1 PATRÍCIA MONTEGGIA A VALORIZAÇÃO DO PRONTUÁRIO

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1
PATRÍCIA MONTEGGIA
A VALORIZAÇÃO DO PRONTUÁRIO MÉDICO COMO PROVA EM PROCESSOS
DE RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
Trabalho de conclusão de curso apresentado
à banca examinadora da Faculdade de
Direito da Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, como exigência parcial
para obtenção de grau de Bacharel em
Ciências Jurídicas e Sociais
Orientadora: profª. Maria Alice Costa Hofmeister
Porto Alegre
2007
2
RESUMO
Este estudo trata sobre o uso e valorização dos prontuários médicos, com um
enfoque especial ao tema da responsabilidade civil dos médicos. Foi realizado um
breve histórico da relação médico-paciente, traçando um paralelo de como a mesma
se encontra na atualidade, sendo, muito provavelmente, um dos motivos
responsáveis pela maior incidência de processos com alegações de erro médico.
Foram analisados os aspectos formais da responsabilidade civil médica e como o
tema é abordado, pelas doutrinas, da área médica e da área jurídica. De modo a
situar o estudo em nosso meio, foi aplicado um questionário a um grupo de médicos,
os mesmos constituindo uma amostra de profissionais que atuam em Porto Alegre,
tanto na rede pública quanto privada. Foi questionado sobre suas rotinas quanto ao
preenchimento de seus prontuários, e também abordando a questão dos processos
contra médicos. Os resultados, obtidos através da análise das respostas, revelaram
que nem sempre os registros médicos são completos, sendo a falta de tempo o
principal argumento. Outra constatação obtida desta pesquisa é que a adoção de
consentimentos informados, em forma de documento, arquivado junto ao prontuário,
ainda não é uma rotina em nosso meio médico.
Palavras-chave: Prontuário médico. Responsabilidade civil médica. Erro
médico. Consentimento informado.
3
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 4
1 A RELAÇÃO MÉDICO PACIENTE ATRAVÉS DOS TEMPOS
E O DESENVOLVIMENTO DOS REGISTROS MÉDICOS............................. 6
1.1 A evolução da relação médico-paciente ................................................. 6
1.2 A necessidade crescente dos registros médicos como auxílio
nos estudos e experimentos médicos ..................................................... 9
1.3 O desenvolvimento dos princípios fundamentais, entre eles a
autonomia e dignidade, e a obrigação do sigilo profissional ................ 12
2 A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO .............................................. 19
2.1 Aspectos básicos da responsabilidade civil médica.............................. 19
2.2 A importância do prontuário médico como documento e seu
tratamento............................................................................................. 22
2.3 A inversão do ônus da prova e o uso do prontuário médico
como tal ................................................................................................ 23
3 O USO E VALORIZAÇÃO DO PRONTUÁRIO MÉDICO EM NOSSO MEIO
– uma amostra da rotina dos médicos de porto alegre em
relação ao preenchimento de prontuários e de seu
conhecimento da importância dos mesmos como prova judicial ....... 27
4 AS VISÕES DA DOUTRINA MÉDICA, JURÍDICA E JURISPRUDÊNCIA ... 37
4.1 A doutrina médica e o tema dos prontuários......................................... 37
4.2 A jurisprudência e a doutrina jurídica acerca da
importância do prontuário médico ......................................................... 38
CONSIDERAÇÃOES FINAIS .......................................................................... 43
REFERÊNCIAS................................................................................................ 45
APÊNDICE A ................................................................................................... 48
4
INTRODUÇÃO
Um assunto que, atualmente, vem preocupando os médicos de todo o mundo
e também no nosso meio, é a crescente demanda dos profissionais em ações de
responsabilidade civil, onde muitas vezes o termo “erro médico” é empregado. Tal
expressão, com caráter pejorativo, é bastante utilizada pela mídia, muito
provavelmente como artifício para chamar a atenção do público, o que causa revolta
em muitos profissionais da área médica.
Contudo revoltar-se apenas com essa situação não é a atitude mais eficaz a
ser utilizada. O respeito e a consideração que a profissão de médico sempre
procurou manter é obtida através da excelência na atividade médica, sendo essa
excelência o resultado de todas as condutas do profissional, desde o primeiro
contato com o paciente, até a indicação do tratamento mais complexo. Quando um
médico é chamado a responder em um processo judicial, cabe a ele demonstrar que
agiu com toda a diligência necessária. Para tanto, muitas, se não em todas as vezes,
o caminho para se provar a conduta do médico, se culposa ou não é através do
exame do prontuário do paciente (vítima).
Os prontuários preenchidos pelos médicos são documentos aceitos pelos
tribunais como evidência dos atos praticados. Podem servir para exonerar o médico
da responsabilidade, ou também para demonstrar que a vítima tinha razão, e seu
caso não foi conduzido da maneira adequada.
O prontuário médico e seu adequado preenchimento é de responsabilidade
do profissional. Cada vez mais as entidades de classe médicas vêm reforçando com
os médicos a importância de tais documentos e de seu preenchimento de forma
completa. Até mesmo a literatura especializada médica tem dedicado alguma parte a
tópicos de interesse legal, como responsabilidade médica e direito médico.
Este trabalho busca analisar como o tema dos prontuários médicos vem
sendo tratado pelos médicos no dia-a-dia, pela literatura médica, pela jurisprudência
e pela doutrina jurídica. É também um veículo para auxiliar a categoria médica em
suas condutas, não do ponto de vista de conduta médica, mas de como é importante
5
manter sempre atualizados os prontuários de seus pacientes, no caso de necessitar
dos mesmos como prova em um processo de responsabilidade civil.
O primeiro capítulo visa trazer um rápido histórico da relação médicopaciente, comparando o perfil vigente no passado com o modelo atual. Os princípios
da dignidade, da autonomia e do sigilo profissional como balizadores dessa relação.
Além das diferentes utilidades e importâncias dos registros feitos pelos médicos
através dos tempos e na atualidade.
O segundo capítulo trata do tema da responsabilidade civil do médico,
explicando alguns conceitos importantes e o papel dos prontuários médicos como
prova judicial.
O terceiro capítulo traz uma pequena amostra da realidade local, pois através
de um questionário aplicado a alguns médicos de Porto Alegre, teremos a expressão
da conduta dos mesmos em relação ao preenchimento de seus prontuários e de
como os valorizam.
Finalmente, o quarto e último capítulo expõe as opiniões da doutrina médica,
da doutrina jurídica e da jurisprudência acerca da responsabilidade civil médica e o
uso do prontuário neste contexto.
6
1 A RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE ATRAVÉS DOS TEMPOS E O
DESENVOLVIMENTO DOS REGISTROS MÉDICOS
1.1 A EVOLUÇÃO DA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE
A medicina é um dos ofícios mais antigos da humanidade. Há registros de
que na Grécia antiga já haviam médicos: pessoas que tinham conhecimento e
prática para tratar outras pessoas, eram estudiosos mas não filósofos. A prática da
medicina é muito mais do que a aplicação de princípios científicos e filosóficos.
Focaliza-se sobre o paciente, cujo bem-estar é seu propósito contínuo.
Da mesma forma como os filósofos pré-socráticos partiam de um pequeno
número de elementos fundamentais para explicar a diversidade do mundo,
muitos médicos do século V a.C. pretendiam fundar a arte da medicina sobre
um ou dois princípios que sistematizam toda a patologia. Assim, Hipócrates
critica a medicina “filosófica” e afirma a autonomia da arte médica em relação
à filosofia. Na verdade, a medicina e a filosofia são as primeiras disciplinas a
se libertarem da religião. A seguir, a medicina e a matemática se tornam, por
1
sua vez, independentes da filosofia.
A medicina como conhecemos hoje, envolta em tecnologia de diagnósticos e
de tratamentos, difere drasticamente do ofício exercido durante muitos séculos. Até
o final do século XVIII o bom médico era aquele que cuidava bem de seu paciente.
O que se fazia para tratar as doenças era “cuidar das pessoas” em seus estados de
sofrimento. No decorrer do século XIX a história natural das doenças passou a ser
de domínio científico, com o maior conhecimento do corpo humano e de sua
fisiologia, então muitos doentes tiveram suas doenças diagnosticadas. Entretanto os
tratamentos continuaram a ser deficientes. O uso de sangrias era freqüente para
diferentes patologias, assim como a aplicação de emplastros e compostos de efeitos
biológicos pouco claros. Durante o século XX é que a medicina foi tomando os ares
que tem hoje. A evolução das ciências nos últimos 50 anos foi muito superior aos
500 anos anteriores.
O que mudou? Sem dúvida que o tratamento das doenças e as expectativas
de vida melhoraram muito. Mas e a relação médico-paciente? Aquele médico de 150
1
GUSMÃO, Sebastião silva. História da Medicina: Evolução e Importância. Disponível em
http://www.sbhm.org.br/index.asp?p=noticias&codigo=93 . Publicado em 27/07/2006. Acessado em
22 fev. 2007.
7
anos atrás, que ficava mais de uma hora conversando e examinando cada órgão do
paciente, na busca de descobrir a causa de seu sofrimento, foi substituído por um
profissional mais ágil, que vai mais rápido ao ponto, pois tem mais conhecimento
científico e tão logo descobre a patologia, após alguns exames para confirmação.
Diferente daquele médico, que após alguns dias estudando o caso de seu paciente,
chegava a um diagnóstico, mas na maioria das vezes não o curava, mas o “tratava”.
O médico de hoje, após alguns dias já deu alta ao seu paciente, totalmente curado
(é claro que existem exceções). Com tudo isto, com a velocidade característica de
nossos dias atuais, a relação entre médico e doente tornou-se mais frágil (como,
aliás, tem caracterizado as relações humanas nos dias de hoje, vide os próprios
relacionamentos afetivos, cada vez mais fugazes e em busca mais de satisfação
sexual do que uma união estável). O profissional é mais eficaz e competente, mas
os laços entre ele e seu paciente são frouxos. Muito provavelmente aqui está uma
das causas do aumento de demandas judiciais contra médicos, o vínculo formado
entre médico e paciente não tem mais a firmeza de outrora, e a idéia de que hoje,
sendo a medicina tão avançada, nada mais é incurável, e que se houve um
insucesso terapêutico é porque não foi bem conduzido pelo profissional.
Hoje em dia as informações que um estudante de medicina e um profissional
médico têm de absorver para se manterem atualizados são tantas que muitas vezes
não sobra tempo para dedicar àquele que é o objeto de seu ofício, o paciente.
