contra a outra, de maneira adequada, produziria lascas finas capazes de penetrar e cortar o couro de um animal morto, podendo, assim, descarnálo completamente. Essa descoberta aumentou consideravelmente as chances de sobrevivência desta espécie e da linhagem que a sucedeu (McHenry e Coffing, 2000, Klein e Edgar, 2005). Esta tecnologia primitiva de produção destes artefatos é denominada de indústria olduvaiana, em referência ao importante sítio arqueológico conhecido como a “Garganta de Olduvai”, na Tanzânia, onde muito destes artefatos foram encontrados (Leakey, 1995; McHenry e Coffing, 2000; Klein e Edgar, 2005). Se por um lado é certo que o Homo habilis produziu e utilizou artefatos de pedra lascada, não é evidente, por outro, que esse comportamento possa ser chamado de cultura, no sentido que discutiremos no próximo tópico. Um forte argumento para não incluir a produção destes primeiros artefatos de pedra no legado cultural da humanidade é o fato deles terem sido produzidos, por mais de um milhão de anos, sem nenhuma variação. Voltando aos registros fósseis do gênero Homo, é importante ressaltar a descoberta do esqueleto de uma criança - o menino de Turkana - que media aproximadamente 1,62 metros quando morreu, mas que poderia atingir cerca de 1,80 metros, se tivesse sobrevivido até a idade adulta. Esse fóssil foi classificado como Homo ergaster (McHenry e Coffing, 2000, Klein e Edgar, 2005). Os membros dessa espécie apresentavam as mesmas proporções corporais mostradas pelos seres humanos atuais no que tange ao tamanho e proporções entre braços e pernas. Com relação ao volume do cérebro, estimado em 880 cm3, ele era maior do que o do H. habilis (650 cm3) e menor do que o do homem moderno (1.350 cm3), em valores absolutos. A descoberta do fóssil do menino de Turkana teve um grande valor para a paleontologia e antropologia. Assim como Lucy (fóssil de A. afarensis) não deixou dúvida quanto ao fato de pertencer à categoria dos macacos bípedes, o menino de Turkana, i- 180 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> gualmente, não deixou dúvida quanto ao fato de pertencer à linhagem que deu origem aos humanos. Algumas de suas características evidenciam isto: testa chata e recuada; nariz projetado para frente, com narinas orientadas para baixo. Nesse ponto, diferenciava-se do H. habilis, que possuía narinas embutidas no rosto, semelhantes às dos macacos. Apesar das mandíbulas serem muito projetadas para frente e os dentes de mastigação significativamente maiores do que os nossos, as feições do menino de Turkana forneceram uma demonstração inequívoca a respeito da estrutura corporal de nossos antepassados (McHenry e Coffing, 2000, Klein e Edgar, 2005). Uma característica marcante do H. ergaster - a diminuição do comprimento dos braços, em relação às pernas - assinala o abandono final de qualquer utilização tipicamente símia das árvores, seja para alimento ou para refúgio. É importante ressaltar que a exclusividade da vida no solo significou uma ênfase maior no andar bípede, o que poderia explicar, no decorrer do tempo evolutivo, o estreitamento dos quadris. Nas fêmeas, esse estreitamento acarretou, também, o estreitamento do canal vaginal, a diminuição do tempo de desenvolvimento intra-uterino, o nascimento precoce e, por conseguinte, a expansão da neotênia e uma maior dependência do recém nascido aos seus progenitores (Leakey, 1995; McHenry e Coffing, 2000; Klein e Edgar, 2005). Estas duas últimas conseqüências serão ressaltadas quando discutirmos o processo de humanização. Alguns autores enfatizam a existência de uma relação inversa entre o dimorfismo sexual e o comportamento cooperativo. Essa idéia é fortalecida pela observação de que, em algumas espécies de símios, quando os machos são muito maiores do que as fêmeas, eles tendem a competir intensamente entre si pelas fêmeas sexualmente receptivas, mas não estabelecem com as mesmas o que os especialistas denominam de relações cooperativas. Assim, é sugestivo pensar que, pari passo à redução do dimorfismo sexual em nossa linhagem, intensificou-se o comportamento cooperativo entre macho e fêmea. Se imaginarmos que a intensificação do comportamento coo- © Ciências & Cognição perativo entre macho e fêmea tenha aumentado também a atenção e o cuidado dispensado à prole, teremos assim o embrião do núcleo familiar, fundamental ao processo de humanização, como discutiremos mais adiante. Acredita-se que o H. ergaster – que significa homem trabalhador – tenha sido o ancestral comum do H. erectus e do H. heidelbergensis (McHenry e Coffing, 2000; Klein e Edgar, 2005). As características do Homo ergaster e do Homo erectus são tão similares entre si que alguns autores preferem a denominação de “complexo ergater/erectus”. Outros utilizam de critérios temporais e geográficos para fazerem a distinção entre essas espécies e, assim, consideram a emergência do Homo ergarter como anterior à do Homo erectus e restringem, ao primeiro, o espaço geográfico que constitui o continente africano. É importante ressaltar que os indivíduos das espécies Homo ergaster, Homo erectus e Homo heidelberguensis possuíam uma anatomia, uma fisiologia e uma tecnologia (corpo robusto, inclusão da caça na dieta, produção de artefatos de pedra e uso do fogo) que lhes permitiam andar por longas distâncias e, portanto, migrar e habitar territórios nunca dantes ocupados. Assim, por exemplo, o Homo erectus chegou à China e à Indonésia e, por algum desvio para o norte e/ou oeste, chegou, também, à Europa. Com relação ao domínio tecnológico demonstrado pelo complexo ergaster/erectus, há de se remarcar um novo tipo de artefato de pedra, mais sofisticado, o machado de mão, em forma de lágrima. Há registros deste tipo de utensílio em vários sítios arqueológicos na África, datados de cerca de 1,4 milhões de anos. Os arqueólogos chamam a produção deste novo tipo de utensílio de indústria acheulense, em alusão ao sítio arqueológico de Saint Acheul, localizado na França, onde este mesmo tipo de produção industrial foi encontrado, em uma versão temporalmente posterior. Embora a forma do machado de mão já exija um modelo mental para produzi-lo, não consideramos que esse seja ainda o ponto de inflexão para o desencadeamento da explosão da inventividade humana e o surgimento da cultura. Há de se destacar, no entanto, que 181 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> independente da discussão acadêmica sobre a inclusão ou não da indústria acheulense no conceito de cultura, a confecção dos machados de mão e o fogo aumentaram ainda mais a chance de sobrevivência da linhagem que dominou essas técnicas, seja pela utilização das mesmas como proteção, seja pelo enriquecimento alimentar, com maior aporte protéico à dieta, derivado das atividades de caça animal e preparação do alimento. Voltando ao processo evolutivo da linhagem humana, destacaremos agora o surgimento do Homo heidelbergensis (600 a 500 mil anos atrás). Essa espécie parece ter evoluído, abruptamente, no complexo ergaster/erectus. Alguns autores mostraram que o Homo heidelbergensis compartilhava traços primitivos comuns, tanto com Homo ergaster quanto com o Homo erectus, incluindo o rosto largo e projetado um pouco para frente, mandíbula inferior sem queixo, dentes grandes, extensas arcadas superciliares, osso frontal (testa) chato e baixo, parede craniana grossa. Por outro lado, divergia do H. ergaster e do H. erectus sob vários aspectos: cérebro relativamente grande, medindo 1.200 cm3, maior do que o do ergaster (900 cm3) e do erectus (1000 cm3), arcadas superciliares mais curvas - em oposição à arcada em forma de prateleira (Leakey, 1995; McHenry e Coffing, 2000; Klein e Edgar, 2005). As evidências arqueológicas sugerem que o Homo heidelbergensis foi o ancestral comum que deu origem às espécies Homo sapiens e Homo neandertalensis. A primeira evoluiu na África, há cerca de 180 mil anos atrás. Os registros fósseis do H. neandertalensis, no entanto, foram encontrados principalmente na Europa, mas já se demonstrou sua dispersão para fora deste continente, particularmente na Ásia. A biologia molecular e alguns marcadores genéticos (DNA mitocondrial) sugerem que uma pequena população da espécie H. sapiens emigrou, com sucesso, para fora da África em torno de 70 mil anos atrás. Essa pequena população proliferou e se dispersou para várias partes do mundo tais como a Europa, a Ásia e também a América. A chegada neste último continente parece ter ocorrido © Ciências & Cognição em pelo menos três levas, uma em torno de 25 mil e as outras duas em torno de 15 e 12 mil anos atrás (Groves, 1994; Klein e Edgar, 2005). Embora saibamos que o Homo sapiens substituiu os seus contemporâneos Homo neandertalensis - que já se encontravam na Europa, ainda há um debate acadêmico a respeito de como essa substituição ocorreu (Groves, 1994). 4. Do Homo sapiens ao vir a ser humano Neste tópico, advogaremos que o aperfeiçoamento da linguagem, em algum período de nossa pré-história mais recente, produziu uma dimensão inteiramente nova para o Homo sapiens - a cultura. Seguindo essa linha argumentativa, demarcaremos o surgimento da linguagem, a explosão da inventividade humana e o principal ponto deste ensaio – o processo de humanização. Tendo anunciado a nossa linha argumentativa para este tópico, iniciaremos com alguns comentários sobre a linguagem, a partir do paradigma da Biologia do Conhecer. Assim, no âmbito desse paradigma, a linguagem é um processo progressivo de orientação e re-orientação de condutas entre indivíduos, ou seja, uma coordenação de coordenação condutual consensual (Maturana, 1997). Mas o que é uma coordenação de coordenação condutual consensual? Como ela se estabelece? Qual o seu significado para a humanização? Para responder essas questões, proporemos um exemplo, um cenário. Imaginemos uma situação de caça em que o animal caçado (touro enfurecido) é muito mais forte do que o caçador (hominídeo). Visto assim, a única maneira do caçador obter sucesso nessa difícil empreitada é através de um “chamamento”, da formação de um coletivo. No entanto, esse coletivo só terá sucesso se as ações individuais estiverem, relativamente, coordenadas. Cabem aqui dois comentários importantes para nossa discussão. No primeiro, assumimos como pressuposto que os artefatos até então produzidos por esse hominídeo não tinham o valor de armas com suficiência para superar a dificuldade dessa caça específica - 182 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> um pressuposto razoavelmente plausível. Em segundo lugar, é preciso ressaltar que o “chamamento” diz respeito à coordenação de coordenação de condutas e não ao fato de se encontrar um parceiro, uma vez que o comportamento societário é comum a várias espécies, particularmente nos mamíferos. Chamamos a atenção do leitor para o fato de que, a todo o instante, nós, seres humanos, coordenamos as nossas condutas com as de outra pessoa. Se essa observação for um pouco mais aguçada veremos que, a todo o momento, novas coordenações são geradas sobre as primeiras e, assim, sucessivamente. A esse processo recursivo de coordenar uma ação sobre outra, já coordenada - como se déssemos uma volta sobre a volta – pode ser denominado “coordenação de coordenação”. Há de se fazer agora um comentário importante para o entendimento da unidade básica da linguagem, qual seja: uma coordenação de coordenação de ação entre dois indivíduos só ocorre se houver, em ambos, uma vontade, um desejo e a partir daí um consenso. Como toda ação humana é conduta, chega-se, com isso, à unidade básica da linguagem: uma coordenação de coordenação condutual consensual (Maturana, 1997). Dito isto, voltemos ao nosso exemplo anterior no qual os caçadores primitivos enfrentam um touro enfurecido. Advogamos que, para se obter sucesso nessa empreitada arriscada, aqueles caçadores de outrora já deveriam estar imersos em alguma rede lingüística, mesmo que rudimentar, na qual gestos, disposições corporais, grunhidos ou mesmo algum tipo mais elaborado de som, se tornaram palavras no devir, ou seja, na recursividade do próprio processo. A partir desta reflexão, podemos imaginar pequenas conversações, gestuais ou sonoras, do tipo: - Oi! - Olá! (coordenação); - Veja o touro! - Onde? - Atrás! (coordenação de coordenação) - Vamos correr! Não, vamos pegá-lo (conduta consensual). © Ciências & Cognição Deixando os exemplos lingüísticos, nos propomos agora a imaginar situações e/ou cenários que pudessem, num passado longínquo, favorecer a recorrência de encontros e de re-encontros entre nossos antepassados e, assim, possibilitar o surgimento da linguagem. Embora nunca possamos ter certeza de como era a vida diária dos nossos antepassados, podemos utilizar nossos conhecimentos atuais para imaginar e recriar alguns cenários, como esses que estão propostos logo a seguir. 4.1. Redução do dimorfismo sexual e sociabilidade Embora possamos detectar um grau de sociabilidade em todos os primatas, este fenômeno é particularmente bem desenvolvido entre os humanos. Para explicar o aumento de relações cooperativas entre os machos e as fêmeas, chamaremos atenção para a ocorrência de uma relação inversa entre dimorfismo sexual e sociabilidade. É bem conhecido pelos primatologistas que, em muitas espécies de macacos, quanto maior a diferença corporal entre machos e fêmeas, maior será a competição entre os machos maduros por oportunidades de acasalamento. Assim, por exemplo, entre os babuínos das savanas, os machos são duas vezes maiores em tamanho do que as fêmeas e se observa que eles competem fortemente entre si por domínio territorial e por oportunidades de acasalamento. Os machos de chipanzés, por outro lado, apresentam um comportamento mais cooperativo entre si e isto parece ser o resultado da redução, nessa espécie, do dimorfismo sexual (Leakey, 1995; Klein e Edgar, 2005). É importante ressaltar que outros fatores, além da redução do dimorfismo sexual, devem ter contribuído para a sociabilidade nos primatas, dentre os quais, a própria sexualidade, como demonstrado por Frans B. M. de Waal (2007), ao comparar o comportamento dos chipanzés com o dos bonobos. Sabendo-se que os machos australopitecíneos seguiam o mesmo padrão dimórfico dos babuínos, é razoável supor que a cooperação entre eles fosse menor do que àquela que ocorreu, supostamente, nas espécies do gêne- 183 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> ro Homo, com a redução do dimorfismo sexual. Seguindo essa linha de raciocínio, acredita-se que as mudanças fisiológicas e comportamentais que ocorreram nas fêmeas ao longo da linhagem evolutiva humana, fazendo com que as mesmas se tornassem mais receptivas sexualmente aos machos, independentemente do período fértil, possam ter contribuído para o aumento da freqüência dos encontros e dos reencontros entre macho e fêmea e, por conseguinte, do estabelecimento de um comportamento mais cooperativo entre ambos. Se acrescentarmos a esse prazer do encontro cooperativo a dinâmica que envolvia o cuidado dispensado à prole, teremos o surgimento do núcleo familiar. 4.2. O amor como emoção fundamental para a sociabilidade Para discutir a assertiva explicitada acima, é importante entender que as emoções, diferentemente do que a nossa tradição cultural costuma associar com sentimentos, são disposições corporais (ou estados do corpo) que nos abrem ou nos fecham à possibilidade de realizar certas condutas (Bloch, 2002; Maturana e Bloch, 2003). Assim, por exemplo, não se espera uma conduta gentil no âmbito emocional do ódio. Destarte, quando o amor é apontado como emoção fundamental para a construção da sociabilidade, não se está falando de sentimento, mas apontando a disposição corporal que permitiu, ao primata bípede, a aceitação do outro, de forma mais intensa e perene, na convivência. E porque o amor seria assim tão importante para a sociabilidade e para a humanização? Fundamentalmente, porque o amor permitiu o prazer na espontaneidade dos encontros e dos reencontros e, assim, a convivência ininterrupta entre humanos (Maturana, 1997). Seguindo essa linha de raciocínio que considera o amor como emoção fundamental para a convivência (Maturana, 1997), retornaremos ao ponto de discussão sobre o nascimento precoce do bebê e a expansão da neotênia. Se considerarmos que durante o processo evolutivo da linhagem humana houve um © Ciências & Cognição marcante estreitamento da pélvis e, por conseguinte, do canal vaginal, podemos inferir que o nascimento precoce significou uma vantagem adaptativa em face de uma alta taxa de mortalidade durante o nascimento. Se assim o foi, tornou-se fundamental uma maior atenção dos pais para com a prole excessivamente frágil. Se aceitarmos que a expansão da neotênia e tudo que ela implicava (e ainda implica) desencadearam mudanças emocionais mais perenes, de aceitação sem maiores exigências, e que essas mudanças foram conservadas transgeracionalmente, isto explicaria o aumento da sociabilidade entre humanos e, de acordo com o que estamos defendendo aqui, o ambiente adequado ao surgimento da linguagem. O correspondente dessa emoção fundamental de aceitação do outro, enquanto legítimo outro, na convivência, é denominado, na nossa cultura, de amor. 4.3. Cooperação em atividades complexas, perigosas ou prazerosas Assim como foi mostrado no exemplo da caça ao touro, a cooperação deve ter sido benéfica para a linhagem evolutiva que levou ao homem moderno. Alguns antropólogos argumentam que a cooperação deve ter sido importante não só para a coesão e sociabilidade do grupo, mas também como defesa contra predadores ou mesmo contra grupos rivais. Outra atividade complexa, que deve ter envolvido uma mudança organizacional centrada na sociabilidade e na recursividade dos encontros, deve ter sido aquela produzida pela construção e utilização de abrigos coletivos. Se acrescentarmos a esses abrigos o conforto gerado com o domínio do fogo - aquecimento, possibilidade de um sono ininterrupto, preparação da carne e o seu compartilhamento - a convivência e a sociabilidade deve ter sido muito intensificada. O fogo criou o lar, este espaço de convivência onde ocorriam o partilhar de alimentos, a elaboração de ferramentas de pedra, a proteção mútua, as relações sexuais e todo um sistema complexo de reciprocidade e cooperação. Acreditamos que o estabelecimento e a perenidade destes espaços de convivência favoreceram aquilo que veio a 184 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> surgir bem mais tarde no tempo evolutivo: o aperfeiçoamento da linguagem. É importante explicitar neste ponto de nossa argumentação que não estamos advogando que a convivência tenha induzido mudanças genéticas que levaram ao aperfeiçoamento da linguagem. Estamos simplesmente dizendo que a conservação transgeracional deste modo particular do viver na linguagem, facilitou a fixação de mudanças genéticas que reforçaram esse mesmo modo de viver (Maturana e Podozis, 1992), ou seja, o fluir do viver humano, na linguagem. 4.4. Aperfeiçoamento da linguagem Como sugere Maturana (1997), a linguagem originou-se na intimidade de pequenos grupos de nossos antepassados que conviviam na sensualidade, compartilhando alimentos, na participação dos machos na criação das crianças e nas coordenações de coordenações de conduta que isso implicava. A essa rede cooperativa da comunidade lingüística, subjaz o amor como emoção básica que possibilitou tanto a aceitação quanto a legitimidade do outro, fundado na relação. Embora esta história transgeracional de interações recorrentes, própria da linguagem, tenha surgido lenta e paulatinamente em nossa linhagem evolutiva, advogaremos agora que o surgimento da linguagem falada ou o seu aperfeiçoamento produziu a explosão da inventividade humana. Essa hipótese tem sido levantada por vários antropólogos, dentre os quais Diamond (1997). Este autor afirma que a linguagem, em si mesma, já é pura invenção: cada sentença é uma nova invenção, produzida pela combinação de elementos familiares. 4.5. O vir a ser humano Neste subitem reforçaremos a idéia de que o humano do ser humano surge com a dinâmica relacional própria do modo de viver humano. Não queremos dizer com isso que estamos negando a corporalidade do Homo sapiens ao fazer referencia ao humano, esta- © Ciências & Cognição mos, simplesmente, afirmando que essa corporalidade, por si só, não é suficiente. Interessa-nos a discussão que na literatura se apresenta como o caso das “crianças selvagens”. São casos de crianças criadas sem contato, ou com muito pouco contato com outros seres humanos. Linnaeus, em seu Systema Naturae, de 1758, já descrevera seis casos do que ele designou de Homo ferus, elo perdido entre o homem e os primatas, que o naturalista buscava recuperar. Malson (1967) distingue, entre as crianças selvagens, aquelas que foram criadas por animais daquelas que foram enclausuradas e/ou privadas do contato humano, como são os casos de Victor de Aveyron, encontrado vivendo sozinho nos Pirineus, no ano de 1799, e de Kasper Hauser, jovem que vivia confinado em Nuremberg e que foi descoberto em 1828. Há registros de 105 casos encontrados em diferentes regiões do mundo, sendo a Índia o país onde se tem notícias do maior número deles. Embora se possa crer que estes registros sejam todos antigos, alguns casos recentes contraria esta crença. Assim, em 2004, foi identificado na Rússia um menino criado por cães e, logo no ano seguinte, em 2005, foram registrados seis casos de crianças selvagens que viviam enclausuradas nos EUA, Alemanha, Romênia, Quênia e Índia (http://www.feralchildren.com). Aprofundaremos nossa discussão narrando a história de duas crianças hindus que foram “resgatadas” de uma família de lobos com a qual elas viviam no norte da Índia. Elas foram criadas isoladas de qualquer contato humano e “resgatadas” da família lobo pelo reverendo anglicano J. Singh, em 1920. Quando elas foram resgatadas, uma das meninas tinha cerca de oito anos e a outra era muito mais jovem. Elas foram transferidas para o orfanato dirigido pela família do missionário e lá receberam o nome de Amala, a mais jovem, e, a outra, de Kamala. Quando foram transferidas para o orfanato, as meninas não sabiam andar em dois pés, mas se moviam com desembaraço andando de quatro. Elas não sabiam falar, comiam carne crua, lambiam os líquidos e se aninhavam, de quando em vez, nos cantos do 185 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> quarto. À noite, quando ficavam mais ativas, uivavam e gemiam com o desejo de fugirem. Elas rejeitavam o contato humano, preferindo a companhia uma da outra ou de cães. O gosto quase exclusivo por carne levava Kamala a caçar frangos para comê-los e, de quando em vez, enterrava as carcaças ou entranhas no chão. Com o passar do tempo, Kamala mudou seus hábitos alimentares e seus ciclos de atividade (Malson, 1967; Newton, 2002). Amala morreu em setembro de 1921, um ano após a sua transferência para o orfanato, enquanto Kamala sobreviveu por mais oito anos, vindo a morrer em 1929. Depois da morte das duas crianças, o reverendo Singh descreveu a evolução psicológica de Amala e Kamala. Considerando que tanto o bipedismo quanto a linguagem são pontos importantes para a nossa discussão, nos limitaremos a transcrever, a partir das observações do reverendo Singh, algumas poucas passagens que consideramos ilustrativas e marcantes. Com relação ao refinamento da motricidade e do andar, o reverendo disse: “progressiva e muito lentamente a motricidade da criança humanizou-se”. Ao fim de dez meses no orfanato, Kamala estendia a mão para solicitar alimentos. Depois de um ano e quatro meses (fevereiro de 1922), ela conseguiu se erguer com o auxílio de um apoio. Um ano mais tarde conseguiu ficar de pé, sem o auxílio de apoio. Em dezembro de 1926 conseguiu andar com os dois pés, com certa desenvoltura. Entretanto, voltava a assumir a marcha lupina e a correr de quatro toda vez que ela se sentia em apuros (Malson, 1967; Newton, 2002). Com relação à linguagem, Kamala aprendeu a pronunciar duas palavras: “ma” que significava mãe, ao referir-se à esposa do missionário, e “bhoo” para exprimir fome ou sede. Em 1923, dizia sim ou não com a cabeça e já pronunciava oralmente o sim - “hoo”. Em 1924, conseguiu expressar “eu quero arroz” (“am jab bha”). Em 1926, já dominava três dezenas de palavras e quando estas lhe faltavam, recorria aos gestos. Já no final de sua vida, em 1929, dominava cinqüenta palavras, reconhecendo o nome das pessoas © Ciências & Cognição (Malson, 1967; Newton, 2002). Embora Kamala tenha aprendido a falar algumas dezenas de palavras e a andar com os dois pés, a família do reverendo teria dito que eles nunca a sentiram, verdadeiramente, humana. Este relato demonstrou que a triste condição de Amala e Kamala não era devida a uma incapacidade física ou mental inata, mas, principalmente, à ausência do contato humano e/ou do modo de viver humano, numa fase precoce da ontogenia. Ou seja, embora as meninas-lobo possuíssem a anatomia e a fisiologia do Homo sapiens, elas não puderam compartilhar a dinâmica relacional humana em uma janela importante do desenvolvimento – a primeira infância. Interessa-nos perguntar, neste ponto de nossa discussão, que dinâmica relacional é essa que nos faz humanos? Muitos autores formularam esta pergunta e a responderam utilizando referenciais de natureza mais filosófica (Heidegger, 1982; Nietzsche, 1873/1974), científica (Morin, 1979; Maturana, 1992; Changeaux, 1985) ou religiosa (Sto Tomáz de Aquino, 1258/1973). Para respondê-la, vamos nos basear nas contribuições advindas do arcabouço teórico da Biologia do Conhecer (Maturana, 1997; 2000; Maturana e Bloch, 2003). Assim, para a Biologia do Conhecer, o humano e toda construção humana, ideal e material, se dá com e na linguagem (Maturana, 1997, 2000). Como nos mostra Maturana (1997), o humano surge no entrelaçamento do linguajar e do emocionar, a que chamamos de conversar. Destarte, nós, membros da espécie Homo sapiens, nos tornamos humanos ao viver no entrecruzamento de muitas redes de conversações, de muitos domínios operacionais (Maturana, 1992). Se aceitarmos que o conversar é o entrelaçamento do linguajar com o emocionar, segue-se que as redes de conversações em que vivemos interferem na dinâmica entre o nosso ser e o nosso atuar. Nesta ótica, fica mais fácil entender a transformação do homem no devir das redes de conversações que ele mesmo configura. Ou seja, atuamos de acordo como somos, mas também somos de acordo como atuamos (Eicheveria, 1994). 186 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> 4.5.1. Surgimento da Cultura Se aceitarmos que o humano é constituído no conversar, o viver humano se dá como uma rede de conversações ou, de uma forma mais ampla, na trama de várias redes de conversações. Estas diferentes redes de conversações constituem o que nós apontamos como diferentes culturas. Nessa perspectiva e de acordo com essa linha argumentativa, se um grupo humano mantiver, recursivamente, uma rede de conversações relativamente durável no tempo, estaremos diante de uma cultura. Como a conversação implica tanto o linguajar quanto o emocionar, há de se incluir as emoções na definição de cultura. Assim: “uma cultura é uma rede de conversações que define um modo de viver, um modo de estar orientado no existir, um modo de crescer no atuar e no emocionar. Cresce-se numa cultura vivendo nela como um tipo particular de ser humano na rede de conversações que a define.” (Maturana, 1997) Não queremos afirmar que toda a cultura humana possa ser reduzida à linguagem. Estamos afirmando apenas que não há nenhum lugar fora da linguagem desde o qual podemos observar a cultura. Como nos mostra Echeverría (1994), somente através do mecanismo de reconstrução lingüística é que podemos ter acesso aos fenômenos nãolinguísticos de nossa existência. Assim, no contexto que estamos discutindo, a linguagem humana não somente precede todas as características apontadas como indicadoras da cultura - idioma, crenças, concepções, sistemas de conhecimento, normas, hábitos, costumes, arte, símbolos, objetos - como também é geradora das mesmas. Tendo em vista que essa dimensão gerativa da linguagem não é auto-explicativa, mostraremos como alguns dos epifenômenos anteriormente citados, tais como a arte, os símbolos, os sistemas de conhecimento e a © Ciências & Cognição própria reflexividade, ou autoconsciência, surgem com a linguagem. Ainda que seja muito forte afirmar que a linguagem da arte surge com a arte da linguagem, muitos autores corroboram com esta afirmação (Leakey, 1995; Charbonnier e Lévi-Strauss, 1989). A seguir apresentaremos alguns exemplos dessa correlação. Dentre as várias manifestações artísticas, daremos prioridade às pinturas rupestres surgidas no período conhecido como paleolítico superior. Assim, os rinocerontes desenhados a carvão, os touros e os cavalos multicoloridos encontrados em várias cavernas da Europa - Lascaux, Chauvet, Altamira, etc. - são exemplos da resplandecência dessa arte e do comportamento simbólico de nossos antepassados (Leakey, 1995; Klein e Edgar, 2005). Com relação às pinturas rupestres, duas questões interessantes podem ser formuladas: como explicar o surgimento das mesmas e porque elas levaram um tempo evolutivo longo para se manifestar? Embora estas duas questões sejam difíceis de responder, alguns autores sugerem a existência de uma relação direta entre as pinturas rupestres e os diversos rituais culturais que as ensejavam tais como a fartura da caça, a criação de ambientes propícios à entoação de cantos, acompanhados ou não por instrumentos musicais, de motivação mais imanente ou transcendente e o xamanismo (Leakey, 1995; Klein e Edgar, 2005). Com relação ao longo intervalo de tempo que levou para o surgimento das manifestações artísticas e simbólicas, alguém poderia tentar explicá-lo, seja pela ausência de matéria prima disponível aos “artistas potenciais de outrora”, seja pela insuficiência de um desenvolvimento sensório-motor mais refinado, ou seja, uma habilidade especial. Estas explicações ficam, a nosso ver, prejudicadas, principalmente quando consideramos que o subproduto das fogueiras - o carvão - já era regularmente disponível há, pelo menos, 250 mil anos atrás e que o simples ato de imprimir as mãos ou os dedos nas paredes das cavernas, como faria qualquer uma de nossas crianças de agora, dispensaria qualquer habilidade especial. Se não foi pela falta de maté- 187 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> ria prima nem por uma incapacidade motora ou habilidade especial, o que foi então? Advogamos que o aperfeiçoamento da linguagem permitiu tanto a emergência do comportamento simbólico quanto o surgimento das técnicas de pintura que envolvia, entre outras coisas, a busca, o transporte e a mistura de pigmentos e fixadores naturais. Afirmamos isso porque entendemos que a mistura, enquanto processo, é uma coordenação de coordenação de ações e, portanto, é linguagem. Os preparativos para a execução das pinturas policromadas em locais de difícil acesso, que envolveria, entre outras coisas, a produção de uma iluminação artificial e até mesmo a montagem de “andaimes”, só poderia ocorrer na linguagem. Destarte, reforçamos a idéia de que os preparativos e as técnicas básicas de pintura de nossos antepassados já deveriam ser produtos de redes de coordenações de coordenações de ações bem sofisticadas, provavelmente a linguagem falada. Continuando a nossa discussão sobre a linguagem da arte e a arte da linguagem, é importante fazer uma referência ao comportamento simbólico de nossos antepassados, haja vista que os animais representados nas paredes das cavernas nem sempre eram os mais consumidos. O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss nos brinda com uma magnífica expressão antropológica produzida a partir dos estudos com os povos San do Kalahari e com os aborígines australianos: “certos animais eram representados mais frequentemente não porque eram bons para comer, mas sim porque eram bons para se pensar” (Lévi-Strauss, apud Leakey, 1995). Para nós, tanto a representação do que se come quanto a representação do que se pensa é simbólico e os símbolos, por não existirem em si mesmos, surgem na linguagem e com a linguagem. É por isso que podemos criar novos símbolos a partir do fluir recursivo de nossas conversações. Antes de passarmos a correlacionar a linguagem com os diferentes sistemas de conhecimento, gostaríamos de ressaltar que a emergência do comportamento simbólico não surgiu na Europa, mas sim na África. Isso ficou demonstrado com a descoberta, no © Ciências & Cognição Quênia, de vários fragmentos de ovos de avestruz talhados em forma de contas, datadas de cerca de 40 mil anos. Pelo imenso número de sobras quebradas ou imperfeitas, foi sugerido que aquelas populações de outrora dedicavam muitas horas de trabalho para a fabricação das referidas contas, sem nenhum motivo utilitário imediato (Ambrose, 1998). Essa marca temporal de 40 mil anos para o surgimento do comportamento simbólico na África pode ser ainda recuada para 75 mil anos atrás, ou mesmo mais, considerando a descoberta do sítio arqueológico “Caverna de Blombos”, África do Sul, onde foi encontrado um número relativamente grande de conchas da espécie Nassarius kraussianus, perfuradas intencionalmente. Estas e outras observações corroboram com a tese de que a emergência do comportamento simbólico e o desencadeamento da inventividade humana tiveram início na África, bem antes das populações humanas se deslocarem para a Europa. Por conseguinte, a África é o berço da humanidade (Klein e Edgar, 2005). Já tivemos a oportunidade de apresentar a vinculação entre a linguagem e os sistemas de conhecimento (Andrade e Silva, 2005). Assim, de forma bem sintética, se prestarmos atenção para o que é produzido por alguém quando esse alguém evoca a noção de conhecimento, notaremos que esse produto não passa de enredos explicativos para enredos fenomênicos. Na qualidade de enredos, eles estão, necessariamente, na linguagem. 