“Vida Podre: a trajetória de uma classificação” Autora: Lis Furlani Blanco Orientador: Ronaldo Rômulo Machado de Almeida I. Resumo O projeto aqui apresentado tem como objetivo principal compreender a trajetória da classificação do podre em diferentes cenários etnográficos, assim como abranger as relações criadas a partir dessa classificação, a qual é, ao mesmo tempo, social e biológica, mas, no entanto, é definida de diversas maneiras de acordo com as esferas na qual transita. Nesse sentido, propõe-se como novidade neste projeto, pensar a comida aceitando suas esferas biológicas e sociais, e compreendendo que nenhuma delas é uma categoria natural dada, mas sim um objeto em construção e debate. Tendo em vista a natureza dessa pesquisa e o tempo limite para sua realização, pretende-se desenvolver uma etnografia multi-situada do podre, analisando a trajetória desta classificação em três cenários previamente delimitados: as feiras livres, com a ênfase em um par de oposições: uma feira da periferia de São Paulo, mais especificamente em Paraisópolis e outra, na região dos Jardins, na Rua Oscar Freire; e simultaneamente, mas com uma abordagem diferente, será realizada uma etnografia na sede do projeto Mesa Brasil, em São Paulo. II. Introdução Ao pensarmos na palavra comida, diversos símbolos, metáforas, sensações, desejos e memórias são despertados por todo o corpo. Os órgãos dos sentidos podem sofrer as mais profundas transformações pelo simples lembrete da necessidade/vontade de um dos atos mais culturais das atividades básicas à sobrevivência (Mintz, 2001; Belasco, 2008; Ashley, 2004). Entretanto, alguns questionamentos são levantados ao realizarmos esse exercício de reflexão e sensação: o que é a comida? Que comida lembramos ao ouvir o enunciado dessa tal categoria? Com o desenvolvimento das sociedades industriais, aquilo que é classificado como comida sofre acentuadas transformações em uma velocidade surpreendente. Da valorização dos alimentos industrializados, para posteriormente a busca do alimento mais “natural”, como garantia de saúde, 1 nutrição e responsabilidade na produção e consumo dos alimentos, a classificação de algo como “comida” passa por diversas significações (Belasco, 2008; Ashley, 2004). Concomitantemente a esse processo, aquela comida que não é passível de consumo humano, isto é, a comida que não é vista como alimento e nutriente, também perpassa por um processo nebuloso de classificação. A classificação do alimento podre como tal, como comida em estado de putrefação, próxima a morte, se transforma ao longo da história e de seu percurso na cadeia de produção e consumo. Os limites dessa classificação são definidos de acordo com diversas categorias e conceitos, que transitam entre o mundo dos sentidos e das sensações, ao mesmo tempo em que são fruto de convenções que constroem um fato cientifico (Latour, 1994), fato esse que esconde a nebulosidade intrínseca a esta classificação. A questão da escassez e excesso de alimentos, preocupação latente da sociedade moderna desde o início do século XVIII (quando surgiu como tema de extrema relevância no pensamento social e econômico) faz parte de um debate que permeia a discussão sobre o limite do podre em nossa sociedade. A definição de segurança alimentar1 como garantia a uma população de acesso à alimentação adequada à sobrevivência, em termos de quantidade, qualidade e regularidade (Belik, 2003), expõe o viés político dessa discussão que perpassa categorias sociais, biológicas e políticas. O desenvolvimento das cidades, e toda a problemática tanto ambiental e social que este crescimento possibilitou, faz da cidade um campo extremamente fértil para a análise do podre, pois permite compreender relações entre Estado e população, o acesso das pessoas aos recursos materiais e simbólicos, a questão da desigualdade social e a criação de novas formas de sociabilidade que só podem ser claramente vivenciadas no contexto da metrópole. A gestão do podre é uma preocupação do Estado, e compreender como este lida com o excesso e a escassez é essencial para compreender como o podre é classificado em diversos cenários. A preocupação em separar o lixo, o saudável do podre, o novo do velho, os animais dos homens, os adultos das crianças, os homens das mulheres, os vivos dos mortos, os saudáveis dos moribundos, o 1 Ocorre, entretanto, que esta categoria vista como natural, faz parte do arcabouço científico que trata da questão da comida no mundo contemporâneo, podendo ser assim, considerada um termo nativo, o qual tem origem no desenvolvimento da sociedade ocidental. Ao mesmo tempo, pode-se perceber também que esse conceito faz parte do tipo de poder vigente em nossa sociedade, o biopoder (Foucault, 1999), que controla categorias da população como um todo, incumbindo-se da vida, cobrindo toda a superfície, do corpo à população, e vendo esta população como um problema político, biológico e de poder (Foucault, 1999). 2 útil do inútil, ou seja, “este mecanismo simbólico excludente, promovendo o descongestionamento dos corpos e do lixo, foi o que definiu a produção do espaço urbano, a instituição de um novo imaginário social, a imposição de novas formas de percepção e novos regimes sensitivos” (De Lucca, 2004, p.16). Nesse sentido a higiene, a definição do que é podre ou não, e o destino dado ao objeto em putrefação, é um problema político, econômico e moral, de extrema relevância para a administração pública, que se encontra, ao mesmo tempo, em uma fronteira tênue entre o público e o privado. Buscando percorrer a trajetória da categoria podre por diversos cenários, é objetivo deste trabalho compreender de que forma a classificação “podre” dada a determinado alimento se transforma de acordo com as esferas e cenários as quais transita, tendo o seu limite definido através da utilização dessas definições por diversos atores, tanto consumidores como cientistas e políticos. O podre