® BuscaLegis.ccj.ufsc.br Breves anotações sobre a (ainda) incriminação do aborto: divórcio entre o rigor da lei positiva e a prática judiciária descriminalizadora João José Leal Introdução Informa a doutrina[1] que, na Antiguidade, não se punia o aborto. Com algumas exceções, esta era a regra geral. Com o cristianismo, passou-se a ver no aborto uma forma de homicídio, mas durante séculos o direito conviveu com a divergência teológica em torno do momento em que o ente em gestação passava a ser portador de uma alma, quando então a morte do nascituro constituía crime de homicídio. A resposta punitiva, geralmente, consistia na morte do agente provocador. Segundo informa Aníbal Bruno, para o Direito Canônico, a celeuma somente foi encerrada no final do século XVIII, quando prevaleceu o entendimento de que, a partir do momento da concepção, já existe vida humana que precisa de proteção jurídica.[2] Atualmente, o aborto é um dos crimes que mais tem despertado a crítica dos doutrinadores. Sua proibição e conseqüente repressão criminal é, realmente, um tema sobre o qual desenvolveu-se e ainda se mantém intensa polêmica. Entre outras razões, a crítica surgiu para questionar a conveniência política de se incriminar, da forma rígida e severa como ocorre ainda hoje no Direito Penal brasileiro, a conduta abortiva. Esta posição doutrinária de crítica à norma positiva é perfeitamente explicável, quando se verifica que, na maioria dos países contemporâneos, o aborto deixou o campo das condutas criminalmente proibidas, desde que praticado com a observância de certas condições previamente estabelecidas na lei positiva. Conceito e Objeto Jurídico O termo abortamento, que poderia ser considerado para melhor expressar o sentido semântico da ação abortiva, há muito deixou de ser utilizado. Consolidou-se, na linguagem comum e médica, o uso corrente do vocábulo aborto,[3] que pode ser definido como a interrupção da gravidez e a conseqüente eliminação da vida do nascituro.[4] Pode ser o resultado de causas naturais (estado precário de saúde da gestante ou incompatível com a gestação ou do próprio feto) ou acidentais (queda violenta ou movimento brusco). Pode, também, ser conseqüência de ação humana voluntária. Neste caso, o aborto deve ser entendido como a eliminação da vida intra-uterina, provocada voluntariamente por alguém (gestante e/ou terceiro) durante a gravidez, ou seja, antes do parto. Esta hipótese abortiva é a que interessa ao Direito Penal, que a descreve como um tipo penal cujas modalidades típicas serão aqui rapidamente examinadas. Para o Direito Penal, somente a gravidez normal, ou seja, intra-uterina pode ser objeto de interrupção criminosa. O produto embrionário que se encontre fora da cavidade uterina não constitui objeto de proteção da norma penal. Por isso, pode-se dizer que, em termos estritamente penais, inexiste gravidez extra-uterina ou, ao menos, seria esta penalmente irrelevante. Os casos anormais de gravidez extra-uterina são patológicas e sua interrupção não constitui aborto.[5] A ação abortiva somente terá relevância penal se atingir o nascituro (embrião ou feto) com vida. Não importa se a fecundação ocorreu por meio natural ou por meio de inseminação artificial. Desde que o ser embrionário encontre-se em gestação intra-uterina, há gravidez e sua interrupção por ação humana constitui, em regra, crime. O bem jurídico atingido pela ação típica abortiva é a vida humana em sua esfera intrauterina, ou seja, no estágio anterior ao momento do parto. Iniciado este, já não haveria viabilidade jurídica de prática do crime de aborto e sim de infanticídio. Portanto, no caso de auto-aborto, o feto ou embrião é o titular do único bem jurídico protegido pela norma penal, cujo objeto é a vida humana. Frise-se que, para o Direito, o nascituro (feto ou embrião) não é considerado pessoa humana em seu sentido jurídico restrito. É uma pessoa ainda em formação, cuja efetiva personalidade depende de uma condição: o nascimento com vida. Nos casos de aborto praticado por terceiro, o bem jurídico ofendido é a pessoa humana – a gestante, em sua integridade física ou psíquica - como valor juridicamente protegível. Mas a vida do feto ou do embrião é também atingida. Por