O MOVIMENTO PELO RETORNO DA FILOSOFIA NO 2º GRAU EM FORTALEZA: RESGATE HISTÓRICO MARIA DULCINEA DA SILVA LOUREIRO UNIVERSIDADE REGIONAL DO CARIRI. Neste texto pretendemos compreender o movimento que se estruturou em Fortaleza pelo retorno da filosofia no currículo escolar do ensino médio entre os anos de 1984 a 1988 procurando articula-lo com o movimento pelo retorno da filosofia que vinha se organizando desde 1977 em todo país. O que o “movimento”1 reivindica, qual a argumentação de que lança mão para justificar o retorno da disciplina, quais as formas de organização de que se utiliza para levar adiante as reivindicações e quais os resultados conseguidos, serão alguns dos pontos abordados. O trabalho se restringirá à década de oitenta, mais precisamente ao período que vai de 1985 a 1988, posto ter sido neste espaço de tempo que se organizou uma comissão que irá aglutinar as ações e reflexões pelo retorno da filosofia ao 2º grau em Fortaleza2. 1. O movimento pró-filosofia no 2º grau. Ao buscar apreender a situação da Filosofia3 no ensino secundário percebe-se que desde sua introdução no Brasil pelos jesuítas no século XVI, a Filosofia é uma constante no currículo, embora sua posição não possa ser considerada estável. Um breve olhar sobre as reformas4 educacionais empreendidas no país desde a República revela que a Filosofia aparece em diferentes momentos, todavia com importância distinta, como disciplina obrigatória, complementar, optativa, da parte diversificada, e, em algumas reformas, fica ausente do currículo. Esta oscilação da Filosofia enquanto disciplina no secundário está intimamente relacionada às circunstâncias sócio-econômicas, políticas e educacionais por que passou o país, e também à posição que a filosofia, enquanto saber diferenciado do saber científico, 1 Demos o nome provisório de movimento ao conjunto de manifestações que tinham como objetivo o retorno da Filosofia no 2o grau. 2 Os documentos oficiais, ou seja, o documento encaminhado às autoridades educacionais do Estado, e o documento encaminhado pela Secretaria de Educação à comissão Pró-filosofia com a resposta ao documento reinvindicatório, juntanebte com os artigos publicados na época serão as fontes em que se apóia esse estudo. 3 Para um aprofundamento sobre a história do ensino da Filosofia no 2o. grau ver os trabalhos de Maciel (1959); Ribeiro (1984); Cartolano (1985) e Costa (1992). 4 Desde a proclamação da República já tivemos as seguintes reformas: Benjamin Constant (1890); Amaro Cavalcanti (1892); Epitácio Pessoa (1901); Rivadávia Correia (1911); Carlos Maximiliano (1915); João Luiz Alves (1925); Francisco Campos (1931); Gustavo Capanema (1942); LDB (Lei de Diretrizes e Bases) 4024/61 (1961); Lei 5692/71; Lei 7044/82. 2 ocupa na sociedade industrial moderna. Assim, por exemplo, pode-se constatar que na história do Brasil nos períodos dominados por uma visão positivista, pragmatista, tecnicista, a Filosofia fica ausente do currículo do secundário, enquanto que na colônia quando o país está embuído de uma visão mais humanista, clássica a Filosofia é mais valorizada fazendo parte do elenco de disciplinas obrigatórias Na reforma 5692/71 a Filosofia, por não poder atender às solicitações técnicoburocráticas e político-ideológicas, foi posta de lado e substituída pela Educação Moral e Cívica. A reforma suscitou reações e debates que procuravam uma reestruturação do curso secundário. É neste período que se organiza um movimento pelo retorno da filosofia ao 2o grau. Para compreender melhor o movimento pelo retorno da Filosofia ao 2° grau, será necessário relacioná-lo com as condições socio-econômicas e políticas da sociedade brasileira. Em fins da década de 1970 e princípio da década de 1980 iniciou-se o processo de abertura, de “restauração da democracia” no país, gerado por uma série de fatores, dentre os quais podemos destacar a incompatibilidade do modelo econômico, ou seja, a crise do modelo de desenvolvimento capitalista adotado a partir de 1964. Segundo Germano (1994: 95) No nível político, ocorre uma nova mudança na correlação de forças entre