dissertação

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PRISCILA DE LIMA
DE LIBERTOS A HABILITADOS
Interpretações populares dos alvarás anti-escravistas na América
portuguesa (1761-1810)
CURITIBA
Inverno de 2011
PRISCILA DE LIMA
DE LIBERTOS A HABILITADOS
Interpretações populares dos alvarás anti-escravistas na América
portuguesa (1761-1810)
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre
no Programa de Pós-graduação em História
da Universidade Federal do Paraná, na
Linha de Pesquisa Espaço e Sociabilidades,
sob orientação do Prof. Dr. Luiz Geraldo
Silva.
CURITIBA
Inverno de 2011
Catalogação na Publicação
Aline Brugnari Juvenâncio – CRB 9ª/1504
Biblioteca de Ciências Humanas e Educação - UFPR
Lima, Priscila de
De libertos a habilitados: interpretações populares dos
alvarás anti-escravistas na América portuguesa (1761-1810) /
Priscila de Lima. – Curitiba, 2011.
145 f.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Geraldo Silva
Dissertação (Mestrado em História) – Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.
1. Escravidão - Portugal. 2. Escravidão – Brasil. 3. Escravos libertos. 4. Escravos – Direitos. 5. Escravidão na literatura.
6. Liberdade. I. Título.
CDD 306.362
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
SETOR DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES.
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
R u a G a i - Carneiro, 460, 7o andar, sala 716, fone/fax + 55 (41) 3360-5086,
80.060-150, Curitiba, PR, Brasil.
E-mail: [email protected] Website: www.poshistoria.ufpr.br
PARECER DA BANCA EXAMINADORA
Os membros da
Programa
de
Pós-Graduação
Banca
em
Examinadora
História
da
designada
Universidade
pelo Colegiado
Federal
do
do
Paraná
(PGHIS/UFPR) para realizara argüição da Dissertação de Mestrado de Priscila de Lima,
intitulada:
De
libertos
a
habilitados.
Interpretações
populares
dos
alvarás
antiescravistas na América portuguesa (1761-1810), após terem inquirido a aluna e
realizado
a
avaliação
do
trabalho,
são
de
parecer
pela
sua...Ã^.NTO.
completando-se assim todos os requisitos previstos nas normas desta Instituição para a
obtenção do Grau de Mestre em História.
Curitiba, vinte e nove de agosto de dois mil e onze.
mu/r
Profa Dra Joseli Mãria Nunes Mendonça (UFPR)
2 o Examinador
AGRADECIMENTOS
Ao professor Luiz Geraldo Silva, por ter aceitado me orientar no mestrado, por ter proposto
o tema geral dessa pesquisa, pelos “puxões de orelha” em momentos de hesitação e por suas
observações rigorosas ao trabalho.
Aos colegas da disciplina de Seminário I e II, pelas considerações sobre a pesquisa e
sugestões referentes à metodologia. À professora Joseli Nunes Mendonça, por sua dedicação
tão cativante nas aulas e pelas sugestões dadas por ocasião do exame de qualificação. Ao
professor Magnus de Mello Pereira, por sua argüição no exame de qualificação.
Também agradeço à CAPES pela bolsa concedida e à Fundação Araucária pelo auxílio
financeiro à viagem de pesquisa aos arquivos da cidade do Rio de Janeiro.
Gostaria de registrar meu afeto e gratidão para com alguns amigos, bem como lhes pedir
desculpas pela ausência durante o período do mestrado: ao André Carvalho, amigo sincero e
gentil; à Fabiana, cuja amizade vai além de nossos laços sanguíneos; às amigas de longa
data, Graciele e Angel; ao Stefani, pela boa companhia e pela tradução do resumo; à Christy,
salvadorenha com sotaque curitibano, pelas conversas agradáveis.
À família do Fernando, pelo apoio e compreensão. Pelos domingos regados a boas conversas e
intensos campeonatos de playstation. Ni, você é o melhor!
Às minhas “meninas”, mãe e nona, que com carinho e compreensão apoiaram e incentivaram
minhas decisões, empenhando esforços para que eu chegasse até aqui. O amor que une essas
três gerações é infinito. Também agradeço ao meu pai, Ivo.
Ao Fernando Prestes, em primeiro lugar, pela “perfeita simetria” que nos une; por nesses
quase cinco anos de convivência ter se tornado minha metade, sem a qual eu ficaria
incompleta; por ser meu companheiro em todos os aspectos, fazendo de simples “voltinhas”
pelas ruas momentos de felicidade; obrigado pelas palavras de incentivo e lucidez quando
batia aquele “desesperinho”. Dedico a você o trabalho ora concluído, pois muito dele deve-se
às nossas discussões sobre historiografia e fontes.
iii
SUMÁRIO
RESUMO ..................................................................................................................
v
ABSTRACT .............................................................................................................. vi
LISTA DE ABREVIATURAS ................................................................................
vii
INTRODUÇÃO ........................................................................................................
1
1
PORTUGAL POMBALINO: REFORMAS, ABSOLUTISMO E OS
GRUPOS SOCIAIS
1.1
Monarquia ilustrada e as teorias sobre a organização da sociedade .......... 13
1.2 Reforço do poder real e o fim das notas de inabilidade ............................
2
3
20
1.3
Escravidão e pensamento jurídico-social em Portugal no século XVIII ... 30
1.4
Literatura e escravidão: a disseminação das idéias ilustradas ................... 34
ESCRAVIDÃO E LIBERDADE: OS ALVARÁS POMBALINOS DE
1761 E 1773 E A DIVISÃO DO IMPÉRIO
2.1
População escrava e livre de cor: Portugal e Brasil ..................................
44
2.2
Demandas de pardos e pretos anteriores à década de 1760 ....................... 50
2.3
O alvará de 19 de setembro de 1761 e seu impacto nos escravos do
Brasil ......................................................................................................... 60
2.4
Escravidão e ilustração: os alvarás pombalinos de 1761 e 1773 ..............
73
O ALVARÁ DE 16 DE JANEIRO DE 1773 E SEU IMPACTO SOBRE
AS ASPIRAÇÕES DE ESCRAVOS E HOMENS LIVRES DE COR NA
AMÉRICA PORTUGUESA
3.1
Os primeiros rumores sobre o alvará de 16 de janeiro de 1773 na
América portuguesa ................................................................................... 81
3.2
Do ler ao ouvir dizer: redes de sociabilidade, instrução e poder entre
pardos e negros .......................................................................................... 88
iv
3.3
Direitos de escravos: maus-tratos e jusnaturalismo em requerimentos de
liberdade .................................................................................................... 100
3.4
“Hábeis para todos os ofícios, honras e dignidades”: o impacto do alvará
de 1773 sobre o status dos homens de cor livres e libertos ....................... 112
CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................
129
FONTES E BIBLIOGRAFIA .................................................................................
133
v
RESUMO
As diretrizes ilustradas perseguidas pelo Estado português durante parte do reinado de
D. José I (1750-1777) deram início a reformas que tiveram como um de seus resultados a
mudança na forma como vários grupos sociais eram concebidos. Categorias sociais
tradicionalmente estigmatizadas foram elevadas à condição de vassalos habilitados. Neste
contexto foi decretado o alvará de 16 de janeiro de 1773, o qual previa, por um lado, o fim
gradual da escravidão negra em Portugal e, por outro, a extinção da categoria de libertos. Esta
dissertação versa sobre o impacto político e social desta lei na América portuguesa no que diz
respeito aos anseios de negros e pardos, escravos e livres. A documentação que dá suporte à
pesquisa constitui-se principalmente de requerimentos, cartas e representações enviadas à
apreciação régia durante a segunda metade do século XVIII e primeiros anos do XIX. Nela
encontram-se discursos arquitetados em prol das aspirações desses sujeitos, bem como
pareceres emitidos pelas autoridades coloniais e metropolitanas, nos quais se buscou
identificar os argumentos legais, filosóficos e morais empregados. Nestes registros observouse que as demandas tinham como foco a mudança de status social, fosse, no caso dos
escravos, para a condição de libertos, fosse buscando o reconhecimento da diferenciação
social por pardos e negros livres e libertos.
Palavras-chave: reformismo ilustrado; pardos livres; escravos; status social; América
portuguesa.
vi
ABSTRACT
The illustrated guidelines followed by the Portuguese State during the reign of D. José
I (1750-1777) ushered in reforms that had as a result a change in how various social groups
were designed. Stigmatized social categories traditionally have been elevated to the status of
vassals enabled. In this context was enacted the charter of 16 january 1773, which provided,
the one hand, the end of black slavery in Portugal and, on the other, the extinction of the
category of freedmen. This dissertation deals with the political and social impact of this law in
Portuguese America in relation to the desires of blacks and mulattoes, slave and free. The
documentation that supports the research is mainly on applications, letters and representations
sent to the examination region during the second half of the eighteenth and early nineteenth
centuries. In it we can find dicourses architected to support the aspirations of these
individuals, as well as opinions issued by the colonial authorities and metropolitan areas, in
which it sought to identify the legal arguments, philosophical and moral employed. In these
records it was observed that the demands were focused on the change in social status, were in
the case of slaves to the condition of freedmen, were in seeking the recognition of social
differentiation by free mulattos and freed.
Keywords: illustrated reformism; free pardos (mulattos); slaves; social status; portuguese
America.
vii
LISTA DE ABREVIATURAS
APM – Arquivo Público Mineiro
AHU – Arquivo Histórico Ultramarino (Portugal), Projeto Resgate
CX. – caixa
DOC. – documento
D.I. – Documentos Interessantes Para a História e Costumes de São Paulo
RIHGB – Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
INTRODUÇÃO
I – Do tema
A presente dissertação versa sobre o impacto político e social exercido pelos alvarás
anti-escravistas pombalinos nos anseios de negros e pardos, tanto escravos como livres, da
América portuguesa durante a segunda metade do século XVIII e anos iniciais do XIX. A
primeira lei que visou abater gradativamente a escravidão em Portugal foi o alvará de 19 de
setembro de 1761, o qual procurou dar fim ao suprimento externo de escravos para aquele
reino mediante a proibição da entrada em seus portos de cativos provenientes das colônias,
principalmente da América. A partir dessa lei, seria concedida liberdade automaticamente aos
escravos que adentrassem em Portugal, o que significava equiparar a chegada no reino à
liberdade. Contudo, antevendo possíveis conseqüências dessa determinação, o texto legal
deixava evidente que os escravos do ultramar não deveriam, de forma alguma, desertar de
suas terras em busca da liberdade em solo europeu, pois todos aqueles que lá chegassem
seriam reconduzidos aos lugares da onde haviam partido. 1 Seguiu-se à proibição do tráfico
outra medida complementando-a, esta mais incisiva. Trata-se do alvará de 16 de janeiro de
1773, que previa, por um lado, a liberdade imediata dos escravos de quarta geração de
cativeiro, ou seja, daqueles cuja condição jurídica procedia das bisavós, e, em relação ao
futuro, a todos os que nascessem a partir da publicação da lei. Ao mesmo tempo, decretou-se
a extinção da categoria de libertos, firmando que todos os agraciados com a liberdade tornarse-iam habilitados para todos os ofícios, honras e dignidades. 2
A despeito de este alvará ter sido destinado somente aos escravos residentes em
Portugal, as notícias sobre sua existência alastraram-se pelo império português, chegando
rapidamente até a América, onde grande parte da população era formada por escravos e
homens de cor livres. Ao longo do presente estudo veremos que o conhecimento dessa lei,
bem como de seu substrato ideológico, deu margem a manifestações de negros e pardos que
percebiam as possibilidades inovadoras proporcionadas pela legislação pombalina no que
dizia respeito à concretização de um de seus maiores anseios, qual seja, a elevação de status
1
Cf: Alvará de 19 de Setembro de 1761. Proibindo o transporte de Negros escravos do Brasil para o Reino. In:
SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações.
Suplemento à Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia de Luiz Correa da Cunha, 1842. p. 811-812.
2
Cf: Alvará com Força de Lei de 16 de janeiro de 1773. LARA, Silvia. H. Legislação sobre escravos africanos
na América portuguesa. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (Dir. e Coord.). Nuevas Aportaciones a la Historia
Jurídica de Iberoamérica. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000. p. 359.
2
social. No que concerne aos escravos, tratava-se da obtenção da alforria, e, no caso dos
homens livres de cor, da reivindicação da condição de habilitados.
De fato, a tese central da presente dissertação é a de que os alvarás pombalinos de 19
de setembro de 1761 e, principalmente, o alvará de 16 de janeiro de 1773 alteraram a natureza
dos discursos sobre a liberdade no âmbito do império português. Assim, sua principal
problemática é identificar como escravos e homens livres de cor arquitetavam suas demandas
num período no qual os referenciais típicos da sociedade corporativa, hierarquizada e
desigual, de Antigo Regime passavam a ser minados por princípios ilustrados. Sobre esse
aspecto, cabe salientar o quadro marcado pela ausência de pesquisas de fôlego voltadas para o
potencial político desses alvarás quando apropriados pelas populações negras e pardas da
América portuguesa. É no interior deste panorama historiográfico lacunar que se insere a
presente pesquisa, a qual visa ampliar as discussões respeitantes ao campo das idéias políticas
surgidas entre homens livres de cor e escravos a partir de suas interpretações das sobreditas
leis.
Para que o impacto mental causado pelos sobreditos alvarás possa ser compreendido é
imprescindível entender o lugar social destinado a escravos e seus descendentes livres numa
configuração social corporativa como era a portuguesa da época moderna. Nessa, concebia-se
a sociedade em geral como um corpo orgânico composto por partes consideradas como
naturalmente desiguais. Trata-se, pois, de uma estrutura hierarquizada, na qual a cada parte do
corpo destinavam-se direitos, privilégios e obrigações específicas. 3 No que diz respeito aos
escravos, sua integração no império português ocorria a partir de um estatuto jurídico que lhes
conferia a condição de propriedade, visto que estavam sujeitos ao arbítrio e domínio de outros
homens. 4 Nesse ordenamento, a passagem do cativeiro para o estado da liberdade era
majoritariamente dependente do arbítrio senhorial e realizada através das alforrias. Essa
dinâmica constituiu parte essencial do sistema escravista desenvolvido na América portuguesa
desde fins do século XVII até grande parte do XIX, dando origem a uma extensa camada de
afro-descendentes livres, principalmente a partir de fins do século XVIII. 5
3
HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviatã: Instituições e poder político, Portugal – século XVII.
Coimbra: Almedina, 1994. p. 295-323; HESPANHA, Antonio Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A
representação da sociedade e do poder. In: MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. O Antigo Regime
(1620-1807), v. 4. Lisboa: Editorial Estampa, 1993. p. 121-155.
4
MATTOS, Hebe. A escravidão moderna nos quadros do Império português: O Antigo Regime em perspectiva
atlântica. In: BICALHO, M. F; FRAGOSO, J; GOUVÊA, M. F. (Org.). O Antigo Regime nos trópicos: a
dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 153.
5
MARQUESE, Rafael de Bivar. A Dinâmica da Escravidão no Brasil: resistência, tráfico negreiro e alforrias,
séculos XVII a XIX. Novos Estudos. São Paulo, n. 74, p. 107-123, 2006. p. 117-118.
3
Todavia, naquela sociedade estamental de Antigo Regime ascender à condição de
liberto não significava tornar-se inteiramente livre, pois frequentemente o ex-escravo
continuava atado ao seu antigo senhor, o qual tinha a prerrogativa de poder revogar a alforria
concedida sob a alegação de ingratidão. 6 Porém, o aspecto de maior relevância no que
concerne à vida dos libertos e seus descendentes livres consistia no fato de ocuparem um
lugar social marcado pela estigmatização conferida pela ascendência escrava. Tais sujeitos
eram proibidos de ocupar cargos públicos e eclesiásticos, bem como de receberem certas
honras e privilégios. 7
Tendo em vista essa configuração social, é possível perceber a inovação representada
pelo alvará de 16 de janeiro de 1773, pois ele previa, mesmo que gradualmente, a liberdade de
todos os escravos independentemente da vontade dos senhores, aspecto esse que significou o
fim de uma tradição legal que garantia toda soberania daqueles sobre seus escravos. Ao
mesmo tempo, a extinção da categoria “liberto” rompia com um preceito que fazia de seus
portadores sujeitos maculados. Dessa forma, quando afirmo que os alvarás pombalinos
referentes à escravidão em Portugal alteraram a natureza dos discursos sobre a liberdade no
império português considero o termo liberdade não apenas como o estado da pessoa não
sujeita a escravidão, mas também como uma categoria relacionada à isenção de restrições
legais concernentes ao acesso a ofícios públicos, honras e dignidades.
O recorte cronológico dessa pesquisa, que compreende a segunda metade do século
XVIII e a primeira década do XIX, insere-se num período que pode ser caracterizado como de
transição, pois apesar de os referenciais típicos de Antigo Regime seguirem arraigados no
imaginário social, entravam em cena preceitos modernos/ilustrados que começavam a
provocar as primeiras fissuras nesse edifício. As reformas levadas a efeito em Portugal a partir
de 1755 sob as orientações ilustradas do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o
marquês de Pombal, constituem exemplos enfáticos dessas tendências. Aqui interessa
particularmente as intervenções do poder central nas hierarquias sociais típicas da organização
corporativa, resultando no que Hebe Mattos denominou de “desnaturalização das hierarquias
sociais”. 8 A elevação de vários grupos sociais, como indígenas, naturais da Índia e cristãosnovos, à condição de vassalos habilitados, bem como o fim de algumas restrições impostas à
nobreza, a exemplo de poderem exercer ofícios manuais, foram ações inseridas no projeto
político traçado por Pombal durante a maior parte do reinado de D. José I (1750-1777).
6
Cf: Das doações e alforria, que se podem revogar por causa de ingratidão. In: Ordenações Filipinas, livro 4º,
título LXIII, a partir do § 7º. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1858.
7
MATTOS, Hebe. A escravidão moderna..., p. 154.
8
Idem, p. 156.
4
Assim, convém indagar, como entender a promulgação do alvará de 16 de janeiro de 1773 no
interior desse contexto? Tal questionamento foi uma das linhas condutoras dessa pesquisa.
Para a resolução desse problema mais geral, buscou-se compreender o ideário político do
período partindo da análise de duas noções que considero essenciais: os fundamentos do
absolutismo monárquico e suas relações com princípios ilustrados.
Imersos nessa época de transição, pardos e pretos habitantes da América portuguesa
tiveram consciência de que novas possibilidades estavam surgindo e não hesitaram em clamar
pela intervenção régia em situações que consideravam injustas. Nos vestígios deixados por
esses homens, nomeadamente as demandas encaminhadas ao Conselho Ultramarino, procurase examinar quais suas interpretações do alvará de 16 de janeiro de 1773, bem como quais os
discursos elaborados em prol de suas causas. Outro aspecto de grande interesse é perceber as
formas através das quais o conhecimento acerca das leis publicadas chegava nas várias
capitanias da América portuguesa. Cabe ainda identificar se havia características comuns
entre os sujeitos que mais estiveram envolvidos com a disseminação do alvará entre a
população de cor, acentuando seus papéis no interior de redes de sociabilidade.
II – Conversas com a historiografia
As abordagens historiográficas que versam sobre as causas da promulgação dos
alvarás relativos ao fim gradual da escravidão em Portugal encontram-se divididas em dois
grupos de interpretações. Na maioria dos trabalhos destacam-se como fatores primordiais os
interesses econômicos e estratégicos da Coroa. Eles relacionam as sobreditas leis com um
plano mais geral de fomento à industrialização em Portugal, o que seria alcançado com a
formação de uma população produtiva e consumidora com base no trabalho remunerado. Por
outro lado, esses trabalhos veiculam a tese segundo a qual a restrição das medidas a Portugal
mantinha uma relação de complementaridade para com as colônias, uma vez que visavam
garantir-lhes suprimentos adequados de escravos. 9 Por sua vez, a outra vertente enfatiza os
aspectos ideológicos, centrando a análise na influência de preceitos ilustrados sobre a criação
dos alvarás. Conforme Luiz Geraldo Silva e Renato Pinto Venâncio, em face do pequeno peso
9
BOXER, Charles. O Império Marítimo Português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 278;
FALCON, Francisco José Calazans; NOVAIS, Fernando A. A extinção da escravatura africana em Portugal no
quadro da política econômica pombalina. In: Anais do VI Simpósio Nacional dos Professores Universitários de
História. São Paulo, 1973. p. 420; LAHON, Didier. Esclavage et confréries noires au Portugal durant l’Ancien
Régime (1441-1830). (v. 1). Formes et diversité des rapports esclavagistes. Tese (doutorado em História) – Ecole
des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 2001. p. 102; 108; SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos. Engenhos e
escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo: Cia. das Letras, 1988. p. 384.
5
numérico dos escravos em Portugal, durante a segunda metade do século XVIII, soa
meramente retórica a importância desse contingente a ponto de interferir no emprego da mãode-obra livre ou de fazer falta ao ultramar. 10 Assim, o enfoque é direcionado à dimensão
ideológica presente ao plano reformista levado a efeito pelo marquês de Pombal, acentuandose o fato de que a gradual extinção da escravidão no seio da monarquia portuguesa esteve
ligada a um anseio civilizacional, visto que no contexto em questão a escravidão passava a ser
concebida como um aspecto bárbaro presente àquela configuração social. 11
Aqui se privilegiou a segunda perspectiva como eixo principal de análise dos referidos
alvarás, entendendo-se, porém, que o projeto civilizacional aspirado durante o ministério
pombalino era extremamente amplo, incluindo tanto a auto-regulação das paixões como
medidas que buscavam racionalizar a economia, a educação e o próprio aparelho de Estado.
Contudo, cabe destacar que o foco analítico da presente pesquisa é direcionado às
interpretações populares, feitas por pardos e negros da América portuguesa, desses
dispositivos legais. Ou seja, procura-se ir além das discussões sobre os fatores intelectuais,
econômicos e políticos que deram origem às leis, adentrando-se, dessa forma, na esfera
política articulada por sujeitos comuns.
Como já foi notado, o alvará de 16 de janeiro de 1773 deu margem a manifestações de
escravos da América portuguesa que aspiravam ascender ao estado de liberdade por via da
justiça régia. Na estrutura social portuguesa de Antigo Regime a alforria constituiu-se como o
mecanismo legal que possibilitava aos escravos passar à condição de libertos, dinâmica essa
estabelecida no âmbito privado das relações entre senhor-escravo e subordinada a relações de
poder. 12 A efetivação da alforria era altamente dependente do arbítrio senhorial. Ora,
ideologicamente as alforrias eram, antes de tudo, recompensas pelo bom comportamento e
bons serviços prestados pelo cativo. Elas poderiam ser concedidas antes ou após a morte do
senhor, gratuitamente ou sob pagamento efetuado pelo próprio interessado. 13 De fato, na
10
SILVA, Luiz Geraldo. “Esperança de liberdade”. Interpretações populares da abolição ilustrada (1773-1774).
Revista de História, São Paulo, v. 144, p. 107-150, 2001. p. 113; VENÂNCIO, Renato Pinto. O Alvará
português de 1761 e os escravos do Brasil. In: ARAUJO, Valdei; GONÇALVES, Andréa (Org.). Estado,
sociedade e região: Contribuições sobre história social e política. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008. p. 33.
11
SILVA, Luiz Geraldo. “Esperança de liberdade”..., p. 116-122.
12
MATTOS, Hebe. A escravidão…, p. 157-159.
13
SCHWARTZ, Stuart B. The manumission of slaves in colonial Brazil: Bahia, 1684-1745. The Hispanic
American Historical Review, v. 54, n. 4, p. 603-635, nov., 1974; RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos
no Brasil colonial. Tradução de Maria Beatriz Medina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 53-81;
MATTOSO, Kátia M. de Queiros. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1982; LARA, Silvia Hunold.
Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1988, p. 251-252; PAIVA, Eduardo França. Pelo justo valor e pelo amor de Deus: as alforrias nas Minas.
In: PAIVA, C. A; LIBBY, D. C. (Orgs.). 20 anos do seminário sobre a economia mineira – coletânea de
trabalhos – 1982-2000. Belo Horizonte: CEDEPLAR/UFMG, 2002, v. 2, p. 313-341.
6
legislação lusitana do período moderno não havia qualquer disposição legal firmada em
código de lei com o intuito de ordenar primordialmente as relações entre senhor e escravo no
sentido de garantir a interferência do Estado nas relações privadas. 14
Contudo, as pesquisas que analisam a atuação dos escravos no meio judicial pela
busca da liberdade revelam que era possível ao escravo dispor de meios legais a fim de
alcançar a liberdade mesmo contra a vontade de seus senhores. A esse respeito historiadores
como Sidney Chalhoub, Keila Grinberg e Hebe Maria Mattos demonstraram que o cativo era
sujeito passível de certos direitos. 15 Essas prerrogativas estavam assentadas no campo do
direito costumeiro, ou seja, não foram estabelecidas formalmente pelo poder central. Ao
discutir a relação entre direito positivo e costumeiro na conjuntura do Estado imperial
brasileiro, Keila Grinberg questiona a conclusão de Manoela Carneiro da Cunha segundo a
qual, antes de 1871, o Estado não interferia na relação senhor-escravo no sentido de obrigar o
proprietário a conceder a liberdade mediante pagamento. 16 Ao contrário, para ela, que partiu
da análise de ações de liberdade impetradas na Corte de Apelação do Rio de Janeiro durante o
século XIX, o poder político imperial poderia sim interferir na soberania dos proprietários.
Essa era a ambigüidade daquela conformação política, visto que apesar de ser uma
configuração social escravista, permitia que escravos entrassem em juízo contra seus senhores
e, em alguns casos, arbitrava a favor da liberdade. 17
No presente estudo, a busca pela alforria é analisada através de uma documentação
específica, qual seja, requerimentos enviados à apreciação régia ao longo das últimas décadas
do século XVIII e dos anos iniciais do XIX. Como mencionei, esse período foi caracterizado
por mudanças significativas na representação da autoridade monárquica, para a qual deveria
convergir todo o poder do Estado. Assim, tendo em vista esse contexto político, a análise das
sobreditas fontes é aqui empreendida problematizando-se a atuação do Estado ilustrado frente
aos direitos senhoriais e às pressões provenientes de escravos que aspiravam à liberdade.
Tratando-se dos homens de cor livres, suas experiências na sociedade colonial
brasileira há pouco tempo começaram a ser pesquisadas. Os vestígios deixados por esses
14
MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos
escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 105; MATTOS, Hebe. A
escravidão..., p. 153-154, 161-162.
15
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990; GRINBERG, Keila. Liberata – a lei da ambigüidade: as ações de liberdade
da Corte de Apelação do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994; MATTOS, Hebe Maria. Das
cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista, Brasil século XIX. 2. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998.
16
As conclusões de Manoela Carneiro da Cunha estão em: Sobre os silêncios da lei. Lei costumeira e positiva
nas alforrias de escravos no Brasil do século XIX. In: Antropologia do Brasil: mito, história, etnicidade, 1986.
17
GRINBERG, Keila. Liberata... ver especialmente o capítulo “Embargos e pareceres”.
7
sujeitos encontram-se diretamente relacionados às suas vivências no interior de corporações
religiosas e militares, sendo, portanto, contemplados a partir de sua integração social como
membros dessas instituições. No que diz respeito às confrarias, para além de demandas
centradas essencialmente no campo religioso, tem-se destacado seu papel como esteio para a
organização da vida social de seus confrades em geral. A partir de tais confrarias esses
sujeitos renegociavam cotidianamente o espaço que ocupavam na hierarquia social,
ressaltando as identidades coletivas construídas em função do pertencimento a essas
comunidades. 18 Acerca dos corpos militares constituídos por homens de cor livres na América
portuguesa, também as pesquisas são relativamente recentes, sendo, porém, muito mais
escassas. De forma geral, abordam temas como a ascensão social proporcionada pelo
desempenho de postos de comando, as identidades que formavam como militares de cor, suas
atuações em tempos de guerra e suas relações tanto com o Estado português como com as
autoridades coloniais locais. 19 Aqui as instituições militares nas quais pardos livres e libertos
estavam integrados são percebidas como importantes sustentáculos para suas demandas e para
a estruturação de suas identidades perante o poder central.
III – Quadro teórico metodológico
Deram suporte à resolução das problemáticas desta pesquisa alguns conceitos e
discussões teórico-metodológicas, sobre as quais passo agora a discorrer. Para que fosse
possível compreender os significados dos alvarás de 19 de setembro de 1761 e de 16 de
janeiro de 1773, bem como problematizar a relação do Estado ilustrado com escravos e
homens de cor livres da América portuguesa, fez-se necessário pensar no ideário político do
período. Para tanto, salientam-se as relações entre o absolutismo e a ilustração. Nesta linha,
destaca-se que o projeto político pombalino visava à homogeneização do corpo social e o
18
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e Libertos..., p. 191-231; BOSCHI, Caio C. Os leigos e o poder.
Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986; REIS, João José. Identidade
e diversidade étnicas nas irmandades negras no tempo da escravidão. Tempo, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 7-33,
1996; SILVA, Luiz Geraldo. Da festa barroca à intolerância ilustrada. Irmandades católicas e religiosidade negra
na América portuguesa (1750-1815). In: SALLES-REESE, V. (Org.). Repensando el pasado, recuperando el
futuro. Nuevos aportes interdisciplinares para el estudio de la America Latina colonial. Bogotá: Editorial
Pontifícia Universidad Javeriana, 2005, p. 270-287; VIANA, Larissa. O Idioma da mestiçagem: as irmandades
de pardos na América portuguesa. Campinas: Editora Unicamp, 2007.
19
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e Libertos..., p. 127-142; SILVA, Luiz Geraldo. Aspirações barrocas e
radicalismo ilustrado. Raça e nação em Pernambuco no tempo da Independência (1817-1823). In: JANCSÓ,
István (Org.). Independência: História e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005. p. 915-934; MATTOS, Hebe.
“Black Troops” and the Hierarchies of Color in the Portuguese Atlantic World: The case of Henrique Dias and
his black regiment. Luso-Brazilian Review, v. 45, n. 1, p. 6-29, 2008; KRAAY, Hendrik. Race, state, and armed
forces in independence-era Brazil: Bahia, 1790s-1840s. Califórnia: Stanford University Press, 2001.
8
estabelecimento do monarca como a única fonte de poder. Como observou François-Xavier
Guerra, o Estado absolutista “tende a pensar sua relação com a sociedade não mais como uma
relação com corpos necessariamente heterogêneos, mas como uma relação binária, e mais
abstrata, soberano-súditos”. 20 Uma das resultantes dessa teorização foi a luta empreendida
contra os privilégios das corporações, para que então o soberano pudesse dirigir
“indistintamente todos os membros dos seus corpos políticos”. 21 Nesse contexto, a legislação
foi tomada como o instrumento através do qual se procurava moldar a estrutura social e,
portanto, os textos legais são aqui analisados a partir de seus papéis como divulgadores
daquela nova representação da sociedade e do poder. 22
Já foi observado que as medidas concernentes à escravidão em Portugal inserem-se,
sobretudo, no quadro das reformas pombalinas, as quais buscavam modernizar o reino
lusitano. Neste período, acreditava-se que equiparar o Estado português com um padrão de
civilidade comum a outros reinos da Europa consistia numa das tarefas mais essenciais para a
modernização da estrutura social. Considerando-se esta constatação, torna-se necessário
entender o que significava o conceito de civilização na segunda metade do século XVIII. Para
tanto, serão utilizados os aportes teóricos de Norbert Elias. Conforme ele, a idéia de
civilização que circulava entre os estadistas ilustrados do período estava diretamente
associada à crença de que a história da humanidade desenvolvia-se por via de estágios sociais.
Em decorrência desse pensamento, entendia-se que o estágio da civilização era o oposto a
outra etapa, a da barbárie. A noção de civilização estava diretamente associada com a autorepresentação da superioridade do estágio social no qual se encontrava a Europa. 23 Acredito
que a existência dessa dualidade como algo inerente ao processo civilizador teve
conseqüências na forma como a escravidão foi tratada durante a segunda metade do século
XVIII e início do XIX.
No que diz respeito ao pensamento ilustrado para com a escravidão dos negros, este
tem de ser avaliado sob a perspectiva de que não era homogêneo. Como indicou Brion Davis,
muitas das idéias elementares advindas da ilustração poderiam ser utilizadas também para
justificar a escravidão. Ao mesmo tempo em que se proclamava o direito natural à liberdade,
20
GUERRA, François-Xavier. Modernidad e Independencias: Ensayos sobre las revoluciones hispânicas.
Madrid: Editorial Mapfre, 1992, p. 23.
21
HESPANHA, Antonio Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do poder... p. 141;
WEHLING, Arno. Ilustração e política estatal no Brasil 1750-1808. Humanidades: Revista de la Universidad de
Montevideo, Montevidéu, n. 1, p. 61-86, 2001. p. 68.
22
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, 11(5), p. 173-191, 1991.
23
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes, (v. 1). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1990. p. 59-64.
9
em muitas obras literárias da época o negro continuava a ser tratado de forma depreciativa e
como um ser inferior em relação aos brancos. 24
Tendo em vista a problemática sobre a difusão das notícias do alvará de 1773 na
América portuguesa, cabe destacar dois aspectos fundamentais para sua apreciação: as redes
de sociabilidades nas quais estavam imersos pardos e negros e o intenso entrelaçamento entre
oralidade e escrita. Conforme definição de Jean Baechler, a sociabilidade consiste na
“capacidade humana de estabelecer redes, através das quais as unidades coletivas fazem
circular as informações que exprimem seus interesses, paixões, opiniões”. 25 Assim, o
convívio desses atores sociais em redes desde as mais elementares, como as conversas nas
praças, até aquelas surgidas a partir da integração em grupos específicos, como eram os
corpos militares, irmandades e órgãos da administração pública, deram lugar a manifestações
de seus anseios políticos. Ademais, integrados nestas corporações, pardos – livres e libertos –
conformavam verdadeiros “grupos de pressão”. Estes, segundo Jean Baechler, constituíam
“uma coligação, ocasional ou permanente, formada por atores sociais, que visa obter do poder
político isenções e privilégios”.26
Relativamente às relações de homens de cor livres com o conhecimento na sociedade
colonial, a noção de cidade letrada de José Jouve Martín mostra-se extremamente fecunda,
pois, para ele, o fato de toda a organização social da cidade colonial depender da criação e
interpretação de textos escritos, proporcionava a escravos e seus descendentes livres um
contato constante com a cultura letrada. Imersos nesse ambiente, certamente “percebiam a
relação existente entre escritura, status e poder político”. 27 Como indicou Roger Chartier,
“nas sociedades de Antigo Regime, a circulação multiplicada do escrito impresso modificou
as formas de sociabilidade, autorizou novos pensamentos, transformou as relações com o
poder”. 28 No presente trabalho, a circulação do texto do alvará de 16 de janeiro de 1773 e sua
conseqüente apropriação por homens de cor livres foi igualmente entendida como uma fonte
transformadora de pensamentos.
24
DAVIS, David Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001. Sobre a ambigüidade do iluminismo para com a escravidão dos negros ver especialmente capítulo 13;
Sobre as imagens acerca do negro ver capítulo 15.
25
BAECHLER, Jean. Grupos e Sociabilidade. In: BOUDON, Raymond. Tratado de Sociologia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, p. 65-66.
26
BAECHLER, Jean. Idem, p. 70.
27
MARTÍN, José Jouve Ramon. La difusión de la cultura letrada en la comunidad negra de Lima del siglo XVII.
In: SALLES-REESE, Verônica (Org.). Repensando el passado, recuperando el futuro. Nuevos aportes
interdisciplinarios para el estúdio de la América colonial. Bogotá: Editorial Pontifícia Universidad Javeriana,
2005. p. 289-298.
28
CHARTIER, Roger. O mundo como representação... p. 178.
10
O conceito de estigma social constituiu importante aporte teórico para a compreensão
do lugar social destinado aos libertos e seus descendentes na América portuguesa, na medida
em que esses sujeitos eram impedidos de exercer cargos públicos e receber certas honras e
dignidades em função da “mácula da cor”. Nessa configuração social, as diferenças entre
brancos e pessoas de cor podem ser interpretadas à luz do modelo teórico de Norbert Elias a
respeito das relações estabelecidos e outsiders. Conforme ele, em todas as relações nas quais
há um desequilíbrio de poder o recurso à estigmatização do “outro” constitui “uma das armas
usadas pelos grupos superiores nas disputas de poder, como meio de manter sua superioridade
social”. 29 Assim, a vinculação da “cor” com o estigma social imputado aos libertos e seus
descendentes consistia em seu aspecto mais exterior, pois o que estava no centro da questão
eram “os diferenciais de poder e a exclusão do grupo menos poderoso dos cargos com maior
potencial de influência”. 30
Por fim, cabe destacar a adjetivação dos alvarás de 19 de setembro de 1761 e 16 de
janeiro de 1773 como “leis anti-escravistas”, tal qual figuram no título desta dissertação. Com
essa qualificação não se está a sugerir que as medidas concernentes ao tráfico e à escravidão
levadas a efeito durante o ministério pombalino fossem acompanhadas por movimentos
abolicionistas ou anti-escravistas nos moldes dos que ocorreram na Grã-Bretanha e em partes
da América do Norte a partir de fins do século XVIII. Trata-se, antes, de chamar atenção para
o substrato ideológico comum que informou tanto as leis portuguesas como os movimentos
abolicionistas: o ideário ilustrado. O que tem de ser ressaltado é que o pensamento ilustrado
acerca da escravidão não foi homogêneo, mas sim composto por uma miríade de “pequenos
autores, com idéias frequentemente contraditórias”. 31 Apesar de apregoarem a injustiça da
instituição escravista – sua desumanidade e seu caráter anti-econômico – mesmo as mentes
mais ilustradas não se aventuravam a propor o fim imediato da escravidão. Como indicou
Brion Davis, as atitudes mais comuns dos pensadores ilustrados acerca da escravidão
consistiram na criação de planos para a inspeção do tráfico e da vida dos escravos nas
colônias ou “o início de reformas administrativas da maneira como fizeram o marquês de
Pombal e Carlos III de Espanha”. 32 No entanto, é inegável que as leis pombalinas visavam o
fim da escravidão em Portugal, mesmo que a total concretização desse intento se desse
29
ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. p. 22-24.
Idem, p. 32.
31
NEVES, Guilherme Pereira das. Pálidas e oblíquas Luzes: J. J. da C. de Azeredo Coutinho e a Análise sobre a
justiça do comércio do resgate de escravos. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (Org.). Brasil: colonização e
escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 358.
32
DAVIS, Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental... p. 443.
30
11
gradualmente no longo prazo. Portanto, torna-se plausível a denominação de tais leis como
medidas anti-escravistas.
O corpo documental que dá sustentação à pesquisa é formado pela legislação
decretada no período pombalino e por ampla documentação manuscrita. Especificamente
sobre o primeiro grupo, salientam-se aqui os já mencionados alvarás de 19 de setembro de
1761 e 16 de janeiro de 1773. Conjuntamente aos alvarás sobre a escravidão africana, também
foram analisadas as disposições legais que buscaram dar fim às notas de inabilidade até então
imputadas a índios, naturais da Índia e cristãos-novos. Pretendeu-se, com estas últimas,
identificar os fatores que motivaram as ações da Coroa portuguesa ao decretar legislação tão
inovadora.
No entanto, o principal conjunto documental que tornou essa pesquisa possível é
formado
por
manuscritos
provenientes
dos
arquivos
do
Conselho
Ultramarino,
disponibilizados através do Projeto Resgate. Ele é constituído de petições, requerimentos e
representações enviadas ao poder central português durante a segunda metade do século
XVIII e os primeiros anos do XIX. Ademais, somam-se ao conjunto duas devassas, uma
ocorrida na cidade da Paraíba, em fins do ano de 1773, e outra na cidade mineira de Mariana,
no ano de 1798. Um aspecto fundamental inerente a essas fontes diz respeito à sua riqueza de
informações. Refiro-me especificamente ao fato de que as páginas que serviam de suporte aos
requerimentos e, portanto, aos termos mobilizados por pardos e negros ou por seus
procuradores, trazem também os pareceres das autoridades que avaliavam as causas em
questão. Isto é, tais manuscritos possibilitam a problematização dos anseios dos requerentes,
das interpretações das autoridades coloniais e, finalmente, dos pareceres emitidos pelos
membros do Conselho Ultramarino sob a chancela do rei.
IV – A estrutura do trabalho
Esta dissertação foi organizada em três capítulos. O primeiro versa sobre o contexto
do reinado de D. José I (1750-1777), acentuando-se as medidas reformistas levadas a efeito
sob a orientação do ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o marquês de Pombal.
Buscou-se entender como as mudanças políticas processadas tiveram impacto sobre o modelo
de sociedade até então vigente. Mais especificamente, pretendeu-se averiguar como o
crescente regalismo do período, aliado às aspirações por elevar Portugal à categoria de reino
civilizado, causou as primeiras fissuras na estrutura corporativa. No que diz respeito às
conseqüências efetivas desta nova configuração política, destaca-se, primeiramente, a análise
12
da legislação responsável pelo fim das notas de inabilidade conferidas a vários grupos sociais.
Segue-se a ela uma reflexão acerca da influência, no campo intelectual, das idéias ilustradas
sobre o pensamento português acerca da escravidão na segunda metade do século XVIII.
O segundo capítulo tem como principal intento compreender os significados dos
alvarás de 19 de setembro de 1761 e 16 de janeiro de 1773 no interior da política pombalina, o
que foi feito de forma sistemática. Num primeiro momento apresentam-se os quadros
populacionais referentes aos homens de cor livres e escravos e de suas ocupações tanto em
Portugal como na América portuguesa. Segue-se uma discussão sobre as demandas de
homens de cor livres e escravos da América portuguesa anteriores aos decretos dos alvarás
pombalinos, a qual pretende identificar qual o teor daqueles pedidos e seus argumentos
recorrentes, a fim de que se possa perceber as inovações ou continuidades nos discursos
posteriores à década de 1760. A última parte deste capítulo consiste na efetiva análise dos
alvarás. Inicialmente discorre-se sobre as conseqüências do alvará relativo ao tráfico de
escravos do Brasil para Portugal durante a segunda metade do século XVIII. Por fim, realizase um exame dos alvarás de 19 de setembro de 1761 e 16 de janeiro de 1773 e de seus termos
constituintes.
O último capítulo é dedicado à interpretação das idéias e práticas surgidas a partir da
disseminação do alvará de 16 de janeiro de 1773 pela América portuguesa ao longo da
segunda metade do século XVIII e dos primeiros anos do XIX. Procura-se entender como os
termos da lei de 1773 geraram um campo de discussões entre escravos e homens de cor livres,
os quais passaram aspirar ver-se livres da sujeição de outrem ou terem acesso aos ofícios
públicos e honras que lhes eram vedados. No que toca aos requerimentos de liberdade,
examinou-se em que medida a dita lei provocou mudanças nos discursos apresentados nas
causas de liberdade e sob quais termos isso se deu. Para o caso dos homens de cor livres,
busca-se entender o modo pelo qual tais sujeitos passavam a questionar os entraves sociais
que os impediam de obter privilégios políticos e sociais até então somente destinados aos
considerados habilitados. Também as opiniões dos brancos, notadamente as autoridades –
conselheiros, governadores, camaristas –, são aqui investigadas procurando-se entender quais
seus posicionamentos mediante os requerimentos de pardos e escravos que tomavam como
base tal legislação.
CAPÍTULO 1 – PORTUGAL POMBALINO: REFORMAS, ABSOLUTISMO E OS
GRUPOS SOCIAIS
1.1 – Monarquia ilustrada e as teorias sobre a organização da sociedade
O reinado de D. José I (1750-1777) em Portugal foi caracterizado por um intenso
movimento reformista, processo iniciado a partir de 1755 quando o soberano conferiu total
autonomia ao ministro de Estado Sebastião José de Carvalho e Melo, desde 1769 o marquês
de Pombal. A imagem do atraso português corrente na Europa e a tomada de consciência
dessa situação pelos próprios estadistas portugueses foram de suma importância para dar
início a essas ações. As críticas anteriores à década de 1750 já eram constantes entre ministros
e diplomatas portugueses residentes em outros reinos europeus, os chamados estrangeirados.
Dentre os aspectos salientados, constavam a grande influência do clero sobre a esfera civil, o
atraso da indústria e agricultura e a decadência do sistema educacional em decorrência da
preponderância dos parâmetros religiosos no ensino. 33
Assim, na esteira desse primeiro momento de reflexão, seguiram-se as medidas
adotadas a partir de 1755, acompanhadas por intenso racionalismo, o que, como observou
Maxwell, fez de Portugal um símbolo do iluminismo. 34 As reformas incidiram sobre as mais
variadas instâncias, como a educação, legislação, economia e a reorganização do próprio
aparelho de Estado. 35 De forma geral, foram orientadas por dois eixos principais: buscava-se
elevar Portugal à condição de nação civilizada, tendo como parâmetro outros reinos europeus,
e fortalecer a figura monárquica frente aos grupos de poder constituintes da sociedade
portuguesa. Destaco que este entrelaçamento de objetivos teve nas reformas jurídicas e
educacionais seu meio de expressão mais notável. De acordo com estas diretivas, pode-se
afirmar que o regime político vigente em Portugal durante o período pombalino foi
caracterizado pela busca constante por acentuar e legitimar a soberania do monarca,
constituindo um governo absoluto, porém guiado pela razão. 36
A lei de 18 de agosto de 1769, denominada lei da Boa Razão, sem dúvida nenhuma foi
um dos símbolos mais expressivos dessas novas diretrizes. Sobre a representatividade desta
33
BOXER, Charles. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Cia. das Letras, 2000, p. 369-371;
MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal: Paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 14.
34
MAXWELL, Kenneth. Idem, p. 17.
35
BOXER, Charles. O império..., p. 190-208; FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina. Política
econômica e monarquia ilustrada. São Paulo: Editora Ática, 1982; MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal...,
p. 95-117.
36
FALCON, Francisco José Calazans. Idem, p. 425-426; MAXWELL, Kenneth. Idem, p. 19.
14
lei no centro das reformas pombalinas, Falcon observou que “talvez haja poucos exemplos
assim tão claros e precisos do que se deva entender por governo ilustrado, ao menos no nível
jurídico”. 37 Numa dimensão mais vasta, através dela “buscava-se reverter toda a legislação
portuguesa, inclusive a consuetudinária, a partir do novo direito interpretado pelos juristas do
absolutismo”. 38 Esta norma procurou delimitar a interpretação no campo jurídico a fim de
evitar os abusos que daí decorriam, determinando para tanto que as principais referências à
justiça fossem as fontes de direito nacionais ao passo que o direito romano passaria à
condição de subsidiário. Esta inversão constituiu um arranjo novo no direito português, visto
que até então as fontes romanas eram largamente utilizadas e favoreciam a conformação de
um direito heterogêneo. A partir de sua promulgação, o uso do direito romano seria
subordinado à boa razão. 39 Este conceito amplo, a “boa razão”, consistia “nos primitivos
princípios, que contém verdades essenciais, que a ética dos romanos havia estabelecido, e que
os direitos divino e natural formalizaram para servirem de regras morais e civis entre o
cristianismo”. Também esta “boa razão” era determinada pelo direito das gentes, o qual fora
constituído “para a direção e governo de todas as nações civilizadas”. Por fim, era fundada
nas “leis políticas, econômicas, mercantis e marítimas, que as mesmas nações cristãs têm
promulgado”. 40 Nota-se que havia nesta lei uma evidente inspiração nas tendências da
jurisprudência da Europa considerada civilizada, tendo no direito natural e das gentes suas
principais bases.
Antonio Manuel Hespanha e Ângela Barreto Xavier, ao discorrerem sobre a
centralidade do direito para a execução das novas idéias políticas a partir do reinado de D.
José I, observaram que o direito de formular leis passou a ser considerado uma prerrogativa
incontestável do monarca, confluindo para a noção segundo a qual a única fonte de direito
legítima era a que emanava das diretivas do soberano. 41 As disposições contidas na lei de 18
de agosto de 1769, conjuntamente com outras medidas legais do período, indicavam o esforço
37
FALCON, Francisco José Calazans. A época..., p. 396.
WEHLING, Arno. Ilustração e política estatal no Brasil 1750-1808. Humanidades: Revista de la Universidad
de Montevideo, Montevidéu, n. 1, p. 61-86, 2001. p. 70.
39
COSTA, Mario Júlio de Almeida. Debate jurídico e solução pombalina. In: Como interpretar Pombal no
bicentenário de sua morte. Lisboa: Brotéria, 1983. p. 95-98; FALCON, Francisco José Calazans. Idem, p. 394;
MONCADA, Luís Cabral de Oliveira. O “século XVIII” na legislação de Pombal. In: Estudos de história do
direito, v. 1. Universidade de Coimbra, 1948. p. 100; WEHLING, Arno; WEHLING, Maria, J. Despotismo
ilustrado e uniformização legislativa. O direito comum nos períodos pombalino e pós-pombalino. Revista da
Faculdade de Letras, n. 14, p. 413-428, 1997.
40
Cf: Lei de 18 de agosto de 1769 ou Lei da Boa Razão. In: AVELLAR, Hélio de Alcântara. Administração
pombalina. Brasília: Universidade de Brasília, 1983. p. 203.
41
HESPANHA, Antonio Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação da sociedade e do poder. In:
MATTOSO, José (Org.). História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807), v. 4. Lisboa: Editorial Estampa,
1993. p. 141.
38
15
empreendido pelo núcleo de poder pombalino visando uma inflexão na forma como a
sociedade e o poder eram concebidos. Para que a dimensão desta mudança proposta possa ser
compreendida, é imprescindível salientar que o modelo de organização social corporativo
ainda era significativo em Portugal na segunda metade do século XVIII. Nessa teorização de
origem medieval, a sociedade em geral era vista como um corpo orgânico instituído por uma
ordem universal. Esta concepção era caracterizada por uma desigualdade natural entre as
partes do corpo social, visto que pressupunha funções e direitos diferenciados. A função do
rei, representado pela cabeça, seria a de garantir a harmonia entre os membros do corpo,
“atribuindo a cada um aquilo que lhe é próprio, garantindo a cada qual o seu estatuto (‘foro’,
‘direito’, ‘privilégio’)”. Na sociedade guiada pelo modelo corporativo, era impossível a
existência de um governo absoluto, pois “tão monstruoso como um corpo que se reduzisse à
cabeça, seria uma sociedade em que todo o poder estivesse concentrado no soberano”. O
governo deveria respeitar a autonomia político-jurídica de cada grupo social, o que
pressupunha limitações à ação régia. 42
Tendo em vista essa tradição de ordenamento da sociedade e da função régia é que se
pode compreender o impacto causado pelas reformas pombalinas e também o porquê da
figura do marquês de Pombal ter sido tão abominada por alguns setores da nobreza
portuguesa durante seu ministério e mesmo após o término do reinado de D. José I. Ora, a
promulgação de disposições legais que garantiam a possibilidade de interferência do monarca
no direito causou fissuras na ordem naturalizada da sociedade corporativa, visto que nela,
como já foi evidenciado, o monarca deveria respeitar as autonomias jurídicas de cada grupo e
no interior dos grupos, de cada indivíduo. Segundo observou Francisco Falcon, já no início do
ministério pombalino foram iniciadas medidas voltadas para “a eliminação sistemática de
todas as formas de oposição ao poder do Estado”, direcionadas para pessoas, grupos e
instituições. 43
No interior desta política de afirmação da soberania régia contra possíveis opositores,
as disputas entre o poder secular e o espiritual figuraram como as mais incisivas já na década
de 1750. A começar pela expulsão da Companhia de Jesus de Portugal e domínios
ultramarinos, em setembro de 1759, estes embates materializaram-se sob diversas formas. A
luta travada contra os jesuítas fora reflexo de algo mais amplo, da busca pela secularização da
sociedade e da afirmação da autoridade real sobre a eclesiástica. Essas tensões tornaram-se
42
HESPANHA, Antonio Manuel. As vésperas do Leviatã: Instituições e poder político, Portugal – século XVII.