perpassa assim, por diversas categorias simbólicas e míticas, de fato científico às sensações e suprimento da necessidade, e constrói nessas interações novas formas de sociabilidade. Da Fartura à xepa Todo dia é dia de feira em algum lugar da cidade. As feiras livres são parte da dinâmica das cidades desde sua origem até a contemporaneidade. Apesar do dinamismo da vida moderna, as feiras ainda são importantíssimas representantes do comércio de alimentos em geral, e não deixam de ter seu papel no consumo das famílias brasileiras. Tanto na periferia quanto em bairros de classe média alta, a feira pode ser considerada um campo fértil para compreender questões relacionadas à classe, à alimentação, a formas de sociabilidade e até mesmo ao papel do Estado em relação ao controle da população e a gestão do excesso e da escassez. A ideia de um alimento que vem diretamente do produtor e não passa por intermediadores na cadeia de produção e consumo faz com que se associe ao alimento da feira a ideia de um produto natural e de qualidade, e acima de tudo, um alimento fresco. Existe nas feiras livres uma diversidade e a quantidade de alimentos tão grande que faz com que o consumidor gaste muito tempo provando e escolhendo a sua compra entre várias barracas. O peixe com a guelra mais avermelhada, a pêra sem nenhum amassado aparente, a alface mais verde e com as folhas mais vivas vão sendo escolhidas uma a uma. 3 O uso dos sentidos na escolha desses alimentos é atividade comum nas compras na feira. Os alimentos são cheirados, provados, observados, tocados, sentidos, à procura de indícios que mostrem que estes produtos não estejam aptos para consumo e assim não serão comprados. Entretanto, não só os sentidos definem o que pode ser consumido ou não: certo “conhecimento geral”, adquirido nas escolas, creches, na família e nos meios de comunicação torna a definição dos alimentos próprios para comercialização como algo natural. A possibilidade da presença de micróbios, fungos, e bactérias é um fato que define o alimento que será comprado ou não. Com a proximidade do término da feira, a sobra, isto é, os alimentos não tão desejados pelos consumidores, os quais chegam o mais cedo que podem para comprar aquilo que é considerado mais fresco, vão ficando amontoadas esperando para serem compradas ou jogadas fora. O tomate batido, a carne com a aparência mais escura e a rúcula murcha sobram para a chamada “xepa”, o fim de feira, no qual com o passar do tempo, ou seja, com a aproximação do estado de apodrecimento, os alimentos vão tendo o seu valor de troca diminuído (Sahlins, 2003). Os mesmos sentidos são usados agora para outro tipo de consumo. Os outros consumidores, ou seja, os consumidores do fim da feira, apesar de terem naturalmente os mesmos sentidos biológicos dos compradores do começo da feira, e de certa forma também entenderem da assepsia considerada necessária para uma vida saudável, escolhem produtos para o seu consumo que foram previamente rejeitados por outros indivíduos. Lixo, sujeira, podridão. Os alimentos que sobram da xepa são disputados, então, pelo Estado e por determinada população. Disputa essa, que se baseia na luta pelo consumo desses alimentos por parte da população e na necessidade de limpeza das cidades por parte do Estado. Organismo este, que regula os fins de feira de forma a evitar a contaminação dos espaços da cidade com as comidas podres, o cheiro ruim, os corpos humanos brigando por comida, e a sujeira visual: resto de todo esse conflito.2 2 No Brasil, aproximadamente 70 mil toneladas de alimentos são jogadas no lixo diariamente, o que torna esse lixo um dos mais ricos do mundo. Nas feiras livres de São Paulo, mais de mil toneladas vão para o lixo todos os dias. (Fonte: <www.nutrociencia.com.br > Acessado em: 20/05/2010) 4 A ciência e a política Perigo, higiene, DTA (doenças transmitidas por alimentos), microorganismo, boas práticas, boa aparência e cheiro, fungos, bactérias, assepsia: vocabulário científico específico, encontrado na literatura sobre biologia, engenharia e ciência dos alimentos que, no entanto, ao contrário do que se parece, faz parte dos tópicos de cartilhas desenvolvida pelo projeto Mesa Brasil3, para instruir na seleção, higienização e consumo de alimentos doados por diversos estabelecimentos alimentícios. Pode se perceber, através de definições como essas, que um ato simples, cotidiano, de decidir o que é comível ou não, é definido. O projeto Mesa Brasil recolhe alimentos doados por diversas instituições alimentícias e realiza um processo de triagem e higienização para que assim esses alimentos sejam repassados para diversas instituições com o intuito de combater a fome através do combate ao desperdício. Utilizando do conceito de segurança alimentar4, este projeto parte das categorias de higiene alimentar e nutrição para classificar assim, o que é podre, e o que ainda é considerado alimento. Através de uma metodologia baseada nos parâmetros de higiene da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), e de parâmetros mundiais de nutrição e segurança alimentar, os programas de recolhimento de sobras e doação de alimentos para combate à fome, trabalham dentro de um quadro de categorias relacionadas às ciências biológicas, médicas e exatas. Os fatos científicos e biológicos, as características naturais dos alimentos e a capacidade do ser humano de usar seus sentidos e sensações classificam e definem essas sobras. III. Justificativa Teórica A comida é um aspecto presente em todas as sociedades. No sentido da alimentação ela não nos difere dos animais, pois assim como qualquer outro ser vivo, nós, humanos, precisamos de alimento para viver. Entretanto, ao pensarmos que nós (os seres humanos) não simplesmente nos alimentamos, mas 3 O programa Mesa Brasil é um iniciativa do SESC com parceira com o governo federal que tem como objetivo: “segurança alimentar e nutricional sustentável, que