Resultado disto é a divisão da medicina em numerosas especialidades, de modo
que não há mais aquele médico que de tudo trata, não que ele não queira, mas é
impossível ter todo o conhecimento. O médico de família ainda existe, mas ele
mesmo muitas vezes tem de contar com a ajuda de especialistas em muitas
situações clínicas de seus pacientes. É por isto que com a evolução da medicina, o
ensino médico e mesmo os profissionais mais experientes não devem nunca
esquecer de alguns preceitos citados por Lloyd H. Smith nos capítulos introdutórios
de um conceituado livro-texto de clínica médica:
-
Os pacientes desejam ser ouvidos e compreendidos;
Os pacientes querem que os médicos estejam interessados neles como seres
humanos iguais a eles;
Os pacientes esperam contar com a competência profissional na ciência e na
tecnologia médicas;
Os pacientes querem ser mantidos razoavelmente informados;
8
-
Os pacientes não querem ser abandonados.
2
A observação de que a relação médico-paciente mudou radicalmente nos
últimos tempos, acompanhando toda uma mudança de relações na atual sociedade
de consumo em que vivemos, e tais mudanças como sendo uma das causas das
crescentes demandas judiciais contra médicos foi percebida com clareza pelos
juristas, que têm em sua formação o estudo da sociologia.
A partir do momento que se inaugurou o sistema da medicina socializada, na
grande maioria dos países, houve uma transformação radical na forma de
relacionamento médico-paciente, pois, de uma relação amistosa, se
transformou em um conflito frio e impessoal, em que o médico vê no paciente
um desconhecido, alguém que provavelmente, lhe foi encaminhado por outro
médico ou por um serviço de assistência médica do Estado, enquanto que,
para o paciente, o médico é apenas um técnico, com o qual manterá um
3
relacionamento estritamente profissional.
Um reflexo das alterações que sofreu a relação médico-paciente é que até
mesmo a denominação dos sujeitos mudou, “passando de usuário e prestador de
serviços, tudo visto de uma ótica de sociedade de consumo, cada vez mais
consciente e exigente quanto aos resultados”.4
A Medicina-Arte agoniza nas mãos da Medicina-Técnica. A erudição médica
vai sendo substituída por uma sólida estrutura instrumental. O médico de
família morreu. Deu lugar ao técnico altamente especializado, que trabalha de
forma fria e impessoal voltado quase que exclusivamente para esses meios
extraordinários que a tecnologia do momento pode oferecer. Surge o médico
de plantão, ou de turno.
Esse médico foi obrigado a trocar uma deontologia clássica e universal por
um sistema de normas compatíveis com a realidade vigente, nem sempre
ajustáveis a sua consciência e determinação. Viu-se envolvido por uma
terrível espiral irreversível, onde certos valores afetivos, consagrados como
úteis e necessários, se converteram em solicitações que o imediatismo exige
para a satisfação de ordem puramente material. Não se diga que tudo isso
tem como responsável o medico. Nasceu do próprio mundo.
Mudou também o paciente. Antes, era ele um grande preocupado com suas
obrigações. Hoje ele o é também com seus direitos. Já começa a contestar e
exigir diversas condutas ou faz da doença a matéria-prima de seus
interesses.
A sociedade, por sua vez, também não ficou indiferente às mudanças. A
sociedade capitalista-industrial, utilitarista e pragmática, embasada em
parâmetros de produção e consumo, sacrifica o indivíduo como ser humano e
2
SMITH JR, Lloyd H. A medicina enquanto ofício. In: WYNGAARDEN, James B.; SMITH, Lloyd H.
(Orgs). Cecil tratado de medicina interna. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan S.A. 1990. v. I, p. 1-2.
3
FRADERA, Vera Maria Jacob. Responsabilidade civil dos médicos. Revista da Ajuris, v 55. Porto
Alegre. 1992. p. 118.
4
AGUIAR JUNIOR, Ruy Rosado de. Responsabilidade Civil de Médico. Revista dos Tribunais. Vol.
718, n 33. São Paulo. Setembro de 1995.
9
tende a supervalorização do coletivo. Gera-se uma mentalidade tecnocrata
embriagada com os vertiginosos sucessos em que o homem é
despersonalizado
e
desvalorizado
como
uma
simples
coisa,
inexpressivamente, colocado dentro dessa pungente realidade que ele
próprio criou e não pode mais controlar. Este pensamento instituiu uma
modalidade de medicina, em que o homem passou a ser um grande enfermo
numa coletividade crescentemente mais alienada. Essa sociedade criou a
medicina dos sintomas.
Também não se pode dizer que apenas o uso do arsenal tecnológico tenha
sido o responsável pelo evidente desgaste da relação médico-paciente. O
5
que houve na verdade foi a decadência do relacionamento humano.
Mas há um ponto em toda a evolução da medicina que não se perdeu, aliás,
vem aumentando de importância. São os registros médicos. Antes, o prontuário
servia como registro para auxiliar nos estudos e pesquisas médicas, para evolução
dos conhecimentos e na troca de experiências com outros colegas. Hoje, ainda
serve muito ao profissional, para os mesmos fins que dantes e também para auxiliar
em seu raciocínio diagnóstico e delinear a conduta terapêutica. Além de ser
instrumento obrigatório nas instituições hospitalares, onde devem permanecer
arquivados, além de úteis às mesmas para cálculos de custos. Porém, nos dias
atuais, o prontuário tem um valor não imaginado há alguns séculos. O valor como
prova judicial.
1.2 A NECESSIDADE CRESCENTE DOS REGISTROS MÉDICOS COMO AUXILIO
NOS ESTUDOS E EXPERIMENTOS MÉDICOS
Os registros médicos existem desde a época de Hipócrates, de modo que os
acontecimentos que fossem transcorrendo com o doente fossem sendo registrados,
de forma cronológica, para melhor compreensão da história natural das diferentes
enfermidades, assim auxiliando em situações semelhantes no futuro.
Esta foi a principal função exercida pelos registros médicos, que com o
surgimento dos primeiros hospitais e enfermarias, começaram a ser individualizados
por paciente de modo a facilitar o atendimento aos doentes. No século XIX os
prontuários já eram de uso corrente tanto na medicina privada quanto pública, mas
5
FRANÇA, Genival Veloso de. A ética e a técnica em medicina. Revista brasileira de direito
médico. Ano III, nº 5. 2006. disponível em < http://www.rbdm.com.br/ > Pesquisado em 07/03/2007.
10
sempre com o objetivo de organizar os cuidados ao paciente além de registrar dados
que poderiam vir a ser úteis em trabalhos, pesquisas e conferências.
Sua
utilidade
é
fundamental
também
para
os
controles
sanitários
governamentais, pois podem conter informações valiosas a serem estudadas por
comitês de vigilância sanitária em situações como controle de índices de mortalidade
materna, de mortalidade neonatal, e analisando suas causa. Estes e outros índices
são importantes para se avaliar o grau de desenvolvimento sanitário de uma
população. Sendo, também, utilizados para estudos epidemiológicos populacionais.
Portanto, atualmente o prontuário médico tem uma importância muito mais
ampla, não somente para organizar os cuidados ao paciente, mas para organização
de todo um sistema jurídico e econômico.
Jurídico, pois como veremos neste trabalho, os registros médicos são
fundamentais para a elucidação de condutas e avaliação da responsabilidade civil
do médico quando envolvido em uma lide civil ou mesmo penal.
O valor jurídico também em investigações, onde algumas informações
importantes podem estar contidas no prontuário do paciente por alguma
hospitalização, ou mesmo por ter recebido atendimento médico ambulatorial.
Detém a autora legitimidade para buscar a exibição do prontuário médico de
sua mãe biológica, cujo nome já conhece, e que diz respeito ao seu
nascimento, pois os dados do nascituro ficam anotados juntamente com os
registros da parturiente. Desta sorte, tratando-se a autora de filha da paciente
cujo prontuário pretende a exibição, não cabe aventar-se a respeito de
6
violação a privacidade ou intimidade de terceiros, ou ainda do sigilo médico.
Contudo estas investigações realizadas em prontuários médicos devem,
sempre, respeitar a intimidade daqueles que não são parte ou não permitem a
violação de documentos que contenham informações suas. De que valeria o sigilo
médico, se aquilo que foi registrado pudesse vir a conhecimento público? É sempre
prudente a reflexão, sob ponto de vista ético, quando se pensa em colocar
6
RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 70015993249. Relator Des. Orlando
Heemann Júnior. Porto Alegre. Julgado em 23/11/ 2006. Disponível em
http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/resultado.php Acessado em 05/04/2007.
11
prontuários médicos a vista daqueles que não fizeram parte da relação médicopaciente.
Se inexiste certeza do nascimento do autor no nosocômio, se a data pode
também estar incorreta, se nada indica que houve o abandono e posterior
adoção, descabe liberar dados relativos aos prontuários de todas as pessoas
do sexo masculino nascidas no dia indicado pelo autor (...). Ainda que se
possa compreender o drama pessoal do autor e os seus profundos conflitos
pessoais, ainda que se possa reconhecer o direito dele de conhecer a sua
origem biológica, esse seu direito não pode ser exercitado como se não
existissem outros direitos que também são albergados pela Carta Magna. O
direito da pessoa de vasculhar documentos de um hospital, a fim de colher
dados para a investigação da sua origem biológica, é limitado pelo direito das
demais pessoas, que nenhuma relação tem com ele, à inviolabilidade da
7
própria intimidade, da sua vida privada, da sua honra e da sua imagem.
Econômico, pois o prontuário de um paciente, principalmente em ambiente
hospitalar é mais do que apenas registros de condutas e procedimentos médicos e
de enfermagem. Nele são registrados todos os exames solicitados e realizados; a
dieta recebida; as medicações e outros cuidados administrados ao enfermo. Que ao
final servirão para os cálculos de custo da internação.
Atualmente o prontuário médico é peça fundamental para o andamento de
protocolos de pesquisa. Muitas vezes o mesmo protocolo é aplicado em diferentes
centros e em diferentes países, e o preenchimento correto e completo é crucial para
a interpretação dos dados. Por exemplo: um determinado medicamento para
tratamento de câncer intestinal (um quimioterápico) é objeto de um estudo para
avaliar sua eficácia e sues efeitos adversos. Os pacientes que receberão este
medicamento devem ser selecionados corretamente (e muitas vezes não há em um
único centro/hospital um número satisfatório de doentes com a mesma doença, por
isso a participação de vários centros em uma mesma pesquisa); todo o período do
tratamento e o seguimento posterior devem ser cuidadosamente avaliados e
registrados de maneira uniforme para que ao final não ocorram vieses que deixem
dúvidas, como exemplo: se determinado para-efeito foi ou não registrado ou o
medicamento não apresentou determinado para-efeito.