isso, podemos dizer que aí ocorre uma duplicidade de objetos jurídicos. Forma Objetiva de Realização ou Tipo Objetivo A lei positiva utiliza o verbo provocar (que significa dar causa, originar, promover ou produzir), para tipificar a forma objetiva de realização da ação abortiva. É, portanto, crime com forma livre de cometimento: toda ação humana apta a causar a interrupção da gravidez enquadra-se na descrição objetiva do tipo penal em análise. Assim sendo, pode o aborto ser cometido por meio de substâncias tóxicas[6] ou bioquímicas: arruda, quinino, quebra-pedra, centeio espigado, entre outras (substância vegetal tóxica), mercúrio, chumbo, fósforo,entre outras (substância mineral tóxica). Pode ser provocado por meios mecânicos[7] ou físicos: instrumentos pontiagudos e pinças, tamponamentos, duchas fortes e repetidas com água fria e quente e, principalmente, a curetagem, que consiste numa verdadeira raspagem da cavidade uterina com uma cureta (instrumento em forma de colher) com o fim de dali desprender o embrião ou o feto e causar-lhe a morte. Esta é a forma mais eficaz de prática do aborto e, por isso, é utilizada por médicos e pessoas leigas, conhecidas como aborteiras. Teoricamente, é possível imaginar a provocação de aborto por meio de um intencional processo de sofrimento moral ou psíquico dirigido à gestante, de tal modo que venha ela a sofrer um aborto ou mesmo a causar um auto-aborto. A doutrina, praticamente unânime, aceita esta hipótese.[8] Desde que o meio empregado seja apto e a vontade seja dirigida para a interrupção da gravidez, o crime será de aborto mesmo que o feto venha perecer após sua expulsão com vida do útero materno.[9] Embora a vida intra-uterina tenha início com a fecundação ou a formação do ovo (união dos gametas masculinos e femininos), para a doutrina atual, o início da gravidez deve ser admitido a partir do momento em que o óvulo, já fecundado, se aloja na cavidade uterina (fenômeno da nidação). Com isto, admite-se que a utilização de aparelhos anticoncepcionais como o DIU, que impede a implantação do ovo no útero e provoca sua expulsão prematura, constitui conduta amparada pelo exercício regular de um direito. Neste sentido, a jurisprudência já decidiu que a livre comercialização de medicamentos ou produtos anticoncepcionais deve conduzir ao entendimento de que não pode haver aborto criminoso, “pelo menos nos primeiros dias da concepção, antes que o feto manifeste vida”.[10] Portanto, só haverá aborto criminalmente reprimido, quando a interrupção da gravidez ocorrer após a implantação do ovo no útero.[11] Num país de pobreza material e cultural extremas, não tem sido rara a utilização de ervas e plantas “medicinais”, de rezas, de despachos de macumbas e de outras crendices ou práticas supersticiosas, visando a provocação do aborto. Tratando-se de meios absolutamente ineficazes, é lógico que devem ser tratados como verdadeiras hipóteses de tentativa impossível.[12] A ação abortiva somente terá relevância penal se atingir o nascituro (embrião ou feto) com vida. Assim, mesmo se houver gravidez, mas ficar comprovada a inexistência de vida intrauterina, não haverá crime de aborto.[13] A hipótese será de tentativa impossível, por impropriedade absoluta do objeto. O mesmo ocorrerá no caso de falsa ou suposta gravidez,[14] hipóteses estas que ocorriam com certa freqüência quando os exames para constatação da gravidez eram de eficácia relativa e de difícil acesso às pessoas carentes. Formas Típicas do Crime de Aborto Ao incriminar o aborto, o CP cindiu o fato criminoso em três figuras típicas: o aborto praticado pela própria gestante; o aborto praticado por um terceiro, mas por ela consentido, e o aborto praticado por terceiro, sem o conhecimento da gestante ou contra a sua vontade. Prevê a lei positiva, também, dois casos em que a ação abortiva é legalmente admitida. Essas figuras típicas serão objeto de análise a seguir. Auto-Aborto e Aborto Consentido A primeira figura típica é a do auto-aborto, descrita no art. 124 (1ª parte), com a seguinte dicção: “Provocar aborto em si mesma” (...). A pena prevista é a detenção de um a três anos. Portanto, haverá crime de auto-aborto quando a própria gestante provoca a interrupção de