BIOPOLÍTICA, DISPOSITIVOS DISCIPLINARES E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE NUMA COMUNIDADE TERAPÊUTICA DE TRATAMENTO DA DEPENDÊNCIA DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS Natalí Máximo dos Reis Cientista Social, formada pela Universidade Federal de Rondônia - UNIR Graduanda em Psicologia, pela Universidade Luterana do Brasil – ULBRA/Porto Velho [email protected] Este artigo abrange uma análise da socialização de dependentes químicos em uma Comunidade Terapêutica de tratamento da dependência de substâncias psicoativas. Apresenta resultados de uma pesquisa que buscou: a) analisar como os agentes inseridos nesta Comunidade, tanto a equipe dirigente quanto os residentes, identificam as relações de poder e controle, inerentes ao tratamento da dependência química e refleti-las à luz dos conceitos de Goffman e Foucault; b) reconhecer quais são os dispositivos disciplinares que estruturam a Instituição; c) verificar como a Comunidade produz subjetividade na interação dos residentes com a equipe monitora e com a estrutura da Organização; e d) identificar a nova base de relações sociais construída (ou em permanente construção) dentro da Comunidade. De cunho qualitativo, esta pesquisa genealógica trata-se de uma análise institucional, utilizando os pressupostos teóricos de Foucault e Goffman, uma vez que este introduziu na sociologia o conceito de Instituição Total, e Foucault revela como são possíveis as instituições disciplinares e quais as razões de sua emergência. Aliados, Foucault e Goffman favorecem um detalhamento fecundo na análise de instituições como esta. A Comunidade “Porto da Esperança” é extensão do projeto “Terra Prometida” realizado na Itália, ambos sob responsabilidade da Associação Casa Família Rosetta e desenvolve o tratamento terapêutico (de homens, dependentes de substâncias psicoativas) por meio da laborterapia1. Localiza-se no km 28 da BR 364, no Município de Candeias do Jamari, Estado de Rondônia. O tratamento é realizado em um período de nove meses a um ano, sob a tutela de uma equipe monitora. Acontece em uma chácara, afastada da cidade, e os residentes têm número de visitas restrito, incluindo apenas mãe, pai, esposa e filhos. A Comunidade atende a jovens e adultos, oriundos não somente do Município de Candeias do Jamari, como também de outros Estados. Não há outra Comunidade 1 Terapia através do trabalho. Terapêutica da Associação Casa Família Rosetta no Brasil além da “Porto da Esperança”. Durante o período em que houve as visitas a campo, a “Casa”, como é chamada a comunidade pelos que lidam com ela (internos e equipe diretora) conteve o seu máximo de contingente de 46 (quarenta e seis) residentes e mínimo de 36 (trinta e seis). A média considerada pelos funcionários é de 40 (quarenta) internos, uma vez que em um mês há tanto desistências, como ingressos. A equipe responsável por conduzir o tratamento é constituída por 5 (cinco) monitores e um diretor. A empiria aconteceu durante 20 (vinte) meses – de outubro/2009 a junho/2011 – e o método utilizado para o trabalho de campo foi observação, conversas informais com os funcionários e com os internos e aplicação de um questionário comum para apurar as diferentes percepções acerca de um mesmo assunto. É possível caracterizar este estudo também como pesquisa genealógica, uma vez que se trata de uma reconstituição das maneiras pela quais o saber implica em relação com os objetos de conhecimento (movimento de objetivação) e com o si cognoscente (processo de subjetivação). Considerando que esta é uma instituição que visa o tratamento e reabilitação de dependentes químicos e tem sua localização afastada da sociedade mais ampla, vem à tona o conceito de instituição total, de Goffman (1974), que em conjunto com o conceito de biopolítica de Michel Foucault (2006), constituem o alicerce teórico no qual esta pesquisa se fundamentou. Comunidade Terapêutica como Instituição Total A obra Manicômios, prisões e conventos (1974) descreve quais as características principais destas organizações e como se dá o funcionamento delas. Goffman (1974, p. 11) entende que: Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada. Nesta perspectiva, a Comunidade Terapêutica “Porto da Esperança” se enquadra na descrição e sua tarefa específica refere-se ao tratamento terapêutico de dependentes químicos e alcoólicos. Uma disposição básica da sociedade moderna é que o individuo tende a dormir, brincar e trabalhar em