as diversas facções militares. (...) A sociedade civil cresceu e se diversificou a partir de meados dos anos 70 (...). Vêm a tona novas formas de organização e mobilização popular, representadas pelos movimentos sociais oriundos das periferias das grandes cidades e dos trabalhadores sem terra. No campo educacional, a União Nacional dos Estudantes (UNE) se reorganiza, ainda que na ilegalidade; a Associação Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes) é fundada em princípios dos anos 80; a Confederação de professores do Brasil (CPB) ressurge com força etc. Tudo isto dá conta do processo de fortalecimento da sociedade, ao contrário do que era almejado pelo governo. No contexto da crise do “milagre econômico” em que o regime enfrentava uma crise de legitimidade, com o acirramento das divergências no seio das próprias classes dominantes dividindo a base militar da ditadura, intensificaram-se as resistências que se desenvolveram contra os efeitos da Lei 5692/71. Discute-se a compulsoriedade da profissionalização, a organização do currículo, as licenciaturas curtas, a idéia de professor polivalente, a implantação de Estudos Sociais, Educação Moral e Cívica, a ausência da Filosofia. Cury 3 (1983)5, em análise dos trabalhos sobre a profissionalização no 2° grau, identificou duas perspectivas, uma favorável à lei e outra contrária. Estas perspectivas se manifestam em três categorias: discurso de adesão; discurso de adesão com restrição e discurso crítico. Essas modalidades de discurso, que não coincidem entre si, de modo algum se caracterizam pela linearidade. Tanto o discurso pró, quanto o discurso contra são plurais em suas tendências. Tal diversidade incorpora desde pontos de vista laudatórios à lei, até a literatura questionadora da natureza e da lógica que a preside; desde o discurso que, sob novas modalidades, redescobre a escola “redentora” da sociedade até aquele que aponta para a reprodução das desigualdades sociais. (Cury, 1983:109) O ensino de 2° grau, argumenta Cury, está no cerne dos problemas sociais, evidenciando o impasse em que se encontram as sociedades modernas para resolverem a função do 2° grau: encaminhar seus membros para os pólos de decisão ou para os pólos de execução? Sem alterações que atinjam a dinâmica social mais ampla e a dinâmica intraescolar, dificilmente as soluções serão efetivas, havendo apenas saídas provisórias com uma nova reforma. No meio deste processo de abertura e democratização política, em 1975, quando a Lei 5692/71 começa a cair no descrédito, funda-se o Centro de Atividades Filosóficas que depois passou a denominar-se de Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficos (SEAF). O SEAF6 teve uma ação decisiva no movimento pela reintrodução da filosofia no ensino do 2° grau se engajando na discussão, tendo como objeto de ação e reflexão o retorno da Filosofia no 2° grau. O SEAF, segundo Gasparello (1986: 77-89) e Simon (1984: 8-10), promoveu amplos debates, cursos; elaborou documentos, visando sensibilizar as autoridades da necessidade de se reestruturar o 2° grau e da importância da filosofia nesse grau de ensino. No período que vai de 1977 a 1985, o SEAF, junto a outras entidades filosóficas, organizou o I, II e o III Encontro Nacional dos Chefes dos Departamentos de Filosofia que ocorreram no Rio de Janeiro (1981), Goiânia (1982) e Santos (1983). O I Encontro formou uma Coordenação Nacional do Departamento de Filosofia e elaborou um documento sobre a Filosofia no 2° grau que ficou conhecido como o “Documento do Rio de Janeiro”. O II Encontro aprovou o 5 Em suas conclusões, o autor assinala que embora a profissionalização expressa na Lei 5692/71 tenha fracassado, “o produto das análises manifestaram que o ensino de 2° grau continua sendo sumamente complexo e de difícil solução” (Cury, 1983:115) 6 Outros grupos e associações filosóficas como Convivium, AFB, IBF, CONPEFIL - Conjunto de Pesquisa Filosófica - também se empenharam nesta luta, mas é o SEAF que desenvolveu um trabalho mais intenso, inclusive junto as Secretarias de Educação Estaduais. 