Breves anotações sobre a (ainda) incriminação do aborto: divórcio

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Breves anotações sobre a (ainda) incriminação do aborto:
divórcio entre o rigor da lei positiva e a prática judiciária
descriminalizadora
João José Leal
Introdução
Informa a doutrina[1] que, na Antiguidade, não se punia o aborto. Com algumas exceções,
esta era a regra geral. Com o cristianismo, passou-se a ver no aborto uma forma de
homicídio, mas durante séculos o direito conviveu com a divergência teológica em torno do
momento em que o ente em gestação passava a ser portador de uma alma, quando então a
morte do nascituro constituía crime de homicídio. A resposta punitiva, geralmente,
consistia na morte do agente provocador.
Segundo informa Aníbal Bruno, para o Direito Canônico, a celeuma somente foi encerrada
no final do século XVIII, quando prevaleceu o entendimento de que, a partir do momento
da concepção, já existe vida humana que precisa de proteção jurídica.[2]
Atualmente, o aborto é um dos crimes que mais tem despertado a crítica dos doutrinadores.
Sua proibição e conseqüente repressão criminal é, realmente, um tema sobre o qual
desenvolveu-se e ainda se mantém intensa polêmica. Entre outras razões, a crítica surgiu
para questionar a conveniência política de se incriminar, da forma rígida e severa como
ocorre ainda hoje no Direito Penal brasileiro, a conduta abortiva. Esta posição doutrinária
de crítica à norma positiva é perfeitamente explicável, quando se verifica que, na maioria
dos países contemporâneos, o aborto deixou o campo das condutas criminalmente
proibidas, desde que praticado com a observância de certas condições previamente
estabelecidas na lei positiva.
Conceito e Objeto Jurídico
O termo abortamento, que poderia ser considerado para melhor expressar o sentido
semântico da ação abortiva, há muito deixou de ser utilizado. Consolidou-se, na linguagem
comum e médica, o uso corrente do vocábulo aborto,[3] que pode ser definido como a
interrupção da gravidez e a conseqüente eliminação da vida do nascituro.[4] Pode ser o
resultado de causas naturais (estado precário de saúde da gestante ou incompatível com a
gestação ou do próprio feto) ou acidentais (queda violenta ou movimento brusco).
Pode, também, ser conseqüência de ação humana voluntária. Neste caso, o aborto deve ser
entendido como a eliminação da vida intra-uterina, provocada voluntariamente por alguém
(gestante e/ou terceiro) durante a gravidez, ou seja, antes do parto. Esta hipótese abortiva é
a que interessa ao Direito Penal, que a descreve como um tipo penal cujas modalidades
típicas serão aqui rapidamente examinadas.
Para o Direito Penal, somente a gravidez normal, ou seja, intra-uterina pode ser objeto de
interrupção criminosa. O produto embrionário que se encontre fora da cavidade uterina não
constitui objeto de proteção da norma penal. Por isso, pode-se dizer que, em termos
estritamente penais, inexiste gravidez extra-uterina ou, ao menos, seria esta penalmente
irrelevante. Os casos anormais de gravidez extra-uterina são patológicas e sua interrupção
não constitui aborto.[5]
A ação abortiva somente terá relevância penal se atingir o nascituro (embrião ou feto) com
vida. Não importa se a fecundação ocorreu por meio natural ou por meio de inseminação
artificial. Desde que o ser embrionário encontre-se em gestação intra-uterina, há gravidez e
sua interrupção por ação humana constitui, em regra, crime.
O bem jurídico atingido pela ação típica abortiva é a vida humana em sua esfera intrauterina, ou seja, no estágio anterior ao momento do parto. Iniciado este, já não haveria
viabilidade jurídica de prática do crime de aborto e sim de infanticídio. Portanto, no caso de
auto-aborto, o feto ou embrião é o titular do único bem jurídico protegido pela norma penal,
cujo objeto é a vida humana. Frise-se que, para o Direito, o nascituro (feto ou embrião) não
é considerado pessoa humana em seu sentido jurídico restrito. É uma pessoa ainda em
formação, cuja efetiva personalidade depende de uma condição: o nascimento com vida.
Nos casos de aborto praticado por terceiro, o bem jurídico ofendido é a pessoa humana – a
gestante, em sua integridade física ou psíquica - como valor juridicamente protegível. Mas
a vida do feto ou do embrião é também atingida. Por isso, podemos dizer que aí ocorre uma
duplicidade de objetos jurídicos.