redistribui alimentos excedentes apropriados para consumo fora dos padrões de comercialização. Formado por uma rede de banco de alimentos que busca onde sobra e entrega onde falta – o Mesa Brasil SESC contribui para o combate à fome através da complementação de refeições.” (http://www.sesc.com.br/mesabrasil) 4 “Garantia à todos os brasileiros de acesso à uma alimentação adequada à sobrevivência e à saúde em termos de quantidade, qualidade e regularidade” (Belik, 2003) 5 também significamos sobre esse alimento, ou seja, o transformamos de nutriente em um código que diz algo sobre nós, é possível dizer que a comida é uma combinação entre componentes biológicos e sociais, uma associação entre natureza e cultura. Segundo Mintz, “como precisamos comer para viver, nenhum outro comportamento não automático se liga de modo tão íntimo a nossa sobrevivência” (2001, p.31). A comida está presente em todas as etapas da nossa vida, pois precisamos comer todos os dias, e assim, desde pequenos somos ensinados e desenvolvemos um “habitus” (Bourdieu, 1996) específico em relação à comida. O que aprendemos sobre comida está inserido em um corpo substantivo de materiais culturais historicamente derivados. “A comida e o comer assumem, assim, uma posição central no aprendizado social por sua natureza vital e essencial, embora rotineira” (Mintz, 2001, p.32). O debate sobre alimentação está em grande evidência no contexto da contemporaneidade e nas discussões sobre cidades, pois não é possível dissociar a comida e a sua produção e consumo dos grandes problemas do século XXI (Mead, 1997; Belasco, 2008; Ashley, 2004; Van Esterik, 1997). A preocupação com o meio ambiente, com os problemas das grandes cidades e o aumento significativo da população mundial, que questiona de certa forma a capacidade de suporte do planeta, geram um série de questionamentos em relação à demanda e a produção de alimentos e com isso a relação entre escassez e excesso. Entretanto, essa discussão se mostra como extremamente purificada (Latour, 1994), separa a comida em dois níveis: o social/cultural e o biológico/natural; estabelecendo uma dissociação de cada campo de conhecimento e não permitindo assim, uma análise que compreenda a comida como um todo. De acordo com Mary Douglas (2003), é clara a necessidade de pesquisas “sérias” nos usos culturais e sociais da comida, pois nos presentes estudos, ocorre uma separação fundamental entre a ciência da comida (ciências dos alimentos, engenharia dos alimentos, nutrição) e o pensamento social (ciências sociais em geral). A antropologia, como ciência que estuda o humano, em suas especificidades e universalidades, sempre teve interesse na análise da comida como hábito específico de uma sociedade ou grupo. Todavia, 6 “a comida enquanto tal (intrinsecamente) tem sido talvez, um objeto de estudo menos interessante para a antropologia do que as suas implicações sociais” (Mintz, 2001 p.32). Assim, apesar de ser clara a importância da comida em diversos estudos antropológicos, desde os clássicos aos mais contemporâneos, principalmente pensando comida como um fato social altamente condensado (Belasco, 2008), um pensar interdisciplinar da comida, na qual ela é percebida através de todos os aspectos nos quais ela se envolve e é envolvida, é muito novo na antropologia. A bibliografia sobre o tema desenvolve, em sua maioria, um estudo de representações culturais sobre a comida, abrangendo muitas vezes o contexto histórico e social, mas não pensando nas categorias sociais, culturais, biológicas e naturais como ao mesmo tempo construídas e transcendentes (Latour,1994). Se fizermos um exercício de construir um panorama dos estudos sobre comida na antropologia, é possível perceber que estes estudos têm sua origem relacionada à origem da disciplina. Entretanto, no desenvolvimento da antropologia como ciência, a comida como tal não era vista como um elemento de relevância nos estudos sobre as sociedades ditas como “primitivas”, as quais eram o foco da análise antropológica. De acordo com Sidney Mintz (2001), entre as décadas de 30 e 60 a comida era vista apenas como parte de muitos aspectos que formavam o todo chamado de “sociedade”, compreendida principalmente através da ótica da economia doméstica, talvez pelo fato de que comida e a sua preparação sempre foram consideradas um trabalho de mulher, que não recebia muita atenção dos antropólogos homens, que eram a maioria. Até os anos 80, pouco havia sido escrito sobre comida, e o estudo desta, como tema central, não havia ainda renascido nos mesmos termos que os antigos estudos de alunos de Malinowski ou do casal Firth.5 Mesmo sem despertar um grande interesse acadêmico, pode-se dizer que a comida, de acordo com Mintz (2001), teve um papel central na história do desenvolvimento do capitalismo, pois mesmo antes da globalização diversos alimentos circulavam pelo mundo. Entretanto, foram nas duas últimas décadas que ocorreu uma “difusão sem precedentes de novos alimentos e novos sistemas de 5 “Desde os anos 80 do século XIX, a antropologia tem se ocupado com a comida, e, particularmente, com os papéis que desempenha na organização da vida social” (Mintz, 2001, p. 2). Porém, após a década de 30 do século XX, só existiram algumas exceções como o trabalho de Audrey Richards (aluna de Malinowski) e os trabalhos do casal Firth, que debatiam a questão da comida buscando além de suas funções sociais, sua compreensão como objeto em si. 7 distribuição” (Mintz, 2001, p.34). Com essa intensa movimentação global os estudos sobre comida voltaram à academia, recuperando seu status de objeto, legitimado no meio acadêmico. Todavia, apesar de se compreender que a literatura etnológica sempre deu muito destaque ao tema da alimentação, sobretudo em relação à vida doméstica, a comensalidade, os alimentos rituais ou até os estados dos alimentos consumidos (cru, cozido, assado, etc), isto é, como já foi dito