sua gravidez, utilizando-se de um dos meios aptos a eliminar a vida do nascituro. Trata-se de crime de mão própria ou de autoria assinalada: somente a gestante poderá praticar, na condição de autora, esta forma típica de aborto. Um terceiro poderá intervir como partícipe, instigando, incentivando ou prestando auxílio. É uma exceção à regra da não admissibilidade de participação em crime de mão própria, mas aqui existe previsão legal de um terceiro como autor de crime de aborto (tanto no art. 124 em análise, quanto nos arts. 125 e 126). E se um terceiro pode ser autor, pode, também, e com maior razão, ser considerado partícipe da gestante que pratica o aborto em si própria. A doutrina e a jurisprudência, majoritariamente, posicionam-se neste sentido hermenêutico.[15] A segunda conduta típica do art. 124, está assim descrita: “...ou consentir que outrem lho provoque” (o aborto). Nesta hipótese, sendo a gestante penalmente capaz, dá ela o consentimento para que um terceiro pratique o aborto. O crime aqui descrito é o da gestante, por isso denominado de aborto consentido. É como se ela praticasse o aborto por meio de uma terceira pessoa. Esta não comete o tipo do art. 124, pois sua conduta criminosa está tipificada no art. 126. A nosso ver, se não houver prova de que a gestante, conhecendo a intenção do terceiro, manifestou-se contrária ao aborto, deve prevalecer o entendimento de que o consentimento existiu, ao menos de forma tácita. Aborto Provocado sem o Consentimento da Gestante Esta hipótese típica de aborto está prevista no art. 125, do CP: “Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena – reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos.” Por se tratar de ação delitiva contra a vontade da gestante, a pena é mais severa, o que é perfeitamente compreensível. Não é apenas a vida do nascituro que é atingida, mas a liberdade e a integridade física da gestante, o que justifica a maior severidade da carga punitiva. A recusa ou a falta de consentimento para o aborto constitui elemento do tipo e deve ser demonstrada para que, ao causador do aborto, seja imputado o delito do art. 125. Se a gestante for juridicamente capaz de consentir, é preciso ficar comprovado que o aborto foi praticado mediante grave ameaça, violência ou fraude apta a conduzi-la a uma avaliação equivocada da realidade. São estas as formas de superar a recusa da gestante, previstas no parágrafo único do art. 126 em exame. Por outro lado, a falta de consentimento pode ser presumida, no caso de “gestante não maior de 14 anos, alienada ou débil mental”, conforme dispõe esse mesmo dispositivo. A expressão “alienada ou débil mental”, deve ser entendida com o mesmo sentido da expressão doença mental ou deficiência mental, prevista no art. 26, caput, do CP. Cabe ressaltar que este parágrafo único refere-se a elementos normativos que completam a descrição típica do artigo anterior e isto representa uma impropriedade de técnica jurídica. Aborto Consensual A outra face do aborto consentido pela gestante, previsto na 2ª parte, do art. 124, é a do aborto consensual, assim descrito no art. 126: “Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena – reclusão de 1 (um a 4 (quatro) anos.” Aqui, o tipo descreve a conduta do terceiro em relação a um único fato delituoso, que tem na outra margem da tipicidade sempre a autoria delituosa da gestante. O mesmo fato é cindido pela lei para punir o terceiro provocador, pelo crime do art. 126 e a gestante autorizadora do aborto, pelo crime descrito no art. 124 (2ª parte). O consentimento é elemento do tipo e deve ser processualmente demonstrado, sob pena de se imputar ao terceiro provocador do aborto o crime mais grave previsto no art. 125. As questões relativas à falta ou recusa de anuência para o aborto, que pode desconstituir a forma típica ora em análise, já foram comentadas acima. Formas ou Hipóteses Lícitas de Aborto Embora mantenha uma posição conservadora em relação ao movimento descriminalizador do aborto, nosso CP prevê duas hipóteses em que a interrupção da gravidez e conseqüente eliminação da vida intra-uterina se torna um ato lícito. São as hipóteses de aborto necessário e de aborto para eliminar gravidez resultante de