4.5.2. A emergência da autoconsciência Dedicaremos nossos últimos comentários para a emergência da autoconsciência no devir do processo de humanização. Ainda que este termo - autoconsciência – suscite outros termos correlatos – mente e pensamento - em torno dos quais é travado um intenso debate acadêmico na contemporaneidade (Searle, 1998), vamos nos restringir a comentar a capacidade do homem em fazer referência a si e ao mundo com o qual interage. Acreditamos que a dificuldade de compreender a autoconsciência como um fe- 188 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> nômeno imanente, particular ao viver biológico humano, reside no fato de termos de encontrar o mecanismo pelo qual somos capazes de distinguir a nós mesmos, como se fossemos entidades independentes de nosso próprio viver e, ao mesmo tempo, de especificarmos um eu que nos habita e que, portanto, é dependente de nossa biologia. Este aparente paradoxo pode ser resolvido se aceitarmos que a operação de autoconsciência é uma distinção reflexiva de um “eu” forjado na linguagem, de tal forma que este eu não somente constitui o corpo que surge na distinção, mas também que este eu pode ser referenciado, como uma abstração, no fluir da rede lingüística. Para tornar mais claro este argumento, desdobraremos a questão em duas perguntas, quais sejam: 1- Como este eu, corpóreo e abstrato, é capaz de fazer referência ao mundo e se autoreferenciar, ou seja, como nos tornamos observadores? 2- Como os laços da rede lingüística, que nos liga uns aos outros e ao mundo, mesmo se mantendo na exterioridade de nossa corporalidade, nas franjas das relações interpessoais, cria em nós o que, em nós, é tão intimo - a autoconsciência? Vamos tentar responder estas duas perguntas e esperamos que, ao final, tenhamos explicado nossa indagação inicial, qual seja: como nos tornamos autoconscientes no devir? Cônscios de que toda explicação exige tanto uma condição formal, mecanismo gerativo, quanto uma informal, aceitabilidade, convidamos o leitor para participar conosco da formulação de um mecanismo gerativo para a autoconsciência. Antes, porém, faremos uma solicitação, sem a qual será impossível caminharmos juntos: é indispensável romper com a crença de que representamos os objetos que estão no mundo em nossa mente, como um espelho. A razão de nosso alerta e da controversa que ela suscita advém do fato de que tanto a célula nervosa quanto o sistema ner- © Ciências & Cognição voso, como um todo, é sensível somente à intensidade dos sinais químicos de seu próprio modo de operar e, portanto, não podem captar e processar “informações” ou qualidades do mundo lá fora, como música, cheiro, sabor, cores, etc. Como nos mostra Heins Von Foerster (1994) não há uma correspondência, ponto a ponto, do que acreditamos ser o mundo lá fora com o que acreditamos ser o mundo de dentro - nossa mente. Somente para se ter uma idéia da ordem de grandeza e do diferencial que separa estes dois mundos, para os duzentos ou trezentos milhões de receptores sensóreos, há cerca de dez bilhões de sinapses no sistema nervoso, sugerindo que as dinâmicas internas de nosso próprio organismo, ao se entrecruzarem com as perturbações advindas do meio externo, participam na criação interna do que o organismo "vê", “sente” e “nomeia”, tais como cores, sons e sensações. Quais as conseqüências desse entendimento para nossa discussão? A conseqüência mais fundamental é a de que o mundo lá fora, com os seus objetos e acontecimentos, não pré-existem ao observador, pois que eles não são entidades primárias ao ato de observar e, portanto, independentes da biologia do observador. As características que supostamente são dadas às coisas mostram-se também como características do observador. As cores não estão lá fora, independentes de nossa biologia, mas também não estão cá dentro, independentes de nosso mundo cultural. Se isso é assim, nega-se tanto o realismo de um mundo predeterminado que o organismo é capaz de representar quanto o idealismo que toma a percepção como uma projeção de um mundo interno predeterminado (Varela et al., 1993). É com essa dupla negação que se diz que os objetos não antecedem à distinção que deles é feita pelo observador. Os objetos surgem na práxis do viver do observador e o que é essa práxis do viver humano senão as coordenações de coordenações de ações que realizamos em nosso cotidiano? Seguindo esta linha de raciocínio, o observar surge no domínio das coerências experienciais inerentes ao próprio viver. Ao darmos ênfase ao processo, deslocamos a po- 189 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 178-191 <http://www.cienciasecognicao.org/> sição do observador de ente corporificado para ente operacional. Se o leitor aceitou que é impossível a este ente operacional fazer referência a algo fora de seu domínio de experiências, fora de sua própria história, deduz-se que os objetos, o corpo e suas partes e, por extensão, o próprio “eu”, surgem no operar das coordenações de coordenações condutuais consensuais, ou seja, na linguagem. É importante notar que, embora enclausurados em nossa própria biologia, nós só nos tornamos observadores na presença do outro, ao partilharmos do processo recursivo e transgeracional que é o viver na linguagem. O importante é que nós, seres humanos, repetimos esse processo transgeracionalmente a cada ontogenia. Assim, quando nascemos e nos inserimos no mundo através das primeiras triangulações criadas pelo apontar da mãe, no sentido lato deste termo, para um objeto, que pode ser o nosso corpo ou parte dele, já estamos na linguagem. A necessidade do outro, fundado na relação, já nos coloca frente ao desafio de responder à segunda questão anteriormente formulada, qual seja: como os laços de uma rede lingüística podem criar em nós o que, em nós, é tão intimo - a autoconsciência? Chamamos atenção, neste contexto, para intuição de Luigi Pirandello (1926/1989): “... se, por acaso, a visão dos outros não nos ajudar a constituir em nós, de algum modo, a realidade daquilo que vemos, os nossos olhos já não sabem o que vêem; a nossa consciência perde-se, porque aquilo que pensamos ser a nossa coisa mais íntima, a consciência, significa os outros em nós; e não podemos sentir-nos sós.” Para além desta intuição, a Biologia do Conhecer tem nos mostrado como o devir autoconsciente pode ser entendido como uma co-emergência da experiência de um mundo vivido e da identidade do eu vivente. Se aceitarmos a ressalva que a experiência é tanto um evento pessoal, porque necessariamente © Ciências & Cognição auto-referencial, mas, também, coletivo, porque necessariamente relacional, poderemos compreender o surgimento de seres vivos capazes de fazer referência ao mundo e se autoreferenciar, sem termos de apelar para uma transcendência ou para a imanência de um suposto “eu”, independente e centro desta vivência (Depraz et al., 2000). Se o leitor aceitou que o nosso viver humano é gerado no fluir recursivo de nossas próprias conversações e que estas, por serem abertas ao indeterminado, abrem-nos, também, a possibilidade de construção de novos mundos possíveis, torna-se evidente que o humano é forjado na linguagem e que toda conversa tem um fundo ético, porque constitutiva do mundo humano, e revolucionário, porque capaz de mudar a história. 5. Referências bibliográficas Andrade, L.A.B. e Silva, E.P. (2005). O conhecer e o conhecimento: comentários sobre o viver e o tempo. 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Leivas Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil Resumo O presente artigo procura analisar a teoria da representação cognitiva no contexto da filosofia natural de Hobbes, objetivando mostrar que o filósofo inglês possui uma consistente teoria do conhecimento fundada em conceitos derivados da experiência e de estudos ópticos e metafísicos. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 192-202. Palavras-chave: representação natural; metafísica; óptica. Abstract This article intends to analyze the theory of cognitive representation in the context of Hobbes´s Natural Philosophy, aiming at to show that the British Philosopher had a solid epistemology established on concepts derived from experience and from his optical as well as metaphysical studies. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 192-202. Key Words: natural representation; metaphysics; optica. Concepções e pensamentos são representações no modo de compreender de Hobbes. Considerados isoladamente ou desencadeados - isto é, não articulados como elos amarrados e justapostos numa rede ou cadeia de pensamentos - cada pensamento ou concepção em particular "é uma representação ou aparência" (Hobbes, 2003: 9) dos objetos externos. O modo de acesso ao conhecimento da realidade externa é inicialmente representacional: "Estas imagens mentais e representações das qualidades das coisas fora de nós, são o que chamamos cognição, imaginação, idéias, informação, concepção, ou conhecimento delas. E a faculdade, ou poder, pelo qual somos capazes desse conhecimento, é o que aqui denomino por poder cognitivo ou conceptual" (Hobbes, 1983: 48). As representações cognitivas podem apresentar-se de diferentes formas conforme o tipo de "faculdade da mente" (Hobbes, 1983: 48) escolhido para entrar em contato com o objeto externo. Como tudo começa na sensação, a própria sensibilidade é definida inicialmente como um tipo de representação originária.. A representação cognitiva, nesse caso, é denominada representação sensível. Esse tipo de representação depende da presença do objeto. Constatada a ausência do objeto e o conseqüente enfraquecimento ou obs- - C.R.C. Leivas é Mestre em Filosofia (Universidade Federal do Rio Grande do Sul, UFRS), Doutor em Filosofia (UFRS). Atualmente é Professor (UFPel). E-mail para correspondência: [email protected]. 192 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 192-202 <http://www.cienciasecognicao.org/> curecimento de sua imagem chamamos então a representação cognitiva de representação imaginativa. A diferença entre essas duas versões oriundas das representações cognitivas é assinalada por Hobbes a seguir: "Uma concepção obscura é aquela que representa todo o objeto em conjunto... e quanto mais ou menos partes forem representadas, assim se diz que a concepção ou representação é mais ou menos clara. Considerando então a concepção que, quando produzida pela sensação era clara e representava distintamente as partes do objeto, e quando nos vem novamente é obscura, achamos que nela falta algo que esperávamos e, por isso, a julgamos passada e enfraquecida" (Hobbes, 1983: 62). As representações sensíveis O conhecimento sensível assinala o principio da vida cognitiva dos seres vivos. Através da sensação o mundo externo é primeiramente percebido como objeto de conhecimento. Porém, como o acesso cognitivo à realidade externa é indireto, a natureza dotou os seres vivos de um medium para extrair as informações dos objetos que pressionam os diversos órgãos sensoriais. Essa estrutura mediúnica é a própria sensação metamorfoseada como fantasma ou representação: "A sensação é um fantasma, feito pela reação e esforço para fora no órgão da sensação, causado por um esforço para dentro a partir do objeto, permanecendo ali por algum tempo" (Hobbes, 2000: 391). No Curto tratado dos primeiros princípios Hobbes se refere a uma sutil equivalência entre phantasma e repraesentatio: - "Como os objetos são um, por união ou reunião, assim são os fantasmas que os representam" (Hobbes, 1988: 42). Enfim, nas primei-ras linhas do primeiro capitulo do Leviatã Hobbes enfatiza que considerados não por união ou reunidos em cadeia, mas isoladamente, cada pensamento do individuo humano perceptivo "é uma representação ou aparência de alguma qualidade, ou outro acidente de um corpo exterior a nós, o que comumente se chama um objeto" (Hobbes, 2003: 15). A sensação tem pois uma função representacional © Ciências & Cognição em Hobbes. O início das representações sensíveis se assenta naquilo que na visão de Hobbes é o acontecimento mais admirável de toda a vida cognitiva das criaturas sensíveis, isto é, o próprio aparecer: “De todos os fenômenos ou aparências que existem próximos de nós, o mais admirável é a própria aparição (to phainesthai); ou seja, que alguns corpos naturais têm neles mesmos as estruturas [ou modelos (patterns)] de quase todas as coisas e outros de nenhuma. De forma que se os fenômenos ou aparências são os princípios pelos quais nós conhecemos todas as outras coisas, devemos necessariamente reconhecer a sensação como o princípio pelo qual conhecemos aqueles princípios, e que todo conhecimento que temos é dela originário." (Hobbes, 2000: 389) Consideremos, antes de tudo, que os termos fenômeno, aparência, fantasma e imagem são termos equivalentes em Hobbes, pois de acordo com o que ele diz no Exame do “De Mundo” de Thomas White, “[em meu esquema] um e o mesmo movimento da mente tem agora recebido quatro [diferentes] nomes para quatro diferentes pontos de vista ...: Esses nomes são: phantasma, imago, imaginatio e memoria” (Hobbes, 1976: 367). Podemos dizer, porém, que as representações cognitivas — sejam elas sensíveis, imaginativas ou visuais - são definidas por Hobbes meramente como tipos distintos de efeitos causados por um mesmo movimento que ocorre no interior de nossas vidas mentais? São as representações cognitivas simples efeitos desses movimentos internos operados mentalmente? Felizmente, o point de départ da philosophia prima de Hobbes no capítulo VII do De Corpore esclarece de forma definitiva essa questão ao estabelecer ali uma divisão fundamental quanto à forma como conhecemos as coisas, ou seja, (1) como acidentes internos da mente ou (2) como não existindo realmente, mas simplesmente parecendo existir: 193 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 192-202 <http://www.cienciasecognicao.org/> “Conseqüentemente as coisas podem ser consideradas ... ou como acidentes internos de nossa mente, de tal modo que as consideramos quando a questão é sobre alguma faculdade da mente; ou como espécies (species) das coisas externas, não como existindo realmente, mas apenas como parecendo existir, ou [parecendo] ter uma existência (being) fora de nós.” (Hobbes, 2000: 94) Essa sensação aparente de exterioridade - que o professor Zarka denomina de consciência de exterioridade - é o que, num só tempo, define as representações cognitivas e impede que elas sejam diluídas pela força avassaladora da teoria do movimento hobbesiana. Nos Elementos da Lei Hobbes diz que as "representações das qualidades das coisas fora de nós são o que chamamos cognição" (Hobbes, 1983: 48). A representação cognitiva é pois a capacidade de conhecer as qualidades sensíveis dos objetos conforme esses aparecem para nós e parecem fora de nós. Esses objetos se apresentam em nós e para nós, originando, a partir disso, fenômenos distintos, que aparecem na forma de fantasmas ou representações, isto é, como uma aparição das coisas exteriores, de forma que o que é próprio da representação é o "apresentar ou representar alguma coisa sem ser ela mesma uma coisa, quer dizer, sem receber o estatuto de uma realidade" (Zarka, 1992: 18). Hobbes acredita que a forma como representamos as coisas é tão forte e intensa que mesmo na configuração apocalíptica da hipótese da destruição do mundo externo continuaríamos a acreditar nas imagens representadas das coisas armazenadas no interior de nosso cérebro antes do the day after como algo indubitavelmente externo e independente da mente: "A esse homem [isto é, o único sobrevivente do apocalipse] ficariam as idéias do mundo e de todos os corpos que havia contemplado com seus olhos antes da aniquilação... tudo o qual, ainda que não fosse mais que idéias e fantasmas que estariam presentes internamente somente a quem as imaginasse, apare- © Ciências & Cognição cer-lhe-iam, porém como externas e não dependentes da mente." (Hobbes, 2000: 389) O estatuto representacional da sensação, mutatis mutandis, vem a ser possível, em primeiro lugar, porque a sensação é dotada de uma memória de curtíssima duração, porém suficiente para gerar uma sensação aparente de exterioridade que permite a percepção do percebido: "Não podemos começar nossa busca por tais princípios [isto é, a busca de nossas representações da realidade externa] por outro fenômeno que a própria sensação, ... [ou seja,] pela memória que por algum tempo permanece em nós das coisas sensíveis, ... pois aquele que percebe que tem percebido, lembra." (Hobbes, 2000: 389) A equivalência entre sensação e representação é assegurada, em segundo lugar, pela capacidade de mudança, que resulta da forma diversa como os fantasmas são representados, por exemplo, quando o objeto da percepção é alterado e novos fantasmas tomam o lugar dos primeiros. Essa capacidade de mudança — aqui associada com as representações sensíveis — é identificada por Hobbes como sendo o conatus, isto é, um tipo de movimento interno plenamente compatível com a sensação: tal compatibilidade parece justificada pelo fato que a sensação é ela própria um tipo de movimento — além de ser, como foi dito antes, a sede central das representações ou fantasmas intermitentes que aparecem continuamente em nossa vida mental. Ver-se-á a seguir que é justo através da capacidade da mudança que se abre um campo cognitivo bastante extenso e complexo em que o principio de comparação e de diferença atuará como uma espécie de chef d´équipe. Comparação, diferença e representação O princípio de comparação e diferença é fundamental para que as representações enquanto fantasmas surjam nos órgãos sensí- 194 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 192-202 <http://www.cienciasecognicao.org/> veis das criaturas vivas. De fato, "não se pode falar de sensação se não há comparação e distinção de fantasmas" (Zarka, 1992: 18). A aparição dessas entidades fenomênicas chamadas fantasmas - entidades essas que surgem por reação sensível provocada pela presença de um objeto epistêmico qualquer - é engendrada por um processo de discriminação ou separação operado pelo principio de comparação e diferença: "Por sensação compreendemos comumente o juízo que fazemos dos objetos por seus fantasmas; a saber, ao comparar e distinguir aqueles fantasmas ... de forma que a sensação tem necessariamente alguma memória aderente a ela, pela qual os primeiros e os últimos fantasmas podem ser comparados juntos, e diferenciados uns dos outros." (Hobbes, 2000: 393) A seletividade e a diversidade são pois dois aspectos inerentes à sensação e sem os quais não haveria conhecimento sensível e, conseqüentemente, as representações cognitivas. Se quisermos uma analogia com o adágio popular que diz que uma única andorinha não faz o verão, diremos com Hobbes que na hipótese de podermos representar um único fantasma isso implicaria uma suspensão da sensação, pois "sentir sempre o mesmo e não sentir vem a ser o mesmo" (Hobbes, 2000: 394). O princípio de comparação e diferença, dessa forma, atua de modo a fazer com que a multiplicidade de fantasmas gerados no centro nervoso da vida cognitiva dos indivíduos sensíveis seja submetida a um discernere - isto é, uma clara percepção das diferenças - justaposto no plano de uma ordem de prioridades. A seleção e a discriminação de fantasmas, por outro lado, influi decisivamente na intensidade daquela memória que é própria da sensibilidade animal. Aliás, uma das diferenças fundamentais dos vegetais em relação aos animais é que os primeiros não possuem órgãos que funcionem como retentores mnemônicos da multiplicidade de fantasmas gerados na sensação: © Ciências & Cognição “Embora pela reação dos corpos inanimados um fantasma possa ser feito, cessaria, contudo, tão logo o objeto fosse removido. Pois a menos que esses corpos tenham órgãos, como as criaturas vivas os têm, adequados para reter tais movimentos, sua sensação seria tal que eles nunca se lembrariam." (Hobbes, 2000: 300-301) Pudemos perceber anteriormente que na opinião de Hobbes a sensação deve de ter em si mesma uma variedade contínua de fantasmas para que esses possam ser discernidos uns dos outros. Pois da mesma forma que sem sensação não há memória, sem memória não há retenção de fantasmas, e, por conseguinte, nada para ser discernido ou diferenciado comparativamente. É de se indagar no momento se essa multiplicidade fenomênica, enquanto submetida àquele princípio fundamental que orienta a comparação e a distinção de fantasmas (isto é, o princípio de comparação e diferença) é algo que se dá num só tempo ou em tempos distintos. E Hobbes dirá que a natureza da sensação é tal que a comparação e a diferenciação dessas entidades fenomênicas chamadas fantasmas ocorre uma de cada vez, de forma que dois objetos registrados nos órgãos sensoriais não produzem dois fantasmas distintos, mas um só resultante da composição de ambos. Verbi gratia, quando abrimos um livro percebemos uma página inteira. Mas isso não nos dá acesso ao seu conteúdo: - Dessa forma, somente ao lermos cada palavra, uma de cada vez, podemos com isso fazer associações, comparando umas com as outras, etc., o que nos permitirá enfim emitir um juízo sobre o conjunto das informações extraídas. Tudo isso requer, obviamente, a representação de cada uma das partes numa certa linha de tempo. Com efeito, nossas representações sensíveis, determinadas como sensações aparentes da exterioridade ou consciências da exterioridade, não podem estar separadas da consciência do tempo. O objeto da rpresentação 195 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 192-202 <http://www.cienciasecognicao.org/> O objeto que é próprio da representação é formado por um engano da sensação que ao considerar um acidente interno da mente como sendo algo externo e objetivo fixa os limites das aparências perceptivas como se fossem os limites de entidades reais. Objeto real, no vocabulário de Hobbes, é tudo aquilo que constitui o mundo exterior e pode ser concebido como independente de estruturas mentais. Numa acepção mais ampla os objetos reais são corpos e “Hobbes define um corpo como aquilo que não depende para sua existência do pensamento humano e que coincide com algum espaço” (Zarka, 1992: 53). (Veremos depois que na compreensão de Hobbes considerar um corpo como possuidor de certa substancialidade imaterial é uma contradictio in adiecto, isto é, uma contradição nos termos.) A percepção ou apreensão da multiplicidade de objetos ou coisas que constituem a realidade exterior depende da forma como as capacidades sensório-perceptivas de uma criatura sensível são estimuladas pelos movimentos externos constitutivos desses mesmos objetos ou coisas. O objeto real se metamorfoseia num objeto aparente — isto é, num objeto representacional — quando um movimento ou conatus exterior pressiona um determinado órgão sensorial originando ali (como resultado de sua força centrífuga) um movimento ou conatus interior que, devido a sua natureza reativa, é então fisiologicamente pressionado para fora, cujo efeito no indivíduo senciente é aquilo que denominamos antes de sensação aparente de exterioridade: "A causa da sensação é o corpo exterior, ou objeto, que pressiona o órgão próprio de cada sentido ... a qual pressão, pela mediação dos nervos e outras cordas e membranas do corpo, prolongada para dentro em direção ao cérebro e coração, causa ali uma resistência, ou contrapressão, ou esforço do coração para se transmitir, cujo esforço, porque para fora, parece ser de algum modo exterior. (Hobbes, 2003: 15) © Ciências & Cognição O mais importante no momento, prima facie, parece ser concentrar esforços na tentativa de não confundir o objeto real com o objeto da representação. De fato, se o primeiro é determinado no estrito âmbito do movimento exterior, o segundo, por sua vez, é o resultado de uma consciência de exterioridade proveniente da projeção de qualidades e acidentes considerados, de forma ilusória ou enganosa pelo espírito, como sendo aquelas propriedades pertencentes à realidade exterior. Um passo além e veremos Hobbes afirmar que essas qualidades e acidentes das coisas que constituem nossas representações cognitivas não estão na verdade nas próprias coisas, mas pertencem in totum à vida mental do sujeito epistêmico. Opera-se aqui, portanto, uma visível subsunção das qualidades secundárias e primárias à vida cognitiva subjetiva, pois de acordo com o que diz Hobbes a seguir: “Quaisquer acidentes ou qualidades que os nossos sentidos nos fazem pensar que existam no mundo, não estão lá, constituindo apenas aparências e aparições. As coisas que realmente estão no mundo, fora de nós, são os movimentos que causam essas aparências.” (Hobbes, 1983: 56) Todos os nossos pensamentos podem então ser definidos, diz Hobbes, como uma "representação ou aparência de alguma qualidade ou acidente de um corpo exterior a nós" (Hobbes, 2003: 15). Definir os pensamentos como representações cognitivas parece plenamente justificável no âmbito de um sistema de pensamento que combina componentes empíricos com componentes fenomênicos. Essa combinação revela uma démarche fundamental no interior do Leviatã quando Hobbes inscreve ali o seguinte axioma: “O homem não pode ter nenhum pensamento representando uma coisa que não esteja sujeita à sensação” (Hobbes, 2003: 29). As representações imaginativas No contexto da pura sensibilidade animal, porém, essas representações sensíveis 196 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 192-202 <http://www.cienciasecognicao.org/> — aqui traduzidas em pensamentos — estão todas invariavelmente circunscritas a enganos e ilusões. A razão disso é que todo pensamento representando algo está sujeito à sensação e a sensação é uma fonte originária de enganos e ilusões ocorridos na vida cognitiva dos indivíduos sencientes: “As coisas que realmente estão no mundo, fora de nós, são os movimentos que causam essas aparências. E esse é o maior engano da sensação, que também deve ser corrigido pela sensação, pois, assim como a sensação me diz, quando vejo diretamente um objeto, que a cor parece estar no objeto, assim também a sensação me diz, quando vejo por reflexão um objeto, que a cor não está nele.” (Hobbes, 1983: 56) O De Homine-óptico (isto é, a parte óptica do De Homine) tece importantes considerações relativas a esse engano originário da sensação. De fato, Hobbes diz ali que "segundo uma instituição da natureza todo ser animado começa por julgar que essa imagem [uma luz, uma cor assim representada] é a visão da coisa mesma" (Hobbes, 1974: 43). Observemos que Hobbes está ali usando novamente um modelo da percepção animal em geral para explicar o engano da sensação. Enganar-se ou iludir-se é pois algo inerente a todos os seres vivos animados. Em outras palavras, o engano originário da sensação é uma propriedade de todo indivíduo senciente que cai dentro do reino animal, gênero maior em que os sencientes humanos estão compreendidos como simples partes na relação com o todo. A confusão quanto à distinção entre objetos reais e objetos aparentes é originada pois naturalmente no interior da sensibilidade animal. Decorre disso que representações sensíveis cognitivas — isto é, "as representações das qualidades das coisas fora de nós" (Hobbes, 1983: 48) - apresentarão ou representarão interiormente os objetos externos como se eles fossem