PDF Portuguese - Brazilian Journal of Nephrology

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Artigo Original
Hiperuricemia: Um Marcador para Doença Renal Crônica
Pré-Clínica?
Hyperuricemia: A Marker of Preclinical Chronic Kidney Disease?
Rita M. R. Bastos, Maria Teresa B. Teixeira, Alfredo Chaoubah, Ricardo V. Bastos, Marcus G. Bastos
Programa de Pós-Graduação em Saúde da Faculdade de Medicina da UFJF; Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva:
NATES da UFJF; Departamento de Estatística da UFJF; Laboratório Cortes Villela; Núcleo Interdisciplinar de Estudos, Pesquisas
e Tratamento das Doenças Renais – NIEPEN - da UFJF e Fundação IMEPEN.
RESUMO
Introdução: Os níveis séricos de ácido úrico aumentam na doença renal crônica (DRC), contudo o impacto desta observação clínica
na história natural da doença ainda não está elucidado. Objetivo: Testar a hipótese de que níveis elevados de ácido úrico em indivíduos
com função renal preservada se associam com maior prevalência de DRC. Material e métodos: O estudo foi realizado a partir dos
dados clínicos (sexo e idade) e laboratoriais (creatinina e ácido úrico) obtidos em um laboratório de análises clínicas em dois períodos
distintos: basal (2000-2003) e de avaliação (2004-2005). A filtração glomerular estimada (FGe) foi calculada pela fórmula do estudo
MDRD. A DRC foi definida seguindo as recomendações do KDOQI da NKF americana, ou seja, dois resultados de FGe
<60mL/min/1,73m2, num período ≥3meses. O ácido úrico (expresso em mg/dL) foi analisado pela separação dos indivíduos em
normouricêmicos e hiperuricêmicos e pela divisão da distribuição da amostra em quartis. Resultados: Do total de 4.991 indivíduos
avaliados no período basal, 4.041 (90,0%) apresentavam FG >60mL/min/1,73m2. Os indivíduos hiperuricêmicos (homens, mulheres,
com menos de 60 anos e idosos) apresentaram maior risco relativo para DRC do que os normouricêmicos. Também foi observado que
os grupos de indivíduos com ácido úrico mais elevado apresentaram maior prevalência de DRC no período basal (ácido úrico/FGe:
<4,0/16,3%; 4,1-5,1/21,2%; 5,2-6,7/ 28,6%; >6,7/34,0%; p <0,001). A prevalência de DRC no período de avaliação também foi maior
nos grupos de indivíduos com níveis mais elevados de ácido úrico (ácido úrico/FG: <4,0/22,3%; 4-5,1/26,9%; 5,2-6,7/28,5%;
>6,7/22,3%; p <0,05). Conclusão: Em indivíduos não portadores de DRC, níveis elevados de ácido úrico sérico se associam com maior
prevalência da doença e parecem identificar um estado “pré-clínico” de disfunção renal.
Descritores: Hiperuricemia. Doença renal crônica. Filtração glomerular.
ABSTRACT
Introduction: High serum uric acid levels are common in patients with chronic kidney disease (CKD), however, the impact of this
observation on the natural history of the disease has yet to be established. Aim: We tested the hypothesis that higher uric acid levels
associate with higher prevalence of CKD. Material and methods: Clinical (sex and age) and laboratory (serum creatinine and uric acid)
data were obtained in two different periods: baseline (2000 to 2003) and assessment (2004 and 2005). The glomerular filtration rate
(GFR) was estimated using the abbreviated Modification of Diet in Renal Disease Study formula based on serum creatinine, age and
sex. CKD was defined as proposed by the National kidney Foundation and Brazilian Society of Nephrology, that is, two GFRs
<60ml/min/1,73m2, for three or more months. Uric acid levels (in mg/dL) were analysed by the stratification of the subjects, at the
baseline, in a hyperuricemic and normouricemic state and by the categorization in quartiles. Results: Among 4,991 subjects assessed
in the baseline period, 4,041 (90.0%) presented GFR >60 mL/min/1,73m2. Hyperuricemic subjects (men, women, young, and elderly)
presented higher relative risk for CKD than those who where normouricemic. An association between higher levels of uric acid and higher
prevalence of CKD in this period (uric acid/GFR: <4.0/16.3%; 4.1-5.1/21.2%; 5.2-6.7/ 28.6%; >6.7/34.0%; p <0.001) was also observed).