diferentes lugares, com diferentes coparticipantes, sob diferentes autoridades e sem um plano racional geral. O aspecto central das instituições totais pode ser descrito como a ruptura das barreiras que comumente separam essas três esferas da vida. Em primeiro lugar, todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma única autoridade. Em segundo lugar, cada fase da atividade diária do participante é realizada na companhia imediata de um grupo relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto. Em terceiro lugar, todas as atividades diárias são rigorosamente estabelecidas em horários, pois uma atividade leva, em tempo predeterminado, a seguinte, e toda a seqüência de atividades é imposta de cima, por um sistema de regras formais explícitas e um grupo de funcionários. Finalmente, as várias atividades obrigatórias são reunidas num plano racional único, supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da instituição. (GOFFMAN, 1974, p. 17-18) Pensando com Goffman (1974), na vida cotidiana, externa a uma instituição total, os indivíduos desenvolvem suas atividades em diferentes lugares, com diferentes co-participantes e estão sob diferentes autoridades sem um plano racional geral. Ao se inserirem em uma instituição total passam a realizar atividades impostas, todas em um mesmo lugar, com um mesmo grupo de pessoas e sob tratamento, com obrigações e regras iguais para todos. Assim que o indivíduo adentra a instituição, passa por um processo chamado “mortificação do eu” (GOFFMAN, 1974, p. 24) que suprime a concepção de si mesmo e a cultura aparente que traz consigo, construídas a partir das experiências da vida familiar e civil. Este processo acontece por meio da colocação de barreiras (sobretudo morais) com o mundo externo, resultando no despojamento do papel na vida civil e, com a imposição de regras de conduta, enquadra-o no sistema fazendo com que ele perca seu conjunto de identidade e segurança pessoal. Com o eu desequilibrado, há a perturbação da relação entre o indivíduo e seus atos, sua autonomia e liberdade. Simultaneamente a este processo, ocorrem os mecanismos de reorganização pessoal, que consistem na apreensão de instruções formais e informais de reestruturação do eu e que garantem um sistema de privilégios. As prescrições e as proibições determinadas através das regras da casa, quando obedecidas, geram privilégios, e as mesmas quando infringidas, geram o castigo. Os internados submetidos a uma instituição total devem adaptar-se ao sistema de privilégios e processos de mortificação (GOFFMAN, 1974, p. 59). Durante as fases de reconstrução da carreira moral, os internos utilizam de diferentes táticas de adaptação em resposta às regras da casa. Estas táticas variam da intransigência (não cooperação e desafio à Instituição) à colonização (consideração da vida institucional como desejável comparada às experiências do mundo externo). Erving Goffman (1974) introduziu o conceito de Instituição Total e detalhou o “mundo do internado” e “o mundo da equipe dirigente” como duas esferas que mantem uma distância social, mas que interagem limitados aos “padrões de deferência”, impostos formalmente. São predominantes os atos verbais de deferência, dos internados para com a equipe dirigente, há a necessidade de pedir autorização para coisas simples, como dirigir-se ao banheiro. É feito um dossiê, visto aqui como uma violação da reserva de informações quanto ao eu e exposição das relações pessoais e que fica à disposição da equipe dirigente. A ação do indivíduo é limitada e a autoridade está sempre presente. No que concerne à segunda esfera, a equipe dirigente, cabe a ela o poder de conceder a dispensa do internado. É exigido deste grupo um grande controle emocional diante da hostilidade e das exigências dos internados. Apropriam-se do discurso da instituição, como que num outro tipo de condicionamento. “Os privilégios e castigos distribuídos pela equipe dirigente são frequentemente apresentados numa linguagem que reflete os objetivos legítimos da instituição.” (GOFFMAN, 1974, p. 78) A equipe dirigente, apoia-se no “objetivo oficial da reforma dos internados na direção de algum padrão ideal” (GOFFMAN, 1974, p.70). As noções que refletem as distinções das realidades são influenciadas diretamente pelo contato com o mundo exterior (total ou restrito). As diferentes atribuições de significados (subjetivação) e as representações coletivas são reflexos das culturas nas quais os