A TEORIA DINÂMICA DE KANT 1 Ednilson Gomes Matias PPG Filosofia, Universidade Federal do Ceará (CNPq / CAPES) [email protected] Resumo A seguinte pesquisa tem por objetivo analisar a filosofia da natureza desenvolvida por Immanuel Kant como o sistema dos conceitos e princípios a priori necessários para a fundação de uma ciência “pura” da natureza. O filósofo defende que todas as propriedades inerentes à natureza corpórea surgem como resultado do conflito dinâmico entre forças originárias de repulsão e de atração. Neste sentido, a concepção das forças originárias estabelece as condições de possibilidade da constituição do conceito de matéria e, consequentemente, as bases para a compreensão da filosofia da natureza. Introdução Os avanços na investigação da natureza promoveram para as ciências matemáticas e experimentais, a partir do século XVIII, o status de detentoras do autêntico conhecimento objetivo. Para legitimar a tarefa da filosofia diante deste contexto, Immanuel Kant desenvolveu sua doutrina transcendental como teoria das condições de possibilidade e de validade do conhecimento. Segundo Kant, a ciência da natureza, para ser considerada “autêntica”, deveria fundar suas leis não na experiência, mas sim nos princípios a priori da filosofia transcendental. Nos Princípios metafísicos da ciência da natureza, Kant elabora um sistema para a fundação desta ciência “autêntica” da natureza. Para isto, faz-se necessário promover a constituição do conceito fundamental da natureza corpórea, a saber, o de matéria. No entanto, como veremos, o conceito de matéria pressupõe a concepção das forças originárias de atração e de repulsão como condição de possibilidade. O seguinte trabalho pretende investigar de que forma tais forças se estabelecem como essenciais para a compreensão da filosofia kantiana da natureza e para a fundação desta “autêntica” ciência natural. 1 O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do Governo Brasileiro voltada para a formação de recursos humanos. A filosofia da natureza No âmbito de sua filosofia teórica, Kant desenvolveu uma concepção de natureza 2 enquanto conjunto das coisas que se apresentam sensivelmente a nós sob leis objetivas. Esta concepção pode ser tomada no sentido formal, enquanto o conjunto das regras sob as quais todos os fenômenos se conformam, ou no sentido material, como a totalidade dos fenômenos. A natureza material divide-se em dois reinos: corpóreo, que abrange os objetos dos sentidos externos, e pensante, que compreende os objetos dos sentidos internos. Deste modo, a concepção de natureza deve ser compreendida como conjunto dos fenômenos físicos e psíquicos em conformidade a leis universais. Portanto, é possível uma dupla teoria da natureza, a saber: doutrina dos corpos e doutrina da alma, respectivamente correspondentes à natureza corpórea e à pensante. Na obra Princípios metafísicos, Kant argumenta que, para adquirir o status legítimo de ciência 3, uma teoria da natureza deve dispor de leis naturais conhecidas a priori e não simplesmente derivadas da experiência. A filosofia da natureza desenvolvida nesta obra consiste no sistema dos conceitos e princípios a priori necessários para a fundação desta ciência natural “autêntica” e se subdivide em duas partes 4: filosofia transcendental e fisiologia. A primeira, desenvolvida na Crítica da razão pura, examina o sistema dos conceitos e princípios a priori do entendimento e da razão que possibilitam uma natureza em geral (formal). A segunda, elaborada nos Princípios metafísicos da ciência da natureza, pesquisa a aplicação da filosofia transcendental e da matemática aos objetos de uma natureza particular (corpórea), para a fundamentação de uma ciência “autêntica” da natureza. Kant estabelece a constituição do conceito de matéria segundo princípios metafísicos 5, os quais são apresentados em quatro capítulos, sob os títulos de foronomia, dinâmica, mecânica e fenomenologia. Estes princípios metafísicos consistem na aplicação do aparato categorial da filosofia transcendental no âmbito da natureza corpórea e correspondem, respectivamente, a cada grupo de categorias (quantidade, qualidade, relação e modalidade). A foronomia consiste numa análise do movimento dos pontos composicionais enquanto quantidade; a dinâmica trata das forças motrizes originárias enquanto qualidade da matéria; a mecânica diz respeito à relação externa entre os objetos físicos; e a fenomenologia estuda a modalidade da representação do movimento ou repouso da matéria perante os sentidos 2 Cf. KANT, 1990, p. III / 2010, B 165 / 2008, A 71-75. Acerca das diversas concepções de natureza desenvolvidas por Kant: Cf. SCHÜTZ, 2009. 