The prevalence of CKD in the assessment period was also higher among those subjects with higher uric acid levels (uric acid/GFR:
<4.0/22.3%; 4-5.1/26.9%; 5.2-6.7/28.5%; >6.7/22.3%; p <0.05). Conclusion: In subjects without CKD, higher levels of serum uric acid
associated with a higher prevalence of the disease, and seemed to identify a “preclinical” state of kidney dysfunction.
Keywords: Hyperuricemia. Chronic kidney disease. Glomerular filtration rate.
Recebido em 01/09/08 / Aprovado em 20/01/09
Endereço para correspondência:
Marcus G. Bastos
NIEPEN
Rua José Lourenço Kelmer 1.300
Bairro São Pedro - Juiz de Fora – MG, Brasil
36036-330
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33
INTRODUÇÃO
O número de pacientes com falência funcional
renal (FFR) que necessitam de diálise ou de transplante
renal está aumentando em todo o mundo. Evidências
atuais têm sugerido que o diagnóstico e a implementação
de medidas nefroprotetoras precoces podem interromper
ou retardar a progressão da DRC1,2.
A hiperuricemia é um problema metabólico comum, que tem sido observado ao longo de várias décadas.
Os principais problemas clínicos associados à hiperuricemia são a artrite gotosa, os tofos de ácido úrico e os
cálculos renais3. Durante décadas, estes problemas médicos foram as principais indicações para a manutenção
dos níveis do ácido úrico sanguíneo na faixa da normalidade. Contudo, nos últimos anos, resultados originados de estudos epidemiológicos e em animais evidenciaram a importância da hiperuricemia na ocorrência da
doença renal crônica (DRC), doença coronariana e na
hipertensão arterial4.
A FFR, as doenças cardiovasculares e a morte prematura são desfechos adversos da DRC que podem ser
prevenidos pela identificação imediata e tratamento das
complicações e comorbidades associados à doença1,2,5.
Até o momento, poucos estudos epidemiológicos têm explorado o possível papel da hiperuricemia como marcador
precoce da DRC. No presente trabalho, os autores testaram as hipóteses da associação entre a hiperuricemia e a
DRC e se o nível elevado de ácido úrico pode ser um marcador precoce da doença em indivíduos com filtração
glomerular (FG) ainda preservada.
MATERIAL E MÉTODOS
Este trabalho foi realizado através de uma análise dos
registros de usuários de um laboratório da rede particular do
Município de Juiz de Fora, MG, no período de janeiro de 1995
a dezembro de 2005. O estudo foi aprovado pelo Comitê de
Ética em Pesquisa em Humanos da Universidade Federal de Juiz
de Fora.
O laboratório pertence à rede particular do Município de
Juiz de Fora e não é conveniado ao Sistema Único de Saúde. É
certificado pela norma ISO 9000:2000 e pelo PALC (Programa
de Acreditação para Laboratórios Clínicos).
Foram obtidos de indivíduos não hospitalizados os
seguintes dados referentes ao período de janeiro de 2000 a
dezembro de 2005: Ordem de Serviço (OS), data de realização
da OS, código de identificação e especialidade do profissional
que solicitou o exame, código de identificação do indivíduo,
sexo, data de nascimento e dosagem de creatinina sérica e
ácido úrico. Os achados da análise deste banco de dados
relativos à função renal em toda a mostra foram publicados
recentemente6.
Os critérios de inclusão utilizados foram: idade acima de
18 anos, com registros adequados de identificação, sexo, data de
nascimento, data da realização do exame e dosagem sérica da
creatinina e do ácido úrico.
A creatinina sérica no referido laboratório foi determinada utilizando-se o método cinético-colorimétrico, no aparelho BECKMAN CX4. A faixa de normalidade varia de 0,4 a
1,3mg/dL. O ácido úrico foi determinado pelo método enzimático-colorimétrico, em aparelho BECKMAN CX4, sendo a faixa
de normalidade de 1,5 a 5,9mg/dL para o sexo feminino e 2,5 a
6,9mg/dL para o sexo masculino.