7
RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 70011484110. Relator Des. Sérgio
Fernandes de Vasconcelos Chaves. Porto Alegre. Julgado em 10/08/2005. Disponível em <
http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/resultado.php >. Acessado em 05/04/2007.
12
1.3 O DESENVOLVIMENTO DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS, ENTRE ELES A
AUTONOMIA E DIGNIDADE, E A OBRIGAÇÃO DO SIGILO PROFISSIONAL
Aqui abordamos o tema da bioética. Disciplina que vem ganhando força e
importância dentro dos meios acadêmicos e científicos que envolvem seres
humanos. É uma ciência que surge pela reflexão que o ser humano faz diante das
implicações pessoais e sociais decorrentes dos avanços da Ciência Médica,
principalmente com relação a clonagens, transplantes de órgãos, engenharia
genética, aborto eugenésico, eutanásia, etc. De modo a estabelecer limites à
atuação dos profissionais e/ou às pesquisas nestas áreas.
Bioética é uma expressão relativamente recente. Relaciona os conceitos de
ética, moral e direito. Surgiu da necessidade de regramento (direito) para a
realização de estudos e pesquisas médicas, de modo a alcançar um maior benefício
à humanidade (moral), sem, contudo causar danos (ética).
Vários autores importantes trazem sua definição para bioética, tais como
Potter em 1988, atualizando sua antiga definição de 1971: “Bioética é a combinação
da biologia com conhecimentos humanísticos diversos constituindo uma ciência que
estabelece um sistema de prioridades médicas e ambientais para a sobrevivência
aceitável.”8 Este autor foi um dos pioneiros a levantar a importância da bioética nas
pesquisas clínicas.
Em nosso meio temos como expoente o professor Clotet, responsável pela
criação da primeira disciplina de Bioética no Brasil, em 1988, no curso de PósGraduação em Medicina da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Que define bioética como “uma ética
aplicada que se ocupa do uso correto das novas tecnologias na área das ciências
médicas e das soluções adequadas dos dilemas morais por elas apresentadas”.9
8
POTTER, VR. Global Bioethics. Building on the Leopold Legacy. East Lansing: Michigan State
University Press, 1988. Disponível em < http://www.bioetica.ufrgs.br/bioet88.htm > acessado em
26/02/2007.
9
CLOTET, Joaquim. A. Bioética: uma ética aplicada em destaque. In: Clotet J. Bioética uma
aproximação. Porto alegre: EDIPUCRS, 2003. p. 33.
13
Para resolução dos dilemas bioéticos é fundamental o respeito a alguns
princípios. Aqui neste estudo trataremos de apenas dois; o princípio da dignidade
da pessoa humana e o princípio da autonomia. Esse, sendo subsidiário daquele.
O princípio da dignidade da pessoa humana encontra alguma dificuldade
conceitual comum aos demais princípios, visto que são normas abstratas, dando
margem a várias considerações. Contudo trata-se de princípio fundamental,
amparado em nossa Constituição Federal, no inciso III do art. 1º. Trata-se da
proteção ao ser humano, mas não somente a sua vida (princípio à vida), é algo mais
amplo, que envolve todas as facetas do indivíduo, como ser e como personalidade,
vai além do plano material, incluindo o social e psicológico. A compreensão deste
princípio fica mais fácil quando evidente a sua violação.
O respeito à dignidade da pessoa humana inicia-se tão logo haja pessoa
humana envolvida; antes do nascimento já é cabível, e podendo ir além da morte.
Dito isto fica claro os direitos dos menores e também incapazes civilmente.
A dignidade humana consiste não apenas na garantia negativa de que a
pessoa não será alvo de ofensas ou humilhações, mas também agrega a
afirmação positiva do pleno desenvolvimento da personalidade de cada
indivíduo. O pleno desenvolvimento da personalidade pressupõe, por sua
vez, de um lado, o reconhecimento da total autodisponibilidade, sem
interferências ou impedimentos externos, das possíveis atuações próprias de
cada homem; de outro, a autodeterminação (Selbstbestimmung des
Menschen) que surge da livre projeção histórica da razão humana, antes que
10
de uma predeterminação dada pela natureza.
A dignidade da pessoa humana não é, contudo, livre de relativizações.
Quanto a este aspecto Ingo Wolfgang Sarlet atenta para o choque que pode ocorrer
entre a dignidade da pessoa e o direito à vida, que ocorre nas situações de doença
terminal dolorosa. Manter a vida em detrimento da vontade do interessado. A
prevalência do direito à vida impõe seu respeito. Aqui temos, pois, um dos dilemas
da bioética.
10
LUÑO, Antonio E. Perez. Derechos humanos, estado de derecho y constituición. Apud SANTOS,
Fernando Ferreira dos. Princípio Constitucional da Pessoa Humana. Instituto Brasileiro de Direito
Constitucional. São Paulo. Celso Bastos Editor. 1999. p. 96-7.
14
A dignidade já está sujeita a uma relativização (de resto comum a todos os
conceitos jurídicos) no sentido de que alguém (não importa aqui se juiz,
legislador, administrador ou particular) sempre irá decidir qual o conteúdo da
dignidade e se houve, ou não, uma violação no caso concreto. Os exemplos
da pena de morte, da tolerância das mutilações genitais e da própria tortura
em algumas ordens jurídicas (...) certamente dão conta de quão dispares
11
podem ser os resultados quanto a este ponto.
O princípio da autonomia, também denominado princípio do consentimento ou
do respeito à pessoa é muito importante ao estudo da bioética. Significa que uma
pessoa pode escolher seus caminhos, ter seus objetivos e estruturar-se de modo a
atingi-los, sendo respeitado pelos seus pares, desde que não prejudique aos
demais.
Uma pessoa autônoma é um indivíduo capaz de deliberar sobre seus
objetivos pessoais e de agir na direção desta deliberação. Respeitar a
autonomia é valorizar a consideração sobre as opiniões e escolhas, evitando,
da mesma forma, a obstrução de suas ações, a menos que elas sejam
claramente prejudiciais para outras pessoas. Demonstrar falta de respeito
para com um agente autônomo é desconsiderar seus julgamentos, negar ao
indivíduo a liberdade de agir com base em seus julgamentos, ou omitir
informações necessárias para que possa ser feito um julgamento, quando
12
não há razões convincentes para fazer isto.
Estes dois princípios são importantes ao nosso trabalho, pois temos que
considerar que todas as condutas médicas, ao final, acabam por envolvê-los.
Qualquer ato médico com relação a um paciente, que em termos ideais será
registrado em um prontuário, muito antes disto, tratará destes princípios. Quando
não forem respeitados, também os registros médicos serão de auxílio para apurar as
responsabilidades do médico. O próprio Código de Ética Médica faz referência a eles
em seu capítulo XII, sobre Pesquisa Médica:
Art. 123 – Realizar pesquisa em ser humano, sem que este tenha dado
consentimento por escrito, após devidamente esclarecido sobre a natureza e
conseqüência da pesquisa.
Parágrafo Único – Caso o paciente não tenha condições de dar seu livre
consentimento, a pesquisa somente poderá ser realizada, em seu próprio
13
benefício, após expressa autorização de seu responsável legal.
11
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
constituição federal de 1988. Porto Alegre. Livraria do Advogado. 2001. p. 126.
12 GOLDIM, José Roberto. Princípio do respeito à pessoa ou da autonomia. Texto atualizado em
14/03/2004. Disponível em < http://www.ufrgs.br/bioetica/autonomi.htm > Pesquisado em 03/03/2007.
13 BRASIL. Resolução CFM nº 1.246/88. Código de Ética Médica. Conselho Federal de Medicina.
Brasília, 2000. pág. 33.
15
Também ao médico é resguardado o direito ao princípio da autonomia, assim
como a qualquer cidadão. O Código de Ética Médica traz em seu art.7º a seguinte
redação:
Art. 7º - O médico deve exercer a profissão com ampla autonomia, não sendo
obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não deseje salvo na
ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa
14
possa trazer danos irreversíveis ao paciente.
O artigo acima traz, implicitamente, a idéia de que além do médico, o paciente
é personagem importante na atividade médica. É muito importante que para uma
boa relação médico-paciente haja empatia e até mesmo cumplicidade, pois os dois
pólos dessa relação tem um objetivo em comum, que é a cura ou melhora da
patologia daquele que busca atendimento médico. Tanto assim, que ao paciente
incumbem deveres também, quais sejam remunerar o médico – direta ou
indiretamente (quando beneficiário da Previdência Social ou de plano de saúde),
seguir os conselhos do profissional e cumprir rigorosamente as prescrições. Não o
fazendo será responsável pala resilição do contrato, situação que dá ao médico o
direito de poder abster-se de continuar lhe prestando assistência.15 Evidente,
portanto, que tal desídia seja registrada no prontuário do paciente, da mesma forma
que o consentimento ao tratamento desobedecido também já fora. Desse modo, se
futuramente houver qualquer lide processual, as provas estarão claramente
evidenciadas nos documentos médicos, cuja aceitação pelos tribunais é ampla,
como veremos ao longo desta dissertação.
O princípio da autonomia é, para nosso tema, crucial. É baseado neste
princípio que se baseia toda a teoria acerca do Consentimento Informado e sua
importância no cotidiano médico. O Consentimento Informado, ou seja, a
concordância do paciente em submeter-se ao um procedimento ou tratamento
sugerido pelo médico, seja de forma oral (mas o aceite deve ser registrado na ficha
clínica), ou de forma escrita, significa que o mesmo pôde compreender e manifestarse. O paciente pode concordar, ou não com aquilo que lhe for proposto, é seu
direito. Trata-se do exercício do princípio da autonomia. E os registros destas
14 BRASIL. Resolução CFM nº 1.246/88. Código de Ética Médica. Conselho Federal de Medicina.
Brasília, 2000. p. 14.
15
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. São Paulo. Revista dos Tribunais.
2003. p. 29.
16
decisões são fundamentais, muitas vezes, para a solução de lides que, por ventura,
possam vir a ocorrer. Assim preconiza Márcia Weber: “O dever de informar é ponto
de fundamental importância no exercício da atividade médica: obtenção do
consentimento do paciente para a indicação terapêutica e cirúrgica.”16
Para que o exercício da autonomia se dê de forma ideal, é necessário que o
médico tenha uma boa relação com seu paciente e possa lhe fornecer, de forma
completa e compreensível, as informações necessárias, para que ele, ou seus
familiares na impossibilidade do mesmo, possa decidir acerca de seu tratamento.
Além dos deveres de cuidado e sigilo, deve ainda o médico prestar ao
paciente todas as informações necessárias sobre a terapêutica ou cirurgia
indicada para seu caso, seus riscos e possíveis resultados, dele obtendo o
indispensável consentimento[...]. Cabe unicamente ao paciente decidir sobre
a sua saúde, avaliar o risco a que estará submetido com o tratamento ou a
17
cirurgia, e aceitar ou não a solução preconizada pelo médico.