Coimbra: Almedina, 1994. p. 295-323; HESPANHA, Antonio Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A
representação..., p. 121-155.
43
FALCON, Francisco José Calazans. A época..., p. 374.
16
ainda mais evidentes quando da expulsão do núncio papal de Portugal, em junho de 1760, o
que estremeceu por um tempo as relações com Roma. 44
Neste meio conturbado, as reformas educacionais constituíram exemplo elucidativo
das principais orientações daquele tempo. Também foram responsáveis por dar início à
modernização do sistema educacional, moldando-o de acordo com os parâmetros da Europa
considerada civilizada, bem como por acentuar a soberania régia sobre esta esfera, até então
hegemonicamente sob a influência do meio religioso. A primeira disposição legal mais
sistemática nesta direção foi o alvará de 28 de junho de 1759, que previa a regulamentação
dos estudos menores. Na retórica da lei, a educação elementar portuguesa estaria imersa num
estado de decadência provocado pelo uso, por parte dos jesuítas, de métodos antiquados de
ensino das letras humanas. Por trás desta ação, os jesuítas objetivavam “alucinar os vassalos,
distraindo-os do progresso das suas aplicações, para que, criando-os e prolongando-os na
ignorância, lhes conservassem uma subordinação injusta e perniciosa”. A partir desta lei, o
modelo a ser seguido seria o apregoado pelos “maiores homens das nações civilizadas” e
visava adaptar o ensino “aos termos mais simples, claros e de maior facilidade que se pratica
atualmente pelas nações polidas da Europa”. 45
Após o alvará regulador dos estudos menores, teve lugar a reforma da Universidade de
Coimbra, executada através da elaboração de seu novo Estatuto (1772). Nele constavam as
novas diretrizes que deveriam guiar o ensino superior. Dentre os aspectos mais salientes dessa
nova orientação destacam-se a rejeição do aristotelismo, o fim da tutela eclesiástica, adoção
do método científico, criação das faculdades de matemática e filosofia, enquadramento das
faculdades de teologia, medicina e direito no que havia de mais moderno na Europa. 46 Ao
declarar os objetivos da reforma, Francisco de Lemos, reitor da universidade e bispo de
Coimbra, acentuava que a universidade não devia ser entendida “como um corpo isolado (...)
mas como um corpo no coração do Estado, que cria e difunde a sabedoria do iluminismo para
todas as partes da monarquia a fim de animar e revitalizar todos os ramos da administração
pública e de promover a felicidade do homem”. 47 Através desta declaração percebe-se
nitidamente a estreita ligação existente entre a educação e a execução dos objetivos do Estado
português, relação esta existente em outros textos políticos da época.
44
FALCON, F. J. Calazans. A época..., p. 422-424; MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal..., p. 109-110.
Cf: Alvará de 28 de junho de 1759. In: SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza
desde a última Compilação das Ordenações. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia Maigrense, 1830. p.
673-678.
46
FALCON, F. J. Calazans. A época…, p. 436-438; MAXWELL, Kenneth. Marquês de Pombal..., p. 104-111.
47
Apud MAXWELL, Kenneth. O marquês de Pombal..., p. 114.
45
17
Nas Cartas Sobre a Educação da Mocidade (1760), do médico português de origem
judaica Antonio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), juntamente às considerações a respeito
da educação indicada aos jovens portugueses, somam-se críticas à primazia eclesiástica nos
assuntos civis e uma teorização acerca do poder absoluto dos monarcas. Nesta direção, ao
discorrer sobre a fundação do Estado português, Sanches mostrou-se alinhado com a vertente
contratualista do absolutismo. Em sua perspectiva, o Estado português teve origem num pacto
firmado entre os povos e o soberano, sendo que aqueles juraram fidelidade a este, sob
invocação de Deus como testemunha. Em tal pacto, prometeram obediência aos monarcas e
que lhes “serviriam com suas pessoas e bens, com tanto que estes reis os governassem e
defendessem, e que vivessem mais felizes que no estado precedente”. Da natureza do pacto
seriam provenientes a sacralidade do Estado e o “supremo poder” dos reis. Também “deste
estado da sociedade civil, resultaram logo a igualdade entre todos os súditos, e subordinação
aos magistrados”. Nesta ordem, o que podia levar o Estado à ruína era a existência de
desigualdade entre os súditos, “uns com obrigação de obedecer, e outros absolutos, uns
sujeitos às justiças e outros sem nenhum império”. 48
No que concerne à questão da desigualdade entre os súditos, Sanches lançou mão de
uma metáfora para exemplificar a compreensão do bom andamento da sociedade civil: num
mercado é imprescindível que todos os indivíduos sigam certas regras, que a propriedade de
cada um seja respeitada, que o falar seja amável, etc. Mudando de cena, e pensando que todos
os que estiverem nesta feira “conservem ainda aqueles costumes silvestres, duros e bárbaros”,
brigando no lugar de barganharem, “que por serem filhos de fulano, que não deviam pagar
pelo que compravam”, então toda a feira estaria arruinada. 49 Semelhantemente, em muitas
passagens das Cartas Sanches teceu críticas acirradas à estruturação da sociedade portuguesa
no que concerne aos privilégios e imunidades conferidos aos fidalgos, nobres e eclesiásticos.
Sobre estes últimos, acusava-os de “se considerarem uma certa monarquia, cuja cabeça é o
papa”. Todos aqueles protegidos por isenções eram sujeitos perniciosos ao Estado. Em sua
perspectiva, foram estas condições as responsáveis por imputar entre os súditos “costumes
depravados e, por conseqüência, a má educação”. Devido a estes estados privilegiados, a
igualdade necessária entre os vassalos fora perdida, sem a qual “já não pode haver justiça”. 50
Note-se que esta noção de justiça é totalmente diferente daquela presente na concepção
corporativa da sociedade. Nesta, como já foi salientado, há entre os súditos uma desigualdade
48
Cf: SANCHES, Antonio Nunes Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Coimbra: Imprensa da
Universidade, 1922. p. 19-22.
49
Cf: SANCHES, Antonio Nunes Ribeiro. Idem..., p. 24.
50
Cf: SANCHES, Antonio Nunes Ribeiro. Idem..., p. 81-87.
18
natural e a cada um competem direitos e funções diferenciados, cabendo ao monarca a função
de manter este equilíbrio. Já na concepção de sociedade e poder apresentada nas Cartas todos
os súditos, devido ao juramento de fidelidade, são iguais. Desta forma, “toda a distinção,
preeminência, que houver entre os súditos, provém somente do JUS da majestade. Aquela
distinção de nobreza, fidalguia, provém somente do poder do soberano, e não da ascendência,
nem da geração”. 51
Reflexões muito semelhantes às de Ribeiro Sanches encontram-se na Dedução
Cronológica e Analítica (1767), atribuída a José Seabra da Silva, um dos colaboradores mais
próximos de Pombal. Nesta obra, apesar de ter como temática principal a incriminação dos
jesuítas como os responsáveis por desequilibrar a monarquia lusitana, encontra-se uma
teorização acerca do poder régio. Para Seabra, o rei era o depositário legítimo de toda a
soberania do Estado, não se admitindo, portanto, qualquer participação no poder de outros
corpos. O governo monárquico consistiria “naquele que é desempenhado por uma única
pessoa, sem que este precise dar conta a ninguém a não ser ao próprio Deus”. 52 Outra figura
expoente do pensamento político durante o período pombalino foi Antonio Ribeiro dos
Santos. Em seu De Sacerdotio et Imperio (1770) fez considerações muito análogas às tecidas
por Sanches e Seabra da Silva. Segundo Santos, “o sumo poder do imperante civil é o direito
absoluto de moderar e dirigir, indistintamente, as ações de todos os membros dos seus corpos
políticos, em prol da utilidade comum dos cidadãos [...]”. 53 Da leitura desses textos fica
evidente a existência de um campo discursivo que procurava dar legitimidade teórica às ações
de cunho absoluto empreendidas pela monarquia portuguesa. Ao defenderem o
posicionamento do monarca como o único depositário de todo o poder do Estado,
empreendiam uma mudança brusca na forma como a própria organização social era entendida
até então.
Uma das conseqüências mais expressivas dessas discussões certamente consistiu na
possibilidade de intervenção régia nos privilégios conferidos a grupos e indivíduos.
Relembrando Ribeiro Sanches, vimos que as distinções entre os súditos seriam as
responsáveis por quebrar a ordem de igualdade entre eles e isso era pernicioso ao Estado,
visto que lhes imputava “maus costumes” e tornava exaurido o tesouro. Esse ímpeto sobre os
privilégios e distinções sociais teve lugar não apenas naqueles textos, mas também na
51
Cf: SANCHES, Antonio Nunes Ribeiro. Cartas..., p. 22. Grifos meus.
Cf: SYLVA, Jozeph Seabra da. Deducção Chronologica, e Analytica... Lisboa: Officina de Miguel Manescal
da Costa, 1767-1768. p. 357. Disponível em: http://purl.pt/12183.
53
SANTOS, Antonio Ribeiro dos. De sacerdotio et Imperio [1770]. Apud HESPANHA, Antonio Manuel;
XAVIER, Ângela Barreto. A representação..., p. 140.
52
19
legislação promulgada na época. Pelos alvarás de 20 de outubro de 1763 e 22 de maio de
1771 determinava-se que o “privilégio não pode existir contra o bem comum, e utilidade
pública”. Já no alvará de 27 de maio de 1772, esclarecia-se que “nunca foi visto que o
príncipe o [privilégio] conceda, ou tenha tolerado, contra si mesmo”. 54 Disposições como
estas davam margem à ação autônoma do monarca sobre os privilégios e tinham como fim
eliminar as oposições aos desígnios do absolutismo ilustrado, como já salientara Francisco
Falcon. 55
A luta travada para cercear ou ao menos moderar as imunidades de certos grupos e
indivíduos não constituiu fato isolado de Portugal, mas refletia tendências que neste momento
caracterizavam as ações políticas de outros reinos europeus, notadamente a França e a
Espanha. Como ponto em comum, tinham o fato de serem regimes políticos absolutos e, ao
mesmo tempo, guiados por princípios ilustrados. François-Xavier Guerra, ao discutir as
relações existentes entre o absolutismo e as rupturas revolucionárias a partir de fins do século
XVIII, destacou que à medida que ocorria o crescimento do Estado, este passava a
empreender uma mudança na forma como a sociedade estava organizada, procedendo a um
deslocamento das funções tradicionais dos corpos. Neste novo ideário político, o Estado
“tende a pensar sua relação com a sociedade não como uma relação com corpos
necessariamente heterogêneos, mas como uma relação binária, e mais abstrata, soberanosúditos”. 56 A resultante desta tendência foi uma empresa de homogeneização da sociedade, a
qual seria obtida sob a luta contra todo o poder concorrente ao do rei, através do ataque aos
privilégios dos corpos políticos. 57 Esta conformação do pensamento político presente à
segunda metade do século XVIII mantinha relações diretas com alguns dos princípios da
ilustração. Como notou Guerra, entre o ideário absolutista e o das elites modernas e ilustradas
existiam muitas afinidades. Ambos partilhavam da hostilidade para com os privilégios das
corporações, do conceito unitário de soberania, do ideal de uma relação sem intermediários
entre o poder e os indivíduos. 58 Nesta perspectiva, a figura do Marquês de Pombal é
extremamente representativa da transposição desse ideário para a ação política efetiva,
efetuado através das várias reformas colocadas em curso durante seu ministério, as quais
54
Apud HESPANHA, Antonio Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. A representação..., p. 153.
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina..., p. 404-407.
56
GUERRA, François-Xavier. Modernidad e Independencias: Ensayos sobre las revoluciones hispânicas.
Madrid: Editorial Mapfre, 1992. p. 23.
57
MORSE, Richard. O espelho de próspero. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 76, 81; WEHLING,
Arno. Ilustração e política estatal no Brasil 1750-1808. Humanidades: Revista de la Universidad de Montevideo,
Montevidéu, n. 1, p. 61-86, 2001. p. 68.
58
GUERRA, François-Xavier. Modernidad..., p. 25.
55
20
continuaram exercendo influência mesmo após o término do reinado de D. José I e de seu
exílio político. 59
O período do qual estamos tratando é melhor compreendido em sua complexidade
levando-se em consideração o fato de que, em meio ao despontar de idéias que mais tarde
caracterizariam o sistema liberal, o referencial próprio de Antigo Regime, baseado em
diferenciações hierárquicas, prosseguia arraigado no imaginário social. No entanto, as
modificações propostas por parte do poder central provocaram as primeiras fissuras neste
edifício.
1.2 – Reforço do poder real e o fim das notas de inabilidade
Dentre as inovações mais marcantes do período pombalino figuram as disposições
legais responsáveis por elevar vários grupos sociais à condição de súditos habilitados para o
recebimento de honras e mercês que até então lhes eram cerceados. O impacto causado por
essas medidas torna-se patente quando se considera que, na época em que foram efetuadas, as
concepções de sociedade eram fortemente ancoradas em princípios hierárquicos advindos do
modelo corporativo. Neste, como já foi salientado, para cada parte do corpo social eram préestabelecidos direitos e funções diferenciados, o que conformava uma organização
naturalmente desigual.
Na medida em que a configuração social portuguesa tornava-se mais complexa, ao
longo do período moderno, a organização da estrutura social baseada nas três ordens –
nobreza, clero e povo – passou a não comportar a pluralidade de atores sociais vivendo sob a
jurisdição lusitana. 60 Isso pode ser observado tanto para o caso de grupos sociais presentes no
Velho Mundo, tal qual judeus, mouros e ciganos, como no que diz respeito às populações
nativas dos territórios ultramarinos integrados ao império português em decorrência do
movimento expansionista, como africanos, naturais da Índia e ameríndios. A acomodação de
tais contingentes no vasto império português fez-se tendo como base o modelo corporativo de
organização da sociedade a partir da criação de novas “categorias de classificação”. 61 No
entanto, não obstante partilharem da identidade de cristãos e súditos da monarquia
portuguesa, esses grupos paulatinamente foram relegados a um lugar social caracterizado pelo
59
WEHLING, Arno. Ilustração e política..., p. 69.
HESPANHA & XAVIER. A representação..., p. 131-132.
61
MATTOS, Hebe. A escravidão moderna nos quadros do Império português: o Antigo Regime em perspectiva
atlântica. In: BICALHO, M. F; FRAGOSO, J; GOUVÊA, M. F. (Org.). O Antigo Regime nos trópicos: a
dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 144.
60
21
desprestígio e estigmatização, visto que passaram a ser impedidos de ocupar cargos públicos e
de ter acesso às insígnias de honra.
Inicialmente essas distinções apresentavam um caráter fundamentalmente religioso,
visto que eram destinadas aos descendentes de judeus e mouros convertidos ao cristianismo.
Na Espanha, as exclusões imputadas a esses sujeitos começaram a ganhar legitimidade a
partir de meados do século XV, o que é atestado no estatuto de Toledo (1449), através do qual
se passou a impedir que judeus conversos adentrassem aos cargos públicos e prestassem
juramentos contra cristãos. 62 Apesar de este estatuto ter surgido em decorrência de condições
locais e não contar com sanção régia, o mesmo princípio foi adotado em outras instituições da
Coroa espanhola ao longo do século XV, dando origem aos estatutos de pureza de sangue. 63
A noção de “limpeza de sangue” baseava-se na idéia de que “todos os judeus-conversos eram
falsos cristãos e de que seu sangue transportava hereditariamente uma série de vícios
concretos”. Essa concepção dividiu as sociedades ibéricas em dois grupos distintos: o dos
puros, constituídos por cristãos-velhos convictos, e o dos impuros, descendentes da nação
hebréia. 64 Tratava-se, pois, “de um problema de natureza ideológico-religiosa”. 65
No que diz respeito a Portugal, as exclusões de vários grupos sociais dos cargos
públicos e religiosos, bem como do acesso às insígnias de honra, foram ganhando expressão
essencialmente a partir de meados do século XVI. Entretanto, já nas Ordenações Manuelinas
(1514-1521), restrições de caráter segregacionista relacionadas aos cargos públicos foram
direcionadas aos cristãos-novos, ciganos e indígenas. 66 Nas Ordenações Filipinas (1603)
somou-se às categorias anteriores a dos mulatos, os quais por via do decreto de 16 de agosto
de 1671 passaram a ser excluídos dos ofícios públicos: “Hei por bem, que a toda a pessoa,
antes de entrar em algum ofício, se lhe mandem fazer informações aparte, aonde foi natural,
com todas as circunstâncias (...), procurando-se se tem parte de cristão-novo, mouro, ou
mulato”. 67 No caso das ordens religiosas e militares, como as Santas Casas da Misericórdia e
as Ordens de Cristo, Avis e Santiago, seus estatutos passaram a repudiar indivíduos com
62
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial: Portugal e Brasil-Colônia. São Paulo: Brasiliense, 1988.
p. 46-47; OLIVAL, Fernanda. Rigor e interesses: Os estatutos de limpeza de sangue em Portugal. Cadernos de
Estudos Sefardistas, n. 4, p. 151-182, 2004. p. 151.
63
OLIVAL, Fernanda. Idem, p. 151.
64
CARNEIRO, Maria Tucci. Idem, p. 59.
65
OLIVAL, Fernanda. Idem, p. 152.
66
CARNEIRO, Maria Tucci. Idem, p. 55.
67
Cf: Decreto sobre a mesma matéria da Carta de 25 de julho de 1640. 16 de agosto de 1671. Ordenações
Filipinas, Livro I, Título 35 ao princípio. In: FREITAS, Joaquim Inácio de. Collecção Chronologica de Leis
Extravagantes, Posteriores à Nova Compilação das Ordenações do Reino, Publicadas em 1603, t. 1. Coimbra:
Real Imprensa da Universidade, 1819. p. 170-171.
22
ascendência judaica, moura e gentia até a quarta geração, bem como os oficiais mecânicos nos
quais o exercício do ofício remontasse à terceira geração. 68
Relativamente aos espaços ultramarinos, os critérios que conformavam os
impedimentos eram subordinados a cada configuração social e podiam variar ao longo do
tempo. De forma geral, a lógica das restrições era a mesma que imperava na esfera peninsular
do império: grupos de poder imputavam a certos atores sociais caracterizações depreciativas –
ligadas à esfera religiosa, à cor da pele e ao exercício de ofícios mecânicos – as quais se
tornavam base para as exclusões. O sentido depreciativo ligado à cor da pele dos sujeitos pode
ser observado, por exemplo, na admoestação do jesuíta Alexandre Valignano – responsável
pela reorganização das missões da Companhia de Jesus na Ásia entre 1574 e 1606 – contra a
admissão de padres indianos na Companhia, pois para ele “todas essas raças escuras são muito
estúpidas e viciosas, e espiritualmente do mais baixo nível possível”. Além disso, o religioso
ressaltava o fato de que os indianos eram tratados pelos portugueses com o maior desprezo. 69
Contudo, as atitudes concernentes à cor da pele não podem ser tomadas como homogêneas
para a totalidade do império português, o que fica explícito no caso das sociedades de São
Tomé e Cabo Verde durante o século XVIII, nas quais o acesso de negros e,
predominantemente, mulatos aos cargos locais era menos restritivo do que em certas
localidades do Brasil. 70
É plausível entender a institucionalização dessas hierarquias como uma reação
concreta por parte dos grupos de poder tradicionais da sociedade portuguesa visando
assegurar suas posições de prestígio em face da presença de segmentos sociais concorrentes.71
Nesse contexto, a forma privilegiada para obter tal intento consistiu na estigmatização do
“outro” em face da afirmação crescente do “nós”, que, no caso, eram os cristãos-velhos e
nobres tidos como honrados e puros. Como foi observado por Norbert Elias, em sociedades
nas quais há diferenciação de poder entre os grupos o recurso à estigmatização figura como
um dos elementos mais recorrentes e eficazes para a manutenção do equilíbrio de poder
desigual. 72 Dessa forma, aos cristãos-novos, judeus, mouros, ciganos, indígenas, negros
libertos e seus descendentes foram definidos lugares sociais marcados pelo desprestígio, o que
68
OLIVAL, Fernanda. Rigor e interesses..., p. 153-156.
Apud BOXER, Charles. O império marítimo português 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p.
265.
70
OLIVAL, Fernanda; FIGUEIRÔA-RÊGO, João de. Cor da pele, distinções e cargos: Portugal e espaços
atlânticos portugueses (séculos XVI a XVIII). Tempo, n. 30, p. 115-145, 2010. p. 130.
71
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito racial..., p. 56; MATTOS, Hebe. A escravidão moderna..., p.
149.
72
ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. p. 22-23.
69
23
lhes impossibilitava, teoricamente, de terem acesso aos cargos políticos e demais signos
distintivos da monarquia portuguesa.
Foi sobre esta estruturação social que as reformas executadas a partir de 1750
incidiram. A ação régia sobre as restrições até então impostas aos vários grupos sociais foi
entendida por Hebe Mattos como representativa da busca pela “desnaturalização das
hierarquias sociais”. Segundo ela, a possibilidade de mudança dessas estruturas se deu através
do reforço do poder real “influenciado por alguns princípios do iluminismo”. 73 Dentre estes
princípios, o da liberdade recebeu especial atenção no discurso ilustrado, sendo apontado por
Francisco Falcon como “um dos princípios mais caros à ilustração”. 74 Assim, neste ambiente
informado pelo pensamento racional, foram lançadas as medias legais que buscaram equiparar
juridicamente diversos grupos sociais.
As primeiras manifestações desta tendência ocorreram já na primeira década do
reinado de D. José I e foram destinadas aos índios da América. A legislação estabelecida
visando à equiparação jurídica dessas populações em relação aos brancos constituiu um
verdadeiro plano, visto a série de leis que foram decretadas tendo-as como objeto. A primeira
destas iniciativas foi a de 4 de abril de 1755 e legalizou os casamentos entre portugueses e
indígenas, tendo validade para ambos os sexos. 75 Como justificativa principal, figurava a
necessidade de povoamento dos domínios da América. Seu aspecto inovador sem sombra de
dúvida foi o fim da nota de infâmia aplicada àqueles que contraíssem estes matrimônios, bem
como àqueles que já se encontravam nesta situação. Além disso, seriam “preferidos para
aqueles lugares, e ocupações, que couberem na graduação de suas pessoas e que seus filhos, e
descendentes, serão hábeis e capazes de qualquer emprego, honra ou dignidade sem que
necessitem de dispensa alguma”. Aos que infringissem a lei que os habilitava, impedindo-os
de adentrarem aos cargos públicos e honras, sem distinção de condição ou qualidade, seria
imposta pena de degredo.
Logo após a promulgação deste alvará, seguiu-se o de 6 de junho de 1755, o qual fora
destinado a garantir a liberdade dos indígenas. 76 A princípio destinado apenas aos índios do
Grão-Pará e Maranhão, fora estendido para toda a América portuguesa por alvará de 8 de
73
MATTOS, Hebe. A escravidão moderna..., p. 156.
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina..., p. 396.
75
Cf: Alvará de 4 de Abril de 1755. Concedendo privilégios aos que na América casarem com Índias naturais do
País. In: SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das
Ordenações. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia Maigrense, 1830. p. 367-368.
76
Cf: Lei de 6 de Junho de 1755. Para se restituir aos índios do Pará e Maranhão a liberdade de suas pessoas e
bens. In: SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das
Ordenações. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia Maigrense, 1830. p. 369-376.
74
24
maio de 1758. 77 Conforme a retórica da lei, até aquele momento os principais intentos da
Coroa, os quais consistiam em multiplicar o número de índios aldeados e civilizá-los, não
haviam sido concretizados por conta da ganância dos moradores que negligenciavam leis que
há muito previam a liberdade dos índios. 78 Chama-se atenção para o fato de que a menção a
um passado pretensamente mais justo e ‘igualitário’ e que teria sido corrompido ao longo do
tempo esteve presente na maioria das leis que visavam à elevação de status de certos grupos
sociais. Este recurso retórico certamente tinha funções muito precisas no interior da lógica de
afirmação do poder régio constante no período, visto que o monarca agiria também como um
restaurador das liberdades perdidas. No interior dessa perspectiva, declarou-se a liberdade aos
sobreditos índios, os quais passariam a “dispor de suas pessoas e bens como melhor lhes
parecer, sem outra sujeição temporal que não seja a que devem ter às minhas leis”. Através
deste ato, tornavam-se parte integrante dos “povos” confiados por Deus aos cuidados e
dependência do monarca, vivendo na “paz, união cristã e na sociedade civil” e por isso
gozando de “todas as honras, privilégios e liberdades de que os meus vassalos gozam
atualmente conforme suas respectivas graduações e cabedais”. Conjuntamente aos fatores
estratégicos e defensivos implicados, entende-se que a incorporação formal desta classe ao
Estado português como vassalos tinha o fim de moldar aspectos da própria sociedade que se
queria desenvolver na América. Nesta direção, civilizar os índios foi o aspecto de maior peso
nessas diretivas e demonstra como este valor foi central para a articulação desta inovação. 79
Visando à conclusão dos desígnios a respeito da liberdade dos índios, por alvará de 7
de junho de 1755 determinou-se o fim da administração temporal exercida pelos religiosos
nos aldeamentos, que deste momento em diante deveriam ser preferencialmente governados
por seus “principais”. No entanto, na visão dos homens de Estado envolvidos neste processo,
as populações indígenas ainda não seriam capazes de se governarem autonomamente. É esta a
constatação que aparece como justificativa no Diretório de 1758, a peça legal mais elaborada
para a execução dos projetos acerca dos indígenas. 80 Através dele determinou-se a nomeação
de diretores para governar aquelas povoações cujos “principais” indígenas ainda não se
encontrassem em condições de exercê-lo sozinhos. Sua obrigação primordial consistia em
77
Cf: Alvará de 8 de maio de 1758. Declarando livres os Índios do Brasil. In: SILVA, António Delgado da.
Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações. Suplemento à Legislação de
1750 a 1762. Lisboa: Typografia de Luiz Correa da Cunha, 1842. p. 604.
78
Especialmente legislação da segunda metade do século XVII.
79
FALCON, Francisco. A época pombalina..., p. 398.
80
Cf: Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará e Maranhão, enquanto Sua Majestade não
mandar o contrário. Pará, 3 de maio de 1757. In: SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação
Portugueza desde a última Compilação das Ordenações. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia
Maigrense, 1830. p. 507-530.
25
inculcar naquelas populações a civilidade. Este, na verdade, era o grande objetivo a que se
propunha o Estado português e, como foi lembrado no discurso presente ao Diretório, sempre
fora “a heróica empresa do incomparável zelo dos nossos católicos monarcas”. Ao que se
nota, as insígnias da civilidade eram compostas primeiramente pela adoção do cristianismo.
Como observou Marco Silveira, essa característica deu ao processo civilizador português um
arranjo particular, pois, na visão dos homens de Estado, ser civilizado dependia também da
condição de bom cristão e bom vassalo. 81 Apesar da importância conferida ao aspecto
religioso, a maior parte do texto da lei se detêm no delineamento dos aspectos temporais que
elevariam os índios à civilidade.
Percebe-se que este projeto de civilidade estava ancorado em dois grandes grupos de
mudanças. O primeiro incidia sobre a conduta pessoal dos índios e, neste sentido, adotar a
língua falada pelo monarca foi pontuado como “um dos meios mais eficazes para desterrar
dos povos rústicos a barbaridade de seus antigos costumes” e, agregado a isto, era a base para
a sujeição dos povos ao rei. O modelo de ação aqui empregado era sempre o apregoado pelas
“nações civilizadas”. É interessante relembrar que o lema da civilização sempre esteve
presente nos empreendimentos colonizadores e isto constituiu um verdadeiro instrumento de
poder nas mãos daqueles que precisavam de legitimidade para a conquista. Assim, não
bastava somente o domínio pela força física, mas, para que um império fosse mantido, era
essencial o governo das pessoas, “em parte através de si mesmas, através da modelação de
seus superegos”. 82 A consciência desta dimensão, aliás, foi explicitada no parágrafo 14º, no
qual é considerado que “a reforma dos costumes é a empresa mais árdua de conseguir-se,
especialmente por meios da violência, e do rigor”. Por isto, admoestava-se aos diretores para
que “usem dos meios da suavidade, e da brandura”. Agregado à adoção da língua, seguiam-se
a dos sobrenomes, da habitação em casas a semelhança dos brancos, de vestimentas e do
pagamento de dízimos. 83
O segundo grupo tinha como questão central o desenvolvimento da agricultura e do
comércio. No parágrafo 18º encontra-se, talvez, a principal medida a fim de evitar futuros
empecilhos a tais objetivos da Coroa. Nele deixou-se evidente que o fato de os índios viverem
à custa do trabalho desenvolvido em suas próprias terras não os inabilitava para exercerem os
empregos honoríficos, honras e privilégios aos quais estavam aptos desde 1755. Ao contrário,
81
SILVEIRA, Marco Antonio. O universo do indistinto: estado e sociedade nas Minas setecentistas (17351808). São Paulo: HUCITEC, 1997. p. 49.
82
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Formação do estado e civilização, v. 2. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1993. p. 258-259.
83
Cf: Diretório que se deve observar nas povoações dos índios..., parágrafos 11, 12, 13 e 15.
26
“ao que render mais serviço ao público neste frutuoso trabalho, terá preferência a todos nas
honras, nos privilégios, e nos empregos”. O que esta determinação significava era o término
do sentido infamante até então destinado àqueles que exerciam trabalhos manuais. 84 Estavam
implicados nesta ação interesses estratégicos, mas isso não lhe tira o caráter inovador, o qual
se torna mais patente ao se considerar que incidiu sobre uma sociedade ainda marcada pelos
sentidos de desprestígio advindos das ocupações e da ascendência.
Ao lado da agricultura, deu-se destaque ao comércio, apontado como um dos meios
mais privilegiados na condução dos Estados à felicidade, pois “enriquece os povos, civiliza as
nações, e, conseqüentemente, constitui poderosas as monarquias”. 85 Na perspectiva presente
ao Diretório, o desenvolvimento desta área só seria alcançado através da comunicação dos
índios com os homens brancos e daí a necessidade de sua coabitação nas povoações. 86 Sobre
este aspecto, asseverou-se que a “odiosa separação” em que viviam até o momento era a
“origem da incivilidade em que se acham reduzidos”. Porém, a partir deste momento, esta
distinção tornava-se ilícita e aos brancos se admoestava a convivência pacífica com os índios,
“considerando a igualdade que tem com eles na razão genérica de vassalos de sua
majestade”. 87 Nesta passagem, aparentemente usada com a finalidade única de justificar a
coexistência pacífica entre brancos e índios, vê-se claramente o ideal de sociedade
proclamado pelas novas orientações políticas do período. Já foi salientado que o reinado de D.
José I caracterizou-se pela busca da afirmação do poder real sobre os demais poderes
concorrentes e que uma das faces desta ação consistiu no cerceamento de privilégios. O
resultado destas orientações, no âmbito estatal, foi a criação e divulgação, como vimos, de um
novo modelo de sociedade e poder, o qual era baseado no binômio soberano-súditos. Pode-se
inferir que era esta imagem de sociedade a qual se estava referindo no texto do Diretório
quando se aludia à condição “genérica de vassalos” entre índios e brancos.
De maneira semelhante ao que sucedia na América em relação aos indígenas,
seguiram-se as medidas destinadas aos naturais da porção oriental do império. Por alvará de 2
de abril de 1761 determinou-se que “todos os vassalos nascidos na Índia oriental e domínios
da Ásia portuguesa”, desde que cristãos batizados e não tendo outra inabilidade de direito,
“gozam das mesmas honras, preeminências, prerrogativas e privilégios de que gozam os
84
Note-se que esta tendência foi destinada também a outros grupos sociais, a exemplo da nobreza, a qual passou
a estar liberada para o desempenho direto de atividades manuais, sem cair em desonra. FALCON, Francisco. A
época pombalina..., p. 404-405.
85
Cf: Diretório que se deve observar nas povoações dos índios..., parágrafo 36.
86
Cf: Diretório que se deve observar nas povoações dos índios..., parágrafo 80.
87
Cf: Idem, parágrafo 83. Grifos meus.
27
naturais destes reinos, sem a menor diferença”. 88 Previa-se, ademais, a preferência dos
naturais daquelas paragens para o exercício das “sobreditas honras, dignidades, empregos,
postos e ofícios”, desde que se mostrassem capazes. Note-se que o perfil daqueles que seriam
agraciados por esta determinação régia foi delineado a partir de duas características
preponderantes, as quais consistiam na adoção do catolicismo como religião e na
demonstração da capacidade pessoal.
O estabelecimento dessas condições indica uma inflexão nos critérios para conformar
vassalos dignos de receberem as condecorações de Estado. Se até este momento o que
prevalecia, ao menos na teoria, era o pertencimento a um dos estados nobres da sociedade e,
agregado a isto, a identidade de limpos ou impuros de sangue, a partir da legislação
promulgada no período pombalino começaram a despontar medidas legais que causavam
fissuras nesta tradição. Por outro lado, a historiografia tem chamado atenção para as causas
desta legislação, acentuando seu caráter estratégico e econômico. Nesta perspectiva, elevar os
naturais da Índia à condição de súditos habilitados vinha ao encontro da necessidade de
povoamento e defesa das poucas regiões ainda sob jurisdição portuguesa. Este mesmo
raciocínio é válido para a legislação referente aos indígenas. 89 Contudo, apesar destes
aspectos estarem presentes na própria legislação, chamo a atenção para o fato de que o fim
dessas inabilidades também estava ligado com os desígnios da coroa por uma mudança na
relação com seus súditos, buscando a homogeneização do corpo social no que dizia respeito à
configuração dos privilégios.
Na retórica presente ao alvará, e tão comum às outras leis do período, a separação
existente no Estado da Índia entre os naturais dela e os provenientes do reino teria sido
implantada pelos jesuítas a fim de enfraquecerem as partes que compunham o Estado para
que, então, “engrossassem o desmedido poder que chegaram a arrogar-se nestes reinos e todos
os seus domínios”. Como já foi salientado, um traço comum do discurso legitimador das
ações sobre os privilégios foi a alegação de que se estava restaurando uma pretensa
‘igualdade’ perdida. Nesta direção, alegava-se que os naturais da Índia “estiveram unidos
desde a primeira idade todos os meus vassalos daquele Estado com os que passam deste
reino”. Logo, as únicas diferenciações admitidas como justas eram as provenientes das
“virtudes, letras, ações recomendáveis e pelos cabedais licitamente adquiridos pelo decurso
88
Cf: Alvará de 2 de abril de 1761. In: SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde
a última Compilação das Ordenações. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia Maigrense, 1830. p. 793795. Por edital de 11 de agosto de 1763 esta disposição foi estendida aos naturais de Moçambique. Vide AHUMoçambique (Avulsos), cx. 22, doc. 31.
89
FALCON, Francisco José Calazans. A época pombalina..., p. 397; MAXWELL, Kenneth. Marquês de
Pombal…, p. 139-140.
28
dos tempos”. Eram estes os caminhos que “constituíam as diversas classes, que dentro da
mesma idêntica nação distinguem os diferentes estados, e, dentro em cada um deles, as
diferentes classes, os diferentes grêmios (...)”. Afirmações como estas sugerem que o mérito
individual passava a ter um valor cada vez mais preponderante na retórica oficial. Perante esta
tendência, as prerrogativas advindas do status de nobreza eram amenizadas, o que constituía
um dos objetivos das diretivas pombalinas.
Conjuntamente às medidas direcionadas às populações do ultramar, foram decretadas
outras destinadas aos grupos presentes no reino. Dentre estas, a que buscou dar fim à distinção
legal entre cristãos-velhos e novos causou grande impacto ao ser decretada numa
configuração social marcada pela intensa eficácia do valor da pureza de sangue como nota
distintiva dos indivíduos. A lei de 25 de maio de 1773 constituiu-se de uma extensa exposição
destinada a demonstrar como as ditas separações estavam em desacordo com o espírito da
“unidade do cristianismo” e da “Igreja universal e demais particulares de todas as nações mais
pias e ortodoxas”. 90 Na justificativa presente no texto legal, foi observado que o nome cristãonovo era admitido pela Igreja universal, mas com o intuito de “provarem a firmeza da fé dos
convertidos”. No entanto, nos domínios portugueses, este fim fora invertido com o intuito de
“deduzir a perpétua inabilidade, que por aquele longo período de tempo tem infamado, e
oprimido um tão grande número dos meus fiéis vassalos”.
Também nesta lei a memória histórica teve papel central, figurando como legitimadora
da ação real. O período decorrente desde o reinado de D. Afonso (1438-1481) até o de D.
Manuel (1495-1521) foi apresentado como um tempo de liberdades para os judeus
convertidos, situação que fora extinguida a partir de então. Note-se que o período que sucede
o reinado de D. Manuel foi o reinado de D. João III, no interior do qual instaurou-se em
Portugal o Tribunal do Santo Ofício (1536). No entanto, este fato não foi declarado no texto
legal, figurando como acusados os jesuítas, da mesma forma que se encontra na lei sobre os
naturais da Índia. Na percepção régia acerca desse grupo religioso, seu intento seria o de fazer
“passar a mesma Coroa a domínio estranho” e dividirem todas as classes do reino a fim de
mantê-las enfraquecidas perante seus intentos. Dessa forma, o fim dessa nota distintiva não
aparece como uma inovação do período, mas como um ato de restauração de uma condição
passada e, neste ponto, percebe-se a imagem real associada, uma vez mais, à de guardião da
justiça. Por sua vez, a noção de justiça aqui presente estava assentada na idéia de que o
90
Cf: Lei de 25 de maio de 1773. In: SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a
última Compilação das Ordenações. Legislação de 1763 a 1774. Lisboa: Typografia Maigrense, 1829. p. 672678.
29
monarca era o responsável pela “conservação dos mesmos vassalos em paz, e em sossego.
Removendo deles tudo o que é opressão, e violência. E tudo o que os pode dividir, e perturbar
neles a uniformidade de sentimentos, que constituem a união cristã, e a sociedade civil”. Essa
retórica em torno da função régia esteve presente não só na legislação, mas foi divulgada
também através das obras políticas da época, a exemplo das já discutidas Cartas de Ribeiro
Sanches, nas quais se viu que a perda da igualdade entre os súditos tinha como sintoma
imediato o fim da justiça. 91
Tendo como base este arcabouço legitimador, o qual tinha ao centro a noção de que o
rei “na temporalidade não reconhece na terra superior”, foi decretado o fim da distinção entre
cristãos-novos e velhos. Dentre os seis itens que compunham as novas orientações, o terceiro
chama atenção por seu conteúdo revolucionário. Primeiramente faz-se menção às leis “que
tenho mandado publicar sobre as outras inabilidades que nestes Reinos se maquinaram”.
Disso se depreende que o fim das notas de inabilidades constituiu uma verdadeira política
colocada em prática no período, fato que sustenta a conclusão de que o reinado de D. José I
foi marcado pela tentativa de estabelecimento de novos princípios organizadores da
sociedade. A partir da publicação desta lei, declarou-se que “as únicas regras da ingenuidade
ou inabilidade de todos os meus vassalos, de qualquer estado e condição que sejam”
passariam a ser conferidas, no caso das inabilidades, apenas pelos crimes de lesa majestade,
divina ou humana. Aos que fossem condenados por estas faltas seria conferida a nota de
infâmia, a qual também se estenderia aos descentes até a terceira geração. Fora este grupo,
“todos, e quaisquer dos outros vassalos naturais dos meus Reinos, e seus domínios, cujos
avós não houverem sido sentenciados pelos sobreditos crimes” passariam a ser considerados
ingênuos e hábeis. 92 Ora, entende-se que esta declaração poderia suscitar interpretações que
buscassem dar legitimidade ao fim das várias distinções sociais advindas da ascendência.
Constituindo parte essencial dos critérios para a habilitação ao recebimento de mercês, honras
e cargos públicos, acredita-se que as notas de infâmia passaram a ser minadas perante
posturas como esta. 93
91
Cf: SANCHES, Antonio Nunes Ribeiro. Cartas..., p. 81.
Grifos meus.
93
Mesmo perante determinação tão contundente, em 1774 houve a necessidade da promulgação de novas
disposições reafirmando-a e demarcando seus objetivos. Isso demonstra as dificuldades de extirpar pensamentos
há muito arraigados no corpo social, como bem notara Ribeiro Sanches ao discorrer sobre a lei de 25 de maio de
1773. Cf: MAXWELL, K. O marquês de Pombal..., p. 116. O aviso de 11 de março de 1774 fora destinado às
confrarias, irmandades, câmaras e demais corporações e ordenava que se averiguasse a continuidade das “notas
maliciosas” nestas instituições através da consulta aos seus estatutos e compromissos para ver se neles ainda
persiste algum interrogatório, disposição ou cláusula sobre a limpeza de sangue. In: SILVA, António Delgado
da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações. Suplemento à Legislação
de 1763 a 1790. Lisboa: Typografia de Luiz Correa da Cunha, 1844. p. 381-382. A lei de 15 de dezembro de
92
30
Até este momento discorreu-se sobre as ações emancipacionistas efetuadas durante o
reinado de D. José I, as quais incidiram sobre diversos grupos sociais de variadas porções do
império português. Contudo, no que diz respeito à figura do negro e seus descendentes,
cativos e livres, a situação mostrou-se bem mais complexa e marcada por ambigüidades. Algo
significativo nesta direção pode ser observado nos textos legais analisados acima. No
Diretório indígena tinha-se como orientação a extirpação do costume de chamarem aos índios
de negros, visto que esta nominação era indicativa de “infâmia e vileza”. Por trás deste
costume estaria a intenção de propagar entre os índios a idéia de que eram destinados pela
natureza a servirem aos brancos, “como regularmente se imagina a respeito dos pretos da
costa da África”. 94 Já no alvará sobre os naturais da Índia, as denominações “negros” e
“mestiços” eram consideradas “odiosas” e “ludibriosas”, utilizadas como pretexto para tornálos inábeis. 95 Note-se que mesmo em discursos caracterizados por um intenso apelo à
equiparação, as figuras do negro e do mestiço ainda eram admitidas como sinônimo de
infâmia. Estes eram grupos tratados de forma diferenciada no interior das políticas do período.
1.3 – Escravidão e pensamento jurídico-social em Portugal no século XVIII
Mesmo a escravidão não constituindo novidade na Europa quando do início das
explorações portuguesas na costa da África, é fato que durante o período moderno foram
ocorrendo mudanças que lhe conferiram características novas: a destinação desta condição
para não-europeus e majoritariamente para os negros; o desenvolvimento de um comércio de
larga escala e lucrativo; sua institucionalização com base em diversas justificativas legais e
religiosas. 96 As justificativas que conferiram legitimidade às ações portuguesas nos territórios
africanos foram delineadas ainda em meados do século XV, estando assentadas nas noções de
guerra justa e na cristianização de povos gentios. 97 Estas referências permaneceriam
praticamente intactas até meados do século XVIII, quando, como veremos, começaram a ser
1774 foi uma continuidade das duas precedentes e reafirmou o fim da nota infamante e a proibição da
confiscação dos bens daqueles judeus realmente convertidos ao catolicismo. In: SILVA, António Delgado da.
Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações. Legislação de 1763 a 1774.
Lisboa: Typografia Maigrense, 1829. p. 849-852.
94
Cf: Diretório que se deve observar nas povoações dos índios..., parágrafo 10.
95
Cf: Alvará de 2 de abril de 1761...
96
BLACKBURN, Robin. A queda do escravismo colonial: 1776-1848. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 45-80;
ELTIS, David. Europeans and the rise and fall of african slavery in the Americas: an interpretation. The
American Historical Review. v. 98, n. 5, p. 1399-1423, 1993; Note-se, porém, que durante os séculos XV e XVI,
mouros, judeus, indianos e indígenas também eram passíveis de escravização legítima. RUSSELL-WOOD, A. J.
R. Iberian expansion and the issue of black slavery: Changing Portuguese attitudes, 1440-1770. The American
Historical Review, v. 83, n. 1, p. 16-42, 1978. p. 21.
97
MATTOS, Hebe. A escravidão moderna..., p. 145.
31
divulgadas opiniões que colocavam parte desta teoria jurídica em questão e, em alguns casos,
a negavam. A partir do estabelecimento da legalidade do comércio escravista, o “cativeiro se
tornaria a forma por excelência de incorporação ao império português e à fé católica de
indivíduos salvos do paganismo”. 98
A importância que a escravidão assumiria no interior do império português como
instituição mantenedora da mão-de-obra que garantia a produtividade colonial deu lugar a
uma sociedade composta por novas características. Sobre este aspecto, a historiografia tem
acentuado que a escravidão deve ser entendida como um processo, do qual a alforria era parte
integrante e fundamental. No que diz respeito aos territórios portugueses e, principalmente, a
América, esta dinâmica do sistema escravista foi responsável por garantir a reprodução da
instituição durante praticamente quatro séculos. Nesta perspectiva, a constante incorporação
de novas levas de escravos advindos da África teria relação direta com as altas taxas de
alforrias que são observadas notadamente para o Brasil e mais acentuadamente a partir do
século XVIII. 99
A inserção dos escravos na estrutura social portuguesa de Antigo Regime se deu
através de um estatuto jurídico que lhes conferia a condição de propriedade, tradição, aliás,
que remontava ao direito romano: “desde que o homem é reduzido à condição de coisa,
sujeito ao poder e domínio ou propriedade de um outro, é havido por morto, privado de todos
os direitos, e não tem representação alguma, como já havia decidido o direito romano”. 100 A
despeito desta teorização hermética, na prática as relações sociais delineadas entre senhor e
escravo poderiam ganhar contornos mais maleáveis, questão que será analisada em outro
momento. Cabe, entretanto, ressaltar desde já que aos libertos e seus descendentes livres o
estatuto jurídico português também reservava um lugar social marcado pelo estigma. Brion
Davis, em estudo clássico sobre a escravidão, chamou atenção para a existência de um campo
discursivo similar acerca dos negros e mulatos libertos e livres em todas as colônias da
América. Estes sujeitos, mesmo estando fora do cativeiro, eram discriminados legal e
socialmente, situação decorrente de um “conceito claramente uniforme da escravidão como
um estado de absoluta sujeição e degradação”. 101 Esta caracterização depreciativa a respeito
98
MATTOS, Hebe. A escravidão moderna..., p. 145.
MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica da escravidão no Brasil. Resistência, tráfico negreiro e alforrias,
séculos XVII a XIX. Novos Estudos, v. 74, p. 107-123.
100
MALHEIROS, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social. 1ª
parte: Direitos sobre os escravos e libertos. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1866. Apesar de este ensaio ter
sido escrito no período imperial, seus apontamentos acerca da esfera jurídica da escravidão constituem uma
espécie de recopilação da tradição jurídica portuguesa e romana sobre o tema.
101
DAVIS, David Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001. p. 324.
99
32
do escravo indubitavelmente era repassada, ainda que em graus diferentes, aos seus
descendentes livres. É interessante notar que referências depreciativas para com negros e
mulatos, escravos e livres, eram veiculadas em Portugal desde o século XVI. Segundo Didier
Lahon, textos literários, alguns servindo de base para peças teatrais, usavam um vocabulário
bestial para caracterizá-los. Conforme hipótese de Lahon, uma análise exaustiva dessa
literatura revelaria um endurecimento dos posicionamentos sociais e do vocabulário para com
negros e mulatos após as décadas de 1760-1770, como reações aos alvarás pombalinos sobre a
escravidão de 1761 e 1773. 102 Esse tipo de posicionamento também foi comum na América,
onde, por exemplo, mulatos eram taxados de insolentes e preguiçosos. 103
Dessa forma, na sociedade portuguesa aos homens de cor livres e libertos era atribuído
um lugar social marcado pelo desprestígio advindo da ancestralidade escrava, visto que, como
observou Brion Davis, a condição cativa era entendida como um estado de absoluta sujeição e
degradação. 104 Tendo isso em vista, considera-se, então, que a escravidão e a condição de
livre estavam integradas num mesmo sistema de referências no qual a componente geracional
constituía aspecto central. A historiografia tem situado a inclusão de negros e mestiços na
categoria dos grupos inabilitados durante o século XVII. A este respeito, e especificamente
tratando do caso de Portugal, Didier Lahon sugeriu que durante grande parte do século XVI
os negros, tanto escravos como libertos, eram admitidos como confrades nas Misericórdias,
apesar de não poderem assumir funções de responsabilidade e autoridade. No entanto, a partir
do último quartel do século, as confrarias teriam começado a mudar suas atitudes nesse
domínio. Passaram a aplicar critérios de pureza de sangue para a admissão de seus membros
e, então, a excluírem negros e mulatos. Enfim, tornavam-se instituições exclusivas para
brancos puros de sangue e dotados de cabedais. 105
A compreensão da natureza e funcionalidade da mácula imputada aos mulatos vem
ganhando destaque nos trabalhos historiográficos dos últimos anos. Pesquisas recentes como
as de Francis Dutra demonstram que a origem gentia, negra ou mulata não era concebida
como defeito de sangue – dimensão associada aos descendentes de cristãos-novos – mas como
“falta de qualidade”, relacionada ao exercício de ofícios mecânicos. Para ele, essa diferença
102
LAHON, Didier. Esclavage et confréries noires au Portugal durant l’Ancien Régime (1441-1830). Formes et
diversité des rapports esclavagistes. (v. 1). Tese (doutorado em História) – Ecole des Hautes Etudes en Sciences
Sociales, 2001. p. 278-284.