A FG foi estimada pela equação do estudo MDRD (Modification of Diet in Renal Disease) na sua versão simplificada, que
leva em consideração as variáveis creatinina sérica (scr), idade (em
anos) e sexo7. Esta equação utiliza um fator de correção para
negros americanos que não foi considerado neste estudo devido ao
inexpressivo número de indivíduos com esta característica racial
entre a população brasileira, particularmente na Zona da Mata
Mineira8. A fórmula escolhida tem como vantagem fornecer um
ajuste para variações substanciais de fatores relacionados à
produção de creatinina, como idade, sexo e superfície corporal9.
Equação do estudo MDRD (expressa em mL/min/1,73m2)=
FG= 186x(scr)-1,154x(idade)–0,203x0,742(se mulher)x1,21(negro
americano)
A DRC foi definida segundo as recomendações da Fundação Nacional do Rim americana (NKF)1 e da Sociedade Brasileira de Nefrologia, ou seja, dois valores de FG <60mL/min/
1,73m2 obtidos em intervalo igual ou superior a três meses1,10.
A análise dos registros foi realizada em dois períodos
distintos: Período basal (2000 a 2003) e período de avaliação
(2004 a 2005). No período basal, foram identificados 4.991
indivíduos que contemplaram os critérios de inclusão. A
avaliação da associação do ácido úrico com a DRC foi realizada
por meio da divisão dos participantes, no período basal, de
acordo com o sexo e idade (variáveis que compõem a equação
do MDRD utilizada na estimativa da FG) e níveis de ácido úrico
sérico: normouricemia (ácido úrico sérico <6,0mg/dL na mulher
e <7,0mg/dL no homem) e hiperuricemia (ácido úrico sérico
≥6,0mg/dL na mulher e ≥7,0mg/dL no homem). Em seguida,
procedeu-se à análise da correlação entre os quartis de ácido
úrico numa coorte de indivíduos não portadores de DRC, ou
seja, com FG >60mL/min/1,73m2 no período basal, e a
ocorrência de DRC no período de avaliação.
Os dados são representados por frequência relativa, média
e desvio-padrão. A análise estatística foi realizada utilizando o teste
Qui-quadrado, sendo considerado um nível de significância de
95%. Foi calculado o Risco Relativo com intervalo de confiança
de 95%. Os cálculos foram realizados utilizando o programa SPSS
v 13.0, (SPSS Inc., Chicago, Illinois, USA).
RESULTADOS
No período basal, foram avaliados 4.991 indivíduos
que preencheram os critérios de inclusão no estudo e, des-
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Hiperuricemia e DRC Pré-Clínica
34
tes, 950 (10,0%) apresentavam FG <60mL/min/1,73m2 e
4.041 (90,0%), FG ≥60mL/min/1,73m2. A maioria dos
indivíduos (54%) era do sexo feminino, dos quais 70,5%
apresentavam menos de 60 anos de idade e 29,5% idade ≥60
anos. Entre os homens (46% da amostra), 60,6% apresentavam idade menor que 60 anos e 39,4% idade ≥60 anos.
As médias (±desvio padrão) da creatinina sérica, FG
e de ácido úrico sérico foram, respectivamente, 1,0±0,5mg/
dL, 75,1±19,7mL/min/1,73m2 e 4,6±1,5mg/dL em todas as
mulheres e 1,2±0,6mg/dL, 80,6±19,9mL/min/1,73m2 e
6,3±1,6mg/dL em todos os homens. Nos indivíduos com
idade <60 anos, as médias (±desvio padrão) da creatinina
sérica, FG e do ácido úrico sérico foram, respectivamente,
1,0±0,5mg/dL, 82,7±19,7mL/min/1,73m2 e 5,2±1,8mg/dL e
1,1±0,6mg/dL, 68,6±16,9mL/min/1,73m2 e 5,5±1,7mg/dL
nos participantes idosos, ou seja, idade ≥60 anos.