exteriores ao processo mental: "Muito embora, a certa distancia, o próprio objeto real pareça confundido com a aparência que produz em nós, mesmo assim o objeto © Ciências & Cognição é uma coisa, e a imagem ou ilusão uma outra" (Hobbes, 2003: 16). Hobbes está abrindo caminho aqui para a instituição de um outro tipo de representação cognitiva. De fato, se a distinção no momento é entre objeto real e objeto imaginário, as representações sensíveis se transformam então em representações imaginativas. Essa transformação ocorre sem que o segundo termo implique a exclusão do primeiro, em nosso entendimento, porque em Hobbes a capacidade da imaginação é definida como um tipo específico de sensação, ou seja, ela é uma sensação enfraquecida ou debilitada, e isso devido ao estatuto da ausência de seu objeto. Com efeito, dada a ausência de um objeto epistêmico atual - representado anteriormente no contexto de um objeto presente responsável por aquela geração fenomênica de um objeto aparente - devemos pensar no momento num objeto aparente imaginário que é o objeto próprio das representações imaginativas cognitivas. As representações imaginativas são definidas por Hobbes da seguinte forma: “Quanto à maneira pela qual se tem conhecimento de uma concepção passada, recorde-se a definição da imaginação onde dissemos que se trata de uma concepção que pouco a pouco declina, ou se vai tornando mais obscura. Uma concepção obscura é aquela que representa todo o objeto em conjunto, mas nenhuma das suas partes por si mesmas; e quanto mais ou menos partes forem representadas, assim se diz que a concepção ou representação é mais ou menos clara. Considerando então a concepção que, quando produzida pela sensação era clara e representava distintamente as partes do objeto, e quando nos vem novamente é obscura, achamos que nela falta algo que esperávamos e, por isso, a julgamos passada e enfraquecida.” (Hobbes,1983: 62) Na próxima seção desejo examinar a teoria da representação visual de Hobbes objetivando com isso uma melhor compreensão 197 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 192-202 <http://www.cienciasecognicao.org/> de sua teoria da representação cognitiva. Começo ali explicando como Hobbes concebe sua teoria física da luz para depois concernir à formação das representações visuais. As Representações Ópticas (a) Teoria física da luz A teoria da intromissão da luz de AlHazen (isto é, a idéia que vemos através de raios de luz que entram nos olhos a partir do exterior) substitui gradativamente a teoria da emissão da luz dos antigos (isto é, a idéia que vemos através de raios visuais emitidos pelo olho). Vitelo continua os estudos de Al-Hazen e acrescenta que o raio de luz deve ser definido como um feixe de linhas matemáticas (Prins, 1987: 296). A explicação física da luz recebe com Vitelo um “tratamento puramente geométrico” de forma que o fenômeno óptico passa a ser explicado em termos de “pontos e linhas”. Prins sugere que os estudos desenvolvidos pelos ópticos medievais reduzem a óptica à geometria de forma que a natureza da luz é por eles formulada a partir de um tratamento puramente geométrico de problemas físicos justificado pelo conceito de raio de luz. Em resumo, a forma geométrica como os antigos explicavam a visão através da noção de raio visual sofre uma readequação com os medievais de forma a conduzir a uma explicação física da luz justificada pela geometrização do raio de luz. A teoria física da luz de Hobbes parece compatível com a teoria da intromissão da luz dos ópticos medievais. Hobbes utiliza, por exemplo, o termo lux para se referir à fonte original de luz que irradia de um corpo luminoso antes de se dirigir para o centro do olho. Lux, dessa forma, é distinto de lumen, visto que esse último termo se refere não à luz original mas à luz refletida — isto é, à luz como fantasma, que pertence à sua teoria da visão1. A objetividade da causa física da luz — lux — é diferenciada em Hobbes da subjetividade da qualidade sensível – lumen -, que surge como uma reação no interior do dispositivo óptico em decorrência de estímulos nervosos no cérebro e no coração. A óptica hobbesiana © Ciências & Cognição remete dessa forma a uma teoria da intromissão da luz ao definir as causas físicas da luz pelo termo lux e a uma teoria da emissão da luz compreendida como lumen ou fantasma2. A primeira explicação do fenômeno óptico na terceira seção do Curto Tratado evidencia a objetividade da causa da luz respaldada na idéia clássica da emissão da luz pelas espécies através de um medium: “Luz, cor, calor e outros objetos próprios da sensação ... nada mais são do que as diferentes ações das coisas exteriores sobre os espíritos animais, pelos diferentes órgãos. Pois se a luz e o calor fossem qualidades inerentes em ato às espécies, e não diferentes modos de ação - porque as espécies entram por todos os órgãos para ir aos espíritos - se deveria ver o calor e sentir a luz, o que é contrário à experiência.” (Hobbes, 1988: 45) O Curto Tratado apresenta dessa forma uma explicação da teoria mediúnica da luz fundada no conceito de Species. O fundamento dessa explicação — conforme estabelecido por Hobbes na terceira seção do Curto Tratado - consiste em que a causa eficiente está do lado do objeto e não do lado do sujeito. De fato, a terceira seção do Curto Tratado esclarece que "o objeto é a causa eficiente ou agente do desejo e os espíritos animais o paciente" (Hobbes, 1988: 53). Uma vez estabelecido que o princípio de causalidade é da ordem do objeto e não da ordem do sujeito segue como corolário que a natureza mediúnica da luz é compatível com a teoria da emissão das Species: - “Todo agente que age sobre um paciente à distância o toca seja pelo Medium, seja por alguma coisa que sai dele mesmo, a qual será denominada Species" (Hobbes, 1988: 25). Essa concepção começa porém a sofrer mudanças a partir do Tractatus Opticus I onde Hobbes afirma que se não houvesse visão não haveria nada que chamaríamos de luz. A aparição da luz e das cores é doravante um fenômeno subjetivo e situa-se em claro contraste com a tese objetivista da emissão da 198 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 192-202 <http://www.cienciasecognicao.org/> luz pelas espécies do Curto Tratado. Se no plano da origem da luz a teoria da luz de Hobbes — dada a inserção das teses do Tractatus Opticus I — indica um movimento que articula a ação do meio a partir da fonte luminosa, esse movimento, concebido como propagação da luz a partir do meio, vem a ser luz somente quando há um sentimento da luz em nós, sentimento esse que é definido como visão. Em resumo, lux e lumen são agora explicados de forma subjetiva. A conclusão das teses ópticas no pensamento maduro3 de Hobbes parece indicar o que segue: — A ação física da luz não basta para explicar todas as modalidades da visão4. A passagem das causas físicas da luz para a explicação da visão através da constituição do conceito de representação visual é o que pretendemos examinar no próximo item. (b) A formação das representações visuais Estabelecida a hipótese que a ação física da luz é insuficiente para produzir a visão, a teoria óptica hobbesiana remete a um complexo sistema psíquico-fisiológico para adequar a teoria da luz à teoria da visão: “A ação de um objeto luminoso, quando propagada para o fundo do olho e conseqüentemente para o cérebro, é a causa da reação pela qual um movimento é transmitido para fora do cérebro, através do olho, na direção dos objetos externos. O ultimo movimento, contudo, é experimentado não como movimento mas como fantasia ou imagem ... de algum corpo luminoso. Essa fantasia chamamos iluminação ou luz.” (Hobbes, 1976: 102) Doravante a luz e a cor são consideradas “não como emanações do objeto mas como fantasmas de nosso mundo interior” (Hobbes, 1974: 43). É de se observar que a idéia de fantasma como recurso para explicar o fenômeno visual faz parte da literatura óptica dos medievais e dos renascentistas. Vitelo, por exemplo, recorre à idéia de fantasma para explicar a ilusão visual e podemos constatar, © Ciências & Cognição além disso, que o Optical Thesaurus de 1572 traz uma identificação entre fantasma e imagem refratária5. Uma outra observação que nos parece relevante é que se na Critica do 'De Mundo' Hobbes se refere à luz como fantasia, no De Homine ele se refere à luz como fantasma. Seria devido ao fato que na Critica do 'De Mundo' ele em muitos aspectos se mostra disposto a seguir Aristóteles para quem a raiz etimológica da palavra fantasia é dada pelo vocábulo luz? De fato, Dherbey sugere que a identificação de fantasia e luz em Aristóteles serve para dissipar o erro de não se diferenciar a sensação da imaginação: — “A confusão feita por Protágoras entre sentir e imaginar se explica se atentamos à etimologia de phantasia que, nos diz Aristóteles, vem de phaos, a luz” (Dherbey, 1983: 61). Diferentemente de Aristóteles, conforme podemos observar nos escritos ópticos do De Homine, Hobbes não está preocupado em identificar fantasia e Luz para separar sensação e imaginação e sim identificar fantasma e luz para separar a imagem visual do objeto da visão. Com efeito, após definir a luz no De Homine como fantasma de nosso mundo interior, Hobbes pode operar uma distinção fundamental entre o que é da ordem da representação visual e o que é da ordem da própria coisa: “Uma luz, uma cor assim figurada [isto é, representada], isso se chama uma imagem. E, segundo uma instituição da natureza, todo ser animado começa por julgar que essa imagem é a visão da coisa mesma ... [Sendo que] mesmo os homens ... confundem a imagem com o próprio objeto.” (Hobbes, 1974: 43) Lembremos que essa idéia de uma separação radical entre o fenômeno visual e a própria coisa estabelecida por Hobbes no De Homine de 1658 remonta ao ano de 1649 quando ele escreve o tratado óptico A Minute or First Draught of the Optiques. Essa constatação se deve ao fato de que a parte óptica do De Homine corresponde quase que integralmente à segunda parte do First Draught, parte essa que Hobbes dedica ao estudo da visão6. 199 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 192-202 <http://www.cienciasecognicao.org/> A construção óptica da representação em Hobbes começa a ser delineada enfim através da justaposição de uma fundamental diferenciação entre o que é da ordem do aparecer e o que é da ordem da realidade. Tendo isso em mente podemos constatar que a imagem é construída visualmente em nosso cérebro na medida em que somos afetados por um objeto externo e que quando essa imagem é projetada de dentro para fora por reação dos estímulos nervosos centrais temos a ilusão que o que vemos é a coisa mesma. Constata-se pois que as teses ópticas de Hobbes se posicionam de forma antagônica com a óptica antiga uma vez que "aquilo que um Antigo vê num espelho é a coisa mesma"7. Em A teoria aristotélica da visão Cappelletti diz, por exemplo, que é importante sublinhar que existe em Aristóteles uma teoria realista da sensação visual segundo a qual o sujeito capta qualidades que se encontram verdadeira e realmente no objeto, de forma que os "erros e ilusões se referem aos sensíveis comuns (distancia, magnitude, etc.) e não são na realidade erros da vista mas do entendimento" (Cappelletti, 1977: 91). Explicar como se formam as imagens visuais a partir de uma separação radical entre o que é da ordem do fenômeno e o que é da ordem das coisas é o tema do primeiro capitulo da parte óptica do De Homine. De fato, a noção de representação visual orienta ali o processo de formação das imagens. A percepção visual da irradiação do corpo luminoso é enviada através do dispositivo óptico para o sistema nervoso central provocando ali uma reação para fora que consistirá nas aparições ou fantasmas de nosso mundo interior. O que segue disso tudo é uma síntese dos múltiplos pontos de visão que irão constituir a imagem visual do objeto segundo uma correspondência ordenada: “Uma visão [isto é, uma imagem visual] distinta e figurada ocorre quando a luz ou a cor forma uma figura cujas partes tem por origem as partes do objeto, e lhes corresponde uma à uma na ordem. Uma luz, uma cor assim figurada [isto © Ciências & Cognição é, representada], isso se chama uma imagem.” (Hobbes, 1974: 43) O estatuto representacional da visão da forma apresentada nessa passagem no De Homine óptico é plenamente compatível com o que Hobbes descreve na Crítica do 'De Mundo' nos termos de uma superfície aparente imaginária: - “A área aparente do sol ou de qualquer outro objeto não é inerente no próprio objeto mas é meramente imaginária” (Hobbes, 1976: 40). A superfície aparente imaginária é constituída ponto por ponto a partir das informações visuais que temos das partes do objeto luminoso. Ora, no De Homine Hobbes enuncia justamente que a configuração dos pontos de visão justapostos numa linha reta no centro retinal do aparelho óptico se chama linha de visão: “Cada ponto visto é situado sobre uma linha reta que passa primeiramente pelo centro da retina, depois por um ponto de sua superfície ... [sendo que] essa linha reta chamar-se-á linha de visão” (Hobbes, 1974: 44). O lugar aparente das imagens que temos dos objetos - a saber, “a forma como aparecem na visão direta” - é então explicado no capítulo terceiro do De Homine a partir da mencionada noção de linha visual: “Por conseguinte, se damos a distancia aparente de um objeto (colocado em linha reta), [bem como] a sua grandeza aparente e a sua figura aparente, [segue que] o seu lugar aparente é igualmente dado” (Hobbes, 1974: 59). A localização dos objetos na representação é dessa forma estabelecida na linha de visão - isto é, na linha reta - pela determinação do lugar e da distancia real dos objetos a partir de seu lugar e de sua distância aparente. Sobre essa questão Zarka esclarece que em Hobbes “a constituição visual da representação governa o problema da determinação da distancia e do lugar real do objeto a partir de seu lugar aparente”8. O lugar e a distancia real são dessa forma reduzidos ao que aparece. A imagem visual, formada a partir da linha de visão, é percebida pelo individuo receptor “como se”9 fosse a própria coisa. Nos Elementos da lei, lembremos novamente, Hobbes esclarece essa questão da seguinte forma: 200 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 192-202 <http://www.cienciasecognicao.org/> "Por isso, segue-se também que quaisquer acidentes ou qualidades que os nossos sentidos nos fazem pensar que existam no mundo, não estão lá, constituindo apenas aparências e aparições. As coisas que realmente estão no mundo, fora de nós, são os movimentos que causam essas aparências.” (Hobbes, 1983: 56) Existindo no mundo apenas aparências e aparições, a realidade se encontra subsumida nas representações visuais. A forma como vemos as coisas é então a forma como o visível se manifesta. Tudo isso constitui a instigante e ainda hoje pouco explorada teoria óptica de Hobbes. A relação do desejo com as cores ou a metafórica comparação da filosofia política com “lentes prospectivas... que permitem ver de longe” (Hobbes, 2003: 158) são algumas das questões que surgem de forma surpreendente diante de nossos olhos quando examinamos o mundo predominantemente visual de Hobbes. Referências bibliográficas Angoulvent, A.-L. (1992). Hobbes ou la crise de l'État baroque. Paris: PUF. Bernhardt, J. (1989). Hobbes. Paris: PUF. Cappelletti, A.J. (1977) La teoria aristotélica de la visión. Caracas, Soc. Venezuelana de Ciências Humanas. Derbhey, G.R. (1983). Les choses mêmes: la pensée du reel chez Aristote. Lausanne: Editions l´Age d´Homme. Hobbes, T. (1988). Court traité des premiers principes, edição bilíngüe inglês-francês, sob os cuidados de J. Bernhardt. Paris: P.U.F. Hobbes, T. (1981). De Cive ou les fondements de la politique (tradução de S. Sorbière). Paris: Éditions Sirey. Hobbes, T. (1974). De Homine, tradução para o francês de Paul-Marie Maurin. 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(Ross, G.M., Trad.). Disponível no endereço eletrônico: http://www.philosophy.leeds.ac.uk /GMR/hmp/texts/modern/hobbes/optics/tracto pt.html. Hobbes, T. (1993). The English Works of Thomas Hobbes (Molesworth, W. Ed.). London: 1839 (edição eletrônica em CD-ROM Intelex Corporation). Hobbes, T. (2000). Tratado sobre el cuerpo. (Feo, J.F., Trad.). Madrid: Editorial Trotta. Prins, J. (1987). Kepler, Hobbes and medieval optics. Philosophia Naturalis, 24, 287-310. Rogers G.A.J. e Ryan, A. (Eds.) (1998). Perspectives on Thomas Hobbes. Oxford: Clarendon Press. Simon, G. (1988). Le Regard, L´Être et L´Apparence dans L´Optique de L´Antiquité. Paris: Éditions du Seuil. Sorell, T. (1991). Hobbes. London and New York: Routledge. Spragens, T.A (1973). The Politics of Motion. London: The Trinity Press. Tuck, R. (1989). Hobbes. Oxford: Oxford University Press. Zarka, Y.C. (1987). La Décision Métaphysique de Hobbes. Paris: Vrin. Zarka, Y.C. (1992). (Org.) Hobbes et son vocabulaire. Paris: Vrin. 201 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 192-202 <http://www.cienciasecognicao.org/> Zarka, Y.C. (1986). Vision et désir chez Hobbes. Em: Recherches sur le XVII' siecle, © Ciências & Cognição n° 8. Paris: CNRS. Notas (1) É de se observar que já no CurtoTratado Hobbes se refere ao termo lux como luz primitiva e ao termo lumen como luz derivada. Na medida que “por luz primitiva se entende lux [e] por [luz] derivada lumen” surge então como corolário que assim como “a luz primitiva e a cor estão para os corpos luminosos ou coloridos assim a luz derivada e a cor estão para as espécies”. (2) Segundo Prins a óptica de Hobbes não é geométrica uma vez que ela está determinada causalmente pelo movimento. A óptica de Hobbes estaria, ainda segundo Prins, situada no plano da física matemática. Zarka sugere, ao contrário, que ela é geométrica e remete ao começo do De Homine onde Hobbes diz que a óptica é uma ciência demonstrativa da mesma forma que a geometria, de modo que, continua Zarka, é importante não confundir “os movimentos da matéria que produzem em nós a representação da luz ou do calor com as qualidades sensíveis”.1 Em nossa opinião, são dois diferentes enfoques da teoria óptica de Hobbes que não precisam ser necessariamente excludentes. Há em Hobbes a compatibilidade entre uma mecanização da luz e uma geometrização do olhar, o que podemos observar, por exemplo, através da passagem em Hobbes das razões físicas da luz para o ato da construção geométrica do visível, ou ainda pela comparação do termo lux com o termo lumen. (3) Isto é, no Tractatus Opticus I e II, no De Homine, etc. (4) Cf. Zarka, idem, p. 137. (5) Cf. Prins, op. cit., pp. 303-304. (6) O motivo pelo qual Hobbes deixou a primeira parte do First Draught, isto é, a teoria da luz, fora do De Homine ainda hoje é um mistério para os que estudam sua teoria óptica. Seria porque ao tratar do homem (De Homine) ele pensava que as razões físicas da luz podem ser subsumidas na noção de luz como fantasma de nosso mundo interior? O fato é que dois anos depois do First Draught Hobbes escreve no inicio do Leviathan (1651) — sua obra política maior — que embora “o próprio objeto real pareça confundido com a aparência que produz em nós, mesmo assim o objeto é uma coisa, e a imagem ou ilusão uma outra”. A critica à doutrina óptica escolástica da emissão da luz por species visível é o recurso que Hobbes usa no Leviathan para sustentar a diferença entre percepção visual e a realidade. Aristóteles criticou Protágoras por não diferenciar sensação e imaginação. O primeiro capítulo do Leviathan é dedicado ao exame da sensação e o segundo capitulo ao exame da imaginação. Mas ao contrário de Aristóteles, embora Hobbes num primeiro momento diferencie sensação e imaginação, num segundo momento ocorre a subsunção da imaginação à sensação, isto pelo fato que para ele “a imaginação é uma sensação diminuída”. (7) Simon, G. op. cit., p. 197. (8) Cf. Zarka, op. cit., p. 138. (9) É de se observar, contudo que o componente racional não está presente nesse estágio de argumentação. Em outras palavras, as correções efetuadas pelo raciocínio — por exemplo, aquelas relativas às ilusões ópticas — remetem a um plano objetivo que não interessa a Hobbes nesse estágio do argumento. (A critica de Hobbes das Species invisíveis dos escolásticos, por exemplo, é uma critica da razão dirigida a todos aqueles que postulam raciocínios equivocados por não conseguirem decifrar os enganos da visão natural a partir da distinção entre a dimensão do aparecer e a dimensão da realidade ou ainda a partir da distinção entre o que é da ordem da subjetividade e o que é da ordem da objetividade.) O que realmente importa aqui é que “por natureza” a luz e a cor são compreendidas como fantasmas puramente subjetivos que determinam o modo como vemos as coisas. 202 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 203-213 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 15/10/2007 | Revisado em 28/11/2007 | Aceito em 29/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007 Ensaio Robôs como artefatos Robots as artifacts Dulce Maria Halfpap, Gilberto Corrêa de Souza e João Bosco da Mota Alves Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento (EGC), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina, Brasil Resumo Robôs são artefatos criados pelo homem. Essa visão é apresentada a partir da investigação primeira do papel do conceito de artefato na evolução da história humana, até o desenvolvimento de artefatos específicos, os robôs. Esses também foram então destacados na história da humanidade como artefatos especiais que tentam reproduzir as funções humanas. Nessa empreitada foram identificadas gerações de robôs, as quais puderam exemplificar melhor o desenvolvimento dos robôs como artefatos na sociedade humana, desde seu surgimento até os dias de hoje. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 203213. Palavras-chaves: robôs; artefatos; história. Abstract Robots are artifacts created by man. This vision has been presented since the earliest investigation of the role of the artifact concept in the evolution of human history until the development of specific artifacts, the robots. These were also pointed out in the humanity history as special artifacts that try to reproduce the human functions. In that effort, generations of robots were identified, which could better exemplify the development of the robots as artifacts in the human society, since its beginning until today. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 203-213. Key Words: robots; artifacts; history. 1. Introdução Antes de discorrer sobre robôs, considera-se pertinente neste momento, colocar em discussão o conceito de “artefato” e demonstrar como essa palavra se relaciona com a robótica1. Tais termos, aparentemente parecem ser distintos, justamente porque a idéia inicial que se tem de artefato é que se trata de alguma coisa elaborada artesanalmente, mais rudimentar. Em geral, não é bem assim. Pode-se observar que existem outras perspectivas a serem adotadas. Sobre o significado do termo artefato - G.C. de Souza é Graduado em Processamento de Dados (CESUPA), Mestre em Ciência da Computação (UFSC) e Doutorando em Engenharia e Gestão do Conhecimento (UFSC). E-mail para correspondência: [email protected]; D.M. Halfpap é Graduada em História (UFSC), Mestre e Doutora em Engenharia de Produção (UFSC). E-mail para correspondência: [email protected]; J.B.M. Alves é Graduado em Engenharia Elétrica (Universidade Federal da Paraíba), Mestre em Engenharia Elétrica (UFSC) e Doutor em Engenharia Elétrica (Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atua como Professor no Departamento de Informática e Estatística (UFSC). E-mail para correspondência: [email protected]. 203 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 203-213 <http://www.cienciasecognicao.org/> utilizado neste artigo, buscou-se suporte em © Ciências & Cognição alguns dicionários2, como segue: Autor Ferreira (1978) Conceito de artefato a) Produto da indústria. Var. de artefato. b) Do lat. Arte factu, ‘feito com arte’; var. de artefacto. Ferreira (1999) c) Qualquer objeto manufaturado; peça. d) Observação ilusória durante uma medição ou experiência científica e que se deve a imperfeições no método ou na aparelhagem. e) Observação ilusória durante uma Merriam-Webster3 f) Something created by humans usually for a practical purpose; espe-cially: an object remaining from a particular period <caves containing prehistoric artifacts>; g) Something characteristic of or resulting from a human institution or activity <self-consciousness ... turns out to be an artifact of our education system – Times Literary Supplement>; h) A product of artificial character (as a scientific test) due usually to extraneous (as human) agency - ar.ti..fac.tu.al adj. Stanford Encyclopedia of i) An artifact may be defined as an object that has been intentionally Philosophy4 made or produced for a certain purpose. Often the word ‘artifact’ is used in a more restricted sense to refer to simple, hand-made objects (for example, tools) which represent a particular culture (This might be termed the “archaeological sense” of the word). In experimental science, the expression ‘artifact’ is sometimes used to refer to experimental results which are not manifestations of the natural phenomena under investigation, but are due to the particular experimental arrangement. Houaiss (2001) j) Produto de trabalho mecânico; objeto, dispositivo, artigo manufaturado; k) Aparelho, engenho, mecanismo construído para um fim determinado [...]. Quadro 1 - Classificação de artefato. Em geral, as interpretações apresentadas mostram algo em comum. Neste artigo, utilizam-se aquelas do Dicionário Houaiss (2001), que são consensuais com as demais. Então se artefato é qualquer objeto feito à mão, então se deduz que artefato pode ser várias coisas. Com efeito, as explicações ora apresentadas são consideradas significa-tivas quando se associa artefato à robótica, além de ajudar a esclarecer, inclusive, o título deste artigo. À vista disso, recorre-se à história para tornar mais compreensível esta polêmica com o seguinte questionamento: a partir de quando o homem começou a construir artefatos? Uma resposta imediata seria: a construção dos primeiros artefatos que se tem notícia remonta à história da origem do comportamento humano e à evolução da inteligência e Wilson (1975 apud Burke, 2002: 179-180), resume bem toda essa trajetória quando diz que: “Os homens mais primitivos, ou homens-macacos, começaram a andar eretos quando passaram a viver a maior parte ou a totalidade do tempo no chão. Suas mãos ficaram livres, a manufatura e manipulação de artefatos tornou-se mais fácil e a inteligência cresceu à medida que o hábito de utilização de ferramentas foi aprimorado. Com a capacidade mental e a tendência a usar artefatos aumentando mutuamente, toda a cultura material expandiu-se. A espécie dirigiu-se, então, para a trilha dupla de evolução: a evolução genética pela sele- 204 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 203-213 <http://www.cienciasecognicao.org/> ção natural ampliou a capacidade de desenvolvimento da cultura, e a cultura aumentou a aptidão genética daqueles que dela faziam máximo uso. A cooperação durante a caça foi aperfeiçoada e proporcionou um ímpeto novo à evolução da inteligência, a qual, por sua vez, permitiu sofisticação ainda maior no uso de ferramentas, e assim por ciclos repetidos de causalidade. A distribuição das atividades de caça e de coleta de outros alimentos contribuiu para aguçar as habilidades sociais.” Ilustrando esta citação, menciona-se algumas cenas do filme de Kubrick (1968) “2001: Uma Odisséia no Espaço”, quando um macaco faz uso de um pedaço de osso da carcaça de um animal e, ao bater com ele com uma das mãos, descobre a partir daí, a ampliação do poder da sua força. A aptidão para manipular e criar outros instrumentos equivalentes e utilizar para determinados fins demonstra já ter adquirido a capacidade de abstração dando início à construção do edifício da civilização. O ato de manipular aquele objeto e fazer uso dele, não vem sozinho. Ele utiliza o seu cérebro, as suas mãos, para executar aquela tarefa. Em outras palavras, o resultado da força daquele ancestral do homem, revela que ele já dispõe dos primeiros equipamentos cognitivos para realizar algumas atividades mentais com funções essenciais de sobrevivência: do acaso à necessidade, a vida fez emergir a consciência. São cenas inusitadas que resumem graficamente o texto antes citado. De fato, ao longo do processo evolucionário, o homem desenvolveu: seu cérebro, sua inteligência, sua capacidade de raciocínio, a linguagem e outras habilidades bem mais poderosas e complexas do que qualquer outra espécie. Isso quer dizer que o homem atingiu um nível de conhecimento que pode ser considerado como fundamental para a sua sobrevivência. O conhecimento permitiu ao homem a capacidade de construir desde uma simples lança para abater uma caça para o seu sustento e de sua família, ao mais sofisticado projeto de © Ciências & Cognição uma bomba atômica. Refletindo sobre tudo isso, destaca-se a questão do conhecimento como condição primordial para a construção de artefatos de um modo geral. Ampliando um pouco mais essa discussão, Dennett (1998: 151), comple-menta: “[...] se isso estiver certo, então todas as realizações da cultura humana – linguagem, arte, religião, ética, a própria ciência – são artefatos (ou artefatos de artefatos...) do mesmo processo fundamental que desenvolveu as bactérias, os mamíferos e o Homo sapiens.” Pensamento que é corroborado por Burke (2002). Em conformidade com o historiador Burns (1972), a história registra que os primeiros artefatos criados pelo homem aparecem no período Paleolítico Inferior, quando o homem de Neanderthal já fazia uso de alguns instrumentos como, armas e utensílios que suprissem as deficiências da força muscular. A princípio, eram simples galhos de árvores utilizados como porretes. Depois, descobre que lascando as pedras poderia dar-lhes gumes cortantes. A parte mais grossa da pedra (o que sobrava), era segurada na palma da mão, dando origem ao machado manual desempenhando as funções de: rachador, serra, faca e raspador. No final desse período, surgem métodos mais aperfeiçoados de lascar a pedra. Passa a utilizar as próprias lascas dando início à manufatura de pontas de lanças, facas, perfuradores e raspadores bem mais eficientes. No Paleolítico Superior, o Homem de Cro-Magnon convive com instrumentos e utensílios mais aperfeiçoados e com mais variedades. Utiliza além das lascas de pedra e hastes de ossos, outros materiais como o