estupro. Em ambos os casos, a norma autorizadora exige que a ação abortiva seja praticada por médico. Examinaremos estas duas hipóteses a seguir. Aborto Necessário Estabelece o art. 128: “Não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;” (...). Também denominado de aborto terapêutico, tem como fundamento fático a situação de vida ou morte da gestante. Ressalte-se que a lei é demasiadamente rígida e somente autoriza o aborto diante da provável morte da gestante, em decorrência do processo de gravidez. Para a lei, não basta o diagnóstico de que a mãe corre risco de vida ou que seu estado de saúde pode sofrer danos irreversíveis. Interpretada literalmente, a lei só admite o aborto quando ficar demonstrado que a mãe não sobreviverá sem a interrupção da gravidez. Somente nesta hipótese extrema é que poderá haver aborto lícito, com base na hipótese do inciso I, do art. 128. O dispositivo é de um rigor inadmissível. Mesmo que a lei não exija a atualidade ou iminência da provável morte da gestante, para autorizar o aborto necessário, bastando que seja futuramente certa, ainda assim a severidade é indiscutível. Na verdade, a norma permissiva é desnecessária porque a ação abortiva já estaria justificada pela excludente do estado de necessidade. Pouco importa que a eliminação do nascituro seja praticada para evitar um mal futuro à pessoa da gestante. Verifica-se um verdadeiro confronto de direitos e, no caso, salvar o direito à vida da gestante, configura um indiscutível estado de necessidade. Tanto que, diagnosticada a provável morte da gestante e o aborto vier a ser praticado por um leigo, este não cometerá nenhum crime porque terá atuado sob a égide do estado de necessidade. Entretanto, na hipótese de aborto necessário praticado pelo médico, entendemos que este atua amparado pela excludente do exercício regular de um direito, pois é a própria lei que autoriza o profissional a atuar para evitar o mal maior, que seria a morte da gestante. Devemos reconhecer que os tribunais têm atenuado o rigor da exigência legal (somente salvar a vida da gestante) para a admissão dos casos de aborto necessário. Além disso, o avanço da ciência médica reduziu drasticamente os casos em que a gestante pode correr sério risco de vida por causa de uma gravidez mórbida. Isto fez com que a hipótese legal em exame somente se manifeste muito raramente. Cremos que, constatada a probabilidade da morte, está o médico legalmente autorizado a intervir para interromper a gravidez e realizar o aborto, sem depender de autorização da gestante ou, eventualmente, de seu representante. Também não depende o médico de autorização judicial, pois a situação equipara-se a de uma intervenção cirúrgica necessária e, portanto, pode o médico praticar o aborto necessário, quando diagnosticar que “não há outro meio de salvar a vida da gestante”. Além disso, o próprio dispositivo penal dispensa qualquer espécie de autorização. Aborto para Eliminar Gravidez Resultante de Estupro Também denominado de aborto sentimental ou piedoso, está descrito no inciso II, do art. 128, com a seguinte dicção: “Não se pune o aborto praticado por médico: se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido do consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.” O dispositivo abre uma segunda exceção em face da regra da punibilidade das diversas modalidades de conduta abortiva. E não poderia ser diferente, porque seria injusto obrigar a gestante de um ser que não desejou, mas que lhe foi imposto, a suportar o drama e o sofrimento de uma gravidez maldita. Ao descrever o tipo permissivo, a lei fixa alguns requisitos para a legítima aplicabilidade desta causa de exclusão da ilicitude, por exercício regular de um direito. O primeiro, é de que o aborto seja praticado por médico; o segundo, exige que a gravidez seja resultante de estupro; o terceiro, exige que a gestante ou se representante legal manifeste o consentimento. Cumpridos estes requisitos legais, o aborto praticado com o fim eliminar a gravidez resultante de estupro torna-se uma conduta legalmente lícita. Ficou superada a discussão sobre o procedimento para a realização do aborto, que venha a interromper a gravidez resultante de um estupro. Durante