3 Cf. KANT, 1990, p. VI. 4 Cf. KANT, 1990, p. VIII-IX / 2010, B 873. Acerca da interpretação da CRP como a parte transcendental de uma filosofia da natureza: Cf. WESTPHAL, 1995, p. 387 e também LOPARIC, 2003, p. 4. 5 Cf. KANT, 1990, p. XI. externos. Cada princípio metafísico acrescenta ao conceito de matéria uma nova determinação 6 ao submetê-lo às quatro funções dos conceitos puros do entendimento. Neste sentido, Kant afirma que a filosofia particular da natureza corpórea é indispensável, uma vez que proporciona exemplos concretos para a realização dos conceitos e princípios puros da filosofia transcendental 7. Ao campo da natureza corpórea pertencem os objetos da experiência exterior (fenômenos físicos), aos quais Kant atribui o conceito de matéria. Tal conceito não é dado a priori e, por conseguinte, precisa ser constituído a partir de suas propriedades empíricas. Todas as propriedades inerentes à natureza corpórea derivam do movimento, visto que somente por meio deste os sentidos podem ser afetados. No entanto, o conceito de movimento tem como causa um conceito anterior, o qual Kant denomina força motriz 8. Desta forma, o conceito de matéria pressupõe a concepção de forças motrizes fundamentais como sua condição de possibilidade. Mas quais são estas forças e de que forma as mesmas se estabelecem como essenciais para a constituição do conceito de matéria e, por conseguinte, para a compreensão da filosofia kantiana da natureza? Teoria dinâmica das forças originárias de atração e repulsão O cerne da filosofia kantiana da natureza consiste no desenvolvimento de uma teoria dinâmica 9 das forças originárias constitutivas do conceito de matéria. Como vimos, as propriedades da matéria são derivadas do movimento, o qual, argumenta Kant, pode ser de dois tipos, a saber, de afastamento ou de aproximação. Uma vez que todo movimento é efeito de uma força motriz, esta se estabelece como fundamental para a constituição do conceito de matéria e, portanto, como originária. Há duas espécies de forças motrizes originárias, a saber, as repulsivas e as atrativas: as primeiras causam o afastamento e as segundas causam a aproximação das matérias entre si. A seguir, explicitaremos como a força repulsiva é reflexivamente pressuposta no conceito dinâmico de matéria e em que sentido a constituição do mesmo implica a oposição da força atrativa. 6 Cada princípio metafísico define da seguinte maneira o conceito de matéria: a foronomia como o “móvel no espaço” (KANT, 1990, p. 1); a dinâmica como o “móvel enquanto enche um espaço” (KANT, 1990, p. 31); a mecânica como o “móvel enquanto tem, como tal, força motriz” (KANT, 1990, p. 106); a fenomenologia como o “móvel na medida em que, enquanto tal, pode ser objeto da experiência” (KANT, 1990, p. 138). 7 Cf. Kant, 1990, p. XXIII. Acerca da interpretação da filosofia particular da natureza corpórea como “prova” dos princípios puros apresentados na CRP: cf. LOPARIC, 2005, p. 315 e também ROUANET, 2010, p. 8. 8 Cf. KANT, 1990, p. 33. 