Ao médico cabe o dever de informar, não somente para auxiliar na decisão do
paciente, mas para se proteger legalmente e, principalmente, poder dividir com o
doente e/ou seus familiares, a responsabilidade sobre a decisão. Esta conduta, a
primeira vista pode parecer pouco simpática aos pacientes e seus familiares,
principalmente aqui no Brasil, ode a população é mais acostumada a uma medicina
superprotetora e paternalista, onde se tinha (e ainda tem) por costume, entregar a
vida nas mãos de Deus e dos médicos.
Nenhum médico, por mais competente que seja, pode assumir a obrigação de
curar o doente ou de salva-lo, mormente quando em estado grave ou
terminal. A ciência médica, apesar de todo o seu desenvolvimento, tem
inúmeras limitações, que só os poderes divinos poderão suprir. A obrigação
que o médico assume, a toda evidência, e a de proporcionar ao paciente
todos os cuidados conscienciosos e atentos, [...] não se compromete a curar,
mas a prestar os seus serviços de acordo com as regras e os métodos da
18
profissão, incluindo aí os cuidados e conselhos.
O derradeiro ponto, a analisarmos nesta seção, é o sigilo profissional e sua
obrigação por parte do médico. O mesmo código de ética supracitado traz todo um
16
WEBER, Márcia Regina Lusa Cadore. Responsabilidade civil do médico. Revista de Direito
Privado. Vol.18. São Paulo. 2004. p. 150
17
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. Malheiros. São Paulo. 2004. p.
378.
18
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. Malheiros. São Paulo. 2004. p.
371.
17
capítulo dedicado ao segredo médico. Sendo o art. 102 aquele que sintetiza a
obrigação do médico: “É vedado ao médico revelar o fato de que tenha
conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo se por justa causa,
dever legal ou autorização expressa do paciente.”19
A questão do sigilo profissional é tamanha, que dele depende toda a relação
médico-paciente. Toda pessoa que busca auxílio no médico ou outro profissional da
saúde, mesmo os menos favorecidos culturalmente, sabem que podem confiar no
sigilo do médico. Sabem que as informações prestadas são para buscar a solução
de sua dor. Este fato se verificou em pesquisa popular, realizada em todo o Brasil,
no ano de 2004, que revelou que o médico atingiu quase 70%, no nível de confiança
dos brasileiros (a profissão considerada de maior confiança foi a de bombeiro, com
93%).20
Ao elaborar e manter atualizado o prontuário médico, mesmo as informações
mais sigilosas, desde que de relevância à condição clínica do paciente, deverão ser
registradas. Portanto o prontuário de um paciente é documento a ser resguardado
do conhecimento de estranhos à relação médico-paciente. A exceção é após
expressa autorização do paciente, justa causa (aqui pode haver alguma confusão),
ou dever legal.
Muitas vezes ocorre alguma confusão por parte de alguns clientes de médicos
e advogados, e até mesmo dos próprios profissionais mencionados, com relação à
propriedade do prontuário; a quem pertence o registro médico? Pois bem, o registro
é do paciente, mas pertence ao médico. Isto é, o paciente tem direito às informações
contidas no prontuário, mas não a ele propriamente dito. Se desejar, pode solicitar
ao médico uma cópia do mesmo, ou um laudo com as informações desejadas. E o
médico não pode se escusar de fornecê-las.
19
BRASIL. Resolução CFM nº 1.246/88. Código de Ética Médica. Conselho Federal de Medicina.
Brasília, 2000. p. 29.
20
SELEÇÕES, Reader´s Digest. Profissões e Instituições de Confiança no Brasil. 2004.
Disponível em < http://www.selecoes.com.br/publicidade-trustedbrand08.htm >. Pesquisado em
11/03/2007.
18
Genival Veloso França assevera que o prontuário médico pertence ao autor
que o elaborou, ou à instituição à qual ele se vincula. Embora o paciente seja quem
fornece as informações, cabe ao médico traçar hipóteses diagnósticas, solicitar
exames e recomendar o tratamento, sempre com o consentimento do atendido. O
médico é o autor do prontuário, é dele a propriedade intelectual. Ao paciente
pertence o conteúdo, as informações ali constantes.21
Mesmo sendo o médico, indubitavelmente, o dono do dossiê por ele
recolhido, é claro que tanto o paciente como seus parentes podem ter
interesse naquele documento. Isso não implica, todavia, a entrega da Ficha
22
Médica e seus acessórios, mas, tão somente, das informações solicitadas.
Em concordância com esta teoria temos decisão do TJRS.
O conteúdo do prontuário médico não pertence ao estabelecimento de saúde,
mas ao paciente, que deve ter acesso às informações nele contidas (...). a
jurisprudência é farta e pacífica no particular. Inexistem razões lógico-jurídicas
23
para a negativa de fornecimento, pelo menos do conteúdo do prontuário.
O sigilo profissional é, portanto, peça chave para um bom andamento da
terapêutica, para um relacionamento médico-paciente saudável e honesto e para a
manutenção da dignidade, autonomia e segurança jurídica de todos envolvidos
nesta relação.
21
FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. Fundo Editorial Byk-Procienx. São Paulo. 1978.
FRANÇA, Genival Veloso de. Direito Médico. Fundo Editorial Byk-Procienx. São Paulo. 1978. p.
14.
23
RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento Nº 70000923573, Sexta
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Pedro Pires Freire, Julgado em 07/06/2000
disponível em < http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/ementa.php > pesquisado em 11/03/2007.
22
19
2
A RESPONSABILIDADE CIVIL DO MÉDICO
2.1 ASPECTOS BÁSICOS DA RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
Nas últimas décadas os estudos sobre a responsabilidade civil dos médicos
têm sido bastante numerosos, não por acaso. O número de demandas judiciais, em
busca de indenizações por possíveis erros médicos cresceu consideravelmente,
levando a jurisprudência e a doutrina a definir conceitos de modo a auxiliar na
resolução destas lides. O aumento do número de tais ações de indenização, podem
ser oriundas de diferentes e concomitantes causas. A primeira seria o maior número
de escolas médicas e com um ensino de má qualidade; a segunda os serviços de
assistência públicos do país, cada vez mais deficientes; uma terceira causa seria a
conscientização da população de seus direitos de ser bem atendido e tratado e o
acesso mais facilitado à justiça e por derradeira causa, como já mencionado no
início deste trabalho, a maior fragilidade das relações médico-paciente.
É importante também ressaltar que, muitas das ações judiciais não tem
envolvido tão somente os profissionais médicos, mas também as instituições ligadas
a eles. Atingindo o Estado, nos casos de atendimentos públicos, hospitais e clínicas
privadas e também serviços prestadores de serviços, como laboratórios de
diagnósticos. Não ficando de fora as indústrias farmacêuticas e fabricantes de
equipamentos médicos. Contudo a responsabilidade atribuída a estes é objetiva,
cabendo a estes, portanto, o ônus de provar sua inocência.
Os laboratórios de análises clínicas, bancos de sangue, centro de exames
radiológicos e outros de altíssima precisão, além de assumirem obrigação de
resultado, são também prestadores de serviços. Tal como hospitais e clínicas
médicas, estão sujeitos à disciplina do Código do Consumidor, inclusive no
24
que tange à responsabilidade objetiva.
Não é possível um único sistema de responsabilização civil que envolva todas
as profissões. Portanto cada profissão é examinada em separado. O profissional
médico “não se limita a prestar serviços estritamente técnicos, acabando por se
colocar numa posição de conselheiro, de guarda e protetor do enfermo e seus
24
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. Cit. p. 383-384.
20
familiares”.25 Portanto a assistência médica tem a natureza de um contrato sui
generis, e não de mera prestação de serviços técnicos.
Em um país como o Brasil, onde a desigualdade social é manifesta e a saúde
pública é sucateada e carente, a medicina praticada evidentemente difere nas
diferentes camadas sociais. Deve ser salientado, entretanto, que não é o médico
que escolhe tratar melhor ou pior um paciente por ser rico ou pobre. Simplesmente
ao médico não é dada a escolha. A estrutura de saúde pública, o SUS é gerido pelos
governos municipais (com auxílio de verbas estaduais e federais), que ao sistema
aportam recursos materiais e humanos. Ao final, o médico, que é servidor público,
também é vítima deste sistema, e deve praticar a melhor medicina possível dentro
dos recursos que dispõe. “Contrastando com o avanço da tecnologia, tem-se a
notória carência de recursos a subsidiar o serviço de saúde pública, o que, sem
dúvida, influi de modo extremamente negativo na atuação do médico”.26
Em suma, será preciso apurar em cada caso se, à luz da ciência e do avanço
tecnológico que o médico tinha a sua disposição, era-lhe ou não possível
chegar a um diagnóstico correto, ou a um tratamento satisfatório, resultado
27
esse, não obtido por imperícia, negligência ou imprudência injustificável.
A obrigação assumida pelo médico é de meio, e não de resultado, e não
poderia ser de outra forma, devido a todas as peculiaridades da atividade médica,
por envolver eventos muitas vezes involuntários e alheios a vontade de todos, não
pode o médico ser responsabilizado pelo resultado. Ao médico cabe prestar toda
sua sabedoria e experiência para atingir o melhor resultado possível, mas este não
pode, jamais, ser garantido, pois “a atitude do paciente não é neutra em relação ao
resultado do tratamento. Não se pode dizer, portanto, que o paciente é inteiramente
passivo em relação ao médico e que este tem a condução absoluta das ações de
saúde”.28
A noção de contrato de meio envolve também a idéia de empenho. Isto
significa que além do emprego dos meios materiais e profissionais de forma regular,
25
CAVALIERI FILHO, Sergio. Op.cit. p. 371
WEBER, Márcia Regina Lusa Cadore. Responsabilidade civil do médico. Revista de Direito
Privado. Vol.18. São Paulo. 2004. p. 146
27
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Op. Cit. p. 375.
28
FORSTER, Nestor José. Erro Médico. São Leopoldo. Unissinos. 2002. p. 72.
26
21
houve a correta aplicação dos mesmos e que além deles, não se fez mais porque
não foi possível, embora querendo, procurando e tentando um melhor resultado.29
A jurisprudência brasileira tem seguido esta linha de orientação, basta
analisar algumas decisões dos Tribunais:
Assim. Se o médico efetuou intervenção cirúrgica imprescindível, utilizou dos
meios técnicos adequados e avançados para a época, empregou as cautelas
exigidas, antes, no decorrer, e depois do ato operatório, não há como
considerá-lo culpado simplesmente porque, ao final, não se obteve o sucesso
30
perseguido.
