I SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS, VIOLÊNCIA E POBREZA: a situação de crianças e adolescentes na América Latina hoje A CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS (HUMANOS) DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO BRASIL E O PAPEL DA UNIVERSIDADE PÚBLICA Zelimar Soares Bidarra1 Luciana Vargas Netto Oliveira2 Francieli Jaqueline Gregório3 Andressa Bremm4 1. Introdução Esse trabalho faz um recorte temático sobre a problemática da construção das prerrogativas dos direitos humanos no Brasil, para o que realiza um breve relato sobre o significado e o processo histórico de construção desses direitos. Posteriormente, problematiza-se como eles são ou podem ser efetivados através das políticas públicas. Esses direitos têm importância significativa no processo de construção do Estado de Direito, cuja essência deposita-se no governo de leis e no funcionamento dos poderes que garantem as relações na sociedade. Os princípios do Estado de Direito encontram-se na Constituição de 1988, no Título ll, que dispõe sobre os Direitos e Garantias Fundamentais. Eles traduzem-se em normas jurídicas que são estabelecidas em leis ordinárias, cuja efetivação deve se dar por meio das políticas públicas. Entretanto, os parâmetros que definem estas políticas são transitórios, 1 Professora Adjunta do Curso de Serviço Social da UNIOESTE (PR), coordenadora do Programa de Apoio às Políticas Sociais (PAPS), membro Grupo de Pesquisa GEMDEC/UNICAMP e do Grupo de Pesquisa: Cultura, Relações de Gênero e Memória (UNIOESTE). E-mail: [email protected] 2 Professora Assistente do Curso de Serviço Social da UNIOESTE (PR), coordenadora do Projeto de Extensão “Ponto de Apoio aos Conselhos de Políticas Sociais” (PACPS), graduada em Serviço Social, bacharel em Direito, mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná e membro Grupo de Pesquisa “Cultura, Relações de Gênero e Memória” da UNIOESTE. E-mail: [email protected] . 3 Acadêmica do terceiro ano do Curso de Serviço Social da UNIOESTE, bolsista de Iniciação Científica PIBIC/UNIOESTE/ITAIPU e colaboradora do projeto de extensão: “Ponto de Apoio aos Conselhos de Políticas Sociais” (CSS/CCSA). 4 Acadêmica do segundo do Curso de Serviço Social da UNIOESTE, bolsista de Iniciação Científica PIBIC/UNIOESTE e colaboradora do projeto de extensão: “Ponto de Apoio aos Conselhos de Políticas Sociais” (CSS/CCSA). passíveis de modificações e dependem da capacidade de interferência dos sujeitos no sentido de sua consecução, respeitando as premissas dos direitos humanos. No âmbito das políticas voltadas para a área da criança e do adolescente, os responsáveis por fornecer as diretrizes para sua elaboração são os Conselhos dos Direitos existentes nos três níveis da federação e os Conselhos Tutelares, cujas intervenções devem garantir os direitos fundamentais de crianças e adolescentes, conforme dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990. Desse modo, o trabalho de interlocução e de mediação política no âmbito desses conselhos pode gerar novas possibilidades de interferência na concepção das políticas públicas, bem como perspectivas analíticas e vieses mais alargados para o debate sobre esses direitos fundamentais. Contribuir para manter acesos os processos de disputas sobre as condições da definição de tais direitos é fundamental para as diferentes organizações da sociedade. Nesse sentido, o apoio da universidade pública no suporte e assessoria a esses segmentos da sociedade organizada se faz necessário e fundamental para que esses sujeitos possam comprometer-se com as lutas sociais que são imprescindíveis para que os direitos de crianças e adolescentes garantidos na esfera normativa sejam efetivados em conformidade com os direitos humanos. Assim, apresenta-se brevemente alguns resultados das ações de extensão realizadas através do “Ponto de Apoio aos Conselhos de Políticas Sociais” (PAPCS) na interlocução com esses Conselhos. 