9 Acerca da centralidade da teoria dinâmica das forças no interior da filosofia kantiana da natureza: cf. WESTPHAL, 1995, p. 382. Segundo Kant, o conceito de matéria, em sua definição dinâmica 10, é apresentado como o móvel à medida que enche um espaço. Encher um espaço significa resistir ao movimento de penetração de outro móvel mediante uma força motriz particular. Esta propriedade de resistência inerente ao conceito de matéria é efeito de uma força fundamental: a chamada força repulsiva. Esta força originária de repulsão 11 é definida como a força motriz pela qual uma matéria causa o afastamento ou resiste à aproximação de outras. Mediante tal força, um corpo material pode agir contra outro, comprimindo a constituição interna deste. Todavia, quanto maior a ação compressiva sofrida, maior a reação de resistência do corpo material que sofre compressão. Segundo Kant, a matéria pode ter seu espaço infinitamente comprimido 12, embora nunca possa ser desta forma penetrada por outra. A matéria resiste à penetração de outra, independentemente da ação da força compressiva nela aplicada, devido a uma propriedade inerente à mesma: a chamada impenetrabilidade. No entanto, a força de repulsão não é por si só suficiente para a constituição do conceito de matéria, visto que a ação apenas desta promoveria uma dispersão dos pontos materiais ao infinito. Neste sentido, não haveria quantidade determinada de matéria em nenhum espaço determinável, ou seja, só haveria espaços vazios e não matéria. Para a constituição do conceito de matéria, portanto, faz-se necessária a reação de outra força motriz contrária a esta força repulsiva 13, a saber, a chamada força de atração. A força originária de atração 14 é definida como a força motriz pela qual uma matéria causa a aproximação ou resiste ao afastamento de outras. Mediante a força atrativa, todas as partes da matéria atuam sobre todas as outras partes de forma imediata 15, ou seja, independentemente do contato entre os corpos materiais 16. Desta forma, esta força age sobre a matéria sem mediações através do espaço vazio e, visto que não é limitada por nenhuma matéria intermediária, estende-se até ao infinito, e se estabelece como fundamento da gravitação 17. 10 Cf. KANT, 1990, p. 31-33. Cf. KANT, 1990, p. 35. 12 Cf. KANT, 1990, p. 39. 13 Cf. KANT, 1990, p. 57. 14 Cf. KANT, 1990, p. 34-35. 15 Esta força atrativa, quando age por intermédio das forças repulsivas, mediante o contato entre as matérias, deve ser considerada atração aparente. A atração é considerada verdadeira quando se efetua sem mediação das forças repulsivas, isto é, independentemente do contato físico entre as matérias. 16 Cf. KANT, 1990, p. 82. 17 Para uma melhor compreensão, tomemos o exemplo de Kant sobre a atração entre a Lua e a Terra: A Lua é impelida pela Terra a dela se aproximar de modo imediato, visto que estão a milhares de milhas de distância uma da outra. Isto pode ser considerado como uma atração por meio do espaço inteiramente vazio, ou seja, como ação da força de atração verdadeira. (Cf. KANT, 1990, p. 61-62). 11 Porém, por ação apenas das forças atrativas as partes se aproximariam umas das outras e o espaço permaneceria vazio, sem que se formasse qualquer matéria determinada 18. Deste modo, tanto a força originária de atração quanto a de repulsão são indispensáveis para a constituição do conceito de matéria, visto que, mediante a ação de apenas uma destas forças, a matéria não poderia ser de modo algum determinada no espaço. Entretanto, estas forças são contrárias entre si e, ao mesmo tempo, tal conflito dinâmico é necessário, pois de outro modo não haveria matéria. Conflito entre as forças originárias Por um lado, a força atrativa causa a aproximação dos móveis entre si e, neste sentido, é responsável pela constituição interna da matéria. Por outro, a força repulsiva causa o afastamento mútuo entre os móveis e, portanto, proporciona à matéria a propriedade de resistir à penetração de outras em sua constituição interna. Portanto, as forças originárias atrativas e repulsivas são igualmente necessárias para a constituição do conceito de matéria, pois se somente uma fosse assumida, não haveria constituição material, mas sim apenas espaço vazio 19. Desta forma, fica claro que o conceito de matéria pressupõe uma dinâmica das forças, pois somente mediante a contraposição entre uma força atrativa originária e uma força repulsiva primordial são estabelecidas as condições de possibilidade da matéria 20. Segundo o princípio metafísico da dinâmica, o conflito entre forças originárias