muito tempo, grande parte da doutrina entendeu ser necessário um procedimento civil ou criminal com o fim de obtenção de autorização judicial para a prática do aborto necessário. Tal exigência representava mais um tormento para a mulher grávida, em conseqüência de um crime de estupro. A morosidade e a dificuldade de acesso à justiça transformavam a opção por esta hipótese legal de aborto em mais uma via cruxis de profundo sofrimento para a gestante. Hoje, o entendimento predominante é de que o médico está autorizado a proceder ao aborto, sem a necessidade de recorrer ao judiciário. Para o médico atuar, basta a solicitação e autorização da gestante, assumindo a responsabilidade da declaração, que deve mencionar o fato com elementos suficientemente esclarecedores do fato criminoso. Se houver Inquérito Policial ou processo criminal em andamento, a posição do médico fica mais segura. Cabe-lhe tomar conhecimento das provas ali anexadas, principalmente do auto de exame de conjunção carnal. Ressalte-se que a norma em referência não estabelece qualquer outro requisito senão os três acima mencionados. E onde a lei não restringe ou fixa exigência, não cabe ao intérprete restringir, muito menos exigir. Portanto, é dispensável a autorização judicial para a realização do aborto necessário, por parte de médico habilitado.[16] É preciso reconhecer, no entanto, que tem sido comum a solicitação de permissão judicial por parte de médicos, com o objetivo de se assegurar contra eventual responsabilidade civil ou penal ou perante o Código de Ética. É o que aconselha o professor de Medicina Legal Genival França: a autorização judicial ou do representante do Ministério Público, “deixará o profissional em situação de não lhe caber, no futuro, nenhuma responsabilidade.”[17] Aborto Eugênico ou Eugenésico Questão que vem suscitando acesa polêmica doutrinária é a do aborto para interromper a gravidez no caso de feto portador de grave anomalia física ou mental, resultante de fatores genéticos. A interpretação literal das normas penais sobre a matéria e que acabamos de examinar não permite outro entendimento senão o de que o aborto eugênico é, não só proibido, como também criminoso. Não há previsão legal que excepcione a tipicidade desta forma abortiva para lhe conferir condição jurídica de licitude penal. No entanto, o Direito Penal não pode permanecer engessado por valores éticos concebidos como a expressão de um determinado momento histórico, nem por conhecimentos “científicos” que acabaram superados pelo progresso da Biologia, da Genética e da própria Ciência Médica. É óbvio que a opção pelo denominado aborto eugênico deve ser fruto de uma escolha consciente e de plena liberdade. É, portanto, uma questão essencialmente moral. Mas isto não dispensa a contribuição substancial da Ciência Médica, para que o juízo de valor sobre a legitimidade ética de se interromper a gravidez, em determinados casos excepcionais, possa ser realizado com a necessária consciência e liberdade. Na Medicina, grande parte dos profissionais tem se posicionado contra esta opção abortiva. O principal argumento é o de que o progresso da ciência médica só tem legitimidade se utilizado em favor da vida e do bem-estar da humanidade e não da morte do ser humano, mesmo que considerado este ainda em seu estado de gestação embrionária. Para a corrente contrária ao aborto eugênico, o nascituro, mesmo que portador de grave deformidade ou anomalia física ou psíquica, tem o mesmo estado éticojurídico de dignidade humana que os demais seres humanos e, por isso, merece a proteção da Medicina e do próprio Direito. Genival França entende que ninguém pode negar aos seres deficientes o direito à vida, que “precisa de proteção e amparo e nunca de repressão.” E arremata, afirmando: “Qualquer forma de violência contra um indefeso e deficiente não é próprio da consciência médica, nem compatível com a medicina do povo, pois subverte uma tradição que se consagrou num projeto de voltar-se sempre para o bem do homem e da humanidade.”