4 documento sobre “Reintegração da Filosofia no Currículo do 2° grau” entregue à Ministra da Educação Esther de Figueiredo Ferraz, que garante a recomendação da Filosofia junto às Secretarias Estaduais e aos Conselhos de Cultura. 2. O movimento em Fortaleza. As discussões que vinham ocorrendo em Fortaleza sobre a situação da Filosofia no currículo do secundário começam a se estruturar a partir da Reunião da SBPC realizada em Fortaleza em 1977. Todavia, só a partir de 1985 é que o “movimento” tomou corpo com a organização de um comissão pró-filosofia que, junto ao Centro Acadêmico de Filosofia da UECE, planeja uma série de reuniões e atividades como: visita às escolas, realização de uma pesquisa com os alunos do 2° grau, divulgação do “movimento” junto à imprensa local. O ápice deste processo se dá com a entrega de um documento e um abaixo assinado ao secretário de Educação do Estado, ao secretário de Educação e Cultura do Município e ao presidente do Conselho Estadual de Educação, reivindicando o retorno da disciplina no secundário. O documento entregue às autoridades educacionais revela que a comissão estava sintonizada com as discussões que vinham ocorrendo no país. É possível perceber a influência do documento de Brasília7 no conteúdo, na fundamentação utilizada e no teor ideológico veiculado. Justifica-se a necessidade do retorno da disciplina enfatizando sua importância na sociedade sobretudo junto à formação dos cidadãos. Segundo o documento: a filosofia exerce um papel de magna importância na formação cultural de uma sociedade e desenvolve a reflexão e a capacidade criadora do cidadão; (1985,p.1) Vale ressaltar que somente em dois momentos da história da humanidade a Filosofia teve realmente uma importância deste porte: o primeiro é na Grécia antiga, quando a Filosofia8 é considerada o saber dos saberes. A Filosofia exercia influência junto à política, à “ciência” e a ética, orientando a vida dos cidadãos. 7 O documento de Brasília, é o resultado do encontro que a SESu-MEC com 11 consultores nos dias 16 a 18 de novembro de 1981. O documento apresenta sugestões de temas para o ensino da filosofia, uma discussão sobre o retorno da filosofia no 2° grau, sendo enviado a todos os departamentos de filosofia do país. 8 “A filosofia é chamada por Aristóteles de “ciência da verdade”, enquanto metafísica, ou filosofia primeira, teologia; ciência do ente enquanto ente, a ciência daquilo que pode chamar-se com toda propriedade a Verdade”. MORA, (1991: 160) Segundo Oliveira (1995: 132) “para os gregos, a filosofia não só era uma atividade respeitada entre outras, mas significava a realização mais nobre do homem, era forma de vida, forma de consciência, desejada pelo homem como realização máxima de sua felicidade.” 5 Um segundo momento pode ser encontrado no século XVIII, considerado o século da Filosofia9, com o movimento iluminista. Em nenhum outro período10 da história, a Filosofia assume a importância a que o documento se refere, o que não invalida a afirmação enquanto tese, ideal. O documento faz uma reflexão sobre o sistema educacional do país, enfatizando que o “predomínio de uma visão pragmatista e imediatista do processo educativo” tem acarretado muitos prejuízos para o desenvolvimento do cidadão. Alerta ainda para a importância da reflexão, tendo em vista a formação de verdadeiros cidadãos “( isto é, pessoas dotadas de consciência cívica)”. Em seguida a comissão explicita a função da filosofia no 2° grau, enfatizando que: a presença da filosofia contribuirá decisivamente, para a reformulação do ensino de 2° grau, na medida em que valoriza a reflexão criadora dos conteúdos do saber, o que tem por conseqüência o fortalecimento das bases de todo o ensino. (grifo meu) (Idem) É necessário redimensionar o papel que a filosofia pode exercer no 2° grau. Simon, (1984:11) levanta a hipótese de que a reimplantação da filosofia estava sendo percebida, naquele momento, por alguns segmentos, não como uma forma de resolver o problema do 2° grau, antes, como um modo de contorná-lo. Não se pode querer que a filosofia como disciplina consiga grandes modificações na