Forma Objetiva de Realização ou Tipo Objetivo
A lei positiva utiliza o verbo provocar (que significa dar causa, originar, promover ou
produzir), para tipificar a forma objetiva de realização da ação abortiva. É, portanto, crime
com forma livre de cometimento: toda ação humana apta a causar a interrupção da gravidez
enquadra-se na descrição objetiva do tipo penal em análise.
Assim sendo, pode o aborto ser cometido por meio de substâncias tóxicas[6] ou
bioquímicas: arruda, quinino, quebra-pedra, centeio espigado, entre outras (substância
vegetal tóxica), mercúrio, chumbo, fósforo,entre outras (substância mineral tóxica).
Pode ser provocado por meios mecânicos[7] ou físicos: instrumentos pontiagudos e pinças,
tamponamentos, duchas fortes e repetidas com água fria e quente e, principalmente, a
curetagem, que consiste numa verdadeira raspagem da cavidade uterina com uma cureta
(instrumento em forma de colher) com o fim de dali desprender o embrião ou o feto e
causar-lhe a morte. Esta é a forma mais eficaz de prática do aborto e, por isso, é utilizada
por médicos e pessoas leigas, conhecidas como aborteiras.
Teoricamente, é possível imaginar a provocação de aborto por meio de um intencional
processo de sofrimento moral ou psíquico dirigido à gestante, de tal modo que venha ela a
sofrer um aborto ou mesmo a causar um auto-aborto. A doutrina, praticamente unânime,
aceita esta hipótese.[8]
Desde que o meio empregado seja apto e a vontade seja dirigida para a interrupção da
gravidez, o crime será de aborto mesmo que o feto venha perecer após sua expulsão com
vida do útero materno.[9]
Embora a vida intra-uterina tenha início com a fecundação ou a formação do ovo (união
dos gametas masculinos e femininos), para a doutrina atual, o início da gravidez deve ser
admitido a partir do momento em que o óvulo, já fecundado, se aloja na cavidade uterina
(fenômeno da nidação). Com isto, admite-se que a utilização de aparelhos
anticoncepcionais como o DIU, que impede a implantação do ovo no útero e provoca sua
expulsão prematura, constitui conduta amparada pelo exercício regular de um direito.
Neste sentido, a jurisprudência já decidiu que a livre comercialização de medicamentos ou
produtos anticoncepcionais deve conduzir ao entendimento de que não pode haver aborto
criminoso, “pelo menos nos primeiros dias da concepção, antes que o feto manifeste
vida”.[10] Portanto, só haverá aborto criminalmente reprimido, quando a interrupção da
gravidez ocorrer após a implantação do ovo no útero.[11]
Num país de pobreza material e cultural extremas, não tem sido rara a utilização de ervas e
plantas “medicinais”, de rezas, de despachos de macumbas e de outras crendices ou práticas
supersticiosas, visando a provocação do aborto. Tratando-se de meios absolutamente
ineficazes, é lógico que devem ser tratados como verdadeiras hipóteses de tentativa
impossível.[12]
A ação abortiva somente terá relevância penal se atingir o nascituro (embrião ou feto) com
vida. Assim, mesmo se houver gravidez, mas ficar comprovada a inexistência de vida intrauterina, não haverá crime de aborto.[13] A hipótese será de tentativa impossível, por
impropriedade absoluta do objeto. O mesmo ocorrerá no caso de falsa ou suposta
gravidez,[14] hipóteses estas que ocorriam com certa freqüência quando os exames para
constatação da gravidez eram de eficácia relativa e de difícil acesso às pessoas carentes.
Formas Típicas do Crime de Aborto
Ao incriminar o aborto, o CP cindiu o fato criminoso em três figuras típicas: o aborto
praticado pela própria gestante; o aborto praticado por um terceiro, mas por ela consentido,
e o aborto praticado por terceiro, sem o conhecimento da gestante ou contra a sua vontade.
Prevê a lei positiva, também, dois casos em que a ação abortiva é legalmente admitida.
Essas figuras típicas serão objeto de análise a seguir.