2. Antecedentes do Direito Moderno: um caminho para os direitos humanos Para uma breve compreensão dos caminhos percorridos do direito primitivo ao direito moderno, Liszt Vieira (2005, p. 15-16) explica que no início das civilizações havia o direito carismático, revelado pelos profetas que interpretavam a vontade de Deus, ou dos Deuses, e que predominava nas sociedades primitivas, cuja estrutura se baseava nos usos e costumes, não havendo ainda leis objetivas independentes das ações. Posteriormente, no direito tradicional, as leis eram impostas por poderes seculares ou teocráticos. As ações eram julgadas a partir de normas legais transmitidas pela tradição, sempre num sentido particularista, pois ainda não se pensava em termos de princípios universais, o que veio ocorrer somente com o advento do direito natural. “O direito natural inaugura o Direito Moderno baseado em princípios, na lei e na administração especializada da justiça” (VIEIRA, 2005, p. 16). As normas se tornaram fruto de acordos racionais fundamentados em princípios, expressando a vontade de um poder soberano que regula as relações sociais através do aparato jurídico. Nesse sentido, surgiu especialmente na Europa “[...] uma tradição de garantias do indivíduo que propiciou o surgimento da doutrina contratualista, a qual inverteu a fonte e a origem do poder de Deus para os próprios homens” (GRECO FILHO, 1989, p. 28). Sob as idéias produzidas no ambiente do Iluminismo5, o conceito de “contrato social” instituiu uma primeira aproximação com a idéia de direitos humanos na era moderna. Para os autores da tradição contratualista, os indivíduos passaram a pactuar comportamentos e condutas individuais e coletivas, renunciando alguns direitos em prol da preservação de outros, como a vida, a propriedade, a liberdade e a igualdade. O contrato pode ser uma expressão da superação da instabilidade ou um aperfeiçoamento, mediante a segurança das conquistas obtidas por alguns, a partir da saída do “estado de natureza”6. Assim, esses direitos a serem preservados se encontrariam vinculados não somente à sociedade da época, mas também ao sistema estatal, cuja função precípua seria de protegê-los. Para os defensores da tese da existência de um Direito Natural, esses direitos, eternos e inalienáveis, têm uma vigência que antecede a organização das instituições político-jurídicas da sociedade política. O argumento que sustenta essa tese fundamenta-se na compreensão de que, independentemente de seu 5 Compreendido como um movimento de idéias críticas sobre a tradição cultural e institucional então vigente até o século XVIII, cujo objetivo era difundir o uso da razão para dirigir o processo da vida em todos os seus aspectos (BOBBIO; MATTEUCI; PAQUINO, 1992, p. 605). 6 O “estado de natureza” é um constructo teórico formulado e admitido por alguns autores da tradição contratualista. Tal constructo é utilizado para definir o período que antecede a construção jurídiconormativa da vida social, isto é, a positivação das leis e a fundação do Estado como ente políticojurídico. reconhecimento pelo Estado, tais direitos existem porque estão diretamente relacionados com a natureza do homem. Como diria Rousseau (NASCIMENTO, 1991), foi preciso “muitas luzes” para que um determinado segmento social em ascensão, a burguesia, obtivesse seu reconhecimento como nova classe social, cujas idéias subvertem a lógica da compreensão do mundo. Mediante as “certezas das luzes” o homem passa a ser visto como centro do Universo. Constrói-se uma nova concepção jurídica baseada no Jusnaturalismo, a qual assenta-se nos princípios da igualdade formal e da universalidade do Direito. O Jusnaturalismo, compreendido como corrente de pensamento cujos postulados afirmavam a existência de direitos formalmente consagrados, advindos da natureza e não propriamente do homem, espalhou-se por toda a Europa e América a partir do século XVII, servindo como base doutrinária para as declarações de direito do século posterior. Desse modo, os documentos declaratórios de direitos traduziram os manifestos políticos das novas forças sociais emergentes, especialmente da burguesia, sendo que ao Estado caberia apenas declarar, positivamente, os direitos individuais já existentes, uma vez que estes eram deduzidos da natureza humana. Para que fossem usufruídos, era vedado ao Estado intervir na esfera desses direitos individuais, cabendo-lhe zelar por sua observância e conservação, sendo esses a vida, a liberdade, a segurança, a propriedade e a resistência à opressão. A igualdade dos homens era reconhecida na medida em que se conferia a titularidade de tais direitos a todos os indivíduos, “indistintamente”. Assim, o Direito Moderno caracterizou-se pelas rupturas na compreensão do direito natural e doutrinário-religioso, posto que tal direito passa a figurar no plano da racionalidade, sendo fruto da razão humana e não mais do poder divino. Nesse movimento de idéias, a secularização política foi um fator determinante para o estabelecimento de direitos fundamentais do homem