103
LARA, Silvia Hunold. Fragmentos Setecentistas: Escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 170-171; PESSOA, Raimundo Agnelo Soares. Gente sem sorte: Os
mulatos no Brasil colonial. Tese (doutorado em História) – UNESP-Franca, 2007. Ver especialmente o tópico
“Sem mimos: os discursos sobre os mulatos”, p. 135-156.
104
DAVIS, David Brion. O problema..., p. 324.
105
LAHON, Didier. Esclavage et confréries noires..., p. 516-519.
33
de sentido é essencial à compreensão das dispensas da cor em habilitações para a concessão
de hábitos das ordens militares portuguesas a mulatos durante o século XVII e primeiras três
décadas do XVIII, visto que “falta de qualidade” era mais facilmente dispensada em
comparação com o sangue impuro cristão-novo. 106 Já na perspectiva de Fernanda Olival e
João de Figueirôa-Rego, a cor da pele, ou o “sangue escravo”, desde início do século XVII
passou a integrar o sistema de exclusão social presente em habilitações ao recebimento de
títulos de ordens militares: “aos dois tipos de sangue repudiados juntou-se mais um, sem plena
equivalência de estatuto”. Neste aspecto Olival e Figueirôa-Rego mostram-se alinhados com a
perspectiva de Dutra, pois consideram que o sangue africano não era tomado como impuro
pela Mesa da Consciência e Ordens.
107
Contudo – após o exame de situações envolvendo o
provimento de pessoas de cor em cargos públicos na América portuguesa – sugerem que ao
longo do século XVIII o peso do “defeito de sangue escravo” “aproximava-se da mácula de
sangue cristão-novo”. 108
De fato, ser mulato, o que implicava ter ascendência africana e escrava, foi sendo
institucionalizado como um “defeito” desde finais do século XVII. Vimos que no decreto de
16 de agosto de 1671 os mulatos aparecem ao lado de judeus e mouros como grupo
inabilitado aos ofícios públicos. 109 É plausível que a partir desse momento o sangue mulato
passou a ser relacionado com o que o pensamento social da época denominava de “raças
infectas”. O decreto de 1671 foi promulgado como extensão de uma lei de 25 de julho de
1640, a qual declarava que devia “ser de limpo sangue a pessoa que houver de servir ofício
público”. Neste caso, o grupo focalizado era a “nação hebréia”. 110 Também por alvará de 15
de julho de 1671 declarou-se que a câmara de Lisboa “não dê ofício, nem serventia a
estrangeiros, nem a pessoa de nação infecta”. 111 No tocante a América portuguesa, a noção de
que negros e mulatos constituíam “nações infectas” encontra-se nas Constituições primeiras
do Arcebispado da Bahia, de 1707. Indicava-se que se perguntasse, entre outros
“impedimentos”, se o candidato “tem parte de nação hebréia, ou de outra qualquer infecta: ou
106
DUTRA, Francis A. Ser mulato em Portugal nos primórdios da época moderna. Tempo, n. 30, p. 101-114,
2010.
107
OLIVAL, Fernanda; FIGUEIRÔA-RÊGO, João de. Cor da pele..., p. 138.
108
Idem, p. 145.
109
Cf: Decreto sobre a mesma matéria da Carta de 25 de julho de 1640...
110
Cf: Carta d’ElRei, em que se declara, que deve ser de limpo sangue a pessoa, que houver de servir Officio
publico. Ordenações Filipinas, Livro I, Título 35 ao princípio. In: FREITAS, Joaquim Inácio de. Collecção
Chronologica de Leis Extravagantes, Posteriores à Nova Compilação das Ordenações do Reino, Publicadas em
1603, t. 1. Coimbra: Real Imprensa da Universidade, 1819. p. 85-86.
111
Cf: Alvará de 15 de julho de 1671. Não se dêem ofícios nem serventias a estrangeiros, ou cristãos-novos. In:
SILVA, José Justino de Andrade e. Collecção Chronologica da Legislação Portugueza. 1657-1674. (2.ª série).
Lisboa: Imprensa de F. X. de Souza, 1856. p. 191.
34
de negro, ou mulato”. Qualquer um que apresentasse algum desses “defeitos” estava, em
teoria, vedado à entrada na vida sacerdotal. 112 Segundo o dicionário de Bluteau, os termos
“raça” e “nação” eram correlatos e referiam-se também aos descendentes de judeus, mouros e
a cristãos-novos. 113 No entanto, é fato que tais expressões foram paulatinamente sendo
empregadas na definição do lugar social de negros e mulatos, como se depreende através da
análise das sobreditas leis. Hebe Maria Mattos sugeriu essa mesma relação ao investigar
processos de habilitação ao recebimento de hábitos das ordens militares por oficiais negros do
terço dos Henriques de Pernambuco em fins do século XVII e primeira década do XVIII.
Conforme ela, “em torno do final do século XVII a cor tornara-se signo de raça, trazendo
consigo todos os impedimentos que isso pressupunha”. 114 Dessa forma, apesar das naturezas
diversas do desprestígio imputado a cristãos-novos e aos descendentes de africanos, o peso
institucional desses estigmas quando se tratava da realidade colonial poderia ter a mesma
funcionalidade, visto que negros e mulatos conformavam também “nações infectas”.
Considerando a escravidão a partir de sua dinâmica própria, a qual produzia
constantemente sujeitos livres, mas que eram estigmatizados devido às máculas advindas do
antigo estado de sujeição, cabe, pois, agora discorrer sobre a influência, no campo intelectual,
das idéias ilustradas sobre o pensamento português acerca da escravidão na segunda metade
do século XVIII.
1.4 – Literatura e escravidão: a disseminação das idéias ilustradas
A literatura que versava sobre a escravidão nos domínios portugueses até a primeira
metade do século XVIII fora elaborada essencialmente por religiosos. Nela não se encontram
sugestões para o fim do tráfico e da escravidão, mas seus discursos buscavam normatizar a
instituição. 115 São exemplos dessa vertente os escritos de Antonil e Jorge Benci, ambos
112
Cf: Livro I, título LIII. “Das diligências, que se requerem para todas as ordens; e da forma com que se devem
fazer”. Constituiçoens primeyras do arcebispado da Bahia feytas, & ordenadas pelo...senhor d. Sebastião
Monteyro da Vide...propostas, e aceytas em o Synodo Discesano |sic|, qve o dito senhor celebrou em 12 de junho
do anno de 1707. Coimbra: Real Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1720.
113
“Nação: § gente de nação, descendente de judeus, cristãos-novos. § raça, casta, espécie; Raça: Casta; § Ter
raça, ter sangue de Mouro, ou Judeu. Compromisso da Misericórdia.” In: BLUTEAU, Rafael. Vocabulário
português e latino... Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1721.
114
MATTOS, Hebe Maria. “Black troops” and hierarchies of color in the Portuguese Atlantic world: the case of
Henrique Dias and his black regiment. Luso-Brazilian Review, v. 45, n. 1, p. 6-29, 2008. p. 22-23.
115
PIMENTEL, Maria do Rosário. Viagem ao fundo das consciências. A escravatura na época moderna. Lisboa:
Edições Colibri, 1995. p. 137-138.
35
religiosos da Companhia de Jesus. 116 Estas obras foram direcionadas especificamente aos
senhores e constituíam verdadeiros guias para o delineamento de suas obrigações para com os
escravos, tendo como elemento norteador a moralidade cristã. 117 Aos cativos deveriam ser
garantidos o alimento, a vestimenta, o castigo corretivo e o ensino da doutrina religiosa
católica. Ao analisar os discursos presentes nestas obras, Ronaldo Vainfas sugeriu que “os
jesuítas convergiam, sem dúvida, para um mesmo projeto ideológico”, o qual foi denominado
pelo autor de “projeto escravista-cristão”. 118
Imerso num campo de referências comuns aos religiosos que lhe antecederam, o padre
e bacharel Manuel Ribeiro Rocha constitui figura controversa para a historiografia.119 O seu
Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado, de 1758, consiste
num discurso teológico-jurídico que, ao fim das contas, buscava dar legitimidade à
escravidão. 120 O livro foi estruturado em dois blocos temáticos. Nas três partes iniciais, as
quais, aliás, conferem a peculiaridade de seu trabalho se comparado aos escritos dos religiosos
que o antecederam, tem-se a exposição de um tratado jurídico acerca do tráfico de escravos,
discorrendo sobre as situações que o tornavam legítimo ou ilegítimo. Nas quatro partes
seguintes figuram as orientações próprias aos senhores, de forma geral as mesmas que haviam
sido prescritas por Jorge Benci em sua Economia Cristã.
No que concerne aos argumentos jurídicos, Rocha partiu do princípio segundo o qual
tanto o direito natural como o das gentes admitiam a escravidão, mas nas seguintes condições:
gentio cativado em guerra justa; gentio que cometera delito grave em sua terra; a venda do
filho como escravo pelo pai devido a necessidades. 121 Mesmo admitindo que muitos africanos
eram levados a esta condição por meios ilícitos e que, por direito natural, suas liberdades
116
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil [por suas drogas e minas. Com várias notícias curiosas
do modo de fazer o Açúcar, plantar e beneficiar o Tabaco; tirar Ouro das Minas; & descobrir as da Prata; e dos
grandes emolumentos que esta Conquista da América meridional dá ao Reino de Portugal com estes, & outros
gêneros, & Contratos Reais] [1711]. (3 ed.). Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1982; BENCI S. I., Jorge.
Economia cristã dos senhores no governo dos escravos [1700]. São Paulo: Editorial Grijalbo, 1977.
117
Rafael Marquese chamou atenção para o fato de que, apesar de serem destinados aos senhores, estes livros
tiveram pouca circulação na América. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle
dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 173.
118
VAINFAS, Ronaldo. Ideologia e escravidão. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1986. p. 152.
119
Alguns autores entenderam que sua obra já apresentava traços do pensamento ilustrado, como AZEVEDO,
Célia M. Rocha’s The Ethiopian Redeemed and the curculation of anti-slavery ideas. Slavery and Abolition,
Londres, v. 24, n. 1, p. 101-126, 2003. A maioria dos trabalhos, no entanto, o viu como um continuador da
tradição jesuítica: MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores..., p. 177-179; PIMENTEL, Maria do Rosário. Idem,
p. 245-250; VAINFAS, Ronaldo. Idem, p. 147.
120
Cf: ROCHA, Manoel Ribeiro. Etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído e libertado.
Discurso teológico-jurídico em que se propõe o modo de comerciar, haver, e possuir validamente, quanto a um, e
outro foro, os pretos cativos africanos, e as principais obrigações que correm a quem deles se servir [1758]. São
Paulo: Editora Vozes, 1992.
121
Cf: Idem, p. 5.
36
deveriam ser restituídas, não foi esta a sugestão de Rocha. 122 Segundo sua perspectiva,
estavam em jogo interesses comerciais “necessários ao reino” e, a fim de solucionar este
impasse, indicou um meio “suave”: o comércio de escravos deveria ser feito não a título de
compra, mas sim de resgate, o que significava que o senhor que adquirisse o escravo seria
proprietário tão somente do valor do resgate e não da liberdade da pessoa em si.
Brion Davis chamou a atenção para o fato de que no século XVIII parte significativa
da opinião pública acerca da escravidão era formulada tendo em vista os interesses
econômicos. Também o “ideal do equilíbrio social”, acompanhado do medo de mudanças
bruscas, era corrente mesmo entre os mais ferrenhos defensores da liberdade. 123 Confluindo
para esta perspectiva, o que o Etíope indicava era a legalidade do comércio praticado sob a
forma de resgate e retenção do escravo até que este pagasse o seu valor. Saliente-se, no
entanto, que o tempo previsto para a quitação desta dívida chegaria a vinte anos, o que, na
prática, significava garantir a lucratividade deste comércio. 124 Mesmo tecendo comentários
pontuais sobre a igualdade entre escravos e senhores, conferida pela natureza, para Rocha a
escravidão seguia intacta como instituição e mesmo como alternativa benéfica aos cativos. 125
No plano de comércio escravista proposto pelo religioso, os escravos seriam resgatados da
morte na África, sustentados na América, transformados em sujeitos civilizados e no provir
gozariam da liberdade.
Alguns anos após a publicação do Etíope surgiu em Portugal, em 1764, um opúsculo
de autoria desconhecida intitulado Nova e Curiosa relação de um abuso emendado ou
evidências da razão, expostas a favor dos homens pretos em um diálogo entre um letrado e
um mineiro. 126 Como indica o título, o texto foi construído sob a forma do diálogo entre dois
personagens, um mineiro e um letrado, o qual foi travado em Portugal. 127 O mineiro recorreu
ao letrado buscando conselhos sobre um impasse: Queria vender seu escravo para o Brasil
como castigo por este ter passado a lhe desagradar após ter sido desenganado da promessa de
122
Cf: Idem, parágrafo 8, p. 27.
DAVIS, David Brion. O problema da escravidão..., p. 440-443.
124
Cf: ROCHA, Manoel Ribeiro. Etíope resgatado..., parágrafo 32, p. 62.
125
Cf: Idem, parágrafo 15, p. 95.
126
Foi Charles Boxer quem descobriu a existência deste opúsculo e o publicou em 1967. Dentre os autores que já
se detiveram em sua análise estão: BOXER, Charles. Race relations in the portuguese colonial empire, 14151825. Londres: Claredon Press, 1963. p. 104-110; PIMENTEL, Maria do Rosário. Viagem..., p. 253-258;
DAVIS, Brion. Idem, p. 508; PARRON, Tâmis. A Nova e Curiosa Relação (1764): Escravidão e ilustração em
Portugal durante as reformas pombalinas. Almanack Brasiliense, n. 8, p. 92-107, 2008.
127
Cf: [ANÔNIMO ou AUTORIA DESCONHECIDA]. Nova e curiosa relação de um abuso emendado ou
evidências da razão, expostas a favor dos homens pretos em um diálogo entre um letrado e um mineiro. Lisboa:
Oficina Francisco Borges de Sousa, 1764. Disponível em: http://arlindo-correia.com/060509.html; BOXER, C.
R. Um panfleto raro acerca dos abusos da escravidão do negro no Brasil (1764). Reimpresso e comentado por
C.R.B. In: Anais do Congresso Comemorativo do Bicentenário da Transferência da Sede do Governo do Brasil
da Cidade do Salvador para o Rio de Janeiro, 1963, Rio de Janeiro, vol. 3, p. 171-186.
123
37
alforria que lhe fizera dez anos antes, como recompensa pelos bons serviços prestados. No
entanto, por ser o escravo membro da irmandade de Nossa Senhora do Rosário e por esta ter o
privilégio real de que seus irmãos escravos não pudessem ser vendidos para o ultramar, seu
intento fora malogrado.
Ao longo da exposição fica evidente que as opiniões tecidas pelo mineiro são
representativas de um pensamento tradicional acerca dos negros e da escravidão. Já as
asserções do letrado trazem ao debate novas percepções, marcadas por um pensamento
racional. As questões que dão curso ao diálogo foram delineadas pelo questionamento acerca
da natureza do negro. A este respeito, a posição do mineiro é bem representada pela
afirmação: “os negros não são gente como nós”. O princípio desta desigualdade estaria na
ascendência de um e outro grupo, pois, segundo o mineiro, os brancos seriam provenientes de
Adão e os negros de Caim, o qual se acreditava fosse preto e que fora amaldiçoado por Deus.
A este primeiro argumento o letrado recusou com base na razão, afirmando que se os negros
fossem descendentes de Caim, seriam também de Adão, visto que era seu pai. Assim, por
meio do raciocínio lógico, o letrado declarou a humanidade comum a brancos e negros. A
segunda evidência das diferenças entre brancos e negros estava assentada na cor, o que
também é recusado imediatamente pelo letrado: “Senhor, o homem mais preto de toda a
África, em razão de homem, é tão homem como o alemão mais branco de Alemanha”. E, a
fim de endossar essa afirmativa, são aludidos exemplos de homens e mulheres pretos célebres
na história, dentre os quais figurava Henrique Dias, uma das figuras mais eminentes no
contexto da restauração de Pernambuco ao domínio português, em 1654. 128
Ora, na fala do letrado pode-se ver claramente uma postura conectada com o
pensamento racional em voga no período, pois nega aspectos tidos como naturais e religiosos
para a legitimação da escravidão dos negros e lança a perspectiva histórica. Segundo
explicitou o letrado, a escravidão era decorrente de “razões políticas e permitidas”. Prova
disso seria o costume romano de escravizar prisioneiros de guerra, o qual teria prevalecido
entre algumas nações da Europa. Porém, “hoje já este abuso está extinto. Unicamente os
mouros atualmente reputam aos europeus que cativam como escravos”. Ou seja, apesar de o
europeu não ser mais passível de escravização por europeus, isso já ocorrera no passado, o
que comprovaria o fato de a escravidão não ser algo natural, mas historicamente construída.
Como resultado, tem-se a negação completa de qualquer ligação entre cor da pele e
escravidão, idéia esta até então amplamente divulgada como justificativa para a legitimidade e
128
Sobre Henrique Dias ver: MELLO, José Antônio Gonsalves de. Henrique Dias: governador dos crioulos
negros e mulatos do Brasil. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1988.
38
inferioridade do homem negro. A historiografia tem observado que a partir de meados do
século XVIII as justificativas tradicionais para a escravidão passaram a ser questionadas por
parte da opinião pública. 129
Seguindo esta tendência e apresentando uma discussão diretamente conectada com as
polêmicas que ganhavam vulto na época, tem-se o opúsculo A liberdade dos filhos dos
escravos demonstrada pelas leis da natureza ou dissertação em que a respeito da escravidão
se tem um meio entre a doutrina de Pufendorf e Barbeyrac por uma parte, Montesquieu e o
autor do artigo da Enciclopédia relativo a esta matéria pela outra. As informações sobre seu
autor, José Veríssimo dos Santos, não são precisas, mas considera-se a possibilidade de ter
sido professor régio de filosofia em Tomar. O texto foi apresentado à censura em Portugal em
1772 e sua ficha indica que a publicação não foi aprovada. 130 A principal preocupação do
autor consistia em negar o princípio de que a escravidão era repassada da mãe para os filhos.
Esta era, aliás, uma das formas mais tradicionais através da qual alguém se tornava escravo
legitimamente, disposição proveniente do direito romano. 131
Remetendo-se às discussões acerca do estado natural e da sociedade civil, Veríssimo
afirmou que “o estado da natureza é um estado de igualdade: aqui não há rico, nem pobre, não
há rei, ou vassalo, não há senhor, ou escravo”. Em sua perspectiva, a desigualdade teria
surgido do mau uso da liberdade, dando origem aos variados estados de que se compõe a
sociedade civil. Assim, passaram a existir leis contrárias ao espírito daquelas “que o soberano
autor do mundo pôs desde o seu princípio para governo dos homens”, as quais eram as leis da
natureza. Em decorrência, a escravidão “não é algum dos estados naturais”. Desta constatação
resultaria a legitimidade das opiniões expressadas pelo autor, visto que “dos estados que são
efeitos destas leis, é que o homem justamente se pode queixar”. Ou seja, seus
questionamentos acerca da escravidão eram justos na medida em que estava buscando uma
adequação com os preceitos da lei natural.
129
BLACKBURN, Robin. A queda do escravismo..., p. 75; DAVIS, David Brion. O problema da escravidão...,
p. 495; PIMENTEL, Maria do Rosário. Viagem ao fundo das consciências..., p. 195. Sobre as justificativas
acerca da inferioridade do homem negro e das justificativas tradicionais para sua escravização ver: DAVIS, p.
496-500 e PIMENTEL, p. 175-187.
130
SANTOS, José Veríssimo dos. A liberdade dos filhos dos escravos demonstrada pelas leis da natureza ou
dissertação em que a respeito da escravidão se tem um meio entre a doutrina de Pufendorf e Barbeyrac por uma
parte, Montesquieu e o autor do artigo da Enciclopédia relativo a esta matéria pela outra. [1772]. DirecçãoGeral de Arquivos – Portugal (DGARQ-PT). Real Mesa Censória, cx. 283, doc. n.º 1463. Disponível em:
http://digitarq.dgarq.gov.pt/viewer?id=4463373. Maria do Rosário Pimentel, na obra supracitada, discute por
algumas páginas este opúsculo. Ver p. 274-277.
131
MALHEIROS, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil..., p. 30; PIMENTEL, Maria do
Rosário. Idem, p. 219-222.
39
Apesar de admitir a escravidão como um estado não natural e introduzido pelo
homem, Veríssimo não sugeriu seu fim, mas procedeu a uma retrospectiva das formas
historicamente aceitas para seu estabelecimento, praticamente todas provenientes do direito
romano: direito de guerra, o principal modo através do qual alguém se tornava escravo; venda
da liberdade do filho pelo pai; desertores; casamento de homem livre com escrava. No
entanto, a única forma admitida pelo autor como aceitável para se imputar a escravidão era
como castigo por um grande delito praticado, sentença esta retirada de Pufendorf. Não
obstante concordar com este princípio apregoado pelos “jurisconsultos naturais”, em muitos
outros pontos Veríssimo os nega: idéia do escravo como coisa pertencente ao senhor e, por
isso, seus filhos integram seus bens; direito de guerra quando não há ameaça alguma; noção
de que a condição jurídica dos pais passa para os filhos. Por fim, partindo da máxima de que
só podem ser reputados como escravos aqueles que cometeram delitos graves, fica mais do
que evidente que, na perspectiva de Veríssimo, os filhos, não tendo praticado delito algum,
não podem ser castigados, posto que são inocentes.
Cabe notar que as opiniões emitidas por Veríssimo dos Santos eram comuns aos
discursos ilustrados sobre a escravidão no período. Pelo título fica evidente o diálogo
estabelecido pelo autor entre os autores clássicos do direito natural e aqueles representativos
da corrente ilustrada, com especial propensão para estes últimos. Pensando especificamente
na vertente francesa, a qual é a referência explicitada pelo autor, vê-se que, de forma geral,
admitia que a escravidão era um estado contrário às leis da natureza e refutava o direito de
guerra e o da venda pessoal da liberdade como justificativas para a escravidão. No entanto, no
contexto da segunda metade do século XVIII, apesar da crescente referência ao direito
natural, à liberdade e à igualdade, dificilmente sugeria-se o fim imediato da instituição. Já foi
salientado que estavam em jogo interesses econômicos bem como o medo do desequilíbrio da
ordem social. Por outro lado, o pensamento ilustrado sobre a escravidão ao mesmo tempo em
que procedia à quebra de várias justificativas tradicionais da instituição, muitas de suas idéias
elementares também podiam ser usadas como justificativas da perpetuação da escravidão. 132
Ao lado de opiniões pontuais que expressavam a injustiça da escravidão dos negros,
em Portugal ganhara expressão outra vertente, esta preocupada em manter intacta a
instituição. Agregados no interior da Real Academia de Ciências de Lisboa, fundada em 1779,
seus propagadores ressaltavam a importância do tráfico de escravos e do trabalho escravo para
132
BLACKBURN, Robin. A queda do escravismo..., p. 45-77; DAVIS, David Brion. O problema da
escravidão..., p. 435-491; MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores..., p. 90-93; PIMENTEL, Maria do Rosário.
Viagem…, p. 195-209.
40
a riqueza imperial. Assim, os trabalhos ali desenvolvidos, propunham uma administração
racional de todo o processo, desde a obtenção dos escravos na costa africana até a vida diária
na colônia. O que estava em pauta era, mais do que propor um tratamento humanitário para os
escravos, fazer-lhes render ao máximo. Era o espírito racional imposto ao ordenamento da
escravidão, apesar de aspectos da corrente cristã ainda persistirem, como os deveres morais e
religiosos de senhores para com seus escravos. Nestes discursos, as tradicionais referências
para a legitimidade da escravização dos negros mantiveram-se inalteradas. 133
Nesse meio, sem sombra de dúvida, o prelado José Joaquim de Azeredo Coutinho foi
o principal representante. Figura controversa entre a historiografia, seu pensamento é aqui
relembrado para tornar evidente a complexidade das referências sobre a escravidão que
coexistiam ao longo da segunda metade do século XVIII. 134 De suas obras, as que tratavam da
escravidão são a Análise sobre a justiça do comércio do resgate dos escravos da costa da
África (1798) e Concordância das leis de Portugal, e das bulas pontifícias, das quais umas
permitem a escravidão dos pretos de África, e outras proíbem a escravidão dos índios do
Brasil (1808). 135
Mesmo inserido num contexto no qual a opinião pública sobre a injustiça da
escravidão avultava, Azeredo Coutinho não hesitou em proceder em defesa da instituição,
tendo em vista os interesses econômicos de Portugal sobre o comércio escravista, bem como
sobre a mão-de-obra para sua colônia mais próspera, a América portuguesa, da qual era filho
ilustre e proprietário de escravos.
Como asseverou na Análise, seus objetivos consistiam em “desmascarar os insidiosos
princípios da seita filosófica”. Pelas menções do texto fica claro que o referencial a ser
atacado eram os preceitos advindos dos ilustrados franceses. Ademais, também buscava
“persuadir os senhores a tratar bem os seus escravos pelo seu mesmo interesse”. 136 Como
indicou Rafael Marquese, o pensamento da ilustração européia de meados do século XVIII
133
MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo..., p. 176-191; SCHULTZ, Kirsten. The crisis of empire
and the problem of slavery: Portugal and Brazil, c. 1700-1820. In: Symposium: Imperial Trauma, part 1. Duke
University Press, 2005. p. 264-282.
134
Sobre o autor e suas obras ver: NEVES, Guilherme, P das. Pálidas e oblíquas luzes: J. J. da C. De Azeredo
Coutinho e a Análise sobre a justiça do comércio do resgate dos escravos. In: SILVA, Maria. B. N da (Org.).
Brasil: Colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. p. 349-370; MARQUESE, Rafael de
Bivar. Idem, p. 188-190; PIMENTEL, Maria do Rosário. Viagem ao fundo das consciências..., p. 262-273;
SCHULTZ, Kirsten. Idem, p. 270-271.
135
A Análise foi publicada pela primeira vez em Londres e em francês, em 1798. Sua publicação em Portugal só
se dera em 1808, pois foi recusada anteriormente pela Real Academia de Ciências. PIMENTEL, Maria do
Rosário. Idem, p. 262-263.
136
Cf: COUTINHO, José Joaquim de Azeredo. Análise sobre a justiça do comércio do resgate dos escravos da
Costa da África [1808]. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (Apresentação). Obras Econômicas de J. J. da
Cunha de Azeredo Coutinho. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1966, p. 233.
41
sobre a escravidão fora marcado pelo binômio humanidade e interesse. Assim, os clamores
pelo bom tratamento aos escravos, muito mais do que ligado a sentimentos genuinamente
humanitários, visavam sua utilização racional, a qual resultaria em benefícios econômicos. 137
Dentre os princípios que buscava combater, aquele que proclamava a escravidão como
injusta por estar em desacordo com o direito natural e a humanidade constituiu-se no centro
do debate desenvolvido por Coutinho. Para ele, “todos os direitos naturais de cada um dos
homens nascem da necessidade da sua existência”. 138 Dessa forma, não haveria possibilidade
da existência de uma lei natural conferida indistintamente a todos os homens, pois “a lei
natural, que regula o maior bem do homem no meio das circunstâncias ou perigos, não é
absoluta, mas sim relativa às circunstâncias em que cada membro ou sociedade se acha”. 139
Coutinho, com base no direito romano, indicou a existência de dois tipos de direito natural, o
absoluto e o secundário. O primeiro seria conferido pela natureza a todos os animais e
consistia no direito à defesa e sobrevivência. O segundo é o que imperava nas sociedades, o
qual buscava garantir o maior bem. 140 Em seu pensamento, as sociedades eram por origem
desiguais, fato este derivado de seu ordenamento sob o direito do vencedor e da propriedade
privada. 141
No interior dessa organização, a escravidão não poderia ser julgada contra o direito
natural. Aliás, este seria um estado proveniente de um ato de bondade, já que pela lei do
vencedor admitia-se o direito de matar os povos derrotados. 142 Como se pode notar, Coutinho
mostrava-se embasado na noção de guerra justa para justificar o comércio de escravos. No
entanto, não deixou de admitir a existência de irregularidades nesse comércio, principalmente
no que dizia respeito ao tratamento desumano conferido aos escravos pelos senhores. Porém,
estes “abusos particulares” não tornariam o comércio injusto, mas pediam providências para
lhes emendar os erros, as quais “não se devem pedir por um meio revolucionário, qual é o das
declamações ou escritos contra a justiça das leis ou contra um comércio que elas aprovam”.
Azeredo sugeria, então, que apenas pessoas autorizadas poderiam indicar as reformas, as
quais deveriam ser encaminhadas “ao Legislador Soberano ou a seus Tribunais” para que
então fosse julgada sua conveniência. 143 Ao lançar mão desta solução, Coutinho mostrava-se
alinhado com uma das atitudes mais recorrentes das mentes ilustradas, as quais, como já foi
137
MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores..., p. 91-93.
Cf: COUTINHO, J. J. de A. Idem, parágrafo XI.
139
Cf: Idem, parágrafo XX.
140
Cf: Idem, parágrafo XXXVI.
141
Cf: Idem, parágrafos XXIX-XXXV.
142
Cf: Idem, parágrafos XLIII-XLIV.
143
Cf: Análise sobre a justiça..., parágrafos LXXXIX- XC.
138
42
pontuado, manifestavam-se temerosas para com mudanças bruscas e em seu lugar propunham
reformas para humanizar o tráfico. 144
Sintomático da adoção por parte de Coutinho de algumas das idéias provenientes da
ilustração, especialmente da vertente francesa, foi sua análise da escravidão enquanto fase da
marcha que conduzia os povos bárbaros para a civilização: “E por quantas guerras, cativeiros
e até escravidão não têm passado a França, a Alemanha, a Inglaterra, e toda a Europa para
chegar ao estado da civilização em que hoje se acha?”. Submerso nesta idéia do progresso
humano rumo à civilização, para Coutinho a escravidão era uma instituição naturalizada, a
qual não poderia ser ignorada: “a natureza vai seguindo a sua marcha zombando da orgulhosa
filosofia dos homens”. 145 Norbert Elias indicou que na Europa da segunda metade do século
XVIII desenvolveu-se uma idéia de civilização que, em primeiro lugar, refletia a autoconsciência da Europa acerca de si mesma e de sua superioridade no que dizia respeito ao
desenvolvimento das artes, ciências, economia. Decorrente dessa concepção desenvolveu-se o
entendimento de que as sociedades estavam imersas num processo, o qual era formado por
ciclos de desenvolvimento. Em conseqüência, o conceito de civilização passou a estar
diretamente associado a outras duas noções: a existência de estágios sociais, sendo o da
barbárie o oposto à civilização; o entendimento de que a civilização é um processo
contínuo. 146
Este período foi marcado pela complexidade de opiniões acerca do homem negro e sua
condição escrava. Em alguns casos, as questões eram lançadas a público de forma direta.
Significativo nesta direção foi o opúsculo de 1808 de Azeredo Coutinho, elaborado em
resposta às críticas que vinha sofrendo em decorrência de sua defesa da instituição
escravista. 147 Segundo Azeredo, seus opositores buscavam fazer-lhe cair em contradição
alegando a incoerência da existência de leis régias e bulas pontifícias que proclamavam a
liberdade dos índios ao mesmo tempo em que havia leis que permitiam a legalidade do tráfico
de escravos da África. Umas das leis mencionadas a respeito da liberdade dos indígenas foi o
alvará de 6 de junho de 1755, comentado anteriormente. Em face desses argumentos,
Coutinho procedeu a uma exposição das diferenças entre as sociedades africanas e indígenas.
Em sua perspectiva, o fato de as primeiras já conhecerem formas de escravidão conferia
144
BRION, Davis. O problema da escravidão..., p. 440-444.
Cf: COUTINHO, J. J. de A. Análise sobre a justiça..., parágrafos LXXIII- LXXVI.
146
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes (v. 1). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1990. p. 59-64.
147
COUTINHO, José Joaquim de Azeredo. Concordância das leis de Portugal, e das bulas pontifícias, das
quais umas permitem a escravidão dos pretos de África, e outras proíbem a escravidão dos índios do Brasil.
Lisboa: Oficina de João Rodrigues Neves, 1808. Disponível em: http://www.arlindo-correia.com/120509.html.
145
43
legitimidade ao tráfico praticado por portugueses, o que não era observável para o caso
indígena.
Pode-se sugerir através desta controvérsia intelectual que as políticas de equiparação
levadas a efeito no reinado de D. José I não passaram despercebidas aos críticos de Coutinho.
Foi a partir deste referencial que salientaram a incoerência das medias que, por um lado,
proclamavam a liberdade natural aos índios e, de outro, ignoravam os escravos, os quais
seguiam sujeitos ao cativeiro. No próximo capítulo, passaremos a olhar mais sistematicamente
às ações do ministério pombalino no que diz respeito à escravidão dos negros e veremos em
que medida essas discussões que fervilhavam no campo intelectual também estiveram
presentes nas medidas executadas pelo Estado português.
CAPÍTULO 2 – ESCRAVIDÃO E LIBERDADE: OS ALVARÁS POMBALINOS DE
1761 E 1773 E A DIVISÃO DO IMPÉRIO
2.1 – População escrava e livre de cor: Portugal e Brasil
A introdução de escravos em Portugal teve início em meados do século XV, quando
do avanço da presença portuguesa na costa africana, e foi oficialmente banida com o alvará de
19 de setembro de 1761. Os dados acerca do peso numérico dessa população e de seus
descendentes libertos e livres são controversos e constituem aproximações. Por outro lado, os
estudos sobre a presença negra em Portugal ainda são carentes de um esforço mais
sistemático. 148 Mesmo considerando esses limites, alguns autores têm apresentado novas
estimativas acerca da população escrava no reino luso. Nesse sentido, os trabalhos de Jorge
Fonseca e Didier Lahon podem ser tomados como os mais atuais sobre esta temática.
Procedendo a uma averiguação minuciosa em fontes como registros de batismos, casamento e
óbitos, esses autores propõem algumas estimativas. Fonseca privilegiou a população escrava
do sul de Portugal, região esta composta pelas regiões do Alentejo, Setúbal e Algarve. O
recorte temporal selecionado abrange os séculos XVI e XVII. Trabalhando principalmente
com registros de batismo e centrando-se tão somente neste universo, indicou que cerca de 4%
da população total residente no Sul de Portugal era formada por escravos durante o século
XVII. De acordo com suas conclusões, as regiões que apresentavam maiores porcentagens de
população cativa neste período eram aquelas situadas próximas aos portos de entrada. Daí a
importância das regiões do Algarve e do Alentejo e daquelas próximas a Lisboa, como
Setúbal. Para ele, a principal fonte do contingente de escravos disponíveis em Portugal seria a
reprodução natural, o que diminui a importância do tráfico. 149 Notadamente no Alentejo e
Algarve, a mão-de-obra escrava era utilizada nas zonas agrícolas. 150
Dentre os espaços urbanos, Lisboa foi a cidade com o maior número de escravos entre
fins do século XV e princípio do XIX. Segundo Didier Lahon, por volta de 1550 a população
escrava de Lisboa chegava a 10.000 pessoas, o que representava 10% dos habitantes da
148
FONSECA, Jorge. Escravos no sul de Portugal. Séculos XVI e XVII. Lisboa: Editora Vulgata, 2002. p. 13-
14.
149
FONSECA, Jorge. Idem, p. 20-29. Renato Venâncio, porém, observou que ao longo do século XVIII os
escravos provenientes do Brasil passaram a ser transferidos com mais freqüência para Portugal. Levados
principalmente por seus proprietários ao retornarem da América, integravam os grupos de serviçais e artífices.
Em resumo, “O espaço colonial começa a ser um importante intermediário de escravos africanos desembarcados
no reino”. VENÂNCIO, Renato Pinto. O Alvará português de 1761 e os escravos do Brasil. In: ARAUJO,
Valdei Lopes de & GONÇALVES, Andréa Lisly (Orgs.). Estado, sociedade e região: Contribuições sobre
história social e política. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008. p. 38-40.
150
FONSECA, Jorge. Idem, p. 26; VENÂNCIO, Renato Pinto. Idem, p. 37.
45
capital. A partir da análise dos registros de óbitos das freguesias lisboetas de Salvador, Santo
Estevão e Mercês, o autor sugeriu que entre o fim do século XVII e 1761 “a população negra,
sobretudo escrava, pôde representar 15% da população de Lisboa”. Apesar de admitir a
existência de uma margem de erro implícita nessas estimativas, em números, isso significaria
um conjunto de 22.500 pessoas para uma população total de 150.000 habitantes. Durante os
trezentos anos de tráfico africano para Portugal, afirma não ser exagero o número de 400.000
mil pessoas importadas. Na contramão de algumas leituras que minimizam a importância do
trabalho escravo em Portugal, Lahon buscou evidenciar que os escravos e seus descendentes
livres “preencheram um papel econômico que não pode ser subestimado do ponto de vista
econômico-social”. 151 Nos dados arrolados fica evidente que desde o século XVII a
população de cor liberta das freguesias lisboetas fora inferior ao número de escravos. No
entanto, esta situação tendeu a mudar a partir de meados do século XVIII. Desde a década de
1760 observou-se um crescimento constante dos livres e libertos nos registros de óbitos,
chegando ao pico de 80% na década de 1790. Ao contrário, a população escrava só tendeu ao
decréscimo. 152
A despeito das incertezas quanto ao peso numérico de negros escravos e livres em
Portugal, é fato que uma das formas através das quais estes foram integrados àquela sociedade
associava-se a seu papel econômico como mão-de-obra. Em regiões como Alentejo e Algarve
foi comum o emprego de escravos nos cultivos agrícolas. Nas regiões urbanas, principalmente
quando se trata de Lisboa, estes sujeitos eram empregados nos trabalhos domésticos em
residências de nobres e eclesiásticos, mas também estavam sob o domínio de outros setores
sociais, como lavradores, artífices e comerciantes. Prova disso são os registros de escravos
exercendo as ocupações de ourives, sapateiros, ferradores, açougueiros, dentre tantas outras.
Alugar o escravo para outrem também era prática corrente em Portugal. 153 O impacto do
trabalho escravo sobre os ofícios em Portugal fora relatado desde fins do século XVI. A
exemplo, em 1562, as Cortes registraram uma petição escrita em nome de “certos zelosos do
bem comum”, os quais chamavam a atenção para o erro que constituía trazer tantos escravos
para o reino, pois tiravam as ocupações de homens e mulheres brancos, que assim ficavam
ociosos, tornando-se “vagabundos e ladrões” e “más mulheres”. Outro vestígio que evidencia
151
LAHON, Didier. O escravo africano na vida econômica e social portuguesa do Antigo Regime. In: Do
Portugal ao Brasil: Escravidão, irmandades negras e santidade negra. Seminário da Linha de Pesquisa Práticos
e Práticas no Império Português. São Paulo, USP, 2005. p. 1-3. Este artigo constitui uma síntese dos principais
tópicos tratados na tese de doutorado do autor.
152
LAHON, Didier. Esclavage et confréries noires au Portugal durant L’Ancien Régime (1441-1830). Tese
(doutorado em História) – Ecole Des Hautes Etudes En Sciences Sociales, 2001. p. 73-91.
153
LAHON, Didier. O escravo africano..., p. 7-13; LAHON, Didier. Esclavage..., p. 94-97; VENÂNCIO, Renato
Pinto. Idem, p. 37-38.
46
a importância dos escravos em certos ofícios pode ser observado na reformulação do
regulamento da corporação dos ourives de Lisboa, em 1622, que passou a impedir a execução
do ofício por negros, mulatos e índios, mesmo sendo forros. 154
Apesar de a escravidão africana ter sido fator comum em Portugal, foi na América
portuguesa que a instituição ganhou contornos peculiares: a começar pela importância da
mão-de-obra escrava para a economia do Brasil e o crescimento expressivo que as populações
de cor, escrava e livre, ganharam a partir do século XVII. A historiografia tem chamado
atenção para o século XVIII como o período no qual essa população conheceu intenso
crescimento. Como salientou Herbert Klein, o Brasil fora o principal ponto de desembarque
de escravos na América, perfazendo um terço do total antes de 1780 e dois terços após esse
período. Também se observou, a partir de dados estimativos, que houve um aumento
significativo das importações de africanos na última década do século XVIII e início do
XIX. 155 As capitanias mais populosas nas três últimas décadas do século XVIII foram Minas
Gerais, Bahia, Pernambuco e Rio de Janeiro. Nelas, estima-se que a proporção de negros e
mulatos escravos era superior à camada dos libertos e livres de cor, com exceção de
Pernambuco, onde a partir desse momento a população livre de cor conheceu certa
superioridade em relação aos cativos. 156
Dentre a população de cor, havia também os grupos sociais constituídos por aqueles
que já estavam apartados da escravidão, o que, no contexto do Antigo Regime, como se viu,
não significava estar equiparado aos brancos. Eram homens livres, libertos ou nascidos nessa
condição, mas que carregavam as máculas advindas da ascendência, ocupando, assim, uma
posição social intermediária e complexa. A partir do final do período colonial e ao longo do
século XIX, o número dos homens de cor livres conheceu um crescimento cada vez mais
significativo. Ao arrolar dados estatísticos parciais sobre este grupo, Herbert Klein percebeu
certa tendência: a de elevada porcentagem de homens livres de cor em regiões periféricas,
onde chegavam aproximadamente a 50% da população de cor, como era o caso, por exemplo,
do Mato Grosso, região na qual os homens de cor perfaziam 67% do total da população livre,
154
LAHON, Didier. O escravo africano..., p. 9-10.
KLEIN, Herbert. A demografia do tráfico atlântico de escravos para o Brasil. Estudos Econômicos, n. 17 (2),
p. 129-149, 1987. p. 133-134.
156
ALDEN, Dauril. The population of Brazil in the late eighteenth century: A preliminary study. The Hispanic
American Historical Review, v. 43, n. 2, p. 173-205, 1963. p. 196-197; LARA, Silvia Hunold. Fragmentos..., p.
127-131. Herbert Klein, apesar de centrar seu interesse nas populações livres de cor, apresentou uma tabela com
os números tanto dos escravos como dos livres para o fim do período colonial até 1872. KLEIN, Herbert. Os
homens livres de cor na sociedade escravista brasileira. Dados, Rio de Janeiro, n. 17, p. 3-27, 1978. p. 6-9. Um
quadro geral sobre a população do Brasil colonial também pode ser averiguado em: MARCÍLIO, Maria Luiza.
La poblácion del Brasil colonial. In: BETHELL, Leslie (Org.). América Latina colonial: población, sociedad y
cultura, v. 4. Barcelona: Editorial Crítica, p. 39-62.
155
47
segundo censo de 1797. Já nas regiões de economia agrícola, com uso de mão-de-obra
escrava em larga escala, os homens de cor chegavam a 20 e 30% do total da população de cor.
Estes eram os casos do Maranhão, Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro. 157
Provavelmente o aumento deste grupo social não foi garantido somente pelo crescimento
natural, mas deveu-se, como já observei, sobretudo à constante importação de escravos da
África e à passagem de considerável parcela de cativos ao status de liberto, através das
alforrias. 158 Já se observou que este movimento foi próprio da dinâmica da escravidão no
interior do império português e especificamente na América lusa. 159
É, pois, importante salientar que este grupo, genericamente denominado por Klein de
“homens livres de cor”, não pode ser tomado como homogêneo. De fato, ser liberto ou
nascido na liberdade poderia agir como diferenciador social para estes sujeitos. Ser liberto
significava, aliás, estar mais próximo do cativeiro. No interior da lógica hierárquica presente
ao pensamento social português, a qual, como vimos, conferia plena importância à
ascendência, quanto mais afastado do cativeiro, maiores seriam as chances de o sujeito galgar
um melhor posicionamento social. Disso decorre que a cor atribuída – ser preto, mulato ou
pardo – também entrava no jogo das definições do lugar social de alguém. Em estudo sobre as
irmandades de pardos na América portuguesa durante o século XVIII, Larissa Viana sugeriu a
existência de um discurso identitário desses sujeitos, principalmente no final daquela centúria.
A partir da análise de compromissos e requerimentos, a autora indicou que o termo pardo
começou a aparecer como uma identidade positiva reivindicada por aqueles que buscavam se
afastar do mundo da escravidão. Nesse complexo sistema de nominações, nos usos
discursivos coloniais, é possível notar que o termo mulato ganhara conotações mais
pejorativas do que o termo pardo, apesar de ser comum a designação de um mesmo indivíduo
por ambos os termos, dependendo da circunstância. 160
Vê-se que o peso numérico das populações de cor, tanto escravas como livres, foi
realmente significativo na América portuguesa de meados do século XVIII e início do século
XIX. Parte deste numeroso contingente habitava ou ao menos freqüentava constantemente as
vilas e cidades. Foi no meio urbano que estes sujeitos conheceram formas de integração na
sociedade colonial que iam além das atividades ligadas diretamente à agricultura. Ao que tudo
157
KLEIN, Herbert. Os homens livres..., p. 5; ALDEN, Dauril. O período final do Brasil colônia: 1750-1808. In:
BETHELL, Leslie (Org.). América Latina Colonial: Economia, v. 3. São Paulo: Edusp: Fundação Alexandre de
Gusmão, 1998-2001. p. 534-536.
158
KLEIN, Herbert. Idem, p. 10.
159
MARQUESE, Rafael. A dinâmica da escravidão...
160
LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas..., p. 132-147; VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem...
Ver especialmente o capítulo “Identidades e conflitos”; PESSOA, Raimundo Agnelo Soares. Gente sem sorte...
Ver particularmente o tópico “Mulato e pardo: dois termos, um só tipo?”.
48
indica, era neste meio que, por exemplo, escravos acumulavam pecúlios, os quais poderiam
ser destinados à compra da alforria. Segundo Russell-Wood, as alforrias eram mais habituais
nas áreas citadinas. 161 De forma muito semelhante ao que acontecia em Lisboa, nas principais
cidades do Brasil os escravos de ganho eram extremamente comuns. Eles poderiam ser
empregados em ocupações que não requeriam especialização, como vendedores de alimentos,
carregadores, enfim, prestadores de serviços diversos. Outros, porém, eram habilitados em
ofícios especializados: carpinteiro, pedreiro, ferreiro, sapateiro, dentre tantos outros. Neste
universo dos escravos de ganho, a alforria foi recorrentemente fruto dos sobejos das rendas
obtidas. 162
No entanto, ao lado dos escravos, coube aos homens livres de cor o emprego das mais
variadas ocupações e ofícios. Eram artesãos, pintores, escultores, “barbeiros”, alfaiates,
músicos, parteiras, vendedoras, dentre outros. 163 A influência dos homens de cor em certos
ofícios pode ser vislumbrada, por exemplo, através da reclamação do juiz de fora do Recife, o
qual por carta enviada ao rei D. João V, em 1732, reclamava do excessivo número de mulatos
e negros oficiais ourives que existiam na capitania. Acusados de falsificarem moedas e de
praticarem furtos, acrescentando a isso o fato de serem impuros de sangue e sem cabedais,
pedia-se para que fossem proibidos de praticarem este ofício. 164 Outro caso exemplar foi o do
mulato Vicente Ferreira Guedes, o qual obtivera a renovação de sua licença real para atuar
como advogado nos auditórios do Maranhão no fim da década de 1770. 165
Cotidianamente imersos nesse mundo urbano, exercendo as mais variadas ocupações,
tanto homens livres de cor como escravos perambulavam e travavam contatos, criavam redes
de convivência. Além disso, irmandades e corpos militares também eram espaços
privilegiados que proporcionavam a convivência entre os homens de cor, bem como agiam
161
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005. p. 60.
162
LIBBY, Douglas Colle. Habilidades, artífices e ofícios na sociedade escravista do Brasil colonial. In:
FURTADO, J. F.; LIBBY, D. C. (Org.). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX.
São Paulo: Annablume, 2006. p. 57-73; RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos…, p. 60-66.
163
KLEIN, Herbert. Os homens livres de cor..., p. 18-23; RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos…, p.
83-104. Sobre o ofício/arte musical e os homens de cor livres no período colonial ver os trabalhos de: LANGE,
Francisco Curt. Os Irmãos Músicos da Irmandade de São José dos Homens Pardos, de Vila Rica. Anuario
Interamericano de Investigación Musical, v. 4, p. 110-160, 1968.
164
Cf: Carta do juiz de fora de Olinda e do Recife, Francisco Martins da Silva, ao rei, D. João V, informando do
excessivo número de oficiais ourives em Olinda, no Recife e mais lugares da capitania, a maioria mulatos e
negros, do que resulta o aparecimento de moedas falsas e furtos, e sugerindo medidas para se regular suas
atividades. Recife, 25 de abril de 1732. AHU-PE, cx. 43, doc. 3866.
165
Cf: Requerimento de Vicente Ferreira Guedes para a rainha D. Maria I, solicitando que lhe renovem a licença
para poder advogar nas auditorias do Maranhão, pelo tempo de três anos. Anterior a 24 de março de 1778. AHUMA, cx. 52, doc. 5008. Apesar deste documento não mencionar a cor de Vicente, através de outros documentos e
de algumas referências bibliográficas foi possível encontrar essa informação.
49
como meios de expressão de suas aspirações. 166 Perante esse numeroso contingente de
homens de cor, vários estrangeiros deixaram em suas memórias observações de espanto dado
o elevado número de negros e mulatos que habitavam as principais cidades coloniais.
Autoridades coloniais também notaram a supremacia das populações de origem africana,
como o marquês do Lavradio, o qual ao chegar a Pernambuco, em 1768, ficara impressionado
com a “inumerável multidão de negros”. 167
A historiografia tem ressaltado que apesar de algumas autoridades mostrarem-se
temerosas devido ao elevado contingente dessas populações, nunca houve convergência entre
esses grupos em movimentos intensos e generalizados de contestação. Esse, note-se, seria um
dos aspectos mais significativos da sociedade escravista colonial: um dos fatores responsáveis
por manter a estabilidade do sistema. As dissidências e tensões entre os vários grupos étnicos
de escravos, entre estes e aqueles nascidos no Brasil e entre libertos e cativos são aspectos
significativos da heterogeneidade que caracterizava os homens de cor. Apesar de utilizar
instrumentalmente o termo “homens de cor” para designar tanto escravos como livres, pontuase que constituíam grupos diferenciados. 168 Acerca desta situação, Rafael Marquese observou
que “o comprometimento social dos crioulos e mulatos – sobretudo quando libertos e livres –
com a instituição escravista foi o elemento decisivo que garantiu a segurança do sistema”. 169
Foi nesta configuração social, na qual a escravidão era uma instituição legítima, que
pardos e pretos, livres e escravos, constituíram elementos sociais ativos. Fosse de forma
isolada ou levando em conta aspirações de um grupo específico, estiveram imersos em jogos
políticos em prol de seus objetivos. Integrados em corpos militares, irmandades, exercendo as
mais diversas ocupações e ofícios, contando com um crescimento demográfico ascendente,
não hesitaram em utilizar os recursos que lhes eram disponíveis a fim de verem suas causas
concretizadas. É sobre este aspecto que trataremos em seguida.