chifre de rena e o marfim. Exemplos de artefatos mais complicados começam a surgir: a agulha de osso, o anzol, o arpão e a flecha. O uso de roupas (feitas de peles de animais costuradas umas às outras) já aparece, visto o homem desse período ter feito botões de ossos e de chifres e por ter inventado a agulha. É provável que o homem de CroMagnon utilizava adornos feitos de dentes de 205 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 203-213 <http://www.cienciasecognicao.org/> animais e conchas perfurados. Contudo, a suprema realização do Homem de Cro-Magnon, foi a sua arte – escultura, pintura, entalhe e gravação, acham-se bem representados em uma clara evidência de que está registrando os seus construtos, o que já pode diferenciá-lo dos outros animais (Burns, 1972). Pela arte o homem primitivo teria começado a refletir, dando um enorme salto no desenvolvimento cognitivo, desenvolvendo um cérebro com um excesso de possibilidades criativas, usadas para a solução de problemas mais complexos e para a arte. Com isso vão aparecendo as várias subjetividades no ser humano. Os padrões rígidos coletivos sendo alterados em várias culturas, com valores e modos de viver diversos (Pacheco e Silva Filho, 2003). No período Neolítico, as armas e os instrumentos de pedra passaram pelo método do polimento através do atrito, ao contrário dos períodos anteriores, quando utilizava o sistema de fratura e separação de lascas. O nível de progresso material é bem mais expressivo, sobretudo no que diz respeito ao desenvolvimento da agricultura e da domesticação de animais. O homem neolítico era produtor de alimentos. Tais circunstâncias demonstram que o homem desse período começa a se sedentarizar. O aumento mais rápido da população torna-se viável favorecendo o desenvolvimento das instituições: a família, a religião e o estado. É provável que uma das causas da origem do estado – talvez a mais importante – remonta no desenvolvimento da agricultura. Inventou os primeiros barcos e jangadas, o que contribuiu para a sua difusão para várias partes do mundo. Destacam-se ainda as artes de tecer e fiar pano. Foi o primeiro a fabricar cerâmica e descobriu o fogo através do atrito. Observa-se que a faculdade inventiva do homem neolítico era bem mais aguçada do que a dos seus antepassados. Novos instrumentos e habilidades técnicas são acrescentados ao seu arsenal. Construiu casas de madeira e barro secado ao sol e no final desse período, descobriu a possibilidade do uso dos metais e já apareciam alguns instrumentos de cobre e ouro entre os demais artefatos do seu cotidiano. © Ciências & Cognição Em resumo, segundo Burns (1972), as verdadeiras pedras angulares da cultura neolítica foram, sem dúvida, a domesticação de animais e o desenvolvimento da agricultura. Um grande passo no desenvolvimento da espécie humana foi a possibilidade de usar uma linguagem. A invenção da escrita tornou possível estocar informação e conhecimento fora do cérebro humano e tudo leva a crer que, num certo sentido, a invenção da linguagem escrita indica o nascimento da ciência. Entretanto, não se pretende aprofundar esta discussão porque tende a ultrapassar as fronteiras desta proposta, ou seja, trabalhar com o conceito de “artefato”, termo tão utilizado e nem sempre bem compreendido, porém, não no sentido lato, mas restrito à construção de objetos de uma maneira geral. Esse retrospecto histórico é importante na medida em que favorece o reconhecimento que homem, ao longo do seu processo evolutivo, atingiu uma enorme capacidade intelectual. Isto lhe permitiu desenvolver uma extraordinária cultura e a tendência, é avançar sempre porque a busca do conhecimento não cessa e não pode ser interrompida; faz parte da natureza humana. No princípio, os procedimentos eram extremamente simples e rudimentares e, nem poderia ser diferente. Entretanto, quando o homem foi se tornando mais criativo e exigente, esses mesmos artefatos evoluem e adquirem contornos mais sofisticados, com outras utilidades e com mais aplicações até atingir o atual nível tecnológico. Afinal, eles foram e devem continuar sendo criados para cumprir um objetivo. Como salienta Dennett (1998: 24), “[...] a meta ou o propósito de um artefato é a função a que ele deve servir designada pelo seu criador”. Quando se trata de procurar os antepassados de todo esse arsenal tecnológico tal como hoje é visto, sentido e usufruído, não se pode esquecer que todas essas descobertas possuem efeitos multiplicadores, já que se repercutem em muitas outras ações, bem diferentes e mais aprimoradas. Depois de tudo que foi analisado, retoma-se à questão inicial, ou seja, quando se associa artefato à robótica a partir das expli- 206 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 203-213 <http://www.cienciasecognicao.org/> cações dadas, torna-se mais fácil compreender que um robô é apenas um exemplo de artefato, aliás, é o artefato mais moderno e mais em voga hoje. O que foi apresentado é o ponto de partida para uma compreensão mais facilitada da robótica, das suas aplicações e de suas inter-relações com a sociedade. Considerando que artefatos podem ser várias coisas, diz-se ainda que eles poderiam ser ou não, inteligentes. A propósito, a questão da inteligência, hoje embutida no conceito de artefato, é fruto da época contemporânea e será esclarecido mais adiante, especialmente quando forem mencionados os robôs atuais. Contudo, antes de falar sobre inteligência, toma-se a dianteira com as manifestações de Piaget (apud Calvin, 1998: 11): “[...] inteligência é aquilo que você utiliza quando não sabe o que fazer [...]”. Esta ênfase de Piaget, aparentemente simples, por si só pode ajudar a compreender que inteligência não é simplesmente uma aptidão inata defendida e apregoada por muitos, isto é, somos ou não inteligentes. Ela envolve esperteza, criatividade, improvisação, intuição, capacidade crítica, tomada de decisão, capacidade de memorização e outros atributos mais. Como arremata Calvin (1998: 23): “a inteligência diz respeito ao processo de improvisação e aprimoramento na escala temporal do pensamento e da razão”. Certamente é isso que se deseja das nossas máquinas inteligentes. As pesquisas em Inteligência Artificial caminham nesta direção. Sem dúvida é um desafio, porém, não é de hoje que os cientistas defrontam-se com grandes desafios em todo o campo científico que tendem a ressurgir com mais força, à medida que a ciência avançar cada vez mais para tentar explicar os mistérios da mente humana. Essa introdução é o ponto de partida para uma compreensão da robótica, para clarear a idéia de robô, a grande variedade deles e, sobretudo, para as finalidades para as quais são projetados e suas implicações tecnológicas. Na seqüência, será examinado o início desse processo. 2. Histórico da robótica © Ciências & Cognição O desejo veemente de construir robôs não é de hoje. Alguns fatos remetidos à história mostram que a idéia é muito antiga e se levado às últimas conseqüências, ver-se-á que o conceito de robô acompanha a história do homem, ou seja, desde quando os mitos faziam alusão a certos mecanismos que passavam a ter vida. Desta feita, os primeiros registros de seres artificiais com capacidades humanas, envolvem mitos e lendas. A história ilustra com alguns fatos muito significativos. Segundo Pazos (2002), no Egito antigo sacerdotes construíram os primeiros braços mecânicos que eram utilizados em estátuas de deuses com a intenção de atuar sob a “inspiração” daqueles, como meio de impressionar o povo. Na Grécia antiga, há registros de estátuas que operavam hidraulicamente. Na Idade Média, havia relógios no cume das igrejas e exibiam uma figura humana de tamanho natural, às vezes em forma de anjo, ou mesmo de demônio, fazia movimentos com um martelo que batia num sino para marcar as horas. A lenda de Golém, por exemplo, é um dos fatos mais interessantes do passado mítico. Conta a lenda que: “Joseph Golém era um homem artificial que teria sido criado no fim do século XVI por um rabino de Praga, na Tchecoslováquia, que resolvera construir uma criatura inteligente, capaz de espionar os inimigos dos judeus – então confinados no gueto de Praga. O Golém teria sido criado a partir de um boneco de areia esculpido pelo rabino, que lhe concedeu também o dom de falar e raciocinar. A lenda diz que o Golém era de fato um ser inteligente, mas que um dia se revoltou contra seu criador, o qual então lhe tirou a inteligência e o devolveu ao mundo do inanimado.” (Teixeira, 1990: 17) Nos séculos XVII e XVIII, proliferaram muitos mitos e lendas a respeito de seres artificiais. O caso do flautista mecânico, do célebre “pato de Vaucanson”, o leão animado de Leonardo da Vinci e seus esforços para fazer máquinas que reproduzissem o vôo das 207 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 203-213 <http://www.cienciasecognicao.org/> aves, são alguns exemplos. Porém eram artefatos muito limitados (para nós, hoje), pois não podiam realizar mais do que uma tarefa, ou um número bem reduzido delas. Mas, talvez resida aí o início desta inquietação humana. Houve muitas outras invenções mecânicas durante a revolução industrial sendo a grande maioria, direcionada aos interesses da produção têxtil. A máquina de fiar de Cromptom de 1779 (Pazos, 2002: 7), é um exemplo entre tantas outras. Em 1805, a boneca construída por Henri Maillardet em Londres, escrevia e desenhava com precisão. “Levava uns cinco minutos para executar uma tarefa e tinha vários itens no seu repertório (armazenados numa memória mecânica) que podiam ser selecionados” (Pazos, 2002: 6). Hoje ela pode ser vista no Franklin Institute de Pensilvânia – Estados Unidos. O conceito de robótica há muito convive conosco. Ele evoluiu do conceito de automação. Derivada do grego, automação significa: “having motion within itself5 ” (Mortimer, 1987: 1). O termo robótica aplica-se ao estudo, à construção e à utilização de robôs em geral. Foi expresso pela primeira vez em 1942 pelo cientista e escritor Isaac Asimov, numa história chamada “Runaround” (História da Robótica, 1998). Na verdade, Asimov começou a escrever histórias sobre robôs em 1939, embutidas de salvaguardas. Tais salvaguardas foram formalizadas em três leis para a robótica, “hoje tidas como código de ética dos profissionais da área” (Alves, 1988: 1). São as seguintes: 1ª lei: Um robô não pode prejudicar um ser humano ou, por omissão, permitir que o ser humano sofra dano. 2ª lei: Um robô tem de obedecer às ordens recebidas dos seres humanos, a menos que contradigam a Primeira Lei. 3ª lei: Um robô tem de proteger sua própria existência, desde que essa proteção não entre em conflito com a Primeira e a Segunda Leis (Asimov, 1997, p. 9). © Ciências & Cognição Mais tarde, Asimov, acrescentou uma quarta lei - a Lei Zero: “Um robô não pode causar mal à humanidade nem permitir que ela própria o faça6.” As leis propostas são vistas hoje através de uma perspectiva puramente relacionada à ficção, uma vez que na época em que foram escritas, não se poderia prever o avanço vertiginoso nesta área. Entretanto, duas tecnologias desenvolvidas mais recentemente e consideradas como o antecedente imediato da robótica, merecem destaque: o comando numérico (final da década de 40 e início de 50) e o telecomando. A primeira se baseia no trabalho original de John Parsons: “Essa tecnologia é utilizada para controlar as ações de uma máquina operatriz, a qual é programada por meio de números, que podem ser introduzidos através de um teclado ou pela leitura de um cartão perfurado. Esses números podem especificar, por exemplo, as diferentes posições das ferramentas da máquina para efetuar uma usinagem adequada numa peça.” (apud Pazos, 2002: 7) A segunda tecnologia, o telecomando, trata do uso de um manipulador remoto controlado por um ser humano: “O manipulador é um dispositivo, em geral eletro-mecânico, que pode ser uma garra, um braço mecânico ou ainda um carro explorador, que reproduz os movimentos indicados por um operador humano localizado num local remoto. Esses movimentos podem ser indicados pelo operador através de um joystick ou algum outro tipo de dispositivo adequado. O telecomando é especialmente útil no manuseio de substâncias perigosas, tais como materiais radiativos, a altas temperaturas, tóxicos ou explosivos. O operador pode ficar num lugar situado a uma distância segura, e manipular o material observando e guiando os movimentos do manipulador através de uma 208 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 203-213 <http://www.cienciasecognicao.org/> janela ou de um circuito fechado de televisão.” (Pazos, 2002: 7) Uma aplicação do telecomando muito utilizada hoje é na medicina, em cirurgias realizadas em órgãos pequenos, como por exemplo, olhos e ouvidos, o que permite maior precisão de movimentos. A base do robô moderno encontra-se na combinação de telecomando e comando numérico. Contudo, é tão somente no início do século XX, que a idéia de construção de robôs ganha corpo devido a necessidade de aumentar a produção e da melhora da qualidade dos produtos. E é nesse período que o robô industrial encontrou suas primeiras aplicações. Em 1950, Asimov publicou o livro “I, Robot”, um verdadeiro clássico da ficção científica. Por muito tempo a robótica não passou disso. Os robôs eram vistos em história em quadrinhos, filmes, livros e até mesmo em peças teatrais. A propósito, a palavra robô tem origem numa das suas mais prestigiadas peças de teatro do autor tcheco Karel Capek, apresentada em Praga no início do século XX, intitulada Rossum’s Universal Robots 7 (R.U.R.) . A palavra robô, de origem tcheca – robota - quer dizer trabalhador forçado, que na obra de Karel Capek, se refere ao robô Rossum (cientista) e seu filho, criados para prestar serviços à humanidade de forma obediente e servil vindo este termo posteriormente a generalizar-se na indústria por causa da evolução introduzida pela automação. No desenrolar da tragédia tais “criaturas” se rebelam contra seus criadores assumindo o comando. É a imaginação do autor utilizada para criticar o progresso tecnológico introduzido na Europa pelos norte-americanos. A exemplo desta tão famosa peça teatral, a ficção científica ganha corpo e inúmeros filmes do gênero foram produzidos. Entre os mais famosos estão: “O dia em que a terra parou” de 1951, “2001: Uma odisséia no espaço” de 1968, “Guerra nas estrelas” de 1977, entre tantos outros. E, bem recentemente, o filme “AI” de Spielberg, que trata de um robô dotado de consciência. Mas, não é esse tipo © Ciências & Cognição de robôs mágicos da ficção científica que a robótica trata, pelos menos, até agora. Na verdade, os roboticistas concentram suas pesquisas na produção de artefatos e no desenvolvimento de robôs como máquinas informáticas, com sistemas complexos com funções interligadas, com a finalidade de processar informações. Suas ações dependem da variedade de informações que elas consigam processar. Neste contexto, de acordo com Martins (1993: 10): “robótica é a ciência dos sistemas que interagem com o mundo real com pouca ou mesmo nenhuma intervenção humana”. Para conceber os mais variados dispositivos robóticos, esta ciência é uma área transdisciplinar em grande expansão. Necessita de conhecimentos de vários campos científicos: da microeletrônica, da engenharia mecânica, da engenharia elétrica, da matemática e de outras ciências e, como não se poderia deixar de mencionar, da Inteligência Artificial. Busca o desenvolvimento e a integração de técnicas e algoritmos para a criação de artefatos inteligentes ou não, sendo o artefato de maior popularidade hoje, o robô. É esta sintonia com várias áreas do conhecimento, requerida pela robótica, que tem possibilitado o avanço nesse campo. Para uma melhor compreensão da robótica e seu relacionamento com a sociedade é importante esclarecer, dentro do possível, o que significa um robô e porque estas criações de laboratórios de Inteligência Artificial se distinguem de outras máquinas. Algumas definições são de origem mais abstratas e vêem os robôs como sistemas que interagem com o mundo real. Outras, mais técnicas, os consideram como verdadeiras máquinas animadas, porém, outras ainda mais detalhadas ajudam a sintetizar suas principais características não só dos já existentes, bem como dos que ainda estão por vir. Na verdade, inúmeras definições têm surgido como é o caso desta, por exemplo, baseada na idéia francesa de robô, assim expressa: “Robô é um dispositivo automático adaptável a um meio complexo, substituindo ou prolongando uma ou várias funções do homem e capaz de agir sobre seu meio” (Mar- 209 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 203-213 <http://www.cienciasecognicao.org/> tins, 1993: 13). Este conceito pode ser comparado com a moderna interpretação do pesquisador canadense, Marshall McLuhan, ao afirmar que: “todo produto da tecnologia, de alguma forma, faz estender nossos sentidos e nervos” (apud Martins, 1993: 13). Neste contexto, alguns exemplos como o automóvel e outros meios de transporte seriam extensões de nossos pés, assim como os meios de comunicação, rádio, TV, etc., estendem as capacidades do nosso sistema nervoso central: fala, audição e visão. Assim são os robôs quando substituem ou prolongam uma ou mais funções humanas ao agirem nos ambientes para os quais foram projetados e tem impulsionado enormemente o desenvolvimento da robótica. Entre outras aplicações, os robôs são utilizados para pintar automóveis a pistolas (a spray), para fundir metais ou plásticos, para misturar produtos químicos, para desativar bombas, na pesquisa científica e educacional, etc. Entre as definições de robô apresentadas, salienta-se aquela que é oficializada pela Associação das Indústrias de Robótica (antigo RIA – Robot Institute of América), que o define como: “a programmable, multifunction manipulator designed to move material, parts, tools, or specific devices through variable programmed motions for the performance of a variety of tasks8” (Roussel e Norvig, 1995: 773). Este conceito, um pouco mais abrangente, coloca em evidência os termos ‘manipulador’ e ‘programável’, característicos do robô propriamente dito excluindo, assim, certas máquinas que não são robôs como, os eletrodomésticos de um modo geral, que para muitos se confundem com eles. Entretanto, este conceito é válido para os robôs da segunda geração. De acordo com Martins (1993: 15-16), esses conceitos parecem não satisfazer os pesquisadores da área da robótica, argumentando que são por demais simplificados e incompletos e por não se referirem às características fundamentais dos robôs atuais, ou seja: © Ciências & Cognição b) capacidade de excluir por inspeção; c) capacidade de identificar peças; d) capacidade de posicionar peças. No entanto, existem controvérsias por parte da Japan Industrial Robot Association (JIRA), que defende que máquinas operadas pelo homem podem ser consideradas robôs, independentemente da complexidade delas. Como se pode observar, as divergências entre os profissionais desta área são visíveis. Porém, independente dos desacordos, seria possível uma definição que possa ser adotada mundialmente? O que se pode adiantar, é que a robótica entre nós se mostra incipiente e o caminho a ser percorrido é longo e árduo. A chegada dos robôs propriamente ditos é muito recente; deu-se nos inícios dos anos 60, agindo no complexo mundo da produção industrial. Desde então, vem ganhando espaço e desempenhando tarefas geralmente difíceis de altíssimo risco para o homem, ou extremamente cansativas. 3. Gerações de robôs Aqui serão consideradas três gerações de robôs9, a saber: • Primeira Geração: Robô Pick-and-Place; • Segunda Geração: Robô Play-Back; e, • Terceira Geração: Robô Inteligente. Importante ressaltar que, dessas, as duas primeiras gerações continuam a ter aplicações generalizadas. A terceira geração, os chamados Robôs Inteligentes não apenas têm limitação em aplicações, como também carece de consenso sobre suas reais características, uma vez que a própria palavra “inteligente” ainda é objeto de debate em várias áreas do conhecimento, da psicologia à tecnologia. No entanto, aqui será levado a cabo o fato de que essa terceira geração de robôs é necessária, como será visto na breve descrição de cada uma delas, a seguir. 3.1. Primeira geração: robô pick-and-place a) sensitividade; 210 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 203-213 <http://www.cienciasecognicao.org/> A primeira geração de robôs é caracterizada por movimentos simples de ida e volta, com o efetuador (garra, etc.) abrindo-se e fechando-se para a realização de tarefas como manipulação repetitiva de materiais. Nesta categoria encontram-se os alimentadores de papel em gráficas, manipuladores de materiais incandescentes em metalúrgicas, etc. O controle dos robôs de primeira geração é feito por curso e parada mecânica, através de parafuso sem fim, o que equivale dizer que a programação de uma tarefa para esses robôs é quase inflexível, e feita com muito pouca liberdade de mudança. Em outras palavras, os robôs de primeira geração não possuem flexibilidade de programação de novas tarefas, o que limita muito sua aplicação em células flexíveis da manufatura. Ainda, pode-se afirmar que (os robôs de primeira geração) tem um número bastante reduzido de tarefas diferentes as quais pode executar. Além disso, os robôs de primeira geração não possuem sensores externos para monitoração de seu ambiente de trabalho. Com isso, alguma mudança ocorrer em seu ambiente, que por ventura vier a ocorrer, a mesma não é detectada pelo robô. Por exemplo, se a peça que o robô deveria pegar, para deslocá-la para outro lugar, não estiver no devido lugar, o robô se comporta como se a mesma lá estivesse. Isso pode ocasionar paradas obrigatórias em uma linha de produção, por exemplo. 3.2. Segunda geração: robô play-back A segunda geração de robôs conseguiu superar a limitação observada nos robôs de primeira geração, ampliando significativamente o número de tarefas diferentes as quais pode executar. Tendo seu controle efetuado por computador digital, a programação de uma tarefa é armazenada em um programa de computador, escrito em uma linguagem dedicada ao robô alvo. Isso significa que mudança de tarefa equivale a mudança do programa correspondente. Essa flexibilidade é a principal característica que diferencia a primeira da segunda geração de robôs. © Ciências & Cognição É comum ver-se nos pátios de montadoras de veículos automotores os robôs de segunda geração, com aplicações em pintura, solda, montagem, etc. Se um robô de segunda geração está executando uma tarefa de solda a ponto na linha de produção de um modelo de automóvel, por exemplo, a mudança de sua tarefa para um outro modelo se dá através da mudança do programa que fará o robô executá-la. Importante salientar, no entanto, que os robôs de segunda geração não necessariamente possuem sensores externos, que o fariam capazes de monitorar mudanças em seu ambiente de trabalho. Nisso, os robôs de segunda geração se igualam aos de primeira geração. Há casos, é verdade, em que alguma forma de sensoriamento é agregada ao efetuador do robô, trazendo alguma facilidade na execução de tarefas. Mas isso representa uma exceção, não a regra. Isto é, o robô de segunda geração não é capaz de descobrir, por si só, se o modelo de automóvel não é mais o mesmo e, sozinho, tomar a decisão de mudar o programa (tarefa) para atender a esta mudança. Evidentemente que, se o número de modelos é pequeno, pode-se até prever algumas (poucas) situações em que tal mudança pudesse efetuar-se. Mas, ainda assim, isso teria um custo elevado. Também, isso seria exigir demais da segunda geração de robôs, pois alguma coisa parecida com inteligência (seja isso o que for) estaria presente. Daí a necessidade de uma nova geração de robôs, a terceira, os chamados robôs inteligentes. 3.3. Terceira geração: robô inteligente A necessidade de se dotar um robô de capacidade de tomar decisão em situações não previstas leva, necessariamente, a uma nova geração de robôs, a qual se convencionou chamar de robô inteligente. Note que, para a mudança da primeira para segunda geração de robôs, a área tecnológica foi auto-suficiente. Mas, da segunda para a terceira geração, isso não é possível. Uma das razões para isso é o fato da área tecnológica ser extremamente 211 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 203-213 <http://www.cienciasecognicao.org/> eficiente em “como fazer”, e não necessariamente em “o que fazer”. O nome, inteligente para a terceira geração de robôs, deve ser explicitado, o que é feito a seguir: do latim, intellegere, significa aprender, mas ela é muito mais que a capacidade de aprender. Além da capacidade de aprender, é preciso levar em conta uma série de outros atributos, tais como: raciocínio, memorização, adaptação ao meio e, ainda, a motivação e o esforço. Verifica-se, então, como John McCarthy (2007), conceitua inteligência: “intelligence is the computational part of the ability to achieve goals in the world. Varying kinds and degrees of intelligence occur in people, many animals and somemachines”. A inteligência é um processo. Se fosse possível chegar a um consenso sobre o conceito de inteligência, provavelmente facilitaria a árdua tarefa de caracterizar os assim chamados robôs inteligentes. Essa complexidade da inteligência dificulta não só a compreensão da inteligência propriamente dita, como também a ampliação dessa compreensão para os robôs. A evolução presenteou a nós, seres humanos, com capacidade de tomada de decisão. E, também, aos animais e, até certo ponto, aos vegetais. Mas, principalmente, aos seres humanos. Aprender um pouco o que significa essa capacidade pode ser o "caminho das pedras" para a mudança da segunda para a terceira geração de robôs. E essa é uma tarefa não trivial, uma vez que, a área tecnológica sozinha, não é capaz de tal façanha. Como diz o poeta, "vamos precisar de todo mundo": psicologia, pedagogia, evolução, etologia, engenharia, educação, etc., e, principalmente, a neurociência, pois ela é que tem nos presenteado (neste inicio de milênio), com pesquisas sobre novos modelos mentais. Tais modelos podem ser de grande utilidade para dotar os robôs de terceira geração de capacidade de tomada de decisão em situações não previstas. Em resumo, a principal característica da terceira geração de robôs (robô inteligente) é a sua capacidade de monitorar seu ambiente e, em função de mudanças ambientais, tomar decisões que podem, inclusive, modificar este próprio ambiente. Em outras palavras, o robô © Ciências & Cognição inteligente terá que descobrir, sozinho "o que fazer" em certas situações. Isso já é suficiente para ter-se uma idéia da complexidade envolvida em projetos de robôs de terceira geração. Não é a toa que a robótica, literalmente, parou na segunda geração. Não há nada de novo na área (Dyson, 1999), preocupando-se apenas a desenvolver brinquedos para ricos. É imperativo, portanto, que trabalhos como este ganhem espaço no meio científico, pois uma vez que novos modelos mentais são disponibilizados pela neurociência, podem ser colocados em uma linguagem formal e, a partir daí, poderem ser tentados em robôs, agora sim, de terceira geração. 4. Conclusões As três gerações de robôs contemplam a totalidade dos robôs implementados hoje. Sejam fixos ou móveis, antropomórficos ou não. Aliás, algumas pesquisas sobre robôs antropomórficos, como os que auxiliam no estudo do equilíbrio de bípedes (que não pode ser considerado um problema trivial, também), podem ser de grande ajuda para pessoas com dificuldade de locomoção9. É interessante, também, colocar o robô, independente de sua geração, como mais um artefato de automação. Nada mais que isso. Ou seja, ele representa a tentativa da capacidade intelectual do ser humano de exercer as funções superiores de sua mente em ação: procurar facilitar a vida. 5. Referências bibliográficas Alves, J.B.M. (1988). Controle de robô. Campinas: Editora Cartgraf. Asimov, I. (1997). O homem bicentenário. (Persson, M, Trad.). Porto Alegre: L&PM Editores, (Original Publicado em 1976). Burke, T. J. (2002). Vida e morte na terra. Blumenau: Editora da FURB. Burns, E.M. (1972). História da civilização ocidental: do homem das cavernas até a bomba atômica. 2. Ed. (Machado, L.G., Machado, L.S. e Vallandro, L., Trads.). Porto Alegre: Editora Globo. (Original Publicado em 1941). 212 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 203-213 <http://www.cienciasecognicao.org/> Calvin, W.H. (1998). Como o cérebro pensa: a evolução da inteligência, ontem e hoje. (Tort, A. Trad). Rio de Janeiro: Editora Rocco. (Original Publicado em 1996). Dennet, D.C. (1998). A perigosa idéia de Darwin: a evolução e os significados da vida. (Rodrigues, T.M., Trad.). Rio de Janeiro: Editora Rocco. (Original Publicado em 1995). Dyson, F. J. (1999). O sol, o genoma e a Internet. São Paulo: Editora Schwarcz. Ferreira, A.B.H. (1978). Pequeno dicionário da língua portuguesa ilustrado. 11ª Ed. Rio de Janeiro: GAMMA. Ferreira, A.B.H. (1999). Dicionário Aurélio eletrônico século XXI. Versão 3.0. Editora Nova Fronteira e Lexikon Informática. Houaiss, A. (2001) Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia. Rio de Janeiro: Editora Objetiva. Hurst, W.J. e Mortimer, J.W. (1987). Laboratory robotics: a guide to planning, programming, and applications. Estados Unidos: VCH Publishers. © Ciências & Cognição Kubrick, S. (1968). 