A responsabilidade médica é contratual e subjetiva, pois a culpa auferida ao
médico deve ser provada. Cabendo ao paciente ou seus herdeiros demonstrar que o
resultado indesejado foi causado por imperícia, negligência ou imprudência.
De tudo se conclui que o médico somente tem responsabilidade indenizatória
se agiu com negligência, imprudência ou imperícia. Cabe ao cliente ou a seus
familiares a demonstração de que ocorreu conduta culposa. Daí dizer-se que
é dos atingidos o ônus da prova. Eles é que têm o compromisso de
comprovar a existência das circunstâncias identificadoras da culpa,
credenciando-se, assim, se desincumbirem a contento dessa tarefa, a
31
receber a indenização devida.
A prova da culpa é, sem dúvida, difícil de ser produzida, portanto neste ponto
recai a enorme importância dos registros em prontuário médico. Tanto para o
paciente demonstrar a atitude culposa do médico, quanto para o médico provar o
contrário. E aqui neste ponto vale também ressaltar a importância dos registros
serem feitos de forma clara, de modo a permitir aos juizes, que não têm o
conhecimento científico dos médicos, possam decifrá-los, sem que se perca a
precisão das informações.
29
LANA, Robert Lauro e FIGUEIREDO, Antônio Macena de (orgs.). Temas de direito médico. Rio
de Janeiro. Espaço Jurídico. 2004.
30
PARANÁ, Tribunal de Justiça. Apelação Cível nº 69836400. Relator: Juiz Airvaldo Stela Alves. Data
do julgamento: 16/06/1999. Jurisprudência cível.
31
FORSTER, Nestor José. Op. cit. p. 52.
22
2.2 A IMPORTÂNCIA DO PRONTUÁRIO MÉDICO COMO DOCUMENTO E SEU
TRATAMENTO
A confecção de um prontuário para cada paciente que ingressa em uma
instituição de saúde é obrigatória, mesmo que seja uma simples consulta de revisão
clínica feita em consultório particular. O Código de Ética Médica é bem claro em seu
art. 69: “É vedado ao médico deixar de elaborar prontuário médico para cada
paciente.”32
Porquanto o código manifeste a obrigação da elaboração do prontuário, nada
há que obrigue a que este seja preenchido de forma completa. Cabe ao profissional
responsável zelar pelo bom arquivamento das informações, pois o prontuário é de
sua autoria e a sua utilidade é inestimável.
A utilidade dos registros médicos vai muita além de servir como prova judicial,
tema objeto deste estudo. Um prontuário bem preenchido cronologicamente e com
informações completas sobre o paciente, sua história médica pregressa, seus
hábitos, medicações, exames realizados etc., são excelente recurso para que o
médico tenha mais facilidade de diagnosticar um novo sintoma de uma doença
preexistente ou mesmo uma nova patologia, iniciando a terapêutica adequada com
maior brevidade.
Os hospitais têm a obrigação de ter arquivada toda a documentação
pertinente a um paciente que ali se interna. Parte desta documentação são as
evoluções médicas, e seu preenchimento é de responsabilidade do médico
assistente do paciente e seus auxiliares. À equipe de enfermagem também cabe
registrar os procedimentos realizados por ela. Todo este material deve ser arquivado
pela instituição hospitalar, de modo que possam ser resgatados, facilmente, seja
pelo nome do paciente, seja pela doença que motivou a internação. Esta
obrigatoriedade advém de convênios assinados entre o governo brasileiro e a
Organização Mundial da Saúde, através dos quais os hospitais devem dispor do
32
BRASIL. Resolução CFM nº 1.246/88. Código de Ética Médica. Conselho Federal de Medicina.
Brasília, 2000. Pág. 24.
23
SAME – Serviço de Arquivo Médico e Estatístico, em que os prontuários são
classificados e arquivados pelo nome do paciente e da doença.33
Os prontuários médicos também podem revelar informações não apenas do
paciente em questão, mas inclusive dados históricos que auxiliam no resgate da
memória de alguns hospitais mais antigos. Como vem acontecendo na Santa Casa
de Misericórdia de Porto Alegre, que vem trabalhando em projeto de um Centro
Histórico e Cultural, onde um acervo de 2 milhões de prontuários médicos remontam
parte da história da medicina gaúcha e brasileira nestes 201 anos de existência da
instituição.
O espaço de 3.700m² de área a ser construída também terá como objetivo
conter e expor, entre as peças do considerável acervo da Instituição de 201
anos, um arquivo com dois milhões de prontuários que remontam à história
da medicina gaúcha e brasileira, cerca de 7 mil objetos, 1.052 livros dos
séculos 19 e 20, uma rica coleção de pinturas, e, ainda, os registros de
crianças abandonadas na Roda dos Expostos (1837 a 1940), registros das
epidemias que assolaram a cidade nos dois últimos séculos, entre outros
34
documentos raros.
Em vista de tudo isto, os prontuários médicos são documentos de imensa
relevância. Resumidamente, como observamos ao longo desta dissertação, é de
importância no meio jurídico, na pesquisa médica, no acompanhamento do paciente,
nos cálculos de custos e para a história da medicina e suas instituições.
2.3 A INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA E O USO DO PRONTUÁRIO MÉDICO
COMO TAL
Nos casos de indenização por erro médico, visto que a responsabilidade do
médico é subjetiva, com a culpa devendo ser provada, cabe a parte litigante provar a
negligência, imprudência ou imperícia do profissional. O prontuário é documento que
pertence ao médico ou à instituição onde foi feito o atendimento, portanto, tais
informações podem ser utilizadas juridicamente. Principalmente naquelas situações
33
LANA, Robert Lauro e FIGUEIREDO, Antônio Macena de (orgs.). Temas de direito médico. Rio
de Janeiro. Espaço Jurídico. 2004. p. 183.
34
SANTA CASA de Porto Alegre. Quando o diferencial na saúde é o sistema de gestão. Porto
Alegre. 2006. disponível em < http://www.santacasa.tche.br/imprensa/release_diferencial.asp >
pesquisado em 11/03/2007.
24
onde o juiz determina a inversão do ônus da prova. Nestes casos caberá ao
profissional provar que agiu com diligência, prudência e perícia técnica adequada à
situação. Como reforça Forster: “se deferida a inversão do ônus probatório, passará
ao profissional a obrigação de comprovar que ele agiu sem culpa e segundo os
critérios geralmente aceitos no exercício de sua profissão.”35
A importância do prontuário transcende a área médica, pois se apresenta,
também, de vital interesse para o processo judicial, em eventual demanda em
que se questiona a responsabilidade civil do médico e/ou hospital posto poder
36
ser utilizado pelos interessados como meio de prova.
A inversão do ônus da prova não é, contudo, pacífica entre os doutrinadores,
pois visto que a responsabilidade atribuída aos profissionais liberais é do tipo
subjetiva,
a
inversão
do
ônus
da
prova
seria
uma
objetivação
desta
responsabilidade. Entretanto a doutrina majoritária a aceita, por acreditar que tratase apenas de uma questão processual, não tornando, por si só, a responsabilidade
do médico do tipo objetiva. 37
Como prontuário médico, entendemos não apenas registros hospitalares, mas
todos os registros feitos pelo médico de modo a organizar os atendimentos feitos a
um paciente. Portanto atendimentos em consultórios e clínicas privadas e também
atendimentos em postos de saúde públicos são registrados e constituem prontuários
a serem arquivados e com status de documento.
Ao lançar informações no prontuário médico, o profissional não estará apenas
registrando o atendimento que o paciente recebe, registro tão importante do
ponto de vista da medicina, mas formalizando, potencialmente, elementos de
defesa do ato médico praticado. Saliente-se que os mesmos argumentos
38
aplicam-se às fichas ambulatoriais e às fichas dos consultórios privados.
Aqui neste ponto do trabalho, cabe salientar a importância de outro
documento fundamental à defesa profissional. Trata-se do Consentimento
Informado. Este pode fazer parte do prontuário, de modo que o esclarecimento feito
35
FORSTER, Nestor. Op. Cit. p 105.
LANA, Robert Lauro e FIGUEIREDO, Antônio Macena de (orgs.). Temas de direito médico. Rio
de Janeiro. Espaço Jurídico. 2004. p. 183.
37
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. A responsabilidade civil no código do consumidor e a
defesa do fornecedor. Porto Alegre. Saraiva. 2002.
38
FABBRO, Leonardo. Manual dos Documentos Médicos. Edipucrs. Porto Alegre, 2006. p. 69.
36
25
ao paciente, e seu consentimento ou recusa à proposta terapêutica do médico, se
encontrem juntamente com os registros, em um continuado, ou pode consistir em
documento escrito e assinado e avulso, arquivado, na maioria das vezes, juntamente
com o prontuário médico.
Entretanto a inexistência do termo não pressupõe inexistência de
consentimento, da mesma forma que a mera existência de termo escrito não
implica garantias legais de isenção de responsabilidade legal por má-prática
39
médica.
O consentimento informado é, na verdade, a formalização de um ato
esperado de todo profissional da saúde, que é esclarecer ao doente e/ou seus
familiares sobre o diagnóstico feito, a terapia proposta, seus riscos e efeitos positivos
e negativos. Trata-se de respeito ao princípio da boa-fé objetiva, pois é dar ao
paciente a oportunidade de compreender sua situação e exercitar seu direito de
liberdade e autonomia, escolhendo se aceita ou não a terapia recomendada.
Quanto ao consentimento informado, a jurisprudência brasileira está
começando a acompanhar a tendência mundial de exigir maior autonomia de
vontade do paciente-consumidor e de sua família-consumidores equiparados
e estabelecer que a falta de consentimento informado e refletido da vítima é
40
um dano culposo por si só.
Ao médico cabe o papel de informar ao paciente sobre sua situação, as
possibilidades terapêuticas e seus riscos e seu prognóstico. Parece simples, mas
não é. Como pode o paciente, sozinho ou com sua família, sem ter algum
conhecimento técnico, escolher o que melhor para si? Claro que o paciente quer o
melhor para si, mas muitas vezes a escolha é difícil. Ao médico cabe o papel de
aconselhar seu paciente, afinal ele tem mais condições teóricas para tanto. Não se
trata de induzir o paciente a um determinado tratamento. É função do médico a
recomendação do que considera melhor ao doente. Afinal é o que buscamos ao
consultar um médico; um tratamento adequado. Ao médico cabe, feito o diagnóstico,
informar, esclarecer, advertir, mas também aconselhar ao paciente, para que então
ele possa decidir. E esta decisão deve ser registrada junto ao prontuário do
paciente.