166
A literatura sobre irmandades destinadas aos homens de cor é extensa. A exemplo, ver: BOSCHI, Caio C. Os
leigos e o poder. Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986;
SCARANO, Julita. Devoção e escravidão: a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito
Diamantino no século XVIII. São Paulo: Comp. Ed. Nacional: Secretaria de Estado da Cultura, Ciência e
Tecnologia, 1976; MULVEY, Patricia A. Black and sisters: membership in the black lay brotherhoods of
colonial Brazil. Luso-Brazilian Review, v. 17, n. 2, p. 253-279, 1980. Sobre homens de cor em corpos militares:
SILVA, Luiz Geraldo. Aspirações barrocas e radicalismo ilustrado. Raça e nação em Pernambuco no tempo da
Independência (1817-1823). In: JANCSÓ, István (Org.). Independência: História e historiografia. São Paulo:
Hucitec, 2005. p. 915-934; RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos... p. 127-142.
167
Apud LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas... p. 126.
168
LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas..., p. 158-172; MARQUESE, Rafael de Bivar. A dinâmica...,
p. 107-123; RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e Libertos... p. 129; RUSSELL-WOOD, A. J. R. Autoridades
ambivalentes: O Estado do Brasil e a contribuição africana para ‘a boa ordem na República’. In: SILVA, Maria
Beatriz Nizza da (Org.). Brasil. Colonização e escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 105-123;
SILVA, Luiz Geraldo. Religião e identidade étnica. Africanos, crioulos e irmandades na América portuguesa.
Cahiers des Amériques Latines, v. 44, p. 77-96, 2003.
169
MARQUESE, Rafael de Bivar. Idem, p. 121.
50
2.2 – Demandas de pardos e pretos anteriores à década de 1760
A necessidade de qualificar as demandas levadas a efeito por pardos e pretos, livres e
escravos, anteriores a década de 1760 está fundamentada no objetivo de identificar qual era o
teor desses pedidos para que, num segundo momento, tenha-se condições de avaliar a
influência dos alvarás pombalinos nas demandas posteriores. A partir desse delineamento,
espera-se ter uma base para que seja possível perceber inovações e/ou continuidades nos
recursos retóricos utilizados nas demandas destes sujeitos ao longo das últimas décadas do
século XVIII e início do XIX.
Demandar ao rei constituía prática comum para todos os sujeitos que viviam sob a
jurisdição portuguesa. O órgão que possibilitava a comunicação entre os súditos d’além mar e
o centro de poder em Portugal era o Conselho Ultramarino. Criado entre 1642 e 1643 e
inspirado diretamente no modelo do Conselho da Índia criado no período filipino, tinha sob
sua jurisdição todas as questões relativas aos domínios ultramarinos: “ao dito Conselho virão
dirigidas todas as cartas e despachos que se me enviarem de todos os ministros e prelados, e
quaisquer outras pessoas dos ditos Estados”.170 Destaca-se aqui sua importância não apenas
como órgão administrativo, mas em maior medida como um instrumento de mediação entre
os súditos e o soberano.
Os atores envolvidos no processo de avaliação e remessa dos documentos eram vários.
Quando criado, o referido Conselho era composto por um presidente e mais dois conselheiros,
os quais avaliavam os papéis remetidos e votavam. Disso resultava um parecer ou consulta. 171
No entanto, a decisão final cabia ao rei. Neste trâmite documental, também os governadores
tinham um importante papel. Fernanda Olival, ao discorrer sobre os pedidos de mercês no
império português, acentuou sua função de “filtro”, pois “não só apreciava a veracidade dos
desempenhos, como freqüentemente fazia a adequação entre a categoria social do indivíduo e
as suas aspirações”. 172 Pode-se afirmar que não só em causas relativas à concessão de mercês
por serviços prestados o parecer repassado por estas autoridades era essencial, pois suas
informações eram constantemente requeridas pelo Conselho a fim de averiguar o conteúdo
das demandas. Outra figura de grande importância no ordenamento da justiça era o
procurador. Quando se trata da justiça local, eram também denominados advogados do
170
Apud CAETANO, Marcelo. O Conselho Ultramarino. Esboço da sua história. Lisboa: Agência Geral do
Ultramar, 1967. p. 43.
171
CAETANO, Marcelo. Idem, p. 48.
172
OLIVAL, Fernanda. Mercês, serviços e circuitos documentais no império português. In: LOBATO, Manuel;
SANTOS, Maria. E. Madeira (Coord.). O domínio da distância: Comunicação e cartografia. Lisboa: História e
Cartografia: Instituto de Investigação Científica e Tropical, 2006. p. 68.
51
número. Segundo Hespanha, asseguravam a representação judicial no processo judiciário
tradicional e não letrado – ou seja, sem a necessidade de um oficial formado em Portugal.173
Estes sujeitos, na maioria das vezes, eram os responsáveis pela escrita dos documentos
remetidos à avaliação. Também efetuavam a adequação do pedido aos padrões desse tipo de
documentação.
Segundo Russell-Wood, recorrer ao rei seria uma alternativa àqueles que não
poderiam arcar com os custos e entraves de um processo normal, o qual poderia passar por
variadas instâncias judiciais: municipal, regional (Ouvidoria), Relação de Salvador e Rio de
Janeiro e o apelo final para a Casa da Suplicação, em Lisboa. Também em casos nos quais o
peticionário via-se na iminência de perder o processo, poderia lançar mão do recurso de apelar
diretamente ao monarca. Conforme afirmou este historiador, essa possibilidade consistia
numa medida extra-judicial e estava diretamente relacionada com a concepção do rei como o
árbitro máximo da justiça e distribuidor de graças. 174
Integrados nesta sociedade, também pardos e pretos, livres e escravos, valeram-se da
possibilidade de comunicação com o rei a fim de terem suas aspirações concretizadas. A este
respeito, a historiografia tem salientado que as demandas mais freqüentes destes setores
estavam relacionadas aos corpos militares e às irmandades.
175
Luiz Geraldo Silva,
considerando o duplo caráter dessas instituições no contexto da América portuguesa,
observou que se, por um lado, “eram importantes instrumentos de controle social do ponto de
vista das autoridades coloniais, por outro lado, do ponto de vista do negro livre e cativo, [elas]
se apresentavam enquanto importantes instituições propiciadoras de identidade e coesão
grupal”. 176
No que diz respeito especificamente ao caso dos homens livres de cor nos corpos
militares, suas reivindicações concentravam-se em três pontos principais: soldo, privilégios e
postos na hierarquia militar. 177 No entanto, quando pensamos nas demandas anteriores à
institucionalização militar da década de 1760, acredito que a força destes corpos como esteios
para suas reivindicações precisa ser tratada de forma ponderada. 178 Apesar da existência de
173
HESPANHA, Antonio Manuel. Direito luso-brasileiro no Antigo Regime. Florianópolis: Fundação Boiteux,
2005. p. 262.
174
RUSSELL-WOOD, A. J. R. ‘Acts of grace’: Portuguese monarchs and their subjects of african descent in
eighteen century Brazil. Journal of Latin America Studies, v. 32, n. 2, p. 307-332, 2000.
175
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e Libertos... p. 129.
176
SILVA, Luiz Geraldo. Da festa à sedição: sociabilidades, etnia e controle social na América portuguesa
(1776-1814). História: Questões & Debates, Curitiba, v. 16, n. 30, p. 83-110, jan./jun. 1999. p. 86.
177
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e Libertos..., p. 137.
178
Cf: Carta de D. José I ao governador e capitão-general de São Paulo, morgado de Mateus. AHU-SP (A.M.G.),
cx. 24, doc. 2354. Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, 22 de março de 1766. Essa ordem foi emitida a todas as
capitanias da América e era destinada a reestruturar a organização militar.
52
companhias e tropas compostas por pardos e pretos, livres e libertos, em várias localidades da
América portuguesa, a maioria delas seguia a dinâmica de cada localidade. 179 Em muitos
casos não contavam com uma regularidade ou estabilidade, podendo sua oficialidade ser
alterada ou as próprias corporações desfeitas a qualquer momento. A exceção eram os corpos
militares compostos por negros e mulatos conhecidos como “Henriques”, nas capitanias de
Pernambuco e Bahia. Formados na conjuntura da guerra de restauração, em razão da atuação
do negro Henrique Dias e seus efetivos, estas unidades foram prestigiadas pela Coroa, sendo
efetivadas como corpos permanentes e gozando de um status privilegiado ao longo do século
XVIII e parte do XIX. 180
Tendo isso em vista, salienta-se aqui que no período de que estamos tratando, as
demandas estavam relacionadas às condições de cada região. No caso da capitania de
Pernambuco e Bahia, a existência dos Henriques dava suporte às demandas de seus membros.
Assim, o sargento-mor Antonio Fernandes Passos requeria, por volta de 1720, um dos hábitos
das ordens militares e tenças. A seu favor estavam os dezoito anos de serviços prestados no
“terço da gente preta da cidade da Bahia, de que foi mestre-de-campo Henrique Dias”. 181
Certamente o status diferenciado do corpo militar do qual fazia parte foi aspecto central para a
demanda em questão. O tratamento singular conferido aos Henriques foi tomado como
referência num requerimento enviado pelos “crioulos pretos e mestiços forros” da capitania
das Minas Gerais, anteriormente ao ano de 1756. Nele, pediam para que fossem
arregimentados “no mesmo modo, tratamento e honra que gozam os homens pretos, de
Pernambuco, Bahia, e São Thomé”. 182
Como podemos notar, as demandas de homens de cor pertencentes a corpos militares
estavam diretamente ligadas às condições de cada região. Conjuntamente ao valor do serviço
prestado ao Estado, certamente pertencer a um corpo com tradição e status perante a Coroa,
como era o caso dos Henriques, ou a companhias criadas a nível local e sem prestígio, era
fator essencial para que a solicitação tivesse peso argumentativo.
179
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e Libertos..., p. 130-138.
Sobre a criação e tradição desses corpos ver: MATTOS, Hebe. “Black Troops” and the Hierarchies of Color
in the Portuguese Atlantic World: The case of Henrique Dias and his black regiment. Luso-Brazilian Review, v.
45, n. 1, p. 6-29, 2008.
181
Cf: Requerimento do sargento-mor Antonio Fernandes Passos, homem preto, ao rei, D. João V, pedindo um
dos hábitos das três ordens militares, com tenças efetivas, e de outro valor de tença nas obras pias. AHU-PE, cx.
29, doc. 2572. Anterior a 7 de janeiro de 1720.
182
Cf: Requerimento dos crioulos pretos e mestiços forros, moradores em Minas, pedindo a D. José I a
concessão de privilégios vários, dentre eles o de poderem ser arregimentados e gozarem do tratamento e honra
de que gozam os homens pretos de Pernambuco, Bahia e São Tomé. AHU-MG, cx. 69, doc. 5. Anterior a 7 de
janeiro de 1756.
180
53
Mesmo integrados em corpos militares e irmandades, os homens de cor livres e
libertos ocupavam um lugar social caracterizado, ao menos na teoria, por limites bem
demarcados. Vimos no capítulo anterior que a cor da pele, associada à ascendência africana e
escrava, tornou-se um entrave para a habilitação à entrada em cargos públicos, à participação
em ordens terceiras, bem como para o recebimento de determinadas honras e mercês como,
por exemplo, comendas das ordens militares. Na América portuguesa o emprego desse
substrato ideológico estava subordinado a conjunturas locais, o que conferia às inabilidades
atribuídas aos homens de cor livres um caráter maleável. No entanto, um dado parece
inquestionável: as circunstâncias nas quais a ascendência africana aparecia como um dado
elementar para a exclusão de seus portadores de cargos e ofícios públicos refletiam momentos
de concorrência entre brancos que aspiravam monopolizar a condição de elites e os homens
de cor livres.
No parecer elaborado pelo Conselho Ultramarino em 25 de outubro de 1725 e
direcionado às Minas Gerais a relação entre a mácula da cor “mulata” e as exclusões de
cargos na governança local ficam evidentes:
Ponderando o Conselho, que achando-se hoje as vilas da capitania das Minas
Gerais tão numerosas como se acham, e que sendo uma grande parte das famílias
de seus moradores de limpo nascimento; era justo, que somente as pessoas, que
tivessem esta qualidade fossem eleitas para servir de vereadores e andar na
governança delas, porque se a falta de pessoas capazes fez a princípio necessária a
tolerância de admitir os mulatos ao exercício daqueles ofícios, hoje tem cessado
esta razão, se faz indecoroso que eles sejam ocupados por pessoas em que haja
183
semelhante defeito.
Como podemos observar, na percepção dos conselheiros a condição de “limpo
nascimento” estava diretamente relacionada à cor branca ao passo que os mulatos constituíam
grupos “defeituosos”, fato que legitimava sua exclusão dos referidos cargos. Outra temática
tratada pelos conselheiros foi a mestiçagem resultante dos “concubinatos” entre os moradores
brancos com negras e mulatas, o que fazia com que “se vão maculando as famílias todas”. A
fim de evitar essa situação, admoestava-se ao rei para que emitisse ordem ao governador de
Minas ordenando que não fossem admitidos nos referidos cargos “homem algum que seja
mulato dentro nos quatro graus em que o mulatismo é impedimento, e que da mesma sorte
não possa ser eleito o que não for casado com mulher branca, ou viúvo dela”. 184
183
Cf: Parecer do Conselho Ultramarino para que não possa ser eleito vereador ou juiz ordinário homem que seja
mulato até o quarto grau ou que não for casado com mulher branca. Lisboa, 25 de setembro de 1725. AHU-MG,
cx. 7, doc. 26. Grifos meus.
184
Grifo meu.
54
No parecer direcionado à capitania de Minas Gerais se nota a determinação exata do
“mulatismo” como um impedimento diretamente ligado à infâmia proveniente da
ascendência. Nesta lógica, o caráter hereditário das inabilidades expresso por sua vigência
durante quatro gerações – os quatro graus – é essencial para a apreensão da influência que tal
concepção poderia exercer sobre a vida dos homens livres e libertos de cor. Aqui cabe
destacar a importância da noção de infâmia no pensamento social português do período
moderno. A relação geracional é evidente, por exemplo, no título das Ordenações sobre
aqueles que incorriam em crime de lesa-majestade, pois se percebe como a “má fama” era
repassada aos descendentes daquele que cometia o crime: “o erro da traição condena aquele
que o comete, e empece e infama os que de sua linha descendem posto que não tenham
culpa”. 185 No caso das inabilidades conferidas aos mulatos havia uma ligação direta com a
ascendência, sendo que desde o nascimento estes sujeitos eram considerados maculados.
Como se deduz da ordem régia de 27 de janeiro de 1726, as indicações passadas ao rei
pelos conselheiros no ano anterior foram acolhidas com resolução favorável. Decretou-se:
ser eleito vereador ou juiz ordinário, nem andar na governança das vilas da capitania
de Minas homem algum que seja mulato dentro no quarto grau em que o mulatismo é
impedimento, e que da mesma forma não possa ser eleito o que não for casado com
mulher branca, ou viúvo dela. 186
Apesar de a ordem régia ter sido direcionada às Minas Gerais, em outras regiões da
América portuguesa a mácula da ascendência africana figurou como o principal argumento
alegado pelas elites brancas em face da concorrência com pardos pelo exercício de cargos
locais prestigiosos. Essa situação torna-se explícita na representação enviada pelos camaristas
de Vila Boa, capitania de Goiás, ao príncipe regente D. João no ano de 1803. Protestavam
contra o provimento de um mulato de segundo grau na função de ajudante de tabelião e da
eleição como camarista de um branco casado com uma mulata de segundo grau. Ancorados na
lei de 1726, teceram considerações a respeito dos mulatos comuns ao pensamento social
acerca dessa qualidade de homens durante todo o século XVIII: “os mulatos que procedem do
proibido ajuntamento dos homens brancos com pretas, ou de pretos com brancas, o que raras
vezes sucede, quase todos são de péssima conduta e que por acaso se vê um de cem que seja
bom e que mereça estimação”. Na retórica dos camaristas, associava-se a mestiçagem
185
Cf: Do crime de lesa-majestade. Livro V, título 6º, parágrafos 22 até o 28. Ordenações Filipinas. Coimbra:
Imprensa da Universidade, 1858.
186
Cf: Ordem de 27 de janeiro de 1726. APM. Fundo: Secretaria de Governo da Capitania (Seção Colonial).
Título: Coleção sumária e sistemática de leis, ordens, cartas e mais atos régios concernentes à administração da
capitania (1708-1788), fl. 17.
55
diretamente ao defeito de sangue, visto que “esta mistura ou defeito da natureza que até é
proibida por Deus nos animais irracionais os faz sempre viver em ódio com os brancos limpos
de sangue”. 187 Como se depreende da representação, os argumentos a favor dos homens
brancos foram estruturados com base tanto na ordem régia de 1726 encaminhada às Minas
como na imagem do antagonismo entre os mestiços maculados pela ascendência escrava e os
brancos limpos de sangue. De fato, a longevidade dessa representação dual manteve-se
presente no pensamento social do Brasil durante todo o século XVIII e ao longo do XIX.
No entanto, no ambiente colonial havia uma margem de plasticidade dessas regras. Se
relembrarmos as observações do parecer do Conselho à capitania de Minas, em 1725,
veremos que a justificativa para a tolerância, até aquele momento, de mulatos no exercício
dos cargos públicos fora a falta de homens brancos para ocupá-los. Ou seja, as concepções
que acentuavam o “defeito da cor” podiam ser ignoradas ou afirmadas de acordo com cada
configuração social.
Assim, não deve causar estranheza encontrarem-se vestígios de homens de cor no
exercício de ocupações que, teoricamente, não lhes cabiam. O caso dos órgãos da justiça é
significativo para avaliarmos esses arranjos. Através de seu requerimento, enviado em 1730,
tomamos conhecimento da existência do bacharel mulato Antonio Ferreira Castro, da
capitania de Pernambuco. Nele pedia provimento para servir como procurador da Coroa
naquela capitania. 188 Por provisão de 23 de agosto de 1730 foi-lhe concedida licença real para
atuar na função requerida, mas seus anseios foram malogrados pelo governador de
Pernambuco, o qual não o proveu no referido cargo colocando em seu lugar Baltazar
Gonçalves Ramos. Segundo o governador, os motivos para tal atitude era a cor do requerente,
por ser mulato e isso constituir um defeito. No entanto, D. João V, por carta de 9 de maio de
1731, foi enfático ao afirmar que “o defeito que dizeis haver no dito provido por ser pardo, se
não obsta para este ministério, e se reparam que vos por este acidente excluísse um bacharel
187
Cf: Carta dos oficiais da Câmara de Vila Boa, ao príncipe Regente, D. João, sobre as arbitrariedades e
comportamentos despóticos do governador e capitão-general de Goiás, D. João Manuel de Menezes,
nomeadamente nas prisões abusivas e perseguições violentas cometidas contra magistrados e pessoas de bem da
capitania, protegendo as piores e dignas de reparos, como os pretos, mulatos e cativos, para grave prejuízo e
desordem das fábricas e de seus senhores, assim como da Fazenda Real, e solicitando, para isso, a sua
substituição e a aplicação das leis de proibição da incorporação de mulatos e homens brancos casados com
mulatas, em cargos públicos e militares, em particular nas Companhias de Dragões, Milícias e Ordenanças de
Goiás. AHU-GO, cx. 45, doc. 2650. Vila Boa, 2 de março de 1803.
188
Cf: Requerimento do bacharel Antonio Ferreira de Castro ao rei, D. João, pedindo provimento para servir
como procurador da Coroa, na capitania de Pernambuco. AHU-PE, cx. 40, doc. 3664. Anterior a 22 de agosto de
1730.
56
formado provido por mim para introduzirdes um homem que não é formado”. Após contar
com esta resolução régia, Antonio Ferreira teve sua provisão confirmada. 189
Semelhantemente ao mulato Antonio Ferreira de Castro, outros descendentes de
africanos exerceram ocupações relacionadas à justiça. Porém, diferentemente dele, tiveram a
necessidade de recorrer ao rei a fim de serem dispensados do “defeito da cor”. Com este
objetivo recorreram ao rei, em 1743, Miguel Mendes e Vasconcelos e seu filho, pois foram
excluídos da função de solicitadores supranumerários que exerciam na Relação da Bahia por
seu chanceler, “com o fundamento de serem pardos”. 190 Um ano após o requerimento de
Vasconcelos, Luis Martins Soares também solicitou provisão de requerente supranumerário
na cidade da Bahia, pedindo para ser dispensado “nos acidentes das cores pardas”. 191 Em
1754 Paulo Coelho, da capitania de Pernambuco, clamou pela graça régia para que lhe
passasse provisão dispensando-o do “acidente da cor parda”. Como justificativa do
requerimento estava o fato de exercer a ocupação de escrevente público nos auditórios e, por
isso, “está mui certo na prática judicial”. 192
A partir do teor desses requerimentos podemos vislumbrar algumas indicações
importantes acerca desses sujeitos e suas demandas. Em primeiro lugar, que a cor/qualidade
era admitida tanto pelas autoridades quanto pelos próprios requerentes como um defeito. Em
nenhum momento este aspecto é colocado em questionamento; Em segundo lugar, a
configuração social local também aparecia como um argumento a favor dos pardos. Como
indicaram Miguel Vasconcelos e Luis Soares, havia certa tradição de pardos desempenharem
a função de requerentes na Bahia e isso tornava legítimas suas aspirações para ocupar o
referido ofício mesmo portando o “acidente da cor”; Por fim, o aspecto para o qual mais
chamo atenção: em todos esses pedidos de dispensa a qualificação e experiência na função
requerida constituiu matéria comum e ressaltada. Seja no caso do mulato Antonio Ferreira, o
qual foi provido no cargo de procurador da coroa por ser “bacharel formado”, ou dos outros,
189
Cf: Carta do governador da capitania de Pernambuco, Duarte Sodré Pereira Toledo, ao rei, D. João, sobre as
razões que teve para não admitir ao bacharel Antonio Ferreira Castro, mulato, como procurador da Coroa e
Fazenda, e que já deu posse no referido cargo. AHU-PE, cx. 42, doc. 3803. Recife, 15 de março de 1732. Como
fica implícito por meio de seus pedidos de renovação do cargo até o ano de 1747, vê-se que Castro realmente
conseguira afirmar seu posicionamento naquele meio social.
190
Cf: Requerimento do capitão Miguel Mendes de Vasconcelos e do seu filho ao rei, D. João, solicitando
provisão para servirem de procuradores de causas nos auditórios da cidade da Bahia, sem embargo de serem
pardos. AHU-BA (Avulsos), cx. 77, doc. 6412. Anterior a 23 de setembro de 1743. A coleção AHU-BA
(Avulsos) passará a ser citada apenas como AHU-BA.
191
Cf: Requerimento de Luis Martins Soares ao rei, D. João, solicitando provisão de requerente supranumerário
na cidade da Bahia para entrar no número e dispensa nos acidentes das cores pardas por ocasião da oposição.
AHU-BA, cx. 79, doc. 6557. Anterior a 17 de junho de 1744.
192
Cf: Requerimento de Paulo Coelho ao rei, D. José I, pedindo provisão para que sua cor parda não lhe sirva de
impedimento para exercer qualquer função pública em qualquer parte do Brasil. AHU-PE, cx. 76, doc. 6377.
Pernambuco, anterior a 29 de julho de 1754.
57
os quais não tiveram seus requerimentos despachados favoravelmente. Como indicou Luis
Soares, o rei costumava dispensar “nos impedimentos das pessoas beneméritas”, o que
significava que mesmo a cor parda sendo sinônimo de defeito havia a possibilidade de
dispensa. Contudo, essa graça real não era despendida a qualquer homem de cor, senão
àqueles que tivessem certas qualidades, que fossem merecedores.
De fato, a auto-identificação como negros e pardos diferenciados tinha um papel
importante para dar sustentação e legitimidade às suas demandas, o que não significa que
seriam despachadas favoravelmente. A este respeito, os pedidos relacionados com a proibição
do uso de armas são esclarecedores. O requerimento enviado em 1758 por pardos da confraria
de São José, capitania de Minas Gerais, tinha como matéria a dispensa da proibição do porte
de armas. O que estava em questão era o capítulo 14º da lei de 1749 sobre o uso de armas,
pois apesar de a ordem ser destinada a todos os vassalos, fossem brancos ou de cor, no
referido parágrafo asseverou-se que pessoas de baixa condição não pudessem mais portar
espada ou espadim, em decorrência dos homicídios, ferimentos e brigas a que davam lugar.
No grupo mencionado estavam: aprendizes de ofícios mecânicos, lacaios, marinheiros,
fragateiros e negros. As penas aos que incorressem nesse crime seriam perda das referidas
armas, pagamento de multa e prisão. 193 No entanto, segundo argumentavam os requerentes, os
pardos não se encontravam mencionados na referida lei e, no caso, não constituíam pessoas de
baixa condição. Prova disso eram as ocupações dignas que desempenhavam: mestres de
ofícios mecânicos, músicos, mestres de gramática, de cirurgia e mineiros. 194 Também os
pardos Custódio da Silva Almança e Vasconcelos e seu irmão João da Silva, recorreram ao rei
a fim de serem dispensados das restrições quanto ao uso de armas por pessoas de cor. Assim
como os pardos de Minas, procuravam demonstrar que não eram de baixa condição, mas, pelo
contrário, que descendiam de famílias nobres e como tais viviam, “sem ocuparem ofício
algum mecânico”. No entanto, o pedido foi recusado. 195
No que se refere às demandas de escravos enviadas ao arbítrio régio durante a primeira
metade do século XVIII, seu volume parece ter sido consideravelmente menor se comparado
aos pedidos encabeçados por homens de cor livres no mesmo contexto. Porém, como veremos
193
Cf: Pragmática de 24 de maio de 1749. In: LARA, Silvia H. Legislação sobre escravos africanos na América.
In: ANDRÉS-GALLEGO, José (Dir. e Coord.). Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica.
Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000. p. 307-312.
194
Cf: Requerimento dos homens pardos da Confraria de São José de Vila Rica das Minas, solicitando o direito
de usar espadim a cinta. Anterior ao dia 6 de março de 1758. AHU-MG, cx. 73, doc. 20.
195
Cf: Requerimento dos pardos Custódio da Silva Almança e Vasconcelos, seu irmão João da Silva Almança
Vasconcelos e seus pais João da Silva Guimarães e Paulo Maria de Almança Vasconcelos ao rei, D. João V,
solicitando dispensa com eles suplicantes para poderem fazer uso de armas. Anterior a 15 de março de 1750.
AHU-BA, cx. 102, doc. 8030.
58
em outro momento, ao longo da segunda metade do século XVIII essa situação tendeu a
mudar relativamente aos requerimentos de escravos, visto a considerável ampliação destes, os
quais passaram a ser mais freqüentemente encaminhados ao monarca. Por ora, no entanto, o
foco de análise é direcionado a alguns requerimentos de liberdade anteriores a década de 1760
e procura-se identificar neles quais justificativas eram mobilizadas como legitimadoras do
pedido em questão.
Através do requerimento do escravo Teodoro Gonçalves Santiago, morador na vila de
Santos, capitania de São Paulo, encaminhado a D. João V por volta de 1733, têm-se algumas
indicações de situações passíveis de gerarem apelos à justiça régia. 196 Conforme expressado
no requerimento, o que dera início ao litígio contra seu senhor foi a descoberta de que havia
sido injustamente escravizado, pois ainda quando pequeno, na capitania de Pernambuco, fora
alforriado por sua senhora, mas vendido “enganosamente” para seu senhor atual. Alegou
como justificativa para recorrer ao monarca o fato de não ter condições financeiras para arcar
com “um tão renhido pleito” contra seu senhor, visto que apesar de lhe ter proposto em troca
da concessão de sua liberdade um outro escravo, avaliado no mesmo valor que ele, a
transação não fora aceita pelo proprietário. Em função desses entraves, recorria ao monarca
clamando para que seu senhor fosse obrigado a aceitar as condições oferecidas e vender-lhe a
liberdade. A favor do requerente estava também o fato de ter sido capitão de uma companhia
de pardos sujeitos criada na conjuntura da invasão francesa ao Rio de Janeiro, a frente da qual
alegava ter servido com destreza. Salientava ainda que enquanto esteve no exercício da
função, gozou de todas as honras. De forma sintética, através do referido caso, pode-se
considerar como situações que legitimavam o recurso ao rei a injustiça do cativeiro; pedidos
de liberdade negados na justiça ordinária; quando o senhor recusava-se alforriar o escravo
mesmo este dispondo da quantia de sua avaliação.
Em 1702, a Irmandade do Rosário dos pretos de Olinda, capitania de Pernambuco,
representava o escravo Domingos Gomes perante o monarca. Pedia para que seu senhor fosse
convencido a vendê-lo pelo preço avaliado, apresentando as justificativas de que o dito
escravo já era idoso, sofria com maus-tratos, demonstrava muito interesse em libertar-se para,
então, constituir uma família e tornar-se um bom cristão. 197 Neste caso, a conformação do
196
Cf: Requerimento do capitão Teodoro Gonçalves Santiago, homem pardo, morador na vila de Santos, escravo
do sargento-mor Manuel Gonçalves de Aguiar, pedindo a D. João V que, por alvará, mande o suplicado aceitar
um escravo que lhe oferece em troca da sua liberdade. AHU-SP (A.M.G.), cx. 8, doc. 898. Santos, anterior a 4 de
maio de 1733.
197
Cf: Carta da irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos homens pretos de Olinda ao rei, D. Pedro II,
pedindo que o ouvidor-geral, da capitania de Pernambuco, José Guedes de Sá, convença a Lourenço Gomes
Mourão a vender seu escravo, Domingos Gomes, pelo preço avaliado, tendo em vista a idade avançada do dito
59
escravo digno de ser libertado era conferida, por um lado, por ser maltratado e, por outro,
porque sua conduta em estado de liberdade conformar-se-ia com os padrões de um bom
vassalo: pai de família e cristão. Também foi com base nos maus-tratos que o escravo do
religioso carmelita Manuel de Madre de Deus, da Bahia, requeria a liberdade ao rei por volta
de 1722. 198 Observa-se que nos dois requerimentos o argumento comum consistia na alegação
de maus-tratos.
Silvia Lara chamou a atenção para o fato de que o uso do castigo como instrumento de
dominação senhorial era uma prática comum e aceitável no contexto colonial, tanto por parte
de religiosos, das autoridades e mesmo dos escravos. Porém, era conhecimento disseminado
que tais castigos deveriam ser moderados, justos, corretivos, educativos e exemplares. 199
Tendo isso em vista, pode-se entender que as práticas assentadas nos castigos físicos que
ultrapassassem a moderação incorreriam em maus-tratos. Em fins do século XVII a Coroa
portuguesa buscou arbitrar sobre esta matéria, através das cartas régias de 20 e 23 de março de
1688, segundo a qual os senhores que tratassem cruelmente seus escravos seriam obrigados a
vendê-los. 200 No entanto, essas leis foram revogadas por carta régia de 23 de fevereiro de
1689, pois estavam causando “perturbações entre eles [escravos] e seus senhores com a
notícia de que tiveram das ordens”. 201 Apesar da revogação dessas cartas régias, os castigos
excessivos permaneceram como matéria a ser tratada pelas autoridades coloniais, sem, no
entanto, conformarem leis ordenadas pelo poder central a fim de determinar punições aos
senhores. 202 Apesar de não se ter conhecimento do desfecho dos pedidos dos escravos da
Bahia e de Pernambuco referidos, suas demandas são reveladoras de que as notícias acerca
dos preceitos que impediam castigos excessivos disseminaram-se pelo corpo social, o que é
atestado pela alegação de maus-tratos como característica comum a ambos. Com algum grau
de generalização, pode-se afirmar que desde fins do século XVII os maus-tratos conformavam
uma das principais alegações em prol da liberdade.
escravo, os maus-tratos sofridos e a vontade de se libertar do cativeiro, constituir família e freqüentar a igreja.
AHU-PE, cx. 20, doc. 1896. Olinda, 30 de outubro de 1702.
198
Cf: Parecer do Conselho Ultramarino sobre o requerimento do escravo do ex-provincial carmelita Manuel de
Madre de Deus queixando-se de maus-tratos. AHU-BA, cx. 16, doc. 1385. Lisboa, 2 de janeiro de 1723.
199
LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 342-343.
200
Cf: Carta régia de 20 e 23 de março de 1688. Estas normativas foram enviadas aos governadores do Rio de
Janeiro e de Pernambuco. LARA, Silvia H. Legislação sobre escravos africanos na América portuguesa. In:
ANDRÉS-GALLEGO, José (Dir. e Coord.). Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de Iberoamérica.
Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000, p. 198-199.
201
Cf: Carta régia de 23 de fevereiro de 1689. LARA, Silvia. Idem, p. 201.
202
A exemplo da carta régia de 7 de fevereiro de 1698, dirigida à capitania do Rio de Janeiro. Exortava ao
governador para que averiguasse “com prudência e cautela” os casos de maus-tratos, sem, no entanto, causar
“alvoroço nos donos” (...) “sem ruído ou alteração dos mesmos escravos”. LARA, Silvia. Idem, p. 211.
60
Como vimos, as experiências de negros e pardos, livres e escravos, na América
portuguesa têm de ser problematizadas a partir da complexidade que marcava aquela
configuração social. De um lado, têm-se as leis e valores que concebiam aqueles sujeitos
como categorias sociais desprestigiadas. Eram marcados pelos estigmas advindos da
escravidão e da ascendência africana. Por outro lado, no entanto, a realidade social, com as
especificidades de cada região e momento, mostrava-se mais maleável. Nesse ambiente, estes
sujeitos não deixaram de lançar mão dos recursos disponíveis para verem suas aspirações
concretizadas. Fosse a busca pela liberdade, fosse o exercício de um cargo público
teoricamente reservado aos brancos, o que sempre estava no jogo do pedir e receber eram
atributos que os caracterizavam como pardos e pretos diferenciados dos demais de sua
condição. Foi sobre este ambiente que os alvarás pombalinos concernentes à escravidão
incidiram e certamente representaram um novo campo de possibilidades para tais sujeitos. É
sobre isso que passaremos a discutir a partir de agora.
2.3 – O alvará de 19 de setembro de 1761 e seu impacto nos escravos do Brasil
Dentre as inovações legislativas levadas a efeito durante o reinado de D. José I,
aquelas concernentes à escravidão dos negros em Portugal merecem destaque especial e
constituem objeto desta pesquisa. Numa conjuntura na qual se procedia à ampliação dos
grupos sociais considerados “habilitados”, como se viu no capítulo precedente, o tratamento
para com os escravos e homens livres e libertos de cor foi caracterizado pela falta de
homogeneidade. A este respeito, no que concerne ao império, os alvarás pombalinos sobre a
escravidão foram responsáveis por instaurar uma evidente divisão entre Portugal e o mundo
além de suas fronteiras, notadamente em relação à América portuguesa. Neste momento não
adentraremos nas discussões teóricas e interpretações desta situação, o que será efetuado
posteriormente. Aqui, o olhar estará direcionado especificamente para o alvará de 19 de
setembro de 1761.
O alvará em questão foi a primeira disposição legal que incidiu sobre a escravidão
negra, proibindo o tráfico de escravos para Portugal, assentando que:
Do dia da publicação desta Lei nos portos da América, África, e Ásia; e depois de
haverem passados seis meses a respeito dos primeiros, e segundos dos referidos
portos, e um ano a respeito dos terceiros, se não possam em algum deles carregar,
nem descarregar nestes Reinos de Portugal, e dos Algarves, Preto, ou Preta alguma:
Ordenando, que todos os que chegarem aos sobreditos Reinos, depois de haverem
passados os referidos Termos, contados do dia da publicação desta, fiquem por
benefício dela libertos, e forros, sem necessitarem de outra alguma Carta de
61
manumissão, ou alforria, nem de outro algum despacho, além das Certidões dos
administradores, e oficiais das alfândegas dos lugares onde aportarem (...). 203
Como fica explicitado no texto da lei, aos escravos que adentrassem em Portugal,
passado o tempo estabelecido para a divulgação da nova lei nos portos do império, seria
concedida a liberdade automaticamente. Aos que fossem agraciados, não seria mais
necessário carta de alforria tradicional para atestarem a liberdade, o que significava tornar o
processo mais rápido. Somente certidões passadas pelos oficiais das alfândegas já seriam
suficientes para atestar o novo estado dos beneficiários. No que concerne aos procedimentos
que deveriam ser tomados por estes oficiais, indicava-se que não demorassem mais de
quarenta e oito horas – contadas a partir da entrada dos navios nos portos – para passarem as
ditas certidões. Caso incorressem em negligência, seriam punidos com a suspensão de seus
cargos. Aos escravos que se achassem prejudicados devido à ação dos oficiais, admoestava-se
para recorrerem “aos juizes, e justiças das respectivas terras (...), para que qualquer deles lhes
passe as ditas certidões (...), e com a declaração das dúvidas, ou negligências dos sobreditos
oficiais das alfândegas”. Por fim, aqueles que mantivessem como escravos aos que obtiveram
a liberdade seriam punidos sob a acusação de cárcere privado.
No que diz respeito às ações referentes ao tráfico de escravos africanos para reinos
europeus, Robin Blackburn e Maria do Rosário Pimentel chamaram a atenção para a relativa
precocidade portuguesa representada pela publicação deste alvará. 204 Apesar de opiniões
públicas contra o tráfico já circularem na Inglaterra e América do Norte ainda na primeira
metade do século XVIII, levadas a efeito essencialmente por grupos religiosos protestantes,
nada havia sido firmado legislativamente até a década de 1770. 205 Na França, desde início do
século XVIII, era disseminado o chamado “princípio da liberdade”, o qual consistia na idéia
de que todo escravo que entrasse naquele reino deveria ser libertado. Conforme Keila
Grinberg, esta era uma norma proveniente do direito costumeiro, ou seja, não firmada em
código de lei outorgado pelo Estado. Todavia, escravos levados das colônias à França por
seus senhores reclamavam suas alforrias com base nesse costume. De fato, principalmente a
partir da década de 1750, muitos escravos provenientes das colônias pleitearam a liberdade
203
Cf: Alvará de 19 de Setembro de 1761. Proibindo o transporte de Negros escravos do Brasil para o Reino. In:
SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações.
Suplemento à Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia de Luiz Correa da Cunha, 1842. p. 811-812.
204
BLACKBURN, Robin. A queda do escravismo colonial: 1776-1848. Rio de Janeiro: Record, 2002. p. 75-76;
PIMENTEL, Maria do Rosário. Viagem ao fundo das consciências. A escravatura na época moderna. Lisboa:
Edições Colibri, 1995. p. 318.
205
GOULD, Eliga. H. Zones of law, zones of violence: the legal geography of British Atlantic, circa 1772. The
William and Mary Quartely, v. 60, n. 3, p. 471-510, 2003; PIMENTEL, Maria do Rosário. Idem. p. 318.
62
através de ações na justiça, “obtendo a alforria em absolutamente todos os casos”. 206 Porém,
somente por obra da Revolução foram decretadas as primeiras leis que na Europa condenaram
de forma enfática o tráfico e a escravidão. Em 1791, na Constituinte, declarou-se a liberdade e
o exercício de todos os direitos políticos para qualquer sujeito que entrasse na França,
independente de sua cor de pele. No mesmo ano foi proibido o tráfico de escravos para a
França, seguido, em 1794, da abolição da escravidão. No entanto, quando do consulado
napoleônico, em 1804, a escravidão e o tráfico foram restabelecidos. 207
Especificamente para o caso britânico, as historiografias inglesa e norte-americana que
pesquisam o início do movimento abolicionista inglês têm destacado a inovação representada
pelo julgamento do caso “Somerset”, em 1772. James Somerset foi um escravo proveniente
da Virginia, que fora levado por seu proprietário, Charles Steuart, à Inglaterra no ano de 1769.
Passados dois anos de sua estadia, Somerset fugiu, mas foi capturado. Após esse episódio,
Steuart resolveu vendê-lo. Acorrentado num navio com destino à Jamaica, em novembro de
1771, teve contato com Granville Sharp, religioso anglicano e abolicionista ligado aos
quakers da Pensilvânia, o qual intercedeu a seu favor. Juntamente com seus aliados,
encaminhou à Corte de Justiça Suprema da Inglaterra o pedido de liberdade para Somerset.
Em 22 de junho de 1772, a decisão favorável ao escravo gerou intensos debates, inclusive
divulgados em jornais e revistas da época. A partir de então, todo escravo que adentrasse na
Inglaterra seria considerado livre. 208
Mesmo a publicação do alvará de 19 de setembro de 1761 constituindo um ato
inovador para o cenário europeu do momento, algumas ressalvas quanto a sua configuração
precisam ser feitas. Apesar de ordenar a concessão da liberdade a todos os escravos que
desembarcassem em Portugal, ao fim da carta legislativa declararam-se de forma enfática suas
restrições: não era da “real intenção” que com o pretexto dela desertassem dos “meus
domínios ultramarinos os escravos, que neles se acham”. Àqueles que fugissem para Portugal
visando obter a liberdade, ficava determinado que fossem “presos e alimentados, e remetidos
206
GRINBERG, Keila. Alforria, direito e direitos no Brasil e nos Estados Unidos. Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, n. 27, p. 63-83, 2001. p. 67-68. As informações referentes à França foram consultadas pela autora em
PEABODY, Sue. “There are no slaves in France”: the political culture of race and slavery in the ancien régime.
Nova York, Oxford University Press, 1996.
207
PIMENTEL, Maria do Rosário. Viagem ao fundo..., p. 149.
208
CLEVE, George van. “Somerset’s case” and its antecedents in imperial perspective. Law and History Review,
v. 24, n. 3, p. 601-645, 2006; GOULD, Eliga. H. Zones of law, zones of violence: the legal geography of British
Atlantic, circa 1772. The William and Mary Quartely, v. 60, n. 3, 471-510, 2003; OLDHAN, James. New light
on Mansfield and slavery. The Journal of British Studies, v. 27, n. 1, p. 45-68, 1988; WIECEK, William. M.
Somerset: Lord Mansfield and the legitimacy of slavery in the Anglo-American World. The University of
Chicago Law Review, v. 42, n. 1, p. 86-146, 1974.
63
aos lugares donde houverem saído, a custa das pessoas em cujas companhias, ou embarcações
vierem, ou se acharem”. 209
No entanto, o que a legislação fixa na teoria correntemente é transgredido na prática.
Como observou Thompson, as determinações legais não são aparelhos herméticos e são
passíveis de interpretações, relações de conveniência, acomodações. 210 O alvará de 19 de
setembro de 1761 constitui caso evidente destas constatações. Uma primeira observação de
caráter geral que tem de ser feita a esse respeito é que escravos continuaram a ser levados para
Portugal mesmo após a promulgação do sobredito alvará. Podemos conjeturar que para
homens acostumados a servirem-se da mão-de-obra de seus escravos domésticos seria um
tanto quanto difícil abandonar práticas que lhes eram tão inerentes quando passavam da
colônia americana para o reino.
Operando no interior da lógica da indispensabilidade do trabalho escravo, alguns
sujeitos clamaram pela graça régia a fim de receberem dispensa das imposições do alvará. Foi
com esta intenção que Feliciano dos Santos, da capitania do Maranhão, escreveu a D. João,
em 1792, pedindo licença para que pudesse se deslocar à corte, lá permanecendo por um ano e
levando consigo dois escravos. Como justificativa, alegava ter negócios em Lisboa e que para
as viagens que lá faria necessitava do auxílio de seus escravos. 211 Também o cadete Pedro
Dias Paes Leme, da capitania do Rio de Janeiro, em 1805 pediu para que a lei de 1761 fosse
desconsiderada para o seu caso. No requerimento, assim como Feliciano dos Santos,
informava que estava na corte para tratar de negócios e que necessitava “que Vossa Alteza
Real lhe conceda a especial graça de poder mandar vir de sua casa um de seus escravos”.
Certamente já conhecendo os procedimentos tomados por escravos quando chegavam ao
reino, Pedro se precavia, pedindo para que o seu, por via de requerimentos, não “haja de ficar
liberto por benefício da lei” durante o tempo em que residisse na corte. Com o intento de
tornar mais convincente e aceitável a dispensa que clamava, deixava claro que sua estadia não
demoraria e, além disso, sugeria que lhe fosse passado um prazo para isso. Sem mais
explicações do que “não há que deferir”, o pedido lhe foi negado. 212
209
Cf: Alvará de 19 de setembro de 1761.
THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores. A origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 338.
211
Cf: Requerimento do capitão de mar e guerra Feliciano dos Santos ao príncipe regente D. João, solicitando
licença de um ano para se deslocar à Corte na companhia de dois escravos. AHU-MA, cx. 81, doc. 6859.
Maranhão, ca. 1792.
212
Cf: Requerimento do cadete do 1° Regimento de Linha da Guarnição do Rio de Janeiro, Pedro dias Paes
Leme, ao príncipe Regente, D. João, solicitando permissão para mandar vir um de seus escravos para esta Corte,
onde se encontra o suplicante, sem que, durante o tempo que residir nesta, haja o escravo de ficar liberto por
benefício da lei. AHU-RJ, cx. 231, doc. 15789. Posterior a 13 de outubro de 1805.
210
64
Envolvido nos jogos interpretativos que caracterizavam os usos da lei, o pardo Manuel
de Almeida Machado, da capitania de Minas Gerais, viu-se privado da liberdade que lhe era
devida por direito. Manuel havia sido levado para Portugal por seu senhor, José Pinto Pereira,
no ano de 1764, o qual “o não apresentou na alfândega, nem dele deu entrada”. Pelo que
consta de seu requerimento, já havia solicitado a liberdade ao Conselho da Fazenda, obtendo
como resposta que “esperasse resolução de Vossa Majestade, por ter vindo antes do aviso de 2
de janeiro de 1767”. Porém, esperando a decisão régia, Manuel continuava “no mesmo injusto
cativeiro” e pedia para que lhe fosse concedida a graça do alvará de 1761 e do aviso de
1767. 213 O aviso do qual se fez menção no requerimento fora publicado para dar fim à
“diversa interpretação” que se estava conferindo ao alvará de 1761. Segundo consta do aviso,
muitas pessoas entendiam que o benefício do alvará não se estendia aos escravos pardos por
não estarem explicitamente discriminados na lei, pois nela só constavam os termos “pretos e
pretas”. A partir de sua publicação, no entanto, assentou-se a destinação do alvará de 1761
também aos escravos pardos e pardas. 214 Todavia, no caso de Manuel esta diversa
interpretação possivelmente figurou a favor de seu senhor, pois poderia se defender alegando
a crença de que o alvará de 1761 não cabia aos pardos, o que era corroborado por ter
desembarcado antes do aviso de 1767, como, aliás, lembrava o parecer do Conselho da
Fazenda. 215
Através dos casos examinados acima vemos que as barreiras estabelecidas pelo alvará
de 1761 no que dizia respeito à entrada de escravos provenientes do ultramar em Portugal
poderiam ser mais flexíveis dependendo de certas condições, como era o caso da interpretação
parcial da lei. Destaco o fato de que não raro os termos das leis foram apropriados e
manipulados em prol dos interesses senhoriais. Nesse sentido, a ressalva postulada ao final do
texto legislativo acerca dos escravos fugitivos certamente constituiu argumento invocado por
senhores na iminência de perderem o domínio sobre seus escravos.
213
Cf: Requerimento de Manuel de Almeida Machado, homem pardo, natural das Minas do Ouro Preto, pedindo
para se mandar passar aviso ao Conselho da Fazenda ou ao provedor a fim de lhe dar os despachos necessários
para a declaração da sua liberdade. AHU-MG, cx. 95, doc. 57. Anterior a 8 de julho de 1769.
214
Cf: Aviso de 2 de janeiro de 1767. Favorecendo a liberdade dos mulatos e mulatas vindos da América, África
e Ásia. In: SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das
Ordenações. Suplemento à Legislação de 1763 a 1790. Lisboa: Typografia de Luiz Correa da Cunha, 1844. p.
128-129.
215
Também no caso do escravo Francisco, igualmente natural de Minas Gerais, sua cor parda parece ter sido
responsável por permitir que fosse levado com seu senhor para Portugal e não incluído no benefício da lei. Cf:
Requerimento do escravo pardo do capitão Lourenço Gomes Macedo, Francisco, ao rei, D. José, solicitando
licença para passar sua mulher, Bárbara, crioula, natural das Minas, para o reino onde o suplicante se encontra
após ter acompanhado seu senhor e família. AHU-RJ, cx. 82, doc. 7343. Anterior a 29 de outubro de 1767.
65
Em junho de 1780 o intendente geral da polícia da corte e reino ao vistoriar a galera
que aportara em Lisboa vinda do Rio de Janeiro deparou-se com dois escravos em companhia
de Pedro Antonio da Gama e Freitas. Este, no entanto, sem demora alegou que os sobreditos
escravos ali se encontravam contra sua vontade, pois na realidade eram fugitivos. Na versão
dos fatos apresentada por Pedro Antonio, os escravos haviam viajado do porto do Rio de
Janeiro para Portugal através da fragata Nossa Senhora da Graça e quando desembarcaram no
reino passaram à embarcação na qual ele se encontrava. Tendo em vista esta situação, Pedro
pedia ao intendente para que prendesse os ditos escravos. Parecendo esta história um tanto
quanto mirabolante, podemos conjeturar que talvez tenha sido alegada pelo senhor a fim de
ocultar sua intenção de introduzir os escravos no reino de forma ilícita e que ao ser
interceptado pelo intendente inverteu os fatos, fazendo dos escravos fugitivos e, portanto, não
sendo beneficiados pela lei. Condizente ou não com a verdade, o argumento apresentado por
Pedro Antonio foi acatado pelo intendente, o qual sugeriu que os escravos retornassem para o
Rio de Janeiro. 216
Diferentemente da situação ocorrida com Pedro Antonio, na qual fica evidente que os
dois escravos possivelmente foram levados para Portugal em sua companhia, existem outras
evidências nas quais a entrada em Portugal foi precedida de fuga. Em requerimento de 1804 o
sargento-mor Gabriel Garcês, da capitania do Rio de Janeiro, pedia para que seu escravo
Jerônimo, que se encontrava preso em Lisboa, fosse remetido à América. 217 Conforme a
versão dos fatos apresentada por Gabriel, através de seu procurador em Lisboa, o pardo
Jerônimo “para se subtrair do justo cativeiro em que estava e da devida correção que merecia
pelas suas desenvolturas pode fugir para esta corte” passando-se por forro. Porém, o que
estava obstando suas pretensões era o pedido de liberdade feito ao intendente geral da polícia
por Jerônimo, o que conseguiu “favoreado por algumas pessoas, e principalmente pela
irmandade do Rosário dos homens pretos”. No entanto, ao requerimento de Jerônimo
contrapôs o “direito dominical”, o qual era “protegido pelas leis do reino naquelas
conquistas”. Conforme sua perspectiva, se a liberdade fosse concedida ao seu escravo daria
216
Cf: Ofício do intendente geral da polícia da Corte e Reino, Diogo Inácio de Pina Manique ao secretário de
estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, sobre o pedido de Pedro Antonio da Gama Freitas,
vindo do Rio de Janeiro na galera Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora do Rosário, para que prendesse na
cadeia da Corte dois escravos seus fugitivos; recomendando que se remeta os escravos fugidos de volta a casa de
seu senhor no Rio de Janeiro por terem passado ao Reino sem consentimento e por isso não podem usufruir do
benefício da lei do Reino acerca dos escravos. AHU-RJ, cx. 113, doc. 9322. Lisboa, 1 de junho de 1780.