Nos indivíduos sem evidência de DRC, ou seja,
com FG ≥60mL/min/1,73m2, as médias (±desvio padrão)
da creatinina sérica, FG e do ácido úrico sérico foram, respectivamente, 0,9±0,1mg/dL, 81,9±16,9mL/min/ 1,73m2
e 4,4±1,4mg/dL nas mulheres, 1,0±0,2mg/dL, 85,1±
16,9mL/min/1,73m2 e 6,2±1,6mg/dL nos homens,
1,0±0,2mg/dL, 85,6±17,7mL/min/1,73m2 e 5,1±1,8mg/
dL nos participantes com menos de 60 anos e
1,0±0,2mg/dL, 77,8±13,4mL/min/1,73m2 e 5,3±1,7mg/
dL nos idosos.
No grupo composto de indivíduos com DRC, ou
seja, com FG <60mL/min/1,73m2, as médias (±desvio padrão) da creatinia sérica, FG e do ácido úrico sérico foram,
respectivamente, 1,2±1,0mg/dL, 52,7±7,9mL/min/ 1,73m2 e
5,4±1,6mg/dL nas mulheres, 1,7±1,3mg/dL, 51,0± 10,6mL/
min/1,73m2 e 7,2±1,7mg/dL nos homens, 1,4± 1,3mg/dL,
51,3±9,6mL/min/1,73m2, 5,9±1,9 mg/dL nos participantes
com menos de 60 anos e 1,3±1,0mg/dL, 52,5±8,6mL/
min/1,73m2 e 5,9±1,8mg/dL nos idosos (Tabela 1).
A Figura 1 apresenta a análise do impacto clínico
dos níveis séricos de ácido úrico no período basal sobre a
FG no período de avaliação em indivíduos do sexo mas-
≥60
Figura 1. Incidência da doença renal crônica (DRC) em homens
no período de avaliação (2004-2005) de acordo com os níveis de
ácido úrico e idade no período basal em indivíduos sem doença
renal (2000-2003).
≥60
Figura 2. Incidência de doença renal crônica (DRC) em mulheres
no período de avaliação (2004-2005) de acordo com os níveis de
ácido úrico e idade no período basal em indivíduos sem doença
renal (2000-2003).
culino não portadores de DRC. No que tange aos homens
com normouricemia (ácido úrico <7,0mg/dL), os com
hiperuricemia (ácido úrico ≥7mg/dL) apresentaram risco
relativo (IC95%) de 2,3 (1,5;3,7) para DRC, o qual foi de
3,7 (1,6;8,7) naqueles com menos de 60 anos e 2,2
(1,3;3,9) nos participantes com idade ≥60.
Tabela 1. Dados demográficos, de função renal e de ácido úrico no período basal (2000-2003)
Variáveis
Indivíduos com
FG ≥60mL/min/1,73m2
N= 4041 (90,0%)
Ácido Creatinina
Filtração
Ácido
Filtração
Creatinina
úrico
Glomerular*
úrico
(mg/dL)
(mg/dL) Glomerular*
(mg/dL)
(mg/dL)
Todos os indivíduos
N=4.491 (100%)
Indivíduos com
FG <60mL/min/173m2
N= 950 (10,0%)
Ácido
Creatinina
Filtração
úrico
(mg/dL)
Glomerular*
(mg/dL)
Sexo
Feminino
Masculino
1,0±0,5
1,2±0,6
75,1±19,7
80,6±19,9
4,6±1,5
6,3±1,6
0,9±0,1
1,0±0,2
81,9±16,9
85,1±16,9
4,4±1,4
6,2±1,6
1,2±1,0
1,7±1,3
52,7±7,9
51,0±10,6
5,4±1,6
7,2±1,7
Idade
<60 anos
≥60 anos
1,0±0,5
1,1±0,6
82,7±19,7
68,6±16,9
5,2±1,8
5,5±1,7
1,0±0,2
1,0±0,2
85,6±17,7
77,8±13,4
5,1±1,8
5,3±1,7
1,4±1,3
1,3±1,0
51,3±9,6
52,5±8,6
5,9±1,9
5,9±1,8
* Em mL/min/1,73m2
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Tabela 2. Correlação entre quartís de ácido úrico e presença ou não de doença renal
crônica no período basal (2000 a 2003)
Quartís de ácido
úrico (mg/dL)
Todos os
indivíduos
N (%)
<4,0
1367 (27,4)
1212 (30,0)
155 (16,3)
4-5,1
1166 (23,4)
965 (23,9)
201 (21,2)
1262 (25,3)
891 (24,5)
271 (28,6)
1196 (24,0)
873 (21,6)
323 (34,0)
4991 (100)
4041 (100)
950 (100)
5,2-6,7
>6,7
Total
Filtração glomerular Filtração glomerular
≥60mL/min/1,73m2