2001: Uma Odisséia no espaço. Direção: Stanley Kubrick. Produção: Stanley Kubrick e Victor Lyndon. Intérprete: Keir Dullea Gary Lockwood e outros. Roteiro: Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke. Música: Danúbio Azul. Local: Warner Home Vídeo-Brasil. Martins, A. (1993). O que é robótica. São Paulo: Editora Brasiliense. McCarthy, J. (2007). What is artificial – Basic questions. Retirado em 15/10/2007, do endereço eletrônico: http://www.formal. stanford.edu/jmc/whatisai/nodel1.html. Pacheco e Silva Filho, A.C. (2003). Psicanálise e neurociências. Rev. Psiquiatria Clín., 30 (3). Pazos, F. (2002). Automação de sistemas & robótica. Rio de Janeiro: Axcel Books do Brasil Editora. Roussel, S.J. e Norvig, P. (1995). Artificial intelligence: a modern approach. New Jersey: Prentice Hall. Teixeira, J.F. (1990). O que é inteligência artificial. São Paulo: Editora Brasiliense. Notas (1) Importante: Este artigo é uma compilação de capítulo de mesmo título da tese de doutorado de Dulce Halfpap, defendida em 2005, Programa de Pós-Graduação em Engenharia e Gestão do Conhecimento (EGC), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. (2) Os dicionários não necessariamente contemplam definições técnicas, todavia se foi buscar de outras fontes para ajudar a esclarecer temas como: artefato, mente, consciência e memória; que são tratados neste trabalho. (3) a) Alguma coisa criada pelo homem, geralmente para uma finalidade prática; especialmente: um objeto remanescente de um período específico (cavernas contendo artefatos pré-históricos); b) alguma coisa característica de, ou resultante de uma atividade ou instituição humana – self-consciousness... resulta num artefato de nosso sistema de educação – Times Literary Supplement; c) um produto de caráter artificial (assim como em um teste científico) geralmente devido a uma ação externa (humana). Tradução livre). Disponível no endereço eletrônico: http://www.merriam-webster.com/dictionary/artifact (4) Um artefato pode ser definido como um objeto que foi intencionalmente feito ou produzido para um determinado propósito. Frequentemente a palavra ‘artefato’ é usada em um sentido mais restrito ao se referir a objetos feitos a mão simples (ferramentas) que representam uma cultura em particular. (Este pode ser o sentido arqueologico da palavra). Em ciência experimental, a expressao artefato é usada para se referir a resultados experimentais os quais não são manifestações do fenômeno natural estudado, mas são devidos a uma configuração em particular do experimento. Tradução livre). Disponível no endereço eletrônico: http://plato.stanford.edu/entries/artifact/#Oth. (5) Aquilo que se movimenta por si mesmo. Tradução livre. (6) Isaac Asimov. Disponível no endereço eletrônico: http://en.wikiquote.org/wiki/Isaac_Asimov#Three_Laws _of_Robotics (7) Os Robôs Universais de Rossum. (8) Um robô é um manipulador programável, multifuncional projetado para manipular materiais, peças, instrumentos, ou dispositivos específicos através de vários movimentos programados para desempenhar uma variedade de tarefas. (Tradução livre). (9) Obtida em palestra sobre Robótica, proferida pelo Prof. João Bosco da Mota Alves, no RExLab/UFSC, no dia 14 de outubro de 2005. 213 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 214-218 <http://www.cienciasecognicao.org> © Ciências & Cognição Submetido em 13/10/2007 | Revisado em 27/11/2007 | Aceito em 28/11/2007 | ISSN 1806-5821 – Publicado on line em 03 de dezembro de 2007 Ensaio Cognição e texto: a coesão e a coerência textuais Cognition and text: the literal cohesion and coherence Carmen Elena das Chagas Estudos de Linguagem, Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil Resumo Este trabalho objetiva apresentar um estudo sobre a importância da coesão e da coerência na construção da progressividade do texto, mas tomando como modelo, o processo cognitivo que ambas necessitam para exercer o fundamental papel de elementos lingüísticos presentes na superfície textual, pois se interligam e se interconectam, por meio de recursos também lingüísticos, de modo a formar um “tecido” no contexto em que estão inseridas. Utilizando os pressupostos teóricos da Lingüística Textual e os fundamentos dos autores cognitivistas, observarei o desenvolvimento dos modelos cognitivos que as justificam, proporcionando a continuidade de sentido. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 214218. Palavras-chave: sentido; modelos cognitivos; coesão; coerência; progressão textual. Abstract This paper objectives to present a study on the importance of the cohesion and the coherence in the construction of the progressive of the text, taking as model the cognitve process that both need to exert the basic paper of linguistic present elements in the literal surface, that if they estabilish connection and if they interconnect, by means of also linguistic resources, in order to form one text in the context where they are inserted. Using the estimated theoreticians of the Linguistic and the bedding of the cognitivistes authors, I will observe the development of the cognitives models that justify them, providing the direction continuity. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 214-218. Key Words: signification; cognitive models; cohesion; coherence; progression. 1. Introdução A interpretação real é um ato mental, precisamente, um processo cognitivo de usuários da linguagem. O resultado deste processo é uma representação conceitual do discurso na memória. Se esta representação é satisfatória para um número de propriedades, diz-se que um usuário da linguagem entendeu o discurso. Beaugrande e Dressler (1981: 37) postulam que o texto é originado por uma multiplicidade de operações cognitivistas interligadas, “um documento de procedimentos de decisão, seleção e combinação”, de maneira que caberia à Lingüística Textual desenvolver - C.E. das Chagas é Mestranda na Área de Linguagem, Sub-área Língua Portuguesa (UFF). Atualmente, é Professora de Língua Portuguesa dos Ensinos Fundamental e Médio. Apresenta interesse por pesquisa nas áreas de Língua Portuguesa, especificamente Lingüística Textual, Análise do Discurso e Sociolingüística. E-mail para correspondência: [email protected]. 214 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 214-218 <http://www.cienciasecognicao.org/> modelos procedurais de descrição textual capazes de dar conta dos processos cognitivos que permitem a integração dos diversos sistemas de conhecimentos dos usuários da comunicação, na descrição e na descoberta de procedimentos para a sua atualização e para o tratamento no quadro das motivações e estratégias da produção e compreensão dos textos. A mente humana é um processador de informação, ou seja, ela recebe, armazena, recupera, transforma e transmite informação, bem como os processos correspondentes que podem ser estudados como padrões. Van Dijk (1977) defende que o processamento cognitivo de um texto consiste de diferentes estratégias processuais, entendendo-se estratégia como “uma instrução global para cada escolha a ser feita no curso da ação”. Tais estratégias são hipóteses operacionais eficazes sobre a estrutura e o significado de um fragmento de texto ou de um texto inteiro. Falar em processamento estratégico significa dizer que os usuários da língua realizam, simultaneamente, em vários níveis passos interpretativos finalisticamente orientados, efetivos, flexíveis, e eficientes . O cognitivo apresenta-se sob a forma de representações e tratamento ou formas de processamento da informação. Pode-se, assim, dizer que a memória opera em três momentos ou fases. Estocagem, quando as informações perceptivas são transformadas em representações mentais associadas a outras; retenção, quando se dá o armazenamento das representações; e reativação, quando se opera, entre outras coisas, o reconhecimento, a reprodução, o processamento textual. Existem duas maneiras gerais para se construir representações mentais. No processamento “de-baixo-para-cima” o falante começa com eventos perceptuais individuais que ocuparão os mais baixos níveis da representação e se constrói generalizações sucessivas para dar sentido a esses dados. No processamento “de-cima-para-baixo” revela um confronto com um número de fatos bem limitado. O falante importa um esquema mental inteiro, com toda sua estrutura já feita e todos os seus compartimentos disponíveis, mesmo que vagos. Assim, qualquer que seja a fonte, entre- © Ciências & Cognição tanto, estruturas de expectativa são mecanismos poderosos que nos possibilitam a chegar a uma representação mental e manter o interesse pelo texto. 2. Coesão e coerência A coesão e a coerência no texto falado mostram que o estudo destes dois fatores que constituem o texto deve ser feito de forma diferenciada dos textos escritos, pois a conversação se produz de maneira dialógica, já que se refere a uma criação coletiva. A coerência apresenta-se como um princípio de interpretabilidade do texto, envolvendo fatores de ordem cognitiva, interacional e lingüística. Este princípio se relaciona à boa estrutura do texto, estabelecendo a partir de uma unidade de sentido o que a caracteriza como ato global, ou seja, refere-se ao texto como um todo. “É algo que se articula pela interação, num processo de construção mútua, pelas relações estabelecidas e percebidas pelos falantes” (Aquino, 1991: 85). O falante utilizará certos sinais lingüísticos no texto com o objetivo de dar pistas para ajudar os interlocutores a chegar a uma representação mental adequada. Este uso de meios lingüísticos para facilitar a coerência pode ser definido como coesão textual. Assim, um sinal de coesão indica como a parte do texto na qual ele aparece se liga conceitualmente a outra parte do texto. Este sinal, normalmente, é designado como elo coesivo. A coesão é bem comum no discurso, isto nos leva a acreditar que ela tem uma função comunicativa grande: possibilitar a coerência em alguns casos. Um sinal de coesão indica como a parte se liga, conceitualmente, com uma outra parte do texto. É normal referir-se a estes sinais como ligações ou elos coesivos. Cada língua possui seus próprios meios de utilizar a coesão. Ela pode ocorrer através de: expressões descritivas que, na representação mental, o conceito se liga a um anterior, contribuindo, assim, para a coerência; identidade que faz ligação com formas idênticas ou com referência ou denotações idênticas; relações lexicais 215 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 214-218 <http://www.cienciasecognicao.org/> que ocorrem através de hiponímia e meronímia e outros meios afins. Um texto é coerente se descreve fatos conhecidos ou que sejam relacionados entre si. Em termos mais cognitivos, portanto, um texto é coerente se puder ser interpretado em um modelo mental ou formal. “Os temas “coesão” e “coerência” estão longe de uma definição clara. Na conversação, a coesão não pode ser definida em termos estritamente formais, pois o texto se produz dialogicamente, concorrência de dois ou mais agentes. A coerência não é uma unidade de sentido e sim uma dada possibilidade interpretativa resultante localmente. Dois interlocutores se entendem não só são coerentes no que dizem, mas principalmente, porque sabem do que se trata em cada caso. E quando não sabem, manifestam seu desentendimento de modo a integrálo como parte efetiva no próprio texto.” (Marcuschi, 1986: 02) O texto conversacional é coerente, mas acontece é que o mesmo obedece a processos de ordem cognitiva e, muitas vezes, torna-se difícil detectar as marcas lingüísticas e discursivas dessa ocorrência, pois ela nem sempre se dá com base nessas marcas, mas na relação entre os referentes. Desta forma, um texto conversacional pode ser considerado coerente se os referentes apresentados puderem ser organizados como pertencentes ao mesmo quadro. Além disso, estes referentes precisam fazer parte de um conjunto, isto é, os elementos presentes no co (n) texto devem ser pertinentes. Breaugrande e Dressler (1981) consideram constituírem a coesão e a coerência níveis de análise. A coerência apresentada muitas vezes, macrotextualmente, refere-se à maneira como os elementos do universo textual (Levinson et al., 2004) se unem numa configuração de modo acessível e relevante. Isto é, a coerência é o resultado de processos cognitivos operantes entre os usuários e não uma simples parte dos textos. Esses conhecimentos que determinam a produção de senti- © Ciências & Cognição do e, conseqüentemente, a coerência estão armazenados na memória em forma de estruturas cognitivas como conceitos, modelos cognitivos globais e superestruturas. Os conceitos são um conjunto de conhecimentos guardados nas memórias semântica e episódica, em unidades consistentes, mas não estanques. Os modelos cognitivos globais são blocos de conhecimentos utilizados, intensamente, no processo de comunicação e que representam de forma organizada nosso conhecimento armazenado na memória. Dividem-se em: 1- Frames são situações estereotipadas e sem ordenação em nossa memória como, por exemplo, elementos que se referem ao carnaval (serpentina, mascarado e samba) ou ao Natal (chaminé, presentes, ceia). 2- Esquemas são seqüências ordenadas previsíveis e fixas como, por exemplo, a situação de um casamento, um acidente ou aniversário. 3- Planos são possibilidades onde se pode perceber a intenção do escritor ou do falante como procedimentos para conseguir um emprego ou uma promoção. 4- Scripts é quando se pode especificar os papéis dos participantes de forma determinada como, por exemplo, características de crianças ou de adolescentes. 5- Cenário são situações que se estendem ao domínio da referência como a idéia de atos que acontecem num clube, numa escola ou num tribunal. Já as superestruturas compõem a forma global de um texto e definem a organização e as relações hierárquicas entre seus fragmentos. Os estudiosos do texto afirmam que a coerência depende, acima de tudo, de nosso conhecimento prévio e não só dos modelos cognitivos globais citados acima, mas sim do elemento base, situado em nosso conhecimento de mundo que sustenta todos os outros, já a coesão é bem constante no discurso, pois indica que ela possui uma carga de comunicação expressiva. A coesão está para a coerên- 216 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 214-218 <http://www.cienciasecognicao.org/> cia como a forma lingüística que se usa está para aquilo o que se quer expressar. 3. Progressão referencial A progressão referencial de um texto refere-se às estratégias lingüísticas por meio dos quais se firmam (estabelecem) entre segmentos do texto diversos tipos de relações semânticas ou pragmático-discursivas, contribuindo para a progressão do texto. Weinrich (1964) postula uma “estrutura determinativa” cujas partes são interdependentes, sendo todas necessárias à interpretação. Esta interdependência é permitida, às vezes, pelo uso de diversos mecanismos de seqüenciação encontrados na língua. Koch (2006: 7) mostra que a referenciação constitui uma atividade discursiva, pressuposto este que implica uma visão de não-referenciação da língua e da linguagem. Na mesma linha de pensamento Mondada e Dubois (apud Cavalcante et al., 2003) sublinham que no lugar de pressupor uma estabilidade a “priori” das entidades no mundo e na língua, é possível reconsiderar a questão de estabilização, pois os objetos-de-discurso pelos quais os indivíduos entendem o mundo não são preexistentes, nem dados, porém são elaborados no desenrolar de suas atividades, transformando-se a partir dos contextos. A referenciação privilegia a relação intersubjetiva e social, na qual as referências do mundo são elaboradas e avaliadas de acordo com a adequação dos objetivos das ações que estão em desenvolvimento nos enunciadores. Segundo Castilho (2004), durante a interação, tomam-se decisões sobre como administrar o pensamento, que palavras escolher, que propriedades ativar. Essa administração configura um conjunto de momentos mentais, no sentido etimológico de “movimentos”. Três conjuntos simultâneos de instruções, três movimentos ou processos discursivo-computacionais podem ser aí identificados: a ativação, a reativação e a desativação. Ainda Koch e Marcuschi (apud Koch et al., 2005) defendem que a discursivização ou textualização do mundo por meio da linguagem não consiste em um mero processo de © Ciências & Cognição elaboração de informações, mas na (re) construção do próprio real. Os objetos-dediscurso não se confundem com a realidade externa ao ato lingüístico, mas (re) constroem-na no próprio desenvolvimento da interação. Assim, a realidade é construída, mantida e alterada não apenas pela forma como se nomeia o mundo e sim pela forma como, sóciocognitivamente, interage-se com ele. Os sujeitos interpretam e constroem o mundo na interação com os espaços físico, social e cultural. Marcuschi e Koch (apud Abaurre, 2002) examinam alguns aspectos de dois conjuntos de estratégias de progressão referencial na língua falada: primeiro, a referenciação por meio de expressões nominais definidas e, segundo, a referenciação anafórica sem antecedente explícito. Ambas desempenham papel importante na organização do texto e, por decorrência, na construção do sentido. Ambas dizem respeito à sucessão de referentes, um aspecto central no processo de textualização e fator relevante da coesão e da coerência. 4. Conclusão Desta forma, conclui-se que a progressão textual precisa garantir a continuidade de sentidos e o permanente ir e vir responsável pela tessitura do discurso. Assim, para propiciar o constante movimento de progressão e de retroação, o produtor dispõe de uma série de estratégias ou procedimentos que desenvolvem um papel relevante que, também, são destinados a assegurar uma continuidade de referentes, ou melhor, de objetos de discurso, adquirida pela cadeia referencial que não permite que estes objetos sejam arquivados, permanecendo em estado de ativação na memória de trabalho durante o processamento textual. Representações mentais não ficam limitadas à compreensão de discurso, mas são ferramentas mais gerais, fundamentais para a cognição humana. A organização que os ouvintes associam a um determinado discurso é um reflexo da maneira como o conteúdo é visto como coeso pelo ouvinte e assim fica armazenado na sua mente. Outros fatores que 217 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 214-218 <http://www.cienciasecognicao.org/> contribuem para a representação mental que os ouvintes têm do discurso são os seus conhecimentos prévios de como as coisas acontecem no mundo real, junto com as suas expectativas sobre o que o falante pretende dizer, pois os discursos nos forçam a utilizar tudo o que sabemos sobre a nossa cultura, língua e o mundo. O produtor de um texto cumpre regras gerais de coesão e coerência e usa um número elevado destas estratégias ou destes procedimentos eficientes para conseguir alcançar a unidade do texto. Estas articulações cognitivas e sociais podem desenvolver pequenos cortes interpretativos quando o interlocutor fala fora do tópico ou quando algum turno parece incoerente com o turno anterior. O falante pode reagir quando uma tomada de turno anterior for brusca, pode acrescentar algum detalhe explicativo sobre determinado assunto ou usar uma troca de turno para uma ratificação, retomando o que fora afirmado antes. Tais estratégias semânticas fazem parte de um conjunto de elos comunicativos e interacionais usados para estabelecer certos objetivos como, por exemplo, compreender o mundo. 5. Referências bibliográficas Abaurre, M.B.M. (Org.) (2002). Gramática do Português Falado – Novos estudos descritivos. Vol. VIII. São Paulo: UNICAMP. © Ciências & Cognição Aquino, Z.G.O. (1991). A mudança de tópico no discurso oral dialogado. Dissertação de mestrado. São Paulo: PUC- SP. Beaugrande, R. e Dressler, W.N. (1981). Einfhrung in die Textlinguistik. Tübingen: Niemeyer. Castilho, A. (2004). A língua falada no ensino de português. 6ª ed. São Paulo: Editora Contexto. Cavalcante, M.M.; Rodrigues, B.B. e Ciulla, A A. (2003). Referenciação. São Paulo: Editora Contexto. Koch, I.G.V. (2006). 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Stuttgard: Kokthammer. 218 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org> S u b me t i d o e m 1 6 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 6 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e © Ciências & Cognição e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7 Ensaio O uso de narrativas autobiográficas no desenvolvimento profissional de professores The use of autobiographical narratives in the professional development of teachers Denise de Freitas, a e Cecília Galvãob a Departamento de Metodologia de Ensino, Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, São Paulo, Brasil; bCentro de Investigação em Educação, Departamento de Educação, Faculdade de Ciências, Universidade de Lisboa, Lisboa, Portugal Resumo Utilizar o recurso da narrativa autobiográfica levou-nos a inscrever nossos episódios de vida pessoal e profissional e encontrar lugar para os significados das trajetórias e das práticas de formadoras de professores. A narrativa pessoal nos ajudou a perceber como nos fomos construindo profissionalmente. Duas questões constituíram-se como fios da investigação: 1) Que momentos marcantes identificamos na nossa vida profissional? 2) Como descrevemos esses momentos e como explicamos teoricamente a sua influência no nosso desenvolvimento profissional? A própria construção da metodologia de investigação se constitui em uma narrativa na medida em que a recolha de dados são as escritas autobiográficas sobre os percursos singulares que foram sendo construídas por nós, investigadoras, no entrecruzamento de nossas histórias de professoras e formadoras de professores e pesquisadores. A análise ressignifica e reinterpreta os olhares que temos de nós mesmas, pondo em evidência outras emoções e razões das quais antes não nos tínhamos apercebido. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 219-233. Palavras-chave: narrativas de professores; desenvolvimento profissional; pesquisa autobiográfica. Abstract - D. Freitas é Doutora em Educação (FEUSP) com Pós-doutoramento (Universidade de Lisboa). Atua como Professora Associada do Departamento de Metodologia de Ensino (UFSCar) e como Pesquisadora no Programa de PósGraduação em Educação (UFSCar) no campo da Educação (sub-áreas: i) formação de professores de Ciências; ii) educação científica; iii) inovação curricular; iv) educação ambiental). Endereço para correspondência: Departamento de Metodologia de Ensino (UFSCar). Rodovia Washington Luis, Km. 235, SP 13565-905. Telefone: (16) 3351-8662. Email para correspondência: [email protected]. C. Galvão é Graduada em Ciências Biológicas, Mestre em Educação na área de Metodologia do Ensino das Ciências e Doutora em Educação (FCUL). Atua como Professora no Departamento de Educação, Faculdade de Ciências (Universidade de Lisboa). Leciona e Investiga nas áreas de Desenvolvimento Curricular, Educação em Ciências, Desenvolvimento Profissional de Professores, Narrativa em Educação, Educação para a Saúde e Educação Ambiental. Participa do Grupo de Coordenação do Centro de Investigação em Educação e a Comissão Executiva do Departamento de Educação da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Endereço para correspondência: Departamento de Educação da Faculdade de Ciências (Universidade de Lisboa), Campo Grande, Edifício C6, Piso 1, 1749-016, Lisboa, Portugal. Telefone: (351) 21 75 000 49, E-mail para correspondência: [email protected]. 219 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Making use of such means as the autobiographical narrative has led us to put into words our personal and professional life stories and to find a place to the meaning of those paths and our practices as teacher educators. The personal narrative has helped us to notice how we’ve been developing as professionals. Two questions have become the thread of investigation: 1) What meaningful moments do we identify in our professional life? 2) How do we describe such moments and how do we explain theoretically their influence on our professional development? The construction of the investigation methodology becomes a narrative itself, considering that the data collecting refers to the autobiographical writings about the remarkable paths which have been built by us, researchers, in the intersection of our stories as teachers and teacher/researcher educators, and researches. This analysis brings a new meaning and a new reading on the way we see ourselves, also setting in evidence other emotions and reasons which we hadn’t been aware of. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 219233. Key Words: teachers´ narratives; professional development; autobiographical research. Introdução “Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa, de algum modo, escrito em mim. Tenho é que me copiar...” Clarice Lispector Olhar para o passado pode ajudar-nos a encontrar explicação para significados nas ações que temos hoje como pessoas que foram construindo um percurso pessoal e profissional rico de cruzamentos com os outros e a dar sentido ao nosso posicionamento como professoras e formadoras de professores. As nossas intenções são acadêmicas, mais do que pessoais, embora saibamos que a pessoa e o profissional se interligam e se expressam de um modo completo e integrado (Moita, 1995). O recurso à narrativa autobiográfica inscrevese na idéia de que, ao narrarmos episódios com significado, os analisaremos de uma forma contextualizada, tentando que essa análise ponha em evidência emoções, experiências ou pequenos fatos marcantes, dos quais antes não nos tínhamos apercebido. Para Bakhtin (1981: 345), há uma “decisiva significância na evolução da consciência individual, à medida que a pessoa distingue o seu próprio discurso do de outros, entre o seu próprio pensamento e o de outras pessoas”. O discurso internamente persuasivo, para Bakhtin, está fortemente interligado com a “própria palavra”; mesmo no “pensamento próprio” e na compreensão dialógica da linguagem, esse discurso é metade nosso e metade do outro, construindo-se sobre elementos de discursos de autoridade. Para a compreen- são dessa consciência individual, o recurso à narrativa, trazendo à luz o que está escondido, configura-se como um método que estabelece ligação entre o processo mental e o discurso que o exprime (Bruner, 1991: 6), isto é, “a narrativa opera como instrumento do pensamento ao construir a realidade”. Como diz Hannah Arendt, é no espaço para palavras que se podem produzir verdades de si. E por meio do autoconhecimento e da experiência de si, Michel Foucault considera que se dá o processo de subjetivação, experiência entendida como “o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, o que acontece, ou o que toca” (Larrosa, 2002: 21). Com esta investigação, procuramos saber quem somos ou, citando Heikinen (1998), como me tornei quem sou? Florbela Espanca, a esse respeito, diz magistralmente no poema “Eu” o seguinte: “Até agora eu não me conhecia. Julgava que era Eu e eu não era Aquela que em meus versos descrevera Tão clara como a fonte e como o dia.” “Mas que eu não era Eu não o sabia E, mesmo que o soubesse, o não dissera… Olhos fitos em rútila quimera Andava atrás de mim e não me via!” 220 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org/> Quantas vezes nos descrevemos a partir de imagens que fomos criando, longe do nosso verdadeiro eu, tentando que os outros nos devolvam a imagem que pensamos que estamos a transmitir-lhes, mas apenas nos enganamos a nós próprios. Vamos neste artigo procurar que a narrativa de nós nos ajude a perceber como nos fomos construindo profissionalmente, através de um olhar mais personalizado, tentando que o eu e o Eu do poema se tornem coincidentes e consistentes. Optamos por partir de um problema central: como construímos, narrativamente, o nosso processo de desenvolvimento profissional? E desenhamos, com base nele, duas questões de investigação: 1) Que momentos marcantes identificamos na nossa vida profissional? 