conhecimentos tradicionais sobre reprodução vegetal na

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CONHECIMENTOS TRADICIONAIS SOBRE REPRODUÇÃO VEGETAL NA
PERSPECTIVA DE ESTUDANTES DA ILHA DE MARÉ
Ayane de Souza Paiva (Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação –
UFBA/Bolsista FAPESB)
Rosiléia Oliveira de Almeida (Professora da Faculdade de Educação – UFBA)
Introdução
Tendo em vista a extrema relevância em estudos da comunidade pelos professores, por
meio de pesquisas socioantropológicas, permitindo deslocar o foco dos conteúdos universais para
dar sentido à prática social (MOREIRA, 2000), consideramos importante nos aproximarmos dos
conhecimentos tradicionais de estudantes para aperfeiçoar o ensino de biologia.
Aikenhead (2001) discute que culturas podem ser definidas como as normas, valores,
opiniões, expectativas e ações convencionais de um grupo e tais características permitem incluir a
ciência como fenômeno cultural. A ciência é formada por uma comunidade que utiliza linguagem
específica e desenvolve suas atividades com uma interação que tem por finalidade produzir o
conhecimento científico (AIKENHEAD, 2001).
O problema central é que os currículos científicos fornecem imagens estereotipadas da
ciência: socialmente estéril e detentora da verdade absoluta, sendo importante uma perspectiva
cultural da educação científica que trate a ciência como um empreendimento cultural
(AIKENHEAD, 2009). Compartilhamos essa perspectiva por reconhecer que um ensino de
ciências significativo ensina ciência enquanto cultura, a partir da elucidação de que ela é uma
construção social.
Nosso contexto de pesquisa deu-se com estudantes moradores de comunidades
tradicionais em Ilha de Maré que são conceituadas de acordo com o princípio descrito no artigo
3º, do Decreto nº 6.040, de 07/02/2007, como grupos culturalmente diferenciados e que se
reconhecem como tais, que ocupam e usam recursos naturais como condição para sua reprodução
cultural, utilizando conhecimentos e práticas gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL,
2007).
Apesar de a Ilha de Maré ser parte do município de Salvador, os moradores apresentam
práticas culturais que, na maioria das vezes, estão ligadas ao uso dos recursos naturais. Nesse
sentido, consideramos a experiência cultural dos estudantes um aspecto chave da consolidação do
aprendizado, sendo importante na formação do indivíduo. Optamos como referencial teórico pelo
multiculturalismo crítico (MCLAREN, 2000; CANEN, 2001), pois não basta apenas reconhecer e
valorizar questões culturais em sala de aula, sendo importante propor uma abordagem crítica da
construção das identidades socioculturais.
Dessa forma, esse trabalho objetivou identificar aspectos dos conhecimentos tradicionais
sobre reprodução vegetal de estudantes da turma do 2º ano do Ensino Médio de uma escola
estadual de Salvador que recebe alunos da Ilha de Maré, a partir de plantas de suas comunidades.
Metodologia
Nossa pesquisa consistiu em um estudo de caso, por buscar investigar em profundidade
um caso, realizando uma análise focada no contexto dos fenômenos, numa investigação
processual (GIL, 2009). O estudo é caracterizado pela intensiva descrição e análise de um
fenômeno social (MERRIAM, 1998), nesse caso, os conhecimentos tradicionais dos alunos sobre
a reprodução vegetal de plantas que ocorrem e são utilizadas em suas comunidades.
O estudo foi realizado no contexto de vida dos estudantes, nas comunidades de Santana e
Praia Grande, em Ilha de Maré, a fim de evitar que a sala de aula, que é um contexto diferente do
meio sociocultural dos estudantes, interferisse nas respostas, conforme verificado por Baptista
(2007).
Adotamos técnicas etnográficas para aprofundar aspectos dos conhecimentos dos alunos,
sendo utilizadas a técnica de observação participante e entrevistas em grupo. A atividade foi
registrada com auxílio de filmadora e câmera fotográfica e com anotações em caderno de campo.
Os alunos envolvidos fotografaram, com ajuda dos pesquisadores, plantas do local: bananeira,
mangueira, dendezeiro e cana brava. As atividades foram conduzidas pelos estudantes, que nos
levaram aos locais onde existem plantas típicas das comunidades, sendo alguns quesitos
norteadores os seguintes: nome da planta, quando ocorre, se dá flor, se dá fruto, como se dá a
reprodução e qual(is) parte(s) da planta está(ão) relacionada(s) à reprodução.
Resultados
Os conceitos acerca da reprodução foram discutidos durante todo o trabalho de campo
com os estudantes, a priori obtivemos respostas como: “É quando vem várias e várias, várias...”.
Os conceitos foram retomados enquanto discutíamos sobre as plantas locais. Os alunos
declararam que a cana brava – planta muito utilizada no artesanato local – está acabando.