se estabelece em termos da “qualidade da matéria sob os títulos de realidade, negação e limitação” 21, correspondentes respectivamente às categorias da qualidade. A força repulsiva corresponde à realidade, ao afirmar-se enquanto inerente a matéria constituída internamente e ao estabelecer a impenetrabilidade da matéria como propriedade essencial. Em oposição, a força atrativa, ao agir de forma contrária à força repulsiva, corresponde à negação desta, pois se houvesse apenas força atrativa, todo o espaço seria penetrado e não haveria matéria. Por fim, o conflito entre as forças originárias corresponde à limitação da força repulsiva pela atrativa, visto que a constituição da matéria é resultado da necessária ação de oposição entre as forças originárias. Portanto, a constituição da matéria se dá mediante este conflito dinâmico entre tais forças originárias, visto que a ação isolada de uma destas forças pode promover o afastamento ou a aproximação dos pontos em movimento no espaço, mas não determinar um corpo material internamente constituído. 18 Cf. KANT, 1990, p. 57-58. Cf. KANT, 1990, p. 59. 20 Cf. KANT, 1990, p. 70. 21 Cf. KANT, 1990, p. 80-81. 19 Conclusão A filosofia kantiana da natureza tem como objetivo central desenvolver uma teoria dinâmica das forças originárias de atração e repulsão constitutivas do conceito de matéria. Segundo o princípio metafísico da dinâmica, como vimos, o conceito de matéria é apresentado como o móvel enquanto enche um espaço mediante uma força motriz. Neste sentido, o conceito de matéria é constituído enquanto resultado do conflito dinâmico entre as forças motrizes originárias de atração e repulsão. Tais forças originárias são fundamentais, ou seja, não podem ser derivadas de outras, e a relação dinâmica entre elas estabelece as condições de possibilidade do conceito de matéria. Isto se dá porque, se houvesse somente força repulsiva, sem a ação da atrativa, a matéria se dispersaria até o infinito e não haveria constituição determinada de matéria em nenhum espaço determinável. De forma contrária, pela ação apenas da força atrativa, sem ação da repulsiva, todas as partes da matéria se aproximariam sem limitações, reduziriam o espaço que ocupam e não haveria grau determinado de matéria. Neste sentido, somente por meio da oposição dinâmica entre tais forças os pontos composicionais em movimento podem constituir matéria. Portanto, a concepção das forças originárias de atração e repulsão é indispensável para a compreensão da filosofia kantiana da natureza e, consequentemente, para o estabelecimento das bases para uma ciência natural “autêntica”. Referências FRIEDMAN, Michael. Kant and the exact sciences. Cambridge: Harvard University Press, 1992. KANT, Immanuel. (1781) Crítica da razão pura. (ed. A e B) Tradução de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. - 7ª ed. - Lisboa-Portugal: Fundação Calouste Gulbenkian, 2010. _____(1783) Prolegómenos a toda a metafísica futura que queira apresentar-se como ciência. Tradução de Artur Morão. Lisboa-Portugal: Edições 70, 2008. _____(1786) Primeiros princípios metafísicos da ciência da natureza. Tradução de Artur Morão. Lisboa-Portugal: Edições 70, 1990. LOPARIC, Zeljko. A semântica transcendental de Kant. – 3ª ed. rev. - Campinas: UNICAMP, 2005. _____. As duas metafísicas de Kant. Kant e-Prints, Campinas, v. 2, n. 5, 2003, p. 1-10. OLIVEIRA, Marcos Alberto. Razão problematizante e investigação científica na metafísica kantiana da natureza. Dissertação de Mestrado. Departamento de Filosofia, UNICAMP, 2000. ROUANET, Luiz Paulo. A Filosofia da Natureza de Kant. Kant e-Prints, Campinas, v. 5, n. 1, 2010, p. 1-13. SCHÜTZ, Rosalvo. A concepção multifacetada de natureza em Kant. Veritas, Porto Alegre, v. 54, n. 1, 2009, p. 238-256. WATKINS, Eric (org.). Kant and the sciences. New York: Oxford University Press, 2001. WESTPHAL, Kenneth R. Kant’s Dynamic Constructions, in Journal of Philosophical Research, 1995, p. 381-429. Disponível em: http://s3.amazonaws.com/academia.edu. documents /658135/KRW-1995-Kants-Dynamic-Constructions-JPRpp.pdf