Miocardites em Atletas - Revista de Medicina Desportiva

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Miocardites em Atletas
é provavelmente subestimado, pois não
existe uma uniformidade na aplicação
dos critérios de diagnóstico de miocardite. O elevado número de casos assintomáticos, necessariamente não repor-
» Rev Medic Desp in forma, 2011, 2 (1), pp. 24–26,
2
Dra. Fátima Saraiva, Prof. Doutor Lino Gonçalves e Prof. Doutor Luís Augusto Providência
Serviço de Cardiologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra, EPE
tados, também dificulta um correcto
registo epidemiológico. As miocardites
atingem crianças e adultos, mas mais
tema
frequentemente jovens e indivíduos do
sexo masculino ( : =1,5:1)3.
abstract
A miocardite é uma inflamação do músculo cardíaco e uma das causas apontadas para a
morte súbita em atletas. A incidência global é rara e a prevalência maior em indivíduos jovens.
A etiologia mais comum é a virusal. A maioria dos doentes é assintomática, contudo existem
formas graves, caracterizadas pelo desenvolvimento de insuficiência cardíaca refractária e de
um padrão de miocardiopatia dilatada no ecocardiograma. O diagnóstico é habitualmente de
exclusão e resulta da conjugação de elementos de natureza clínica, laboratorial, radiológica e
histológica. A maioria dos casos tem uma evolução benigna, pelo que o tratamento é apenas
recomendado nas formas graves. Terapêuticas específicas, baseadas na fisiopatologia da doença, encontram-se actualmente em desenvolvimento. As formas crónicas, raras e associadas
a disfunção ventricular, assumem um prognóstico sombrio. A actividade física perpetua e favorece a recidiva da inflamação, pelo que deverá ser interrompida temporariamente.
Myocarditis is an inflammation of the heart muscle and one of the causes for sudden death
in athletes. The overall incidence is rare and young people are most often affected. The most
common aetiology is virusal. The majority of the patients are asymptomatic. Serious cases are
rare and characterized by the development of refractory heart failure, with a pattern of dilated
cardiomyopathy on echocardiography. The diagnosis is usually of exclusion and results from the
combination of elements of clinical, laboratory, radiology and histology nature. Most cases have
a benign course, so treatment is only recommended in severe forms. Specific therapies, based
on the pathophysiology of the disease, are currently under development. The chronic forms associated with ventricular dysfunction, fortunately, are rare and associate a poor outcome. Physical
activity perpetuates and encourages the recurrence of inflammation, and should be stopped
temporarily.
Etiologia
As miocardites virusais são as mais comuns, com uma prevalência anual estimada de 131 casos por milhão4. Os vírus
mais frequentemente identificados em
regiões como a América do Norte são
os adenovírus e enterovírus2 e dentro
destes últimos destacam-se os vírus Coxsachie. Na Europa, séries recentes revelaram uma maior prevalência do parvovírus B19 e do vírus herpes humano tipo
62. Nos países asiáticos, nomeadamente
no Japão, o vírus da hepatite C constitui
uma das principais causas de miocardite2. Como exemplo de outros agentes
virusais menos comuns salientamos os
citomegalovírus, Epstein-Barr, herpes
palavras-chave
keywords
Miocardite, atletas, diagnóstico, tratamento, recomendações
Myocarditis, athletes, diagnosis, treatment, recommendations
simplex, varicela zoster, influenza e o vírus da imunodeficiência humana (VIH).
Estudos anatomopatológicos, prévios
à introdução dos anti-retrovíricos, de-
24
Introdução
Nas miocardites, a fibrose resultante da
monstraram que pelo menos metade
A actividade f ísica regular é desde há
tentativa de reparação tecidular, consti-
dos indivíduos seropositivos apresen-
muito incentivada, pois condiciona uma
tui um adequado substrato anatómico
tava achados histológicos sugestivos de
redução da morbilidade e mortalidade
para o desenvolvimento de perturbações
miocardite5.
cardiovasculares.