Questionamos o motivo e os estudantes explicaram que “não dá tempo produzir, muita gente
trabalha com cana brava... Tudo acaba um dia”. O depoimento evidencia que, segundo os
estudantes, a coleta excessiva é a causa de não ter mais a planta como antes. Sobre a reprodução
eles explicam: “quando corta ela, ela cresce de novo! [...] Não se pranta cana brava não porque
quando corta ela, ela mesmo se reproduz.” Essa parece ser uma visão da reprodução assexuada
ou ligada a um conceito abstrato de que a planta se reproduz de um modo não compreendido por
eles. Esse conteúdo envolve um aspecto socioambiental importante para ser debatido nas salas de
aula de ciências, devido às circunstancias de vida desses estudantes.
No que se refere à mangueira, os estudantes manifestaram suas concepções dizendo que
“da mangueira reproduz o que? A manga! Primeiro dá a frô, depois a manga!”. “Da manga dá
uma frô, aí se produz...”, explica. Sobre a flor, a aluna disse que “num tem porque acabou o
tempo da manga, quando tá chovendo aparece muitas mangas, aí no inverno vai
reproduzindo...”. Interessante a associação entre reprodução humana e vegetal que foi feita: “A
mangueira como ela falou, tem uma pranta, ela vai se reproduzindo, como a mãe da gente tem a
gente é mesma forma.” Essa analogia evidencia as noções acerca da reprodução enquanto
processo em que um ser vivo gera outro da mesma espécie. Percebemos certo cuidado pelos
alunos ao falar seus conceitos por receio de não ser o conceito científico. Intervimos ratificando a
explicação inicial de que naquele momento importava apenas os conhecimentos deles, como eles
compreendiam o processo e uma aluna explicou que “se jogar o caroço, aí cresce a mangueira”.
Já outra estudante acrescentou de modo diferente: “E também, por exemplo, através da raiz que...
fica debaixo da terra, aí pode ser que também que liga... aí cresce outra mangueira...”. Em
suma, a concepção de reprodução dos estudantes sobre a mangueira é de que acontece pela raiz e
pela semente.
Sobre a bananeira, a discussão deu-se em torno da parte reprodutiva, uma aluna disse que
“é pelo caroço”. Outros estudantes imediatamente discordaram: “pelo caroço? Nada a ver! O
caroço da banana é molinho, nem dá pra ver... é pretinho”. Os alunos acreditam que os óvulos
não fecundados da banana são a semente. Um aluno mencionou: “Eu não sei como é, eu só sei
que corta ela e ela cresce de novo aí”.
Os estudantes fizeram associações ecológicas sobre o dendezeiro, informando que os
animais “usam pra beber água, pois fica um pouquinho de água na folha”. Para eles, o
dendezeiro “é a mesma coisa da cana brava, ninguém sabe como é que nasce, ela se reproduz
sozinha... Se você cortar o pé não vai precisar colocar uma fruta pra crescer...”. Outros
estudantes explicaram a reprodução por fruto.
Considerações Finais
O entendimento acerca da reprodução das plantas pode variar, sendo que existem
aproximações e divergências entre esses conhecimentos e o conhecimento científico. Alguns
alunos associam reprodução a um aspecto “natural”, pelo qual não é possível identificar
exatamente o que acontece; outros relacionam a reprodução ao caroço e/ou à raiz (no caso da
mangueira e bananeira), ao corte manual de extração (no caso da cana brava) ou a ambos – fruto
e corte manual, no caso do dendezeiro. Através dos resultados desse estudo, pretendemos
desenvolver uma sequência didática sobre a temática com os estudantes, envolvendo a discussão
de questões socioambientais e também culturais ligadas à ciência e à tradição no ensino de
biologia.
Referências
AIKENHEAD, G. S. Educação científica para todos. Lisboa: Edições Pedago, 2009.
AIKENHEAD, G. S. Science communication with the public: a cross-cultural event. In:
BRYANT, C.; GORE, M.; STOCKLMAYER, S. (Ed.). Science communication in theory and
practice. Amsterdam: Kluwer, 2001. p. 23-45. Disponível em: <http://www.usask.ca/
education/people/aikenhead/Scicom.htm>. Acesso em: 26 jul. 2012.
BAPTISTA, G. C. S. A contribuição da etnobiologia para o ensino e a aprendizagem de
ciências: estudo de caso em uma escola pública do estado da Bahia. 2007. 188 f. Dissertação
(Mestrado em Ensino, Filosofia e História das Ciências) Universidade Federal da Bahia.
Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2007.
BRASIL. Decreto-lei nº 6.040, de 07 de fevereiro de 2007. Presidência da República
Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos. Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Brasília, 2007.
CANEN, A. Universos culturais e representações docentes: subsídios para a formação de
professores para a diversidade cultural. Educação e Sociedade, n. 77, p. 207-227, 2001.
Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/es/v22n77/7051.pdf>. Acesso em: 20 maio 2013.
GIL, A. C. Estudo de caso. São Paulo: Atlas, 2009.
McLAREN, P. Multiculturalismo revolucionário: pedagogia do dissenso para o novo milênio.
Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.
MERRIAM, S. B. Qualitative research and case study applications in education. San
Francisco: Jossey-Bass, 1998.
MOREIRA, A. F. B. Propostas curriculares alternativas: limites e avanços. Educação &
Sociedade, Campinas,
v. 21,
n. 73, p. 109-138, 2000. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/es/v21n73/4210.pdf>. Acesso em: 20 out. 2012.
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