anteriormente a abordagem sobre o que comemos (nós e os outros) é um problema teórico já antigo, é na atualidade que o estudo da comida voltou a ser foco, com mais intensidade, dos estudos antropológicos e culturais. Com base nessas reflexões o que, se propõe como novidade nesse projeto, seria, então, pensar a comida aceitando suas esferas biológicas e sociais, e compreendendo que nenhuma delas é uma categoria natural dada, mas sim um objeto em construção e debate. No contexto atual, a questão do crescimento populacional, desenvolvimento tecnológico, problemas ecológicos, os desafios da sustentabilidade, problemas específicos do crescimento sem controle de diversas cidades e a preocupação com os extremos encontrados na maioria das sociedades industriais e em desenvolvimento, como por exemplo: a obesidade e a fome, explicitam a necessidade de estudos que compreendam de forma holística e interdisciplinar, a questão da comida, sem naturalizar ou estranhar completamente suas categorias. Pensar a comida antropologicamente, partindo somente de suas representações simbólicas e não a concebendo como um objeto híbrido6, não permite entendê-la como um todo, pois separa categorias que são parte da concepção deste objeto. Ao realizarmos um esforço intelectual para a compreensão daquilo que entendemos por comida, conseguimos perceber que este objeto é em nossa sociedade concebido de diferentes maneiras: os antropólogos os analisam através de suas representações; os cientistas dos alimentos em busca de sua constituição química e física; a biologia o divide em reinos, espécies; a engenharia tenta encontrar a melhor maneira de aperfeiçoar suas propriedades: sejam elas relacionadas ao sabor, aos nutrientes ou a aparência e forma; e a medicina e nutrição tem como objetivo encontrar um modo de utilizar esse alimento da melhor maneira, em busca de um corpo saudável. Entretanto é necessário enfatizar que, para compreender um objeto híbrido como este, não basta 6 Tomo aqui o conceito “híbrido” como definido por Latour (1994) e Haraway (2000), sendo assim, um objeto que possui ao mesmo tempo e inseparavelmente características sociais e biológicas, que não tem fronteiras demarcadas. 8 um olhar focado em apenas uma das ciências, pois isto, que “chamamos ciência não possui nenhuma demarcação que possamos tomar como fronteira natural” (Latour, 1994, p.23). A divisão entre a esfera da natureza e a esfera da cultura relacionada aos alimentos, é explícita no conhecido ensaio de Lévi-Strauss sobre o cru e o cozido. Em sua obra “Triângulo Culinário” (1997), Lévi-Strauss, ao considerar a grande relevância do estudo da comida para compreensão do humano, pensa o cru e o cozido como oposição base entre Natureza e Cultura. Tendo em vista que a culinária é um ato de mediação, no qual se transforma materiais crus em um produto cozido, e que o cru é definido como algo natural sem a interferência da cultura e o cozido como aquele objeto que sofreu alguma modificação do homem, e por isso, uma modificação da cultura, fica clara a distinção entre natureza e cultura nessas duas formas possíveis de se encontrar o alimento. Entretanto, além desses dois vértices que são mais conhecidos e discutidos na literatura antropológica, o chamado triângulo culinário possui um terceiro vértice, no qual se encontra o podre. Para além desse processo de mediação entre natureza e cultura, entre um produto “natural” transformado pela cultura e, portanto, denominado como “cozido”, a questão do podre aparece como algo nebuloso, um limiar entre o natural e o cultural. O podre seria, assim, tanto uma transformação do cru, como do cozido, isto é, produto da natureza e da cultura, que, no entanto não deixa de ser uma transformação natural desses dois processos opostos. Apesar de uma discussão relevante sobre o podre, como certo limiar entre natureza e cultura, Lévi-Strauss não pensa o podre como uma classificação. Mesmo compreendendo que o a concepção de podre varia de sociedade para sociedade, o autor (1997) não a pensa como uma classificação que depende de fatores naturais e sociais, mas sim como um objeto que está na fronteira entre o natural e cultural. Nesse sentido, tomando a localização do podre definida pela antropologia clássica, e mais especificamente por Lévi-Strauss (1997), isto é, localizando este objeto na fronteira entre a natureza e a cultura, o podre se apresenta como um objeto de extrema relevância para uma análise sobre a comida e a alimentação, tendo como objetivo principal desta análise, um questionamento dos grandes dualismos base da construção da antropologia. A partir do pressuposto de que novos usos dos conceitos 9 antropológicos e do próprio conhecimento antropológico são parte de uma disputa política na contemporaneidade, o exercício de questionamento de categorias “dadas” permite a discussão sobre uma nova forma de se fazer antropologia, a qual não deixa de ser uma demanda do momento atual. A discussão sobre o podre e mais especificamente a construção da classificação “podre” permeia uma gama de discussões que questionam fatos científicos e políticos, simultaneamente e simetricamente (Latour, 1994). A palavra podre, por si só, pode ser considerada uma classificação, isto é, podre é um adjetivo e por isso, dá característica a algo. Tem como significado estragado, corrompido, putrefato; que não está são; infecto, mefítico; fétido; contaminado, pervertido (Dicionário Online Aulete). Ao tentarmos visualizar essas definições através de nossa imaginação, muito provavelmente, sensações e sentidos relacionados à nossa experiência trarão à tona imagens de alimentos podres, seus cheiros, cores e até sabores. É comum, então, pensar que a percepção do podre relacionada às nossas sensações, está dada biologicamente, e que percebemos o podre através de nossos sentidos e de nossa corporalidade. Entretanto, segundo Ingold (2000), as nossas percepções não são naturais, elas