na medida em que possibilitou o rompimento com a idéia de que a lei humana e os poderes públicos estavam subordinados ao direito divino. Para Liszt Vieira (2005, p. 16), “O paradigma do Direito Natural que acompanhou a Modernidade foi a base doutrinária das revoluções burguesas baseadas no individualismo moderno”. Desse modo, o Jusnaturalismo teve uma dimensão histórica fundamental ao fornecer os princípios e os pressupostos jurídico-políticos para as declarações de direitos do homem proclamados pelas Revoluções Francesa e Americana, a partir de seus elementos de universalidade, imutabilidade, intemporalidade e acessibilidade pela razão, intuição ou revelação (LAFER, 1991, p. 39). 3. O Estado de Direito e os direitos humanos O processo de construção do cidadão como sujeito de direitos tem sua intensificação no século XVIII. Esse século foi marcado por diversas revoluções que acabaram por contribuir para a constituição da classe trabalhadora e para a formulação da consciência histórica da burguesia, que percebeu a sua importância nas transformações sociais, políticas, econômicas e culturais. Essas classes construíram uma nova sociedade na qual a igualdade torna-se uma possibilidade jurídico-formal. Nesse sentido, é necessário concretizar e tornar público essa possibilidade de que os homens são todos iguais. Tanto a revolução Americana quanto a Francesa tiveram a preocupação de explicitar um documento formalizador da defesa de direitos. Na perspectiva da Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, tem por finalidade proteger os direitos e instruir os indivíduos contra os atos do governo (ODALIA, 2003, p. 166). Nessa Declaração, os direitos são classificados em duas categorias: das Liberdades e dos Poderes, segundo Ferreira Filho (1999, p. 23-25). No que diz respeito às Liberdades tem-se: as liberdades em geral, a liberdade de locomoção, de opinião, de expressão e de propriedade. A categoria dos Poderes engloba os direitos de participar na construção da “vontade geral” e de controlar as ações dos agentes públicos. Os direitos declarados, por serem originários da compreensão de Direito Natural, apresentam as seguintes características: são imprescritíveis, pois, não se perdem com o passar do tempo; inalienáveis, pois ninguém pode abrir mão da própria natureza; individuais porque cada ser humano é um ente perfeito e completo, mesmo se considerado isoladamente; universais, pois pertencem a todos os homens sem distinção (FERREIRA FILHO, 1999, p. 22-23). Dessas características se origina o Estado de Direito, cuja essência se constrói sob o ideal do governo de leis e não das vontades subjetivas dos homens. No pensamento filosófico do século XVIII, o ato de remeter-se às leis era equiparado ao de realizar justiça. O Estado de Direito procura estruturar seus poderes para garantir as relações de produção e de troca com a finalidade de constituir as relações da sociedade burguesa. Esta operação se expressa através da figura jurídica do sujeito de direito7, caracterizado como ser individual, isolado, singular e destituído de historicidade social (coletiva ou de classe), conforme Bidarra (1996). O Estado de Direito se sustenta e se instrumentaliza a partir de uma concepção normativa de legitimidade e de legalidade, cuja aplicabilidade supõe o campo dos conflitos interindividuais. 4. A difícil (re) construção do Estado Democrático de Direito no Brasil A realidade da classe trabalhadora brasileira apresenta inúmeras fragilidades com relação ao acesso a cidadania, a qual foi recentemente (início do século XX), conquistada por estratos expressivos dessa classe através de movimentos e lutas empreendidos pelos segmentos organizados, especialmente pelas camadas populares, em torno de demandas e reivindicações relativas principalmente ao espaço urbano. Historicamente, o sistema político-jurídico brasileiro vem sendo construído mediante uma frágil e titubeante cultura política reivindicatória, isso devido ao modo como se deu a formação social e política desde o período da colonização do país. Prevaleceram os interesses e o tipo de formação que as elites instituíram no sistema político e social8, a fim de melhor compatibilizar a realização dos seus interesses de segregação sócio-espacial do segmento popular. Ainda hoje as idéias de autonomia, liberdade e cidadania estão muito distantes de se traduzirem em práticas democráticas e participativas, para além dos círculos das elites. 