o
da condução cardíaca. Na realidade, sé-
As bactérias são outros agentes infeccio-
exercício f ísico vigoroso é um estabele-
ries recentes anatomopatológicos de au-
sos causadores de miocardite. O agente
cido factor precipitante de eventos car-
tópsias de indivíduos jovens, vítimas de
etiológico da difteria é a causa bacteria-
díacos agudos. Também a associação
morte súbita, revelaram uma incidência
na mais comum. Na verdade, em metade
entre exercício f ísico e morte súbita é
significativa de miocardites (42%)1.
dos casos de difteria observa-se lesão in-
desde há muito conhecida, mas só re-
As miocardites, inflamação do tecido
flamatória do tecido muscular cardíaco2.
centemente foram apontadas possíveis
muscular cardíaco (miocárdio), consti-
Dentro dos géneros bacterianos mais
causas. Na verdade, hoje sabe-se que a
tuem a doença cardíaca adquirida mais
raros, destacam-se os Streptococcus,
grande maioria dos casos de morte sú-
frequente na população jovem. A sua
Staphylococcus, Borrelia, Clostridium,
bita são provocados por uma taquiarrit-
incidência global é desconhecida, mas
Bartonella, Brucella e Salmonella. Para-
mia maligna de origem ventricular, cujo
estima-se que atinja cerca de 8 a 10 in-
sitas e protozoários, como o Trypanos-
início pode ser precipitado pelo esforço.
divíduos por cada 100.0002. Este valor
soma cruzi, endémico no Brasil, foram
Paradoxalmente,
Janeiro 2011 * www.revdesportiva.pt
posta imunitária é excessiva ou prolon-
e bloqueios aurículo-ventriculares.
gada observa-se a destruição da matriz
As miocardites agudas incluem duas for-
extracelular cardíaca por citocinas e me-
mas clínicas de apresentação: miocardite
taloproteinases activadas, com conse-
aguda fulminante e a não fulminante. A
quente modificação da distribuição das
primeira é mais rara, mais frequente em
fibras musculares e compromisso da sua
crianças7 e caracteriza-se por um início
função. A perpetuação da inflamação
súbito, com progressão rápida dos sinto-
pode dever-se à formação de auto-anti-
mas de insuficiência cardíaca e evolução
corpos dirigidos a antigénios cardíacos
para choque cardiogénico. A fracção de
endógenos, erradamente reconhecidos
ejecção ventricular esquerda encontra-
também associados a formas agudas e
como patogénicos. Vários factores foram
-se gravemente comprometida, sendo
crónicas de miocardite.
apontados como potenciais modificado-
frequente a necessidade de suporte ino-
Agentes farmacológicos, por efeito cito-
res dessa resposta imunitária, nomea-
trópico e de dispositivos de assistência
tóxico directo (lítio, cocaína, catecola-
damente factores de natureza genética,
ventricular esquerda. Uma vez ultrapas-
minas, acetaminofeno) ou mediante re-
o género, a idade e factores ambientais,
sada a fase aguda, o prognóstico é favo-
acções de hipersensibilidade (clozapina,
como o défice de selénio, vitamina E, ex-
rável com taxas elevadas de recupera-
penicilinas, sulfonamidas, hidrocloro-
posição ao mercúrio, etc. A importância
ção8. Em alguns casos existe necessidade
tiazida, metildopa) podem também cau-
de cada um deles permanece desconhe-
de transplantação.
sar inflamação do miocárdio. A relação
cida.
As miocardites agudas não fulminantes
4
ritmias supraventriculares, ventriculares
tema
culo cardíaco. Nos casos em que a res-
apresentam um início insidioso e rara-
temporal com o início de um determinado medicamento sugere o diagnóstico.
Clínica
mente cursam com compromisso hemo-
O tratamento consiste na suspensão da
O espectro clínico das miocardites agu-
dinâmico. A função sistólica global en-
droga cardiotóxica e/ou corticoterapia.
das inclui desde formas assintomáticas
contra-se preservada numa fase inicial.