2) Como descrevemos esses momentos e como explicamos teoricamente a sua influência no nosso desenvolvimento profissional? Na idéia da curvatura de espaçotempo, em “que o espaço e o tempo interagem e são relativos um ao outro e que o espaço é curvo” (Elbaz-Luwisch, 2002: 25), se harmoniza nosso “desejo narrativo” neste trabalho. Queremos poder revisitar um tempo passado de nossas vidas e, ao recontá-lo, potencializar novos significados do nosso presente e perspectivar a construção do devir, em consonância com a forma como Cavaco (1991: 157) vislumbra esse movimento no meio físico e social. “Num universo saturado de informação tecem-se as palavras e os factos, as regras e os usos, os implícitos e os explícitos, em processos de fluidez movediça, reveladora do jogo das forças contrastantes. O sentido das coisas torna-se difuso e, todavia, em cada um de nós coexistem, em cada momento, memórias do passado e expectativas de futuro que se combinam na forma como vivemos o presente e contribuímos para o modelar, projetando-o no devir.” © Ciências & Cognição Do mesmo modo, desejamos curvar o espaço guiando reflexões que poderão dar novas direções aos conhecimentos no campo da formação de professores e de pesquisadores na educação científica. Tentaremos, a partir dos momentos que identificamos como marcantes e que nos permitem fazer um balanço retrospectivo, isto é, olhar para o caminho percorrido, para os acontecimentos, as situações, as atividades, as pessoas com significado, perceber: “os recursos, os projetos, os desejos que são portadores de futuro. No passado não há somente as coisas que ocorreram, há também todo o potencial que cada indivíduo tem para prosseguir a sua existência de futuro.” (Josso, 2004a: 16) O querer da caminhada é guia pela grafia da memória A própria construção da metodologia de investigação se constitui em uma narrativa, na medida em que não se pode dissociar a fase de recolha de dados dos percursos singulares que foram sendo construídos por nós, investigadoras, no entrecruzamento de nossas histórias de professoras e formadoras de professores e pesquisadores. Ou seja, são duas histórias com começo, meio e fim, que dialogaram para a sua construção. O início: reconhecimento da empatia para desnudar Como é natural da vida social dos seres humanos, procuram-se permanentemente situações de estabilidade para manutenção do eu. Dependendo da posição que se ocupa na profissão, impõem-se níveis de exigências mais ou menos elevados em relação à preservação de identidade profissional. Via de regra, na academia a exigência e a inflexibilidade estão colocadas em patamares muito elevados. Dessa forma, a entrega para elaborar nossas próprias narrativas, neste trabalho, não esteve alheia a esse tipo de resistência devido à personalidade, como caracteriza Huberman 221 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org/> (1973), uma vez que as nossas imagens pessoais e profissionais poderiam estar em jogo. Acreditamos que esta perspectiva foi se despontando depois que farejamos e reconhecemos pontos de confluência em nossas maneiras de ser e estar na vida e em nossas trajetórias pessoais. Apesar das diferenças, inclusive de pátrias (Brasil e Portugal), a identificação de inúmeras similaridades permitiu a aproximação por indicar possibilidades de compreensão. De forma natural, o projeto deste artigo nasce ao mesmo tempo em que incorríamos na etapa do discurso. Era o início de um percurso metodológico para a construção das narrativas em que “a forma oral é importante, pois a memória não funciona num ápice, é necessário criar condições que facilitem a rememorização da sua história” (Josso, 2004b). O “desejo narrativo” foi ativado de forma intensa e logo seus primeiros traços figuravam no papel. Cartografias das narrativas: os primeiros esboços Traçando suas escritas... Uma de nós sentiu necessidade de realizar a narrativa sem interrupção, sem parada, e nessa retrospectiva a narrativa surge como uma catarse constantemente “interrompida” para dar lugar à objetivação. Os fatos da sua história de vida foram ordenados temporalmente e dispostos numa seqüência classificatória de acordo com a expressão máxima de sua relação com os momentos considerados por si como charneiras. Assim, foram dispostos em fila seus antecedentes e suas conseqüências, colocados ali de forma apressada e apertada, quase “pisando os calcanhares uns dos outros”. Para outra de nós, ao começar, a escrita desperta o sabor que a ela lhe é peculiar. Pouco a pouco, lentamente, aquecendo a memória, as reminiscências vão tomando conta de si e ganhando dimensão própria, impassíveis ao controlo. Os acontecimentos, ainda com lugar no tempo, andam errantes. E como que suspensos no ar, sem lacunas, os fatos são © Ciências & Cognição detalhados pelo prazer de reviver cada espaço, cada canto, cada cheiro, cada sabor; é a delícia de ser a si reinventada numa escrita livre e marota trazendo para fora o seu lado mais alegre da infância. Apesar das diferenças culturais, o resultado dessas narrativas foi o mesmo observado por Sousa (2005: 105): “[...] quando homens e mulheres professores narram suas histórias de vida e de formação observa-se que, em maior ou menor grau, elas estão articuladas à família, à escola, aos grupos de convívio, que funcionam como espaços de construção e de reprodução de padrões socialmente aceitos de feminilidade e masculinidade.” Ao evocarem as memórias nos territórios escolar e familiar, os acontecimentos emergiram e fizeram novamente história. E a força e o poder das palavras escritas fizeram “coisas conosco” e nos colocaram novamente “diante de nós mesmos, diante dos outros e diante do mundo em que vivemos” (Larrosa, 2002: 21). Elaborando suas leituras... Nós, interlocutoras primárias dessas narrativas, trocamos os olhares, os pedaços de vida não revelados. Ao mesmo tempo em que a leitura e releitura evocavam em cada uma nova profusão de acontecimentos, aqueles que foram colocados de lado não por serem menos marcantes, mas por ficarem algures sem sabermos, por ora, os porquês, os significados e os significantes do conteúdo foram intensamente compartilhados. Os focos foram para as diferenças, mas, principalmente, para as similaridades que ajudaram a consolidar a confiança. Para nós, esta fase funcionou como uma transferência simbólica do processo psicanalítico (Villani, 1999). Uma espécie de ajuste inicial em que aspectos simultaneamente cognitivos e subjetivos entram em jogo. Acreditar que o Outro tem escopo e saber para ajudar e orientar-nos no encontro de nós 222 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org/> mesmas foi fundamental para a entrada e a manutenção neste processo quase analítico, mesmo que sustentadas por esta passageira, mas necessária, ilusão. Desse encontro das leituras, surgem movimentos para inclusões dos acontecimentos. Devemos continuar ou paramos onde estamos? Quais as implicações num e noutro caso? O que interessa para uma pesquisa científica? Interromper o desejo e a necessidade de falar sobre si é lícito na perspectiva adotada da indissociabilidade entre a pessoa e o professor? Com o apoio advindo do discurso de autoridade, especificamente em Bakhtin (1981), verificamos que as autobiografias ao longo da história da civilização traçam uma tipologia e esta se relaciona com o conceito de público e privado, realidade interior e exterior versus indissociação do campo visível e invisível, esferas do silêncio e da exposição do discurso. As autobiografias platônicas envolvem uma autoconsciência individual relacionada com as formas estritas de metamorfose. No seu íntimo, está o “curso da vida à procura do verdadeiro conhecimento” (Bakhtin, 1981: 130). Nelas, a vida aparece partida em épocas ou degraus bem demarcados. Vai da ignorância autoconvencida, passa pelo cepticismo autocrítico, por autoconhecimento e, finalmente, por conhecimento autêntico. No esquema platônico, há um momento de crise e de renascimento como um ponto de viragem no curso da vida. As autobiografias retóricas, desde os primórdios da escrita nos gregos clássicos, são determinadas por acontecimentos; relatos de atos de natureza cívica ou política ou mesmo relatos de seres humanos quando estes dão visibilidade a acontecimentos vividos. Diferentemente, “o mais importante não é o tempo e o espaço da vida representada, mas é o exterior real no qual a representação de alguém ou da vida de alguém é realizada através da narrativa verbal de um ato cívico ou político ou através do relato do self” (Bakhtin, 1981: 131). Este tipo de autobiografia é de uma época em que o privado não existia, tudo era público, nada era secreto, tudo era subme- © Ciências & Cognição tido ao controle público e do estado e era avaliado publicamente. Não havia diferença entre o ponto de vista biográfico e autobiográfico. Na era Helênica e Romana, alguns retóricos puseram a questão: é permitido um relato do próprio eu? A resposta positiva dirigiu-se para a imagem que os gregos clássicos tinham da existência humana e das coisas e nesta não havia o conhecimento de uma realidade invisível, portanto, “a unidade da totalidade externalizada do homem era de natureza pública” (Bakhtin, 1981: 135). Nas épocas seguintes, a imagem do homem foi distorcida pelo aumento de participação nas esferas mudas e invisíveis da existência. E com elas veio a solidão. O pessoal e dividido ser humano perdeu a unidade e totalidade que tinha sido um produto de origem pública, tornou-se abstrato e idealista. Um vasto número de novas esferas de consciência e de objetos apareceu na vida privada do indivíduo, esferas essas que, em geral, não eram tornadas públicas (a sexual e outras). Nos dias atuais, portanto, num contexto novo, as escritas personalizadas que refletem a influência do esquema platônico incorporam um novo objetivo. Recentemente, o que obtemos no inventário de uma pessoa é a exposição dos seus acontecimentos, o registro dos seus sucessos, com um comentário autobiográfico público. É a seqüência da obra própria pelo próprio que fornece o sólido suporte para se compreender a passagem do tempo numa vida. A objetivação da narrativa autobiográfica dá-se a partir da seqüência crítica marcante na continuidade da vida relatada. A consciência do eu nesse contexto é revelada apenas para um círculo restrito de leitores (no nosso caso, a academia), a biografia é construída para eles, havendo aqui a noção de público, embora numa dimensão menor (Bakhtin, 1981: 139). Desse diálogo, algumas respostas provisórias foram construídas para definir esta etapa da pesquisa. Entendemos que, na narrativa, a catarse pessoal é um fenômeno naturalmente humano, ou seja, dependendo da pessoa e do contexto, ele ocorre com maior ou menor exposição do eu. Esta não deve ser evitada, mas orientada definindo os seus contor- 223 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org/> nos dentro do campo científico. Não significa sua castração, muito pelo contrário, abre e aponta perspectivas de construção de outros espaços para sua vazão (social, psicanalítico, autoconhecimento, entre outros). Dessa forma, nossa resposta sobre a continuidade ou não da narrativa caminhou na direção do que consideramos necessário para a explicitação do pensamento dos professores sobre a construção do processo de identidade de modo a fornecer pistas significativas para a compreensão da cognição situada (Roth, 2004). Imbricando o processo de construção das narrativas pessoais com os movimentos iniciais de (de)formação de olhares na investigação, de modo a construir um outro campo de significações, o científico, orientamos a memória das narrativas para preencher os espaços lacunares necessários a esse campo. Dar significado ao conteúdo discursivo no campo da ciência Na perspectiva de Wenger (1998) de que as comunidades de prática são caracterizadas como histórias partilhadas de aprendizagem em que construir uma identidade significa negociar os significados da nossa experiência como membros de comunidades sociais, entendemos que falar de identidade em termos sociais não é negar a individualidade, mas ver a individualidade como fazendo parte de práticas de comunidades específicas. Na vida do dia-a-dia, é difícil dizer com exatidão onde acaba a esfera individual e começa a coletiva. As nossas práticas, linguagens, artefatos e pontos de vista refletem as nossas relações sociais. Até os pensamentos mais privados fazem usos de conceitos, imagens e perspectivas que compreendemos através da nossa participação em comunidades sociais. A identidade na prática é definida socialmente, não só porque está reificada num discurso social do eu e num discurso de categorias sociais, mas também porque é produzida como uma experiência vivida de participação em comunidades específicas. Uma identidade é uma classe de acontecimentos de participação e de reificação através dos quais a nossa experiência e a sua interpretação social se constroem © Ciências & Cognição mutuamente. “Sabemos quem somos através do que é familiar, compreensível, usável e negociável; sabemos quem não somos pelo que é estranho, opaco, inutilizável e improdutivo” (Wenger, 1998: 153). Numa primeira interpretação, a dialogicidade dos textos indica, de maneira global, que as histórias apresentam momentos por vezes relacionados aos espaços da historiografia, do entrecruzamento cultural, quiçá da evolução das civilizações. Encontramos tempos marcados pelas idéias, filosofias, políticas locais e globais. Numa classificação tipológica, as narrativas neste trabalho aproximam-se do esboço platônico, em que a exposição dos acontecimentos da vida aparece partida em épocas bem demarcadas por pontos de mudanças identificadas por uma análise autobiográfica pública. Ou seja, não só encontramos episódios que indicam o que pensamos que somos ou dizemos acerca de nós, como também o que os outros pensam ou dizem que somos. Percebemos as esferas mudas e invisíveis da vida privada que, em geral, não são tornadas públicas, ao mesmo tempo em que observamos uma tentativa de recriar a totalidade e exterioridade da existência. Para Wenger, à medida que crescemos através de uma sucessão de formas de participação na sociedade, as nossas identidades formam trajetórias. Trajetória é um movimento contínuo em que se interpõem os acontecimentos próprios e os de conjunto, produzidos num campo de influências, o qual se delineia numa linha de coerência que liga o passado, o presente e o futuro. Para sua definição, esse autor parte da idéia de que a construção da identidade é um processo que se dá em contextos sociais nos quais ela vai sendo definida pelas interações de múltiplas trajetórias convergentes e divergentes e nesse percurso a temporalidade é fundamental e muito mais complexa do que a simples noção linear de tempo. Para Wenger (1998: 155), as trajetórias podem ser classificadas em: i) periféricas – caminhos que não levam à participação total; ii) de entrada – início a novos percursos; 224 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org/> iii) interiores – a evolução da prática continua através de novos acontecimentos, pedidos, invenções, novas gerações, criando ocasiões para renegociar a sua identidade e a dos outros; iv) de fronteira – algumas trajetórias encontram o seu valor tecendo fronteiras em seus próprios percursos e ligando comunidades de prática; v) de saída – conduzem para fora da comunidade; vi) paradigmáticas – fornecidas aos novatos pelos pares mais experientes; a sua comunidade, a sua história e a sua evolução configuram as trajetórias que constroem. São testemunhas vivas do que é possível, do que é esperado e desejável. Numa análise mais focada nos momentos de crise e de renascimento, nos pontos de viragem no curso da vida encontramos algumas trajetórias que, tendo em vista seu conteúdo, poderiam significar momentos de risco para a evolução de uma identidade profissional. Em ambas as narrativas, a visão da passagem de uma fronteira para outra parece corroborar a tese rousseauniana de que a infância é para ser passada no seio familiar e que a escola constituir-se-ia num perigo para a libertação das crianças face às restrições das normas e das regras. “Antes da obrigação da escola, sem pressas, num tempo de férias contínuas, assim se iam tecendo os dias nessa outra escola de avós e de velhos, de muitas crianças e animais. A natureza plena onde, de pés nus sujos de terra e erva, corria horta fora, abraçando árvores e sonhos, inventando vidas.” (Formadora A – grifo dela) “…ir para a escola significou, no primeiro momento, uma “intervenção perigosa”, que punha em risco a relação familiar. Uma relação marcada por um sentimento de medo pelo afastamento das pessoas queridas. A imagem da es- © Ciências & Cognição cola era angustiante.” (Formadora B – grifo dela) Percebemos nas narrativas que as trajetórias de entrada no universo da escola pelo papel de alunas deram-se tanto pela transformação da inclinação natural da infância de experimentar as coisas da vida contemplando a natureza de forma solitária como pela percepção de ruptura com os laços afetivos do convívio familiar. Entretanto, ainda nessa trajetória, o papel da escola ganha contornos significativos. Na linha do pensamento de Dewey e Piaget sobre a importância que assume a escola na construção de um espaço em que as crianças possam desenvolver, ao seu ritmo, a sua aprendizagem, tem-se uma significação desenvolvida a partir das correlações entre o papel da família e o da escola. “Quando busco rememorar esta fase, duas imagens são fortes: a imagem da pessoa terna e maternal da minha primeira professora e de sua relação de presença com os seus alunos e a imagem do meu jogo de aluna-filha que impunha tacitamente regalias concedidas pela professora para desempenhar o seu papel em algumas ocasiões, privilegiadamente naquelas em que exercia controle, como, por exemplo, verificar as tarefas feitas pelos alunos (colegas da sala) passando visto em seus cadernos. Hoje, penso que essa explicação que construí muito mais tarde pode acobertar outras razões de busca. Da família queria o limite e da escola, a liberdade.” (Formadora B – grifo dela) Em outra narrativa, o fato de a família já ter significação sobre a aprendizagem faz com que a ressignificação se dê pela clarificação da distinção dos objetivos entre a primeira escola (família) e a segunda escola (instituição escolar). “Quando entrei para a escola na cidade, a aldeia ficou intermitente na minha vida, em que as férias recriavam todas as 225 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org/> vivências anteriores. Passei a olhar à volta de outra maneira, a compreender um pouco mais os acontecimentos e a espantar-me por nunca ter notado antes certas ocorrências. Notei como as pessoas pareciam precocemente envelhecidas, como as crianças estavam persistentemente com feridas nas pernas e nos braços, fruto de picadas de insetos, coçadas e não desinfectadas. Incomodavame o facto de as pessoas não dizerem bem as palavras, “mãos” eram transformadas em “mãs”, algumas terminações das palavras não existiam e havia frases e palavras que, por vezes, não entendia por estarem tão deturpadas como a pergunta “aonde vandas?” corruptela de “onde é que vocês vão?” Foi a constatação de que afinal eu não aprendia tudo ali, havia a escola que me ensinava melhor algumas coisas como a fala e a escrita.” (Formadora A – grifo dela) Alguns acontecimentos das narrativas apontam para a constituição da memória coletiva e nesta evidenciam-se alguns acontecimentos que marcam épocas históricas da educação em vários contextos políticos, econômicos e culturais, trazendo à tona o que Charlot (2005) chama de os universais das situações de ensino. Nos dois contextos, temos: “A imagem é de escola “cinzenta” e castigadora, formadora de espíritos obedientes e sem opinião, modelo de uma época fascizante para quem a educação era uma ameaça. Associo sempre medo ao dia-a-dia, da professora que podia bater, do teste que viria negativo, da matéria que não tinha compreendido, do exame que não me deixaria passar, do que dizer aos meus pais para não os magoar ou defraudar nas suas expectativas.” (Formadora A – grifo dela) “Uma professora temida por todos pela sua relação distante e extremamente rigorosa com os alunos. Desta fase tenho poucas lembranças, mas quando busco © Ciências & Cognição evocar, uma me ocorre sempre, que é a de uma professora gordinha, com cara de brava e com expressão tensa de quem está com medo. Lembro-me do dia em que ela bateu com a régua na minha carteira. Era costume fazer em situações de desagrado, batendo, por vezes, na mão ou cabeça dos alunos. Não me recordo de sentir medo, muito pelo contrário, encontro, na escola, o sentimento de indiferença na relação interpessoal, e este não me afetou, nem para calar, nem para bradar.” (Formadora B – grifo dela) Para essas formadoras, a imagem de uma escola fria e de uma professora hostil não teve força para configurar o que Wenger define como trajetórias de saídas. Ou seja, para conduzi-las para fora da comunidade escolar. Contrariamente, como vemos abaixo na narrativa da Formadora B, a sua ligação com a figura materna e as práticas de representação de papéis sociais vivenciadas por ela na infância e apoiadas pelos familiares constituíram-se como trajetórias de fronteiras que acalentaram um desejo crescente pela participação na comunidade escolar, não no papel de aluna, mas sim no de professora. “[...] elegi como brincadeiras preferidas as de mãe e de professora [...] Tinha o maior prazer em cuidar da minha imagem pessoal ao encarnar a personagem de professora e talvez essa influência tenha vindo da minha mãe, que era uma mulher vaidosa e elegante (...) Por volta dos 10 anos, quando já me sentia envergonhada com os olhares dos outros e quando já não queria mais ser alvo das atenções, é que percebi que o que era no início uma representação, uma brincadeira, tinha se tornado um método de estudo, ou seja, já não conseguia estudar se não fosse dessa forma, ensinando [...] Mais tarde, com 13 anos, essa forma foi transferida para o estudo em grupo. Assim, sempre que possível, eu estudava com os colegas 226 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org/> dissertando sobre o que tínhamos aprendido.” (Formadora B – grifo dela) No caso da Formadora B, em que a família e a escola constituem trajetórias de fronteira para a sua inclusão e pertencimento ao mundo intelectual e educacional, vemos que alguns acontecimentos promovidos pelos pais são potencializados pelas ações de alguns dos professores. Conforme excertos de sua narrativa, podemos dizer que essa amplificação de ações tenha, inclusive, definido mais tarde a sua opção pela área Ciências Naturais. “[...] professor de Ciências que considero uma referência importante, por ter contribuído com a minha mudança na forma de conceber a metodologia de ensino. [...] uma professora de Biologia que [...] todos nós gostamos do seu método de aula. Além disso, admirávamos a sua competência intelectual. [...] professor de Química fantástico [...] muito respeitado pela comunidade escolar por sua competência. De suas características abstraí sua paixão pela Química (área de conhecimento) e respeito e valorização pela profissão professor. [...] Foi a partir daí que comecei a traçar uma meta profissional: queria ser cientista. Nesse ponto, fui bastante estimulada pelo meu pai, que comprava para mim os Kits “Pequenos Cientistas” [...].” (Formadora B – grifo dela) As narrativas autobiográficas trazem em sua elaboração pessoal o sentido idiossincrático das experiências de vida e fazem emergir os processos identitários da inserção dos sujeitos nos grupos sociais. As memóriasdenúncias apontam a existência de tempos em que a escola se alinha aos preceitos de uma política ditatorial e reclamam por resistências. “Houve, no entanto, um episódio que foi, talvez, o que mais contribuiu para uma viragem no modo como passei a encarar a minha relação com a vida, isto é, intervindo mais nos acontecimentos do que esperando que acontecessem © Ciências & Cognição para depois reagir. Estava no último ano do curso [secundário], conseguira ir a exame a todas as disciplinas com boas notas excepto a Físico-Química, porque as aulas eram de molde a que não conseguíssemos acompanhar a matéria. [...] No dia da oral, lá estava ela, presidente de júri, imponente e de cara fechada. Senti um vómito a acompanhar o medo e olhei para as caras pálidas das outras alunas e sabia que eram o espelho da minha. A oral correu bem [...] No fim todos os que assistiam me deram os parabéns, incluindo a minha professora de física do ano anterior. [...] Quando a pauta da oral saiu, à frente do meu nome havia uma palavra escrita a vermelho que eu não conseguia ler pela impossibilidade que o meu cérebro estabelecia [...] eu tinha reprovado no exame. Olhei para a cara triste dos meus pais e a rapariga tímida que corava quando os professores se lhe dirigiam acabou ali. Corri em direcção à sala dos professores, e com o magote de colegas e familiares atrás, abri a porta, enfrentei a professora e perguntei aos gritos “Por que é que reprovei?” “Quais as questões a que não respondi?” “Exijo uma resposta!” [...] Talvez de todo o episódio o que mais me marcou foi a solidariedade de todas as pessoas presentes, a maior parte eu desconhecia por serem familiares de alunas, oferecendo-se para testemunhas de um processo em tribunal. Estávamos em 1973, vivíamos tempos de grande repressão, o meu pai era militar e desaconselhou a queixa. O sentimento de injustiça foi tão forte que a certeza da minha razão fez-me crescer e não me incomodar com a reprovação. [...] É provável que este acontecimento tivesse mudado o meu futuro, se, por acaso, se pode falar assim. [...] Foi um ano em que comecei a dar explicações de todas as matérias aos vizinhos, a preços baratíssimos, mas que me permitiram perceber o valor de ganhar o meu próprio dinheiro e constatar que gostava de explicar os assuntos e de ver como aque- 227 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org/> las crianças ultrapassavam as dificuldades.” (Formadora A – grifo dela) Esse trecho da narrativa, como diz Larrosa (1999:15), indica que muitas vezes a educação é o lugar de realização do projeto que o educador tem sobre o educando, mas também é o lugar em que o educando resiste a este projeto, afirmando sua alteridade, afirmando-se como alguém que não se deixa reduzir aos modos como ele o vê, como alguém que não aceita a medida do seu saber, do seu poder. Outros momentos das narrativas apontam para as trajetórias paradigmáticas (Wenger, 1998), nas quais elementos constitutivos da identidade profissional vão ganhando força e significado no contato com os membros mais experientes da comunidade. No caso da Formadora A, vemos que a sua interação com o pensamento de autores, pelo ato da leitura, é o mote para a construção da sua identidade com o campo intelectual: “descobrir que os livros continuavam o meu mundo com o qual me relacionava imediatamente foi outra conquista, abrindo-me novas perspectivas de viver, como se eu me desdobrasse noutras pessoas”; e a envolve profunda e empaticamente nessa esfera coletiva, dando-lhe o sentido de pertencimento a essa comunidade. Mais tarde, na entrada à Faculdade, a evolução dessa prática (trajetórias interiores) se dá com o advento de novos acontecimentos. “A faculdade constituiu uma mudança total na minha vida. A autonomia, que já iniciara no serviço cívico, expandiuse ao longo desses anos, [...]. A consciência social desenvolveu-se com as leituras de livros revolucionários, proibidos anteriormente (encontrei-me, por vezes, em círculos de amigos a discutir o materialismo dialéctico), com a participação em reuniões de alunos para se organizar a defesa de posições que se apresentariam nos órgãos de gestão da faculdade, com a identificação com movimentos, fosse de libertação de povos ou de defesa ambiental ou de ani- © Ciências & Cognição mais em risco de extinção. Lutava-se muito, reivindicava-se ainda mais e aprendia-se a argumentar nas múltiplas reuniões, organizadas como assembleias de debates organizados.” (Formadora A – grifo dela) Concordamos com Chaves (2006: 166) que, como professoras: “somos definitivamente marcadas pela instituição escola. Nela forjamos parte importante de nossa subjetividade e ali entramos em contato com modelos com base nos quais vamos instituir, criar, fundar nossa identidade profissional.” Numa pesquisa comparativa sobre narrativas autobiográficas de professores universitários, Sousa (2006) verifica que quando os docentes narram suas histórias de formação, tal como essas nossas narrativas, elas estão articuladas à família, à escola, aos grupos de convívios e suas sínteses apresentam seleções, omissões, preferências de determinados aspectos e que delas resultam uma série de questionamentos que vão fazendo ao longo de suas vidas. Igualmente em nossas narrativas, para a fase de formação na Universidade foram deixadas poucas palavras, apenas para pontuar brevemente um período marcado por revoluções pessoais, novas aprendizagens, opções temporárias e instáveis e perguntas que ainda permanecem, já que para elas não bastam explicações do presente. “Da época da Universidade a verdadeira revolução foi sair de casa, mudar de cidade e viver entre grupos bastante heterogêneos. Esse foi o maior desafio. Das disciplinas lembro que a cada semestre fazia escolhas temporárias em busca de novas descobertas: Botânica, pelas aulas de laboratório; Zoologia, pelos estudos de campo, especialmente as aulas de Biologia Marinha; Imunologia, pela perfeição metabólica; Ecologia, pelas interações e conexões complexas… Das disciplinas da licenciatura não me 228 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org/> lembro de nenhuma.” (Formadora B – grifo dela) “As disciplinas consideradas pela maioria dos alunos como difíceis, como as matemáticas e as múltiplas Físicas e Químicas, constituíram desafios que ultrapassei com gosto e boas notas. Isso levanta-me uma questão a que não consigo dar resposta: seriam os conhecimentos base que já tinha adquirido antes, mesmo que não tivessem sido valorizados pelo sistema de avaliação do secundário, os responsáveis por esse sucesso? Ou seria antes o sentir que aquele era o curso com o qual me identificava, em que a natureza assumia um papel preponderante, trazida nas disciplinas de Zoologia, Botânica, Fisiologias, Ecologia ou Antropologia, por exemplo, e, por isso, tudo era estudado com determinação e vontade de saber?” (Formadora A – grifo dela) No entanto, para uma de nós “um acontecimento trágico, que constituiu também um momento de viragem no (...) seu percurso, aparentemente, linear” colocou-a em contato com a sala de aula ainda durante sua formação. “Em Março, estávamos em 1978, houve um enorme incêndio e a faculdade ardeu em parte. Foi um desnorte total para alunos e professores e foi urgente encontrar um espaço onde se pudesse terminar o ano lectivo. Fomos colocados em instalações do ministério da educação [...], edifício de escritórios, convertido à pressa para albergar estudantes e professores, habituados a anfiteatros amplos, laboratórios e espaço ao ar livre. Não me adaptei e a faculdade perdeu o encanto. Ao mesmo tempo, continuava a dar explicações à vizinhança e soube através de um aluno que a escola estava a pedir um substituto de uma professora em licença de parto. E se eu tentasse? Tentei, fiquei não como substituta, mas ocupando um horário legíti- © Ciências & Cognição mo, completo com 5 turmas de 8º ano e 4 turmas de 9º.” (Formadora A – grifo dela) A Formadora B começou sua carreira depois de licenciada, mas o fez dividindo espaço com um estágio científico no laboratório de Liminologia na universidade. Para ela, que durante a infância brincou de ser professora e que idealizou ser cientista quando adulta, os dois mundos seguiam, nesse momento inicial, sem se constituírem em trajetórias de fronteira, ou seja, sem ligações entre as comunidades de práticas. Assim, enquanto “o estágio não era muito atraente, pois tratava de taxonomia do zooplâncton. Era um trabalho cansativo e muito isolado [...] as aulas… estas sim eram emocionantes. Cada dia uma descoberta nova. Ao mesmo tempo em que descobria sobre os alunos, o funcionamento da escola, desvendava as minhas reações, minha maneira de ser... e também passei a ver o conteúdo de Ciências de um outro ângulo”. No entanto, um episódio de aula constituiu-se num evento marcante que a colocou para dentro da profissão de forma definitiva. “Com aquela turma da 7ª série sentiame muito insegura e a cada dia testava diferentes manejos em sala de aula. Como é de praxe numa escola particular, as regras são criadas pela direção e a nós só resta cumpri-las. Estávamos numa época em que a “chamada” (controle de presença dos alunos) não deveria ser feita no início da aula. Um belo dia, quando entrei na sala da 7ª série, os alunos estavam extremamente agitados, então, resolvi começar pela chamada com o intuito de dar-lhes um tempo para se acomodarem. O coordenador, que costumava fazer a ronda pelo corredor olhando através das janelas, me viu desobedecendo a uma ordem sua. Entrou abrupta e furiosamente na sala e me repreendeu na frente de todos. Não esqueço o olhar dos meus alunos assistindo publicamente à minha derrota como professora. A situação naquele exato momento se constituiu como vida ou 229 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org/> morte naquela profissão... Desafiei o coordenador: olhei para ele, olhei para os alunos, empinei o tronco e continuei a chamada em voz bem alta. Esta foi a virada! A partir desse dia, os alunos passaram a me ver de outra forma. Melhor: começaram a prestar atenção em mim. A partir desse momento, senti que tinha entrado efetivamente na profissão pela porta da escola.” (Formadora B – grifo dela) Muitos foram os momentos charneiras, descritos nas duas narrativas, mas os apontados acima se constituem em divisor de águas para quem faz uma formação híbrida. Ou seja, o percurso da formação de professores na área de Ciências Naturais, em geral, é marcado pela sedução inicial dos futuros professores com os discursos e as práticas profissionais das culturas científicas específicas em detrimento dos das ciências humanas. Só muito mais tarde, quase ao final do curso, ou mesmo no início da carreira, se defrontam com a necessidade de se posicionarem em relação aos saberes da docência e optarem pelo seu exercício. A partir desse momento, suas narrativas são marcadas por acontecimentos que levam a trajetórias interiores, determinando suas escolhas ao longo do caminho para o desenvolvimento profissional. “Este foi outro salto na minha autonomia, agora com plena independência financeira, diploma académico e estatuto profissional completo. A novidade foi integrar o conselho directivo da escola e passar a analisá-la do lado de quem manda, de quem se preocupa com as regras e que tem de, além de dar o exemplo, castigar quem as não cumpre. Missão pouco compatível com os meus 25 anos, de aparência de muito menos, para ter credibilidade. Mas foi um ano bem sucedido, cheio de peripécias e algumas incompatibilidades com interesses instalados, como o de ter de proibir antigos professores de continuarem a ir à escola tirar fotocópias sem pagar, ou de fechar material de limpeza à chave © Ciências & Cognição para que um antigo funcionário não os fizesse desaparecer para uso próprio. Estas decisões foram tomadas sempre em equipa de gestão, mas como o presidente era da terra, um dos elementos era provisório e eu era a efectiva e, portanto, com responsabilidade profissional e, ainda por cima, de Lisboa, era o alvo da inimizade. Mas, genericamente, fizemos uma boa gestão e eu aprendi imenso sobre esse outro lado da profissão de professor.” (Formadora A – grifo dela) Os primeiros estudos sobre o ciclo de vida ou desenvolvimento profissional dos professores juntamente com o interesse pelo estudo biográfico avançam a partir da década de oitenta, indicando que a vida profissional dos professores é marcada por fases e ciclos. Huberman (1995) delimitou uma série de “seqüências ou de maxiciclos” que atravessam as carreiras das pessoas dentro de uma mesma profissão. No início da carreira docente, por exemplo, tal como em nossas narrativas, verificamos a fase de “exploração”, marcada por escolhas provisórias e pela experimentação de papéis, e a fase de “estabilização”, assinalada pelo compromisso e pela aquisição de papéis e responsabilidades de maior importância ou prestígio. A evolução de uma fase a outra só foi possível pelo fato de a fase de exploração ter sido bem sucedida, tal como nos ocorreu. “Foi um deslumbramento, foi o encontrar do meu palco, uma sala de aula funcionou como a oportunidade de gerir as matérias com as quais me identificava bem, de poder explicar os assuntos que tinha mesmo acabado de estudar, de partilhar ideias e experiências, de cativar, de seduzir! Não sei de que gostava mais, se dos alunos que mostravam que gostavam de mim, se de explicar os assuntos, se de preparar as aulas e estudar as matérias, se falar da escola em casa.” (Formadora A – grifo dela) “Essa forma de entrar na profissão aceitando o desafio e saboreando resultados conquistados foi extremamente impor- 230 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org/> tante para delinear minha forma de estar na profissão [...]