culturalmente afetam as pessoas e são moldadas pelo ambiente e experiências. Nesse sentido, para compreender o podre, percebendo este como um adjetivo, uma classificação, é necessário uma análise desta classificação que também aborde a questão da experiência, na dimensão dos sentidos e da percepção. Para tanto, devemos partir do pressuposto que a diferença naquilo que é considerado cultural não esta presente naquilo que as pessoas percebem, mas sim como elas sentem, suas percepções em si (Ingold, 2000). Além da dimensão da percepção, estudar o podre é também fazer um exercício de compreensão da política, pois para ir além das purificações, fruto do desenvolvimento da ciência moderna, é necessário questionar o fato de que, a constituição moderna inventa uma separação entre o poder científico encarregado de representar as coisas e o poder político encarregado de representar os sujeitos (Latour, 1997). É possível perceber então, que o equacionamento entre política, economia, ciências exatas e biológicas é a única metodologia possível para se compreender a dinâmica do podre em nossa sociedade. 10 Dessa maneira, não se pode deixar de abordar a questão da segurança alimentar7, a qual é espaço comum na bibliografia interdisciplinar que discute comida e alimentos. De acordo com Maluf e Menezes (2002), foi somente em 1974, na 1ª Conferência Mundial sobre alimentos organizada pela FAO (Organização da ONU ligada a Alimentação e Agricultura) que o conceito de “Segurança Alimentar” passou a abranger a idéia de preocupação com a garantia à uma determinada população de uma alimentação que seja adequada a sobrevivência, tendo uma regularidade na quantidade e qualidade dos alimentos. Segundo os autores, é neste contexto que começa a se perceber que, mais do que a oferta, a capacidade de acesso aos alimentos por parte dos povos em todo o planeta mostra-se como a questão crucial para a Segurança Alimentar (2000, p. 2). Atualmente, pensar em segurança alimentar é também pensar em higiene alimentar, é pensar em nutrição, saúde, bem estar. Nesse sentido, este projeto propõe pensar a questão da Segurança Alimentar como um conceito político em debate, mas também como um conceito com uma dimensão “biológica”, pois é através desta esfera que este conceito estabelece limites para os alimentos serem considerados nutritivos e, acima de tudo, aptos para fazer parte de uma dieta que tenha como objetivo a saúde de seu consumidor. Concomitantemente a questão referida acima, a bibliografia faz uma análise da alimentação intimamente ligada a uma questão clássica sobre população e capacidade produtiva de alimentos e por isso, não pode ser dissociada da questão da fome, isto é, do debate sobre escassez de alimentos8. Segundo Belasco, enquanto “apenas” 1/6 do planeta sofre de insegurança alimentar, o 5/6 relativamente próspero quer consumir mais carne, mas derivados do leite e cerveja (2008, p.107). Nesse sentido, pensar como o mundo conseguirá se alimentar no futuro é um questionamento inerente nas diversas ciências que estudam a alimentação, pois de acordo com o geógrafo Václav Smil citado por Belasco, para alimentar todo o mundo em uma dieta intensiva como a dos países do Oriente seria necessário 67% a mais de terras produtivas do que o mundo possui. (2008, p.113) 7 . Esta discussão, entretanto, apesar de estar presente no contexto contemporâneo, tem origem no período pós I Guerra Mundial, com a ameaça da fome e da capacidade de controle de um país sobre o outro através do alimento, no qual o conceito de segurança alimentar surge com um significado estritamente social e político, isto é, relacionado à capacidade de produção de alimentos de cada país, estando intimamente associado à segurança nacional (Maluf e Menezes, 2000). 8 A discussão teórica sobre alimentos na contemporaneidade têm presente em si, uma questão de extrema importância que discute a relação entre a capacidade de suporte do planeta e a população (Malthus e neo-malthusianos). Apesar de ser uma discussão latente desde o século XVIII, na contemporaneidade ela se acentua, pois os desenvolvimentos tecnológicos que aumentam a produtividade em todas as esferas da vida degradam de forma brusca os próprios meios de sua subsistência. 11 No contexto atual, é papel de um novo campo de estudos denominado Food Studies9, compreender a comida e os alimentos de forma interdisciplinar, pensando os desde sua produção “natural” até seu consumo, propondo uma análise que compreenda a trajetória desses objetos (Appadurai, 2008), percebendo-os como sujeitos de uma dinâmica que não fica restrita a um campo específico de estudos. Entretanto, apesar da abordagem interdisciplinar desse campo de estudos, é somente na teoria antropológica contemporânea que conseguimos encontrar um questionamento das categorias duais que são base de nosso pensamento moderno, tanto relacionado ao âmbito das ciências sociais, humanas, como das ciências exatas e biológicas, que, no entanto, não são questionadas, mesmo com uma análise interdisciplinar proposta na literatura do Food Studies. Com uma análise antropológica que busque atravessar o corte que separa os conhecimentos exatos e o exercício de poder, digamos, a natureza e a cultura, talvez seja possível compreender as dinâmicas dos diferentes campos de estudo que estão envolvidas na classificação do alimento como podre. Para tanto, é necessário ter uma abordagem metodológica que se dê através de uma perspectiva de rede, que segundo Latour (1994) é mais flexível que a noção de sistema, mais histórica que a de estrutura e mais empírica que a de complexidade. Dessa forma, este projeto busca através da bibliografia antropológica contemporânea (Latour, 1994; Ingold, 2000; Appadurai, 2008; Rabinow, 1999) compreender aspectos de um objeto que antes de tudo é uma classificação, que por si só, já é definida de diversas maneiras de acordo com a esfera por qual é apropriada. É