estrutura do secundário. Portanto, a afirmação que o documento faz é no mínimo problemática. Estabelece uma relação de causa e efeito, que pode não ocorrer, pois a reformulação do 2° grau não poderá se dar sem uma restruturação mais ampla, uma reformulação que deverá abranger toda a estrutura do funcionamento educacional. Esta compreensão não invalida a luta pelo retorno da disciplina, que poderá contribuir para a reflexão sobre o ensino secundário. Teria sido, talvez, necessário ter o cuidado de não supervalorizar a disciplina, criando expectativas que poderão não ser realizadas. Em seguida o documento aponta para a discussão da relação da filosofia com as ciências positivas: a reflexão filosófica contemporânea busca estabelecer um produtivo diálogo com as ciências, superando o conflito entre técnica e 9 “O século XVIII, que se auto-intitulou orgulhosamente o “Século da Filosofia”, justificou essa pretensão na medida em que devolveu efetivamente à filosofia seus direitos originais, em que a restabeleceu em sua significação primeira, sua significação verdadeiramente clássica.” Cassirer (1992:11) 10 Pode-se contestar esta afirmação, lembrando o período medieval, mas é importante lembrar que na Idade Média a filosofia está a serviço da teologia, ou seja, seu fulcro é a justificação da fé. 6 humanismo, numa síntese superior que integra harmoniosamente as virtudes das ciências positivas e os valores estéticos e éticos que nos reconduzem às fontes mais autênticas da nossa civilização. (Idem) Esta reflexão aponta na direção de busca de superação da dicotomia que se estabelece a partir da modernidade entre ciência e filosofia. Vivemos um período em que se questiona a “Razão”, o saber “positivo” como única forma válida de saber. Na perspectiva positiva o que não for mensurável, experimentável, passível de comprovação empírica, não pode ser considerado conhecimento, é mística, religião, não leva a nada. Segundo Oliveira (1995) toda a consciência humana é hoje uma consciência tecnológica, todo o seu relacionamento com a realidade é impregnado de perspectivas tecnológicas. Assim por exemplo, a ordem social, a econômica, a política etc. só podem ser entendidas hoje como realização concreta de consciência tecnológica, com conseqüências infinitas para a vida do homem. (p. 74) A filosofia aparece como algo inútil, mesmo ideológico para esta consciência. O documento não deixa muito claro se o “diálogo” com as ciências terá um caráter crítico, radical, problematizador, que busque uma reflexão “imanente à técnica, capaz de demonstrarlhe suas limitações essenciais”.(Idem, p.14) As recomendações que o documento faz aos órgãos competentes são as seguintes: a) que a disciplina Filosofia seja incluída como obrigatória em, pelo menos, duas séries do 2° grau, preferencialmente, as duas últimas; b) que esta disciplina seja ministrada, no mínimo, em quatro horas semanais; c) que o caráter de obrigatoriedade seja efetivado, nos colégios da capital, a partir do ano letivo de 1986; d) que de um modo gradual e dentro das possibilidades, tal obrigatoriedade seja estendida a todos os estabelecimentos de ensino de 2° grau. (Idem, p.2) Em contrapartida, os Departamentos de Filosofia da UECE e FAFIFOR se comprometem a oferecer: a) curso de reciclagem para os professores licenciados em Filosofia; b) elaboração do programa, com o acompanhamente e avaliação periódica; c) realização de seminários filosóficos para os docentes. Após a entrega do documento e do abaixo-assinado às autoridades, a comissão planejou uma série de atividades com o intuito de divulgar o movimento, entre as quais se destacam a participação em um debate na TVE, no programa “Perspectivas”, com o então Secretário de Educação Irapuã Diniz. 