217
Cf: Requerimento do sargento-mor de milícias reformado, Gabriel Garcês e Gralha, por seu procurador
Joaquim Pinto Gonçalves, ao príncipe regente, D. João, solicitando que seu escravo Jerônimo seja entregue ao
seu procurador, por ter fugido e se encontrar na Corte. AHU-RJ, cx. 223, doc. 15315. Posterior a 1804.
66
exemplo a outros, o que tornaria “muito vacilante o direito dos senhores” e colocaria em risco
a estabilidade da colônia americana.
Sem avaliarmos se Jerônimo realmente fugiu para Portugal em busca da liberdade,
cabe destacar que a corte portuguesa representava um espaço de proteção para os escravos,
conferida pela proximidade com o monarca. Estas expectativas certamente foram
corroboradas a partir da promulgação dos alvarás de 1761 e 1773. 218 O escravo Vicente
Antonio Telles, da capitania da Bahia, em requerimento também de 1804, relatou ao rei os
motivos que o fizeram fugir: após a morte de seu senhor ficou em poder de Antonia Thereza
de Sá Pitta, viúva daquele, passando a sofrer “com as maiores dificuldades e tiranias que
faziam insuportável o dito cativeiro e obrigaram o suplicante a desertar, e fugir para esta corte
onde suplica a Vossa Alteza Real o perdão e a graça de sua liberdade”. Além disso, informava
que estava disposto a pagar o valor de sua avaliação à dita proprietária. Na argüição elaborada
a favor de Vicente, vinha somar-se o fato de que “Vossa Alteza Real tenha feito mercês e
graças semelhantes pela benignidade de seu régio coração” e ainda que a liberdade era
favorecida por todos os direitos. A princípio, o pedido de Vicente foi considerado pelo rei, o
qual mandou que o desembargador da alfândega avaliasse a situação e lhe indicasse o
procedimento mais adequado, “a fim de não ficar prejudicado, nem o suplicante, nem a sua
senhora”. Porém, as admoestações do desembargador não foram em nada favoráveis às
pretensões do escravo, julgando a causa a partir de “princípios de justiça e política” e
decidindo-se pelo resguardo do “direito dos senhores”. 219 De forma geral, nas causas de
liberdade levadas a efeito em Portugal com base no alvará de 1761, as prerrogativas
senhoriais constituíam o argumento mais recorrente invocado a favor dos senhores, o que
frequentemente era acompanhado por advertências em relação aos perigos para a estabilidade
do Brasil caso a prática da concessão das alforrias fosse ampliada.
Dentre as implicações mais delicadas surgidas em decorrência do alvará de 1761,
aquelas relacionadas aos escravos empregados em serviços marítimos foram as que mais
geraram embates legais. Já foi notado o quanto certas ocupações tinham ampla disseminação
218
Keila Grinberg observou que no contexto da transferência da corte portuguesa para o Brasil muitos escravos
passaram a acreditar que seriam libertados por conta do estabelecimento do monarca no Brasil e, por
conseqüência, da transformação do Rio de Janeiro num espaço civilizado, no qual a escravidão não se ajustava.
Conforme a autora, essa crença teria sido responsável pelo aumento das ações de liberdade e dos apelos pela
alforria encaminhados diretamente ao rei. GRINBERG, Keila. Alforria, direito e direitos no Brasil..., p. 71.
219
Cf: Aviso do Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Visconde de Anadia, João Rodrigues de Sá e Melo,
a Tomaz Ignácio de Morais Sarmento para que se informe sobre a petição de Vicente Antonio Teles, escravo de
D. Atonia Tereza de Sá Pita, da cidade da Bahia, solicitando carta de liberdade. AHU-BA, cx. 233, doc. 16095.
Lisboa, 17 de setembro de 1804.
67
entre homens de cor livres e escravos. No caso das atividades marítimas, estes últimos
constituíam parte significativa da força de trabalho nos navios. 220
Visando evitar os efeitos prejudiciais do alvará de 1761 na América, promulgou-se o
aviso de 22 de fevereiro de 1776. Segundo suas justificativas, os donos dos escravos temiam
os enviar a serviço nos navios com destino ao reino “pelo receio de lhes ficarem libertos na
conformidade do referido alvará”. Por conseqüência desses embaraços:
Manda Sua Majestade declarar a V. S, que todos os escravos marinheiros de
qualquer qualidade que sejam, que vierem ao porto da cidade de Lisboa, e mais
portos deste Reino, em serviço de navios de comércio, ou sejam escravos dos
mesmos donos dos navios, ou dos oficiais que neles andam embarcados, ou de
outras quaisquer pessoas moradoras na América, que os queiram trazer ao ganho
das soldadas dos navios de comércio, de nenhuma forma se devem entender
compreendidos no sobredito alvará, contanto que venham matriculados nas ditas
equipagens dos navios, com as mesmas confrontações, que traz toda a mais gente
das suas ditas equipagens, e com a declaração dos nomes dos donos de quem são
escravos. 221
Como fica evidente, o que motivou esta emenda ao alvará de 1761 foram interesses
econômicos relacionados ao trato mercantil entre a América portuguesa e o reino. Assim, aos
escravos marinheiros, desde que devidamente matriculados como tais na lista da tripulação do
navio, não seria estendida a graça da liberdade quando aportassem em Portugal. Alguns anos
após sua publicação o sobredito aviso teve de ser reafirmado, em 1800, fato indicativo das
dificuldades de acomodá-lo como regra a ser seguida. 222 Todavia, esta ressalva não impediu
que escravos mareantes aspirassem tornar-se livres ao entrarem em Portugal.
Os pedidos de liberdade de escravos provenientes da América portuguesa, embarcados
ao serviço dos navios, tinham um ponto de partida comum: ao desembarcarem em Portugal,
tomavam conhecimento desta possibilidade tão revolucionária por via de conversas com
outros negros que sabiam da existência dos alvarás. Esta teria sido a origem do desejo de
liberdade dos escravos de Manoel José Cardoso e de seus dois sócios. Segundo consta da
versão apresentada por Manoel, os escravos Vicente Ferreira, Ambrósio Roque, Manoel
220
Sobre este assunto ver: SILVA, Luiz Geraldo. A faina, a festa e o rito. Uma etnografia histórica sobre as
gentes do mar (séc.s XVII ao XIX). Campinas: Papirus, 2001.
221
Cf: Aviso de 22 de fevereiro de 1776. Declarando que os escravos que vierem em serviço dos navios aos
portos deste reino não ficam por isso libertos. In: SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação
Portugueza desde a última Compilação das Ordenações. Suplemento à Legislação de 1763 a 1790. Lisboa:
Typografia de Luiz Correa da Cunha, 1844. p. 426-425.
222
Cf: Alvará de declaração de 10 de março de 1800. In: LARA, Silvia H. Legislação sobre escravos africanos
na América portuguesa. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (Dir. e Coord.). Nuevas Aportaciones a la Historia
Jurídica de Iberoamérica. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000. p. 368-369; Didier Lahon chamou atenção
para o fato de que mesmo num período posterior, na conjuntura da independência do Brasil, muitos sujeitos
rumaram para Portugal levando consigo seus escravos. O foco de análise do autor é o papel das irmandades
negras portugueses nos embates jurídicos pela liberdade decorrentes desta situação. In: Esclavage et confréries
noires..., p. 550-561.
68
Pereira, Ventura Soares e Caetano José, naturais de Benguela, “por conselhos, e sugestões de
alguns pretos libertos desta cidade foram sinistramente induzidos, e aliciados a subtraírem-se
do poder e autoridade de seus respectivos senhores e a procurarem todos os meios de
conseguir a liberdade”. 223 Da mesma forma, os escravos de Teodósio Gonçalves da Silva, da
capitania da Bahia, “induzidos por outros seus iguais nesta corte, e presumindo que os cobria
o benefício do alvará de 19 de setembro de 1761”, teriam se dignado “a vir a presença da
augustíssima rainha, pedindo-lhe a sua liberdade”. 224
Estes indícios sugerem um aspecto essencial para a compreensão dos mecanismos
responsáveis pela circulação de informações sobre leis no império português. Ao lado dos
veículos impressos, certamente as sociabilidades constituídas por conversas banais,
freqüentemente desenvolvidas em portos, como acabamos de notar, eram um dos principais
meios de divulgação dessas notícias. Veremos no próximo capítulo como as sociabilidades
tinham um potencial significativo para incitar a manifestação das aspirações de escravos e
homens livres de cor na América.
Nestes embates pela liberdade gerados com base no alvará de 1761 e demais avisos, o
posicionamento dos oficiais régios constituía fator decisivo para a resolução favorável ou não
da causa. No julgamento da causa de liberdade movida pelos escravos levados de Pernambuco
para Portugal pelo capitão João Antonio Pereira, vê-se que as autoridades procuraram seguir
estritamente o que as leis determinavam. Segundo o parecer da junta, o que malogrou a
pretensão de liberdade com base nos alvarás de 1761 e no aviso de 1776 foi o fato de não
comprovarem que seu senhor descumpria os dois principais requisitos ordenados por lei: o
mencionado capitão tinha em sua posse os registros dos escravos, embarcados como serventes
do navio, portanto, como marinheiros. Por outro lado, não havia certidão da alfândega
comprovando que os escravos desembarcaram e muito menos se sabia a identidade de seu
verdadeiro senhor. Tendo em vista essas informações: “se mostra não ser o caso do presente
processo, que por direito se dizem favoráveis”. Na sentença do caso, além de continuarem no
cativeiro, determinou-se que os escravos arcassem com os custos do processo. 225
223
Cf: Requerimento do comerciante da praça do Rio de Janeiro, Manoel Gomes Cardoso, à rainha D. Maria I,
solicitando para que o provedor da Alfândega do Rio de Janeiro averigue junto dos negociantes de Lisboa a
conduta do suplicante e do tratamento aplicado a 5 escravos seus, de modo a apelar da acusação de maus tratos
contra si proferida pelos ditos escravos, uma vez que os mesmos apenas pretendiam alcançar a sua liberdade e
regressar a Benguela, sua pátria. AHU-RJ, cx. 110, doc. 9172. Lisboa, posterior a 7 de agosto de 1779.
224
Cf: Carta de Teodósio Gonçalves da Silva, negociante na praça da Bahia, ao governador-geral da referida
capitania, marquês de Valença, Afonso Miguel de Portugal e Castro, referente à concessão de liberdade a alguns
de seus escravos. Anterior a 28 de agosto de 1781. AHU-BA, cx. 181, doc. 13486.
225
Cf: Certidão (cópia) declarando a sentença da ação de proclamação da liberdade de alguns homens pretos que
chegaram a Portugal, embarcados no porto de Pernambuco muitos anos depois da lei de 1761 e do aviso de 1776.
Lisboa, 11 de abril de 1778. AHU-PE, cx. 129, doc. 9759.
69
Mesmo desencadeados devido à aplicação do alvará de 1761 e aviso de 1776, nestes
processos de liberdade parece não ter sido raro confluírem outras proposições legais acerca da
alforria. No parecer do caso referido acima se fez menção aos “exuberantes privilégios da
liberdade”, os quais consistiam em determinadas situações que favoreciam a concessão da
liberdade em casos de dúvida: incerteza do nascimento ingênuo ou não do requerente;
validade ou nulidade da manumissão conferida pelo senhor; indeterminação quanto à vontade
do senhor de libertar o escravo através de testamento; quando a liberdade é concedida, mas o
senhor continua dispondo da mão-de-obra do escravo. Em todas essas circunstâncias devia-se
outorgar a liberdade ao escravo.
Quando sob ordens de D. Maria I pediu-se para que a Junta do Comércio averiguasse
as pretensões de Amaro, Sebastião, Antonio e Pedro, escravos do capitão Teodósio Gonçalves
da capitania da Bahia, produziu-se um parecer heterogêneo. 226 Em primeiro lugar, segundo as
conclusões do procurador nomeado pela junta, a matrícula de que se valia Teodósio era “um
manifesto e doloso pretexto em fraude da lei e do benefício da liberdade para efeito de
voltarem os ditos pretos à cidade da Bahia e nela os conservar em cativeiro, servindo-se deles
da mesma forma que fazia antes de os embarcar para esta Corte”. Conforme as averiguações
que fizera, os escravos, a exceção de Pedro, não eram marinheiros profissionais, como
requeria o aviso de 1776, pois “se ocupavam pelo mar em serviço do mesmo capitão e apenas
puxavam por algum cabo do convés, mas que nunca serviram para remar, largar, cozer pano,
ou reger o leme”. Contra o capitão também estava o fato de ter passado à corte com o objetivo
de resolver negócios particulares e não comerciais. Este fato era comprovado através da
notícia de que tinha vendido o navio logo que chegou a Lisboa, bem como por ter mudado os
trajes e ocupações dos ditos escravos. Além disso, o procurador ressaltava que era “a causa da
liberdade, não só como causa pública, mas pia, a favor da qual pugnam a natureza, a
humanidade, as leis e costumes das nações civilizadas”. Afirmava ainda que, em casos
duvidosos, os alvarás deveriam ter seu devido efeito, pois “entendendo-se sempre conforme o
direito a favor da liberdade”. Ora, note-se que apesar de considerar as condições previstas no
aviso de 22 de fevereiro de 1776, o que parece pesar no parecer do procurador da Junta é o
favor à liberdade. Também nesta consulta a “dúvida” foi mencionada como condição para a
concessão da alforria. Ademais, suas referências às “leis e costumes das nações civilizadas”
226
Cf: Consulta da Junta do Comércio do Reino à Rainha, D. Maria I, sobre a pretensão dos pretos vindos da
Bahia a bordo do navio Santíssimo Sacramento e Nossa Senhora da Arrábia, como de Teodósio Gonçalves da
Silva, os quais intentam reivindicar sua liberdade em virtude do alvará de 19 de setembro de 1761. AHU-BA, cx.
180, doc. 13437. Lisboa, 19 de setembro de 1780.
70
remetem a uma das tópicas mais importantes no discurso modernizador veiculado a partir do
ministério pombalino, e que também estava presente no texto legal de 1761.
Porém, ao parecer favorável do procurador contrapuseram-se o vice-provedor
Francisco Nicolau e deputados Jacinto Fernandes Bandeira e Joseph Ferreira Coelho.
Pautavam-se na alegação de que não se estava considerando as razões econômicas presentes
no alvará de 1761. Ressaltaram as necessidades práticas de se empregarem escravos nos
navios, observando que muitos deles eram usados como marinheiros numa única viagem. Por
essa razão, não seria conveniente que ficassem libertos em razão da lei e concluíam: não se
deveria “dar mais inteligência ao sobredito Alvará”, ou seja, dava-se primazia aos interesses
econômicos ao passo que o valor da liberdade aludido pelo procurador era algo secundário e
mesmo perigoso para as relações comerciais entre a América e Portugal.
Apesar de não ter conhecimento do parecer final desta causa, sabe-se que ao menos
Sebastião e Amaro obtiveram a alforria em decorrência deste processo, concedida pelo
próprio capitão Teodósio Gonçalves no ano seguinte ao requerimento dos escravos. 227 Da
mesma forma que o sobredito Teodósio, outros senhores possivelmente se valeram do aviso
de 1776 a fim de burlarem o alvará de 1761, o que foi discutido num decreto de 7 de janeiro
de 1788. 228 O que deu origem ao debate foi a causa de liberdade movida em nome de quatro
escravos de Antonio Ferreira Mesquita, os quais reivindicaram a alforria com base no alvará
de 1761. Conforme a resolução régia, a pretensão dos quatro escravos era totalmente
condizente com a lei de 19 de setembro de 1761, além disso, “a exceção do aviso de 22 de
fevereiro de 1776 compreende tão somente os escravos marinheiros de profissão, e não os
denominados tais”, pois
seria igualmente dar ocasiões a fraudes tão notórias, como o de poder o proprietário
de qualquer navio reter os negros, que bem lhe parecesse em rigorosa escravidão,
vendê-los, e fazê-los transportar para onde os tiver ajustado, debaixo do pretexto de
pertencerem à equipagem do seu navio, como já tem acontecido neste reino, tudo
procedente da incoerente inteligência, e abusiva extensão, que se tem querido dar
às cláusulas do mencionado aviso, em matéria tão privilegiada como é a da
liberdade. 229
Por fim, declarou-se que os quatro escravos fossem libertados “e que o mesmo fique sempre
praticando em casos semelhantes”.
227
Cf: Carta de Teodósio Gonçalves da Silva, negociante na praça da Bahia, ao governador-geral da referida
capitania, marquês de Valença, Afonso Miguel de Portugal e Castro, referente à concessão de liberdade a alguns
de seus escravos. AHU-BA, cx. 181, doc. 13486. Anterior a 28 de agosto de 1781.
228
Cf: Aviso de 7 de janeiro de 1788. Acerca de Pretos marinheiros que pretendem ficar livres. In: SILVA,
António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações.
Suplemento à Legislação de 1763 a 1790. Lisboa: Typografia de Luiz Correa da Cunha, 1844, p. 600-601.
229
Grifos meus.
71
Fica evidente que este aviso constituiu uma emenda feita ao seu precedente de 1776
visando evitar que escravos domésticos fossem levados para Portugal a título de marinheiros
e, assim, não sendo beneficiados pelo alvará de 1761. Foi com base nele que o administrador
geral da alfândega concedeu carta de liberdade ao escravo Hilário de Freitas Antunes, da
capitania do Maranhão, em outubro de 1788. Porém, esta história estava só começando, pois o
capitão Feliciano dos Santos, seu proprietário, não aceitou a decisão e ao longo da década
seguinte intentaria fazê-lo retornar ao estado do cativeiro. Logo após regressar ao Maranhão
Hilário fora preso por seu antigo senhor e mantido em cárcere privado, tendo sua carta de
liberdade rasgada. Devido esta situação, o capitão Feliciano dos Santos acabou preso sendo,
no entanto, posteriormente absolvido. 230 Após estes episódios, Hilário de Freitas encaminhou
requerimento à rainha pedindo para que seu ex-senhor retornasse à prisão, lhe pagasse perdas
e danos relativos ao período em que o manteve em cárcere privado e, por fim, rogava pela
confirmação régia de sua carta de liberdade. Contudo, o parecer conferido pelo Conselho
Ultramarino sugeriu à rainha que apenas confirmasse a carta de liberdade que havia recebido
em 1788, considerando os outros itens do requerimento indeferíveis. E, de fato, Hilário teve
sua liberdade confirmada por resolução régia datada de 10 de julho de 1795. 231 Porém, em
1799 novamente vemos o senhor Feliciano dos Santos buscando a revogação da liberdade de
seu ex-escravo. Fundamentado no aviso de 22 de fevereiro de 1776, afirmava que seu escravo
sempre embarcara para Portugal devidamente matriculado nas equipagens de seus navios
como marinheiro e, portanto, não deveria ser entendido na lei de 1761 e aviso de 1788. 232 As
pretensões do capitão Feliciano deram origem a nova consulta ao Conselho Ultramarino, o
qual, num primeiro momento, solicitou que Feliciano e Hilário enviassem ao Conselho suas
respectivas defesas. 233
Os argumentos tecidos por ambas as partes evidenciam os debates sobre a escravidão e
a liberdade que tomavam vulto na conjuntura de fins do século XVIII e início do XIX. O
230
Cf: Ofício do governador Fernando Pereira Leite de Foios para o secretário de estado da Marinha e Ultramar,
Martinho de Melo e Castro, sobre a prisão de Feliciano dos Santos, que negou a liberdade a um seu escravo, o
qual já a obtivera na corte. AHU-MA, cx. 79, doc. 6716. Maranhão, 21 de janeiro de 1792.
231
Cf: Parecer do Conselho Ultramarino para a rainha, D. Maria I, sobre as queixas de Hilário de Freitas Antunes
a Feliciano dos Santos, requerendo que este seja punido e lhe pague perdas e danos, e que a sua carta de
liberdade tenha validade. AHU-MA, cx. 87, doc. 7247. Lisboa, 20 de junho de 1795.
232
Cf: Requerimento do capitão de mar e guerra da Armada Real, Feliciano dos Santos, ao príncipe regente D.
João, solicitando castigo para seu escravo por este ter se matriculado como marinheiro. AHU-MA, cx. 106, doc.
8418. Anterior a 16 de outubro de 1799.
233
Cf: Consulta do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D. João, sobre o requerimento de Feliciano dos
Santos, relativo à anulação da liberdade de seu escravo, Hilário de Freitas Antunes. AHU-MA, cx. 117, doc.
9031. Lisboa, 30 de julho de 1801.
72
advogado representante de Hilário já no início de sua exposição foi enfático nas considerações
acerca da liberdade:
É essa, Senhora, a causa mais preciosa entre os mortais: é a sua conservação tendo
o mesmo originário estabelecimento das cidades, e dos sumos imperantes,
amparando e protegendo aquele sagrado direito da natureza, e da humanidade; que
fazendo a todos livres, os defende de toda a violência, que possa diminuir a própria
liberdade de cada um.
Conforme a concepção do advogado, era dever do Estado proteger o direito à liberdade de
cada indivíduo, o que estava assentado na própria legislação portuguesa devido ao
favorecimento conferido a esse gênero de causa. Segundo o advogado, foi no interior desta
lógica que Hilário de Freitas havia sido libertado ainda em 1788. Após essa primeira reflexão
acerca do valor da liberdade adentrou-se no campo da legislação positiva, discorrendo sobre
os alvarás de 1761 e aviso de 1788, bem como salientando as afrontas ao poder régio feitas
por Feliciano dos Santos ao questionar a liberdade concedida ao seu ex-escravo e confirmada
por decisão real.
Por outro lado, na perspectiva do representante de Feliciano dos Santos os argumentos
declarados a favor de Hilário de Freitas consistiam em “declamações vagas a favor da
liberdade”, as quais tinham o intuito de desviar os debates para outra esfera. Conforme sua
apreciação, “ninguém duvida que a causa da liberdade é favorável, e que as leis a protegem”,
porém, “a questão não é se a liberdade é odiosa, ou favorável. É sim se ao suplicado se devia
passar carta de liberdade”. Todavia, o que mais parece ter pesado na argumentação em prol do
capitão Feliciano era o fato de que a escravidão não era proibida em Portugal, pelo contrário,
afirmava ser “tolerada em certos casos, e especialmente nos marinheiros”.
Após avaliarem ambas as defesas, os conselheiros do Conselho Ultramarino
assentaram que o requerimento do capitão Feliciano dos Santos “não é digno da Régia
consideração de Vossa Alteza Real” e, portanto, sugeriam que Hilário de Freitas Antunes
continuasse no estado da liberdade. E, de fato, Hilário obteve pela segunda vez a confirmação
de sua condição por resolução régia de 13 de abril de 1802.234
Discorreu-se aqui sobre os percalços sofridos pelo escravo Hilário de Freitas Antunes
principalmente porque sua história sintetiza aspectos presentes em todos os outros casos
analisados. Em primeiro lugar, demonstra que diferentemente do que se previa no alvará de
19 de setembro de 1761, o processo de concessão da liberdade aos escravos não era em nada
simples e rápido. As certidões passadas pelos administradores das alfândegas constantemente
234
Cf: Consulta do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D. João, sobre o requerimento de Feliciano dos
Santos... AHU-MA, cx. 117, doc. 9031.
73
eram contestadas pelos senhores, os quais lançavam mão de cada brecha na lei a fim de
resguardarem o poder sobre seus escravos. Entretanto, o que mais gostaria de salientar são as
opiniões emitidas pelas autoridades metropolitanas, por advogados e aquelas contidas nas
próprias leis. Através delas podemos perceber que havia um consenso de que a liberdade
constituía matéria de suma importância, favorecida pelas leis positivas, pela natureza e pelos
sentimentos de humanidade. No aviso de 7 de janeiro de 1788 essa postura fica explicitada ao
declarar-se que a liberdade era “matéria privilegiada”. 235 Porém, a despeito desta idéia ganhar
cada vez mais destaque, a escravidão prosseguia entendida como instituição essencial à
manutenção da possessão americana e, por conseqüência, do próprio Estado português. Os
embates entre o valor da liberdade, de um lado, e a necessidade da mão-de-obra escrava, por
outro, eram os efeitos do estabelecimento de Portugal como espaço predisposto à liberdade e
do Brasil como reduto da escravidão negra. Imersos neste ambiente, escravos como Hilário de
Freitas e outros aqui conhecidos puderam almejar a liberdade e, ao fim de pleitos veementes
com seus senhores, finalmente ascender à condição de libertos.
2.4 – Escravidão e ilustração: os alvarás pombalinos de 1761 e 1773
Vimos anteriormente que o alvará de 19 de setembro de 1761 constituiu a primeira
medida legal destinada a mitigar ou, no limite, destruir a escravidão dos negros em Portugal.
A partir de sua promulgação, ao menos teoricamente, findava a fonte externa de suprimento
de escravos para o reino. Logo no início do texto da lei, encontram-se indicadas as causas
justificativas para sua criação:
Sendo informado dos muitos e grandes inconvenientes que resultam do excesso e
devassidão com que, contra as leis e costumes de outras Cortes polidas, se transporta
anualmente da África, América e Ásia para estes Reinos um tão extraordinário
número de escravos pretos que, fazendo nos meus domínios ultramarinos uma
sensível falta para a cultura das terras e das minas, só vêm a este continente ocupar os
lugares dos moços de servir que, ficando sem cômodo, se entregam à ociosidade e se
precipitam nos vícios que dela são naturais conseqüências. 236
Como se pode notar, a perpetuidade da escravidão no reino figurava como algo
prejudicial, na medida em que tornava parte de sua população ociosa e dada aos vícios, ao
passo que no ultramar aquela mão-de-obra era essencial. Por outro lado, afirmou-se que o
tráfico constituía aspecto reprovado nas leis e costumes das cortes polidas da Europa.
235
236
Cf: Aviso de 7 de janeiro de 1788.
Cf: Alvará de 19 de setembro de 1761.
74
Seguiu-se à proibição do tráfico outra medida jurídica, esta mais contundente, através
do alvará de 16 de janeiro de 1773. 237 Já no início de seu texto se faz referência ao alvará de
1761, pelo qual ficara “obviado os grandes inconvenientes que a estes reinos se seguiam de
perpetuar neles a escravidão dos homens pretos”. Desta passagem subentende-se que o fim da
entrada de escravos em Portugal previa como uma de suas conseqüências também o declínio
da prática da escravidão no reino, o que, no entanto, continuava a perpetuar-se. A este
respeito, as críticas foram direcionadas a “pessoas tão faltas de sentimentos de humanidade e
de religião”, que, por via de concubinatos, davam lugar à reprodução natural da escravidão,
assentadas no princípio, advindo do direito romano, de que “os ventres das mães escravas não
podem produzir filhos livres”.
Na retórica da lei, a escravidão, além de ferir os ideais de humanidade e religião,
causava perdas ao Estado por ter “tantos vassalos lesos, baldados e inúteis, quanto são aqueles
miseráveis que a sua condição faz incapazes para os ofícios públicos, para o comércio, para a
agricultura e para os tratos e contratos de todas as espécies”.
Após a exposição dos inconvenientes trazidos pelo cativeiro, assentou-se, em relação
aos escravos que já se encontravam em Portugal anteriormente a sua publicação, “cujas mães
e avós são ou houverem sido escravas, fiquem no cativeiro em que se acham, durante a sua
vida somente. Que, porém aqueles cuja escravidão vier das bisavós, fiquem livres e
desembargados, posto que as mães e avós tenham vivido em cativeiro”. Já em relação ao
futuro, a partir do dia em que se publicou o alvará, todos os que nascessem seriam
“inteiramente livres, posto que as mães e avós hajam sido escravas”. Ao ler as condições para
que a emancipação se concretizasse, entende-se que esta medida previa o fim gradual da
escravidão em Portugal, pois seriam agraciados automaticamente apenas os escravos de
quarta geração. Somente no futuro esta medida tornar-se-ia efetiva, atingindo, então, todos os
que nascessem. Note-se, entretanto, que para a época esta medida constituiu algo inusitado,
pois a liberdade do ventre seria medida comum apenas ao longo do século XIX.
Ao lado do fim gradual da escravidão, estabeleceu-se o fim da nota infamante aos
libertos:
E que todos os sobreditos por efeito desta minha paternal e pia providência libertados
fiquem hábeis para todos os ofícios, honras, e dignidades, sem a nota distintiva de
libertos, que a superstição dos romanos estabeleceu nos seus costumes e que a união
237
Cf: Alvará Com Força de Lei de 16 de janeiro de 1773. LARA, Silvia H. Legislação sobre escravos africanos
na América portuguesa. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (Dir. e Coord.). Nuevas Aportaciones a la Historia
Jurídica de Iberoamérica. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000. p. 359.
75
cristã e a sociedade civil faz hoje intolerável no meu Reino, como o tem sido em
todos os outros da Europa. 238
Como veremos em outro momento, esta proposição constituiu um dos aspectos mais
atrativos para os homens de cor livres e libertos na América portuguesa. A elevação dos
libertos à categoria de “habilitados” deve ser avaliada tendo em vista que fazia parte de uma
política mais ampla. No capítulo precedente viu-se que nas décadas de 1750 e 1770 várias
ações com este mesmo fim, mas direcionadas a outros grupos sociais, foram colocadas em
prática através da legislação. No entanto, no que toca aos escravos e seus descendentes livres,
estas ações foram efetuadas de forma fragmentada na medida em que destinadas somente ao
reino e, portanto, instaurando uma divisão no império.
A configuração desta diferença entre o tratamento conferido a escravos e seus
descendentes no reino e no ultramar, notadamente na América portuguesa, onde esta
população era numerosa, foi abordada pela historiografia essencialmente como reflexo de
anseios econômicos manifestados na metrópole. Nesta linha interpretativa, Fernando A.
Novais e José C. Falcon entenderam a promulgação dos alvarás de 1761 e 1773 como
medidas relacionadas ao fomento da industrialização em Portugal e tendo como um de seus
princípios a formação de uma população produtiva e consumidora com base no trabalho
remunerado. Além disso, a restrição das ditas leis à metrópole, segundo os autores,
demonstrava que “as normas éticas eram manipuladas em função de razões outras, de
natureza econômica e política”. 239
Semelhantemente às considerações referidas acima, têm-se as de Charles Boxer, para
quem os termos do alvará de 1761 “mostram claramente que essa decisão foi tomada por
motivos utilitaristas e econômicos, e não por razões humanitárias”. 240 Stuart Schwartz, ao
discorrer sobre esse mesmo alvará, afirma que Pombal adotou tal medida “para assegurar
suprimentos adequados de escravos para as colônias”. 241 Brion Davis fez a ressalva de que
muitas leituras entendem a promulgação do alvará de 1761 como produto de humanitarismo,
mas para ele suas motivações econômicas estavam no centro da medida, a qual teria sido
suscitada por protestos de trabalhadores em Portugal. 242
238
Cf: Alvará de 16 de janeiro de 1773.
FALCON, Francisco José Calazans; NOVAIS, Fernando A. A extinção da escravatura africana em Portugal
no quadro da política econômica pombalina. In: Anais do VI Simpósio Nacional dos Professores Universitários
de História. São Paulo, 1973. p. 420.
240
BOXER, Charles. O Império Marítimo Português, 1415-1825. São Paulo: Cia.das Letras, 2002. p. 278.
241
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo:
Cia. das Letras, 1988. p. 384.
242
DAVIS, Brion David. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001. p. 273.
239
76
Dentre os trabalhos mais recentes e que dedica parte significativa de sua análise aos
alvarás pombalinos e seus efeitos em Portugal, está o de Didier Lahon, o qual se mostra de
acordo com a perspectiva que ressalta os fatores econômicos e estratégicos. Para ele, apesar
da influência das luzes no alvará de 1761, o que mais pesava para a decisão foram os
interesses econômicos, visando reforçar o tráfico de escravos para a América. No que
concerne ao alvará de 1773, afirmou que mesmo a ideologia das luzes estando presente em
seu texto isto não pode ofuscar suas razões eminentemente práticas. Apresentando perspectiva
muito próxima a de Novais e Falcon, entende que os objetivos práticos implícitos nos alvarás
estavam em conexão com a política de fomento industrial levada a efeito por Pombal após o
terremoto, em 1755. Assim, buscava-se preparar uma mão-de-obra adaptada à estrutura
industrial que o ministro pretendia desenvolver rapidamente. 243
Inseridos no plano mais vasto das reformas executadas em Portugal durante o
ministério pombalino, ficam evidentes as conexões dos alvarás com fatores materiais e
pragmáticos. Ao retornarmos às justificativas alegadas no alvará de 1761, veremos que a falta
que os escravos faziam no ultramar e os prejuízos morais que traziam ao reino figuravam
como as duas principais razões. Também no que toca ao alvará de 1773, concebia-se que a
perpetuação da escravidão causava prejuízos ao Estado na medida em que matinha “tantos
vassalos lesos, baldados e inúteis”. De fato, segundo tem observado a historiografia, dentre os
requisitos para concretizar a modernização almejada para Portugal estavam o fomento às
manufaturas e comércio. 244 No entanto, como salientaram Luiz Geraldo Silva e Renato Pinto
Venâncio, em face do pequeno peso numérico dos escravos em Portugal durante a segunda
metade do século XVIII, soa meramente retórico a importância desse contingente a ponto de
retirar emprego dos “moços” ou de fazer falta ao ultramar. 245
Entendo que a matéria respeitante ao plano de modernização de Portugal tinha uma
dupla face. De um lado, as aspirações de ordem econômica e pragmática, de outro, o aspecto
ideológico. Este último não teve menor importância, pois orientava muitas das ações
realizadas naquele período. Sob esta perspectiva, explicações unilaterais, como já observou
Luiz Geraldo Silva, “se afiguram cada vez mais insatisfatórias”, advindo daí a necessidade de
olhar para os citados alvarás a partir de suas ligações com o contexto das Luzes. 246
243
LAHON, Didier. Esclavage et confréries... (v. 1), p. 102, 108.
MAXWELL, Keneth. Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p.
95-98.
245
SILVA, Luiz Geraldo. “Esperança de liberdade”. Interpretações populares da abolição ilustrada (1773-1774).
Revista de História, São Paulo, v. 144, p. 107-150, 2001. p. 113; VENÂNCIO, Renato Pinto. O Alvará
português de 1761 e os escravos do Brasil..., p. 33.
246
SILVA, Luiz Geraldo. “Esperança de liberdade”..., p.115.
244
77
Indício desta dimensão pode ser averiguado no texto do alvará de 1761, pois indicava
que o transporte de escravos para o reino constituía aspecto reprovado nas leis e costumes de
“outras cortes polidas” da Europa. Ora, nesta referência, portanto, Portugal já figurava como
uma corte polida, civilizada, uma mais dentre as outras. Nesta perspectiva, extirpar do centro
de poder português o tráfico de escravos e, mais além, a própria escravidão, consistia em mais
um quesito necessário para moldar Portugal de acordo com um padrão de civilidade comum a
outros reinos da Europa considerada civilizada. A este respeito, destaque-se o fato de que as
cortes polidas e iluminadas eram referenciadas constantemente nos vários textos legais do
período. Como no caso das reformas educacionais, manifestou-se que o modelo a ser seguido
era o apregoado pelos “maiores homens das nações civilizadas”. 247
No que concerne ao século XVIII, ser civilizado significava, na perspectiva dos
reformadores franceses, tanto a adoção de maneiras de conduta refinadas como civilizar “o
Estado, a Constituição, a educação, e, por conseguinte, os segmentos mais numerosos da
população, a eliminação de tudo o que ainda era bárbaro ou irracional nas condições vigentes,
fossem as penalidades legais, as restrições de classe à burguesia ou as barreiras que impediam
o desenvolvimento do comércio”. 248 Ora, grande parte das reformas efetuadas durante o
ministério pombalino visavam esse conjunto de aspirações.
No conceito de civilização desenvolvido na Europa ao longo do século XVIII,
identificam-se duas idéias subjacentes. Uma delas é a de que existiam estágios sociais, sendo
o da barbárie oposto à civilização. Por outro lado, passou-se a divulgar a noção segundo a
qual a civilização seria um processo contínuo, sendo este um elemento novo agregado ao
termo civilização. 249 Ribeiro Sanches, em sua Cartas sobre a educação da mocidade, como
vimos, chamou a atenção para os males que a escravidão causava ao “Estado, à religião e à
educação da mocidade” e mostrava-se indignado com a falta de atenção em matéria tão
importante. Segundo informou, seu propósito com essas instruções não consistia somente em
ver a mocidade portuguesa instruída, mas seu intento era “que seja dotada de humanidade”. 250
Porém, tal desejo não seria alcançado enquanto a escravidão estivesse presente àquela
sociedade, pois a convivência com escravos e a forma tirânica com que eram tratados por seus
senhores “altera os ânimos daqueles senhorinhos, que ficam soberbos, inumanos, sem idéia
247
Cf: Alvará de 28 de junho de 1759.
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Uma história dos costumes (v. 1). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1990. p. 260.
249
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Formação do estado e civilização..., p. 62-63.
250
Cf: SANCHES, Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922.
p. 89.
248
78
alguma de justiça, nem da dignidade que tem a natureza”. 251 Pode-se entender que as
características apontadas por Sanches como os efeitos da escravidão naquela sociedade,
estavam diretamente relacionadas a um caráter bárbaro, no qual inexiste o controle das
paixões.
Ao revelar que o intento maior de sua obra era dotar a mocidade portuguesa de
humanidade, Sanches revela-se conectado com um dos valores mais caros à ilustração, visto
que tal palavra “além de designar a comunidade dos homens, possuía também uma
significação valorativa, a qual serviria de princípio regulador no domínio jurídico e no
domínio moral”. 252 Na retórica do alvará de 1773 vê-se que a perpetuação da escravidão no
reino era relacionada com a “falta de sentimentos de humanidade e de religião” de algumas
pessoas. 253
No que diz respeito ao pensamento ilustrado sobre a escravidão, Brion Davis chamou
a atenção para uma de suas principais características, a qual era a cautela. Mesmo os mais
arraigados críticos da instituição, como eram os amis de noirs na França, temiam posturas
mais ofensivas visando o fim imediato da escravidão. Assim, dentre as atitudes mais comuns
entre estadistas e pensadores inspirados nos princípios ilustrados da humanidade e liberdade,
figuravam projetos para a emancipação gradual. Este autor também indicou que “talvez a
mais típica resposta das mentes esclarecidas para a escravidão tenha sido a invenção de um
plano para a inspeção e regulamentação de todas as fases do sistema, do mercado africano à
vida diária na lavoura”. Ou, por outro lado, “o início de reformas administrativas da maneira
como fizeram o marquês de Pombal e Carlos III de Espanha”. 254
Dada essa configuração, nada mais na ordem do dia que proceder a uma reforma no
reino que, discursivamente, condenava a escravidão como sinônimo de barbaridade e atraso,
ao passo que nas colônias esta instituição era resguardada de qualquer abalo. Mesmo no caso
da Inglaterra, onde a partir de meados do século XVIII começavam a avultarem-se as opiniões
de grupos abolicionistas, as reformas executadas tratavam os territórios coloniais de forma
diferenciada. A tradição inaugurada com o julgamento do escravo James Somerset, do qual já
se fez alusão, é um caso significativo do tratamento diferenciado conferido às colônias.
Conforme Eliga Gould, desde o século XVII havia ampla aceitação e divulgação, através de
obras literárias, de uma imagem das colônias britânicas no Atlântico como um lugar “além da
251
Cf: SANCHES, Ribeiro. Cartas..., p. 90.
MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do corpo, missionários da mente: senhores, letrados e o controle dos
escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 90-91.
253
Cf: Alvará de 16 de janeiro de 1773.
254
DAVIS, David Brion. O problema da escravidão na cultura ocidental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001. p. 442-443.
252
79
linha”, onde era possível praticar certas formas de violência inaceitáveis na Europa. Neste
imaginário, a escravidão era parte significativa da violência. 255 Um paralelo interessante entre
o caso inglês e o português é o fato de que apesar de poder se considerar a nação inglesa como
um império, “ela era uma nação que insistia nas distinções cruciais entre o status dos
britânicos que viviam na Inglaterra e os das colônias”. 256 No interior desta tradição, fazer da
Inglaterra um solo livre da escravidão, aspecto inerente às “zonas de violência” coloniais, não
constituía anomalia e sim algo natural.
Já David Eltis observou que ao longo do período moderno, tendo seu ápice no século
XVIII, a Europa desenvolveu teoricamente uma linha divisória entre aqueles indivíduos
passíveis de escravização – os outsiders – e aqueles não sujeitos ao cativeiro – os insiders. A
impossibilidade de escravizar europeus foi se tornando algo incorporado em todas as
configurações políticas do ocidente. Ao passo que o status outsider recaiu de forma unilateral
sobre os africanos quando se chegou ao século XVIII. 257
No que concerne ao caso português, a conformação da escravidão como uma
instituição essencialmente resguardada para as colônias, e notadamente à América, seguiu
tanto imperativos econômicos, devido à importância da mão-de-obra, como também estava
ancorada em diferenciações de status. Conforme István Jancsó, a relação entre a América e o
reino caracterizava-se pela assimetria, a qual era produzia através de linhas de corte entre as
partes constituintes da nação portuguesa. Neste sentido, Jancsó observou que a lei de 16 de
janeiro de 1773 constituiu uma dessas linhas divisórias entre o espaço colonial e a esfera
peninsular da Monarquia, visto que cindiu “a nação portuguesa em duas por força da
diferença substantiva entre os fundamentos societários de suas partes”. 258 Além disso,
acreditava-se que a América era o lugar onde imperava a barbárie, alusão recorrente, por
exemplo, em sátiras portuguesas do século XVIII. Nelas, todas as vezes em que se desejava
ressaltar o caráter incivilizado de um indivíduo fazia-se referência ao Brasil. 259
Este tratamento diferenciado conferido pelo centro de poder português aos escravos e
homens de cor livres da América em relação a seus congêneres de Portugal, não passou
despercebido aos que habitavam “além da linha”. Num contexto caracterizado pela ampliação
dos grupos considerados “habilitados”, a circulação das notícias acerca dos alvarás sobre o
255
GOULD, Eliga. H. Zones of law, zones of violence: the legal geography of British Atlantic, circa 1772. The
William and Mary Quartely, v. 60, n. 3, p. 471-510, 2003.
256
GOULD, Eliga. H. Idem, p. 473.
257
ELTIS, David. Europeans and the rise and fall of African slavery in the Americas: An interpretation. The
American Historical Review, v. 98, n. 5, p. 1399-1423, 1993.
258
JANCSÓ, István. Brasil e brasileiros – Notas sobre modelagem de significados políticos na crise do Antigo
Regime português na América. Estudos Avançados, 22 (62), p. 257-274, 2008. p. 260.
259
LAHON, Didier. Esclavage et confréries.... p. 283.
80
fim da escravidão no reino tornou-se motivo de aspirações por parte de escravos e homens de
cor livres na América. Apesar de não ter provocado nenhum tipo de tendência à ruptura ou, ao
menos, ações mais incisivas contra a escravidão, a promulgação dessas leis incitou a ação
política de sujeitos que estavam apartados da liberdade ou impedidos de receberem honras e
graças devido à infâmia que os acompanhava. O próximo capítulo tratará especificamente do
impacto do alvará de 16 de janeiro de 1773 na América portuguesa.
CAPÍTULO 3 – O ALVARÁ DE 16 DE JANEIRO DE 1773 E SEU
IMPACTO SOBRE AS ASPIRAÇÕES DE ESCRAVOS E HOMENS
LIVRES DE COR NA AMÉRICA PORTUGUESA
3.1 – Os primeiros rumores sobre o alvará de 16 de janeiro de 1773 na América
portuguesa
No mês de setembro do ano de 1773 instaurou-se um clima de apreensão entre as
autoridades da cidade da Paraíba. O motivo fora a denúncia feita por Francisco de Seixas
Machado, procurador do senado, ao ouvidor daquela capitania, Luís de Moura Furtado.
Segundo Machado, há meses era público e notório o sussurro “que havia entre os negros e
mulatos desta cidade sobre a inteligência da lei que em Portugal libertou todos os
escravos”. 260 A referida lei era o alvará de 16 de janeiro de 1773. Na versão dos fatos
apresentada pelo procurador, os escravos mulatos e pretos andavam amotinados por conta do
conhecimento da dita lei.
Foi esta a perspectiva passada pelo ouvidor da Paraíba em carta a Manoel da Cunha
Meneses, governador e capitão-general de Pernambuco e demais capitanias anexas. Conforme
consta nesta correspondência, os negros e mulatos passaram a “fazer entre si conciliábulos e
conventículos, de sorte que interpretam e publicam a seu favor, tirando inumeráveis cópias,
vendendo-as a preço de uma pataca e falando sobre a inteligência da mesma lei”. Ao final da
carta, Luís de Moura Furtado chamou atenção para “a ruína em que pode degenerar aquele
abuso e contínuo imaginar de umas gentes incultas sobre a dominante paixão da sua
liberdade”, pois acreditavam que a lei era válida também para a América.261
Diante destas previsões, o governador de Pernambuco, juntamente com seus ministros,
assentou as medidas a serem tomadas, por “ser factível da condição dos escravos poder-se
esperar que movidos da ambição da liberdade que irão lentamente pôr em prática alguns
desígnios violentos para nela se quererem estabelecer”. 262 O resultado imediato desta situação
foi a ordem dada ao governador e ao ouvidor da Paraíba para que se tirasse devassa para
descobrir e punir “os principais motores da errônea inteligência da lei”. Ao mesmo tempo,
mandou-se publicar um bando nos lugares mais públicos da cidade, para que se esclarecesse a
verdadeira interpretação do texto legal, a qual “só fala a respeito dos escravos que havia em
260
Cf: Traslado da devassa que tirou o ouvidor geral Luís de Moura Furtado. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
Cf: Extrato de uma carta do senhor Luis de Moura Furtado, ouvidor da capitania da Paraíba, da data de 27 de
setembro de 1773. AHU-PE, cx. 115, doc. 8816.
262
Cf: Termo que se fez em Junta convocada para se propor o conteúdo nas cartas supras do que na mesma junta
se decidiu. AHU-PE, cx. 115, doc. 8816.
261
82
Portugal e no reino do Algarves e de nenhuma sorte nos das conquistas do Brasil”. 263 O bando
também fora anunciado “ao som de caixas”, a fim de que ninguém pudesse alegar
desconhecimento do verdadeiro sentido da lei. Tal medida faz sentido se levarmos em
consideração o fato de que muitos dos habitantes da cidade não sabiam ler. Com o intuito de
assegurar a tranqüilidade para a execução das ordens mencionadas, alguns destacamentos
militares foram colocados em alerta, deixando a cidade da Paraíba sob vigilância até que a
situação fosse amenizada. Esta precaução certamente fora tomada por conta do grande temor
que existia entre as autoridades de que os escravos pudessem dar início a alguma rebelião com
o intuito de reivindicarem a liberdade. Aliás, o medo da revolta escrava era, verdadeiramente,
a tônica das correspondências.
Os acontecimentos ocorridos na Paraíba são aqui retomados, em primeiro lugar,
porque foram as primeiras conseqüências de que se têm registro relacionadas diretamente à
divulgação do alvará de 16 de janeiro de 1773 na América portuguesa. 264 Note-se que a
denúncia feita pelo procurador do senado da Paraíba ocorrera em fins de setembro de 1773.
Nela, como vimos, alegava-se que as cópias e notícias da lei já estavam circulando na cidade
há meses. Ou seja, a entrada do alvará na América fora praticamente concomitante à sua
publicação em Portugal. Ademais, este foi o único evento de que se têm evidências
caracterizado pelo envolvimento de muitos sujeitos no centro da rede de disseminação das
notícias e que, em função disso, exigiu das autoridades coloniais uma tomada de posição
contundente e pública.
Como vimos no capítulo precedente, este alvará foi o primeiro a propor a liberdade
dos escravos sob a forma do ventre livre. Este aspecto da novidade representada pela lei e da
situação que dela decorria pode ser apreendido através dos próprios adjetivos referidos nas
correspondências entre as autoridades, a exemplo: “novidade tão insólita”; “incidente tão
novo”; “perigosa novidade”. 265 É a partir deste panorama que analisarei a documentação do
processo de investigação ocorrido na Paraíba a fim de identificar quais as principais
263
Cf: Termo que se fez em Junta convocada...
Alguns historiadores já trabalharam com esse conjunto documental. Stuart Schwartz mencionou o caso da
Paraíba, acentuando o fato de que os escravos e forros “haviam distinguido claramente a conexão lógica entre
sua situação e as mudanças em curso na Europa”. SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos. Engenhos e escravos
na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo: Cia. das Letras, 1988. p. 384; Já o trabalho de Luiz Geraldo Silva
constitui até o momento o esforço mais sistemático de análise da referida documentação, centrando seu estudo
nas interpretações conferidas ao alvará de 1773, bem como nas redes de sociabilidades responsáveis pela
circulação da lei entre a população da cidade da Paraíba. SILVA, Luiz Geraldo. “Esperança de liberdade”.
Interpretações populares da abolição ilustrada (1773-1774). Revista de História, v. 144, p. 107-150, 2001.
265
Cf: Ofício do Governador da capitania de Pernambuco, Manoel da Cunha Meneses, ao secretário de estado da
Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, sobre a repercussão que teve na Paraíba a lei que libertou
negros e mulatos em Portugal. AHU-PE, cx. 115, doc. 8816. Recife, 15 de novembro de 1773.
264
83
interpretações dadas ao sobredito alvará tanto por pardos livres como por brancos naquele
contexto. Esta averiguação é indispensável para que seja possível perceber se havia um
discurso homogêneo ou não decorrente das apropriações do alvará na América portuguesa ao
longo da segunda metade do século XVIII e início do XIX.