necessário então, compreender o podre como uma classificação que nas dinâmicas de sua interação foi tomada com um objeto, e que assim tem seus significados construídos nas relações sociais (Appadurai, 2008), mas que, ao mesmo tempo constrói significados para essas relações. Concebendo que o podre articula noções como a de segurança alimentar, escassez e excesso, nutrição, higiene alimentar, saúde, assepsia e fome, pode-se talvez compreender que a relação destes termos para a classificação de algo que é podre cria uma nova forma de socialização. A relação dessas categorias explicativas que são biológicas, sociais, naturais e culturais configuram uma nova forma de 9 O “Food Studies” é um campo de estudo interdisciplinar e emergente na academia, que busca uma comunicação entre o conhecimento acadêmico e as praticas cotidianas, tendo como principais representantes o historiador Warren Belasco e o antropólogo Sidney Mintz. 12 sociabilidade, que advém tanto das práticas entre pessoas, destas com objetos, como nas relações entre Estado e indivíduo. Inserido nesse debate, a discussão sobre o podre e seus limites e classificações em diversas esferas da sociedade permite uma análise antropológica de categorias antes vistas como duais. Os artefatos criados para definir e caracterizar o que deve ou não servir de alimento e o porquê, e em que contexto, é uma peça chave no debate sobre a questão da alimentação na contemporaneidade. Não é possível, nesse sentido, estudar o percurso desse alimento na cadeia de produção, sem ao mesmo tempo compreender como são criados os fatos científicos que definem esses conceitos analisados, e como o conceito de podre é classificado através das categorias científicas (vistas como um fato dado, natural) de forma dialética. Se levarmos em consideração, que “a vida e a morte não são desses fenômenos naturais imediatos, de certo modo originais ou radicais, que se localizariam fora do campo do poder político” (Foucault, 1999, p.286), a questão do podre, e daqueles que o consomem ou rejeitam, está intimamente ligada à forma de poder característica de nossa sociedade contemporânea, isto é, o poder sobre o organismo e a população, regulamentados pelo Estado. Nesse sentido, o controle da alimentação como atividade básica do ser humano, estaria inserido nessa concepção de poder que é massificante e pretende controlar de forma global os processos de natalidade e mortalidade, e aqueles fenômenos que estão no caminho entre esses processos (Foucault, 1999). Com o surgimento das cidades e de todas as questões que esse movimento trouxe, a preocupação com as relações entre a espécie humana e seu meio se tornaram assunto de grande relevância das políticas estatais. Entretanto, a incessante tentativa da ciência moderna, e conseqüentemente do pensamento ocidental contemporâneo, de separar aquilo que é cultural, sociológico, do que é biológico, natural, suscita uma imensa gama de problemas e questões para se pensar a questão do podre na cidade. Para se compreender a trajetória percorrida pelo podre, desde sua produção tanto natural quanto cultural, até o seu despejo e sua resignificação, é necessário compreender a questão do alimento e da fome como algo biológico e sociológico. Como uma disputa, uma relação de poder, na qual a vida e a 13 morte são elementos vitais para a reprodução dessa relação. Tanto o sujeito que se alimenta do podre, quanto o objeto podre nesse percurso tem em comum a eminência da morte e por isso disputam o seu estatuto de vivo. Neste contexto, surge então, uma relação entre saber e poder sobre os corpos, que apesar de estar em processo de construção, e ser, por isso, um campo em disputa, cria novas formas de interação social. A chamada biossociabilidade (Rabinow, 1999) é então, um conceito que pode ser apropriado de forma muito relevante na análise do podre, o qual ao ser classificado como algo biológico, e ter essa classificação tão transformada de acordo com o contexto o qual está inserido, gera novas formas de interação social, que, no entanto, são fruto de uma transformação no mundo biológico. Classificar algo como podre perpassa por diversas esferas que vão sendo de certa forma apreendidas por nós através do que chamamos de sociedade de controle (Foucault, 2008). A assepsia, a higiene, a nutrição e a questão de segurança alimentar transformam o mundo biológico e por isso geram novas formas de interagir e nos comportar, que devem ser compreendidas nesta dinâmica de rede, tentando tornar o nosso objeto de análise, a classificação do podre, como algo naturalizado, sociologizado e ao mesmo tempo desconstruído (Latour, 1997). Vê sê então, a relevância de se propor uma nova perspectiva na análise da comida, que compreenda de forma simétrica (Latour, 1994) a questão dos alimentos inserida no debate da antropologia contemporânea, levando em consideração a questão das redes como forma de compreender o objeto de estudo como um todo (Mead, 1997; Douglas, 2003). Buscando assim, entender o porquê dessa separação brutal entre natureza/cultura, animalidade/humanidade, biologia/sociologia e público/privado, principalmente no que diz respeito à questão da comida e de sua falta, no contexto urbano. Nesse sentido, será possível compreender através das redes de articulação que são criadas a partir de uma classificação, o podre, as novas formas de sociabilidade que estão se desenvolvendo, e o que isso diz em relação a conceitos tão presentes no debate sobre comida. IV. Objetivos 14 O objetivo geral que orienta o presente trabalho consiste em abordar e analisar o percurso da classificação “podre” em nossa sociedade, especificamente no contexto urbano, buscando compreender as redes que se entrelaçam nesse percurso e problematizando a definição do que é o podre nas diversas esferas da sociedade. Pretende-se entender como é definida essa categoria de alimento podre em função dos diferentes sujeitos que o