7 Em 198611 foram publicados dois artigos sobre o ensino da filosofia: em março no Caderno de Cultura do Jornal O POVO, o artigo do prof. Noé intitulado “Filosofia no 2° grau (ou integração entre Universidade e Escola Secundária)”, e o artigo “Filosofia - deve retornar ao 2° grau?”, publicado em O POVO e na Revista “Educação e Debate” da UFC, de autoria dos alunos do Curso de Mestrado em Educação da UFC, Francisco A. Loiola, Marise S. S. de Almeida, Mª Yolanda P. Silveira12. O artigo do prof. Noé faz uma análise da Lei 5692/71 enfatizando que a concepção de ensino proposta na Lei fracassou, gerando um ensino que nem profissionaliza e nem prepara para o ingresso na Universidade. A Filosofia no secundário teria como objetivo “instigar o aluno a pensar sobre os grandes temas da sociedade atual, ... tentar despertar no aluno uma consciência reflexiva capaz de pensar ao invés de decorar.” Considera ainda que o retorno da Filosofia ao ensino secundário só poderá ser profícuo se houver uma infra-estrutura (criação de bibliotecas, cursos de reciclagem para os professores) que garanta sua viabilização. O artigo “A filosofia deve retornar ao 2° grau?” parte do pressuposto de que para se compreender o porquê da ausência da filosofia no 2° grau se faz necessário uma abordagem crítica da Reforma implementada pela Lei 5692/71. Os autores procuram no decorrer do artigo responder se “o direcionamento de um determinado grau de ensino, para o trabalho, justificaria a exclusão no novo currículo, da disciplina FILOSOFIA?”. Analisam o contexto em que a Lei foi gerada, enfatizando que ela fundamenta-se, numa concepção liberal-tecnicista e defende os princípios de continuidade e terminalidade preconizados para os dois graus de ensino. ... Tudo isto significa uma intenção de racionalização e concentração concomitantes, além da preocupação com a eficiência e produtividade, todos princípios eminentementes tecnicistas. (1986, p.86) Os autores mostram as contradições presentes na Lei e concluem justificando a retirada da filosofia do currículo como a necessidade de manter o status quo, de sufocar o espaço da reflexão crítica funções essenciais à Filosofia e indispensáveis à compreensão da origem das idéias e valores vigentes, bem como para que se tenha consciência do significado daquilo que se pensa e daquilo que se faz. (Idem p. 87) 11 Neste ano o Centro Acadêmico (C.A) de filosofia promoveu o III encontro dos Estudantes de filosofia, onde se discutiu o ensino da filosofia na Universidade e no secundário. 12 professora do curso de Filosofia da UECE. 8 Quando os autores afirmam que a função essencial da filosofia é a reflexão crítica, estão inferindo que a Filosofia ensinada então, no secundário, era uma filosofia crítica. No entanto, estudos13 que procuraram fazer um resgate histórico da disciplina têm chegado a comprovações que colocam a perspectiva de uma filosofia crítica nas escolas como uma exceção à regra. De fato, o ensino da filosofia em sua grande maioria esteve desvinculado dos interesses dos jovens, com ênfase ou na lógica ou na história da filosofia. Ao fazer uma síntese da história do ensino da filosofia no Brasil, Rezende Silva (1980:89) mostra que desde Pombal ocorreu um processo contínuo de descaracterização da Filosofia, ora feita serva da teologia e usada para fins apologéticos, ora dependente das ciências e silenciada pelos interesses urgentes da tecnologia, ora desfigurada por preocupações de doutrinamento moral. A Filosofia que sempre tivemos no Brasil, segundo Gasparello (1986, p.77), assumiu um caráter desinteressado, preocupada apenas em trazer benefícios espirituais, uma ascese. Uma Filosofia erudita e ornamental na maioria das vezes desprovida de espírito crítico. Estas reflexões nos levam a questionar o pressuposto de que a Filosofia teria sido retirada do currículo apenas porque representava uma ameaça ao sistema que o regime militar queria implantar. Em abril de 1987, (quase dois anos depois da entrega do documento com as reivindicações) a Secretaria de Educação do Estado envia à comissão um documento-resposta e um relatório sobre a discussão do restabelecimento do ensino da Filosofia. O documento ressalta que a reivindicação é justa, mas que não obstante o consenso em torno da questão, a fragmentação da Grade Curricular, em decorrência do desdobramento da Área de Estudos Sociais, da Área de Ciências e de Português, sem que se tornasse possível o aumento da carga horária (semanal