Distúrbios de natureza auto-imune,
até casos rapidamente fatais por falên-
Uma minoria evolui para miocardiopatia
como as doenças do tecido conjuntivo
cia cardíaca. A suspeita em atletas deve
dilatada, com deterioração progressi-
(lupús eritematoso sistémico, artrite
ser considerada perante sintomas como
va da função ventricular e prognósti-
reumatóide, esclerodermia), síndrome
palpitações, dispneia de esforço e fadiga,
co sombrio (mortalidade aos 4 anos de
de Churg-Strauss e hipereosinof ílico, a
que conduzem à perda progressiva da
56%)9.
sarcoidose e neoplasias foram também
performance habitual. Habitualmente
associadas a miocardites.
existe um contexto infeccioso recente,
Diagnóstico
mais frequentemente uma síndrome
O diagnóstico de miocardite nem sem-
Fisiopatologia
gripal. Aliás, desde há muito que foi
pre é fácil, uma vez que é uma entidade
A actual compreensão da patogénese
demonstrado que a actividade f ísica vi-
rara, com clínica e achados laboratoriais
celular e molecular das miocardites vi-
gorosa, persistente ou não, aumenta a
inespecíficos. O diagnóstico definitivo
rusais é limitada e baseia-se em modelos
susceptibilidade a infecções do tracto
exige a confirmação histológica da pre-
animais. Neste âmbito sabemos que a
respiratório superior, pois tem um efei-
sença de infiltrados inflamatórios, de-
ligação dos agentes virusais a recepto-
to depressor sobre o sistema imunitário
generescência e necrose de miócitos de
res membranares específicos permite a
celular . Dor torácica, de características
natureza não isquémica4 (Fig. 1). Uma
sua entrada no meio intracelular, onde
idênticas à do enfarte agudo do mio-
vez que a biópsia endomiocárdica não
encontram os substratos necessários à
cárdio, foi também descrita. Em alguns
é realizada por rotina, a grande maioria
sua replicação. Ao mesmo tempo ocor-
casos, a primeira manifestação de mio-
dos diagnósticos de miocardite aguda
re activação do sistema imunitário, com
cardite pode ser uma síncope ou morte
assume um carácter provável.
produção inicial de inúmeras citocinas
súbita durante o esforço f ísico. A mio-
Dados analíticos poderão sugerir o diag-
circulantes e posteriormente de linfóci-
cardite deve igualmente ser considerada
nóstico, nomeadamente, uma elevação da
tos neutralizantes e anticorpos específi-
como hipótese diagnóstica em atletas
velocidade de sedimentação, proteína C
cos. Na maioria dos casos esta resposta
com coração estruturalmente normal,
reactiva e do número de leucócitos. Uma
é suficiente para destruir o agente causal
mas com perturbações do ritmo cardía-
minoria de casos cursa com aumento dos
e acarreta sequelas mínimas para o mús-
co durante o esforço, nomeadamente ar-
marcadores de necrose do miocárdio10.
6
Revista de Medicina Desportiva in forma * Janeiro 2011
25
O electrocardiograma apresenta bai-
mesmos. Nas miocardites fulminantes
lular, e deprime a resposta imunitária
xa sensibilidade diagnóstica (47%) .
e miocardites agudas com deterioração
individual17. Esta recomendação deve
A taquicardia sinusal é o achado mais
progressiva da função ventricular o in-
ser generalizada a todos os atletas, in-
frequente nas miocardites agudas3. Al-
ternamento é obrigatório e o tratamento
dependentemente da idade, género e
terações do segmento ST e a presen-
consiste na aplicação de medidas e fár-
gravidade dos sintomas. O recomeço da
ça de ondas Q implicam o diagnóstico
macos com benef ício comprovado na
actividade desportiva deve ser precedido
diferencial com síndromes coronárias
insuficiência cardíaca. Dispositivos de
por uma avaliação médica, a qual deverá
4
agudas. O carácter transitório destas úl-
assistência ventricular esquerda poderão
incluir obrigatoriamente uma avaliação
tema
timas é sugestivo de miocardite.