Auto-Aborto e Aborto Consentido
A primeira figura típica é a do auto-aborto, descrita no art. 124 (1ª parte), com a seguinte
dicção: “Provocar aborto em si mesma” (...). A pena prevista é a detenção de um a três
anos. Portanto, haverá crime de auto-aborto quando a própria gestante provoca a
interrupção de sua gravidez, utilizando-se de um dos meios aptos a eliminar a vida do
nascituro. Trata-se de crime de mão própria ou de autoria assinalada: somente a gestante
poderá praticar, na condição de autora, esta forma típica de aborto.
Um terceiro poderá intervir como partícipe, instigando, incentivando ou prestando auxílio.
É uma exceção à regra da não admissibilidade de participação em crime de mão própria,
mas aqui existe previsão legal de um terceiro como autor de crime de aborto (tanto no art.
124 em análise, quanto nos arts. 125 e 126). E se um terceiro pode ser autor, pode, também,
e com maior razão, ser considerado partícipe da gestante que pratica o aborto em si própria.
A doutrina e a jurisprudência, majoritariamente, posicionam-se neste sentido
hermenêutico.[15]
A segunda conduta típica do art. 124, está assim descrita: “...ou consentir que outrem lho
provoque” (o aborto). Nesta hipótese, sendo a gestante penalmente capaz, dá ela o
consentimento para que um terceiro pratique o aborto. O crime aqui descrito é o da
gestante, por isso denominado de aborto consentido. É como se ela praticasse o aborto por
meio de uma terceira pessoa. Esta não comete o tipo do art. 124, pois sua conduta
criminosa está tipificada no art. 126.
A nosso ver, se não houver prova de que a gestante, conhecendo a intenção do terceiro,
manifestou-se contrária ao aborto, deve prevalecer o entendimento de que o consentimento
existiu, ao menos de forma tácita.
Aborto Provocado sem o Consentimento da Gestante
Esta hipótese típica de aborto está prevista no art. 125, do CP: “Provocar aborto, sem o
consentimento da gestante: Pena – reclusão de 3 (três) a 10 (dez) anos.” Por se tratar de
ação delitiva contra a vontade da gestante, a pena é mais severa, o que é perfeitamente
compreensível. Não é apenas a vida do nascituro que é atingida, mas a liberdade e a
integridade física da gestante, o que justifica a maior severidade da carga punitiva.
A recusa ou a falta de consentimento para o aborto constitui elemento do tipo e deve ser
demonstrada para que, ao causador do aborto, seja imputado o delito do art. 125. Se a
gestante for juridicamente capaz de consentir, é preciso ficar comprovado que o aborto foi
praticado mediante grave ameaça, violência ou fraude apta a conduzi-la a uma avaliação
equivocada da realidade.
São estas as formas de superar a recusa da gestante, previstas no parágrafo único do art. 126
em exame. Por outro lado, a falta de consentimento pode ser presumida, no caso de
“gestante não maior de 14 anos, alienada ou débil mental”, conforme dispõe esse mesmo
dispositivo. A expressão “alienada ou débil mental”, deve ser entendida com o mesmo
sentido da expressão doença mental ou deficiência mental, prevista no art. 26, caput, do CP.
Cabe ressaltar que este parágrafo único refere-se a elementos normativos que completam a
descrição típica do artigo anterior e isto representa uma impropriedade de técnica jurídica.
Aborto Consensual
A outra face do aborto consentido pela gestante, previsto na 2ª parte, do art. 124, é a do
aborto consensual, assim descrito no art. 126: “Provocar aborto com o consentimento da
gestante: Pena – reclusão de 1 (um a 4 (quatro) anos.” Aqui, o tipo descreve a conduta do
terceiro em relação a um único fato delituoso, que tem na outra margem da tipicidade
sempre a autoria delituosa da gestante. O mesmo fato é cindido pela lei para punir o
terceiro provocador, pelo crime do art. 126 e a gestante autorizadora do aborto, pelo crime
descrito no art. 124 (2ª parte).
O consentimento é elemento do tipo e deve ser processualmente demonstrado, sob pena de
se imputar ao terceiro provocador do aborto o crime mais grave previsto no art. 125. As
questões relativas à falta ou recusa de anuência para o aborto, que pode desconstituir a
forma típica ora em análise, já foram comentadas acima.