39
MARTINS-COSTA, Judith. Entendendo problemas médico-jurídicos em ginecologia e obstetrícia. In
FREITAS, Fernando (Org.). Rotinas em Obstetrícia. Porto Alegre. 2006. p. 670.
40
MARQUES, Claudia Lima. A responsabilidade dos médicos e do hospital por falha no dever de
informar ao consumidor. Revista dos Tribunais. Ano 93,v. 827. setembro de 2004. p. 31.
26
Resta claro que o Consentimento Informado é, juntamente com o prontuário
médico, documento muito importante como prova. A sua confecção, se redigido
juntamente ou em separado do prontuário parece ser de pouca relevância. O que
importa é que fique claro que houve o esclarecimento adequado do doente e/ou
seus familiares e que houve a participação dos mesmos na decisão acerca do
tratamento. O consentimento informado, quando feito em separado não deve ser
simplesmente entregue para que o paciente leia e assine, isto acaba levando a
invalidade do documento. O mesmo deve ser esclarecido pelo médico e
compreendido pelo paciente. A não concordância em submeter-se a determinada
proposta terapêutica deve ser registrada sempre, assim como o abandono do
tratamento ou seguimento inadequado das prescrições médicas por parte do
paciente ou seu responsável. Ou seja, tudo registrado de modo que em caso de lide
judicial, o juiz ou os peritos possam compreender como os eventos se procederam e
se há culpa do profissional.
27
3 O USO E A VALORIZAÇÃO DO PRONTUÁRIO MÉDICO EM NOSSO MEIO
Uma amostra da rotina dos médicos de Porto Alegre em relação ao
preenchimento de prontuários e de seu conhecimento da importância dos
mesmos como prova judicial
Em busca de uma noção real sobre como estão procedendo os médicos da
cidade de Porto Alegre em relação aos registros de suas atividades junto aos
pacientes, foi elaborado um questionário com perguntas objetivas e entregue a
alguns profissionais para que respondessem (anexo 1). Foi esclarecido aos mesmos
que tratava-se de um pesquisa, para realização de trabalho de conclusão de curso
da Faculdade de Direito da PUCRS, e que os dados não seriam publicados, apenas
apresentados à banca avaliadora. Ao todo, 64 profissionais médicos responderam
ao questionário, cujos resultados estão a seguir. Os dados são apresentados em
tabelas e gráficos, para melhor visualização e entendimento.
A primeira pergunta foi a única aberta do questionário, para saber a
especialidade do entrevistado. Como existem várias especialidades médicas para
análise, as respostas foram agrupadas de acordo com as quatro grandes áreas da
medicina, quais sejam: cirurgia, medicina interna, pediatria e ginecologia/obstetrícia.
A pergunta foi feita para mostrar um panorama do universo analisado, e verificar se
há alguma diferença, entre as especialidades, no tocante aos prontuários.
A área da medicina interna abrange todas as especialidades clínicas, por
exemplo: cardiologia, pneumologia, endocrinologia, gastroenterologia, etc. na
cirurgia estão compreendidas as especialidades cirúrgicas, como por exemplo a
cirurgia geral, cirurgia torácica, oftalmologia, traumatologia, etc. A anestesiologia foi
incluída com a cirurgia, por envolver, eminentemente, os procedimentos cirúrgicos.
Tabela 1 - Especialidades
médicas
Cirurgia
Clínica
Pediatria
Ginecologia e Obstetrícia
Fonte: Autor (2007).
09
34
16
05
28
7,8%
14,1%
Cirurgia
25,0%
Clínica
Pediatria
Ginecologia e
Obstetrícia
53,1%
Gráfico 1 - Especialidades médicas
Fonte: Autor (2007).
A segunda pergunta foi para saber a quanto tempo o médico estava formado,
teve o objetivo de poder ter dados para estabelecer alguma diferença entre os mais
antigos e mais novos na profissão.
Tabela 2 - Tempo de formado
< 5 anos
5-10 anos
>10 anos
21
13
30
Fonte: Autor (2007).
32,8%
46,9%
< 5 anos
5-10 anos
>10 anos
20,3%
Gráfico 2 - Tempo de formado
Fonte: Autor (2007).
Aproximadamente a metade dos entrevistados está formada há mais de dez
anos, este dado importa para avaliarmos se há alguma relação entre tempo de
profissão e rotinas quanto ao preenchimento de prontuários.
29
A questão seguinte visou saber a vivência pessoal com processos judiciais,
envolvendo responsabilidade civil e condutas médicas. Para tanto, foi considerada,
também, a experiência de outros modos, além de parte, como por exemplo, sendo
testemunha.
Tabela 3 - Envolvimento em processos
judiciais
Sim
Não
20
44
Fonte: Autor (2007).
31,3%
Sim
Não
68,8%
Gráfico 3 - Envolvimento em processos judiciais
Fonte: Autor (2007).
Verificamos que 31,3%, ou seja, 20 dos entrevistados, já se encontraram
envolvidos com processos relacionados à conduta médica. Podemos também, ao
analisar os resultados, que destes, 13 estavam formados há mais de dez anos, 3
entre cinco e dez anos e quatro há menos de 5 anos.
A quarta pergunta foi para saber se os médicos têm procurado se resguardar
através de mais substrato técnico, como exames complementares, solicitados por
precaução apenas.
Tabela 4 - Solicitação de exames por
precaução
Sim
Não
37
27
Fonte: Autor (2007).
30
42,2%
Sim
57,8%
Não
Gráfico 4 -Solicitação de exames por precaução
Fonte: Autor (2007).
Nota-se que mais da metade utilizam-se dos substratos complementares para
reforço diagnóstico.
A quinta questão foi mais explicita; para saber se o maior número de exames
solicitados se devia a um temor por envolvimento em alguma demanda judicial.
Tabela 5 - Exames feitos a mais por temor
a um processo
Sim
Não
39
25
Fonte: Autor (2007).
39,1%
Sim
60,9%
Não
Gráfico 5 -Exames feitos a mais por temor a um processo
Fonte: Autor (2007).
31
Podemos perceber que, mais de 60% dos entrevistados, manifestaram em
sua conduta médica, algum temor a um processo judicial, o que corrobora com a
pergunta anterior com relação ao maior número de exames solicitados. Podemos
inferir, portanto, que a idéia de responder a um processo médico não está distante
dos pensamentos dos profissionais de Porto Alegre, e que suas condutas e cuidados
podem estar se alterando por conta desta perspectiva.
A sexta pergunta já foi relacionada ao nosso tema central, que são os
prontuários. Foi perguntado se os médicos procuram preencher sempre de forma
completa aos seus prontuários.
Tabela 6 - Preenchimento completo dos
Prontuários
Sim
Não
56
8
Fonte: Autor (2007).
12,5%
Sim
Não
87,5%
Gráfico 6 - Preenchimento completo dos prontuários
Fonte: Autor (2007).
Os resultados acima vêm ao encontro das expectativas deste trabalho.
Demonstra que a maioria dos médicos, ao menos desta amostra, têm se preocupado
com a documentação de suas atividades, e procuram manter seus prontuários
completos.
A pergunta seguinte é vinculada a anterior, pois se dirigiu àqueles que
responderam que não conseguem completar sempre os prontuários. Nesta questão,
32
foram sugeridos três motivos pelo mau preenchimento, para que o entrevistado
respondesse qual o mais próximo da sua realidade.
Tabela 7 - Motivo pelo preenchimento
incompleto de prontuários
Falta de tempo
35
Falta de costume
02
Falta de arquivo
01
Fonte: Autor (2007).
A terceira opção, falta de arquivo, que na tabela não está completa, refere-se
à falta de arquivamento de prontuários no local onde trabalha. Tal situação pode
parecer absurda, e na realidade é, mas infelizmente alguns locais, principalmente
postos de saúde, pequenas clínicas e serviços de pronto-atendimento ainda não
contam com arquivos para prontuários organizados, deixando os médicos sem ter
uma ficha clínica para documentação de suas atividades. Muitos médicos, nestas
situações acabam por elaborar um fichário para seu uso próprio (e é aconselhável
fazê-lo), porém, tal tarefa muitas vezes despende tempo, o qual é escasso,
principalmente em serviços de atendimento público e emergências.
5,3% 2,6%
Falta de tempo
Falta de costume
Falta de arquivo
92,1%
Gráfico 7 - Motivo pelo preenchimento incompleto de
prontuários
Fonte: Autor (2007).
A falta de tempo foi a principal causa, e era, de fato, a mais esperada. É um
reflexo das condições de trabalho de muitos médicos. Principalmente em saúde
pública. Como mostrado no próximo gráfico, 87,5% dos entrevistados realizam
atendimentos pelo SUS.
33
Tabela 8 - Trabalha no setor público
Sim
Não
56
8
Fonte: Autor (2007).
12,5%
Sim
Não
87,5%
Gráfico 8 - Trabalha no setor público
Fonte: Autor (2007).
É importante frisar que estes 56 entrevistados, que referiram atender em
locais públicos, também exercem atendimentos privados. A próxima questão foi
justamente para tentar descobrir se há, e qual motivo da diferença no preenchimento
de prontuários, em locais públicos e privados.
Tabela 9 - Motivo pela diferença no
preenchimento público X privado
Falta de tempo
27
Falta de costume
02
Falta de arquivo
02
Fonte: Autor (2007).
Aqui se reforça aquilo que foi dito acima, ou seja, a falta de tempo como
principal motivo do registro incompleto das atividades médicas. Também a falta de
arquivo apareceu como causa. O costume de manter seus registros em dia é algo
que independe do local de atendimento, portanto é a atitude do profissional, frente à
documentação de suas condutas que deve ser repensada. Apesar destes motivos
citados acima e de outros, cada médico deve procurar zelar por sua profissão e pelo
seu nome, e um bom registro de tudo é fundamental para isto.
34
6,5%
6,5%
Falta de tempo
Falta de costume
Falta de arquivo
87,1%
Gráfico 9 - Motivo pela diferença no preenchimento
público X privado
Fonte: Autor (2007).
A pergunta que se seguiu foi para avaliar a confiança que os médicos detêm
sobre seus registros, isto é, se acreditam que a maneira como são preenchidos irá
auxiliá-los como defesa, caso venham a responder algum processo judicial.
Tabela 10 - Confiança em seus prontuários como
defesa judicial
Sim
Não
41
23
Fonte: Autor (2007).
35,9%
Sim
Não
64,1%
Gráfico 10 - Confiança em seus prontuários como defesa
judicial
Fonte: Autor (2007).