. Pouco a pouco o retorno do aluno acarinhava a autoestima, o autocontrole e autoconceito pessoal/profissional. [...] Os alunos, em sua maioria, me consideravam como uma professora competente, uma pessoa compreensiva e envolvente que os estimulava para o estudo…” (Formadora B – grifo dela) Para Huberman (1995: 40) a fase de “estabilização” na profissão é marcada pelas escolhas subjetivas e pela admissão oficial ao sistema de ensino. “Num dado momento, as pessoas passam a ser professor, quer aos seus olhos, quer aos olhos dos outros (...)”. E a opção por permanecer na profissão requer escolha por uma identidade profissional e, ao mesmo tempo, renúncia ao apelo constante de outras orientações. Os estudos indicam que essa fase é acompanhada por um “sentimento de competência pedagógica crescente”, como também observamos em nossas narrativas. Para esse autor, os percursos individuais do desenvolvimento profissional na sua fase subseqüente (fase de “diversificação”) parecem divergir. No entanto, em nossas narrativas, a entrada na pós-graduação direciona para a consolidação pedagógica e inclusão da dimensão da pesquisa para ajudar nos questionamentos sobre seus saberes e suas práticas na docência. “O meu melhor ganho com o mestrado foi ter tempo para estudar e pensar [...]. Os grandes pedagogos, as reflexões sobre o significado das estratégias de ensino, múltiplas experiências pedagógicas descritas e analisadas, em que a Psicologia e a Sociologia assumiam um carácter preponderante, estava tudo lá. As aulas, nem sempre interessantes, pontualmente desafiadoras, iam abrindo algumas perspectivas. Mas paralelamente com o tempo, outra dimensão que sobressai é a investigação sobre a escola.” (Formadora A – grifo dela) © Ciências & Cognição “O que eu buscava era o encontro de novidades para atuar no ensino [...]. O mestrado foi uma fase de identificação com o discurso na área de educação.” (Formadora A – grifo dela) Um patamar da consolidação profissional se deu nas primeiras experiências como formadoras de professores. Nas narrativas, evidencia-se que a partir desse momento em suas carreiras a identificação social com a profissão de professor assume sínteses pessoais. Parafraseando-as, tem-se para a Formadora A que entrar como professora para a faculdade a fez ver a escola e o seu próprio desenvolvimento profissional de uma nova maneira. Dos anos como docente universitária não encontrou um só ano que não tenha sido rico em termos de experiências profissionais. Desde os primeiros anos, a intensidade das trocas intelectuais e a azáfama que a relação professor-aprendizagem-aluno implica mantêm-se. Nesse percurso, ganhou a serenidade e os conhecimentos para tirar partido de todas as situações, mesmo as mais adversas. Do mesmo modo, o desempenho de tarefas variadas ligadas à vida acadêmica, como a participação em diversos órgãos de gestão, a tem ajudado a criar uma vinculação indissociável com a profissão. Ao longo do tempo, nas múltiplas entradas que foi fazendo, como aluna, como professora, como investigadora e como formadora de professores, foi criando laços com a escola. Sempre lá esteve. Aprendeu a olhá-la de diferentes maneiras e o que procurava sem perder nenhuma perspectiva de vista, pois acredita que só assim se cria a verdadeira empatia com os outros, com as situações e os problemas. E que, nos momentos de descrédito, é preciso encontrar a motivação e as razões para se continuar. E recomeçar sempre, mesmo que seja noutro lugar. Para a Formadora B a experiência na disciplina de Prática de Ensino em Biologia e Prática de Ensino em Ciências revelou-se marcante para o seu desenvolvimento profissional. Acompanhar as aulas dos seus alunos no estágio lhe permitiu balizar suas competências e habilidades no ensino. A entrada no mundo da pesquisa por meio de ações de in- 231 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org/> tervenção na própria prática docente ajudou-a a refletir sobre o próprio processo de aprendizagem e, ao mesmo tempo, a utilizar melhor as ferramentas teórico-metodológicas para analisar e compreender a nuances dos processos de ensino e de aprendizagem. Esses processos possibilitaram, ao longo do seu desenvolvimento profissional, tornar consciente sua ação de ensino, ajustando aos aspectos cognitivos do processo os elementos subjetivos considerados preciosos, como por exemplo, a dose de intuição que orienta a sua prática pedagógica. Uma síntese Contrariamente a Clarice Lispector, o processo de construção de nossas narrativas e sua posterior análise nos permitiu ressignificar e reinterpretar os olhares que temos de nós mesmas e de nossa identidade como professoras, pondo em evidência outras emoções e razões as quais antes não tínhamos percebido. Neste percurso estivemos refazendo a nossa existência, pois como diz Paulo Freire (1987: 78): “Existir humanamente é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar”. Nos diferentes patamares da interpretação narrativa, as vidas vão-se reconstruindo em círculos cada vez mais complexos, fechando tempos e abrindo novas perspectivas. Onde ficam as pessoas e as suas identidades, despidas e revestidas de novas camadas? Onde ficamos nós, narradoras e ouvintes? Nos olhares externos, públicos, ou no circuito interno, privado, que criamos para nós próprias, pronunciando-nos sucessivamente? Talvez este duplo olhar permita uma melhor compreensão do significado do que realizamos, constituindo-se a narrativa, a que aqui deixamos, como a mediação de um e de outro percurso, abrindo caminho para uma identidade profissional reconhecida e assumida. Agradecimento © Ciências & Cognição Apoio parcial do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Referências bibliográficas Bakhtin, M. (1981). The dialogical imagination. Austin: University of Texas Press. Bruner, J. (1991). Actual minds, possible worlds. Cambridge, MA: Harvard University Press. Cavaco, M.H. (1991). Ofício do professor: O tempo e as mudanças. Em: A. Nóvoa (Org.) Profissão professor. (pp. 155-191). Porto: Porto Editora. Charlot, B. (2005). Relação com o saber, formação de professores e globalização. Questões para educação hoje. Porto Alegre: Artmed. 159p. 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As histórias de vida abrem novas potencialidades às pessoas. Entrevista com Marie-Christine Josso. Aprender, (2), 16-23. 232 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 219-233 <http://www.cienciasecognicao.org/> Larrosa, J. (1999). Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. 2.ed. Belo Horizonte: Autêntica. Larrosa, J. (2002). Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Rev. Bras. Ed., 19, 20-28. Moita, M.C. (1995) Percursos de Formação e de Trans-formação. Em: Nóvoa, A. Vidas de Professores. (pp. 111-132) Porto: Porto Editora. Sousa, C.P de. (2005). Percursos de formação nas memórias de docente universitários: análise comparada. Educação & Linguagem, São Paulo, 8, (11), Jan- Jun,75-104. Sousa, C.P de. (2006). Narrativas autobiográficas em perspectiva comparada: histórias de formação de professores universitários. Em: © Ciências & Cognição Souza, E.C. e Abrahão, M.H.M.B. (Orgs.) Tempos, narrativas e ficções: A invenção de si. Porto Alegre: EDIPUCRS. 357p. Roth, W-M (2004). 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Durante muito tempo, acreditava-se que a origem da sensação fantasma era psíquica, no entanto, sabese hoje que tal fenômeno está relacionado também com o fisiológico, a partir da reorganização cortical, que consiste em alterações estruturais na representação topográfica dos mapas corticais. O objetivo deste trabalho é abordar os diversos fatores que ocasionam a sensação de membro fantasma, assim como seus principais sintomas além de apresentar experiências já realizadas em indivíduos portadores deste fenômeno. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 234-239. Palavras-chave: membro-fantasma; dor fantasma; imagem corporal; homúnculo de Penfield; reorganização funcional cortical. Abstract The researches about phantom limb begun with relates of people that suffered limb amputation or brachial plexus avulsion, and even in tetraplegic subjects that related the feeling of the lost or inactive limb, and many times these feelings were painful. During many time, we believed that the cause of the phantom limb feeling was psychic, but nowadays we know that this phenomenon is related to a physiological cause as well, whit the cortical reorganization, that consist in structural modifications in topographic representation of the cortical maps. The aim of this work is to point the different factors that cause the phantom limb feeling and the principal symptoms of this phenomenon, as well as show experiences already develop in subjects that present this phenomenon. © Ciências & Cognição 2007; Vol. 12: 234-239. – A.O. Demidoff é Monitoras de Neurofisiologia, Programa de Neurobiologia (IBCCF, UFRJ) e Graduanda do Curso de Fisioterapia, Faculdade de Medicina (UFRJ). E-mail para correspondência: alessandrademidoff @gmail.com; F.G. Pacheco é Monitora de Neurofisiologia, Programa de Neurobiologia (IBCCF, UFRJ) e Graduanda do Curso de Fisioterapia, Faculdade de Medicina (UFRJ). E-mail para correspondência: [email protected]; A. Sholl-Franco é Biólogo (FAMATh), Especialista em Neurobiologia (UFF), Mestre e Doutor em Ciências (UFRJ). Atua como Professor (IBCCF, UFRJ), Membro Efetivo do Programa Avançado de Neurociência (PAN; UFRJ) e Orientou este trabalho. Endereço para correspondência: Sala G2-032, Bloco G, CCS, Programa de Neurobiologia, IBCCF, UFRJ. Av. Brigadeiro Trompowiski S/N, Cidade Universitária, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ 21.941590, Brasil. Telefone: +55 (21) 2562-6562. E-mail para correspondência: [email protected]. 234 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 234-239 <http://www.cienciasecognicao.org/> © Ciências & Cognição Key Words: phantom limb; phantom pain; corporal image; Penfield’s homunculus; cortical functional reorganization. Introdução Pode-se definir como membro fantasma a experiência de possuir um membro ausente que se comporta similarmente ao membro real, assim como sensações de membro fantasma a vários tipos de sensações referidas ao membro ausente (Rohlfs e Zazá, 2000). A sensação da presença do membro ou do órgão após a sua extirpação é descrita por quase todos os doentes que sofreram amputação e muitas vezes vem associada a dor que varia em intensidade e duração de caso para caso. Muitos indivíduos afirmam que o fantasma se manifesta de forma rígida e que, em muitos casos, estão na posição em que perderam o membro. Além disso, relatam que quando o membro se movimenta em direção a um objeto, o fantasma penetra neste objeto, podendo também atravessar o próprio corpo do paciente. Um outro relato consiste no fato de que, muitas vezes, uma parte do membro amputado desaparece, permanecendo apenas, a extremidade distal do mesmo (Schilder, 1989). A sensação de ter um membro fantasma durante muito tempo despertou em muitos o medo da loucura, sendo motivo de segredo e até mesmo vergonha. Muitos indivíduos omitiam dos médicos a sensação de ter um membro fantasma, devido ao receio de serem considerados insanos, entretanto, com o passar do tempo, as hipóteses psicológicas foram cedendo lugar para as hipóteses fisiológicas. A sensação fantasma pode ser compreendida como uma superposição cortical de áreas vizinhas, que pode ocorrer, por exemplo, pela invasão do território representativo da face sobre o território da mão, ou até mesmo pelo desmascarar de sinapses silenciosas. Variações de membro-fantasma A sensação de membro fantasma pode se manifestar nos indivíduos em diferentes situações, como por exemplo: amputação de algum membro, em casos de aferição de plexo braquial, e, até mesmo em situações de tetraplegia (Conceição e Gimenes, 2004). Segundo Ramachadran e Blakeslee (2002) não são apenas pernas e braços fantasmas, há muitos casos de seios fantasmas em muitas pacientes que sofreram uma mastectomia radical (retirada da mama). Um outro registro foi um caso de apêndice fantasma onde o paciente se recusava a acreditar que o cirurgião o tinha retirado devido às dores que persistiam. Sabendo-se que o fenômeno da sensação fantasma pode se manifestar em variadas circunstâncias, as situações mais comuns serão descritas mais detalhadamente, juntamente com algumas pesquisas realizadas em pacientes que possuem a sensação fantasma. Sintomas A sensação de ter um membrofantasma é muito real. Muitos indivíduos relatam que, logo que perderam a perna, sentiram o impulso de sair da cama e andar, e acabaram caindo, outras pessoas com mãos fantasmas já tentaram, até mesmo, atender o telefone. Esses fatos são conseqüências da vívida sensação de um membro fantasma. Dentre os sintomas descritos por pacientes com sensação de membro fantasma, os que se apresentam com maior freqüência são: a dor “fantasma”; dormência; queimação; câimbra; pontadas; ilusão vívida do movimento do membro fantasma, ou até mesmo, apenas a sensação de sua existência. Em casos de lesão do plexo braquial, são relatados também; estiramento da mão inteira que irradia para o cotovelo; constrição do pulso; espasmos da mão e descargas elétricas na mão e cotovelo (Giraux e Sirigu, 2003). Uma outra sensação de membro fantasma já observada consiste no desaparecimento de partes do membro, permanecendo apenas, a extremidade distal do membro, o que pode ser explicado com base no fato de que o modelo postural do corpo se desenvolve 235 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 234-239 <http://www.cienciasecognicao.org/> especialmente em contato com o mundo externo. Sendo assim, as extremidades corporais que mantêm um contato mais estreito e variado com a realidade tendem a ser mais presente que as demais (Schilder, 1989). Além disso, pode ser observado o fenômeno de duplicação de membros, caso dificilmente encontrado, no qual pacientes relatam ter a vivida sensação da presença de outros dois membros, paralelamente com seus membros reais (Conceição e Gimenes, 2004) O que é a dor fantasma? A dor fantasma é uma sensação dolorosa referente ao membro (ou parte dele) perdido que pode se apresentar de diversas formas tais como ardor, aperto, compressão ou até mesmo uma dor intensa e freqüente. A proporção relativa dos amputados em grupos “com dores crônicas” e “sem dores crônicas” varia de um estudo para o outro, dependendo da definição que se dá às palavras “crônicas” e “queixa”, sendo então esta dor relatada por 2 % dos pacientes, número que em outras pode variar em até 97 %. A dor normalmente está presente na primeira semana após amputação, mas ela pode aparecer após meses ou até vários anos, estando localizada principalmente na parte distal do membro fantasma. A duração da dor fantasma varia de acordo com cada indivíduo, entretanto a dor severa persiste em apenas uma pequena fração dos amputados, na ordem de 5-10 % (Rohlfs e Zazá, 2000). Muitos estímulos internos e externos modulam a dor fantasma, dentre os fatores relatados pelos amputados que modificam a experiência dolorosa estão os fatores agravantes da dor, os quais são a atenção, emoção, toque no coto ou pressão, mudança de temperatura, reflexos autônomos, dor de outra origem, colocação de uma prótese. E ainda, os fatores que aliviam a dor, que são o descanso, distração, movimentos do coto, uso de uma prótese, elevação do coto, percussão ou massagem no coto. Isto prova que a experiência de dor fantasma é um resultado não de um único evento, mas da interação de vários efeitos neuronais (Rohlfs e Zazá, 2000). © Ciências & Cognição Quando ocorre a desaferenciação (perda da inervação sensorial de uma região) ou a amputação de um membro as informações sensoriais periféricas se tornam inteiramente ausentes, fazendo com que neurônios no sistema nervoso central que até então recebiam informações daquela parte do corpo se tornem anormalmente hiperativos. Na dor do membro fantasma, a ausência dessas informações sensoriais faz com que neurônios nas vias nociceptivas se tornem excessivamente ativos. A superposição extensa de representações corticais que, normalmente estão separadas se relacionam com a intensidade da dor do membro, ou seja, a reorganização cortical maciça pode aumentar esse fator. Brugger e colaboradores (2000) apresentaram importantes evidências de que o crescimento pós-lesão e o novo padrão de conexões estabelecidas por neurônios no cérebro de amputados podem ser possível causa do problema. Psíquico versus fisiológico Durante milênios acreditava-se que as sensações em partes ausentes do corpo eram de origem psíquica, entretanto, a partir deste século, as explicações psíquicas foram cedendo lugar às explicações fisiológicas. Grande parte de nossas informações sensoriais está relacionada com áreas específicas do córtex pós-central, de modo que permitem a construção de mapas sensorial, destacando-se aqui o mapa somato-sensorial presente no giro pós-central (Schilder, 1989). Como resultado, cada indivíduo tem uma imagem interna que é representativa do próprio ser físico, sendo esta conhecida como “imagem corporal”. A imagem corporal é construída de acordo com as percepções, idéias e emoções sobre o corpo e suas experiências, podendo ser, constantemente, mudada. Sendo assim, o fantasma de uma pessoa amputada seria a reativação de um padrão perceptivo dado pelas forças emocionais. Está claro que o quadro final de um fantasma depende grandemente de fatores emocionais e da situação de vida do indivíduo. Depois da amputação, o indivíduo sofre um grande impacto psicológico e vários 236 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 234-239 <http://www.cienciasecognicao.org/> distúrbios emocionais surgem na adaptação física e social, o que lhe faz enfrentar uma nova situação, mas como reluta em aceitá-la, acaba tentando, inconscientemente, manter a integridade de seu corpo (Schilder, 1989). Desse modo, o membro-fantasma pode ser entendido como a interação entre o que se detecta ao nível periférico (corpo) e o que se integra ao nível central (mente), sendo criada então, a aparência final do corpo no sistema nervoso. Como o ser humano está acostumado a ter um corpo por completo, o fantasma acaba sendo a expressão de uma dificuldade de adaptação a um defeito súbito de uma parte periférica importante do corpo. Além desse fator, o córtex cerebral, que possui um mapa sensorial das partes do corpo, ainda possui uma área de representação da região amputada, o que dificulta o cessar das sensações corporais. Assim, as sensações de membro fantasma são caracterizadas por fatores psíquicos e fisiológicos, que agem, conjuntamente para expressar tal fator. Arrumando a bagunça: o fenômeno de reorganização funcional do córtex cerebral As áreas de representação cortical, denominadas mapas corticais (e.g. homúnculo de Penfield) podem ser modificadas através da plasticidade neural a partir de alterações estruturais (adaptativas) por estímulos sensoriais, experiência, aprendizado, e após lesões cerebrais (Lundy-Ekman, 2004). Assim, em indivíduos que sofreram amputação ou lesão do plexo braquial é que podemos observar alterações sinápticas que podem explicar o proceso de fortalecimento (desinibição) de sinapses anteriormente silenciosas. No sistema nervoso normal, muitas sinapses parecem não ser usadas, a não ser que a lesão de vias acarrete um maior uso das sinapses até então silenciosas (Farnè et al., 2002). Estudo de casos A organização cortical é alterada após alguma perda sensorial, sendo assim, áreas que antes eram ativadas pelo membro amputado passam a ser invadidas por neurônios de © Ciências & Cognição áreas não alteradas cujas representações tenham localizações próximas no córtex. Na amputação de mãos a área da face “invade” a área da mão, consistente com os relatos de estimulação tátil da face induzindo sensações de mão fantasma em amputados. O sistema motor mostra, portanto uma capacidade substancial de plasticidade (Farnè et al., 2002). Pacientes que tiveram seus membros superiores transplantados após uma amputação possibilitaram o estudo de reversibilidade da organização cerebral após lesão periférica, utilizando-se de análises de ativações de M1 antes e após o transplante, observando suas evoluções ao longo do tempo. Em um estudo (Giraux et al., 2001) os resultados mostram que as mãos transplantadas são ativadas e reconhecidas pelo córtex sensório-motor, sendo que as novas entradas periféricas permitiram uma remodelagem global do mapa cortical das extremidades e reverteram à reorganização induzida pela amputação. As representações de mão e braço tendem a retornar a seus locais originais; este estudo tenta explicar essa reversibilidade cortical dizendo que em macacos com segmentos amputados, motoneurônios eferentes rompidos preservam sua eficácia funcional direcionando-se para novos músculos (Farnè et al., 2002). Como os neurônios eferentes e aferentes da via central sobrevivem após serem cortados, o circuito sensório motor pode estar funcionalmente pronto após o transplante, podendo explicar as mudanças na atividade cortical poucos meses após o transplante de membro. Em um outro caso, descrito por Conceição e Gimenes (2004), um paciente tetraplégico referia ter uma vívida sensação de duplicação de membros. Dizia possuir um par de mãos que se situavam paralelamente ás mãos normais e duas pernas igualmente situadas paralelamente ás pernas reais. O paciente também referia que o par de braços cruzava em cima do peito e lhe causavam dificuldades respiratórias. A pesquisa realizada, neste caso, utilizou a técnica de biofeedback, que é usada na aprendizagem de controle voluntário de respostas fisiológicas específicas. No fim do tratamento o paciente apresentou como resultado a eliminação total da queixa, resultando 237 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 234-239 <http://www.cienciasecognicao.org/> na recuperação da capacidade motora funcional. Uma outra maneira de encontrarmos o membro fantasma é através da lesão de plexo braquial, onde o paciente parece sofrer com a sensação do membro perdido assim como a dor a ele relacionada, mesmo não havendo a perda física do membro (amputação). Giraux e Sirigu (2003) mostraram que em pacientes com lesão de plexo braquial onde eram aplicados testes com exposição a movimentos virtuais do membro verificou-se que há indução de mudanças plásticas na representação cortical do membro danificado e que esta plasticidade estava relacionada a mudanças na sensação de dor fantasma. A gravação dos movimentos da mão normal que eram refletidos por um espelho dava ao paciente a ilusão de que quando ele realizava determinado tipo de movimento era o seu membro afetado que estava realizando, sendo ele instruído a mexer com o membro fantasma ao olhar para o espelho. Foi observada uma melhora significante na avaliação da atividade do córtex entre o pré e pós-treinamento assim com a diminuição da dor para esses pacientes sendo que dos 3 avaliados 2 reduziram sua medicações no final da pesquisa graças à diminuição da dor. Considerações finais Apesar de não se saber ao certo a origem da sensação do membro fantasma, sabese que esta é baseada tanto em fatores psíquicos como em fatores fisiológicos. Sabe-se também que ainda não existe um tratamento específico para tal fenômeno. Entretanto, existem terapias e medicamentos que são utilizados para a redução da dor, sem contudo terem se mostrado eficazes para a cura da dor fantasma e de suas sensações. Desse modo, como não existe, ainda, uma cura para o fascinante fenômeno das sensações fantasmas, muitos indivíduos precisam se adaptar com essa situação, como descrito no relato: “Hoje sou altamente conformista de que sou amputado e vivo bem como estou. Porém, como vivi 34 anos com a perna e há cinco anos e meio sem a perna, em © Ciências & Cognição todos os meus sonhos à noite, eu tenho a perna. O cérebro, o inconsciente ainda mantém a memória anterior. Hoje eu sou um grande jogador de tênis nos meus sonhos, coisa que eu não era antes. É muito comum eu sonhar com uma partida inteira, desde o primeiro ponto até o final, ganhando ou perdendo. Acordo suado e feliz por ter jogado uma partida de tênis, com a perna que eu não tenho.” (Disponível no endereço eletrônico: http://www.amputadosvencedores. com.br/fenomeno_membro_fantasma.ht m). Sendo assim, este trabalho propôs-se a realizar uma breve revisão da literatura, de forma a identificar as informações mais objetivas e acuradas a respeito da sensação do membro fantasma, tema de extrema importância e ainda pouco explorado nos ambientes acadêmicos e clínicos de nosso país. Referências bibliográficas Brugger, P.; Kollias, S.S.; Müri, R.M.; Crelier, G.; Hepp-Reymond, M.C. e Regard, M. (2000). Beyond re-membering: phantom sensations of congenitally absent limbs. Proc. Natl. Acad. Sci. U.S.A.. 23, 6167-6172. Conceição, M.I.G. e Gimenes, L.S. (2004). Uso de biofeedback em paciente tetraplégica com sensação de membro fantasma. Interação em Psicologia, 8 (1), 123-128. Disponível no endereço eletrônico: http://calvados.c3sl.ufpr. br/ojs2/index.php/psicologia/article/viewFile/ 3246/2606. Farne, A.; Giraux, P.; Roy AC.; Dubernard JM e Sirigu A. (2002). Face or hand, not both: perceptual correlates of correlates of reafferentation in a former amputee. Cur. Biol., 12, 1342-1346. Giraux, P.; Sirigu, A.; Schneider F. e Dubernard JM (2001). Cortical reornization in motor córtex after graft of both hands. Nat. Neurosci., 4(7), 691-692. Giraux, P. e Sirigu, A. (2003). Ilusory movements of the paralyzed limb restore motor córtex activity. Lyon: Institut des Sciences Cognitives, CNRS. 238 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 234-239 <http://www.cienciasecognicao.org/> Lundy-Ekman, L. (2004). Neurociência: Fundamentos para reabilitação. 2 ª edição. (pp. 125-137). Rio de janeiro: Editora Elsevier. Ramachadran, V.S. e Blakeslee, S. (2002). Fantasmas no Cérebro - uma investigação dos mistérios da mente humana. (Machado, A., Trad.). Rio de Janeiro: Editora Record. Rohlfs, A e Zazá, L . (2000). Dor fantasma . Universidade federal de Minas Gerais (MG). Disponível no endereço eletrônico: http:// © Ciências & Cognição www.icb.ufmg.br/neurofib/NeuroMed/Semin ario/DorFantasma/f6.htm. Schilder, P. (1989). A imagem do corpo: As energias construtivas da psique. São Paulo: Editora Martins Fontes. Teixeira, M.J.; Imamura, M. e Peña Calvimontes R.C. (1999). Phantom pain and limb amputation stump pain. Rev. Med., 78, 192196. 