7 A denominação sujeito de direito compreende uma construção conceitual do Direito que impõe aos “operadores” uma concepção subjetivista do ser, formalizada pela situação ideal-abstrata da “igualdade de todos perante a lei” (BIDARRA, 1996). 8 Para uma visão mais detalhada do tema, consultar a obra de CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. Nesse sentido, ao se concordar com a premissa que os direitos humanos são conquistas de padrões de civilidade e cujos resultados objetivos se remetem às lutas cívicas que transcenderam as fronteiras de Estados nacionais, logo é possível deduzir as dificuldades para viabilizá-los em países como o Brasil, cuja intitulada “cultura cívica” (de elite) tem inúmeras dificuldades para superar a hierarquia social e a tipologia da segregação construídas e consolidadas pelos projetos de dominação social implementados pelas elites. Todavia, tais projetos são passíveis de alterações quando as correlações de forças sociais conseguem obstaculizar e impedir os avanços dos processos políticosociais que agudizam as desigualdades sociais. Assim, é que a Constituição de 1988 e as diferentes legislações ordinárias que dela decorreram, tal como o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), tornou possível a realização de um compromisso sócio-estatal (o que para alguns autores foi intitulado de “nova contratualidade social”) que inseriu na esfera do reconhecimento da cidadania um conjunto mais amplo de indivíduos e de direitos, os quais sem o lastro da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Assembléia das Nações Unidas em 1948 e reiterada pela Declaração dos Direitos Humanos de Viena em 1993, não conseguiriam ter adentrado no campo da titularidade e da normatividade jurídica. A partir dessas premissas e com base nos princípios da Carta Magna, tem-se que o Estado brasileiro, na condição de Estado de Direito, deve reger-se, tanto nas relações internas como nas relações internacionais, pelo princípio da “prevalência dos direitos humanos” (Art. 4, inciso II, da Constituição Federal de 1988). Essa determinação constitucional vem resultando na adesão progressiva, em alguns casos até incondicional, do Brasil aos Pactos e Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Além disso, a Constituição, no Título II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, traz os princípios básicos do Estado de Direito, sendo eles: o “princípio da legalidade”, que condiciona as restrições dos direitos fundamentais à forma da lei; o “princípio da igualdade”, cuja essência exige que cada direito seja igual para todos; e o “princípio da justicialidade”, que submete todo e qualquer desrespeito de direitos à apreciação e julgamento pelos tribunais competentes. No espectro dessas relações, “a Constituição de 1988 estabelece a mais precisa e pormenorizada carta de direitos de nossa história [...]” (PROGRAMA..., 1996, p. 09), pois sua promulgação encerrou um ciclo da longa transição democrática brasileira. Além disso, abriu caminho para a consolidação do governo civil e do regime democrático, pautado na garantia dos direitos políticos, econômicos e sociais. Todavia, para tornar exeqüíveis tais direitos, a Constituição passou a indicar a necessidade de criar e colocar em funcionamento um determinado conjunto de instrumentos políticos que venha a contribuir para o aprofundamento da construção do Estado de Direito brasileiro. Os direitos historicamente conquistados e declarados universalmente, posteriormente reafirmados no Brasil, não são apenas um conjunto de princípios sobre os quais a sociedade deve se pautar, mas asseguram direitos individuais e coletivos os quais pressupõem ações concretas, isto é, intervenções diretas do Estado. Para que isso ocorra, este conjunto de direitos e garantias fundamentais constitucionais deve se traduzir em normas jurídicas claras e precisas, estabelecidas em leis ordinárias, cujo objetivo seja proteger os interesses fundamentais da pessoa humana. É importante assinalar que, quando se trata de atuar nos efeitos agravadas das situações de desigualdades sociais, em geral, a explicitação dessas leis ordinárias apresenta-se no cotidiano através das políticas públicas. A realização das políticas públicas é importante para manter viva a força dos cidadãos que depositam, em determinados processos sociais, todas as suas formas de resistência contra a lógica expulsiva e excludente do modo capitalista de produção. Mesmo sem ultrapassar o perímetro dessa lógica, as políticas públicas são uma mostra concreta de que os processos