Surpreendentemente, mesmo que tenha respondido que procura preencher
sempre os prontuários de forma completa, 35,9% não acreditam que os mesmos
sejam suficientes para sua defesa profissional. Ao refletir sobre estes resultados, a
35
explicação inferida é que, muito provavelmente, os médicos, apesar de confiarem
em seus registros, crêem que apenas eles não são suficientes, sendo importante
também um bom advogado, testemunhas, depoimentos, etc. Contudo, esta questão
foi mantida na análise, pois não afasta a preocupação que os médicos têm com suas
responsabilidades e seus registros.
A questão seguinte procurou verificar o quanto os médicos acreditam que são
compreendidos por seus pacientes.
Tabela 11 - Crença na compreensão dos
pacientes
Sim
Não
55
9
Fonte: Autor (2007).
14,1%
Sim
Não
85,9%
Gráfico 11 - Crença na compreensão dos pacientes
Fonte: Autor (2007).
A maioria se acredita bem compreendida por seus pacientes. Provavelmente
aqueles nove que responderam não (14,1%) são, na verdade, realistas. Acredita-se
que os pacientes, em média, não memorizam mais do que cerca de 70% das
recomendações médicas recebidas na consulta.
A última pergunta diz respeito ao consentimento informado. Se o utilizam,
principalmente em situações de risco, ou mais delicadas.
36
Tabela 12 - Uso do consentimento informado
Sim
Não
36
28
Fonte: Autor (2007).
43,8%
Sim
56,3%
Não
Gráfico 12 - Uso do consentimento informado
Fonte: Autor (2007).
Apenas 56.3% dos entrevistados admitiram o uso do consentimento
informado, o que é lamentável. O ideal seria que essas cifras se aproximassem dos
100%. E o mais interessante, é que apenas 8 dos entrevistados que já vivenciaram
um processo judicial referiram que registram consentimento informado dos pacientes
junto ao prontuário.
37
4 AS VISÕES DA DOUTRINA MÉDICA, JURÍDICA E JURISPRUDÊNCIA
4.1 A DOUTRINA MÉDICA E O TEMA DOS PRONTUÁRIOS
A classe médica, representada por seus conselhos profissionais estaduais e
federal, tem acompanhado a crescente demanda por ações de indenização
envolvendo sua atividade. Também já percebeu a importância dos prontuários como
prova jurídica. Como reflexo, o Conselho Federal de Medicina publicou uma
Resolução, a 1.638/02, que define prontuário e torna obrigatória a criação da
Comissão de Revisão de Prontuários Médicos nas instituições de saúde. A
Resolução estabelece também os pontos obrigatórios a estar presentes nos
prontuários, que são: identificação completa do paciente, anamnese, evolução diária
do paciente com data e hora, legibilidade (quando escrito à mão), e preenchimento o
mais completo possível, inclusive nos casos emergenciais, onde a história clínica se
torna deficiente. Nesta resolução é mencionada a importância legal dos prontuários:
“o prontuário é documento valioso para o paciente, para o médico que o assiste e
para as instituições de saúde, bem como para o ensino, a pesquisa e os serviços
públicos de saúde, além de instrumento de defesa legal”.41
Como exemplo da relevância do tema para a comunidade médica, já há
congressos que reúnem médicos para discutir não assuntos atinentes à medicina
diretamente, mas questões legais que envolvem a atividade médica. Exemplo disto
foi o 1º Congresso Gaúcho de ética Médica, que se realizou juntamente com o 6º
Congresso Brasileiro de Direito Médico, realizados de 07 a 09 de setembro de 2006
em Bento Gonçalves – RS. Na ocasião houve um painel que discutiu precisamente o
erro profissional, a perícia e a justiça. O encontro não contou apenas com a
presença de médicos, mas também de juristas representantes do Ministério Público
e Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
O profissional precisa deixar muito claro que o paciente tem outras
alternativas, os riscos de cada procedimento. É importante o consentimento
41
BRASIL. Resolução CFM nº 1.638/02. Conselho Federal de Medicina. Brasília. 2002. disponível em
< http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2002/1638_2002.htm > pesquisado em 24/03/2007.
38
formal. Então essas informações aparecem num prontuário completo, que
42
precisa ser preenchido minuciosamente.
A representante do MP no evento salientou que “é fundamental o médico
manter o registro que traduza com nitidez o diálogo que teve com o paciente como
medida preventiva”.43
O Conselho Regional de Medicina (CREMERS), através de encontros com
profissionais e através de seu boletim informativo mensal, vem trabalhando no
sentido de orientação aos médicos para que realizem de forma completa e rotineira
ao preenchimento dos prontuários, que não deleguem essa tarefa a assistentes, pois
ninguém melhor que o próprio profissional para registrar os acontecimentos, por
exemplo, uma descrição cirúrgica.
Cada vez mais os próprios livros-texto da área médica vêm abordando o tema
dos prontuários, seu cuidadoso preenchimento, a necessidade de esclarecimento
adequado, e o consentimento dos pacientes e/ou seus familiares.
É fundamental esclarecer à paciente e a seus familiares sobre o alcance da
cirurgia e sobre seus potenciais riscos (...). O consentimento informado deve
ser colhido preferentemente no ambulatório (consultório). Isso evita retardo e
44
confusões no período pré-operatório.
4.2 A JURISPRUDÊNCIA E A DOUTRINA JURÍDICA ACERCA DA IMPORTÂNCIA
DO PRONTUÁRIO MÉDICO
Como a responsabilidade do médico é subjetiva, pressupõe a investigação da
culpa. Para a apuração da culpa médica se obedecem aos mesmos padrões
adotados para a definição da culpa comum, ou seja, na avaliação do caso concreto,
o juiz deve estabelecer quais os cuidados, que ao profissional, cabia dispensar
aquele paciente, de acordo com os padrões determinados pelos usos da ciência,
42
BERNARDI, Marineide. A importância da perícia e do prontuário médico perante a justiça.
Informativo CREMERS. Nº 36. Porto Alegre. Setembro de 2006. p. 15.
43
ASSMANN, Marines. A importância da perícia e do prontuário médico perante a justiça.
Informativo CREMERS. Nº 36. Porto Alegre. Setembro de 2006. p. 15.
44
MONEGO, Heleusa, et al. Pré e pós-operatório em cirurgia ginecológica. In FREITAS, Fernando
(org.). Rotinas em Ginecologia. Porto Alegre, 2006. p. 34.
39
confrontando-os com a realidade da situação analisada, e qual o comportamento
efetivamente adotado pelo médico. Para tanto, muitas vezes o magistrado
necessitará do conselho de entendidos, os peritos.
A perícia é imprescindível, na maioria dos casos. Como a mesma é feita por
profissionais da área médica, existe um receio de que não ocorra a imparcialidade
desejada, como conseqüência de um corporativismo médico.
Sopesando-se as condições anteriores do paciente, a conduta médica e a
conseqüência danosa, estabelecer-se-á a culpa. O julgador deve, nesses
casos, abandonar o dogmatismo probatório e deixar-se guiar por maior
percentual de senso comum. Em síntese, deverá – conforme o caso –
sobrepor-se aos laudos periciais, escoimando-os do ranço classista e decidir,
45
até, contra eles.
Para alguns doutrinadores, esse “ranço classista” seria motivação suficiente
para defender a inversão do ônus da prova. “Se a prova da culpa é indispensável à
responsabilização do médico, tem-se fundamental saber a quem incumbe o ônus da
prova”46. Provar é demonstrar a certeza de um fato ou veracidade de uma afirmação.
No Brasil o ônus da prova é do paciente ou lesado, como determinado no Art. 333,
inc. I do Código de Processo Civil.
Os doutrinadores que apóiam que se faça a inversão do ônus da prova se
alicerçam no Código de Defesa do Consumidor, em seu Art. 6º, inc. VIII. Desde que
o juiz considere a alegação do autor verossímil ou esse se encontre em posição
hipossuficiente. Invertido o ônus da prova, caberá ao réu demonstrar a inexistência
do fato ou conduta culposa. Esses autores acreditam que a inversão do ônus da
prova contribui para que a igualdade das partes seja real e não formal, e que o
sistema não incite ao desequilíbrio em favor de um ou de outro.
A inversão do ônus da prova constitui-se em uma modalidade de facilitação
da defesa dos direitos básicos do consumidor, devendo somente ser
admitida, como ato do juiz, quando for satisfeito um de seus dois
pressupostos de admissibilidade: a) for verossímil a alegação; ou b) for o
47
consumidor hipossuficiente.
45
KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. São Paulo. Revista dos Tribunais.
2003. p. 220.
46
WEBER, Márcia Regina Lusa Cadore. Op. Cit. p. 157
47
MORAES, Voltaire de Lima. Apud WEBER, Márcia Regina Cadore. Op. Cit. p. 159
40
Há, entretanto autores que defendem a inviabilidade da inversão do ônus da
prova, pois inverteria a regra da responsabilidade subjetiva, pois que essa é conceito
de direito material e a inversão da prova é matéria de direito processual. E mais, o
Código do Consumidor exclui os profissionais liberais da incidência desta lei
protetiva, em seu Art.12, § 4º.48
Agora que a noção de prova e de quem deve fornecê-la foi discutido, cabe
discutir o que são as provas, propriamente ditas. Pois bem, os prontuários médicos
são provas perfeitamente aceitas pelos tribunais, pois nada melhor para expor as
circunstâncias em que os fatos em discussão ocorreram. Se houve negligência,
imprudência ou imperícia do médico demandado.
É junto do prontuário, que muitas vezes, está o registro em que o paciente foi
informado de sua situação, e a sua aceitação. Cada vez mais é valorizado o
documento que traz a concordância do paciente, ou seus responsáveis, para um
tratamento ou procedimento médico. Contudo a qualidade das informações
fornecidas ao paciente é o cerne para a validade deste documento. De nada vale um
simples termo assinado, “para que a autorização do paciente seja válida, deve haver
correlação obrigatória entre a informação e o consentimento”.49
Cada vez mais a jurisprudência brasileira tem valorizado o uso adequado do
consentimento informado. É, na verdade, a valorização do princípio da autonomia de
vontade do paciente. Até mesmo condutas que não causam dano direto, sob o ponto
de vista de malefício à saúde, podem ensejar uma indenização, se a mesma foi
realizada sem o conhecimento adequado e consentimento refletido do paciente
(exemplo: laqueadura tubária).
Ação ordinária de indenização. Danos materiais e morais. Imperícia médica.
Laqueadura de trompas. Reconvenção. Não tendo a autora dado sua
aquiescência à cirurgia, da qual resultou estéril. Presente a conduta indevida
do médico, com o que assente o dever de indenizar. Dano moral.
50
Reconhecimento.
48
SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. A responsabilidade civil no código do consumidor e a
defesa do fornecedor. Porto Alegre. Saraiva. 2002.