<60mL/min/1,73m2
N (%)
N (%)
p <0,001
Tabela 3. Correlação entre quartís de ácido úrico no período basal (2000 a 2003) e
a ocorrência de doença renal crônica no período de avaliação (2004 a 2005)
Filtração glomerular Filtração glomerular
≥60mL/min/1,73m2
<60mL/min/1,73m2
N (%)
N (%)
Quartís de ácido
úrico (mg/dL)
Todos os
indivíduos
N (%)
<4,0
1212 (30,0)
1125 (30,8)
87 (22,3)
4-5,1
965 (23,9)
860 (23,6)
105 (26,9)
991 (24,5)
880 (24,1)
111 (28,5)
873 (21,6)
786 (21,5)
87 (22,3)
4041 (100)
3651 (100)
390 (100)
5,2-6,7
>6,7
Total
p <0,005
A Figura 2 apresenta os resultados do impacto clínico da hiperuricemia no período basal sobre a ocorrência
de DRC no período de avaliação em mulheres com função
renal preservada, ou seja, FG >60mL/min/ 1,73m2. Com
Relação às mulheres com normouricemia, as com hiperuricemia apresentaram risco relativo (IC95%) de 2,8
(2,1;3,7) para DRC, o qual foi de 2,7 (1,7;4,3) naquelas com
menos de 60 anos e 2,2 (1,5;3,2) nas com idade ≥60.
A Tabela 2 apresenta a análise da correlação entre
os níveis séricos de ácido úrico estratificado em quartis no
período basal nos 4.991 pacientes e a ocorrência de DRC
no período de avaliação. Como pode ser observado, o
percentual de indivíduos com níveis mais baixos de ácido
úrico é maior no grupo de indivíduos com FG ≥60mL/
min/1,73m2, enquanto que, no grupo de indivíduos portadores de DRC (FG <60mL/min/1,73m2), ocorre o contrário, ou seja, existe uma maior concentração de pacientes
com níveis mais elevados de ácido úrico (p <0,001).
Finalmente, a análise do impacto dos níveis séricos
de ácido úrico sobre a FG, contudo restrita apenas aos indivíduos não portadores de DRC no período basal, mostrou que
aqueles que se encontravam nos quartis mais baixos de ácido
úrico sérico no período basal apresentaram uma menor frequência de DRC no período de avaliação, enquanto os indivíduos agrupados nos quartis mais elevados no período basal
apresentaram maior prevalência de DRC no período de avaliação (p <0,005).
DISCUSSÃO
A hiperuricemia é um achado frequente em
pacientes portadores de DRC, mas o seu papel causal na
doença geralmente não tem sido considerado. No presente
trabalho, avaliamos a hipótese de que níveis elevados de
ácido úrico se associam com maior risco de ocorrência de
DRC. Para tal, utilizamos a estratégia de analisar um
banco de dados laboratoriais de indivíduos ambulatoriais
com informações sobre creatinina sérica, ácido úrico
sérico, além de sexo e idade.
A análise foi feita em dois períodos, um basal
(2000 a 2003) e outro denominado de avaliação (2004 e
2005). Foi observado que os homens, as mulheres e os
participantes idosos ou com idade <60 anos hiperuricêmi-
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cos apresentaram maior risco de desenvolver DRC do que
os normouricêmicos. A análise da amostra estratificada
em quartis também evidenciou que, no período basal, os
indivíduos (analisados como um todo) e os integrantes do
grupo não portador de DRC (FG >60mL/min,1,73m2) e
com níveis de ácido úrico sérico mais elevados também
apresentaram maior incidência de DRC no período de
avaliação.