disputam, através de um principio de simetria para tratar ao mesmo tempo da natureza e da sociedade, contribuindo assim para o desenvolvimento de um panorama histórico da antropologia da alimentação e dos chamados “Food Studies. Além desses objetivos gerais, pretende-se também contribuir com as discussões antropológicas sobre alimentos, comida e também sobre as grandes dicotomias da antropologia, como natureza e cultura, biologia e sociedade, público e privado, através da perspectiva do alimento, abrangendo as discussões referentes à questão do controle populacional na cidade de São Paulo e a desigualdade social, delimitando claramente essa discussão em função do debate sobre alimentação e comida. Partindo então, dessa meta fundamental, se delimitam aqui, alguns objetivos específicos: Construir uma etnologia multi-situada da classificação do podre nas duas feiras livres, já especificadas, e na sede do projeto Mesa Brasil, através da abordagem da trajetória tomada por esta classificação durante seu percurso na cadeia de produção e consumo alimentar; Desenvolver uma análise do podre que perpasse diversas esferas da sociedade e dialogue com as chamadas “ciências duras”, buscando compreender como os diversos atores classificam e delimitam essa categoria; Compreender as novas formas de sociabilidade, ou melhor, de biossociabilidade que são fruto das transformações no campo da definição do podre, nos cenários previamente determinados; V. Material e Métodos Gretel H. Pelto (1979) observa que o desafio metodológico para pesquisas na interface entre o social e o biológico é desenvolver formas de análises sócio-culturais que possam focar na mesma unidade de análise das informações nutricionais e biológicas. Lidando com o mesmo tipo de problema metodológico Bruno Latour (1997) desenvolveu uma interessante etnografia de um laboratório que concorria ao prêmio Nobel, demonstrando que a antropologia tem uma necessidade em voltar-se para o 15 estudo do campo das ciências e que tem a possibilidade de desenvolver uma etnografia que trata, nos mesmos termos, a natureza e a sociedade, com uma noção de simetria. O estudo da alimentação no contexto contemporâneo e, mais especificamente, o da classificação do alimento podre, o qual é o foco do presente trabalho, mostra uma necessidade de uma análise interdisciplinar dessa definição, não necessariamente no método da pesquisa, mas naquilo que é objeto e sujeito do estudo. As mudanças locais e globais contemporâneas na cultura e sociedade demandam uma metodologia de pesquisa que surge em resposta a essas transformações empíricas que ocorrem no mundo. A etnografia clássica, que continua evidente no contexto do capitalismo atual, buscando uma análise nas novas formas culturais que nasceram do momento pós-colonial e da globalização, não cumpre as expectativas do estudo do podre proposto neste projeto (George Marcus, 1995). Segundo Latour, a grande diferença entre a etnografia clássica e a etnografia das ciências reside no fato de que o campo da primeira se confunde com um território, enquanto o campo da segunda toma a forma de uma rede (1997, p.31) Nesse sentido, compreendendo o caráter interdisciplinar do estudo da comida e a falta de estudos que abranjam essa relação mostra-se necessário um método que compreenda essa trajetória dos alimentos podres inseridos em uma rede de sujeitos e atores que classificam dialeticamente categorias que são ao mesmo tempo sociais e biológicas. Para tal objetivo mostra-se de extrema adequação a metodologia da etnografia multi-situada proposta por George Marcus (1995), a qual é base para diversos estudos que se caracterizam pela participação antropológica em diversas arenas inter-disciplinares (ideologicamente falando, antidisciplinares), principalmente por não terem um objeto de estudo com fronteiras bem definidas, e que são parte de um sistema de redes. Sem duvidar em nenhum momento que a pesquisa de campo é elemento central na antropologia, o presente trabalho propõe uma etnografia multi-situada da classificação e delimitação do alimento podre, seguindo o seu trajeto desde as feiras até o seu descarte e reaproveitamento, não deixando de lado a etnografia das ciências biológicas e exatas que criam e definem categorias para essa classificação. Pretende-se então, seguir a classificação do podre e as formas de sociabilidade criadas por essa classificação. Tendo em vista que o campo dessa pesquisa não é delimitado por um território no sentido 16 geográfico específico, mas sim se constitui em forma de rede, a etnografia multi-situada proposta neste projeto será então, realizada em três campos etnográficos, que contribuirão cada qual de uma maneira, aos objetivos do projeto. Será realizada assim, uma etnografia de duas feiras-livres, escolhidas com objetivo de tentarmos compreender como se dá a classificação do podre em cenários etnográficos tão distintos, isto é, como o podre é classificado tanto pelo Estado como pela população em geral, e como se dá essa relação entre Estado e população em dois campos que se diferem claramente por sua posição de classe, mas ao mesmo tempo têm em comum a relação com a Prefeitura Municipal de São Paulo, representante do Estado. Para tanto será realizada uma etnografia de uma feira livre no Bairro Jardins, mais especificamente na Rua Oscar Freire, e outra na periferia da Zona Sul de São Paulo, no bairro Paraisópolis, no qual já existem pesquisas desenvolvidas pelo orientador deste projeto, entre outros pesquisadores do CEBRAP, o que permitirá um acesso mais fácil e embasado contextualmente ao bairro, e contribuirá com os estudos sobre essa localidade. A etnografia das feiras deverá ser realizada utilizando o método clássico de observação participante através do qual será possível desenvolver uma “descrição densa” (Geertz, 1989) do percurso que a classificação do podre perpassa em nossa sociedade. Entretanto, um questionamento surge ao