[18] A nosso ver, a questão é bastante delicada e deve ser tratada com o devido cuidado ético, que evite a prática abusiva de abortos com o fim ideológico de seleção e aprimoramento genético da espécie humana. Esse discurso deve ser rejeitado com veemência, porque suas premissas científicas são bastante discutíveis e seu fundamento éticojurídico é absolutamente inadmissível. Tanto que os precedentes históricos conhecidos (Alemanha nazista, principalmente) foram trágicos para a humanidade. Entretanto, o momento éticojurídico que vivemos é bastante diferente daquele em que o CP, com seus valores, princípios e suas normas repressivas foi concebido e positivado para estabelecer o controle da sociedade brasileira. Esta sofreu profunda transformação ao longo de quase um século de vigência. E o processo de mudança socioeconômica e cultural continua de forma inexorável, com repercussão inevitável no campo dos valores éticos que se encontram na base de legitimação das normas penais. Conforme assinalou Alberto Silva Franco, a experiência nazista de purificação da raça, tornou a palavra eugenia um verdadeiro tabu ideológico. Porém, com o passar do tempo, esta expressão readquiriu força e prestígio científicos, especialmente no campo da eugenésia restritiva, para o fim específico de impedir o nascimento de seres marcados por uma acentuada carga degenerativa. E esclarece que “não se trata de conseguir uma raça de super-homens,” pois “a indicação eugênica, na sua contextura moderna, tem um campo limitado de aplicação e não pode ter a veleidade de provocar melhoras genéticas em escala social”.[19] Além disso, não podemos ignorar a realidade políticojurídica de inúmeros países que, após muita discussão política, descriminalizaram o aborto, permitindo-o, desde que praticado com a observância dos requisitos e condições estabelecidas pelo Direito. Muitas destas legislações conferem à mulher o direito optar livremente pelo aborto durante as primeiras semanas de gravidez. E a experiência demonstra que essas sociedades não são menos humanas, nem menos fraternas ou solidárias, do que aquelas que, como a nossa, não admitem o aborto eugênico. A nosso ver, portanto, o Direito Penal brasileiro, em matéria de controle da conduta abortiva, está marcando passo contra o progresso da Medicina e, o mais grave, contra os costumes e a própria moral contemporânea. Cabe ressaltar que, embora incriminado na lei positiva, o aborto eugênico tem sido autorizado, mediante alvará concedido por juízes e confirmado por tribunais, especialmente, nos casos de anencefalia.[20] São casos perfeitamente dignosticáveis, em que o nascituro apresenta grave anomalia cerebral ou ausência completa de cérebro e que tornam impossível a vida extra-uterina, ao menos, após alguns dias de sobrevida. Adel El Tasse considera que, na hipótese de aborto por anencefalia, não há bem jurídico a proteger, “eis que a morte se dá com o cessar das atividades do encéfalo, sendo este justamente inexistente no feto possuidor da analisada deformidade”.[21] Em voto proferido em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, o ministro Marco Aurélio, embora reconhecendo que a vida constitui um bem a ser preservado a qualquer custo, considerou que “não é justo condenar a mãe a meses de sofrimento.”[22] Tratava-se de um caso de gravidez cujo feto apresentava malformação cerebral grave, a ponto de comprometer a possibilidade de vida extra-uterina, razão pela qual a Suprema Corte considerou legítimo o direito ao aborto por para da gestante. Na esteira do triste quadro da anencefalia, outras situações de grave anomalia eugênica vêm ensejando, também, a autorização judicial para a prática do aborto. Assim sendo, se a lei positiva não muda, mudando está o direito aplicável ao caso de aborto eugênico (por anencefalia ou outras deformações físicas ou psíquicas, que podem ser diagnosticadas com segurança em relação ao nascituro). Para estes casos excepcionais, podemos dizer que está ocorrendo um irreversível processo de descriminalização judicial da conduta abortiva. Considerações Finais Nosso sistema penal codificado, a nosso ver, encontra-se na contramão da história. Basta verificar que países extremamente católicos como é o caso da Itália e outros, extremamente conservadores, como é o caso dos Estados Unidos da América do Norte, há muito, já descriminalizaram o aborto. No Brasil, pune-se o auto-aborto e o aborto praticado