de enfrentamento das forças sociais não são jogos de soma zero, mas são processos de transformações realizados pela capacidade de negociação política. São essas transformações no modo de conceber o papel das políticas públicas que foram produzidas a partir da Constituição de 1988. Até então, a orientação das políticas públicas era muito mais no sentido de habilitar os “cidadãos” para o exercício dos direitos civis e políticos, do que para os direitos sociais, que são os direitos coletivos construídos a partir daquilo que a sociedade estabelece como um patamar razoável de sociabilidade. Para Sérgio Abranches (1987), o caráter público das políticas públicas corresponde ao grau de comprometimento e de responsabilidade da sociedade para com o seu processo de sociabilidade e de interações múltiplas. Elas representam o padrão civilizatório conquistado, pois expressam algumas das formas de partilha e de distribuição da riqueza e, sobretudo, o caráter das lutas, a capacidade de resistência e de negociação que os sujeitos coletivos são capazes de construir nas experiências políticas. As políticas públicas, mais do que garantirem modos de acomodação dos interesses de caráter suplementar ou compensatório, expressam os acordos construídos em torno das disputas por valores simbólicos e culturais dos diferentes segmentos sociais apartados pelas desigualdades. Os parâmetros que definem a abrangência dessas políticas são transitórios e passíveis de reformulação, desse modo, o conteúdo dessas políticas depende da capacidade dos sujeitos coletivos de ampliarem ou reduzirem o seu nível de interferência sobre os espaços decisórios onde são pactuadas as agendas dessas políticas. No entanto, neste conteúdo deve estar preservado o compromisso de operacionalizar os princípios fundamentais dos direitos humanos. Não se deve perder de vista o fato de que as lutas e as conquistas dos direitos no Brasil nasceram de processos de aprendizagem política de sujeitos coletivos que, a princípio, não tinham uma larga experiência e nem tradição política. Nesse sentido, os direitos de cidadania não podem ficar circunscritos à existência de alguns registros legais que abordam de modo difuso e pouco operacional alguns princípios formais codificados como direitos universais do indivíduo, cuja propalada igualdade e eqüidade são abrangidas apenas no campo imaginário e abstrato das idéias e raramente se configuram em realidade concreta. Nesse novo contexto de redemocratização, para diferentes entidades, organizações e movimentos dessa sociedade a tarefa precípua tem sido a de buscar tornar efetivo tal “compromisso” para aqueles sujeitos que são os destinatários dessas políticas. E, desse modo, percebe-se que o engajamento da universidade pública, em inúmeros aspectos, pode contribuir para disseminar e aumentar o potencial do reclame por tais direitos, bem como aumentar a capacidade de articulação para que a realização desses direitos venha a se dar em conformidade com a prerrogativa dos direitos humanos. 5. A interlocução entre a universidade e a sociedade: um traçado para a consolidação de direitos (humanos) para crianças e adolescentes Por vezes, a ação de extensão universitária configura-se como um desafio aos processos de construção e de sistematização de conhecimentos que contêm o potencial de aproximar sujeitos sociais que, em geral, estão em campos políticos9 diferenciados, mas que na totalidade sócio-política vivem sob as mesmas relações objetivas. Sendo assim, mediante as iniciativas de extensão pode-se contribuir para que a universidade, em sua inserção social, consiga expressar a pluralidade de funções do conhecimento e que ele se ponha como instrumento de expressão da cultura de uma comunidade e como fator decisivo no processo de integração da sociedade. Desse modo, na sua atuação cotidiana a universidade não pode prescindir de conjugar o ensino teórico e prático, a pesquisa e a extensão. De forma sintética, aqui discute-se e apresenta-se alguns dos resultados, preliminares, decorrentes da ação de uma experiência da universidade sobre as condições que interferem no exercício do papel estratégico do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente nos processos de definição de políticas públicas para essa área, principalmente as que contemplam ações e serviços que se destinam a prevenção e o atendimento às violações sofridas por crianças e adolescentes. Para que essas políticas possam avançar na construção do entendimento social de que crianças