agentes (residentes e funcionários) estão inseridos. Conforme Goffman (1974), a equipe supervisora de uma instituição total sentese superiora e correta, e vê os internados como amargos, reservados e dos quais se deve desconfiar. Em contrapartida, os internados identificam-se como fracos, censuráveis e culpados, enquanto atribuem como qualificação aos integrantes da equipe dirigente a condescendência, arbitrariedade e mesquinhez. Biopolítica Michel Foucault em: História da Sexualidade: a vontade de saber, publicado pela primeira vez em 1976, cunhou os conceitos de biopoder e biopolítica, que trouxeram reflexões a respeito das práticas disciplinares como técnicas do exercício do poder. Esses conceitos abordaram o tema sob uma nova perspectiva, voltando-se para o indivíduo, seu corpo, sua normalização e adestramento por meio das instituições modernas pelas quais o indivíduo atravessava durante sua vida: a família, a escola, o quartel, a fábrica, o hospital, a prisão, etc. Estas instituições docilizam os corpos e os tornam aptos à produção industrial, enfatizando aqui o momento vigente dessa fase do capitalismo. O poder disciplinar age ao configurar “[...] o corpo como máquina: no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de suas forças, no crescimento paralelo de sua utilidade e docilidade, na sua integração em sistemas de controle eficazes e econômicos” (FOUCAULT, 1988, p.151). A disciplina, que até então era vista como o controle da ação dos indivíduos, é complementada com o biopoder, abrangendo a gestão da vida como um todo, com técnicas de poder sobre o biológico, que se torna aspecto central nas discussões políticas. Ambos os poderes coexistem, no mesmo tempo e espaço. O biopoder tem o objetivo de modificar, transformar e aperfeiçoar o biológico, produzindo saber sobre ele para melhor manejá-lo. Do mesmo modo que a disciplina foi eficaz para a docilização do corpo produtivo fabril, o biopoder foi necessário para o desenvolvimento do capitalismo, à medida que controla a população e a adequa aos processos econômicos. A partir das contribuições de Foucault, outros autores, como Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Dreyfus e Paul Rabinow, acrescentaram ainda que nos dias atuais vive-se a passagem das sociedades disciplinares para a sociedade de controle, na qual a disciplina se espalha por todo o tecido social, de modo que seus mecanismos tomem caráter cada vez mais “democráticos”, disseminados no corpo e no cérebro dos indivíduos e o poder não age mais como molde, restrito em espaços de confinamento, como escolas, fábricas, hospitais e prisões, como nas sociedades disciplinares. O biopoder é responsável por investir tecnologias de controle sobre os aparelhos de produção, com a finalidade de geri-las e neutralizá-las, e a biopolítica, como “espaços nos quais se desenvolvem relações, lutas e produções de poder” (Negri, 2003, p. 106). Em outras palavras, a biopolítica é o palco no qual acontecem as resistências produtivas frente às tentativas do biopoder de modulação e padronização. Dispositivos Disciplinares da Instituição Total Os dispositivos disciplinares são os instrumentos responsáveis pelas articulações entre a produção de saber e os modos de exercício de poder, dentro das instituições disciplinares, conforme Foucault (1982). São constituídos por um conjunto de elementos de naturezas distintas: arquitetura, discursos (ditos ou não), técnicas, práticas, regras, entre outros. Todos estes componentes, reunidos em um só aparelho, atuam sobre um problema específico. O poder disciplinar é organizado no estabelecimento de modo que produza a realidade social desejada, e faz isso através do conjunto de dispositivos disciplinares, tanto no plano arquitetônico (organização espacial) quanto no plano psicossocial. A arquitetura é intencional, seus atores sociais selecionados, discursos apreendidos, até mesmo quando não ditos, saberes e técnicas políticas de gerenciamento institucional humano cuidadosamente planejados. O sistema de privilégios é um dos dispositivos disciplinares, no plano psicossocial, das instituições totalitárias. Outro dispositivo disciplinar, agora arquitetural, que se deve fazer menção, é o Panóptico. O Panóptico, projeto arquitetônico criado por Bentham2, consiste em uma prisão circular com uma torre central, da qual é possível ver todo tipo de movimentação, sem que o observador seja visto. Permite uma maior vigilância e controle social. Para Foucault (1999, p. 224) o efeito mais importante do Panóptico é “induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder”. Ou seja, mesmo que não se faça a vigilância de forma contínua, os próprios internos sentem como se fosse e mantêm-se presos a uma situação de poder que eles próprios sustentam. O Panoptismo transpassa o plano arquitetônico coexistindo no plano psicossocial. É um mecanismo eficaz de manutenção do exercício do poder e na observação das transformações dos indivíduos vigiados; tem a capacidade de modificar o comportamento destes sem fazer o uso da força (violência física). Permite aperfeiçoar o exercício do poder, “reduzindo o número dos que o exercem, ao mesmo tempo que multiplica o número daqueles sobre os quais é exercido.” (FOUCAULT, 1999, p. 229). Permite que a vigilância seja tão dissimulada ao ponto de não ser facilmente percebida pelos indivíduos, torna-se naturalizada. Possibilita a coibição de faltas, erros, infrações e crimes, uma vez que o sentimento de vigilância constante, e 2 Filósofo e jurista inglês do final do século XVIII. consequentemente, medo e submissão, estão disseminados no corpo e cérebro dos internados, produzindo a subjetividade almejada pela instituição. Produção de Subjetividade As relações entre poder e saber, que se articulam por meio dos dispositivos disciplinares institucionais, tanto produzem conhecimentos específicos sobre o homem, quanto produzem o próprio, visto que existe a possibilidade de ser organizada uma manipulação técnica dos indivíduos, quando institucionalizados. Em outras palavras, a própria subjetividade, isto é, o espaço íntimo do indivíduo, seu mundo interno, é construído conforme for conveniente aos objetivos institucionais. Ao mesmo tempo em que as pessoas inseridas nesse contexto são constituintes do cotidiano institucional, são também constituídas por ele: são fundados no interior das práticas. Sob esta perspectiva, a produção de subjetividade está alicerçada no plano micropolítico e microfísico do poder estabelecido no cenário institucional e as relações promovidas, sejam pedagógicas, terapêuticas, educativas, entre a equipe gestora e os internados, apresentam-se em permanente constituição e reordenação. As pessoas inseridas em uma instituição total devem submeter-se a regras predefinidas e a uma hierarquia. Os indivíduos se sentem obrigados a adequar-se a nova condição social, que é extremamente diferente da sociedade mais ampla, externa à instituição. O sistema de privilégios atua diretamente sobre a produção de subjetividade desejada, pois almeja a reorganização subjetiva do indivíduo. O internado deve ser um corpo dócil e disciplinado, totalmente submisso à autoridade da instituição. Somente assim é que ele pode fazer uso do sistema de privilégios. A obrigação de desempenhar uma atividade em uníssono com um grande número de outros internados corrobora para a perda da autonomia, da identidade, reforçando a submissão, a disciplina e o controle por parte dos que exercem o poder. Resultados da Pesquisa Há uma divisão hierárquica de responsabilidades e status de tempo na CT, para os dois grupos. Quanto às atividades diárias, desde a hora de levantar-se à hora de recolher-se há regras e uma programação predeterminada. Como no regulamento da “Casa dos jovens detentos em Paris”, presente na obra Vigiar e Punir (1975). Na Comunidade Terapêutica Porto da Esperança existem quatro programações definidas: a de segunda à sexta-feira, a de sábado, domingo com visita e domingo sem visita. Analisando os dispositivos disciplinares da Comunidade sob o ponto de vista arquitetônico, o panóptico está disseminado nos corpos e nas atitudes dos residentes. Além disso, há um panóptico físico diferente, um quadro no espaço central da Casa, no qual eles devem comunicar todo e qualquer deslocamento de um setor a outro da Comunidade, numa espécie de GPS alimentado deliberadamente e que é surpreendentemente eficaz. Mesmo com terreno extenso, os residentes não costumam se esconder ou fugir. A porta de entrada/saída do sítio nunca fica trancada. Também nesse sentido arquitetônico, não há uma barreira física entre a comunidade masculina e a comunidade feminina de tratamento terapêutico, que está localizada no terreno ao lado. Todavia, não há contato entre os dois grupos; existe, então, um “muro moral”. No plano psicossocial dos dispositivos disciplinares, foram identificadas diversas ferramentas institucionais que mantém o controle dos residentes. Por