A análise conjunta dos dados sugere que a hiperuricemia identifica um estado de DRC pré-clínica, definido
como condição clínica que antecede o desenvolvimento
da doença clínica e que está diretamente associado com
desfechos adversos na saúde do paciente11.
O ácido úrico é o produto final do metabolismo da
purina em seres humanos. A purina pode ser gerada a
partir de fontes endógenas, pela síntese de novo e degradação de ácidos nucléicos (aproximadamente 600mg/dia),
ou de exógenas, a partir da ingestão de purina da dieta
(aproximadamente 100mg/dia).
No estado de equilíbrio, a produção e a ingestão
diária de ácido úrico de cerca de 700mg/dia são balanceadas pela eliminação de quantidade igual de ácido úrico, sendo cerca de 30% através do intestino e 70% (aproximadamente 500mg/dia) pelos rins. O urato plasmático é
filtrado livremente pelos glomérulos, mas a excreção fracional do ácido úrico filtrado é inferior a 10%. Isto demonstra a preponderância dos processos de reabsorção
tubular em seres humanos, realizados principalmente pela
proteína transportadora denominada URAT1 presente no
túbulo contornado proximal.
A ocorrência de hiperuricemia, geralmente decorrente da diminuição da excreção fracional do ácido úrico
pelos rins ao longo dos anos ou décadas, gera um aumento
da quantidade de ácido úrico no organismo, favorecendo
a deposição de urato não só nas articulações, mas também
em outros tecidos, principalmente os rins, e no endotélio
vascular12,13.
Até recentemente, a associação da hiperuricemia
com o rim se restringia quase que exclusivamente às
obstruções secundárias a cálculos do trato urinário ou
deposição intratubular de ácido úrico decorrente da lise
tumoral associada à quimioterapia. Contudo, estudos epidemiológicos em humanos, bem como em modelos animais de hiperuricemia leve determinando alterações
microvasculares nas areríolas aferentes glomerulares,
descortinaram para o possível efeito direto do urato na
patogênese da DRC14-16.
Os nossos resultados estão de acordo com estas
observações, posto que os níveis séricos de ácido úrico mais
elevados no período basal do estudo se associaram fortemente com a ocorrência da DRC no período de avaliação,
mesmo nos indivíduos com função renal preservada.
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Hiperuricemia e DRC Pré-Clínica
A relação causal primária do papel do urato na
DRC foi questionada durante muito tempo devido à concomitância de outras doenças e fatores de risco comumente observados nestes pacientes e que contribuem para
perda funcional renal, tais como hipertensão arterial,
diabetes mellitus, abuso de bebidas alcoólicas, anti-inflamatórios não esteróides e toxicidade por chumbo.
Embora o desenho do nosso estudo, uma vez que
não tivemos acesso aos dados clínicos e de exame físico
dos participantes, não nos permita excluir o possível
impacto destas doenças ou fatores de risco nos nossos
resultados, é importante observar que a associação de
níveis mais elevados de ácido úrico com a ocorrência da
DRC encontrada está de acordo com os achados de outros
autores que sugerem um papel patogênico para hiperuricemia na DRC. Por exemplo, no período que antecedeu
a disponibilidade terapêutica eficaz de diminuição da
hiperuricemia, até 40% dos pacientes com gota apresentavam diminuição da FG17. Nos estudos desta época,
18% a 25% dos óbitos em pacientes com gota decorreram
da FFR18.
Mais recentemente, dois grandes estudos populacionais prospectivos oriundos do Japão examinaram a
relação entre níveis de urato sérico e desenvolvimento da
doença renal após ajustes para idade, pressão arterial,
índice de massa corporal, proteinúria, hematócrito,
hiperlipidemia, glicemia de jejum e creatinina sérica. No
estudo de Tomita e cols14., 49.413 ferroviários com idade
entre 25 e 60 anos foram acompanhados por um período
médio de 5,4 anos. Os autores encontraram uma correlação forte, após os ajustes realizados, entre níveis séricos
de urato e FFR, sendo que os indivíduos com os valores
mais elevados de urato (8,5mg/dL) apresentaram risco de
falência renal oito vezes maior do que aqueles com níveis
moderados de hiperuricemia (5,0 a 6,4mg/dL).