por terceiro com ou sem o consentimento da gestante, obrigatoriamente, em qualquer situação, sem se dar conta das transformações socioeconômicas e culturais decorrentes do inexorável processo histórico. Por sua vez, os costumes e a própria moral já não mais admitem censurar e reprimir criminalmente o aborto motivado por fortes razões de ordem econômica, social ou eugênica. Não se trata de aplaudir, nem muito menos incentivar a prática abortiva, que deve ser evitada sempre que possível, mesmo porque as pessoas nela envolvidas (gestante e pessoas próximas) estarão diante de uma opção sempre dolorosa e dramática. Por isso, é preciso repensar nosso sistema jurídico em termos de controle da conduta abortiva. ____________________________________ João José Leal é Doutor em Direito Penal e Professor do Curso de Pós-Graduação em Ciência Jurídica da UNIVALI – Itajaí – SC. Promotor de Justiça aposentado e ExProcurador Geral de Justiça. Associado do IBCCrim e Membro da AIDP. -------------------------------------------------------------------------------[1] Para um estudo mais detalhado sobre a repressão criminal ao aborto, da Antiguidade ao momento atual, consultar: BRUNO, Aníbal. Crimes contra a Pessoa, cit., p. 156-160; HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, v. 5, p. 269-287. [2] Ob. cit., p. 157. [3] FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal, cit. p. 224; MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. Parte Especial, v. 2, cit. p. 93; JESUS, Damásio de. Direito Penal. Parte Especial, v. 2, cit., p. 119; NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, v. 2, cit., p. 49. [4] Utilizaremos o termo nascituro como categoria jurídicopenal para denominar o ser humano já concebido e em gestação, cujo nascimento se espera como fato jurídico futuro. Trata-se de termo de uso comum e consolidado na linguagem jurídica, há mais de um século. Adotado pelo Código Civil de 1916, continua prestigiado pelo atual Código Civil (art. 2º). Isto não impede de utilizarmos, também, outros termos sinônimos como embrião, feto, ser em gestão etc. que, dependendo do contexto, podem ter o mesmo sentido semântico e jurídicopenal. [5] TJSP: RJTJSP 32/487 e 35/237. [6] FRANÇA, Genival Veloso. Medicina Legal, cit., p. 229. [7] Ibidem. [8] JESUS, Damásio de. Direito Penal. Parte Especial, v. 2, cit., p. 123; MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. Parte Especial, v. 2, cit., p. 95; BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Crimes contra a Pessoa, cit., p. 67; NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, cit., p. 52; [9] TJSP: RJTJSP 67/322; RT 590/361. [10] TJSP: RT 425/310. [11] BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Crimes contra a Pessoa, cit., p. 67; MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. Parte Especial, v. 2, cit., p. 95. [12] RT 413/312. [13] TJSP: RT 503/326. [14] RT 493/284, 505/332, 556/339 e 697/286. [15] JESUS, Damásio de. Direito Penal. Parte Especial, v. 2, cit., p. 124; MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. Parte Especial, v. 2., cit., p. 96-7; BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Crimes contra a Pessoa, cit., p. 72; SILVEIRA, Euclides Custódio da. Direito Penal. Crimes contra a Pessoa, cit., p. 116. Sem unanimidade de entendimento, há decisões dos Tribunais, confirmando esta posição doutrinária: STF: RTJ 79/11 e 67/419; TJSP: RJTJSP: 95/387, 89/365 e 88/339; RT 438/328, 595/347 e 598/299. [16] JESUS, Damásio de. Direito Penal. Parte Especial, v. 2, cit., p. 129; MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. Parte Especial, v. 2, cit., p. 100. [17] Medicina Legal, cit., p. 226. [18] Idem, p. 227. [19] Aborto por Indicação Eugênica. RJTJSP 132/20-1. [20] TJSC: JC 83-84/699, RT 756/652; TJMG: RT 762/147; RT 756. [21] Aborto de Feto com Anencefalia: Ausência de Crime por Atipicidade. Revista Jurídica Notadez. Nº 322, agosto/2004, p. 110. [22] STF: ADPF 54, 01.07.2004. LEAL, João José. Breves anotações sobre a (ainda) incriminação do aborto: divórcio entre o rigor da lei positiva e a prática judiciária descriminalizadora. Disponível em http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=708. Acesso em 25.08.06.