ou anual) não se logrou dar peso suficiente a todas as disciplinas indicadas para o Núcleo Comum e que se supõe sejam imprescindíveis à formação básica do aluno. (Março, 1987, p.1) Destaca ainda que a determinação da obrigatoriedade é da competência do Conselho Federal de Educação e não do Conselho Estadual de Educação . Se compromete a: incluir uma aula semanal na 1ª série do Curso de Formação para o Magistério do 1o. grau e conjugar seu conteúdo ao dos Fundamentos Históricos e Filosóficos para assegurar a unidade e maior aprofundamento do assunto. (Idem) 13 Conforme os estudos de Cartolano (1985); Gasparello (1986); Silva (1980); Costa (1992). 9 A resposta da Secretaria suscita algumas reflexões: primeiro, pelo que consta, a Filosofia já era ensinada na disciplina de Fundamentos pelo menos desde 1980; segundo, se não ocorreu nenhuma mudança na grade curricular e nem na carga horária e se a disciplina de Fundamentos já engloba os aspectos históricos, biológicos, psicológicos, sociológicos e filosóficos da educação onde estaria a mudança, já que a carga horária da disciplina sempre foi considerada insuficiente para cobrir todo o conteúdo?. O relatório da Secretaria lembra ainda que na grade curricular, segundo a Resolução 165/81, no rol das disciplinas da parte diversificada, já consta a Filosofia, cabendo às unidades escolares optarem pela disciplina. Creusa Capalbo14 faz uma reflexão sobre a “liberdade” de se poder optar pela disciplina de Filosofia mostrando que na realidade a liberdade de ensinar, e por parte do aluno de escolher a filosofia no 2° grau, converteu-se no Brasil atual, na prática imaginária da liberdade absoluta, da liberdade sem condições e da liberdade sem campo ... Ou antes, este é o contexto da morte da filosofia; ou ainda, o contexto da loucura filosófica, quando se afirma que esta existência imaginária é a forma de liberdade real para o ensino da filosofia.(1979, p. 215) A reflexão é pertinente, não só porque questiona a realidade, mas, principalmente, porque desmistifica a compreensão da problemática. Quando a comissão se propõe a visitar os alunos, procurando sensibilizá-los para a inclusão da disciplina, ela tem que levar em conta que a preocupação imediata no 2° grau é com o vestibular, ou com a profissionalização, que, portanto, será necessário muito mais do que uma visita, uma conversa com a direção da escola para que a Filosofia seja incluída no secundário. Capalbo lembra, ainda, que estamos assistindo ao fechamento de muitos cursos de Filosofia nas Universidades brasileiras15. A reportagem do jornal JD de 30 de abril de 1987 traz em destaque a manchete “Filosofia retorna ao 2° grau com a Universidade”, onde procura mostrar a trajetória do movimento pelo retorno da Filosofia bem como os ganhos que o “movimento” obteve com a resposta da Secretaria de Educação às reivindicações. A reportagem levanta uma questão que desde o início está nas entrelinhas do trabalho e que se refere à discussão de que haveria um caráter corporativista nas reivindicações. Não se pode negar que o “movimento” tinha intenção de garantir o mercado de trabalho aos alunos que o curso de Filosofia estava formando bem como justificar, de certo modo, a existência do curso de licenciatura em Filosofia. Comentando a afirmação de que o “movimento” era corporativista, o professor Noé 14 Professora do departamento de Filosofia da UERJ - Universidade estadual do Rio de JaneiroCAPALBO, Creusa (1979). 15 Em Fortaleza a Faculdade de Filosofia de Fortaleza (FAFIFOR) fechou em 1990, só continua funcionando o curso de Teologia. 