e adolescentes têm direito ao atendimento diferenciado e prioritário porque “são sujeitos em condições especiais de desenvolvimento”, elas precisam articular as premissas fundamentais dos documentos declaratórios dos direitos humanos e direitos sociais. Para isso, elas devem submeter-se e abranger às prerrogativas da Doutrina da Proteção Integral que foram transpostas para o corpus do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/1990). A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 22710, traduz o compromisso do Estado com a criança e o adolescente trazendo também a base da Doutrina que 9 Segundo Bourdieu (2002, p. 164-5), “O campo político, entendido ao mesmo tempo como campo de forças e campo de lutas que têm em vista transformar a relação de forças que confere a esse campo a sua estrutura em um dado momento, não é um império [...].” 10 “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (BRASIL, 1997, p. 116) rege o Estatuto da Criança e do Adolescente, o qual instituiu para defesa de direitos os Conselhos dos Direitos nas três esferas da Federação, sendo estes: Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA); Conselho Estadual e Conselho Municipal dos Diretos da Criança e do Adolescente e o Conselho Tutelar (pelo menos um em cada município). Estes conselhos são responsáveis por formular políticas públicas que visem efetivar os direitos desse segmento populacional a partir da Doutrina de Proteção Integral, a qual requer ações efetivas e articuladas nos diferentes níveis da esfera pública e por parte do Estado, a fim de que se possa garantir às crianças e aos adolescentes o acesso pleno aos direitos estabelecidos pela Constituição Federal e pelo ECA. A partir do fortalecimento dos vínculos da universidade com as demandas e a realidade dos municípios e da região em que se insere, torna-se possível a realização de projetos que busquem atender as prioridades identificadas pela comunidade. Desse modo, o Ponto de Apoio aos Conselhos de Políticas Sociais (PACPS)11, usualmente denominado de “Ponto”, concretiza um conjunto de atividades que procura construir um vínculo orgânico entre a universidade, através do Curso de Serviço Social, e os interesses e necessidades da sociedade na defesa e garantia dos direitos de suas crianças e adolescentes. O “Ponto” teve origem a partir do acúmulo de um conjunto de experiências de cursos de capacitação de conselheiros na área da assistência social e dos direitos da criança e do adolescente que o Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente/CEDCA-PR e o Conselho Estadual da Assistência Social (CEAS/PR), desde o ano de 2000, têm efetivamente financiado com recursos de seus fundos. Não é demais destacar que no caso da área da criança e do adolescente a ação de capacitação de conselheiros constitui-se como um Programa Permanente do CEDCA-PR, com direito a destinação específica anual para o desenvolvimento do conjunto das iniciativas que são deliberadas para cada ano. Outro dado relevante é que desde o início dos cursos de capacitação de conselheiros, docentes de Cursos de Serviço Social e de outras áreas, integrantes das universidades públicas 11 Nessa trajetória construiu-se o projeto de extensão universitária do “Ponto”, que tem vinculação com o permanente Programa de Apoio às Políticas Sociais (PAPS), do Colegiado de Curso de Serviço Social da UNIOESTE. O “Ponto” está projetado para desenvolver interlocuções de estudo, pesquisa e de informações entre docentes e acadêmicos, por ora, do quadro do Curso de Serviço Social e os Conselheiros e Gestores da Política Pública da área da Criança e do Adolescente, no raio de abrangência da UNIOESTE. paranaenses, tiveram participação ativa nos processos de definição, construção das propostas e de implementação desses cursos de capacitação. Isso têm possibilitado um acúmulo ímpar de experiência nessa área. Portanto, com o “Ponto” delimita-se a interlocução e apoio aos órgãos envolvidos com a formulação e a implementação das políticas para a área da criança e do adolescente. O objetivo é assegurar caminhos para se interagir técnica e politicamente com os Conselhos dos Direitos e Conselhos Tutelares visando o fortalecimento do processo de descentralização, participação popular e controle social. Com a intenção de conhecer “a personalidade histórica” dos sujeitos que estão atuando na construção da política de atenção à criança e ao adolescente no município de Toledo (oeste do Paraná) fez-se um levantamento para