Nas sessenta e cinco páginas que compõem a devassa produzida com o objetivo de
encontrar e punir os culpados pela circulação das notícias acerca do alvará e de sua “errônea
interpretação” entre a população da cidade da Paraíba, encontram-se vestígios detalhistas dos
acontecimentos lá ocorridos. Nela foram interrogadas trinta e uma testemunhas, dentre as
quais comerciantes, advogados, lavradores, em sua maioria também ocupantes de postos na
câmara e em corpos militares. Através de seus depoimentos foram acusados cinco pardos
livres e forros como os principais mentores das interpretações do alvará. Juntamente com os
autos da devassa, também os autos de perguntas feitas aos acusados são reveladores da
extensa rede de notícias responsável por fazer circular em todas as partes daquela cidade
cópias da lei e opiniões sobre seu entendimento.
De fato, conforme fica explícito nas declarações arroladas na devassa, havia um
sussurro generalizado na cidade da Paraíba. Segundo a testemunha José Monteiro da Franca,
“muitos escravos pretos e pretas conversavam abertamente na praça do pelourinho que eram
forros em virtude da lei”. 266 Ao longo dos depoimentos vê-se delinear os espaços de
sociabilidade comuns àquela população. Foi numa ocasião de divertimento, numa roda de
jogo, que João Fernandes Lisboa, Joaquim Cordeiro Varela, Francisco Soares, o advogado
José Gonçalves de Medeiros e Domingos José da Rocha presenciaram a leitura da lei e
discutiram seu teor. A cópia lida na ocasião fora levada pelo lavrador de canas João José
Palmeiro. Este, por sua vez, teve contato com a lei através de um pardo forro sapateiro
chamado Alexandre, o qual afirmava que a lei era válida para o Brasil e que por conta dela
todos os pardos seriam libertados. Porém, Palmeiro ficara em dúvida, decidindo inquirir ao
advogado Medeiros sobre a inteligência da lei. Segundo seus testemunhos, todos os presentes
na discussão chegaram à conclusão de que era destinada somente aos escravos de Portugal. 267
Em outros relatos surgem espaços que a princípio nos parecem incomuns para reunião
de pessoas a discutirem questões como as suscitadas pela lei de 1773, ainda mais quando
entre os interlocutores estavam pardos. Amaro de Barros Lima declarou que havia estado na
cela de um religioso do convento da ordem terceira de São Francisco e que lá encontrara o
266
267
Cf: Testemunha 10. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
Cf: Testemunhas 6, 16, 17, 18, 20, 21. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
84
pardo forro Alexandre. Este teria afirmado que estavam forros todos os pardos do Brasil, pois
a lei se estendia não só a Portugal, mas também aos seus domínios. 268
O convento de São Francisco foi relatado uma segunda vez como palco de discussões
sobre a lei. O comerciante Manoel Lopes Cabral indicou que em certa ocasião lá encontrara o
pardo oficial de pintor Felix Caetano, o qual teria afirmado que a lei se estendia aos escravos
do Brasil. Ainda de acordo com Cabral, numa outra circunstância ouvira ao mesmo Felix
Caetano “falar apaixonadamente” que os escravos do Brasil eram forros em virtude da lei. 269
A confirmação de que realmente Felix Caetano esteve no convento foi dada por ele mesmo
em seu depoimento, já como acusado de ser um dos cabeças das conversações. A cópia da lei
que tinha visto no convento seria do sargento-mor Pedro de Alcântara Bulhões. 270 Além do
episódio do convento, Felix Caetano fora mencionado por outras testemunhas. Teria ido à
casa de Antonio Ferreira Dias com uma cópia da lei, afirmando que “por ela ficavam forros
todos os crioulos do Brasil”. 271 Numa romaria ocorrida na praia do Tambaú Felix Caetano foi
visto por Manoel de Jesus Maria juntamente com outro acusado, Luiz Leitão. Ambos
afirmavam a um ajuntamento de negros que em virtude da lei “eram forros todos os escravos
do Brasil nascidos de crioulos e mulatos”. Para Manoel, o responsável por colocar “os
escravos em alvoroço e esperança de liberdade” era o pardo forro Luiz Leitão, o qual tinha
visto por muitas vezes a proclamar pela cidade que estavam forros os escravos. 272
Para estes pardos acusados na devassa parecia plausível que a lei fosse destinada ao
Brasil. Assim, segundo relatou Antonio Ferreira Dias, o pardo Felix Caetano, ao ser avisado
por algumas pessoas de que a lei só era destinada aos escravos de Portugal, replicou dizendo
que “também estes domínios eram de Portugal e por isso se compreendiam nas disposições da
mesma lei”. 273 Conforme Manoel Lopes Cabral, nos debates ocorridos no convento de São
Francisco, Felix teria afirmado que “era certo o que dizia, que el Rei não enganava a ninguém,
e que a lei bem clara estava”. 274 Ora, o raciocínio de Felix torna-se coerente ao levarmos em
consideração que principalmente durante a segunda metade do século XVIII havia forte
divulgação por parte do Estado da idéia de nação portuguesa. Não obstante a profunda
diferença entre as partes constituintes da monarquia, a coesão do império dava-se sob a
268
Cf: Testemunha 19. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
Cf: Testemunha 31. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
270
Cf: Traslado do auto de perguntas feitas ao réu preso o pardo Felix Caetano a que procedeu o doutor ouvidor
geral Luis de Moura Furtado. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
271
Cf: Testemunha 11. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
272
Cf: Testemunha 23. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
273
Cf: Testemunha 10. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
274
Cf: Testemunha 31. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
269
85
imagem da união de todos os vassalos sob a égide do monarca português. 275 Portanto, Felix
Caetano e certamente os outros pardos envolvidos com a divulgação do alvará na cidade a
princípio não poderiam conceber uma lei proclamada somente a favor dos escravos de
Portugal, pois também os súditos da América estavam resguardados sob a monarquia.
Como podemos perceber nos depoimentos, os principais acusados de serem os
divulgadores das notícias acerca do alvará de 1773 e da idéia de que era destinado também
aos escravos do Brasil foram pardos livres e forros. No entanto, chamo atenção para o fato de
que a todos interessava conhecer a “novíssima lei”. Ora, ela se referia à liberdade concedida a
todos os escravos – mesmo que gradativa e destinada somente a Portugal – gratuitamente pelo
monarca. Graça esta dificilmente pensada como verossímil. Certamente foi esse o motivo
responsável por gerar tanta curiosidade naquela população. Ao dar seu testemunho, o pardo
forro Alexandre contara que até a publicação do bando estava em dúvida se a lei valia para o
Brasil e que na mesma situação estavam muitas pessoas. Estas “eram brancos e pardos que
queriam saber da novidade da lei”. 276 Também o acusado Pedro de Alcântara Bulhões,
sargento-mor do terço dos homens pardos da Paraíba, admitiu que “havia uma curiosidade
geral no povo por querer saber o que a dita lei continha”. 277
Cabe ainda destacar o importante papel exercido pela curiosidade como motor da
entrada das cópias da lei na cidade da Paraíba. Foi movido por este sentimento que o capitão
dos pardos Bernardino Sena mandara trasladar, pelo pardo Alexandre Guedes, a cópia da lei
que lhe foi mostrada por um sertanejo que esteve de passagem em sua casa a fim de consertar
as botas. 278 Também o sargento-mor Pedro de Alcântara afirmou que seu interesse pela lei
teria surgido após uma conversa com o alferes dos Henriques da Paraíba, o crioulo Luiz
Gomes de Brito. Este, retornando de viagem que fizera à Bahia, contou-lhe as novidades que
de lá trouxera. As notícias que deixaram o alferes dos Henriques em polvorosa era a de que na
Bahia “se publicara uma lei em que Sua Majestade fazia grandes mercês aos pretos”. No
entanto, o crioulo Brito queixava-se a Pedro de que ninguém lhe dava crédito e com o intuito
275
JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo. Peças de um mosaico (Ou apontamentos para o estudo da
emergência da identidade brasileira). In: MOTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta. A experiência
brasileira (1500-2000). São Paulo: Senac, 2000, p. 145; GROSSI, Ramon Fernandes. O dar o seu a cada um:
Demandas por honra, mercês e privilégios na capitania de Minas Gerais (1750-1808). Tese (doutorado em
História) – Universidade Federal de Minas Gerais, 2005, p. 101-102; SILVA, Luiz Geraldo. “Esperança de
liberdade”. Interpretações populares da abolição ilustrada (1773-1774). Revista de História, São Paulo, v. 144, p.
107-150, 2001. p. 123-126.
276
Cf: Traslado do auto de perguntas feitas ao preso Alexandre Guedes a que procedeu o doutor ouvidor geral
Luis de Moura Furtado. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
277
Cf: Traslado do auto de perguntas feitas ao sargento-mor Pedro de Alcântara. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
278
Cf: Traslado do auto de perguntas feitas ao preso Bernardino Nogueira Sena que mandou fazer o doutor
ouvidor geral Luís de Moura Furtado. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
86
de corroborar sua informação contou-lhe que da Bahia transportou uma carta endereçada pelo
padre Mathias Mendes Viana para o doutor José Gonçalves de Medeiros, residente na Paraíba.
Nesta correspondência o padre baiano relatava ao advogado Medeiros as notícias da
publicação da lei na Bahia. Note-se que o advogado Medeiros provavelmente é o mesmo
interrogado na devassa e referido anteriormente, mas nada declarou a respeito. Após a
conversa com o crioulo Brito, o sargento-mor dos pardos aproveitando uma carta de negócios
enviada para o mestre-de-campo José Ribeiro, morador na vila do Recife, pedira para este que
lhe mandasse informações sobre a referida lei. José Ribeiro respondeu prontamente enviandolhe uma cópia manuscrita da mesma.
O testemunho de Pedro de Alcântara é revelador das ramificações da rede de
sociabilidade que envolvia pardos componentes de corpos militares da Paraíba e do Recife.
Através do depoimento de Francisco de Albuquerque Gondim tem-se o indício do que
provavelmente foi o ponto de origem das notícias acerca da lei que chegaram até o Recife e
que posteriormente foram encaminhadas para a Paraíba. Conforme este, fora o mestre-decampo dos pardos Luís Nogueira, “que se acha em Lisboa”, quem enviou a lei para o mestrede-campo dos pardos de Pernambuco, o qual, por sua vez, a enviou para o sargento-mor dos
pardos da Paraíba, Pedro de Alcântara Bulhões. 279 Ora, as informações dadas por Gondim são
coerentes com o que relatou Pedro de Alcântara, sendo, portanto, plausível pensar que esta
realmente foi uma das trajetórias do alvará de 1773 em direção à América. 280
Note-se-, porém, que o mais relevante dessas informações é o que elas podem revelar
sobre a coesão política existente entre esses homens de cor integrantes de corpos militares. Ao
que tudo indica, não foi sem propósito que o mestre-de-campo Luis Nogueira de Figueiredo
mandara a cópia da lei para Pernambuco. Estando em Lisboa no ano de 1770, para lá fora em
busca de suas demandas pessoais, bem como para representar os pardos milicianos de
Pernambuco. Fato este que lhe foi lembrado pelo soldado Luís Alves Pinto em ofício no qual
descrevia a situação enfrentada na capitania pelos “fidelíssimos pardos”: “nós padece[re]mos
cada vez mais e mais ultrajes e perseguições, se vossa senhoria o não representar a Sua
Majestade, já que foi a isso”. 281
279
Cf: Testemunha 27. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
Esta informação torna-se ainda mais verossímil ao se saber que o mestre-de-campo dos pardos do Recife,
Luís Nogueira de Figueiredo, encontrava-se em Lisboa no período em questão.
281
Cf: Ofício do soldado Luís Alves Pinto ao mestre-de-campo Luís Nogueira de Figueiredo, sobre o
enfraquecimento do terço de infantaria da capitania de Pernambuco que este administra, devido às deserções dos
soldados e a desatenção do ouvidor da dita capitania, José Teotônio Sedron Zuzarte, para com os componentes
do dito terço. AHU-PE, cx. 109, doc. 8407. Recife, 27 de abril de 1770.
280
87
Sendo um dos elos dessa rede de sociabilidade formada entre militares pardos da
Paraíba e de Pernambuco, a figura de Pedro de Alcântara é ainda mais emblemática ao
notarmos o que dela afirmaram as testemunhas José Rodrigues Chaves e Francisco Gondim já
referidas. 282 De acordo com o primeiro, “em um banquete asseverara serem forros todos os
pardos do Brasil”. Este incidente foi detalhado por Gondim ao revelar que estando Pedro na
vila do Pilar “em uma junção de comida, bebera a saúde da alforria dos pardos, dizendo que
logo viria a dos negros”. 283
Das opiniões supostamente proferidas por Pedro, saliento a referência à alforria dos
escravos pardos, idéia que também seria compartilhada por Alexandre Guedes. 284 Se
relembrarmos os termos do alvará de 16 de janeiro de 1773 analisados no capítulo precedente
veremos que parte da liberdade concedida aos escravos de Portugal estava associada à
condição geracional e não à cor dos escravos. Na verdade, o alvará não trata os escravos a
partir da categoria cor, mas preocupava-se em estabelecer a liberdade imediata somente
àqueles “cuja escravidão vier das bisavós”, ou seja, que se encontravam na quarta geração de
cativeiro. Diante desta diferença de apreensão dos termos do alvará surge o questionamento
das causas para tal interpretação.
Mesmo tendo em vista que as classificações raciais empregadas no contexto colonial
eram extremamente heterogêneas e usadas de acordo com cada situação, a historiografia
brasileira vem examinando os significados mais correntes do termo pardo. Sheila Faria, Hebe
Mattos e Larissa Viana indicaram que, de modo geral, o qualificativo pardo remetia a um
afastamento da condição de africano e, por vezes, a tez mais clara dos sujeitos, à
miscigenação. 285 No caso específico das interpretações conferidas aos termos do alvará de
1773 pelos pardos da Paraíba, pode-se inferir que talvez houvesse uma concordância de que a
condição jurídica dos escravos pardos advinha de algumas gerações. Se tomarmos como
provável a proposição de que “pardo” indicava um afastamento da condição de africano,
então a interpretação que deram às condições geracionais estabelecidas pelo sobredito alvará
282
Cf: Testemunhas 14 e 27. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
De fato, Pedro relatou em seu depoimento que estivera pouco tempo antes de ser preso na festa dos Cariris.
Depreende-se que esta festa era realizada na vila do Pilar, que era habitada por índios da nação careri. Cf: Idéia
da população da capitania de Pernambuco e das suas anexas, extensão de suas costas, rios e populações notáveis,
agricultura, número dos engenhos, contratos, e rendimentos reais, aumento que estes tem tido desde o ano de
1774 em que tomou posse do governo das mesmas capitanias o governador e capitão general José Cezar de
Menezes. Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, vol. 40. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas da
Biblioteca Nacional, 1918. p. 17.
284
Cf: Testemunhas 17, 18, 19.
285
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:
Editora Nova Fronteira, 2ª ed., 1998. p. 135-139; MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania no Brasil
monárquico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. p. 16-18; VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem: as
irmandades de pardos na América portuguesa. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. p. 159.
283
88
pode ser compreendida. Vejamos um exemplo hipotético sobre um dos possíveis arranjos
familiares do período colonial. Os filhos de um casal escravo formado por mãe preta crioula e
pai pardo poderiam gerar filhos considerados pardos. Neste caso, os filhos escravos da união
em questão estariam pelo menos na terceira geração de escravidão, ao menos se levarmos em
conta a linhagem materna: avô e/ou avó africano – mãe preta crioula casada com homem
pardo – filhos pardos. 286
Ao analisar os fatos ocorridos na cidade da Paraíba uma característica salta aos olhos:
foram homens pardos livres e forros que interpretaram os termos do alvará de 1773 e os
divulgaram. Os agraciados pela lei não seriam escravos africanos, pretos, mas sim “todos os
escravos pardos”. Esta constatação dá indícios de que naquele contexto o alvará foi
apreendido a partir de sua vinculação com este grupo social específico. Vimos que os termos
do alvará suscitaram preponderantemente discussões em torno da alforria. Mas o que dizer,
então, do envolvimento dos cinco pardos livres e forros como os principais articuladores das
discussões sobre a lei? Pode-se conjeturar que talvez a própria novidade da lei tenha sido
responsável por tantos debates, visto que provavelmente o fim da escravidão por
determinação legal dificilmente havia sido pensado como algo plausível. Por outro lado,
examinando o depoimento de Pedro de Alcântara, tem-se que havia “uma diversidade de
pareceres” sobre a lei e que algumas pessoas acreditavam que os “pretos” seriam admitidos
nas câmaras. Aqui nos deparamos com uma idéia inusitada e que certamente aos homens de
cor livres e libertos soaria mais instigante, apesar de ter sido mencionada uma única vez
durante toda a investigação, no referido depoimento de Pedro de Alcântara Bulhões. Sublinho
que a tônica das conversas na cidade da Paraíba era a alforria.
3.2 – Do ler ao ouvir dizer: redes de sociabilidade, instrução e poder entre pardos e
negros
Vimos que na cidade da Paraíba ocorreram as primeiras manifestações coletivas de
que se tem conhecimento na América portuguesa em decorrência do alvará de 16 de janeiro
286
Este caso pode ser averiguado no requerimento do escravo pardo Francisco, o qual buscava levar sua mulher
Bárbara, preta crioula, para Portugal por volta de 1767. Por conta de uma leitura do alvará de 19 de setembro de
1761 que entendia estarem proibidos de adentrar em Portugal apenas os escravos pretos, e não os pardos,
Francisco e seus filhos, por serem pardos, foram liberados pelas autoridades do porto do Rio de Janeiro para
embarcarem para o reino, enquanto Bárbara, por ser preta, fora impedida de fazê-lo. Para infelicidade de
Francisco, seu pedido foi recusado pelo rei. Este aspecto das interpretações do alvará de 1761 foi discutido no
capítulo precedente. Cf: Requerimento do escravo pardo do capitão Lourenço Gomes Macedo, Francisco, ao rei,
D. José, solicitando para passar sua mulher, Bárbara, crioula, natural das Minas, para o reino onde o suplicante
se encontra após ter acompanhado seu senhor e família. AHU-RJ, cx. 82, doc. 7343. Anterior a 29 de outubro de
1767.
89
de 1773. Apesar de a lei ter despertado uma curiosidade geral em todos os grupos sociais,
observou-se que foram pardos livres e forros os principais envolvidos com a disseminação das
notícias e interpretações da referida lei. Tendo isso em vista, cabe aqui pensarmos se entre os
cinco pardos acusados na devassa havia outras características comuns além de
compartilharem a ascendência africana, conferida pela designação da cor parda. Através dos
autos de perguntas feitas aos réus aparecem algumas indicações que podem nos ajudar a
conjeturar algumas sugestões neste sentido.
Na inquirição feita ao capitão Bernardino Nogueira Sena, o ouvidor Luis de Moura
Furtado foi direto ao ponto que lhe interessava, perguntando ao dito “se era curioso de ler e
escrever, e se costumava trasladar alguns papéis curiosos”. 287 Ao que lhe respondeu que
“desde pequeno foi sempre inclinado a ler algum livrinho, porém não sabe trasladar papéis,
nem por dinheiro, nem de graça, por não ter boa letra, e menos no tempo presente por ser já
avançado em anos”. Indo mais adiante com o tema da curiosidade, o ouvidor “perguntou-lhe
se era também curioso de ter algumas leis, e se tinha visto no presente ano alguma, e sobre
que matéria”. Foi então que Bernardino admitiu ter visto algumas leis de Portugal “e alguma
gazeta que se lhe tem dado a ler”. A última lei que tivera contato foi o alvará de 16 de janeiro
de 1773 e, como vimos anteriormente, mandara trasladar uma cópia pelo pardo Alexandre
Guedes. Este, quando interrogado, confessou ter trasladado a lei para Bernardino e que a
cópia era proveniente de um manuscrito. 288 Já o réu Luis Leitão, ao ser perguntado pelo
episódio da praia do Tambaú, onde teria falado com um grupo de escravos a respeito da lei,
declarou que “fora a dita praia [...] com um livro de cirurgia para curar uma preta da
espinhela”. 289 Por sua vez, Felix Caetano revelou ter lido um manuscrito da lei no convento
da ordem terceira de São Francisco. 290
Por fim, algumas das perguntas proferidas ao sargento-mor Pedro de Alcântara
Bulhões voltaram aos termos já referidos para o capitão Bernardino de Sena: “perguntou o
dito Ministro se sabia ler, e escrever, se se ocupava advertir com alguns papéis curiosos,
tirando-lhes algum traslado para os conservar ou dar a algumas pessoas”.
Respondeu que sabia ler e escrever, e que ocupava o tempo em fazer seus concertos
de música com os seus discípulos nos dias que nas festas, e sábados das semanas,
287
Cf: Traslado do auto de perguntas feitas ao preso Bernardino Nogueira Sena que mandou fazer o doutor
ouvidor geral Luís de Moura Furtado. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837. Os grifos destas passagens são meus.
288
Cf: Traslado do auto de perguntas feitas ao preso Alexandre Guedes a que procedeu o doutor ouvidor geral
Luis de Moura Furtado. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
289
Cf: Traslado do auto de perguntas feitas a Luiz Leytão homem pardo que procedeu o Doutor Ouvidor Geral
Luis de Moura Furtado. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
290
Cf: Traslado do auto de perguntas feitas ao réu preso o pardo Félix Caetano a que procedeu o Doutor Ouvidor
Geral Luis de Moura Furtado. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
90
quando era dispensado das obrigações de seu posto, e que muitas vezes não tinha
tempo em ler alguns livros pertencentes à arte militar, e algumas comédias que
apareciam pela correlação que tinha com a arte da música, pelas áreas que as
mesmas comédias muitas vezes trazem. 291
A descrição detalhada de seu interesse literário é indicativa do grau de instrução do sargentomor dos pardos da Paraíba, o qual também era professor de música. Contudo, Pedro de
Alcântara não era atraído apenas por livros militares e comédias relacionadas à música, mas
confessava ser
curioso saber novidades que provinham de lei, bandos do governador, ordens de
magistrados, e almotacés, quando estas se faziam públicas, ou por editais, ou por
bandos, e que nunca tivera maior curiosidade e mais do que saber o que continham
as ditas leis, e ordens para as observar, e das que se tem publicado não conserva
traslado algum mais que tão somente daquelas que respeitam ao serviço militar.
Como podemos notar através das falas dos cinco pardos, o traço comum a todos era o domínio
da leitura e escrita, e nesse ponto alguns certamente com mais perícia que outros, como era o
caso de Pedro de Alcântara. Parto do pressuposto de que esta informação não deve ser
concebida apenas como um simples dado relativo aos pardos em questão. Ora, na
documentação analisada ficam evidentes as relações existentes entre escrita, oralidade,
divulgação de conhecimento e redes de sociabilidades. Deste modo, pretendeu-se pensar
nestes atributos como aspectos centrais para a compreensão do impacto causado pelo alvará
de 16 de janeiro de 1773 na América portuguesa. Ademais, buscou-se estabelecer tipologias
dos sujeitos que estiveram envolvidos com a disseminação da legislação em questão. Por fim,
tendo em vista estes aspectos, indagou-se aqui quais os possíveis papéis sociais
desempenhados por negros e pardos – escravos e principalmente livres – que dominavam os
signos da cultura escrita no contexto de que estamos tratando, qual seja, a segunda metade do
século XVIII e início do XIX.
O tema do relacionamento de escravos e homens livres de cor com a escrita e o
conhecimento na sociedade colonial e imperial vem sendo explorado pela historiografia muito
recentemente, a exemplo das pesquisas de Maria Cristina Wissenbach, Eduardo França Paiva
e Christianni Morais. 292 Através da análise de fontes diversas como os inventários,
291
Cf: Traslado do autuamento de uma portaria do Ilustríssimo, e Excelentíssimo Senhor General para efeito de
se fazer perguntas ao preso o Sargento-mor Pedro de Alcantra de Bulhoens. AHU-PE, cx. 115, doc. 8837.
292
MORAIS, Christianni Cardoso. Ler e escrever: habilidades de escravos e forros? Comarca do Rio das Mortes,
Minas Gerais, 1731-1850. Revista Brasileira de Educação, v. 12, n. 36, p. 493-505, 2007; PAIVA, Eduardo
França. Leituras (im)possíveis: Negros e mestiços leitores na América portuguesa. In: Anais do Colóquio
Internacional Política, Nação e Edição, Belo Horizonte, Programa de Pós-Graduação em História, UFMG, v. 1,
2003; WISSENBACH, M. C. Cortez. Cartas, procurações, escapulários e patuás: Os múltiplos significados da
escrita entre escravos e forros na sociedade oitocentista brasileira. Revista Brasileira de História da Educação,
91
testamentos, cartas e requerimentos, estes autores demonstraram que negros e pardos,
escravos e livres, tiveram acesso a formas de instrução não obstante todos os impedimentos
sociais conferidos àqueles de sua condição e tendo em vista também que a instrução formal
fora atributo de grupos privilegiados. 293 Apesar do destaque conferido ao domínio da leitura e
escrita e aos usos que dele decorriam, também ressaltaram o papel central da oralidade como
um dos meios mais significativos para a apreensão e difusão do conhecimento em contextos
nos quais predominava o analfabetismo. 294
Aqui é imprescindível ressaltar-se o intenso entrelaçamento entre a oralidade e a
escrita no contexto colonial, dimensão esta pensada de forma ampla por José Jouve Martín.
Ao analisar as relações dos descendentes de africanos com a cultura letrada em Lima, vicereinado do Peru, durante o século XVII, chamou atenção para o fato de que esta população
não esteve à margem da cultura escrita, ao menos nos centros urbanos. Partindo do conceito
de cidade letrada, o qual representa o fato de que toda a organização social da cidade colonial
dependia da criação e interpretação de textos escritos, Martín problematizou o fato de que
escravos e seus descendentes livres estavam envolvidos com a cultura letrada ao longo de
suas vidas. Ao serem cristianizados, ao escutarem e visualizarem a proclamação de bandos e
sentenças pelas autoridades em voz alta, bem como ao participarem de cerimônias públicas,
civis e religiosas, a população de cor “percebia visualmente a relação existente entre escritura,
status e poder político”. Em resumo, tem-se que a cidade colonial, por conta de sua própria
estrutura de poder, proporcionou a negros e mulatos “a oportunidade de relacionar-se direta e
indiretamente com um universo dominado por textos escritos”. 295
Anteriormente ao trabalho de Martín, o conceito de cidade letrada foi pensado
também por Angel Rama, porém numa perspectiva mais hermética. Para este autor, a cidade
letrada hispanoamericana tinha como função assegurar o poder central, o que era feito a partir
da transmissão de suas ordens e normas e da mensagem religiosa católica estritamente por um
corpo de especialistas integrantes da burocracia e do clero. De seu ponto de vista,
n. 4, p. 103-122, 2002; SILVA, L. G. Negros escritos: a produção de textos pelos escravos na América
portuguesa. Texto apresentado no seminário Fontes históricas: métodos e tipologias. Universidade Federal do
Paraná, 15 de setembro de 2008. Disponível em: http://www.poshistoria.ufpr.br/fonteshist/LuisGeraldo.pdf
293
VILLALTA, Luiz Carlos. O que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: SOUZA, Laura de Mello
e (Org.). História da Vida Privada no Brasil: Cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo:
Companhia das Letras, v. 1, 1997, p. 354.
294
PAIVA, Eduardo França. Leituras (im)possíveis... p. 2, 11; WISSEMBACH, M. C. Cotez. Cartas,
procurações, escapulários e patuás... p. 119.
295
MARTÍN, José Jouve Ramon. La difusión de la cultura letrada en la comunidad negra de Lima del siglo
XVII. In: SALLES-REESE, Verônica (Org.). Repensando el passado, recuperando el futuro. Nuevos aportes
interdisciplinarios para el estúdio de la América colonial. Bogotá: Editorial Pontifícia Universidad Javeriana,
2005. p. 289-298.
92
diferentemente de Martín, os saberes e instruções intelectuais na cidade colonial ficavam
restritos a estes grupos: “foram os únicos exercitantes da letra num meio desguarnecido de
letras, os donos da escritura numa sociedade analfabeta”. 296
Partindo do caso dos cinco pardos acusados na devassa da Paraíba, vê-se, entretanto,
que a população afro-descendente não estava necessariamente isolada da cultura escrita e do
conhecimento, ou, em outros termos, não estava apartada da sociedade da qual era parte
integrante. Pelo contrário, através das falas daqueles réus temos indícios seguros de que eram
escritores e leitores e que seu relacionamento com a cultura escrita não se dava apenas de
forma indireta, através de autoridades civis e religiosas. Estes sujeitos eram portadores do
gérmen da curiosidade. No dicionário de Bluteau a caracterização dos curiosos é feita de
modo pejorativo, pois são “amigos de saber coisas que lhe não importam; os curiosos são
grandes perguntadores, como o mestre deles, o demônio; aquele que investiga coisas
ocultas”. 297 Sem levar em consideração o aspecto depreciativo desta definição, ela denota de
forma muito precisa a atuação dos pardos da Paraíba, pois o conhecimento do alvará de 1773
e a ânsia por saber sua inteligência foram os motores das discussões que causaram pânico nas
autoridades. Tendo isso em vista, pode-se afirmar que pardos livres e forros foram agentes de
seu próprio saber.
A este respeito cabe retomar algumas reflexões do historiador István Jancsó, pois
observou que no Brasil de fins do século XVIII estava surgindo uma “nova cultura política”.
Nesta, participavam também homens de ínfima condição, os quais passavam a estar presentes
ativamente no debate político, fossem quais fossem seus níveis culturais. Uma das facetas
mais importantes desta nova cultura política era a avidez pelo conhecimento do que ocorria no
mundo e isso independente da condição social. 298 Remetendo-se ao caso do soldado Luiz
Gonzaga das Virgens, um dos acusados nos incidentes ocorridos na Bahia em 1798, Jancsó
destaca sua singularidade, pois mesmo sendo soldado pobre, cultivava o hábito de copiar
textos legais que normatizavam a vida militar. Em decorrência de dominar este saber, enviava
vários requerimentos às autoridades da capitania.299 Num deles pedia para que fosse nomeado
296
RAMA, Angel. A cidade das letras. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. p. 41-53.
Cf: Verbete “curioso”. In: BLUTEAU, Rafael. Vocabulário português e latino... Coimbra: Colégio das Artes
da Companhia de Jesus, 1712-1721.
298
JANCSÓ, István. A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII. In:
História da vida privada no Brasil... p. 398-401.
299
JANCSÓ, István. A sedução da liberdade...; p. 396-397.
297
93
“ajudante do quarto regimento de milícias desta cidade, composto por homens pardos,
alegando que estes deviam ser igualmente atendidos que os brancos (...)”. 300
O caso do soldado Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga, homem pardo e integrante da
quarta companhia de granadeiros da cidade de Salvador, porém, não constituiu fato isolado.
Ressalto que muitos outros pardos forros e, principalmente, livres buscavam acercar-se do
conhecimento. Lembremos que também o capitão Bernardino Nogueira e o sargento-mor
Pedro de Alcântara Bulhões, acusados na devassa da Paraíba, admitiram serem curiosos por
saber das leis que regulavam a vida militar. Estes eram, pode-se afirmar, integrantes
autênticos da “nova cultura política” da qual fez menção Istaván Jancsó.
Além de serem agentes de seu conhecimento, a especificidade destes sujeitos pode ser
compreendida ainda mais em sua complexidade quando atenta-se para o fato de que as
informações adquiridas não permaneciam restritas a eles, mas tendiam a ser disseminadas
entre seus pares. Agiam como verdadeiros vetores de conhecimento principalmente entre a
população de cor destituída de alfabetização. A historiografia tem se referido a estes
indivíduos como “mediadores culturais” ou “intermediários culturais”, o que reflete bem o
papel que desempenhavam no seio de suas comunidades. 301
No contexto colonial a forma através da qual circulavam as notícias e idéias eram as
redes de sociabilidade, no interior das quais a relação entre escrita, leitura e oralidade tornamse explícitas para o pesquisador. De acordo com Jean Baechler, a noção de sociabilidade está
relacionada com a capacidade de indivíduos e grupos relacionarem-se entre si. Tais
associações podem originar redes, as quais nascem espontaneamente das relações que cada
indivíduo mantém com os outros. Através dessas redes, indivíduos e grupos fazem “circular
as informações que exprimem seus interesses, gostos, paixões, opiniões”. 302
De fato, quando integrados nestas redes, os homens de cor, livres e escravos, faziam
circular suas opiniões e interesses. Exemplo enfático deste aspecto foi observado na rede
estabelecida entre os militares pardos da Paraíba e de Pernambuco, já analisada. Em fins do
século, no ano de 1798, novamente as notícias acerca do alvará de 16 de janeiro de 1773
tomaram proporções envolvendo uma rede significativa de indivíduos. No centro das tensões,
entretanto, estava só um homem, o pardo Miguel Ferreira de Souza, capitão do terço auxiliar
300
Apud VALIM, Patrícia. Da sedição dos mulatos à Conjuração Baiana de 1798: a construção de uma memória
histórica. Dissertação (mestrado em História) - Universidade de São Paulo, 2007. p. 24.
301
SILVA, Luiz Geraldo. “Esperança de liberdade”... p. 134; SILVEIRA, Marco Antonio. Narrativas da
contestação. Os capítulos do crioulo José Inácio Marçal Coutinho (Minas Gerais, 1755-1765). História Social, n.
17, p. 285-307, 2009. p. 287. O conceito original de “intermediários culturais” pertence à VOVELLE, Michel.
Ideologias e mentalidades. São Paulo: Brasiliense, 1987.
302
BAECHLER, Jean. Grupos e sociabilidade. In: BOUDON, Raymond. Tratado de Sociologia. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed, 1995. p. 65.
94
da cidade de Mariana, capitania de Minas Gerais. Fora autuado e preso devido aos murmúrios
que corriam pela cidade a seu respeito, pois era acusado de estar disseminando “a cizânia de
que o mesmo excelentíssimo senhor general tinha ordem régia para que os pardos cativos
fossem forros e igualmente tudo o mais até os próprios negros depois de haverem servido dez
anos”. Segundo consta dos depoimentos, Miguel teria enviado um requerimento ao rei
pedindo para que fosse observada nas Minas a lei que libertara os escravos pardos em
Portugal.
Da mesma forma que ocorreu na cidade da Paraíba há mais de duas décadas, o que
causava temor nas autoridades de Mariana era a possibilidade de revolta escrava, visto que
“muitos se têm ausentado do serviço dos senhores, e os mais meio alucinados, e porque o
número dos mesmos é grande, e pode promover a uma sedição”.303 Conforme a testemunha
José Dias Montes, homem branco e que vivia de sua estalagem, os “escravos do falecido
Domingos Pires e um mulato escravo do capitão José Luís Franco se julgavam forros, de sorte
que este se retirou para fora da casa do seu senhor sem até agora aparecer mais”. Manoel
Fernandes Chaves, administrador dos bens do referido Domingues Pires, relatou que num “dia
santo (...) os escravos do falecido Domingos Pires, e que ele administrava alguns deles junto
com outros vieram a esta cidade a virem publicar o bando e nele esperavam o declararem-se
ficarem forros”. 304
Não obstante o reduzido número de escravos que efetivamente agiram por conta destas
informações, o fato relevante é que encontramos na figura representativa do pardo Miguel
mais um “intermediário cultural”. Transitando entre diversos grupos sociais compostos por
pardos, livres e escravos, bem como homens brancos, Miguel Ferreira certamente era portador
de um status diferenciado naquela comunidade. Várias testemunhas ao darem seus
depoimentos foram unânimes ao descrevê-lo como “amigo de conversas e novidades”;
“falador e tem mau gênio”, apesar de não ser “homem revoltoso”. Também era conhecido na
cidade de Mariana por “andar pelos cartórios dela e tratar segundo lhe parece de algumas
dependências judiciais” de “terceiros”. Sua fama de conhecedor dos trâmites judiciais foi
aspecto recorrente nas caracterizações feitas sobre sua pessoa. 305
303
Devassa aberta pela justiça da cidade de Mariana contra o pardo Miguel Ferreira de Souza, 1798. APM.
Fundo: Secretaria de Governo da capitania (seção colonial). Título: Avulsos, cx. 40, doc. 52 Apud GROSSI,
Ramon Fernandes. O dar o seu a cada um: demandas por honras, mercês e privilégios na capitania de Minas
Gerais (1750-1808). Tese (doutorado em História) – Universidade Federal de Minas Gerais, 2005. p. 187. A
cópia desta tese foi gentilmente cedida pelo autor.
304
Devassa aberta pela justiça da cidade de Mariana... Apud GROSSI, Ramon Fernandes. O dar o seu a cada
um..., p. 188.
305
Devassa aberta pela justiça da cidade de Mariana..., p. 194.
95
Conforme o alferes José Pinto Ribeiro, Miguel enviara uma representação à rainha
pedindo para que a “lei que havia de que os mulatos em terceiro grau determinava fossem
forros” passasse a ter vigência nas Minas. O tenente Narciso Gomes Carneiro ouvira dizer que
Miguel enviara “uma carta a Sua Majestade com a certidão de uma lei na qual se determinava
a serem forros todos os mulatos”. 306 Foi com base neste requerimento que Miguel passara a
pedir contribuições para alguns escravos. Segundo Domingos Luis Ribeiro, o escravo mulato
Agostinho teria relatado que o réu “lhe havia dito que todos os pardos lhe deviam dar um
mimo porque ele dito Miguel andava tratando de todos serem forros”. 307 De acordo com o
pardo forro Antonio João Branco, Miguel enviava bilhetes aos escravos e escravas pardos
dizendo que faria deles forros e que, então, deveriam dar-lhe “algum dinheiro, ou galinhas ou
algodões”. 308 Veremos em outro momento que o pardo Miguel Ferreira realmente havia
enviado uma carta para a rainha alguns anos antes do incidente aqui descrito e nela poderemos
analisar seu posicionamento frente ao teor do alvará de 1773.
Retomando a leitura do alvará que circulou pela cidade de Mariana notaremos que os
pardos constituíam o grupo social privilegiado pela lei, mesma interpretação dada pelos
pardos da Paraíba em fins do ano de 1773. Quando da análise deste alvará feita no capítulo
precedente verificou-se que seus termos previam, por um lado, a liberdade imediata apenas
aos escravos de quarta geração e, por outro, a liberdade de todos aqueles que nascessem da
publicação da lei em diante. Esta bipartição da aplicação da lei no momento em que foi
outorgada gerou interpretações que diferiam de seu sentido original. Acredito que a apreensão
dos pardos como grupo por excelência a ser agraciado pelo alvará é decorrente disso. Na
perspectiva do historiador Ramon Fernandes a expectativa de liberdade somente aos pardos
presente nas conversas que circularam em Mariana expressava a hierarquia existente no
mundo dos homens de cor, na qual os pardos estariam no topo, seguidos dos crioulos e tendo
na base os pretos africanos. 309 Não obstante este ser um aspecto condizente com aquela
realidade, acentuo o importante papel da lei para a configuração desta noção. A similitude de
opiniões que se observa tanto no caso da Paraíba como em Mariana é indicativa de que os
termos geracionais previstos na lei foram interpretados de forma parcial por alguns sujeitos na
América portuguesa. Ignorava-se o fato de a lei prever a libertação de todos os escravos,
independentemente da cor e posição geracional, que nascessem a partir de sua publicação e a
306
Devassa aberta pela justiça da cidade de Mariana..., p. 189.
Idem, p. 191.
308
Idem, p. 192.
309
Idem, p. 193.
307
96
idéia sedimentada entre as populações do Brasil era a de que os beneficiados seriam os
pardos.
Apesar do evidente paralelo entre os eventos da Paraíba e de Minas Gerais, para além
da alforria uma esperança parece ter ganhado evidência no caso mineiro: a de que em
decorrência da lei todos os pardos passariam a ser considerados hábeis. Na cidade da Paraíba
o único a mencionar este aspecto foi o sargento-mor Pedro de Alcântara Bulhões. Já em
Mariana várias testemunhas afirmaram terem ouvido dizer que o réu afirmava publicamente
que todos os pardos seriam forros e que então passariam a ocupar cargos nas câmaras,
irmandades do sacramento e ordens terceiras, pois seriam hábeis para honras, mercês e
privilégios. 310 Por sua vez, o mulato Domingos, escravo do capitão José Luís Franco Sena,
acreditava que “brevemente seria forro e que haveria de ser oficial da câmara assim como os
outros de sua qualidade”, e também ocuparia outros “cargos honrosos”. 311 De fato, o alvará
previa o fim da nota de liberto aos escravos incluídos nas disposições da lei e tornava-os
“hábeis para todos os ofícios, honras e dignidades”. Veremos mais adiante que esta
determinação foi apropriada por vários pardos livres e forros como o grande trunfo
argumentativo em suas demandas.
Por ora, voltemos à caracterização dos sujeitos que mais estiveram envolvidos com a
disseminação do alvará de 1773 na América portuguesa, os pardos livres e forros. Até o
momento sabe-se que eram instruídos, sabiam ler e escrever, faziam parte de corpos militares,
estavam imersos em redes heterogêneas e agiam como vetores de conhecimento em suas
comunidades. Minha tese é a de que não foi por acaso que estes indivíduos foram os que mais
tiveram interesse no alvará. A junção de todas essas qualidades corroborou para a
conformação destes em um status social mais elevado, conferindo-lhes algum diferencial de
poder.
Vejamos o que pensavam as autoridades coloniais a respeito de sujeitos como os
pardos da Paraíba ou Miguel Ferreira de Souza. Em carta enviada em 1765 para o Margado de
Mateus, então governador da capitania de São Paulo, o vice-rei Conde da Cunha lhe instruía
com a seguinte admoestação: “rogo a Vossa Excelência não admita neste corpo pessoa
alguma que não seja da sua aprovação, e que exclua logo dele todo aquele que for falador ou
murmurador; porque esta casta de gente é a maior peste que pode entrar nos corpos
310
Devassa aberta pela justiça da cidade de Mariana... Apud GROSSI, Ramon Fernandes. O dar o seu a cada
um..., p. 192.
311
Idem, p. 192.
97
militares”. 312 Alguns anos mais tarde, em 1779, o marquês do Lavradio, então vice-rei do Rio
de Janeiro, deixava um relatório ao seu sucessor, Luiz de Vasconcelos e Souza, no qual o
aconselhava, dentre outros aspectos, para que tivesse cautela em relação a certos tipos sociais:
É preciso ter um grandíssimo cuidado que para ali [nas diversas vilas da capitania
fluminense] se não vão estabelecer letrados, rábulas, ou outras pessoas de espíritos
inquietos, porque, como aqueles povos tiveram uma má criação, aparecendo lá um
espírito inquieto, que, falando-lhes uma linguagem que seja a eles mais agradável,
convidando-os para alguma insolência, eles prontamente se esquecem do que
devem, e seguem as bandeiras daquele. 313
Note-se que os adjetivos empregados na definição destes sujeitos indicam o impacto de suas
atuações entre as populações com as quais conviviam. Causavam turbulências e inquietações
na ordem social estabelecida. 314 Fica evidente que aqueles com “espírito inquieto” eram, na
verdade, sujeitos instruídos dada à menção que se faz aos letrados e rábulas. 315 Pode-se
afirmar que os qualificativos acima discutidos imprimiam também aos homens de cor livres e
forros um caráter peculiar.
Aliado ao fato de serem “intermediários culturais”, vale discutir com mais minúcia a
integração social destes sujeitos nas cidades coloniais tendo em vista a raridade das letras
naquele contexto. Expressão elucidativa desta situação vem das lamúrias do governador de
São Paulo, Antonio José da Franca e Horta, para o presidente do Conselho Ultramarino,
Visconde de Anadia, no ano de 1804:
É coisa lastimosa, na verdade, ver o fundo de ignorância em que esta gente
vive; a maior parte dela não sabe ler, nem escrever, e os poucos que o fazem é tão
errada e grosseiramente, que se precisa adivinhar o que eles querem dizer. Todos os
dias vejo isso nos requerimentos que se me fazem, e a desgraça é que os mesmos
homens públicos, e oficiais de ordenança e milícia nas partes, e informações que
me dão, poucos se distinguem neste ponto dos indivíduos da última classe. Nesta
mesma capitania são raras as boas letras, e mais raro ainda haver quem saiba
ortografia, e cálculo, assim para ocupar os lugares da contadoria da Junta, como
para escrever na Secretaria do Governo. 316
312
Cf: N. 44. D.I., n. 14, p. 78-79. Rio de Janeiro, 2 de setembro de 1765.
Cf: Relatório do Marquês do Lavradio, vice-rei do Rio de Janeiro, entregando o governo a Luiz de
Vasconcelos e Souza, que o sucedeu no vice-reinado. Rio de Janeiro, 19 de junho de 1779. RIHGB, t. 4, n. 16, p.
409-486, jan. 1843. p. 423.
314
De fato, as ingerências políticas por parte de indivíduos ou pequenos grupos sobre comunidades mais amplas
de pessoas de cor eram atenciosamente observadas e combatidas não apenas pelas autoridades coloniais, mas até
mesmo pelas autoridades existentes no “mundo dos negros”. Estas valiam-se, para isso, da prerrogativa do
autogoverno conferida a instituições como irmandades e corporações militares a fim de suplantarem tensões e
turbulências potencialmente advindas deste tipo de manifestações incendiosas. Vide LIMA, Priscila de; SOUZA,
Fernando Prestes de. “Que haja paz e quietação”: controle social e irmandades negras na América portuguesa,
século XVIII. Revista Ágora, Vitória, n. 11, p. 1-22, 2010. Disponível em: http://www.ufes.br/ppghis/agora/.
315
Os rábulas eram indivíduos que, apesar de não serem diplomados, trabalhavam como advogados. Na
definição de Bluteau, eram “advogados ignorantes e muito faladores”. BLUTEAU, Raphael. Vocabulário
português e latino... verbete “Rábula”.
316
Cf: Para o excelentíssimo senhor Visconde de Anadia. D.I., v. 94, p. 124-125. São Paulo, 9 de junho de 1804.
313
98
Tomando esta constatação como representativa da situação colonial, assim como a
historiografia tem ressaltado, torna-se ainda mais claro o papel social destacado de sujeitos
instruídos. A margem de poder da qual desfrutavam precisa ser considerada quando pensamos
especificamente nestes homens de cor livres ou libertos. O pardo Francisco Gonçalves Reis
Lisboa, da capitania de Pernambuco, constituiu exemplo elucidativo para esta questão.
Ocupando o importante cargo de oficial maior da Secretaria de Governo daquela capitania no
ano de 1774, Francisco tornara-se objeto de desconfiança e reclamações por parte de algumas
pessoas e autoridades. Observemos o que dele informou José César de Meneses, então
governador de Pernambuco, ao marquês de Pombal:
Dou conta a vossa excelência de que na Secretaria deste governo vim achar um
pardo, por nome Francisco Gonçalves Reis Lisboa, exercendo a ocupação de oficial
maior da mesma Secretaria, com tão péssima conduta, que quase tinha arrogado a si
o poder do mesmo governo, sumindo requerimentos das partes, e dirigindo outros
com suas ardilosas influências, até extorquir aqueles despachos que eram da sua
intenção, e da utilidade de seus afilhados, constituindo-se deste modo um protetor,
a quem concorriam todos os povos desta capitania, para o bom êxito das suas
dependências, que só julgavam alcançar tendo por si a proteção deste pardo. 317
Através das palavras de José César de Meneses temos a indicação de que o pardo Francisco
tinha um significativo poder por ocupar um cargo na Secretaria daquele governo a ponto de
tornar-se uma espécie de protetor e causar tanto incômodo nas autoridades. A partir deste caso
podemos verificar as conexões entre o domínio da leitura e escrita aliado ao exercício de
ocupações e como a junção destes aspectos fazia de homens pardos livres sujeitos
diferenciados dentre aqueles de mesma qualidade.
No contexto colonial o exercício da música constituiu caso exemplar desta
perspectiva, visto que, segundo Francisco Lange, “o analfabetismo era inexistente entre os
músicos, sendo sua caligrafia excelente, prolixa e fluida”.318 Ademais, muitos músicos
desfrutavam da admiração e proteção de autoridades devido à arte que executavam. O caso do
músico Luis Álvares Pinto foi realmente singular. Parte de sua instrução musical deu-se em
Portugal, onde permaneceu de 1740 até por volta de 1760. No reino estabeleceu um
importante contato com Martinho de Melo e Castro, então ministro da Marinha e Ultramar,
após tornar-se professor de música de suas filhas. Retornou ao Recife e em 1761 já havia
adquirido o cargo de mestre régio de instrução primária, ensinando música. Ao longo das
317
Cf: Ofício do governador da capitania de Pernambuco, José César de Meneses, ao secretário de estado do
reino e mercês, marquês de Pombal, Sebastião de Carvalho e Melo, sobre a má conduta do oficial-mor da
secretaria de governo desta capitania, o pardo Francisco Gonçalves Reis Lisboa. AHU-PE, cx. 117, doc. 8977.
Recife, 21 de outubro de 1774.
318
LANGE, Francisco Curt. A música barroca. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). História geral da
civilização brasileira. (t. 1, v. 2). São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1968, p. 138.
99
décadas de 1760 e 1770 somaram-se outras funções como a de escrivão da irmandade de
Nossa Senhora do Livramento e capitão de um dos terços auxiliares do Recife. 319 O músico
Antonio Manso exercera os importantes cargos de mestre-de-capela da Sé da cidade de São
Paulo e o de diretor da Casa da Ópera. Gozava da estimação e proteção do governador D.
Antonio de Souza, o qual interveio a seu favor quando fora proibido pelo novo bispo, em
1774, de tocar em todas as igrejas por conta de ser mulato e operário. O governador, no
entanto, pautava-se nas “novíssimas leis” afirmando que ser mulato não mais constituía um
defeito. 320 Certamente a lei referida era o alvará de 16 de janeiro de 1773.
Na vila de Fortaleza, capitania do Ceará, tem-se outra situação que nos permite pensar
na complexidade das “vivências ladinas” de homens de cor livres que tiveram um papel
destacado no seio de suas comunidades. O pardo João da Silva Tavares, professor régio de
gramática latina, fora preso em 1802 em decorrência de suas “turbulências e inquietações” e,
no ano seguinte, foi objeto de uma carta dos camaristas da vila sobre seu “mau
procedimento”, na qual se pedia o seu degredo da capitania. 321 Nela encontra-se uma longa
descrição informativa de seu caráter e atitudes, conforme o ponto de vista dos camaristas. O
professor seria perjuro e dado a fofocas, posto que andava “espreitando o que cada um diz e
obra em sua casa, já deitando-se pelas portas da rua, já escondendo-se nos quintais alheios,
para delatar as faltas dos outros”. Tornar-se amigo de escravos também seria outra forma
usada pelo professor para ter acesso aos segredos de seus senhores. Como último ponto
destacado pelos camaristas está a denúncia de que o mestre de gramática viveria num
“público e incestuoso adultério” com uma européia, tia da mulher com quem se dizia casado.