10 afirma que “o mercado de trabalho todo profissional procura assegurar, mas só isso não caracteriza o corporativismo”(JD Abril, 1987). A reflexão do professor é pertinente quando tenta esclarecer que o caráter do “movimento” não se resume a uma luta por emprego. Os textos analisados não fornecem elementos suficientes para afirmar que o “movimento” estava sendo movido apenas por interesses corporativistas. Em julho de 1987 o Departamento de Filosofia organizou um Curso16 de Atualização em Filosofia para os professores licenciados em Filosofia e professores que ministram a disciplina de Fundamentos históricos e filosóficos da educação da rede estadual de ensino. O curso tinha por objetivo: a)“oportunizar rigorosa revisão sobre questões filosóficas fundamentais; b) contribuir para uma cosmovisão integrada e coerente”. Após a realização deste curso ocorre uma desmobilização da comissão, o movimento acaba não realizando tudo a que se propunha; as visitas as escolas são suspensas e não ocorrem outros cursos de atualização. 3- Considerações finais. As interrogações e comentários feitos sobrer o movimento pró-filosofia em Fortaleza em Fortaleza devem ser tomados de forma provisória. Um posterior estudo mais detalhado poderá confirmar os questionamentos e inferências feitos. Como sugerimos em alguns comentários, há uma tendência à idealização do papel atribuído à filosofia no 2° grau, o que pode gerar expectativas que a disciplina não poderá corresponder. É necessário ter bastante claro qual o papel da filosofia no secundário e como esta disciplina pode contribuir para a formação dos adolescentes. Para que isto ocorra é preciso definir as metas a serem alcançadas e determinar os conteúdos que serão trabalhados. Ao apontar a idealização atribuída ao papel da Filosofia, busca-se chamar a atenção para os riscos que se corre e que poderão ter como resultado a “inviabilização” da Filosofia no secundário. É preciso ter claro as possibilidades e os limites da disciplina. A nova Lei de Ensino no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que desde 1988 vem sendo discutida, estabelece as diretrizes e bases da educação nacional e indica como uma das finalidades do ensino médio “o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (artigo 35 inciso III). A lei preconiza que os conteúdos sejam organizados para que no final do ensino médio o educando demonstre “III - domínio dos conhecimentos de Filosofia e de 16 O curso foi organizado no período de 20/07/87 a 31/07/87 e 18/01/88 a 29/01/88 pelos professores: M. Yolanda Perdigão; Noé Martins de Souza; M. Tereza B. de Andrade. 11 Sociologia necessários ao exercício da cidadania.”(Art.36,§ 1o inciso III). Como se observa, na nova lei o ensino médio está voltado para assegurar uma educação de caráter humanístico, como nas reformas anteriores, sendo que nesta lei a ênfase recai na formação para a cidadania. A preparação para o trabalho poderá ser dada se assegurada antes a formação geral do educando. Podemos perceber claramente que a filosofia volta a fazer parte das preocupações do ensino secundário, o que por sua vez referenda a iniciativa de muitos Estados que nas suas legislações estaduais de ensino já haviam colocado a filosofia no currículo do secundário. BIBLIOGRAFIA: CAPALBO, Creusa. A situação da Filosofia no sistema brasileiro de ensino. Revista Brasileira de Filosofia v.xxx fasc. 114:213-218 Abr./Maio/Jun 1979 CARTOLANO, M. Tereza P. Filosofia no 2° grau: estudos realizados em escolas de Campinas-SP. São Paulo: Cortez Autores Associados,1985. CASSIRER, Ernest. A filosofia do iluminismo. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1992. CHAUÍ, Marilena de Souza. O ensino da Filosofia (curso médio e curso superior). 29o Reunião da SBPC. Fort. 1980. COSTA, Marisa Voraber. O ensino da Filosofia: revisando a história a e as práticas curriculares. 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Secretário de Educação do Município de Fortaleza. Presidente do Conselho Estadual de Educação do Ceará. Documento-resposta da Secretaria de Educação do Estado à Comissão Pró-Filosofia encaminhado em 12/03/87. Documento da comissão Pró-Filosofia à Secretaria de Educação do Estado em 21/04/87. ARTIGOS PUBLICADOS EM FORTALEZA: MARTINS, Noé. Filosofia no 2° grau (ou integração entre Universidade e escola secundária). Jornal O POVO 02/03/86. LOIOLA, Francisco A., D’ALMEIDA, Marise S. S.; SILVEIRA, M. Yolanda Perdigão S. Filosofia deve retornar ao 2° grau? Educação em Debate, Fort. (11) Jan/Jun: 1986. JORNAL JD- Filosofia retorna ao 2° grau com a Universidade. Reportagem publicada em 30/04/87.