49
WEBER, Márcia Regina Cadore. Op. Cit. p. 153
50
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Apelação cível nº70002965127. Juíza Ana Lucia
Carvalho Pinto Vieira. Julgado em 04/12/2002. Porto Alegre. Disponível em
< http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/resultado.php > Pesquisado em 06/04/2007.
41
A análise dos prontuários do paciente tem outro valor muito importante. O
auxílio no esclarecimento do nexo de causalidade. Ou seja, se o dano sofrido pelo
paciente é conseqüência da conduta médica. É no prontuário, muitas vezes, que
encontramos os indícios necessários para estabelecer a culpa, ou a ausência dela.
A determinação do nexo causal constitui operação intelectual apoiada sobre
indícios e presunções. Tal exercício mental é sempre delicado – e exige dos
magistrados que determinem, com sabedoria, se a culpa foi relevante, ou
51
não, para causar o dano.
Ao magistrado é muito importante ter ao seu dispor elementos que lhe
auxiliem na decisão, que lhe demonstrem o nexo causal entre o dano e a conduta
médica e se houve culpa pelo dano causado. É inegável o valor do prontuário nestas
situações, vide as decisões judiciais acerca do tema.
EMENTA: AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS PATRIMONIAIS,
MORAIS E ESTÉTICOS. ERRO MÉDICO. CIRURGIA DE FRATURA
EXPOSTA NO TERÇO MÉDIO DO ANTEBRAÇO ESQUERDO.
NEGLIGÊNCIA E IMPERÍCIA. CERCEAMENTO DE DEFESA. PRECLUSÃO.
Não obstante preclusa a faculdade de reeditar o pedido de perícia
grafodocumentoscópica em prontuário médico acusado de adulteração, pois
negado seguimento ao Agravo de Instrumento interposto da decisão
denegatória da perícia, enfrenta-se a questão em homenagem ao preceito
constitucional da ampla defesa. Não caracteriza cerceamento de provas o
indeferimento daquela notadamente despicienda ao desate da lide.
PRELIMINAR*-/ REJEITADA. MÉRITO. Não tendo a prova, nem
perfunctoriamente, apontado ao erro médico, traduzido pelas figuras da
negligência e imperícia, a improcedência da demanda era a decisão que se
impunha. SENTENÇA MANTIDA. APELO DESPROVIDO. (Apelação Cível Nº
70009366931, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Ana
52
Lúcia Carvalho Pinto Vieira, Julgado em 17/03/2005).
A existência de prontuários com as informações concernentes de cada
paciente, demonstra, além de obediência às normas de registros e arquivamentos de
informações, diligência dada às informações recebidas. É a expressão do cuidado
que o profissional mantém, não só com a saúde física de seu paciente, mas também
cuidado com o sigilo das informações e com a documentação de todas as etapas do
atendimento. É atitude que transcende à atividade médica, mas não menos digna e
51
KFOURI NETO, Miguel. Graus da culpa e redução eqüitativa da indenização. In: Revista dos
Tribunais. Vol 839. São Paulo. Setembro/2005. p. 65.
52
RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça. Apelação Cível Nº 70009366931, Relator: Ana Lúcia
Carvalho Pinto Vieira, Julgado em 17/03/2005. Porto Alegre. Disponível em:
http://www.tj.rs.gov.br/site_php/jprud2/resultado.php Pesquisado em 06/04/2007.
42
importante. Por isso transcrevemos as palavras da Dra. Judith Martins-Costa, em
concordância com os pensamentos que impulsionaram a realização deste trabalho.
O descumprimento do dever de informar deve ser avaliado in concreto, pois
haverá casos de atendimento de urgência, [...] Verifica-se que um elevado
número de condenações judiciais de médicos a reparar danos decorre do
mau cumprimento deste dever ou de sua deficiente documentação. O
profissional não deve só observa-lo, como atesta-lo, documentando o
resultado no prontuário médico.
Este é o documento – cuja importância, inclusive para efeitos jurídicos nem
sempre é bem considerada pelos médicos - que estampará, em grande
medida, o cumprimento dos deveres de informação. Seu pronto e correto
preenchimento é dever médico, tendo o paciente direito à sua exibição. No
caso de utilizar uma técnica inovadora, ou de alto risco, deve o prontuário
conter, ainda que de modo sintético, a razão pela qual foi aquela técnica, e
não outra, a escolhida. Se estiver adequadamente elaborado, pode ser de
fundamental importância para a defesa do médico demandado em juízo, de
modo que o profissional não deve “deixar para mais tarde” a realização das
53
anotações.
Ao final desta pesquisa, restou demonstrado o temor manifestado na citação
acima, de que os médicos não estão dando a devida importância a documentação
de suas atividades. Esperamos que a categoria médica, em vista de todos os
esforços
das
respectivas
associações
profissionais,
gradativamente
se
conscientizem da importância dos registros em prontuários médicos, e os realizem
como rotina, tão importante e digna quanto o próprio atendimento ao paciente.
53
MARTINS-COSTA, Judith. Entendendo problemas médico-jurídicos em ginecologia e obstetrícia. In:
FREITAS, Fernando (Org.). Rotinas em obstetrícia. Porto Alegre: Artmed, 2006. p. 662-663.
43
CONSIDERAÇÃOES FINAIS
Este trabalho demonstrou a relação que há entre os profissionais da área
médica e seus registros, a importância destes para as atividades daqueles, desde os
primórdios da medicina até a atualidade.
Ao traçar, brevemente, a evolução da relação médico-paciente até os dias de
hoje, observou-se a sua deterioração, como uma das causas do maior número de
processos contra médicos. Contribuíram, entretanto, outros motivos para este fato,
como a maior facilidade de acesso à justiça; as atuais relações sociais,
caracterizadas pelo imediatismo e individualismo, transformando a prestação do
atendimento médico em simples prestação de serviço, onde o cliente busca sua
plena satisfação e o médico sua remuneração; as condições inadequadas onde são
realizados muitos atendimentos, principalmente públicos, propiciando situações e
desfechos indesejados por pacientes e médicos; um grande número de
especialidades médicas, levando a quase extinção do médico da família, etc.
Os apontamentos médicos, que hoje são denominados prontuários, onde são
registradas todos as evoluções do médico acerca do paciente, foram estudados.
Desde sua origem, suas utilidades para o médico, para o paciente, para a instituição
hospitalar, para os controles sanitários e finalmente para a justiça.
Neste estudo, ficou evidenciado a relevância dos prontuários como prova em
processos de responsabilidade civil médica. Verificou-se a importância, dos
mesmos, para o esclarecimento dos julgadores, auxiliando nas decisões quanto à
existência ou não de culpa do médico.
O nosso sistema jurídico, ao adotar a teoria subjetiva para a responsabilidade
médica, trouxe a prerrogativa de que a culpa do médico deve ser demonstrada.
Portanto, para comprovar que a conduta médica foi eivada de negligência,
imprudência ou imperícia, nada mais próprio do que o exame dos documentos
havidos à época dos eventos investigados.
44
O exame destes registros podem ser de relevância probatória a qualquer das
partes, dependendo do caso concreto. Tanto podendo eximir o médico da culpa,
quanto demonstrando-a.
O questionário aplicado a alguns médicos de Porto Alegre trouxe algumas
constatações importantes. Apesar de tratar-se de uma pequena amostra do universo
de médicos que atua na capital, percebemos que alguns admitem não proceder aos
seus registros de forma completa (8%). A maioria destes profissionais referia a falta
de tempo como motivo do inadequado preenchimento. Contudo, este motivo não o
excluirá de responsabilizar-se civilmente por um ato, e se não houverem sido
documentados os eventos causadores do insucesso terapêutico, ou do resultado
indesejado, a defesa do médico ficará bastante carente. O mesmo falar daqueles
que afirmaram não confiar em seus registros, como defesa em um processo
(35,9%). Este resultado leva a crença de que mais do que 8%, dos questionados,
registram de modo inadequado, em suas fichas médicas.
Com relação ao uso do consentimento informado, e sua documentação, a
cifra de 56,3% é muito baixa. Somos levados a pensar que os médicos estão se
descuidando em seus prontuários. Mas há aqui um viés a ser analisado: muitas
especialidades clínicas não se utilizam de consentimentos, por não praticarem
procedimentos invasivos, ou arriscados.
Ao término deste trabalho, restou clara a importância dos documentos
médicos de seu arquivamento adequado, e de sua importância como prova judicial.
Tal conclusão sendo referendada pelas doutrinas médica e jurídica e pelo exame
jurisprudencial.
45
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APENDICE A – Questionário aplicado aos médicos
Você não deve se identificar.
Procure responder com toda a sinceridade.
Este trabalho visa a uma amostragem de como está o comportamento dos
colegas em relação ao tema de processos contra médicos na cidade de
Porto Alegre. Não busca dar nenhum tipo de aconselhamento ou conduta.
1. Qual a sua especialidade?
2. Há quanto tempo está formado? ( )<5anos ( )5-10 anos ( )>10 anos
3. Já se viu envolvido (como parte ou testemunha) em processo questionando a
conduta médica? ( ) sim ( ) não.
4. Você tem pedido mais exames complementares por precaução? ( )sim ( )
não.
5. Pede exames que, talvez não solicitasse não fosse o temor por uma demanda
judicial? ( ) sim ( ) não.
6. Procura preencher SEMPRE os prontuários dos pacientes de forma
completa? ( )sim ( ) não.
7. Por algum motivo não consegue preencher de forma completa os prontuários
dos pacientes? ( ) sim ( ) não
8. Se respondeu sim a questão anterior: O motivo pelo qual não preenche:
( ) falta de tempo
( ) falta de costume de escrever no prontuário
( ) no local onde atende não há prontuários dos pacientes para
arquivamento.
9. Trabalha em algum local de atendimento público, além do consultório
privado? ( ) sim ( ) não
10. Se respondeu sim a resposta anterior: Preenche da mesma maneira os
prontuários nos dois ambientes? ( ) sim ( ) não.
11. Em qual dos locais o preenchimento é mais completo?
( ) atend. Público
( ) privado ( ) igual nos dois locais.
12. Se preenche de forma diferente nos diferentes locais é porque
( ) falta de tempo, devido ao grande número de pacientes.
( ) falta de costume de escrever no prontuário
( ) no local onde trabalha não há prontuários dos pacientes para
arquivamento.
13. Acredita que os prontuários que você preenche, e da forma que preenche
são suficientes para auxiliá-lo em uma demanda judicial? ( ) sim ( ) não.
14. Acredita que os seus pacientes, de um modo geral, compreendem as
recomendações que recebem? ( ) sim ( ) não.
15. Você costuma registrar o consentimento dos pacientes, principalmente em
situações mais delicadas e de risco? (pode ser no prontuário, não precisa ser
em documento separado).
( ) sim ( ) não.
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