Formas ou Hipóteses Lícitas de Aborto
Embora mantenha uma posição conservadora em relação ao movimento descriminalizador
do aborto, nosso CP prevê duas hipóteses em que a interrupção da gravidez e conseqüente
eliminação da vida intra-uterina se torna um ato lícito. São as hipóteses de aborto
necessário e de aborto para eliminar gravidez resultante de estupro. Em ambos os casos, a
norma autorizadora exige que a ação abortiva seja praticada por médico. Examinaremos
estas duas hipóteses a seguir.
Aborto Necessário
Estabelece o art. 128:
“Não se pune o aborto praticado por médico: I – se não há outro meio de salvar a vida da
gestante;” (...).
Também denominado de aborto terapêutico, tem como fundamento fático a situação de
vida ou morte da gestante. Ressalte-se que a lei é demasiadamente rígida e somente
autoriza o aborto diante da provável morte da gestante, em decorrência do processo de
gravidez. Para a lei, não basta o diagnóstico de que a mãe corre risco de vida ou que seu
estado de saúde pode sofrer danos irreversíveis. Interpretada literalmente, a lei só admite o
aborto quando ficar demonstrado que a mãe não sobreviverá sem a interrupção da gravidez.
Somente nesta hipótese extrema é que poderá haver aborto lícito, com base na hipótese do
inciso I, do art. 128.
O dispositivo é de um rigor inadmissível. Mesmo que a lei não exija a atualidade ou
iminência da provável morte da gestante, para autorizar o aborto necessário, bastando que
seja futuramente certa, ainda assim a severidade é indiscutível. Na verdade, a norma
permissiva é desnecessária porque a ação abortiva já estaria justificada pela excludente do
estado de necessidade. Pouco importa que a eliminação do nascituro seja praticada para
evitar um mal futuro à pessoa da gestante.
Verifica-se um verdadeiro confronto de direitos e, no caso, salvar o direito à vida da
gestante, configura um indiscutível estado de necessidade. Tanto que, diagnosticada a
provável morte da gestante e o aborto vier a ser praticado por um leigo, este não cometerá
nenhum crime porque terá atuado sob a égide do estado de necessidade. Entretanto, na
hipótese de aborto necessário praticado pelo médico, entendemos que este atua amparado
pela excludente do exercício regular de um direito, pois é a própria lei que autoriza o
profissional a atuar para evitar o mal maior, que seria a morte da gestante.
Devemos reconhecer que os tribunais têm atenuado o rigor da exigência legal (somente
salvar a vida da gestante) para a admissão dos casos de aborto necessário. Além disso, o
avanço da ciência médica reduziu drasticamente os casos em que a gestante pode correr
sério risco de vida por causa de uma gravidez mórbida. Isto fez com que a hipótese legal
em exame somente se manifeste muito raramente.
Cremos que, constatada a probabilidade da morte, está o médico legalmente autorizado a
intervir para interromper a gravidez e realizar o aborto, sem depender de autorização da
gestante ou, eventualmente, de seu representante.
Também não depende o médico de autorização judicial, pois a situação equipara-se a de
uma intervenção cirúrgica necessária e, portanto, pode o médico praticar o aborto
necessário, quando diagnosticar que “não há outro meio de salvar a vida da gestante”. Além
disso, o próprio dispositivo penal dispensa qualquer espécie de autorização.
Aborto para Eliminar Gravidez Resultante de Estupro
Também denominado de aborto sentimental ou piedoso, está descrito no inciso II, do art.
128, com a seguinte dicção:
“Não se pune o aborto praticado por médico: se a gravidez resulta de estupro e o aborto é
precedido do consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”
O dispositivo abre uma segunda exceção em face da regra da punibilidade das diversas
modalidades de conduta abortiva. E não poderia ser diferente, porque seria injusto obrigar a
gestante de um ser que não desejou, mas que lhe foi imposto, a suportar o drama e o
sofrimento de uma gravidez maldita.
Ao descrever o tipo permissivo, a lei fixa alguns requisitos para a legítima aplicabilidade
desta causa de exclusão da ilicitude, por exercício regular de um direito. O primeiro, é de
que o aborto seja praticado por médico; o segundo, exige que a gravidez seja resultante de
estupro; o terceiro, exige que a gestante ou se representante legal manifeste o
consentimento. Cumpridos estes requisitos legais, o aborto praticado com o fim eliminar a
gravidez resultante de estupro torna-se uma conduta legalmente lícita.