ser necessários nos casos mais graves,
da função cardíaca em repouso e no es-
A radiografia do tórax pode ser normal
servindo habitualmente como ponte até
forço. Esse retorno pode ser considerado
ou revelar um aumento do índice car-
ao transplante cardíaco.
quando a função cardíaca e tamanho das
diotorácico, associado à dilatação das
Actualmente estão em desenvolvimen-
cavidades ventriculares retomarem va-
cavidades cardíacas ou à presença de
to novas medidas terapêuticas, cuja
lores normais e arritmias clinicamente
derrame pericárdico. Nas formas graves
aplicação é ainda limitada, mas os re-
relevantes não forem detectadas durante
podem ocorrer infiltrados intersticiais
sultados têm sido promissores. Como
a monitorização ambulatória. O segui-
pulmonares ou derrame pleural.
exemplo, referimos a prescrição de
mento clínico posterior deverá manter-
11
O ecocardiograma é essencial, pois dá-
-se com uma periodicidade adaptada a
-nos informação sobre o tamanho das
cada caso18.
cavidades e da espessura das paredes
cardíacas e caracteriza a função ventri-
Prognóstico
cular. Anomalias da motilidade segmen-
As miocardites agudas sofrem uma re-
tar, predominantemente apicais, são
solução espontânea em 80% dos casos3.
12
achados frequentes . O seu agravamen-
Indivíduos com sintomas discretos e boa
to com o esforço foi demonstrado em
função ventricular esquerda assumem
atletas13. A presença de derrame peri-
um excelente prognóstico. Dos que apre-
cárdico ligeiro é comum .
sentam insuficiência cardíaca grave, me-
A ressonância magnética nuclear (RMN)
tade recupera a função ventricular, um
tem tido uma aplicação crescente devi-
quarto permanece com função deprimi-
do à sua elevada acuidade diagnóstica
da estabilizada e os restantes 25% perde
(85%) . Ao identificar zonas de miocár-
progressivamente reserva contráctil19.
14
15
dio inflamado, torna-se um excelente
meio de definição dos locais de biópsia.
imunossupressores nos casos de mio-
Perspectivas Futuras
A biópsia endomiocárdica, por ser um
cardiopatia inflamatória crónica, na au-
O futuro aponta para uma crescente
procedimento invasivo, está limitada aos
sência de persistência virusal. Também
atribuição da causa inflamatória a ca-
casos de evolução fulminante e de resis-
um estudo, actualmente em fase II, de-
sos de insuficiência cardíaca rotulados
tência à terapêutica. Recentemente, a in-
monstrou uma melhoria dos sintomas
como idiopáticos. A melhor definição
trodução de novas técnicas moleculares
e da fracção de ejecção ventricular 24
da importância da biópsia endomiocar-
para identificação do genoma virusal no
semanas após o tratamento com inter-
dica e uma maior validação diagnóstica
tecido biopsado permitiu a redução do
feron β . Estudos adicionais, com maior
e prognóstica da ressonância magnéti-
elevado número de falsos negativos as-
número de doentes e duração, são ne-
ca nuclear são também fundamentais.
sociado ao exame histológico .
cessários para justificar a recomenda-
A identificação de novos marcadores
16
26
4
ção destes fármacos.
inflamatórios sanguíneos com maior
Tratamento
A realização de exercício f ísico, ama-
sensibilidade e especificidade é outro
A maioria dos casos de miocardite agu-
dor ou competitivo, só deve ser iniciada
objectivo futuro a cumprir. A criação
da são auto-limitados e por isso não re-
pelo menos seis meses após uma mio-
de vacinas dirigidas a vírus cardiotró-
querem tratamento. Os indivíduos que
cardite aguda. Estudos demonstraram
picos parece pouco provável atendendo
apresentem elevação dos marcadores de
que a actividade f ísica na fase precoce
à baixa incidência das miocardites e ao
necrose do miocárdio devem permane-
da miocardite aumenta a replicação
elevado custo que acarretam.
cer monitorizados até normalização dos
virusal, o que favorece a destruição ce-
Janeiro 2011 * www.revdesportiva.pt
[Cont. p. 31]
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