Mediante tantos desregramentos, os camaristas alertavam para a má influência que a
“quotidiana comunicação com homem tão dissoluto" poderia causar nos jovens da vila.
Apesar de serem informações que procuravam depreciar a imagem do professor, delas
pode-se inferir que este sujeito estava imerso em relações sociais diversas, a começar pela
319
CASTAGNA, Paulo. A produção religiosa nordestina e paulista no período colonial e imperial. In: Apostila
do curso História da Música Brasileira. Instituto de Artes da UNESP, 2004. p. 12-13.
320
Cf: Relação feita pelo oficial-maior da Secretaria de São Paulo, Manuel Teixeira da Silva, contendo seis
ofícios do governador e capitão-general da capitania de São Paulo, D. Luís António de Sousa, para o ministro e
secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos, Martinho de Melo e Castro, referentes ao estado
eclesiástico. AHU-SP (A.M.G.), cx. 29, doc. 2666. São Paulo, 18 de junho de 1774. O caso de Antonio Manso,
conjuntamente a outros músicos de cor, encontra-se mais detalhado no artigo: LIMA, P. de; SOUZA, F. P. de.
Músicos negros no Brasil colonial: trajetórias individuais e possibilidades de ascensão social (segunda metade do
século XVIII e início do XIX). Revista Vernáculo, Curitiba, n. 19 e 20, p. 30-66, 2007.
321
Cf: Ofício do governo interino do Ceará ao secretário de estado dos Negócios da Marinha e Ultramar,
visconde de Anadia, João Rodrigues de Sá e Melo, sobre a prisão, no forte de São Luís, por oito dias, do
sargento-mor Antonio José Moreira Gomes, por inquietações e turbulências, e do pardo João da Silva Tavares,
mestre de gramática latina. AHU-CE, cx. 17, doc. 957. Fortaleza, 30 de novembro de 1802; Carta da Câmara da
vila de Fortaleza ao príncipe regente, D. João, sobre o mau procedimento do professor de Gramática Latina, da
mesma vila, o pardo João da Silva Tavares. AHU-CE, cx. 17, doc. 970. Fortaleza, 17 de fevereiro de 1803.
100
acusação de que era casado e supostamente amancebado com mulheres brancas, européias. O
cargo de professor certamente favoreceu sua inserção naquela vila, fazendo-se conhecido de
muitos. Suas conexões, aliás, chegavam até aos escravos, com quem trocava mexericos, fato
que revela um aspecto significativo da privacidade – ou ausência desta – e cotidiano coloniais.
Ser instruído, exercer uma função de confiança e ter acesso aos segredos de seus inimigos,
como constam das acusações, sem dúvida representou certo poder nas mãos de João e os
protestos dos camaristas são indicativos disso.
Tendo em vista o que foi exposto até aqui, algumas questões de caráter geral podem
ser sugeridas. Os homens de cor livres que dominavam a leitura e escrita num contexto no
qual estes atributos eram restritos, ocupavam posições de destaque em suas comunidades.
Este caráter diferenciado é vislumbrado na medida em que se observa que estes sujeitos
moviam-se no interior de diversas redes sociais, muitas vezes agindo nelas como vetores de
conhecimento, confluindo para a noção de “intermediários culturais”. Ademais, ser instruído
funcionava como um meio de ascensão para o exercício de cargos que, em teoria, eram
vedados a pessoas com ascendência africana. A imagem principal que devemos ter destes
indivíduos é a de que desfrutavam de certa margem de poder se comparados com seus pares
nos quais estes tributos não existiam.
3.3 – Direitos de escravos: maus-tratos e jusnaturalismo em requerimentos de liberdade
Observei em páginas anteriores que os pedidos de liberdade encaminhados da América
portuguesa à alçada régia durante a primeira metade do século XVIII eram pouco recorrentes.
No entanto, tal situação parece ter mudado ao longo da segunda metade daquele século e,
principalmente, a partir de suas últimas décadas, o que ficou evidente em face do aumento
significativo das demandas dessa categoria. A historiografia tem indicado tendência
semelhante no que se refere às ações de liberdade – a princípio julgadas pela justiça ordinária
– visto que se tornaram prática muito empregada por escravos que aspiravam ascender à
condição de libertos através da via legal.322 Levando-se em conta tais constatações convém
indagar o porquê dessa alteração a partir do período em questão.
Aqui o foco recai sobre requerimentos de liberdade destinados à apreciação régia, por
via do Conselho Ultramarino, durante a segunda metade do século XVIII e primeiros anos do
XIX. Como já foi salientado, esse artifício constituía medida extraordinária, empregada
322
A exemplo, GRINBERG, Keila. Alforria, direito e direitos no Brasil e nos Estados Unidos. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, n. 27, p. 63-83, 2001. p. 69.
101
preferencialmente quando na justiça local não havia esperança de resolução favorável à causa
e, assim, recorria-se à liberalidade do monarca. De forma geral, as causas de liberdade levadas
a efeito por escravos da América portuguesa tinham origem num arcabouço de direitos
costumeiros disseminados pelo corpo social, pois requerimentos provenientes de diferentes
capitanias partiam dos mesmos princípios: maus-tratos e a disponibilidade da quantia
necessária à compra da alforria. Contudo, percebeu-se que nessas demandas de fins do século
XVIII novos argumentos, estes marcados pelo ideário ilustrado, passaram a fazer parte das
retóricas construídas em prol da liberdade. Nesse contexto, os termos do alvará de 16 de
janeiro de 1773 foram apropriados por procuradores, ouvidores e mesmo por governadores, o
que modificou substancialmente seus discursos em torno da liberdade. Tendo isso em vista,
buscou-se identificar quais substratos ilustrados eram empregados a favor da liberdade, bem
como problematizar a atuação do Estado ilustrado frente a essas demandas.
Um documento publicado por Luiz Mott, em 1984, revela os extremos a que podiam
chegar os castigos impostos por senhores aos escravos na América portuguesa do século
XVIII. 323 No auto da denúncia feita à Inquisição contra o mestre de campo Garcia Dávila
Pereira de Aragão – homem extremamente rico, pertencente a uma das famílias nobres da
capitania da Bahia – encontram-se descritos minuciosamente os vários atos de crueldade
imputados a seus escravos. Ao escravo Jerônimo de oito anos de idade, por exemplo, “depois
de o esbordoar com uma tábua, deixando-o quase morto (...), o mandou açoitar rigorosamente
(...) mandando depois pôr-lhe uns grilhões nos pés e uma argola de ferro no pescoço”. Em
seguida o deixou pendurado com a cabeça para baixo e novamente o açoitou com rigor, quase
o levando a morte. 324
No Maranhão, entre os anos de 1799 e 1800, subsiste outro vestígio dos
procedimentos violentos de senhores para com seus escravos. As circunstâncias do caso, no
entanto, sugerem um tratamento diferenciado à questão por parte das autoridades coloniais e
dos próprios escravos se comparado aos acontecimentos envolvendo Garcia Dávila Pereira,
que, aliás, nada sofrera em decorrência das acusações. Na representação feita pelo procurador
geral dos índios e liberdades do Maranhão, Antonio Correa Furtado de Mendonça, Maria
Isabel Madalena Belfort foi acusada de praticar uma série de suplícios horrendos para com
323
MOTT, Luiz. Terror na Casa da Torre: tortura de escravos na Bahia colonial. In: REIS, J. J. (Org.).
Escravidão e Invenção da Liberdade: Estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. p.
18-32.
324
MOTT, Luiz. Terror na Casa da Torre..., p. 31.
102
seus escravos. 325 Essa distinta senhora foi descrita pelo procurador como alguém “esquecida
de todos os sentimentos de humanidade, de religião cristã e das leis do Reino”. Conforme a
acusação, manteve presos em cárcere dois escravos chamados Aportázio e Balbino, os quais,
“entre rigorosas sevícias, de açoites e pancadas com que os maltratava (...) passou a lhes coser
as bocas com aguilhão de ferro grossas, com que se costumam coser sacas de algodão,
concorvando-lhes nos beiços pontos de barbante grosso e por cima mordaças ou chapas de
ferro”. Após estes episódios, segundo consta da versão dos fatos apresentada pelo procurador
dos índios e liberdades, os ditos escravos fugiram em busca de socorro com o governador
daquela capitania. Este, “cheio de caridade católica, de zelo de justiça e da observância das
leis”, os mandou até o ouvidor da comarca, o qual decidiu colocá-los em depósito sob a
guarda dele procurador geral para que fosse efetuado o corpo de delito e iniciada as devidas
ações legais para se fazer justiça aos ditos escravos. O que gostaria de salientar é que o fato de
os dois cativos recorrerem ao governador sugere que havia certo conhecimento disseminado
entre os escravos de que podiam contar com determinadas proteções legais.
Da capitania da Bahia dispõe-se de fragmentos da vida do escravo Carlos, um crioulo
que em 1773 clamou pela liberdade através de requerimento enviado ao Conselho
Ultramarino. 326 Na exposição dos fatos, elaborada provavelmente por um procurador com
base nos depoimentos de Carlos, indicava-se que o escravo já teria pagado por sua liberdade,
mas ainda assim permanecia no cativeiro. Além disso, seu proprietário, o cônego José da
Silva Freire, teria lhe maltratado, pois, “esquecido do seu pacífico caráter, despido da
humanidade, o passou para uma rigorosa corrente”. No transcurso dos acontecimentos, Carlos
fora colocado em depósito no aljube 327 da cidade por um prelado a fim de reclamar a
liberdade judicialmente, pretensão malograda devido a uma exceção da lei firmada na
alegação de que a posse do escravo não pertencia ao cônego, mas a seu pai, o que tornava a
ação de liberdade inviável visto que fora movida contra o cônego.
A descrição pormenorizada dos contratempos e obstáculos à alforria de Carlos por
certo cumpria um papel essencial na argumentação, pois se depreende que objetivava
325
Cf: Aviso do secretário de estado da Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de Souza Coutinho, para o presidente do
Conselho Ultramarino, conde de Resende, D. Antonio José de Castro, referente à carta do procurador geral dos
índios e liberdades do Estado do Maranhão, coronel Antonio Correia Furtado de Mendonça, queixando-se dos
procedimentos de Maria Isabel Madalena Belfort contra seus escravos. AHU-MA, cx. 110, doc. 8635. 5 de maio
de 1800.
326
Cf: Requerimento do escravo do Reverendo Cônego José da Silva Freire, Carlos Crioulo, ao rei, D. José I,
solicitando provisão para lhe seja concedida a respectiva carta de liberdade. AHU-BA, cx. 176, doc. 13267.
Anterior a 30 de março de 1775.
327
Em Lisboa o aljube era a prisão para delinqüentes em matérias eclesiásticas. Cf: Verbete “Aljube”. In:
BLUTEAU, Raphael. No caso do escravo Carlos, seu depósito no aljube provavelmente está relacionado ao fato
de ser escravo de um religioso e ter sido colocado em juízo por um prelado.
103
justificar a necessidade de apelar para a justiça monárquica na medida em que os meios
ordinários da justiça local mostravam-se contrários à causa do escravo. Seguidamente a
explanação dessas circunstâncias, o procurador passou, então, aos argumentos propriamente
legislativos e filosóficos, afirmando que a “exceção” obtida por José da Silva Freire
“atropelava as leis da humanidade”. Alegava ainda, como uma espécie de lembrete enfático
ao monarca, que “a liberdade, Senhor, é devida ao homem por Direito Natural. Ela é favorável
por todas as leis, amplificada e protegida paternalmente pelas justas, pelas santas e pelas
sábias leis de Vossa Majestade”. Dentre as mencionadas leis, especificou aquela que obrigava
o senhor a vender o escravo quando o castigava “com excesso e mais áspero do que é justo”.
Provavelmente tratava-se das cartas régias promulgadas no final do século XVII, das quais já
se fez menção anteriormente. Ainda conforme o procurador, esta norma era potencializada
quando o próprio escravo tinha o capital para comprar a liberdade. Por fim, alertou o monarca
sobre “o grave prejuízo da República com a privação de homens livres pelo odioso meio do
cativeiro, introduzido pelas gentes contra o Natural Direito”.
Examinando as justificativas mobilizadas para a concessão da liberdade ao escravo
Carlos percebe-se o emprego de três argumentos principais: a liberdade devida ao homem por
Direito Natural; as leis da monarquia portuguesa que favoreciam a liberdade; os danos
materiais causados ao Estado pela não utilidade dos homens em condição de cativeiro.
Destaco que conjuntamente às proposições provenientes do direito costumeiro, a exemplo das
sevícias, a liberdade seria garantida por via do Direito Natural. A partir deste referencial, a
escravidão era concebida como uma instituição não natural e que fora “introduzida pelas
gentes contra o Natural Direito”. Assim, pode-se conjeturar que na perspectiva do procurador
de Carlos a escravidão passava a ser vista como um enxerto na condição humana.
Seguindo o procedimento habitual quando se tratava de pedidos de liberdade, o
Conselho Ultramarino, antes de tomar qualquer decisão, pediu para que o chanceler da
Relação da Bahia averiguasse as pretensões de Carlos e informasse ao rei com seu parecer. 328
Conforme sua recomendação, o rei não deveria dispensar a graça da liberdade ao escravo.
Não se sabe o fim desta empreitada, mas tendo em vista o parecer do chanceler e a defesa do
senhor, provavelmente Carlos tenha permanecido no cativeiro.
A despeito de muitos requerimentos de liberdade terem sido julgados contrariamente
às aspirações de seus suplicantes, deve-se considerar a complexidade dos discursos
328
Cf: Carta do chanceler da Relação da Bahia Miguel Serrão Dinis ao rei D. José referente ao requerimento de
Carlos Crioulo, escravo do Cônego José da Silva Freire, no qual solicitava que se passasse carta de liberdade,
pois já tinha pago por ela ao seu senhor. AHU-BA, cx. 171, doc. 12894. Bahia, 7 de setembro de 1775.
104
produzidos, os quais passavam a reivindicar a execução de direitos reservados aos escravos.
Conforme salientou Keila Grinberg, esta foi uma característica inovadora que passou a ganhar
força, para o caso da América portuguesa, em fins do século XVIII. A partir deste momento, o
ato de recorrer ao rei passava a ser composto por um novo significado, visto que o monarca já
não era entendido apenas como um mediador de conflitos entre senhor e escravo, mas também
como uma espécie de árbitro dos direitos destes últimos. 329
Neste período, conjuntamente à alegação de sevícias e ao fato de muitos escravos
disporem da quantia necessária para a compra da liberdade, principiava-se a recorrer a direitos
e valores provenientes do pensamento ilustrado. O “direito natural” e a “humanidade”
tornaram-se referências centrais nas argumentações a favor do direito à liberdade. Evidência
elucidativa dessa tendência encontra-se nos debates relativos à pretensão de liberdade de José,
escravo de Pedro da Cunha, ocorridos no Maranhão no ano de 1774. 330 O governador
Joaquim de Melo e Póvoas fora chamado a arbitrar neste caso por iniciativa de José, o qual
lhe pedia proteção porque mesmo dispondo da quantia necessária à compra de sua alforria a
via obstada por seu senhor.
Pedro da Cunha, por sua vez, alegava como motivos para tal postura o fato de José lhe
ser imensamente importante, pois exercia o ofício de alfaiate e era bem instruído. Além disso,
pautava-se na lei contida nas Ordenações, livro IV, título XI, intitulada: “Que ninguém seja
constrangido a vender seu herdamento e coisas que tiver contra sua vontade”. Não convencido
por tais argumentos, o governador pediu para que o ouvidor desse seu parecer a respeito de tal
impasse. As opiniões deste faziam referência aos mesmos princípios alegados no
requerimento analisado anteriormente relativo ao caso do escravo baiano Carlos. Todavia, ao
examinarmos suas reflexões, nota-se que o ouvidor percebia de forma muito clara as
mudanças em curso no que tocava aos debates sobre a liberdade.
Conforme apreciação do ouvidor, a atitude do senhor refletia sentimentos
“inteiramente contrários às leis da humanidade”. Ademais, afirmava que a escravidão era
fruto da “invenção do direito das gentes”, mesma concepção jurídica alegada no requerimento
do escravo da Bahia. Para esta autoridade, era conhecimento disseminado que “a escravidão é
diametralmente oposta e repugnante à liberdade dos homens considerados segundo o seu
estado natural e que eles têm um certo e incontestável direito para a poderem reivindicar”. De
acordo com seu raciocínio, a liberdade, além de ser favorecida pelo direito natural, também
329
GRINBERG, Keila. Alforria, direito e direitos... p. 76.
As passagens deste caso aqui reproduzidas foram consultadas em: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A luta
pela alforria. In: SILVA, M. B. N. da (Org.). Brasil: Colonização e Escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2000. p. 301-303.
330
105
estava em foco nas mudanças que estavam ocorrendo nas leis positivas. Lembrava que as
nações da Europa haviam abolido os cativeiros “como restos infelizes da antiga barbaridade”
e que Portugal estava igualmente inserido neste movimento, o que era expresso através das
leis de 19 de setembro de 1761 e 16 de janeiro de 1773. Perspicaz, o ouvidor explorava ao
máximo a falta de legislação positiva a respeito da instituição da escravidão: “se ele não acha
lei pela qual possa ser obrigado a libertar o escravo contra sua vontade, certamente não há-de
mostrar alguma por onde o escravo seja constrangido a viver um cativeiro hereditário tendo
com que possa comprar a sua liberdade”. Ao fim de sua exposição, remeteu-se ainda aos
maus-tratos como situação que obrigava, por direito comum 331 , o senhor a vender o escravo.
Seu parecer indicava que José deveria depositar a quantia necessária para a compra da alforria
e que seu senhor fosse obrigado pelo governador a aceitá-la.
Como era de se esperar, Pedro da Cunha não se mostrara de acordo com a prescrição
do ouvidor e tentara mais uma vez fazer valer seus direitos de proprietário, aspiração
novamente combatida pelo ouvidor com base nos “fundamentos do Direito Natural”. Ao fim
desses embates retóricos, o governador do Maranhão decidiu-se a favor da liberdade,
assentando que Pedro da Cunha deveria aceitar a quantia oferecida para a compra da alforria
e, assim, conceder a liberdade a seu escravo.
Observamos que nos casos referidos a menção ao direito natural foi utilizada como um
embasamento legal central. Conectada a esta noção, também a referência à “humanidade”
parece ter ganhado força. Cabe agora um exame dos significados destes preceitos durante o
período do qual estamos tratando.
Em uma das definições conferidas à expressão humanidade na Enciclopédia (17501772), tem-se que “é um sentimento de benevolência por todos os homens” (...) “ele irá
percorrer o universo para abolir a escravidão, a superstição, o vício e a desgraça”. 332
Conforme indicou Rafael Marquese, este princípio constituiu-se num dos valores centrais do
iluminismo. Ele teria provocado uma fissura na concepção de que o ponto comum entre os
homens era o fato de terem sido criados por Deus. Para os pensadores ilustrados, a
comunidade dos homens era conferida pela sua própria condição humana. Prossegue
Marquese: “além de designar a comunidade dos homens, possuía uma significação valorativa,
331
Direito romano.
Cf: D’ALEMBERT, Jean le Rond; DIDEROT, Denis. L'Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences,
des arts et des métiers. [1750-1772]. 33 v. Verbete “Humanidade”. Consultado em
http://diderot.alembert.free.fr/H.html.
332
106
que serviria de princípio regulador no domínio jurídico e no domínio moral”. 333 Acerca deste
último aspecto, Antonio Manoel Hespanha observou que, a partir do século XVIII, o direito
foi minado pela noção de universalismo do gênero humano, o que confluía para a noção de
“igualitarismo jurídico e à aplicação geral e abstrata das leis e das soluções políticas”. Para
Hespanha, uma das conseqüências deste movimento seria a paulatina abolição da sujeição de
não-europeus por europeus. 334 Com efeito, se retomarmos o alvará de 16 de janeiro de 1773
veremos que a escravidão perpetuada em Portugal foi ali concebida como contrária aos
sentimentos de humanidade e religião. Da mesma forma, Ribeiro Sanches, em suas Cartas
sobre a educação da mocidade, ambicionava dotar a juventude portuguesa de humanidade e
para isso era imprescindível o fim da escravidão naquela configuração social. 335
Ao final do primeiro capítulo deste trabalho verificou-se, através da análise de obras
literárias produzidas por portugueses, principalmente durante a segunda metade do século
XVIII, que algumas das justificativas tradicionais para a escravidão passaram a ser
questionadas. A exemplo, no Diálogo de 1764 a crença na humanidade comum entre os
homens dava suporte para rechaçar a desigualdade entre brancos e negros em função da cor da
pele destes últimos. 336 Por outro lado, também o preceito legal de que a condição jurídica da
mãe passava para os filhos começava a ser repensado. Observou-se que em algumas destas
reflexões a escravidão era admitida enquanto um estado não natural ao homem, contrária ao
direito natural. Segundo Maria do Rosário Pimentel, “no século XVIII, a liberdade natural era
um princípio irrefutável”. Tomando como referência as reflexões do abade Reynal em sua
Histoire des Deux Indes (1770), esta autora identificou alguns dos principais significados
desta noção naquele contexto, indicando que seria: “o direito que cada um tem de dispor de si;
a qualidade mais distintiva do homem após a razão, um bem inalienável; a propriedade de seu
corpo e o aproveitamento de seu espírito; liberdade una e individual”. 337 No âmbito jurídico, o
Jusnaturalismo moderno (séculos XVII e XVIII) apregoava a existência de um “direito
333
MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do Corpo, Missionários da Mente: senhores, letrados e o controle
dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 90-91.
334
HESPANHA, Antonio Manuel. Direito luso-brasileiro no Antigo Regime. Florianópolis: Fundação Boiteux,
2005. p. 58-59.
335
Cf: SANCHES, Ribeiro. Cartas sobre a educação da mocidade. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922.
p. 89-90.
336
Cf: [ANÔNIMO ou AUTORIA DESCONHECIDA]. Nova e curiosa relação de um abuso emendado ou
evidências da razão, expostas a favor dos homens pretos em um diálogo entre um letrado e um mineiro. Lisboa:
Oficina Francisco Borges de Sousa, 1764. Disponível em: http://arlindo-correia.com/060509.html; BOXER,
Charles Ralf. Um panfleto raro acerca dos abusos da escravidão do negro no Brasil (1764). Reimpresso e
comentado por C.R.B. In: Anais do Congresso Comemorativo do Bicentenário da Transferência da Sede do
Governo do Brasil da Cidade do Salvador para o Rio de Janeiro, 1963, Rio de Janeiro, vol. 3, p. 171-186.
337
PIMENTEL, Maria do Rosário. Viagem ao fundo das consciências. A escravatura na época moderna. Lisboa:
Edições Colibri, 1995, p. 208.
107
natural”, o qual consistia num “sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do
sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado (direito positivo). Este direito natural
tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo, e, em caso de conflito, é ele que
vale”. Também o Jusnaturalismo moderno “ressalta fortemente o aspecto subjetivo do direito
natural, ou seja, os direitos inatos”. 338 Tendo em vista essas considerações, torna-se
compreensível o emprego constante do direito natural nas retóricas construídas em prol da
liberdade anteriormente analisadas, pois ao direito positivo que admitia a instituição da
escravidão sobrepunha-se o direito natural à liberdade, esse um direito inato.
Como indicou José Carlos Chiaramonte, o direito natural constituiu um dos
fundamentos mais importantes do ideário político do século XVIII, sendo entendido por ele
como um aspecto essencial do pensamento ilustrado e não apenas como um mero “capítulo da
ilustração”. 339 No caso português essa tendência foi explicitada na retórica legislativa da
segunda metade do século XVIII, visto que o projeto político pombalino procurava intervir na
legislação buscando acomodá-la ao novo ideal jurídico. Almejava-se mitigar a influência do
direito romano e “estabelecer um direito nacional e racional, conforme os ditames do direito
natural, da ética, e do direito das gentes, e sobre ele, enfim, uma forte solidariedade entre as
nações civilizadas”. 340 Expressão legal destas mudanças, o alvará de 16 de janeiro de 1773
provocou uma alteração significativa na natureza dos debates acerca da liberdade no império
português. Sugere-se aqui que tal lei foi apropriada como a manifestação “positiva”, ou seja,
dirigida pelo Estado, dos preceitos do direito natural à liberdade, o que pode ser observado
pela justaposição do alvará de 1773 e o direito natural como argumentações centrais em
requerimentos de liberdade encaminhados da América portuguesa para o centro de poder em
Lisboa.
Da capitania de Minas Gerais tem-se registro de duas representações que
reivindicavam a aplicação do alvará de 1773. A primeira delas foi enviada por volta do ano de
1786 pela Irmandade de São Gonçalo Garcia, situada em São João del Rei. Esta irmandade
era composta por pardos e admitia como irmãos tanto sujeitos livres como escravos. Era a
favor destes últimos que a representação fora elaborada. Pedia-se para que a irmandade
recebesse a graça de poder libertar seus confrades escravos através do pagamento de suas
338
BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gian Franco (Orgs.). Dicionário de política. (v. 1).
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998. p. 655, 658.
339
CHIARAMONTE, José Carlos. Metamorfoses do conceito de nação durante os séculos XVII e XVIII. In:
JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo/Ijuí: Ucitec/Unijuí/Fapesp, 2003, p.
61-91. p. 61.
340
MONCADA, Luís C. de Oliveira. O “século XVIII” na legislação de Pombal. In: Estudos de história do
direito. (v. 1). Coimbra: Universidade de Coimbra, 1948. p. 90.
108
alforrias aos respectivos senhores. 341 O que deu ensejo à questão era a recusa destes últimos
em conceder a alforria àqueles cativos que dispunham da quantia necessária para sua compra.
Novamente nos deparamos com a pressão de escravos no sentido de impelir as autoridades a
obrigar os senhores a conceder a alforria. A representação alegava a irracionalidade presente
na atitude dos proprietários, pois: “(...) sendo a liberdade de Direito Natural, não parece
conforme a razão que muitos dos ditos irmãos tendo, podendo ter, e querendo dar o seu justo
valor, estejam em perpétuo cativeiro”. Vinha corroborar a pretensão dos escravos pardos o
fato de que estes já deveriam estar libertos, “por serem escravos já desde o terceiro, quarto e
quinto avô” e, por isso, compreendidos na lei de 16 de janeiro de 1773. No entanto, segundo
entendiam os requerentes, nas capitanias da América esta lei seria interpretada por homens
“poderosos e cheios de ambição”, os mesmos que ocupavam os cargos públicos, os quais
entendiam “que só para os Algarves se publicou a referida lei como se a razão dela não fosse
idêntica nas Províncias de Portugal e nas Capitanias da América”. 342
Interessante notarmos que nas reivindicações pela aplicação do alvará de 1773 na
América portuguesa nunca a autoridade real fora questionada no sentido de ter elaborado uma
lei destinada somente aos escravos de Portugal e Algarves. Os responsáveis por esta injustiça
eram sempre as autoridades coloniais locais. A mesma perspectiva foi alegada numa
representação enviada pelos “escravos de seus vassalos do Brasil, em especial da capitania de
Minas Gerais”, no de 1802. 343 Nela relatava-se que procurando a execução da lei de 1773
para as Minas Gerais, “os ministros de Vossa Alteza Real o recusam com o pretexto de
dizerem não ser esta determinação para estes lugares, e sim para os do Algarves e Províncias
desse Reino”. Uma peculiaridade acerca dessa representação consistiu no artifício empregado
para fazê-la chegar até o monarca, pois havia sido enviada com título falso, em nome dos
camaristas da Vila do Fonado. Ao final da narrativa, pedia-se perdão por tal atitude,
justificando-a pelo fato de que muitas causas de escravos eram desencaminhadas pelas
autoridades locais.
341
Cf: Representação da corporação da Irmandade de São Gonçalo Garcia, ereta pelos pardos da Vila de São
João Del Rei, solicitando a Rainha a mercê de conceder a referida Irmandade o poder de libertar os seus irmãos e
irmãs que fossem escravos, pagando uma indenização a seus donos. AHU-MG, cx. 125, doc. 20. 22 de agosto de
1786.
342
Grifo meu.
343
Cf: Carta de Francisco de Borja Garção Stockler, ao Príncipe Regente, levando a sua presença os
requerimentos dos “homens e pessoas de nação branca, outros pardos e muitos inferiores nas cores e graus” do
Brasil, principalmente da capitania das Minas Gerais, no qual pedem as providências dos alvarás de 19.09.1761 e
16.01.1773, relacionados com a libertação dos escravos. AHU-MG, cx. 165, doc. 51. Lisboa, 4 de novembro de
1802.
109
No que toca à questão da aplicação do alvará de 1773 na América portuguesa, o
raciocínio empregado nas duas representações é exatamente o mesmo. Independentemente de
na origem da lei ela não ter sido destinada à colônia americana, o que realmente importava era
a ocorrência das mesmas condições que em Portugal serviram para legitimar sua formulação,
as quais se encontravam explicitadas no texto do alvará. Em primeiro lugar denunciou-se a
prática empregada por proprietários de manterem como escravas mulheres pardas ou, muitas
delas, mais brancas que os próprios senhores, com o título de negras. Estas seriam obrigadas
“a viver em concubinato involuntário”. Por outro lado, “muitos senhores não querem libertar
as ditas escravas, porque com elas fazem um incrível gênero da mais torpe negociação”,
ficando com o “cativeiro dos filhos nascidos desta lucrativa prostituição”. Vinha somar-se a
este quadro o desprezo sofrido publicamente pelos pardos, sujeitos que estariam já no quarto
ou quinto grau de escravidão, mas que eram tiranizados com “rigorosas prisões” e castigos.
Aqueles que se aventuravam a fugir, logo que eram capturados passavam a ser “açoitados
pelos pelourinhos publicamente”, ou nas casas de seus senhores. 344
Conjuntamente ao aspecto moral implicado, a permanência dos escravos pardos no
cativeiro gerava perdas ao próprio Estado. Saliento que esse aspecto era um dos fundamentos
presentes no alvará de 1773. Contra a proposição de que os senhores não poderiam ser
obrigados a conceder a liberdade mediante pagamento, os confrades de São Gonçalo Garcia
reclamavam a exceção desta regra com base na utilidade à República. A ascensão à liberdade
daqueles escravos gerava “novos vassalos úteis ao Estado, novos agricultores para as terras,
novos moradores para os sertões, novos descobridores para as Minas de ouro, novos oficiais
em todo o gênero de manufaturas para o comércio e, enfim, o benefício público”. Já na
perspectiva presente à representação da Vila do Fonado, a função de maior importância ao
Estado parece ter sido a militar, visto haver “tantos homens destes tão capazes de formarem
imensos regimentos, que com melhor vontade se oferecem gratuitamente para se empregarem
no Real Serviço, estando para isso hábeis com a sua Liberdade”.
Tendo em vista as causas de liberdade analisadas, restam ainda algumas inquirições:
como o Estado português tratava as pressões de escravos que podiam custear o valor de suas
alforrias e procuravam obrigar os senhores a conceder a liberdade através da deliberação
régia? Como procedia mediante as reivindicações dos direitos de propriedade por parte dos
senhores num período no qual princípios ilustrados faziam parte da própria retórica estatal?
344
Cf: Carta de Francisco de Borja Garção Stockler... AHU-MG, cx. 165, doc. 51.
110
Em 1798 o escravo Luiz da Costa Lama, da capitania do Maranhão, buscava obter a
liberdade para seu filho Bernardo, oferecendo para tanto a quantia relativa à sua avaliação a
Cláudio José Galvão, proprietário de Bernardo. Porém, como o senhor negava o pedido, este
pai recorreu ao Conselho Ultramarino pedindo para que o senhor fosse obrigado a passar carta
de alforria sob imposição régia. Como era de praxe nestes casos, por despacho do Conselho
ordenou-se que o governador do Maranhão, D. Diogo de Souza, averiguasse a justiça do
pedido através do ouvidor daquela capitania, Henrique de Mello Coutinho de Vilhena. 345 O
parecer emitido por este iniciava admitindo que na legislação positiva portuguesa não havia
lei que obrigasse o senhor a vender o escravo contra a vontade. No entanto, asseverava:
“parece que destituídos de um tal direito e título, nunca poderiam [os escravos] ter ação contra
eles”. Porém, com base nas mudanças que então ocorriam na própria legislação lusitana, esta
autoridade desenvolveu uma reflexão que negava esta tradicional norma:
Mas refletindo bem sobre o espírito das nossas Leis, e o quanto elas têm por odiosa
a escravidão; Já tomando-a como princípio e causa da indecência, confusões e
ódios entre os vassalos; Já reputando os escravos inúteis e incapazes para os ofícios
públicos, para o comércio, para a agricultura e para os tratos e contratos de todas as
espécies; E já finalmente considerando-os prejudiciais ao Estado, por ter neles
vassalos lesos, baldados e inúteis; Não tropeça em dúvida que elas suposto por uma
parte tolerem a escravidão, favorecem muito por outra a liberdade, por ser aquela
contrária ao Direito das Gentes, ofensiva dos Direitos de Homem, e sem título ou
Direito algum; E, por conseqüência, conferem na sua generalidade aos escravos
todo o Direito e ação para se subtraírem da propriedade dos particulares sem
prejuízo dos seus interesses.
Note-se que o “espírito” das leis portuguesas sobre a escravidão referia-se exatamente aos
mesmos termos presentes no alvará de 16 de janeiro de 1773: a escravidão tornava os súditos
bárbaros, na medida em que causava confusões e ódios entre eles, e era anti-econômica, pois
tornava os escravos improdutivos economicamente, visto serem impedidos de exercer ofícios
públicos, agricultura e comércio. Lembremos que essa perspectiva foi empregada também nos
argumentos a favor do escravo baiano Carlos. No entendimento dessa autoridade colonial, o
alvará constituía a expressão mais atual do pensamento do Estado português a respeito da
escravidão. Alegava ainda que do caráter artificial da escravidão, visto ser ela contra o direito
das gentes 346 e os direitos do homem, resultaria o direito reservado aos escravos de buscarem
o fim de seus cativeiros, desde que, é claro, seus valores fossem pagos aos senhores. Como
345
Cf: Ofício do governador e capitão-general do Maranhão e Piauí, D. Diogo de Sousa, para o secretário de
estado da Marinha e Ultramar, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, a informar as averiguações que mandou efetuar
sobre as pretensões do escravo Luís da Costa Lama. AHU-MA, cx. 102, doc. 8234. São Luis do Maranhão, 25 de
fevereiro de 1799.
346
Conforme Luís Moncada, o Direito das Gentes consistia de normas que regulavam as relações entre os povos
e as nações tidas por civilizadas. MONCADA, Luís C. de Oliveira. O “século XVIII”..., p. 89.
111
vimos anteriormente, esse mesmo preceito foi mobilizado pelo ouvidor que julgou a causa de
liberdade do escravo José no ano de 1774, também na capitania do Maranhão. Por fim, o
ouvidor Henrique Vilhena destacou a concepção segundo a qual apesar de as leis portuguesas
tolerarem a escravidão, favoreciam muito a liberdade, idéia essa que talvez tenha sido o maior
impasse para a Coroa portuguesa. No caso do escravo Bernardo, o favor à liberdade foi
colocado em prática, visto que o governador fora conivente com a exposição do ouvidor e
dera parecer favorável à alforria.
A noção de que a liberdade era favorecida pelas leis portuguesas parece ter sido uma
constante no contexto do qual estamos tratando e confirmada nas leis decretadas. Em 1804
novamente vê-se D. Diogo de Souza, governador do Maranhão, envolvido numa causa de
liberdade e dando-lhe parecer favorável. A beneficiária era Marciana, escrava de Manoel
Antonio Leitão Bandeira. Este, protestando contra o que entendia como uma atitude arbitrária
por parte do governador, reclamava seus direitos de proprietário, mesmo admitindo que “a
liberdade é preciosa ao Estado”. 347 Relembrando a já discutida resolução régia de 1788,
referente à concessão de liberdade a quatro escravos por conta do alvará de 19 de setembro de
1761, é notório que nela a liberdade foi declarada como “matéria tão privilegiada”.348 Ainda
por via do alvará de 16 de janeiro de 1759, “atendendo eu [rei] ao favor de que se faz digna a
liberdade”, determinou-se que as sentenças dadas a favor da liberdade deveriam ser avaliadas
para que, então, se decidisse se caberia apelação à decisão ou não. 349 Foi devido essa lei que
Lauriana da Rosa, da capitania do Rio de Janeiro, no ano de 1800, recorreu ao rei para que
este lhe concedesse o direito de apelar à Casa da Suplicação da sentença favorável à liberdade
de sua escrava Matilde Bernardina, pois a “lei de 16 de janeiro de 1759 renega o recurso [para
a] Casa da Suplicação desta Corte por ser a questão sobre liberdade”. 350
Tendo em vista as reflexões acima, voltemos a nossa inquirição inicial. O que teria
provocado o aumento dos requerimentos de liberdade encaminhados ao Conselho Ultramarino
em busca do arbítrio régio a partir das últimas décadas do século XVIII? Parece plausível
347
Cf: Consulta do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D. João, sobre o requerimento de Manuel Antonio
Leitão Bandeira, que se queixa do procedimento do governador relativamente à alforria de um escravo seu.
AHU-MA, cx. 136, doc. 9968. Lisboa, 6 de agosto de 1804.
348
Cf: Aviso de 7 de janeiro de 1788. Acerca de Pretos marinheiros que pretendem ficar livres. In: SILVA,
António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última Compilação das Ordenações.
Suplemento à Legislação de 1763 a 1790. Lisboa: Typografia de Luiz Correa da Cunha, 1844, p. 600-601.
349
Cf: Alvará de 16 de janeiro de 1759. LARA, Silvia H. Legislação sobre escravos africanos na América
portuguesa. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (Dir. e Coord.). Nuevas Aportaciones a la Historia Jurídica de
Iberoamérica. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000. p. 337.
350
Cf: Requerimento de Lauriana Rosa, por seu procurador Constantino José de Abreu, ao príncipe regente D.
João, solicitando provisão para agravar ordinariamente para a Relação do Rio de Janeiro, o processo que lhe
moveu a escrava Matilde Bernardina, acusando a suplicante de maus tratos, com o objetivo de ter a liberdade.
AHU-RJ, cx. 184, doc. 13385. Anterior a 25 de agosto de 1800.
112
afirmar que este foi um período pelo menos propício ao acolhimento dessas demandas. Não se
está a sugerir que havia uma imensa liberalidade por parte do Estado português no que dizia
respeito à concessão da alforria aos escravos contra a vontade de seus senhores, mas sim que
essa possibilidade era admitida como praticável. Nesse contexto, somavam-se às prerrogativas
costumeiras – alegações de maus-tratos e o direito do escravo comprar a liberdade – novas
concepções acerca da liberdade, marcadas pelo ideário ilustrado. O próprio teor das leis
portuguesas, representadas principalmente pelo alvará de 16 de janeiro de 1773, formava um
ambiente de opiniões que concebiam a escravidão a partir de sua desumanidade e
contrariedade ao direito natural, o que provocou uma significativa mudança na natureza dos
discursos sobre a liberdade no seio do império português. Todavia, como salientou o parecer
dado ao requerimento da Vila do Fonado – MG, admitia-se que a condição dos escravos do
Brasil era “conhecidamente deplorável, porém sem remédio na constituição atual”. 351 A partir
desse período a crença na indispensabilidade da escravidão para a produtividade colonial
seguia intacta, todavia, passava a conviver com novas leis responsáveis por disseminar noções
de direitos pautadas em princípios modernos como o direito natural e a humanidade. Para um
grupo específico de escravos, aqueles que residiam em ambiente urbano e conseguiam
acumular pecúlio para a compra da alforria, este momento lhes inspirava a ação e, para
alguns, a almejada liberdade tornou-se realidade.
3.4 – “Hábeis para todos os ofícios, honras e dignidades”: o impacto do alvará de 1773
sobre o status dos homens de cor livres e libertos
Anteriormente vimos que no pensamento social português dos séculos XVII e XVIII
os homens e mulheres de cor, fossem livres ou libertos, eram percebidos como pessoas
maculadas pela ascendência africana e escrava, o que lhes imprimia um lugar social marcado
pela estigmatização. A partir deste referencial, a noção de “defeito da cor” fora empregada
como critério de exclusão à entrada em ordens terceiras, nos empregos públicos e para o
recebimento de honras e dignidades. Porém, também foi observado que no contexto colonial
estas regras conheceram um grau significativo de plasticidade. Nas demandas anteriores à
década de 1760 aqui analisadas verificou-se que pardos exerciam certas funções públicas que,
em teoria, lhes eram proibidas. Quando se deparavam com oposições, lançavam mão do
recurso de apelar ao rei para que os dispensasse do “defeito da cor” ou do “acidente da cor
351
Cf: Carta de Francisco de Borja Garção Stockler... AHU-MG, cx. 165, doc. 51.
113
parda”. Ou seja, admitia-se que ser pardo constituía um entrave legal. Contudo, este
ordenamento parece ter começado a mudar a partir de meados do século XVIII.
Dentre as inovações executadas no reinado de D. José I que exerceram influência
diretamente sobre as aspirações de homens de cor livres e libertos certamente inclui-se a
promulgação da carta régia de 22 de março de 1766. Esta ordem teve como intuito ampliar os
efetivos militares das tropas auxiliares do Brasil, determinando que todos os moradores em
condições para servirem fossem recrutados, sem exceção de “nobres, plebeus, brancos,
mestiços, pretos, ingênuos, e libertos”. Assim, buscavam-se formar outros terços de brancos,
pardos e pretos além dos já existentes, cada um deles com seu corpo de oficiais. A estes,
apesar de não receberem soldo como os integrantes das tropas pagas, se ofertou privilégios e
honras equivalentes às do oficialato regular. 352 Acredita-se que a partir desta ordem régia os
efetivos militares formados por homens de cor, principalmente aqueles compostos por pardos,
passaram a desfrutar de um maior reconhecimento por parte da Coroa, ganhando, ao longo
das décadas seguintes, um peso institucional muito expressivo. 353
Integrados nestas instituições militares, os pardos – livres e libertos – conformavam
verdadeiros grupos de pressão. Conforme definição de Jean Baechler, estes grupos
constituíam “uma coligação, ocasional ou permanente, formada por atores sociais, que visa
obter do poder político isenções e privilégios”. 354 Esta dimensão torna-se ainda mais
compreensível quando se sabe que na organização política portuguesa de Antigo Regime as
relações entre súditos e monarcas eram orientadas pelo que Antonio Manoel Hespanha e
Ângela Barreto denominaram de “economia do dom”. Neste sistema de referência, os serviços
prestados ao Estado pelos súditos eram passíveis de serem retribuídos pelo Rei. 355
Em carta remetida a D. Rodrigo de Souza Coutinho sobre os acontecimentos que
colocaram a Bahia em polvorosa no ano de 1798, José Venâncio de Seixas, então novo
provedor da casa da moeda da Bahia, expôs sua compreensão dos motivos para tal situação.
Trazendo à memória as leis “antigas dirigidas ao Brasil a respeito dos mulatos”, observava
352
Cf: Carta de D. José I ao governador e capitão-general de São Paulo, morgado de Mateus. AHU-SP (A.M.G.),
cx. 24, doc. 2354. Palácio de Nossa Senhora da Ajuda, 22 de março de 1766.
353
Um mapeamento dos vários corpos auxiliares criados em função da carta régia de 1766 está em SOUZA,
Fernando Prestes de. Milicianos pardos em São Paulo: cor, identidade e política (1765-1831). Dissertação
(mestrado em História) – Universidade Federal do Paraná, 2011. (particularmente o capítulo 2). Ver, igualmente,
SOUZA, Fernando Prestes de; PAULA, Leandro Francisco de; SILVA, Luiz Geraldo. A guerra luso-castelhana e
o recrutamento de pardos e pretos: uma análise comparativa (Minas Gerais, São Paulo e Pernambuco, 17751777). In: SANTOS, A. C. de A.; DORÉ, A. (Orgs.). Temas setecentistas: governos e populações no império
português. Curitiba: UFPR-SCHLA/Fundação Araucária, 2008, p. 67-83.
354
BAECHLER, Jean. Grupos e sociabilidade. In: BOUDON, Raymond (Org.). Tratado de sociologia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. p. 70.
355
HESPANHA, Antonio Manuel; XAVIER, Ângela Barreto. As Redes Clientelares. In: HESPANHA, Antonio
Manoel; MATTOSO, José (Orgs.). História de Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1992. p. 390.
114
que estes sujeitos eram conservados “em um certo abatimento”, pois lhes era proibido “a
entrada em qualquer ofício público ou posto militar, inibição que era ampliada ainda mesmo
aos brancos casados com mulatas”. Mesmo sem mencioná-la, percebe-se que a lei referida era
a ordem régia de 27 de janeiro de 1726, da qual já se fez menção. Contudo, as coisas haviam
mudado na forma como a Coroa tratava as pessoas denominadas por ele como
“insignificantes”. Segundo seu entendimento, o marco inicial desta alteração deu-se com a
promulgação da carta régia de 1766, entendida por ele como “um erro de política em
administração de colônias”, pois:
mandando formar corpos milicianos desta qualidade de indivíduos, se viram
condecorados com postos de coronéis e outros semelhantes, com que esta gente
naturalmente persuadida, adiantou consideravelmente as suas idéias vaidosas, o que
junto ao espírito do século, os faz romper em toda qualidade de excessos. 356
Das considerações do provedor chamo atenção, em primeiro lugar, para sua percepção do
impacto da lei de 22 de março de 1766 sobre o status dos milicianos mulatos e,
principalmente, sobre aqueles que ocupavam posições de comando nestes corpos, os quais
eram condecorados com patentes como a de coronel. A segunda referência aludida por esta
autoridade, a qual incitava as “idéias vaidosas” nos mulatos, era o “espírito do século”. Ora, o
que esta expressão significava? Tendo em vista tudo o que foi discutido até o momento, podese conjeturar que dizia respeito às concepções de igualdade entre os homens. Aliás, esta foi
uma das principais idéias presente nos papéis disseminados pela cidade de Salvador no ano de
1798.
A despeito dos exageros sempre passíveis de comporem discursos como o do provedor
José Venâncio de Seixas, parece plausível argumentar que algo estivesse mudando durante a
segunda metade do século XVIII. Não pense o leitor que se está querendo recuar
características da sociedade liberal para uma configuração social ainda fortemente
influenciada por moldes do Antigo Regime. Procura-se, antes, salientar que as inovações
legislativas ocorridas a partir do reinado de D. José I, aliado ao crescimento da população
livre e liberta de cor, tiveram impacto político sobre as aspirações desses indivíduos. Leitura
semelhante encontra-se sintetizada na noção de “acúmulo de forças” do historiador Marco
356
Cf: Carta de José Venâncio de Seixas para D. Rodrigo de Souza Coutinho, em que lhe participa ter chegado à
Bahia e ter tomado posse do lugar de provedor da Casa da Moeda, referindo-se a diversos assuntos do serviço
público e especialmente à descoberta de uma associação sediciosa de mulatos. Bahia, 20 de outubro de 1798.
Doc. 18433. Grifo meu. Inventário dos documentos relativos ao Brasil existentes no Arquivo da Marinha e
Ultramar. Organizado para a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro por Eduardo de Castro e Almeida. IV –
Bahia, 1798-1800. In: Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, v. 36. Rio de Janeiro: Oficinas Gráficas
da Biblioteca Nacional, 1916.
115
Silveira. Centrado em pesquisas sobre as populações negras e pardas da capitania de Minas
Gerais, este autor observou que ao longo da segunda metade do século XVIII tais atores
sociais passaram a gozar de certa margem de poder político em decorrência de seu
crescimento demográfico e de sua organização em corporações militares e religiosas.357
A trajetória militar do pardo Luis Nogueira de Figueiredo, do qual já se fez menção
quando da análise dos eventos ocorridos na Paraíba, é elucidativa para pensarmos na
representatividade social atingida por certos pardos durante o contexto da segunda metade do
século XVIII. Exercendo postos de comando em corpos militares no Recife e em suas
imediações desde o ano de 1736, foi nomeado em 1767 pelo governador de Pernambuco
mestre-de-campo do terço de infantaria auxiliar dos homens pardos da Vila de Santo Antonio
do Recife, como mandava a carta régia de 1766. No exercício desse posto, “não receberá
soldo algum, mas gozará de todas as honras, despachos, graças, franquezas, liberdades,
privilégios e isenções de que logram os coronéis das tropas pagas dos exércitos do mesmo
senhor como o determina a mencionada carta régia”. 358 Note-se que neste período o posto que
assumira era o mais elevado na hierarquia dos terços. Ao longo dos anos seguintes, Luis
Nogueira continuou ascendendo na carreira militar, tendo uma trajetória longa e de respeito
no Recife, a ponto de sua memória ser referenciada pelo viajante inglês Henry Koster no livro
Travels in Brazil (1816), especificamente pelo fato de ter sido condecorado com um hábito de
ordem militar. 359 A respeitabilidade da qual Nogueira gozava era tão notável a ponto de o
corpo militar comandado por ele ser denominado de “regimento dos pardos de Nogueira”. 360
O papel desempenhado por Luis Nogueira no interior da corporação militar da qual
fazia parte ia além de instruir seus efetivos em matéria militar. Constituía uma liderança
política que agregava em torno de si os demais milicianos. Conforme explicitado em outro
momento, quando de sua primeira estadia em Lisboa, no ano de 1770, além de buscar
demandas pessoais, fora para a corte como representante dos pardos de seu terço. Neste
357
SILVEIRA, Marco Antonio. Acumulando forças: Lutas pela alforria e demandas políticas na Capitania de
Minas Gerais (1750-1808). Revista de História, São Paulo, v. 158, p. 131-156, 2008.
358
Cf: Requerimento do mestre-de-campo do terço de infantaria dos homens pardos da vila do Recife, Luis
Nogueira de Figueiredo, ao rei D. José I, pedindo confirmação de carta patente. AHU-PE, cx. 105, doc. 8167.
Anterior a 31 de maio de 1768.
359
Cf: Ofício do coronel Luis Nogueira de Figueiredo ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Rodrigo de
Souza Coutinho, pedindo que este interceda no seu provimento para o posto de coronel brigadeiro, com soldo de
tenente-coronel de infantaria paga. AHU-PE, cx. 217, doc. 14665. Recife, 14 de junho de 1800; KOSTER,
Henry. Travels in Brazil. London: Printed for Longman, Hurst, Rees, Orme, and Brown, (v. 2), 2.ª ed., 1817. p.
211.