Ficou superada a discussão sobre o procedimento para a realização do aborto, que venha a
interromper a gravidez resultante de um estupro. Durante muito tempo, grande parte da
doutrina entendeu ser necessário um procedimento civil ou criminal com o fim de obtenção
de autorização judicial para a prática do aborto necessário. Tal exigência representava mais
um tormento para a mulher grávida, em conseqüência de um crime de estupro. A
morosidade e a dificuldade de acesso à justiça transformavam a opção por esta hipótese
legal de aborto em mais uma via cruxis de profundo sofrimento para a gestante.
Hoje, o entendimento predominante é de que o médico está autorizado a proceder ao
aborto, sem a necessidade de recorrer ao judiciário. Para o médico atuar, basta a solicitação
e autorização da gestante, assumindo a responsabilidade da declaração, que deve mencionar
o fato com elementos suficientemente esclarecedores do fato criminoso. Se houver
Inquérito Policial ou processo criminal em andamento, a posição do médico fica mais
segura. Cabe-lhe tomar conhecimento das provas ali anexadas, principalmente do auto de
exame de conjunção carnal.
Ressalte-se que a norma em referência não estabelece qualquer outro requisito senão os três
acima mencionados. E onde a lei não restringe ou fixa exigência, não cabe ao intérprete
restringir, muito menos exigir. Portanto, é dispensável a autorização judicial para a
realização do aborto necessário, por parte de médico habilitado.[16]
É preciso reconhecer, no entanto, que tem sido comum a solicitação de permissão judicial
por parte de médicos, com o objetivo de se assegurar contra eventual responsabilidade civil
ou penal ou perante o Código de Ética. É o que aconselha o professor de Medicina Legal
Genival França: a autorização judicial ou do representante do Ministério Público, “deixará
o profissional em situação de não lhe caber, no futuro, nenhuma responsabilidade.”[17]
Aborto Eugênico ou Eugenésico
Questão que vem suscitando acesa polêmica doutrinária é a do aborto para interromper a
gravidez no caso de feto portador de grave anomalia física ou mental, resultante de fatores
genéticos. A interpretação literal das normas penais sobre a matéria e que acabamos de
examinar não permite outro entendimento senão o de que o aborto eugênico é, não só
proibido, como também criminoso. Não há previsão legal que excepcione a tipicidade desta
forma abortiva para lhe conferir condição jurídica de licitude penal.
No entanto, o Direito Penal não pode permanecer engessado por valores éticos concebidos
como a expressão de um determinado momento histórico, nem por conhecimentos
“científicos” que acabaram superados pelo progresso da Biologia, da Genética e da própria
Ciência Médica. É óbvio que a opção pelo denominado aborto eugênico deve ser fruto de
uma escolha consciente e de plena liberdade. É, portanto, uma questão essencialmente
moral. Mas isto não dispensa a contribuição substancial da Ciência Médica, para que o
juízo de valor sobre a legitimidade ética de se interromper a gravidez, em determinados
casos excepcionais, possa ser realizado com a necessária consciência e liberdade.
Na Medicina, grande parte dos profissionais tem se posicionado contra esta opção abortiva.
O principal argumento é o de que o progresso da ciência médica só tem legitimidade se
utilizado em favor da vida e do bem-estar da humanidade e não da morte do ser humano,
mesmo que considerado este ainda em seu estado de gestação embrionária. Para a corrente
contrária ao aborto eugênico, o nascituro, mesmo que portador de grave deformidade ou
anomalia física ou psíquica, tem o mesmo estado éticojurídico de dignidade humana que os
demais seres humanos e, por isso, merece a proteção da Medicina e do próprio Direito.
Genival França entende que ninguém pode negar aos seres deficientes o direito à vida, que
“precisa de proteção e amparo e nunca de repressão.” E arremata, afirmando:
“Qualquer forma de violência contra um indefeso e deficiente não é próprio da consciência
médica, nem compatível com a medicina do povo, pois subverte uma tradição que se
consagrou num projeto de voltar-se sempre para o bem do homem e da humanidade.”[18]
A nosso ver, a questão é bastante delicada e deve ser tratada com o devido cuidado ético,
que evite a prática abusiva de abortos com o fim ideológico de seleção e aprimoramento
genético da espécie humana. Esse discurso deve ser rejeitado com veemência, porque suas
premissas científicas são bastante discutíveis e seu fundamento éticojurídico é
absolutamente inadmissível. Tanto que os precedentes históricos conhecidos (Alemanha
nazista, principalmente) foram trágicos para a humanidade.