pensarmos na etnografia da categoria podre, pois esta, como já foi dito anteriormente, além de ser vista como uma classificação biológica “pura”, como um fato social, é também definida no âmbito das percepções e sensações, como então etnografar essas sensações e percepções? Para responder essa pergunta, pretendo redigir o diário de campo de ambas as localidades em dois momentos distintos, no primeiro momento o diário será redigido no próprio campo, no qual constará apenas as primeiras sensações e impressões sobre o podre e sua classificação. Ao retornar do campo no final de cada dia redigirei um diário de campo descritivo, mais detalhado o possível, com as novas percepções que tive após a saída do campo e também com relatos dos atores envolvidos nessa classificação que podem não ficar confortáveis com a presença de um pesquisador anotando tudo que lhe é dito. 17 Como existe um limite prático para a etnografia das feiras, isto é, estas só ocorrem em dias específicos da semana, a etnografia das feiras, tanto nos Jardins como em Paraisópolis será realizada somente nos fins de semana, pois, a feira de Paraisópolis acontece aos sábados e a feira da Rua Oscar Freire aos domingos. Além das feiras livres já citadas acima, outro campo foi escolhido buscando compreender como se dá a classificação do podre em um local que busca uma uniformização e padronização desta classificação, que não tem tão claramente a influência do Estado como aparelho regulador e também se vê livre da necessidade/vontade na compra e no consumo dos alimentos, isto porque se caracteriza por um grupo organizado de pessoas que selecionam os produtos alimentícios para serem posteriormente doados à instituições cadastradas. Nesse sentido, a sede do projeto Mesa Brasil, no SESC Belenzinho, também no município de São Paulo, foi escolhida como um campo fértil para uma etnografia das “ciências duras” em sua prática cotidiana, isto porque neste local é realizada a seleção e triagem dos alimentos que podem ser considerados aptos ao consumo humano, mas que não tem mais valor comercial, de acordo com normas de agências como a ANVISA e padrões nutricionais e médicos, que são os mesmo que circulam nos meios de comunicação em massa e no senso comum e contribuem para o desenvolvimento dessa nova forma de sociabilidade. Assim, pretendo visitar a sede do Mesa Brasil em um primeiro momento e redigir meu diário de campo durante as visitas para tentar descrever de forma mais detalhada possível todas as normas e regras do local, que visam uma eliminação do risco. Posteriormente, e se possível, tentarei participar de atividades do Mesa Brasil, como voluntária, para que essa prática de imersão no campo permita compreender melhor como é criada essa idéia de assepsia e como o podre é classificado nas práticas cotidianas. Para além da pesquisa de campo em si, mas de forma concomitante a esta, será desenvolvida uma pesquisa bibliográfica sobre o tema da comida e do podre, perpassando por diversas análises para assim contribuir com o debate sobre a questão da natureza e da cultura, e das novas formas de sociabilidade que advém dessa relação, com o intuito de realizar uma reflexibilidade (Carneiro da Cunha, 2009) no conhecimento construído através das etnografias. 18 VI. Forma de análise dos resultados Os resultados desta pesquisa serão avaliados por meio de discussões entre o professor orientador e o aluno, da mesma forma como por meio de discussões e debates entre pesquisadores da área, isto é, que discutem a questão da cidade, da comida, e até mesmo de um universo mais geral relacionado ao debate sobre “natureza, cultura e tecnologia”. Congressos, simpósios e seminários serão formas de debater o conhecimento adquirido, e conjuntamente com os relatórios que serão apresentados à FAPESP, sistematizar os dados para a qualificação e defesa da dissertação ao fim dos 12 bimestres. VII. Cronograma Nos 12 bimestres em que se desenvolverá esta pesquisa, temos: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 Curso das disciplinas de pós-graduação Levantamento bibliográfico pertinente ao tema do projeto Leitura e análise da bibliografia Pesquisa de Campo Discussão e análise do material recolhido Apresentação da qualificação Redação e defesa da dissertação Referências Bibliográficas Ashley, Bob, Hollows, Joanne, Jones, Steve, Taylor, Ben (2004). Food and Cultural studies. London: Routledge. Appadurai, Arjun. (2008) Introdução: Mercadorias e a política de valor. In: A vida social das coisas, as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EDUFF. Banco de alimentos e colheita urbana: Higiene e Comportamento Pessoal. Rio de Janeiro: SESC/DN, (2003). 14 p. Programa Alimentos CNC/CNI/SENAI/ANVISA/SESI/SEBRAE. Seguros. Convênio Banco de Alimentos e Colheita Urbana: Manipulador de Alimentos I - Perigos, DTA, Higiene Ambiental e de Utensílios. Rio de Janeiro: SESC/ DN, (2003). 25 pág. Programa Alimentos Seguros. Convênio CNC/CNI/SENAI/ANVISA/SESI/SEBRAE. 19 Banco de alimentos e colheita urbana: Manipulador de alimentos II - Cuidados na Preparação de Alimentos. Rio de Janeiro: SESC/DN, (2003). 21 pág. Programa Alimentos Seguros. Convênio CNC/CNI/SENAI/ANVISA/SESI/SEBRAE. Belasco, Warren. (2008). Food. The key concepts. Oxford: Berg. Belik, Walter. (2003) Perspectivas para segurança alimentar e nutricional no Brasil. In: Saúde e Sociedade v.12, n.1, p.12-20. Bourdieu, Pierre.(1996) Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Tradução de Mariza Corrêa. Campinas: Papirus. Câmara Cascudo, Luis da (1983). História da alimentação no Brasil. 2 volumes. São Paulo, Edusp. Carneiro da Cunha, Manuela. (2009). Cultura com aspas. São Paulo: Cosac Naify. Clifford, James. (1998) Sobre a autoridade etnográfica. In: A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ. Debert, G., Goldenstein, D. (2000) Políticas do corpo e o curso da vida. 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