caracterizar aqueles que na atual gestão (2005-2007) estão encarregados de traçar os contornos da política para esse segmento. A investigação possibilitou que traçasse um perfil dos Conselheiros os Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) e do Conselho Tutelar (CT) : CONSELHO MUNICIPAL DOS DIREITOS CONSELHO TUTELAR DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE SEXO SEXO FEMININO MASCULINO FEMININO MASCULINO 5 1 5 0 IDADE IDADE 18 a 25 anos 0 18 a 25 anos 1 25 a 30 anos 02 25 a 30 anos 3 30 a 35 anos 01 30 a 35 anos 0 35 a 40 anos 01 35 a 40 anos 2 40 a 45 anos 0 40 a 45 anos 0 45 a 50 anos 02 45 a 50 anos 0 55 anos ou mais 0 55 anos ou mais 0 ESCOLARIDADE ESCOLARIDADE INCOMPLE INCOMPL COMPLETO COMPLETO TO ETO Fundamental Fundamental 0 0 0 0 Médio Médio 0 0 0 1 Superior 3 1 Superior 0 1 Superior e Pós Superior e Pós 2 0 3 1 – Graduação – Graduação Fonte: Questionário aplicado aos Conselheiros dos Direitos e Tutelares do Município de Toledo (PR). Percebe-se, pelos dados apresentados, que o número de mulheres componentes de ambos os conselhos é significativo. Ao longo da história, vêm sendo delegadas às mulheres as tarefas e profissões voltadas ao cuidado com pessoas, como ocorre, por exemplo, nas áreas de Enfermagem, Pedagogia, Psicologia, Serviço Social, dentre outras. Nesse sentido, observa-se que a composição dos conselhos estudados não contraria esse processo histórico-cultural. Em relação à idade, observa-se que os conselheiros tutelares são mais jovens do que os conselheiros dos direitos, situados numa faixa etária de até 40 anos. Um dado relevante refere-se ao nível de escolaridade dos conselheiros, notando-se que a grande maioria possui nível superior completo e um número significativo com pós-graduação. Presume-se que o nível de formação desses sujeitos possa influir positivamente na qualidade da prestação de seus serviços e na compreensão do importante papel que desempenham na construção, desenvolvimento e controle das políticas públicas da área em que atuam. Na investigação realizada buscou-se identificar as principais necessidades desses conselheiros para uma atuação mais consistente no âmbito da referida política, ou seja, que assuntos apontariam para discussão e aprofundamento, seja em forma de oficinas, mini-cursos, palestras ou grupos de estudos. Os temas que mais se destacaram foram: prostituição infantil, substâncias psicoativas, violência doméstica, violação dos direitos da criança e do adolescente, família, abrigamento. Para a concretização dessas demandas estão sendo materializados projetos de pesquisa, com alunos bolsistas de iniciação científica, na área da violência doméstica e sexual contra crianças e adolescentes no município de Toledo e, para problematizar a chamada “questão das drogas”, a partir de uma outra chave de entendimento que não a da abordagem criminalizada como “questão de polícia”, foi realizado um mini-curso sobre a temática das substâncias psicoativas dentro de uma reunião ampliada do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Enfim, progressivamente, a cada ação desenvolvida pelo “Ponto” está-se confirmando a inserção da universidade no cumprimento de seu papel social e, principalmente, fortalecendo teórica e metodologicamente os conselheiros que atuam na área da criança e do adolescente para que os direitos destes sejam garantidos a partir de políticas públicas efetivas e emancipatórias. Enfim, destaca-se como primordial o engajamento de todas as esferas da sociedade, e notadamente da universidade pelo seu papel formador, na luta pela defesa e garantia dos direitos humanos, traduzindo-os em políticas públicas universais que possibilitem o acesso das gerações em desenvolvimento ao pleno gozo dos direitos fundamentais a elas inerentes. 6. Referências ABRANCHES, Sérgio H. et all. Janeiro: Zahar, 1987. Política social e combate à pobreza. Rio de BIDARRA, Zelimar Soares. Os Movimentos de Invasão de Solos Urbanos e a Democratização Brasileira: a “linguagem de direitos” e as demandas por justiça. Dissertação defendida junto ao Programa de Pós-graduação da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996. BOBBIO, N.; MATTEUCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de Política. Trad. Carmem C. Varriale et all. – 4. ed. – vol. 1, Brasília, DF: Ed. Universidade de Brasília, 1992. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. – 5. ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. 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