239 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 240-241 <http://www.cienciasecognicao.org> S u b me t i d o e m 3 0 / 1 0 / 2 0 0 7 | A c e i t o e m 2 0 / 1 1 / 2 0 0 7 | I S S N 1 8 0 6 - 5 8 2 1 – P u b l i c a d o o n l i n e © Ciências & Cognição e m 0 3 d e d e z e mb r o d e 2 0 0 7 Resenha Repensando a função do manicômio na sociedade Reflexions about the role of lunatic asylum in the society Maurício Aranha Núcleo de Psicologia e Comportamento, ICC, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil Clínica em movimento: por uma sociedade sem manicômio (2003). Ana Maria Lobosque. Editora Garamond, ISBN 85-86435-92-9, 200 págs. Palavras-chave: filosofia da ciência; saúde mental, psiquiatria. Este é um livro que desde o título mostra seu compromisso abrangente com a análise da alma na luta revolucionária dos profissionais que a praticam pelo viés do ideal antimanicomial. O livro propõe novos modelos para o exercício da clínica psiquiátrica e, ao mesmo tempo, instrumentaliza idéias para um projeto de sociedade mais humana. Esta mudança de paradigma alavanca a crença num projeto terapêutico para a loucura, mostrando a impossibilidade de reconhecimento desta em sua singularidade e diferença. A obra evidencia a vocação originariamente totali-tária dos hospitais psiquiátricos, o que demonstra ser o tratamento da loucura permeado de uma coletiva vontade de poder que captura e exclui a loucura do espaço político da cidadania. A abordagem, tão bem encadeada tem por fim o desencadeamento de um movimento que impulsiona a abordagem clínica a um exercício de autonomia e liberdade das pessoas. A obra leva ao questionamento do pa- pel da psicanálise no contexto da loucura tendo em vista que nem mesmo ela, que tanto prometera reconhece no delírio uma tentativa de cura e re-organização do equilíbrio psíquico. Mesmo a psicanálise se voltou para a normatização da loucura oferecendo como modelo estruturante a mítica edipiana. Na edificação do Instituto da Lei normativa à loucura, a família passa a representar a moral que deve ser imposta às manifestações psicóticas, como se a cura aí se encontrasse. Portanto, o grande destaque do texto é que sua abordagem parte do sofrimento humano para a ele retomar como compreensão que não se furta ao embate diário com a miséria humana. Um “movimento” que é também comprometimento. Este livro se debruça sobre a filosofia de Nietzsche para propor uma transvalorização da ética e da política, com a finalidade de reconhecer não apenas a positividade da loucura como experiência, mas também de que maneira ela pode ser um remodelador de – M. Aranha é Médico (UFJF), Especialista em Neurociência e Saúde Mental (Barcelona), Neurolingüística (IBMR), Psicologia Analítica, Psicopedagogia Institucional e Clínica, Terapia Holística e Metodologia dos Processos de Aprendizagem. Atua como Coordenador do Núcleo de Psicologia e Comportamento do Instituto de Ciências Cognitivas (ICC). E-mail para correspondência: [email protected]. 240 nossa cultura. O sentido político que advém da desospitalização tem por missão o enfrentamento de modelos lucrativo economicamente. A obra de Ana Marta Lobosque lança mão de outros autores contemporâneos como Foucault, Deleuze e Guattari, para esboçar a desconstrução dos conceitos de lei, desejo e culpa dominantes no Ocidente. Preocupa-se em revisar as estruturas que sustentam o modelo especulativo-científico, confessionalanalítico, singular-coletivo, autonômiconormatizado para se dar a devida dimensão ao texto da autora e a sua proposta de novas práticas de convívio com a loucura. Assim, busca romper definitivamente com as Instituições manicomiais como forma de resgate a dignidade humana prolatada, até mesmo, pela Constituição. Na parte I do livro, "Clínica em Movimento: o cotidiano de um serviço substitutivo de saúde mental", a autora expõe sua posição ao abordar o modelo asilar e o racional no contexto de uma sociedade global. Demonstra a desigualdade e preconceito que permeiam o tratamento do portador de transtorno mental. Isso significa que para que haja uma nova contextualização do tratamento, haverá a necessidade de uma mudança estrutural em todos os setores que se voltam para a abordagem da saúde mental. Indo desde a capacitação técnica até revisões conceituais de grande complexidade. Mas o foco da autora é a clínica da saúde mental e é nela que centra suas reflexões. Por assim ser, questiona a noção habitual de clínica, que tem servido mais aos profissionais que aos pacientes. Ana Maria Lobosque critica os profissionais da saúde mental por transformarem suas abordagens e set terapêuticos em lugares que tem por fim acolher o suposto saber individualista. Negando a interdisciplinaridade, a singularidade, a autonomia e a cidadania do portador de sofrimento mental. Incita a novas prática que contemple uma forma de superação não só autocrítica, mas também implicada nas questões de políticas públicas. A autora convida à uma reflexão sobre a respeitabilidade às diferenças que deve permear o convívio entre os operadores da saúde mental e sua clientela. Na busca de uma vivência conjunta, uma aposta no encontro de um espaço coletivizado, respeitador e acolhedor ao “diferente” e suas necessidades. Na parte II, a autora fala da influência sofrida no contato com os textos de Freud, da sua relação com a psicanálise, com a saúde mental e suas práticas. Expõe as contribuições dos textos de Foucault, Delueze e Guatari e o retorno a Freud proposto por Lacan. Os textos confrontam a autora com elementos constitutivos do universo “psi” tais como aspectos políticos, modelos científicos, o Instituto do poder que permeia as relações, objetos e sujeito. Finalizando, na parte III, defende-se a igualdade, a partir da reflexão sobre o presente e se afirmando que em toda sociedade organizada o direito é uma conquista edificada pela própria sociedade, pois que a sociedade não serve ao direito, mas sim o direito, ao normatizar, o faz em prol da sociedade a qual deve existência. Desta forma, observa-se que o “movimento” proposto por Lobosque soa como um caminhar refletido e transformador em prol de uma prática clínica que se alia a justiça social, lembrando que o portador de transtorno mental é, antes de mais nada, um sujeito de direito, portanto, um cidadão. 241 Ciências & Cognição 2007; Vol 12 <http://www.cienciasecognicao.org> ISSN 1806-5821 Normas para Publicação: 242-246. © Ciências & Cognição Normas para Publicação Política Editorial Objetiva-se publicar artigos de caráter acadêmico por meio de uma abordagem transdisciplinar de questões que digam respeito ao estudo da mente e do comportamento humano, da capacidade de produzir, assimilar e distribuir conhecimento, bem como do funcionamento do cérebro em si. A política editorial da revista privilegia a abordagem de tais temas através do mapeamento do tema, incentivando o diálogo entre diversos campos de conhecimento. Outro ponto essencial diz respeito ao caráter de divulgação científica, devendo ser observada a clareza da abordagem para o nível de graduação, obviamente sem abrir mão da qualidade técnica e do rigor científico. A publicação aceita colaborações, reservando-se o direito de publicar ou não, após avaliação, o material submetido espontaneamente. Profissionais que atuem com pesquisa acadêmica podem propor a abertura de novos núcleos temáticos, devendo para tanto pertencer ao quadro de associados do Instituto de Ciências Cognitivas (ICC). O sistema de associação está informado no site do ICC, uma comunidade virtual de pesquisadores de âmbito nacional. As colaborações de associados titulares ou colaboradores, ou ainda de colaboradores externos, deverão seguir igualmente as normas e diretrizes de publicação que se seguem. O Que Pode Ser Submetido O material submetido à Revista Eletrônica Ciência & Cognição deve possuir afinidade com alguma das seções que a compõem, a saber: • • • Editorial: restrito ao Conselho Editorial. Artigos de Divulgação Científica: material destinado à divulgação de trabalhos realizados como conseqüência de uma investigação ou aplicação de técnica ou tecnologia calcada em teoria existente. Estes artigos incluem trabalhos de Iniciação Científica (IC) e partes de monografias de conclusão de curso, desde que co-assinados por um orientador capacitado. Ainda aqui é cabível a publicação de revisões críticas da literatura ou conclusões parciais de pesquisas, dissertações ou teses. Artigos Científicos: material produzido como conseqüência de investigação científica, quer ao nível de pesquisa independente por pesquisador capacitado, quer como resultado originado de projetos com entidades de fomento à pesquisa, de trabalhos de diplomação ao nível de graduação, especialização, mes- • • • • trado ou doutorado. O material deve ser original e destinado exclusivamente para esta revista, ou seja, não ter sido publicado integralmente em nenhum outro veículo, inclusive anais de eventos, revistas e periódicos. Comentários a Artigos: trata-se de material que tenha por objeto outro artigo publicado, estabelecendo uma complementação acadêmica útil e uma crítica embasada, podendo ser ainda uma segunda visão sobre o tema. Estes textos serão relacionados por links ao artigo comentado, formando uma rede de temas relacionados. Resenhas: análise (informativa ou crítica) de livros cujo tema esteja circunscrito na área de interesse da revista. Informações e Divulgações: divulgação de jornadas, workshops, feiras, seminários, colóquios, simpósios, congressos e outros eventos de cunho acadêmico. Cartas: espaço de interação com o leitor, através do qual estes poderão submeter questões sobre material publicado ou sobre a própria publicação, as quais serão encaminhadas ao(s) Autor(es) ou ao Editorchefe, no caso das dúvidas que não sejam de interesse geral, o Conselho Editorial poderá deixar de publicar, embora seja encaminhada à pessoa responsável para eventual resposta privada. Normas para Apresentação de Trabalho Prazos: os manuscritos podem ser submetidos a qualquer tempo. Entretanto, caso sejam encaminhados até as datas que se seguem podem ser indicados como prioritários para a publicação nos prazos indicados. Toda e qualquer submissão inicial de material deverá ser realizada somente por correio eletrônico para: [email protected] - 15 de fevereiro para o volume de Março. - 15 de junho para o volume de Julho. - 15 de outubro para o volume de Novembro. O texto original, rigorosamente sob a forma estabelecida abaixo, deve ser apresentado como arquivo gravado em *.doc; Office 97 ou superior; fonte Times New Roman, tamanho 12; espaço entre linhas simples; sem espaço de parágrafos; alinhamento com as margens esquerda e direita (justificado) e identação de 1,25cm no início de cada parágrafo. 242 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 242-246 <http://www.cienciasecognicao.org/> Ao enviar um texto para submissão, redija no corpo da mensagem, uma carta de encaminhamento dirigida aos Editores contendo: • • • • Autorização para o processo editorial de seu texto. Garantia de que todos os procedimentos éticos referentes a um trabalho científico foram atendidos. Concessão dos direitos autorais de seu texto à revista Ciências & Cognição. Endereço completo de um dos Autores para correspondência com os Editores (incluir CEP, fone, fax e e-mail). Envie também, por correio postal, carta dirigida aos Editores com o mesmo conteúdo daquela mensagem, assinada por todos os Autores do estudo ou pelo Autor responsável (modelo disponível no site www.cienciasecognicao.org). Remeter para: A/C Prof. Dr. Alfred Sholl Franco Sala G2-032, Bloco G - Centro de Ciências da Saúde. Programa de Neurobiologia - Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Av. Brigadeiro Trompowiski S/N - Cidade Universitária Ilha do Fundão - CEP 21.941-590 - Rio de Janeiro/RJ. Fone: 0055/21/2562.6562. Procedimentos Editoriais O processo de revisão editorial só será iniciado se o texto obedecer a todas as condições acima. Caso contrário, será solicitada a adequação às normas e, então, a realização de nova submissão. Se o texto estiver de acordo com as normas aqui mencionadas, e for considerado, pelos Editores, potencialmente publicável na revista eletrônica Ciências & Cognição, os Autores serão comunicados por e-mail sobre o início do processo editorial. O texto será, então, encaminhado por indicação dos Editores dos Núcleos para 2 (dois) revisores membros do corpo editorial fixo da revista, ou para consultores ad hoc, em casos extraordinários. Os Revisores são escolhidos pelos Editores, entre pesquisadores de reconhecida competência na área. Os Autores podem sugerir possíveis consultores ad hoc (pesquisadores qualificados afiliados a instituições, que não as dos Autores) na carta de encaminhamento. De qualquer maneira, Ciência & Cognição reserva aos Editores a escolha dos revisores e/ou consultores. A autoria do texto não é informada aos Revisores ou Consultores ad hoc, bem como a identidade dos mesmos não é informada aos Autores. Para que se mantenha um prazo médio entre a submissão e o retorno do parecer, os revisores têm um prazo para realização da avaliação e, caso um revisor tenha qualquer espécie de impedimento para expressar seu parecer, deverá comunicar, imediatamente, aos Editores. Os Revisores e/ou Consultores ad hoc, após análise do texto, rejeitam, reco- © Ciências & Cognição mendam com sugestões de modificações ou indicam sua publicação. Os Autores recebem cópias dos pareceres dos Consultores. Caso o texto venha a ser rejeitado, os Autores podem submetê-lo novamente depois de cuidadosa revisão, considerando os pareceres recebidos. Em geral, é encaminhado aos mesmos Revisores/Consultores ad hoc. A recomendação para publicação associada a sugestões de modificação do trabalho visa melhorar a clareza ou precisão do texto, segundo os padrões de qualidade da revista científica. Uma versão reformulada do texto deve ser apresentada para apreciação, tendo em vista obter a aceitação; versão esta acompanhada de carta dos Autores aos Editores quando estes não concordarem com algumas das sugestões dos Revisores/Consultores, informando as modificações efetuadas e justificando as não realizadas. Esta carta e o texto reformulado são encaminhados a um dos Conselheiros da revista, juntamente com a versão original e os pareceres dos Revisores/Consultores, para análise. O Conselheiro pode rejeitar, sugerir modificações (quantas vezes considerar necessário) ou indicar o texto reformulado para publicação. Nesta fase, o Conselheiro terá conhecimento da identidade de Autores e Revisores/Consultores envolvidos. O texto aceito será convertido em formato *.pdf e enviado ao(s) Autor(es) na forma final em que será publicado para que sirva como uma prova do manuscrito, a qual deverá ser conferida e devolvida com possíveis correções (exceto no título ou no nome dos(s) Autor(es)). A não devolução da prova corrigida, no prazo estipulado, implicará no aceite da mesma na forma em que se encontrar. A decisão final sobre a publicação de um texto submetido à revista Ciências & Cognição cabe aos Editores dos Núcleos, auxiliados pelos pareceres de Revisores/Consultores e Conselheiros. Os Editores comunicam o resultado final aos Autores, por e-mail, o mais rapidamente possível, indicando a data e número da revista prevista para a publicação do artigo. Direitos Autorais São da revista eletrônica Ciências & Cognição os direitos autorais de todos os artigos publicados por ela. A reprodução total de qualquer artigo desta Revista em outras publicações, por quaisquer meios, requer autorização por escrito dos Editores. Reproduções parciais de artigos (resumo, abstract, mais de 500 palavras de texto, tabelas, figuras e outras ilustrações, arquivos sonoros ou de vídeo) deverão ter permissão por escrito dos Editores e dos Autores. Carta de Autorização – Modelo “Os autores abaixo assinados transferem à Revista Ciências & Cognição, com exclusividade, todos os direitos de publicação, em qualquer meio, do artigo ......................., garantem que o artigo é inédito e não está sendo avaliado por outro periódico e que, no caso de estudo, foi conduzido conforme os princípios da Declaração de Helsinki e 243 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 242-246 <http://www.cienciasecognicao.org/> de suas emendas, com o consentimento informado aprovado por comitê de ética devidamente credenciado.” (Incluir nome completo, endereço postal, telefone, fax, email e assinatura de todos os autores.) * Segundo a Resolução n. 1.595, do Conselho Federal de Medicina de 18-5- 2000, é obrigatório que os autores de “artigos divulgando ou promovendo produtos farmacêuticos ou equipamentos para uso em Medicina declarem os agentes financiadores que patrocinaram suas pesquisas”. Reprodução de Outras Publicações Citações (com mais de 500 palavras), reprodução de uma ou mais figuras, tabelas ou outras ilustrações, bem como de arquivos sonoros, devem ter permissão escrita do detentor dos direitos autorais do trabalho original para a reprodução especificada em Ciências & Cognição. A permissão deve ser obtida pelos Autores do trabalho submetido. Os direitos obtidos secundariamente não serão repassados em nenhuma circunstância. Desenhos e esquemas mesmo que modificados apenas serão admitidos com autorização. Entretanto, o Conselho Editorial coloca a disposição dos Autores, quando da diagramação da prova do artigo, de pessoal habilitado a formular esquemas e montagens adequadas ao padrão estilístico da publicação. • • • Apresentação do Texto Partes do Texto Original e Roteiro para Apresentação do Texto Original: O texto original deve ser apresentado como arquivo gravado em *.doc; Office 97 ou superior. Corpo de texto em fonte Times New Roman, tamanho 12; espaço entre linhas simples; sem linha adicional entre os parágrafos e com deslocamento de 1,25cm na primeira linha de cada parágrafo; alinhamento nas margens esquerda e direita (justificado). Use itálico em palavras ou expressões a serem enfatizadas e também no caso de palavras estrangeiras à língua empregada. Use negrito apenas nos título, subtítulos e nomes dos Autores. Não use palavras sublinhadas ao longo do texto, nem marcas d’água. • • • • Título na língua empregada no artigo (fonte Times New Roman, tamanho 16, negrito, centralizado) e em inglês (fonte Times New Roman, tamanho 12, itálico, centralizado; deve informar o leitor sobre o objetivo do artigo). Nome dos Autores (fonte Times New Roman, tamanho 12, negrito, centralizado) Afiliação institucional e o país (fonte Times New Roman 12, centralizado). Incluir nome da universidade, Institutos, Centros de Pesquisa etc e o país. Resumo, em português, contendo entre 100 e 150 palavras (fonte Times New Roman, tamanho 12, alinhamento e recuo de 1,25cm nas margens direita e • • • © Ciências & Cognição esquerda). No caso de relatos ou comunicações breves de pesquisas, o resumo deve apresentar brevemente os objetivos, método, resultados e discussão do estudo. O resumo não precisa incluir informações sobre a literatura da área, nem referências bibliográficas. O objetivo deve ser claro, informando, caso for apropriado, qual o problema e as hipóteses do estudo. Para os relatos de pesquisa, o método deve oferecer informações breves sobre os participantes, instrumentos e procedimentos especiais utilizados. Apenas os resultados mais importantes, que respondem aos objetivos da pesquisa devem ser mencionados no resumo. É vetada a utilização de abreviaturas não convencionais ou sem prévia colocação por extenso do termo a ser abreviado. Palavras-chave em português (fonte Times New Roman, tamanho 12, alinhamento e recuo de 1,25cm nas margens direita e esquerda). No mínimo 3 e no máximo 6, em letras minúsculas e separadas com ponto e vírgula. Abstract (resumo traduzido para o inglês). Deve ser escrito de modo fluente e corresponder o máximo possível ao conteúdo explicitado no Resumo, seguindo a mesma forma (fonte Times New Roman, tamanho 12, em itálico, alinhamento e recuo de 1,25cm nas margens direita e esquerda). Key Words (fonte Times New Roman, tamanho 12, em itálico, alinhamento e recuo de 1,25cm nas margens direita e esquerda), palavras-chave traduzidas para o inglês, ou termos correspondentes. Autor para Correspondência (indicado com um asterisco). Deve incluir uma breve descrição sobre as atividades atuais do Autor, sua formação, vínculo atual e, se desejar, endereço completo para contato, incluindo e-mail e homepage, caso haja. Corpo do Texto: Os Subtítulos devem aparecer em negrito, alinhados à margem esquerda, precedidos e seguidos de uma linha em branco. Quando o texto for um relato de pesquisa deverá apresentar Introdução, Materiais e Método (quando for o caso, ou Metodologia), Resultados, Discussão e Referências Bibliográficas, numerados em arábico, assim como possíveis subtítulos. Em revisões pode-se utilizar o recurso de um Índice (sem paginação) que apresente a listagem dos tópicos e dos subtópicos. Caso o Autor ache interessante e relevante, poderá acrescentar um subtítulo sobre “Hiperlinks de Temas Relacionados”. Figuras, Fotos, Tabelas e audios. As fotos ou figuras devem ser enviadas separadamente, em arquivo anexo, no formato *.jpg (resolução máxima de 72dpi, não ultrapassando o limite de 1,4 MB cada um). Indicar no texto o lugar onde serão incluídas, com referências do tipo: figura01, tabela02 ou gráfico01 etc., salvando os arquivos com nomes correspondentes: figura01.jpg, tabela02.jpg ou grafico01.jpg. Os arquivos de áudio, também enviados separadamente, em anexo, no formato *.mp3, devem ser apresentados já editados (cortes, formato, definição de mono ou estéreo, não podendo ultrapassar o 244 Ciências & Cognição 2007; Vol 11: 242-246 <http://www.cienciasecognicao.org/> • • • • limite de 1,4 MB cada um). Os arquivos serão incluídos exatamente como nos forem enviados. Indicar no texto o lugar em que o arquivo de áudio deverá ser incluído. Citar autoria, data e local de gravação. Não nos responsabilizamos pelo uso indevido das gravações por terceiros. Importante: para nomear as imagens ou áudios não use letras maiúsculas, acentuação, espaços ou caracteres especiais (o "ç" é entendido como caractere especial). Ao preparar arquivos de imagens teste a resolução final: opte sempre por manter legíveis as linhas e dados dos gráficos e/ou tabelas. Para tanto, ao "reamostrar" as imagens a fim de adequá-la à resolução pedida (em algum programa de edição de imagem), selecione a opção "manter proporções da imagem", tomando o cuidado de obedecer ao limite de 1,4 MB. Acrescente sempre na margem esquerda da fotografia, tabela ou gráfico uma marca de autoria. Notas (quando houver) devem ser indicadas por algarismos arábicos no corpo do texto, as notas deverão ser listadas após as referências bibliográficas, sob o título Notas (não usar o recurso “Inserir Notas...” do Word). Agradecimentos e créditos a instituições de financiamento deverão aparecer no final do texto e antes do item Referências Bibliográficas. Anexos (quando houver) devem ser indicados no corpo do texto e apresentá-los no final, após as Referências Bibliográficas, identificados por letras maiúsculas (A, B, C, e assim por diante) e por títulos adequados. Utilizar anexos somente quando for imprescindível: dar preferência à informação que facilite o acesso a materiais e instrumentos, por meio de notas e/ou links. Normas para fazer Citações. Observe rigorosamente as normas de citação. Todos os estudos referidos devem ser acompanhados dos créditos aos autores e das datas de publicação. • No caso de trabalho de única autoria, o nome do autor deve ser seguido da data de publicação, na primeira vez em que for citado, em cada parágrafo. Exemplos: (Santos, 2000) ou Santos (2000). Trabalhos com dois autores, citar no texto os dois sobrenomes dos autores (usando o separador e) sempre que o artigo for referido, acompanhado da data do estudo entre parênteses. A citação também poderá ser feita com os sobrenomes entre parêntesis separados por uma vírgula do ano de publicação. Exemplo: “Santos e Silva (1999) demonstraram que...” ou ... foi demonstrado na literatura (Santos e Silva, 1999). Para trabalhos com três ou mais autores: Quando a citação for inserida como parte do texto, citar apenas o sobrenome do primeiro autor, seguido de "e colaboradores" e da data de publicação entre parênteses (exemplo: Santos e colaboradores (2000) demonstraram que ...). Porém, na seção de Referências Bibliográficas todos os nomes dos autores deverão ser relaciona- • © Ciências & Cognição dos. A citação, no corpo do texto, também poderá ser feita apenas entre parêntesis, onde o sobrenome do primeiro autor deverá ser seguido pela expressão et al. – em itálico – seguido por uma vírgula e o ano de publicação (Exemplo: Santos e colaboradores (2003) ou (Santos et al., 2003)). • A citação de obras antigas e reeditadas devem ser feitas da seguinte forma: autor (data de publicação original/data de publicação consultada). Evite citações secundárias, quando o original pode ser recuperado com facilidade. Quando necessário, informar no corpo do texto o nome do autor que faz a citação original e a data de publicação do estudo, e, em nota, a referência bibliográfica original. Somente a obra efetivamente consultada deve ser listada nas referências bibliográficas. Usar, nos casos de citação secundária, os termos apud, op. cit., id. ibidem etc. • A citação literal de um texto deve ser indicada colocando o trecho entre aspas e deve incluir a referência ao número da página da publicação do qual foi copiado (Santos, 2000: 16). Citações de mais de três linhas devem ser apresentadas como novo parágrafo, recuado de 0,5 cm da margem esquerda e 0,5 cm da margem direita e entre aspas. Lista de Referências Bibliográficas. Deixar uma linha em branco entre cada referência bibliográfica. Apresentar as referências em ordem alfabética, pelo sobrenome dos autores, apenas com as inicias em maiúsculo. Referências a vários estudos do mesmo autor são apresentadas em ordem cronológica, do mais antigo ao mais recente. Quando coincidirem autores e datas, utilizar letra minúscula como diferenciador após a data: Santos (2000a), Santos (2000b) como critério para listar as referências em ordem alfabética. Ao repetir nomes de autores não substituir por travessões ou traços. Não usar os comandos “sublinhado” ou “negrito” nesta seção. Os grifos, quando necessários, devem estar presentes como nos exemplos abaixo. Exemplos de Citação na Lista de Referências: Artigo de Revista Científica Bloch, M. (1999). As transformações das técnicas como problema de psicologia coletiva. Signum, 1, 169-181. Artigo de Revista Científica Ordenada por Fascículo - Citar como no caso anterior, e acrescentando o número do fascículo, entre parênteses, sem sublinhar, imediatamente após o número do volume: Dunaway, D.K. (1991). The oral biography. Biography, 14 (3), 256-266. Artigo de Revista Científica no Prelo - No lugar da data, indicar que o artigo está no prelo. Não referir data, volume, fascículo ou páginas até que o artigo 245 Ciências & Cognição 2007; Vol 12: 242-246 <http://www.cienciasecognicao.org/> seja publicado. No texto, citar o artigo indicando, entre parênteses, que está no prelo. Texto Publicado em Revista de Divulgação Comercial - Havendo indicação do autor, iniciar a citação pelo sobrenome e inicial do nome, seguido do ano, dia e mês entre parênteses, nome do artigo, nome da revista em itálico, volume e páginas: Toledo, R.P. (2001, 23 de maio). O santo de Assis – Jacques Le Goff. Veja, 20, 160. - Quando o texto não indicar o autor, iniciar com o título, seguido do ano, dia e mês, nome da revista em itálico, volume e páginas. Como no exemplo a seguir: As armas do barão assinalado (1998, maio). Bravo!, 8, 58-63. Livro com Autoria Única Halbwachs, M. (1925). Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Presses Universitaires de France. Livro Organizado por um Editor Neisser, U. (Ed.). (1982). Memory observed: remembering in natural contexts. San Francisco: Freeman. Capítulo de Livro Benjamin, B.S. (1967). Remembering. Em: Donal, F. G. (Ed.). Essays in philosophical psychology (pp. 171-194). London: Macmillan. Capítulo ou Artigo Traduzido para o Português de uma Série de Múltiplos Volumes Bausola, A. (1999). O Pragmatismo (Capovilla, A.P., Trad.). Em: Rovighi, S.V. (Ed.). História da Filosofia Contemporânea. Do século XIX à Neoescolástica (Vol. 8, pp. 459-471). São Paulo: Edições Loyola. (Original publicado em 1980). Livro Traduzido para o Português Foucault, M. (1992). As palavras e as coisas (Muchail, S.T., Trad.). São Paulo: Livraria Martins Fontes Editora. (Original publicado em 1966). Texto Publicado em Enciclopédia Stroll, A. (1990). Epistemology. Em: The new encyclopedia Britannica (Vol.18, pp. 466-488). Chicago: Encyclopedia Britannica. Trabalho Apresentado em Congresso, mas Nãopublicado Massimi, M. (2000, outubro). Identidade, tempo e profecia na visão de Padre Antônio Vieira. Trabalho apresentado na XXX Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, Brasília, Brasil. © Ciências & Cognição Trabalho Apresentado em Congresso e Publicado em Anais Campos, R.H.F. e Lourenço, E. (1998). Psicologia da criança e direitos humanos no pensamento do Instituto Jean-Jacques Rousseau – Genebra – 1912-1940. Em: Faculdade de Educação da UFMG (Org.), Anais, V Encontro de Pesquisa da FAE (pp. 154-166). Belo Horizonte: Faculdade de Educação da UFMG. Teses ou Dissertações Não-publicadas Xavier, C.R. (2001). Encontros e permutas entre dois pensadores: um estudo sobre as correspondências entre Wolfang Pauli e Carl Gustav Jung. Dissertação de Mestrado, Programa de Estudos Pós-Graduados em História da Ciência, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, SP. Obra Antiga e Reeditada em Data Posterior Descartes, R. (1989). Les passions de l'âme. Em: Alquié, F. (Ed.), OEuvres philosophiques de Descartes. Tome III (pp. 939-1103). Paris: Bordas. (Original publicado em 1649). Autoria Institucional American Psychological Association (1994). Publication manual (4ª ed.). Washington, DC: Autor. Comunicação Pessoal Carta, mensagem eletrônica, conversa telefônica ou pessoal podem ser citadas, mas apenas no texto, apresentando as iniciais e o sobrenome do emissor e a data completa. Não inclua nas referências. Web Site ou Homepage Para citar um Web Site ou Homepage na íntegra, incluir o endereço no texto. Não é necessário listá-lo nas Referências. Artigos Consultados em Indexadores Eletrônicos Mello Neto, G. A. R. (2000). A psicologia social nos tempos de S. Freud. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Agosto 2000, 16(2), 145-152. Retirado em 28/06/2001, no World Wide Web: www.scielo.br/ptp . Resumos Consultados em Indexadores Eletrônicos Fornari, A. (1999). Las experiencias de pasividad como desafío a la razón [Resumo]. Cadernos de Psicologia, 9 (1). Retirado em 28/06/2000, de World Wide Web: http://psi.fafich.ufmg.br/cadernos/volume9.htm Trabalho Apresentado em Congresso com Resumo Publicado em Anais Pantano, D.M. (1997). Epistemología, Historia y Psicología [Resumo]. Em: Sociedade Interamericana de Psicologia (Org.), Resumos/Abstracts, XXVI Congresso Interamericano de Psicologia (p. 85). São Paulo: SIP. 246 Ciências & CogniC(3) i ê-–--Adotamos n cBakhtin iJucá aRégis sMi& Categoria A: B: A.C.D. (32) (23) (19) (17) (14) (13) (11) (9) (10) (7) (5) (4) (3) (2) (1) (4) (26) (6) (2) “O Embora O A Tradução John RecordaSegundo HeteroTradupara neolonoção dialointerSese -“A –Como -Já S. -F. L. –F. -E.C. I.S. J. P.L.M. Â.Á.C. M. A. G. A.M. I. G.A. R.E. L.P. Peda L. I. –aéção 2006; Vol 09: C o g n i çMoã0alMiranda 6789120 Doutora 671Oliveira 5 4 3 2 1 2 jogo 7 3 4 2- é 8 6 7 0 1 -o1-é, 9termo 1“uma 1“per78941gra6“se 1345No Freire Rocha reira Rolnik inteligência arle minha. ésabe, Professor ção nossa: S. 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