360
Cf: Requerimento do capitão do Regimento de Milícias denominado dos pardos de Nogueira da capitania de
Pernambuco, José Francisco Barreto, por seu procurador José Antonio Pinto, ao príncipe regente D. João,
pedindo que se junte este requerimento aos mais papéis que se acham na secretaria do Conselho Ultramarino e se
passe sua confirmação de carta patente. AHU-PE, cx. 249, doc. 16701. Anterior a 7 de julho de 1804.
116
mesmo ano encaminhou um requerimento a D. José I reclamando a execução de uma ordem
régia a qual determinava que todas as vezes em que os regimentos da capitania fossem
reunidos num só corpo a fim de executarem alguma tarefa, os oficiais selecionados para o
comando fossem aqueles de mais elevada e antiga patente. A situação em Pernambuco,
porém, era diversa, visto que oficiais de menor patente eram preferidos. Conforme sua
denúncia, “isto procede sem dúvida por serem homens brancos em desprezo de todos que têm
o acidente de pardos, e porque o soberano tem declarado que esta razão lhe não obste”.
Prosseguindo com seu discurso em prol do oficialato pardo declarava: “porque Vossa
Majestade atende aos procedimentos, no seu real serviço, e honra com que servem e não as
cores que os brancos querem desprezar”. 361
Apesar de admitir a cor parda como um acidente, o que fica evidente no discurso de
Nogueira é que o desprezo aos pardos era restrito ao grupo dos brancos da capitania. Esta não
era a atitude do rei, pois este os considerava não a partir da qualidade de pardos, mas sim
tendo em vista seus procedimentos na execução do serviço prestado ao Estado. Em ofício de
1775 novamente vê-se Luis Nogueira protestando contra o que considerava como desprezo.
Quando de sua estadia em Lisboa, Luis Nogueira foi condecorado cavaleiro da ordem de São
Tiago. 362 No entanto, no ano de 1775 fora impedido de sair em procissão juntamente com
outros cavaleiros na festa do Santíssimo Sacramento por ser pardo. Queixando-se a Martinho
de Melo e Castro, então secretário da Marinha e Ultramar, voltava à questão já referida no
requerimento de 1770:
pois senhor, se Vossa Majestade fidelíssima se serve com homens e não com
acidentes que este que Deus me fez nascer, estou [muito] satisfeito e em que cuido
é servir a Deus Senhor do Céu mostrando que sou cristão, e ao Deus da terra que é
o nosso muito alto Soberano que sou seu vassalo executando tudo quanto me
mandar o meu General, e sendo muito obediente aos seus ministros. 363
Lembrava ainda que já havia relatado ao secretário a situação enfrentada pelos pardos em
Pernambuco: “e eu já tinha posto na presença de Vossa Excelência que de todo éramos
desprezados de todas as confrarias ainda das mesmas ordens terceiras e Vossa Excelência me
361
Cf: Requerimento do mestre-de-campo do terço de auxiliares dos homens pardos do Recife, Luís Nogueira de
Figueiredo ao rei D. José I, pedindo que se declare a preferência por oficiais com patente real, todas as vezes em
que se juntarem os diversos regimentos da capitania de Pernambuco. AHU-PE, cx. 109, doc. 8466. Anterior a 5
de setembro de 1770.
362
Cf: Requerimento do mestre-de-campo do terço auxiliar dos homens pardos do Recife, Luís Nogueira de
Figueiredo, ao rei D. José I, pedindo para que a tença de 12 mil réis anuais da ordem de São Tiago que recebeu
em 1771 e que deveria, segundo provisão, ser assentada em sua folha servil, seja paga desde o ano em que foi
concedida, de acordo com a dita provisão. AHU-PE, cx. 119, doc. 9109. Anterior a 24 de maio de 1775.
363
Cf: Ofício do mestre-de-campo do terço auxiliar do Recife, Luis Nogueira de Figueiredo, sobre a festa do
Santíssimo Sacramento, informando acerca do seu acidente e renovando os votos de fidelidade e de interesse em
retornar ao serviço real. AHU-PE, cx. 119, doc. 9130. Recife, 18 de junho de 1775.
117
disse dava providência a tudo”. No entanto, a situação em Pernambuco não havia mudado e os
pardos milicianos continuavam desprezados “como senão fôramos filhos de Deus e vassalos
de Sua Majestade”.
Examinando o discurso sobre os pardos milicianos proferido pelo mestre-de-campo do
Recife percebe-se que a cor não era concebida como uma mácula que necessitava de dispensa
do monarca, como acontecia nas demandas anteriores a década de 1760. Pelo contrário, Luis
Nogueira dizia estar muito satisfeito com o acidente que Deus lhe havia feito nascer. Para ele,
o que importava na conformação de um súdito merecedor da graça régia era servir de forma
exemplar as duas autoridades máximas, as quais eram Deus e o Soberano. Aliás, sua
percepção do monarca enquanto o “Deus da terra” é o símbolo mais esclarecedor do
absolutismo português do período.
Interessante notarmos que as súplicas de Luis Nogueira sempre foram ao menos
avaliadas pelo núcleo de poder em Portugal, a exemplo de sua petição de 1770 sobre os postos
de comando quando da união dos regimentos de brancos e pardos em Pernambuco. Por
despacho do Conselho Ultramarino de outubro daquele mesmo ano D. José I determinava que
o requerimento fosse avaliado pelo governador de Pernambuco, que a época era Manoel da
Cunha Meneses, o mesmo responsável por dar fim às turbulências na cidade da Paraíba em
1773. O parecer, porém, parece ter sido encaminhado ao Conselho só em 1776, quando o
governador já era José César de Meneses. Sem que seja possível entender os motivos que
fizeram com que só em 1776 a questão fosse retomada, o que gostaria de ressaltar do parecer
de José César de Meneses é sua referência ao alvará de 16 de janeiro de 1773. Segundo ele,
havia sim uma lei que determinava a preferência por oficiais com patentes mais antigas e
ratificadas, mas esta não mencionava o procedimento a ser adotado no caso de concorrerem
oficiais brancos e pardos e, então, deixava a decisão final ao arbítrio régio. Contudo,
observou: “e uma tal decisão será bem útil para evitar as dúvidas, que no dito caso se possam
ocorrer, muito mais depois da real lei de dezesseis de janeiro de mil setecentos setenta e três,
que habilita os pardos para todos os ofícios, honras e dignidades (...)”. 364
Como fica evidente, José César de Meneses considerava que o alvará de 1773 era
também destinado ao Brasil. E para ele, a semelhança de outras interpretações do alvará
analisadas anteriormente, os beneficiários eram os pardos. Lembremos que o alvará habilitava
364
Cf: Carta do governador da capitania de Pernambuco, José César de Meneses, ao rei D. José I, sobre as
dúvidas na habilitação dos militares dos terços dos pardos para todos os ofícios, honras e dignidades, e se a
antiguidade das patentes deve ser contada quando concorrerem terços de brancos com terços de pardos,
conforme requer o mestre-de-campo do terço auxiliar do Recife, Luis Nogueira de Figueiredo. AHU-PE, cx.
122, doc. 9319. Recife, 20 de abril de 1776.
118
todos os libertos e seus descendentes, sem denominação de cor. Juntamente com os serviços
prestados por estes pardos ao Estado, esta cláusula do alvará foi apropriada como o principal
argumento legal legitimador de suas aspirações por habilitação. De fato, nota-se que havia um
campo comum de idéias nos discursos elaborados por pardos milicianos.
O nosso já conhecido Miguel Ferreira de Souza, capitão do terço dos pardos de
Mariana, foi um destes indivíduos que vislumbrou uma possibilidade de ascensão social para
os homens de cor livres e libertos da capitania de Minas Gerais através do alvará de 1773.
Sentenciado em 1798 por divulgar entre os escravos de Mariana que haviam de ser libertos
devido ao sobredito alvará, em carta enviada à Rainha em 1796, porém, não eram os escravos
que estavam em questão. Nela, expôs o que considerava como um tratamento injusto e
negligente conferido pelas autoridades da capitania para com os pretos e pardos libertos. 365
Procedendo a uma descrição das obras prestadas ao Estado por esta qualidade de
homens, procurava formar deles uma imagem positiva perante a rainha, pois nas Minas eram
“os que mais se empregam, com todo o zelo e prontidão, em tudo que é do Real Serviço de
Vossa Majestade”. Nos sertões daquelas paragens eram os responsáveis pela captura dos
escravos fugidos, conquistavam os “índios bravos” e ainda descobriam o ouro. Ainda se
remetendo aos terços de pardos e pretos formados por ordem da carta régia de 1766, lembrava
da participação destes terços em campanhas militares fora da capitania, como nas guerras
contra os espanhóis, ocorridas nas décadas de 1760 e 1770 no Sul da América portuguesa. 366
Da mesma forma que nas lamúrias do mestre-de-campo do Recife, alegava que após
todos esses serviços “os prêmios que dão aos ditos é serem desprezados”, visto que não eram
admitidos em qualquer ofício público. Além disso, “nem sequer os admitem nas ordens 3.ª e
irmandades do sacramento e outras, por modo de desprezo”. Note-se que a noção de desprezo
constituía aspecto comum nos discursos destes sujeitos. Entretanto, acredita-se que seu
sentido ia além da pura retórica, visto que buscava ressaltar a oposição entre as atitudes das
autoridades coloniais das Minas e aquelas emanadas do monarca para com os homens de cor,
pois: “por mais que Vossa Majestade os queira amparar na dita Capitania (...) se não cumprem
as ordens de Vossa Majestade (...) nem se atendem aos merecimentos dos ditos, e antes são
desprezados, e aperreados”. Conforme sua perspectiva, esta situação constituía grande
365
Cf: Carta de Miguel Ferreira de Souza, morador na cidade de Mariana, expondo a Rainha a situação dos
homens pardos e pretos libertos que estão sujeitos a todos dos serviços e perigos, pedindo para eles ajuda. AHUMG, cx. 142, doc. 23. Mariana, 19 de junho de 1796.
366
Para mais informações acerca dessas guerras e da participação das tropas de pretos e pardos ver: SOUZA,
Fernando Prestes de; PAULA, Leandro Francisco de; SILVA, Luiz Geraldo. A guerra luso-castelhana e o
recrutamento de pardos e pretos: uma análise comparativa (Minas Gerais, São Paulo e Pernambuco, 1775-1777).
In: SANTOS, A. C. de A.; DORÉ, A. (Orgs.). Temas setecentistas: governos e populações no império
português. Curitiba: UFPR-SCHLA/Fundação Araucária, 2008. p. 67-83.
119
negligência às leis de D. José I, o qual “permitiu por sua piedade a determinar por lei sua (...)
para não viverem em perpétuo cativeiro, a estes que foram admitidos como vassalos leais de
Vossa Majestade em todos os empregos e honras do seu Real Serviço”. A lei referida por
Miguel era o alvará de 1773, o qual se encontrava anexado em sua carta. Assim, com base nas
inovações legislativas do reinado josefino, Miguel rogava para que pardos e pretos libertos
pudessem desfrutar dos privilégios até então restritos àqueles grupos sociais considerados
habilitados. Às autoridades da capitania deveria ser ordenado que por “editais e portarias faça
publicar as ditas leis para que chegue à notícia de todos”. Para si, solicitava o posto de
sargento-mor pago, condição do cargo que só ocorria quando ocupado por homem branco.
O caso do pardo Miguel Ferreira já foi objeto de análise em alguns trabalhos
historiográficos. Ramon Fernandes Grossi abordou-o como um exemplo do reconhecimento
do lugar social diferenciado de pardos e pretos. Não buscava, portanto, a igualdade de
tratamento. Já na perspectiva de Laura de Mello e Souza, seria representativo das aspirações
por igualdade jurídica entre pardos e brancos. Apresentando uma compreensão semelhante a
da autora, Marco Silveira, porém, considerou também as condições específicas da capitania de
Minas, tratando-o sob uma ótica mais processual, a partir da noção de “acumulação de força”
política da qual passaram a gozar esses grupos ao longo da segunda metade do século
XVIII. 367
Fica explícito no raciocínio do pardo Miguel Ferreira que o reinado josefino
constituíra um marco no que diz respeito à condição dos homens de cor libertos e livres.
Como vimos, de acordo com sua perspectiva, o alvará de 1773 teria lhes alçado à categoria de
vassalos, o que implicava a elevação de seu status, abrindo-lhes caminho para a equiparação
de condição com os homens brancos. De fato, esta imagem de mudança no que dizia respeito
à condição destes indivíduos parece ter sido comum aos discursos de homens pardos de
variadas localidades da América portuguesa. O conhecimento das inovações legislativas
daquele período suscitou demandas muito bem embasadas e que pressionavam o Estado no
sentido de dar respostas a estas expectativas, as quais colocavam em questão as tradicionais
normas que determinavam a habilitação ou a inabilitação deste grupo social.
Orientados por este conhecimento, os pardos de Vila Boa, capitania de Goiás,
encaminharam uma representação ao príncipe regente D. João no ano de 1803. Nela, a qual
fora assinada de punho próprio por 60 homens, a maioria integrantes de corpos milicianos
367
GROSSI, Ramon. O dar o seu a cada um..., p. 203; SOUZA, Laura. de M. e. Coartação – Problemática e
episódios referentes a Minas Gerais no século XVIII. In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da (Org.). Brasil:
Colonização e Escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 279; SILVEIRA, Marco Antonio.
Acumulando forças..., p. 17.
120
formados por pardos, assim como na carta de Miguel Ferreira, apresentavam-se como “os
vassalos mais úteis ao Estado nesta colônia e que muito mais seriam se nela houvesse
observância das leis de Vossa Alteza, que sabiamente favorece e habilita a todos para
qualquer emprego da sociedade civil”. 368 Também para estes pardos o que conformava um
vassalo útil ao Estado eram os serviços prestados em matéria militar. Note-se que nos
discursos empreendidos por estes indivíduos esta foi a principal “moeda de troca” nas
relações entre eles e o poder central. Em decorrência, alegavam uma série de expedições aos
sertões, nas quais eram os principais efetivos. Porém, “assim mesmo são os suplicantes
tratados com diferença, apesar das graduações militares com que os respectivos governadores
os têm condecorado, e da inteligência, capacidades e boa instrução que muitos deles têm para
qualquer emprego da República”. 369 A fim de exemplificar esta situação, remeteram-se aos
casos de alguns pardos impedidos de adentrarem nos empregos da justiça e câmara daquela
vila, o que constituiria um desrespeito ao alvará de 16 de janeiro de 1773. Novamente os
responsáveis pela errônea interpretação da lei eram as autoridades locais, “homens cheios de
fanatismo e inimigos capitais da humanidade”. Estes, atrelados aos tradicionais padrões
hierárquicos, pautavam-se na carta régia de 27 de janeiro de 1726, a qual, porém, “o mesmo
Alvará de dezesseis de janeiro de mil setecentos e setenta e três parece revogar”. 370
No discurso em prol destes pardos chama atenção a compreensão que tinham das
novas diretrizes régias acerca da quebra das notas de inabilidade que desde meados do século
XVIII tornaram-se correntes. Entendiam que o alvará de 16 de janeiro de 1773 era
corroborado pela carta de lei constituição geral e edito perpétuo de vinte e três de
maio de mil setecentos setenta e três, no parágrafo terceiro, e a providência dada a
favor dos mestiços da Índia, que como [] inábeis para honras, dignidades,
empregos, postos e ofícios, que mandou o soberano fossem tratados como reinóis, e
como tais fossem providos sem diferença alguma.
Se relembrarmos os termos constituintes destas leis, os quais já foram analisados
anteriormente, perceberemos como a argumentação dos pardos de Goiás era plena de
coerência. No mencionado parágrafo terceiro da lei sobre o fim das distinções entre cristãosnovos e velhos declarou-se que a única situação que conduziria à inabilidade, estendida até a
368
Cf: Consulta do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D. João, sobre a representação dos Homens Pardos
da capitania de Goiás, solicitando a admissão ao serviço das Câmaras da capitania, em qualquer emprego
público, por possuírem as habilitações necessárias, não obstante sua cor. AHU-GO, cx. 47, doc. 2700. Vila Boa,
7 de janeiro de 1804.
369
Grifos meus.
370
Cf: Ordem de 27 de janeiro de 1726. APM. Fundo: Secretaria de Governo da Capitania (Seção Colonial).
Título: Coleção sumária e sistemática de leis, ordens, cartas e mais atos régios concernentes à administração da
capitania (1708-1788), fl. 17.
121
terceira geração, era o crime de lesa-majestade, divina ou humana. Fora este grupo, “todos, e
quaisquer dos outros vassalos naturais dos meus reinos, e seus domínios” passariam a ser
considerados hábeis. 371 Já no que diz respeito aos naturais da Índia, sujeitos igualmente
“mestiços”, por alvará de 2 de abril de 1761 foram elevados à condição de vassalos
habilitados, e admitidos a todas as honras, dignidades e empregos, desde que se mostrassem
capazes. 372
Ora, perante signos tão evidentes de que havia uma política régia amputando as notas
tradicionais de inabilidade, certamente aos pardos de Goiás, assim como aos outros dos quais
temos tratado, pareceria incoerente continuarem sendo desprezados e concluíam: “parece que
não deverão ser tratados os suplicantes como inábeis para qualquer emprego da República, a
bem do Estado, sendo que tenham a capacidade e inteligência precisa para os exercer, só pelo
defeito da cor”. 373
O destaque que venho conferindo aos termos capacidade e inteligência se deve à
extrema importância que estas duas noções assumiram nos discursos dos requerentes pardos
aqui analisados. O pardo Vicente Ferreira Guedes, da capitania do Maranhão, em face dos
protestos por ter sido nomeado pelo governador mestre-de-campo de um terço composto por
brancos e ter recebido a confirmação régia da patente, não deixou de arquitetar uma defesa em
cujo centro estavam as suas qualidades individuais e a legislação. 374 Acusado pelos oficiais
brancos do dito terço, os quais também eram membros da câmara, de que nele “(...) reinava o
espírito de orgulho, que era homem de acidente pardo, e que era mau”, elaborou um discurso
que ressaltava, em primeiro lugar, como as atitudes daqueles homens eram contrárias a
soberania régia: “não há coisa mais estranha que o por em litígio a disposição do príncipe. Se
a lei é ou não justa, só pertence ao soberano o decidir nunca ao magistrado”. No caso, a falta
dos ditos oficiais se dava devido ao questionamento de uma patente com confirmação régia.
Por outro lado, ao caracterizar o homem que, segundo ele, desejava ocupar em seu lugar o
posto de mestre-de-campo, Ignácio de Araújo, homem branco integrante da câmara, o
371
Cf: Lei de 25 de maio de 1773. In: SILVA, A. D. da. Collecção da Legislação Portugueza desde a última
Compilação das Ordenações. Legislação de 1763 a 1774. Lisboa: Typografia Maigrense, 1829. p. 672-678.
372
Cf: Alvará de 2 de abril de 1761. In: SILVA, António Delgado da. Collecção da Legislação Portugueza desde
a última Compilação das Ordenações. Legislação de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia Maigrense, 1830. p. 793795. Grifo meu.
373
Grifos meus.
374
Cf: Ofício de Vicente Ferreira Guedes, mestre-de-campo, para o secretário de Estado da Marinha e Ultramar,
Martinho de Melo e Castro, a defender-se dos procedimentos de que era acusado pelos oficiais da companhia de
infantaria auxiliar do terço da vila de Santo Antonio de Alcântara, que pediam a anulação da patente de mestre
de campo que lhe tinha sido concedida. AHU-MA, cx. 61, doc. 5559. Maranhão, 21 de janeiro de 1784.
122
descrevia como alguém “sem mais merecimento que o de ser soberbo e rico”, passando, então,
à descrição de suas qualidades:
Não quero nem devo por na presença de Vossa Excelência, neste caso, lembrar-me
da minha ascendência, quando me parece que só bastará dizer, que eu fiz certo a
Vossa Majestade os meus serviços, e emprego (...) a menor ocupação que tenho
exercido é a de advogado dos auditórios, de donde fui chamado para vogal da junta
da justiça desta capital, por um general de tanta inteireza, como foi Joaquim de
Melo e Povoas. (...) sabendo-me conter nos limites da moderação, regulei sempre
os meus costumes e comportamento de tal modo que vivi, e vivo, como os homens
honrados devem viver: E um vassalo que assim se conduz e que se reveste de
idoneidade, ainda que fosse infeliz no seu nascimento, de cujo sucesso não tem
culpa, é capaz de ser olhado do seu soberano: Sua Majestade o disse na lei de 16 de
janeiro de 1773. 375
De forma muito semelhante à lógica já empregada em outros discursos aqui analisados,
Vicente Ferreira Guedes lembrava ao secretário de Estado que “Vossa Excelência sabe bem,
que a idoneidade do sujeito e o seu merecimento, é que o constitui capaz das honras, e não o
acidente”. 376 Sagaz, o mestre-de-campo ainda alegava que tinha “bem fundado este meu
conceito” na resolução régia passada a um advogado pardo seu conterrâneo e “também na
disposição da citada lei de 16 de janeiro de 1773”. Ao fim de sua exposição, rogava ao
secretário para que levasse seu ofício à rainha para que ela reprimisse e desprezasse “o
orgulho daqueles maus homens”, visto que questionavam uma patente confirmada pela mão
régia e desprezavam a lei de 16 de janeiro de 1773.
Fica evidente que a identidade construída por esses homens pardos era orientada por
critérios que buscavam refutar o princípio segundo o qual ser pardo constituía um “defeito”
que lhes obstava o exercício de cargos e o recebimento de honras. Ser inteligente e capacitado
estava diretamente ligado a atributos individuais. Conforme definição de Bluteau, o
merecimento “se toma por boas partes, boas qualidades, prendas, que fazem os homens
dignos de prêmio, de ser promovidos, &c.”. 377 Assim, para os pardos ser merecedor da graça
régia era decorrência de todas estas qualidades somadas aos serviços militares prestados ao
Estado e, por conseguinte, a ascendência africana – e o passado escravo que ela pressupunha –
não poderia ser tomada como um entrave para suas aspirações. 378 É interessante notarmos que
375
Grifos no original.
Grifos meus.
377
Cf: Verbete “Merecimento”. In: BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino...
378
Também na América espanhola, como observou Carmem Bernand, os indivíduos provenientes das castas, por
não terem a seu favor a honra familiar, acentuavam seus méritos individuais ao reclamarem o recebimento de
honras e postos públicos. Ao agirem assim, estes sujeitos se situavam numa perspectiva “moderna”, na qual o
individualismo e a capacidade de cada um é o critério mais ressaltado. BERNAND, Carmen. Negros esclavos y
libres en las ciudades hispanoamericanas. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (Dir. e Coord.). Nuevas Aportaciones
a la Historia Jurídica de Iberoamérica. Madrid: Fundación Histórica Tavera, 2000, p. 108.
376
123
esta concepção era completamente oposta às ordens tradicionais a respeito dos pardos. Se
retomarmos o parecer do Conselho Ultramarino remetido à capitania de Minas Gerais em
1725 veremos que naquele contexto a capacidade dos sujeitos era determinada por seu
pertencimento ao estado dos considerados de “limpo nascimento”. 379
Em meio a este arcabouço argumentativo ancorado nas capacidades e merecimentos
individuais vinha somar-se o alvará de 16 de janeiro de 1773, o qual representou para estes
pardos o fim das restrições sociais impostas àqueles com ascendência africana. Era o esteio
legal que lhes inspirava a ação em busca do reconhecimento perante a Coroa através da
elevação de seu status para a categoria social de “vassalos habilitados”.
Quando pensamos nas experiências vividas por pardos, libertos e livres, no Brasil das
últimas décadas do século XVIII e primeiros anos do XIX a imagem que devemos ter em
mente é a de que estavam imersos num período no qual inovações legislativas, acompanhadas
pelo “espírito do século”, coexistiam com noções que concebiam os grupos sociais a partir de
sua hierarquização com base, dentre outros critérios, na ascendência. Assim, em situações nas
quais os indivíduos brancos viam seus privilégios e cargos sendo requeridos e, por vezes,
ocupados por pardos não hesitavam em lançar mão de seus direitos como homens de limpo
nascimento, recorrendo a disposições legais como a ordem régia de 1726 ou depreciando o
caráter dos mulatos. Na visão dos camaristas de Vila Boa, por exemplo, além da mencionada
ordem régia, era possível afirmar que os mulatos “(...) quase todos são de péssima conduta e
que por acaso se vê um de cem que seja bom e que mereça estimação, ou seja, digno de
emprego (...) Esta mistura ou defeito da natureza que até é proibida por [Deus] nos animais
irracionais os faz sempre viver em ódio com os brancos limpos de sangue”. 380
Em face deste embate de forças, o posicionamento de autoridades coloniais como os
governadores não foi homogêneo, mas se têm indícios de que alguns concebiam que o alvará
379
Cf: Parecer do Conselho Ultramarino para que não possa ser eleito vereador ou juiz ordinário homem que seja
mulato até o quarto grau ou que não for casado com mulher branca. Lisboa, 25 de setembro de 1725. AHU-MG,
cx. 7, doc. 26.
380
Cf: Carta dos oficiais da Câmara de Vila Boa, ao príncipe Regente, D. João, sobre as arbitrariedades e
comportamentos despóticos do governador e capitão-general de Goiás, D. João Manuel de Menezes,
nomeadamente nas prisões abusivas e perseguições violentas cometidas contra magistrados e pessoas de bem da
capitania, protegendo as piores e dignas de reparos, como os pretos, mulatos e cativos, para grave prejuízo e
desordem das fábricas e de seus senhores, assim como da Fazenda Real, e solicitando, para isso, a sua
substituição e a aplicação das leis de proibição da incorporação de mulatos e homens brancos casados com
mulatas, em cargos públicos e militares, em particular nas Companhias de Dragões, Milícias e Ordenanças de
Goiás. AHU-GO, cx. 45, doc. 2650. Vila Boa, 2 de março de 1803; Carta da câmara da vila de Santo Antonio de
Alcântara para a Rainha D. Maria I, sobre o mulato Vicente Ferreira Guedes, ter recebido a patente de mestre-decampo auxiliar da vila de Alcântara. A câmara informa que ele esteve preso e depois de sair da prisão praticou
más ações não sendo digno da patente que obteve. AHU-MA, cx. 60, doc. 5530. Lisboa, 22 de novembro de
1783; Representação dos oficiais da câmara de Vila do Príncipe contra os casamentos dos brancos com mulatos e
vice-versa, solicitando ordem régia sobre o assunto. AHU-MG, cx. 80, doc. 32. Vila do Príncipe, 28 de abril de
1762.
124
de 16 de janeiro de 1773 havia tornado os pardos habilitados para todos os empregos e honras,
como foi o caso de José César de Meneses quando se referia ao requerimento do mestre-decampo pardo Luis Nogueira de Figueiredo. 381 Conforme os camaristas de Vila Boa, o
governador D. João Manoel de Meneses foi o responsável por divulgar entre os pardos o
alvará de 1773 e depois disso “entravam os mulatos desta capital requererem ser iguais em
honras, ofícios e dignidades como os homens brancos, servindo-se como tais dignos de igual
estimação”. 382 Também Martim Lopes Lobo de Saldanha, governador da capitania de São
Paulo, recorreu, em 1776, às “novíssimas leis de sua majestade” para conter os protestos por
parte de militares brancos ao serem impelidos a servirem em tropas mistas, juntamente com
pardos. 383 Já para Bernardo José de Lorena, governador da capitania de Minas Gerais, o
alvará de 16 de janeiro de 1773 alegado pelo pardo Miguel Ferreira de Souza não tinha
validade para o Brasil e admoestava: “parece-me será muito prejudicial se Sua Majestade
favorecer mais em geral aquela casta de gente, de que a tem já favorecido pelas suas sábias e
justíssimas leis”. 384
Nos casos analisados, no que diz respeito à postura do Conselho Ultramarino e, por
conseqüência, do rei para com as demandas dos homens pardos, o tom das decisões quando se
tratava de pedidos coletivos parece ter sido o da cautela. D. Rodrigo de Souza Coutinho,
secretário de Estado da Marinha e Ultramar, advertia, em 1798, Bernardo José de Lorena,
então o governador de Minas Gerais, sobre as pretensões encaminhadas pelo pardo Miguel
Ferreira de Souza para que tivesse “muito cuidado que esta gente nem deve ser oprimida, nem
muito favorecida”. 385 Por sua vez, no parecer emitido pelo Conselho Ultramarino à
representação dos pardos de Goiás assentava-se que “será mais prudente, mais conforme a
quietação de que muito precisa a capitania de Goiás (...) que este requerimento e novo sistema
dos suplicantes, não tenham progresso algum”. Conforme os conselheiros, os americanos
pardos tinham “espírito vivo, ardilosos, e sendo muito hábeis para as artes”, porém,
“transcendem pela sua vivacidade os limites da prudência, sem a qual não pode haver governo
381
Cf: Carta do governador da capitania de Pernambuco, José César de Meneses, ao rei D. José I, sobre as
dúvidas na habilitação... AHU-PE, cx. 122, doc. 9319.
382
Cf: Carta dos oficiais da Câmara de Vila Boa... AHU-GO, cx. 45, doc. 2650.
383
Cf: Oficio do General Martim Lopes Lobo de Saldanha para o Capitão Romualdo José de Pinho e Azevedo da
Vila de Itu. São Paulo, 15 de agosto de 1776. D.I., v. 76, p. 37-38.
384
Cf: Carta de Bernardo José de Lorena, governador das Minas Gerais, a D. Rodrigo de Sousa Coutinho,
secretário de Estado dos Domínios Ultramarinos, a respeito das queixas feitas pelos homens pardos e pretos
libertos das Minas Gerais, o que tudo era uma mentira deles. AHU-MG, cx. 144, doc. 21. Vila Rica, 17 de abril
de 1798.
385
Cf: Carta de D. Rodrigo de Souza Coutinho, em nome do rei, para o governador de Minas, Bernardo José de
Lorena, sobre a petição dos homens pardos encabeçada por Miguel Ferreira. Palácio de Queluz, 3 de janeiro de
1798. APM. Fundo: Secretaria de Governo da Capitania (seção colonial). Título: Originais de cartas régias e
avisos – 283, fl. 3.
125
feliz”. Lembravam ainda os incidentes da Bahia de 1798, os quais teriam sido arquitetados
por esta “qualidade de homens”. Todas essas considerações comprovariam “a cautela e justas
medidas com que se deve tratar a pretensão dos suplicantes”. 386
Não obstante os pareceres receosos e negativos para com as demandas coletivas dos
pardos, individualmente as possibilidades de reconhecimento de seus méritos eram maiores.
Lembremos dos casos do mestre-de-campo e depois coronel do Recife Luís Nogueira de
Figueiredo, o qual fora condecorado com o hábito de São Tiago, e o pardo do Maranhão
Vicente Ferreira Guedes, mestre-de-campo de um terço composto por homens brancos, que
ocupou cargos da justiça e esteve imerso em jogos políticos na vila de São Luís, tendo
inclusive a conivência do governador. 387
Observo que a política levada a efeito pela Coroa no que dizia respeito aos homens de
cor livres da América portuguesa nesse contexto era composta por medidas em nada
homogêneas. Se, por um lado, a habilitação dos libertos garantida pelo alvará de 1773 fora
restrita a Portugal, por outro, expressou o interesse em dar fim às distinções provenientes da
cor na América portuguesa logo no início do século XIX. O alvará de 17 de dezembro de
1802, que tratava das qualidades requeridas aos oficiais dos corpos milicianos, traz
considerações enfáticas sobre os milicianos de cor:
Sendo porém muito conveniente ao Meu Real Serviço, e inteiramente conforme aos
princípios da Razão, e Direito natural, que eu procure como pai comum de todos os
meus vassalos desterrar de seus ânimos a odiosa preocupação, com que muitos
ainda consideram a diferença das cores como um princípio, de que devem resultar
diversos direitos entre aqueles, em que se não dá a uniformidade deste acidente; e
querendo por outra parte dar a todos os meus vassalos Pretos, e Pardos uma prova
irrefragável de que os considero habilitados para todas as Honras, e Empregos
Militares, a que serão efetivamente elevados, segundo o seu pessoal
merecimento. 388
386
Cf: Consulta do Conselho Ultramarino ao príncipe regente D. João, sobre a representação dos Homens Pardos
da capitania de Goiás... AHU-GO, cx. 47, doc. 2700.
387
Cf: Ofício do governador e capitão-general do Maranhão e Piauí, Joaquim de Melo e Póvoas, para o secretário
de estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, referente à oposição do juiz de fora do Maranhão,
Henrique Guilhon, à nomeação, para vogal da Junta da Justiça da mesma capitania, do capitão Vicente Ferreira
Guedes. AHU-MA, cx. 52, doc. 4981. Maranhão, 13 de outubro de 1777; Carta do governador e capitão-general
da capitania do Maranhão e Piauí, Joaquim de Melo e Póvoas, para a rainha D. Maria I, em resposta à provisão
sobre o requerimento de Vicente Ferreira Guedes, solicitando o ofício de procurador da Coroa e Fazenda do
Maranhão, uma vez que o actual procurador, José Machado de Miranda, exerce o seu cargo sem provisão do
Conselho Ultramarino desde 1750, por ordem de Francisco Pedro de Mendonça Gorjão. AHU-MA, cx. 53, doc.
5072. Maranhão, 31 de dezembro de 1778; Carta do capitão Vicente Ferreira Guedes para a rainha D. Maria I,
sobre as irregularidades de Miguel Marcelino Veloso e Gama, de Henrique Guilhon e de Francisco Xavier de
Carvalho, na administração da Fazenda Real. AHU-MA, cx. 57, doc. 5299. Maranhão, 22 de maio de 1781.
388
Cf: Alvará pelo qual se regulou o modo como deveriam ser feitas as promoções dos diversos postos dos
regimentos de milícias dos domínios portugueses da América. AHU-BA (E.C.A.), cx. 131, doc. 25846. Lisboa,
17 de dezembro de 1802.
126
Conforme explicitado na lei, constituía objetivo do monarca banir do pensamento social as
concepções que tomavam a cor como signo de distinção entre os súditos, o que garantia
direitos a certos grupos sociais em detrimento daqueles com ascendência africana. Fica
evidente que os desígnios expressados no alvará estavam de acordo com os princípios da
monarquia absolutista, os quais buscavam cercear os privilégios dos corpos, tornando-se o
soberano o principal árbitro das distinções conferidas aos vassalos.
Por via dos vestígios deixados por estes pardos através da manifestação de seus
anseios, podemos deles ter algumas impressões. Em primeiro lugar, que eles constituíam
possivelmente uma espécie de elite entre os homens de cor livres. Como integrantes de corpos
militares essenciais ao Estado, neles ocupando postos de comando, e como indivíduos
instruídos desfrutavam de um lugar social distinto se comparado com seus pares carentes
destes atributos. Observamos que estas duas características foram as mais ressaltadas nas
demandas e confluíam para a noção de merecimento. Ademais, esses pardos formavam
grupos de pressão, os quais souberam manejar com destreza a legislação promulgada durante
o reinado de D. José I, tendo no alvará de 16 de janeiro de 1773 seu principal esteio. Em
última instância, ao requererem empregos e dignidades que em teoria lhes eram negados
colocavam ao poder central os efeitos de uma política que ao lançar as bases para o
enfraquecimento das prerrogativas dos corpos privilegiados criava um campo de expectativas
para esses sujeitos. De fato, o período de transição no qual estavam imersos não lhes passou
despercebido e prontamente lançaram-se na arena política em busca da consolidação de um
status superior: de, enfim, tornarem-se “hábeis para todos os ofícios, honras e dignidades”.
***
Entre os temas debatidos nas Cortes Constituintes de Lisboa em 1822 estava a
extensão ou não do direito de votar para libertos e seus descendentes. Na sessão do dia 17 de
abril de 1822, após as discussões sobre a obrigatoriedade ou não da instrução como critério na
definição dos cidadãos, “entrou depois em discussão outra indicação do Sr. Miranda, em que
propunha que os libertos e seus filhos não tivessem direito de votar”. 389 Aqui retomo algumas
das reflexões tecidas a essa proposta, pois refletem certas representações relativas aos libertos
e seus descendentes bem como do tratamento a eles conferido pelo Estado que remontavam
ao século XVIII.
389
Cf: Sessão do dia 17 de abril de 1822. Diario das Cortes Geraes, Extraordinarias e Constituintes da Nação
Portuguesa. T. V. Lisboa: Imprensa Nacional, 1822. p. 838.
127
Na perspectiva do deputado Custódio Gonçalves Ledo, do Rio de Janeiro, não havia
razão para privar os libertos deste direito, e assentava: “há muitos libertos no Brasil, que hoje
interessam muito à sociedade e têm grandes ramos de indústria; muitos têm famílias; por isso
seria a maior injustiça privar estes cidadãos de poderem votar, e até poderia dizer que é
agravar muito o mal da escravidão”. 390 Conforme José Vitorino Feio, deputado pelo Alentejo,
“os homens nascem todos iguais, e todos livres. O ser escravizado é uma desgraça, e o ser
filho de escravo ou de liberto é um acidente”. Para ele, não seria conforme a razão punir uma
desgraça ou acidente com uma pena tão dura quanto vedar-lhes um direito elementar dos
cidadãos. 391 Já o raciocínio do deputado baiano José Lino Coutinho tomava como base a
comparação entre o que ele denominou de “sistema antigo” – entenda-se Antigo Regime – e o
“sistema liberal”. Afirmava ele que “o sistema antigo não fazia distinção de libertos para os
elevar a grandes dignidades. Temos libertos que são capitães de milícias e outros coronéis,
etc”. E concluía: “Ora, se o sistema antigo não fazia exclusão dos libertos, como há de fazê-la
o sistema liberal e constitucional?”. 392 Por fim, gostaria de salientar a argumentação do
deputado baiano Marcos Antonio de Sousa:
Sr. Presidente, admitida esta indicação se iria fazer um grande cisma no Brasil,
aonde um terço da sua população consta de libertos, e entre eles há homens de
muita inteireza e probidade: por isso não devem ser excluídos de modo algum. Nós
não estamos no caso de admitir todas as coisas do direito romano; e além disso
existem em seu vigor as leis do Sr. D. José, pelas quais era concedido aos libertos
servirem cargos públicos: o Marquês de Pombal conheceu que esta medida era
necessária para o Brasil, para bem do qual se deviam empregar estes homens. Não
devemos, pois, estabelecer princípios de tanta restrição, que certamente nada
convêm e hão de produzir muita intriga. Mas o que devemos fazer é unir todos os
cidadãos, constituir uma boa sociedade e não provocar a discórdia, que é de que
poderia servir esta indicação. 393
Ao fim das explanações, “declarada a matéria suficientemente discutida, procedeu-se a
votação, e decidiu-se unanimemente que os libertos pudessem votar”. 394 O que gostaria de
salientar das falas dos deputados são suas considerações históricas a respeito da integração
social dos libertos e seus descendentes no Brasil do Antigo Regime, ou, como denominava o
deputado Lino Coutinho, do “Antigo Sistema”. Observavam que nesse período os libertos e
seus descendentes não seriam constrangidos com impedimentos para o exercício de empregos
públicos e recebimento de dignidades. A este respeito note-se que o deputado Marcos Antonio
de Sousa lembrava que o alvará de 16 de janeiro de 1773 concedeu aos libertos o direito de
390
Idem.
Idem.
392
Idem, p. 839.
393
Idem.
394
Idem, p. 840.
391
128
adentrarem nos serviços públicos e que a lei ainda estava em vigor. Conforme ele, tal medida
teria sido destinada pelo marquês de Pombal também ao Brasil.
Ao longo dessa dissertação vimos que a pretensa igualdade conferida aos libertos e
seus descendentes aludida pelos deputados não condizia com a realidade da América
portuguesa do Antigo Regime. Apesar de muitos pardos livres terem galgado posições de
destaque naquela configuração social, sua plena integração como habilitados para todos os
ofícios e honras nunca foi decretada de fato. Observamos que em situações de concorrência
por cargos ou dignidades entre brancos e homens de cor livres, o emprego do estigma da cor
figurava como um dos principais suportes à exclusão desses atores sociais. Contudo, notamos
também que o conhecimento das mudanças legislativas da segunda metade do século XVIII
pela população de cor livre deu suporte às suas reivindicações por equiparação aos homens
brancos no que concernia à categoria de habilitados. De certa forma, a observação do
deputado Marcos Antonio de Sousa segundo a qual o alvará de 1773 havia sido estendido para
a América portuguesa sugere a perenidade de uma idéia que desde 1773 povoava as mentes de
homens de cor livres. Como ficou explícito nesse trabalho, o sobredito alvará deu origem a
um campo de discussões em toda a América portuguesa cujo foco era a elevação do status
social desses indivíduos. Dessa forma, sugere-se aqui que nos debates sobre a cidadania na
conjuntura das Cortes da Nação Portuguesa, em 1822, a extensão desse direito a libertos e
seus descendentes não pôde ser ignorada pelos deputados em função do peso social e político
conquistado por esses grupos no Brasil, principalmente a partir de meados do século XVIII.
Negar-lhes esse direito elementar, como alertava o deputado baiano Marcos de Sousa,
provocaria grandes inquietações no Brasil. Sua admoestação sugeria que os debates em torno
da equiparação entre os homens de cor livres e os brancos, levados a efeito pelos primeiros ao
longo de toda a segunda metade do século XVIII, o que, em parte, se viu nessa dissertação,
confluíram para a politização dessas camadas sociais. Dessa forma, a extensão da cidadania a
esses sujeitos deve ser entendida não apenas como decorrência do ideário liberal que então
começava a despontar como o principal modelo ordenador da sociedade, mas também como
resultado das pressões advindas da população de cor livre desde fins do Antigo Regime.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas páginas até aqui percorridas conhecemos aspectos significativos das histórias de
homens negros e pardos, habitantes da América portuguesa, que provavelmente ficariam
perdidos caso não optassem por apelar ao monarca clamando pela justiça régia. No que diz
respeito aos escravos, mediante suas súplicas buscavam ascender à categoria de libertos e, no
que tange aos homens livres de cor, em sua maioria pardos, à de vassalos habilitados. Viu-se
que a época na qual aqueles sujeitos estavam imersos, qual seja, a segunda metade do século
XVIII e início do XIX, foi caracterizada por importantes mudanças nas concepções acerca do
poder régio bem como sobre a própria estruturação da sociedade. Em Portugal, esse processo
foi iniciado a partir de 1755 quando o monarca D. José I conferiu total autonomia ao ministro
de Estado Sebastião José de Carvalho e Melo – desde 1769 o marquês de Pombal.
O projeto político pombalino, fortemente inspirado em preceitos ilustrados, tinha
como linhas mestras, de um lado, modernizar o reino português e, de outro, legitimar a
soberania régia frente aos demais grupos de poder. A reforma do Estado teve no conceito de
civilização um de seus principais esteios, pois se buscava equiparar Portugal a um padrão de
civilidade tido por comum a outros reinos da Europa. Destacou-se que foi o paulatino
estabelecimento do monarca como o depositário único de todo o poder o princípio que
possibilitou alterações expressivas na estrutura social. Esse aspecto constituiu um dos pontos
centrais do trabalho ora finalizado, visto que através desse ideário político foram lançadas as
bases para a homogeneização da sociedade, a qual passaria a ser ancorada na imagem
soberano-súditos em contraposição ao modelo corporativo. Assim, negava-se a visão
naturalizada sobre as hierarquias sociais ao mesmo tempo em que ao monarca dava-se a
possibilidade de interferência direta nos privilégios conferidos a grupos e indivíduos.
Levadas a efeito através de disposições legais, a elevação de indígenas, naturais da
Índia, libertos e cristãos-novos à condição de vassalos habilitados ao recebimento de honras,
mercês e ao acesso a cargos na governança que até então lhes eram negados constituiu um dos
objetivos centrais das diretivas pombalinas. Dessa maneira, colocavam-se em prática os novos
princípios organizadores do corpo social. Observou-se que na representação de sociedade
presente a essas leis todos os que viviam sob a égide da monarquia portuguesa passaram a ser
tratados genericamente como vassalos. Como foi notado, essa categoria é central para a
compreensão do novo ordenamento da sociedade e do poder arquitetado pelo marquês de
Pombal. A partir desse momento, as distinções de cada sujeito seriam conferidas não mais por
prerrogativas provenientes do status de nobreza ou pela ascendência, mas sim tomando-se
130
como base critérios fundamentados essencialmente em atributos individuais: dava-se destaque
notadamente à importância dos serviços prestados à monarquia portuguesa e, em seguida, à
valorização do grau de instrução e da posse de bens.
A despeito de tais orientações, a escravidão foi tratada de forma heterogênea pelo
Estado português. No seio do império luso, a partir da segunda metade do século XVIII e
principalmente através de obras literárias, começaram a ser disseminadas opiniões de cunho
ilustrado que questionavam muitas das justificativas tradicionais para a escravidão dos negros.
Princípios como o da guerra justa, extensão da condição jurídica da mãe ao filho e a ligação
entre cor da pele e escravidão passaram a ser paulatinamente refutados. Entravam no debate a
idéia da humanidade comum a todos os homens e a valorização do direito natural como a
mais importante regra legal que legitimava a liberdade. Contudo, o arcabouço teórico da
ilustração também servia aos interesses escravistas, dimensão esta presente em obras literárias
produzidas principalmente por ilustrados luso-brasileiros que buscaram normatizar o tráfico e
a escravidão, dotando-lhes de racionalização. O fim almejado era a rentabilidade máxima do
trabalho escravo.
Nesse contexto, os alvarás de 19 de setembro de 1761 e de 16 de janeiro de 1773
foram elaborados tendo em vista aspectos econômicos e ideológicos. Promover o lento e
gradual fim da escravidão em Portugal e, ao mesmo tempo, retirar a nota de infâmia aos
libertos foi requisito elementar no projeto político pombalino para a concretização dos anseios
modernizadores. Procurava-se tornar a população peninsular economicamente ativa e,
concomitantemente, extirpar do reino o signo de incivilidade representado pela escravidão. A
promulgação desses alvarás ocasionou uma linha de corte entre Portugal e o Brasil na medida
em que procurava fazer daquele um espaço de civilidade, no qual princípios morais tinham
validade, e deste um reduto da escravidão. Todavia, esta cisão não passou despercebida aos
que habitavam “além da linha” e o conhecimento do alvará de 16 de janeiro de 1773 na
América portuguesa deu ensejo às aspirações de escravos e homens livres de cor. De fato, a
especificidade desse estudo foi perceber o potencial político inerente a essa lei quando dela
tomavam conhecimento as populações de cor do Brasil, interpretando-a a luz de seus anseios.
Para os escravos que transitavam de um a outro lado do Atlântico, fosse como
acompanhantes de seu senhores ou como serventes nos navios, a entrada em Portugal passou a
significar o passaporte para a liberdade. Entretanto, a concretização desse objetivo não se
dava de forma plácida, pois era precedida por intensos embates judiciais. Neles, o
posicionamento ideológico dos oficiais régios tornou-se fator decisivo para a resolução a
favor ou contra o escravo. Nos discursos presentes aos seus pareceres, foi comum a noção de
131
que a liberdade constituía matéria privilegiada pela monarquia portuguesa, o que era
corroborado pelo alvará de 19 de setembro de 1761 e aviso de 7 de janeiro de 1788.
Ao fim desta dissertação, espero ter conseguido demonstrar que as leis de 1761 e 1773
alteraram a natureza dos discursos sobre a liberdade no âmbito do império português. O
aumento notável dos requerimentos de liberdade encaminhados ao Conselho Ultramarino em
busca do arbítrio régio ao longo da segunda metade do século XVIII é indicativo das
mudanças que então se processavam. Este foi um período no qual o próprio teor das leis
portuguesas, representadas principalmente pelo alvará de 1773, deu ensejo a um ambiente de
opiniões que concebiam a escravidão a partir de sua desumanidade e contrariedade ao direito
natural. Além disso, nessas causas de liberdade prerrogativas assentadas no direito
costumeiro, como era o caso dos maus-tratos e a obrigação do senhor em conceder a alforria
mediante pagamento, tinham um peso retórico significativo, visto serem consideradas pelas
autoridades centrais. Ora, observou-se que quando se tratava de casos individuais, eram
maiores as chances de o monarca ou governadores coloniais julgarem a sentença a favor da
liberdade, mesmo contra a vontade dos senhores. Saliento que no contexto em questão, é
plausível afirmar que o Estado tinha legitimidade para interferir diretamente na relação
senhor-escravo, o que foi percebido através dos casos aqui examinados.
Ademais, as formas através das quais o conhecimento acerca do alvará de 1773 foi
disseminado entre a população de cor das várias capitanias do Brasil revelam aspectos
essenciais do modo como se processava a circulação do conhecimento nas sociedades de
Antigo Regime. Conjuntamente aos manuscritos produzidos essencialmente por pardos livres
e libertos, as conversas geradas no interior de redes de sociabilidades estiveram no cerne da
divulgação das idéias relativas à lei. Integrados nessas redes, possuindo graus de instrução
significativos, pardos livres e libertos tiveram um papel destacado como “intermediários
culturais”. Espera-se que o presente estudo tenha contribuído para o entendimento dessa
dimensão da vida de muitos homens de cor livres da América portuguesa.
De fato, foram os pardos livres os sujeitos que mais se apropriaram da lei de 16 de
janeiro de 1773. Para além da ascendência africana, tais homens tinham em comum serem
instruídos, comporem corpos militares essenciais à manutenção da estabilidade da colônia e,
por vezes, desempenharem funções de confiança em cargos da governança e justiça. Tais
atributos lhes conferiam um lugar social destacado no seio de suas comunidades bem como
perante o poder central, ou seja, conformavam verdadeiras elites no interior do grupo mais
vasto dos homens livres de cor. Nos requerimentos enviados por pardos livres à apreciação
régia durante o século XVIII, observou-se que a partir da segunda metade do período o
132
discurso articulado por eles passou a negar a vinculação da cor parda ao desprestígio social.
Para eles, a lei de 1773 significava a revogação das inabilidades imputadas aos de sua classe.
Esse entendimento era resultado do novo sentido que conferiam aos termos da lei, visto que
nela o fim da inabilidade era destinado a todos os libertos e não especificamente aos pardos.
Legitimados pelo alvará, refutavam os critérios de diferenciação social baseados na
ascendência e ressaltavam seus atributos individuais, sobretudo o serviço prestado ao Estado
nos corpos militares e seus significativos níveis de instrução. Finalizo essas considerações
com a observação de que os pardos não estavam sozinhos na luta contra as distinções sociais
fundadas na ascendência, pois fosse nas considerações de sujeitos como Ribeiro Sanches,
fosse na retórica das próprias leis pombalinas sobre o fim das inabilidades, havia um consenso
de que o tempo de tais hierarquias típicas de Antigo Regime estava chegando ao fim.
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