Entretanto, o momento éticojurídico que vivemos é bastante diferente daquele em que o
CP, com seus valores, princípios e suas normas repressivas foi concebido e positivado para
estabelecer o controle da sociedade brasileira. Esta sofreu profunda transformação ao longo
de quase um século de vigência. E o processo de mudança socioeconômica e cultural
continua de forma inexorável, com repercussão inevitável no campo dos valores éticos que
se encontram na base de legitimação das normas penais.
Conforme assinalou Alberto Silva Franco, a experiência nazista de purificação da raça,
tornou a palavra eugenia um verdadeiro tabu ideológico. Porém, com o passar do tempo,
esta expressão readquiriu força e prestígio científicos, especialmente no campo da
eugenésia restritiva, para o fim específico de impedir o nascimento de seres marcados por
uma acentuada carga degenerativa. E esclarece que “não se trata de conseguir uma raça de
super-homens,” pois “a indicação eugênica, na sua contextura moderna, tem um campo
limitado de aplicação e não pode ter a veleidade de provocar melhoras genéticas em escala
social”.[19]
Além disso, não podemos ignorar a realidade políticojurídica de inúmeros países que, após
muita discussão política, descriminalizaram o aborto, permitindo-o, desde que praticado
com a observância dos requisitos e condições estabelecidas pelo Direito. Muitas destas
legislações conferem à mulher o direito optar livremente pelo aborto durante as primeiras
semanas de gravidez. E a experiência demonstra que essas sociedades não são menos
humanas, nem menos fraternas ou solidárias, do que aquelas que, como a nossa, não
admitem o aborto eugênico.
A nosso ver, portanto, o Direito Penal brasileiro, em matéria de controle da conduta
abortiva, está marcando passo contra o progresso da Medicina e, o mais grave, contra os
costumes e a própria moral contemporânea.
Cabe ressaltar que, embora incriminado na lei positiva, o aborto eugênico tem sido
autorizado, mediante alvará concedido por juízes e confirmado por tribunais,
especialmente, nos casos de anencefalia.[20] São casos perfeitamente dignosticáveis, em
que o nascituro apresenta grave anomalia cerebral ou ausência completa de cérebro e que
tornam impossível a vida extra-uterina, ao menos, após alguns dias de sobrevida. Adel El
Tasse considera que, na hipótese de aborto por anencefalia, não há bem jurídico a proteger,
“eis que a morte se dá com o cessar das atividades do encéfalo, sendo este justamente
inexistente no feto possuidor da analisada deformidade”.[21]
Em voto proferido em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, o ministro
Marco Aurélio, embora reconhecendo que a vida constitui um bem a ser preservado a
qualquer custo, considerou que “não é justo condenar a mãe a meses de sofrimento.”[22]
Tratava-se de um caso de gravidez cujo feto apresentava malformação cerebral grave, a
ponto de comprometer a possibilidade de vida extra-uterina, razão pela qual a Suprema
Corte considerou legítimo o direito ao aborto por para da gestante.
Na esteira do triste quadro da anencefalia, outras situações de grave anomalia eugênica vêm
ensejando, também, a autorização judicial para a prática do aborto.
Assim sendo, se a lei positiva não muda, mudando está o direito aplicável ao caso de aborto
eugênico (por anencefalia ou outras deformações físicas ou psíquicas, que podem ser
diagnosticadas com segurança em relação ao nascituro). Para estes casos excepcionais,
podemos dizer que está ocorrendo um irreversível processo de descriminalização judicial
da conduta abortiva.
Considerações Finais
Nosso sistema penal codificado, a nosso ver, encontra-se na contramão da história. Basta
verificar que países extremamente católicos como é o caso da Itália e outros, extremamente
conservadores, como é o caso dos Estados Unidos da América do Norte, há muito, já
descriminalizaram o aborto. No Brasil, pune-se o auto-aborto e o aborto praticado por
terceiro com ou sem o consentimento da gestante, obrigatoriamente, em qualquer situação,
sem se dar conta das transformações socioeconômicas e culturais decorrentes do inexorável
processo histórico.
Por sua vez, os costumes e a própria moral já não mais admitem censurar e reprimir
criminalmente o aborto motivado por fortes razões de ordem econômica, social ou
eugênica. Não se trata de aplaudir, nem muito menos incentivar a prática abortiva, que deve
ser evitada sempre que possível, mesmo porque as pessoas nela envolvidas (gestante e
pessoas próximas) estarão diante de uma opção sempre dolorosa e dramática. Por isso, é
preciso repensar nosso sistema jurídico em termos de controle da conduta abortiva.