Izeki e cols.15 rastrearam 48.177 japoneses adultos
e calcularam a incidência cumulativa de FFR de acordo
com os quartis de ácido úrico sérico basais e estratificação
para o sexo. Os níveis basais de urato sérico foram
6,4±1,4mg/dL nos homens e 4,64±1,1mg/dL nas mulheres. A incidência de FFR para cada 1.000 indivíduos
rastreados foi de 1,22 para homens sem hiperuricemia
(urato <7,0mg/dL) versus 4,64 para homens com hiperuricemia (urato ≥7,0mg/dL). Nas mulheres, as incidências por 1.000 rastreadas foram 0,87 para aquelas sem
hiperuricemia (urato <6,0mg/dL) versus 9,03 para as que
apresentavam hiperuricemia (urato ≥6,0mg/dL). Os autores concluíram que a hiperuricemia se associou com
maior risco de FFR, mesmo após ajustes para as comorbidades. Também sugeriram que a normalização dos níveis elevados de urato pode reduzir a sobrecarga de
pacientes com FFR.
37
A natureza do nosso trabalho, com acesso apenas a
dados de idade, sexo, creatinina e ácido úrico sanguíneos,
não nos permite determinar a(s) causa(s) da hiperuricemia
nos indivíduos analisados. Além da diminuição da FG,
outros fatores podem determinar níveis elevados de ácido
úrico sérico, tais como depleção de volume, ingestão abusiva
de álcool, dieta rica em purina e doenças tais como gota19.
A hiperuricemia frequentemente se associa com a
hipertensão arterial e é considerada um indicador mais
sensível de lesão hipertensiva de órgão alvo do que o nível
de creatinina sérico20. O acesso limitado às informações
clínicas dos participantes do nosso estudo impossibilita o
estabelecimento de qualquer relação dos níveis de ácido
úrico sérico com fatores de risco de progressão da DRC,
como, por exemplo, a hipertensão arterial.
O nosso estudo apresenta algumas limitações
importantes. Primeiro, o seu desenho só nós permitiu acesso aos dados demográficos (idade e sexo) e laboratorias
(creatinina e ácido úrico sanguíneos) dos indivíduos avaliados, não nos sendo possível analisar o impacto de outras
alterações laboratoriais como hiperglicemia, hiperlipidemia e hiperfosfatemia na gênese da DRC. Segundo, a falta
de acesso aos dados de proteinúria não nos permitiu excluir, com certeza, a DRC nos indivíduos com FG
>60mL/min/1,73m2. Terceiro, a natureza retrospectiva do
estudo e a infrequência de registro no banco de dados do
Laboratório das indicações dos pedidos laboratoriais dificultaram a análise das possíveis indicações dos pedidos de
creatinina e ácido úrico e, assim, saber sobre a concomitância das doenças e/ou fatores de risco para DRC. Finalmente, o curto intervalo de tempo entre os períodos basal e
de avaliação utilizado na nossa análise pode ter subestimado o impacto desfavorável do ácido úrico sanguíneo na
filtração glomerular.
Em suma, os nossos resultados sugerem que níveis
elevados de ácido úrico sérico se associam com maior
prevalência de DRC. O achado de maior prevalência de
DRC no período de avaliação entre os indivíduos sem a
doença no período basal sugere ser o ácido úrico um
marcador precoce disfunção renal.
Embora não nos tenha sido possível analisar o papel
de outras doenças/fatores de risco para DRC, tais como
proteinúria, hiperlipidemia, diabetes mellitus e hipertensão
arterial, a implementação de estratégias que mantenham o
ácido úrico em níveis normais talvez seja recomendada na
prevenção da doença renal. Estudos intervencionais futuros
com medicações estabelecerão se a normalização da
hiperuricemia prevenirá a perda funcional renal.
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