exemplo, quando determinado residente comete uma infração leve, como discussão e desobediência, que não é caso de exclusão, aplica-se a Experiência Educativa (EE). Consiste em uma tarefa, direcionada pelo seu monitor responsável, que o fará “refletir” acerca de sua atitude. As tarefas variam de acordo com a falta cometida, mas foi observado que capinar por horas sob o sol era um afazer bastante freqüente entre os que cumpriam a EE. A Experiência Educativa, para a equipe gestora não se configura em uma punição, por entender que a punição é apenas um castigo e que nela não há aprendizagem, diferentemente da EE, que promove a “reflexão”. É um dispositivo disciplinar que, além de tentar impedir a repetição da falha, também coibe atitudes semelhantes por parte de outros residentes. Mesmo que não faça parte do discurso institucional, este instrumento de disciplina dos residentes está enquadrado em um tipo de punição. É o meio mais eficaz de evitar a quebra das regras pelo grande grupo controlado, resultando na desestruturação do regimento, que um sentimento de impunidade poderia desencadear. Os resultados encontrados denotam o disciplinamento dos dois grupos, no que concerne à representação da instituição enquanto locus de tratamento. Embora estejam inseridos em diferentes grupos (um exerce o poder e o outro é submetido a ele) ambos utilizam do mesmo discurso ao descreverem como interpretam a Comunidade. Foucault (1999, p. 45) referenda este acontecimento quando diz que as disciplinas têm seu discurso próprio. Os dispositivos disciplinares que a instituição possui produzem o discurso unificado de normalização, que por meio dos instrumentos de controle os indivíduos internalizam a obediência como uma lei a ser cumprida. No caso específico das formas com que as representações são construídas pelos residentes, evidencia-se que o discurso da disciplina, com propõe Foucault, é o elemento estruturador das formas de sociabilidade entre os residentes. A empiria com a Comunidade Terapêutica Porto da Esperança e o simultâneo levantamento de informações acerca do tipo de estabelecimento no qual ela se enquadra, oportunizou uma análise rica, apresentada aqui apenas parcialmente, que possibilitou, inclusive, a refutação de qualificações referentes à construção de identidade de grupo e de si, feitas por Goffman, inerentes aos internados de uma instituição total. Era de se esperar que estes indivíduos reclusos e controlados apresentassem atitudes de resistência ante ao exercício de poder do pequeno grupo supervisor e que se unissem enquanto classe para enfrentar o regimento e arbitrariedades da equipe de direção, num jogo permanente de lutas de força e poder, declaradas ou veladas. No entanto, tal conduta não é vista no contexto desta instituição total em particular; há, na verdade, uma depreciação extrema entre os próprios residentes, enquanto estes enxergam na figura dos monitores, seus objetos de admiração. Desta forma, pude concluir que a nova base de relações sociais que os residentes vivenciam, a partir do momento em que se submetem ao tratamento é de total submissão às normas de conduta estabelecidas pela instituição. Os internados ingressam voluntariamente na Comunidade, devem adequar-se a um regimento, e inicialmente têm dificuldades. Contudo, a tendência de encará-lo como algo natural é predominante. São sujeitos docilizados, submissos, que não questionam nenhuma ordem a eles direcionada, ainda que esta os exponha a situações constrangedoras. Os residentes reconhecem, legitimam e apoiam os dispositivos disciplinares que a instituição possui. Referências BENELLI. Sílvio José. A instituição total como agência de produção de subjetividade na sociedade disciplinar. Estudos de Psicologia, Campinas, v.21, n.3, p.237-252, setembro/dezembro, 2004. __________. Dispositivos disciplinares produtores de subjetividade na instituição total. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 8, n, 2., p. 99-114, 2003. BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. [Org. Tomaz Tadeu; Trad. Guacira Lopes Louro]. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. DAMATTA, Roberto. A casa e a rua – espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. FAÉ, Rogério. A genealogia em Foucault. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 9, n. 3, p. 409-416, set./dez. 2004. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. 4. ed. 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