____________________________________
João José Leal é Doutor em Direito Penal e Professor do Curso de Pós-Graduação em
Ciência Jurídica da UNIVALI – Itajaí – SC. Promotor de Justiça aposentado e ExProcurador Geral de Justiça. Associado do IBCCrim e Membro da AIDP.
-------------------------------------------------------------------------------[1] Para um estudo mais detalhado sobre a repressão criminal ao aborto, da Antiguidade ao
momento atual, consultar: BRUNO, Aníbal. Crimes contra a Pessoa, cit., p. 156-160;
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, v. 5, p. 269-287.
[2] Ob. cit., p. 157.
[3] FRANÇA, Genival Veloso de. Medicina Legal, cit. p. 224; MIRABETE, Júlio Fabrini.
Manual de Direito Penal. Parte Especial, v. 2, cit. p. 93; JESUS, Damásio de. Direito Penal.
Parte Especial, v. 2, cit., p. 119; NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal, v. 2, cit., p. 49.
[4] Utilizaremos o termo nascituro como categoria jurídicopenal para denominar o ser
humano já concebido e em gestação, cujo nascimento se espera como fato jurídico futuro.
Trata-se de termo de uso comum e consolidado na linguagem jurídica, há mais de um
século. Adotado pelo Código Civil de 1916, continua prestigiado pelo atual Código Civil
(art. 2º). Isto não impede de utilizarmos, também, outros termos sinônimos como embrião,
feto, ser em gestão etc. que, dependendo do contexto, podem ter o mesmo sentido
semântico e jurídicopenal.
[5] TJSP: RJTJSP 32/487 e 35/237.
[6] FRANÇA, Genival Veloso. Medicina Legal, cit., p. 229.
[7] Ibidem.
[8] JESUS, Damásio de. Direito Penal. Parte Especial, v. 2, cit., p. 123; MIRABETE, Júlio
Fabrini. Manual de Direito Penal. Parte Especial, v. 2, cit., p. 95; BARROS, Flávio
Augusto Monteiro de. Crimes contra a Pessoa, cit., p. 67; NORONHA, E. Magalhães.
Direito Penal, cit., p. 52;
[9] TJSP: RJTJSP 67/322; RT 590/361.
[10] TJSP: RT 425/310.
[11] BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Crimes contra a Pessoa, cit., p. 67;
MIRABETE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. Parte Especial, v. 2, cit., p. 95.
[12] RT 413/312.
[13] TJSP: RT 503/326.
[14] RT 493/284, 505/332, 556/339 e 697/286.
[15] JESUS, Damásio de. Direito Penal. Parte Especial, v. 2, cit., p. 124; MIRABETE,
Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. Parte Especial, v. 2., cit., p. 96-7; BARROS, Flávio
Augusto Monteiro de. Crimes contra a Pessoa, cit., p. 72; SILVEIRA, Euclides Custódio
da. Direito Penal. Crimes contra a Pessoa, cit., p. 116. Sem unanimidade de entendimento,
há decisões dos Tribunais, confirmando esta posição doutrinária: STF: RTJ 79/11 e 67/419;
TJSP: RJTJSP: 95/387, 89/365 e 88/339; RT 438/328, 595/347 e 598/299.
[16] JESUS, Damásio de. Direito Penal. Parte Especial, v. 2, cit., p. 129; MIRABETE,
Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. Parte Especial, v. 2, cit., p. 100.
[17] Medicina Legal, cit., p. 226.
[18] Idem, p. 227.
[19] Aborto por Indicação Eugênica. RJTJSP 132/20-1.
[20] TJSC: JC 83-84/699, RT 756/652; TJMG: RT 762/147; RT 756.
[21] Aborto de Feto com Anencefalia: Ausência de Crime por Atipicidade. Revista Jurídica
Notadez. Nº 322, agosto/2004, p. 110.
[22] STF: ADPF 54, 01.07.2004.
LEAL, João José. Breves anotações sobre a (ainda) incriminação do aborto: divórcio
entre o rigor da lei positiva e a prática judiciária descriminalizadora. Disponível em
http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=708. Acesso em 25.08.06.
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