Apostila de doenças – EMA – ICC (Insuficiência Cardíaca Congestiva) Autores: Steeven Shu Kai Yeh – Turma 95 Diogo Bugano Diniz Gomes – Turma 92 Dúvidas? Sugestões? [email protected] Recomenda-se a leitura mais aprofundada do roteiro de exame cardíaco antes de iniciar a exploração deste tema. Definição A insuficiência cardíaca é uma síndrome clínica (ou seja: conjunto de sintomas – coisas das quais o paciente se queixa – e sinais – coisas que o médico nota durante o exame do paciente) que ocorre quando como resultado de uma disfunção estrutural ou funcional o coração é incapaz de promover esvaziamento ou enchimento de suas câmaras para nutrir as necessidades metabólicas do corpo, ou o faz à custa de um remodelamento. Pode ser traçada uma relação da ICC com o treinamento aeróbico: o individuo sedentário não consegue ter um bom desempenho aeróbico porque, entre outras coisas, seu coração não consegue gerar o débito cardíaco suficiente para a atividade física. No entanto, se essa atividade física é mantida por um longo período, o coração se adapta, se remodela, para a nova situação. Da mesma forma, na ICC o coração se remodela para tentar se adaptar a uma patologia. Até certo ponto, esse remodelamento consegue compensar o defeito original e a pessoa é assintomática. Depois disso, a compensação não é suficiente e temos uma constelação de manifestações clínicas, incluindo em várias proporções, congestão circulatória, dispnéia, fadiga e fraqueza. Epidemiologia No Brasil, estima-se que cerca de 300 mil internações ocorrem devido à insuficiência cardíaca, consumindo milhões de reais ao ano, sendo a primeira causa de internação pelo SUS de indivíduos maiores de 60 anos. No EMA, Como a ICC é mais comum no idoso é provável que sua prevalência aumente conforme a população tende a envelhecer, sendo inclusive a única doença cardiovascular comum que está crescendo em prevalência e incidência em países de perfil mais industrializado e envelhecido na América do Norte e na Europa. Etiologia São várias as causas de Insuficiência Cardíaca (IC) com alteração na contração miocárdica ou não. As miocardiopatias (como o Chagas) ou as miocardites virais, por exemplo, evoluem com alteração primária no músculo cardíaco. Por sua vez, a aterosclerose coronariana interfere na contração cardíaca ao causar infarto e isquemia do miocárdio com rigidez da parede, podendo favorecer disfunção na diástole. Outras causas ao gerar sobrecarga hemodinâmica de longa duração levam a insuficiência cardíaca como as cardiopatias congênitas, valvares e hipertensivas. Outras vezes, o coração pode ter função normal, mas é submetido a carga mecânica maior que a sua capacidade como na crise hipertensiva aguda, na ruptura de cúspide da valva aórtica, na endocardite ou na embolia pulmonar maciça (com grande aumento de pressão pulmonar e sobrecarga de ventrículo direito). Além dessas causas chamadas subjacentes da IC é importante levar em conta os fatores precipitantes, uma vez que o coração pode ter função adequada por compensação, mas baixa reserva funcional. Assim, qualquer situação que aumente as necessidades metabólicas do paciente, vão piorar sua ICC. Exemplos são: Taquicardia (piora a ICC diastólica) Sobrecarga de volume – toma muito liquido ou come muito sal aumentando o volume de líquidos dentro dos vasos, com maior sobrecarga sobre o coração; Febre, sepse, anemia, crise tireotóxica – elevam a necessidade metabólica do paciente, além de causarem taquicardia. Fora isso, qualquer nova lesão cardíaca agravará uma lesão prévia. Exemplos são: Nova isquemia miocárdica; Lesão valvar aguda – infecções nas valvas cardíacas, ou o próprio infarto, podem causar lesões agudas nas valvas; Pico hipertensivo – se a pressão arterial do paciente subir agudamente (por diversas causas),vai dificultar a ejeção de sangue pelo coração; Problemas respiratórios agudos – qualquer lesão pulmonar que leve à diminuição da oxigenação do sangue promove vasoconstrição reflexa dos vasos pulmonares (com o objetivo de desviar o sangue de uma área doente do pulmão para uma área saudável). Isso piora a hipertensão pulmonar e a ICC direita. A procura dessas causas é importante, pois os pacientes com início ou piora recente de IC em que é possível identificar, tratar e eliminar esse fator precipitante é mais favorável que os pacientes que evoluem com processo mórbido subjacente levando com o tempo a IC sem causa precipitante identificável. Fisiopatologia Como explicamos na introdução, a ICC ocorre quando o coração não é mais capaz de compensar a perda de função devido a sobrecarga ou insuficiência do órgão. Essa compensação se faz à custa do remodelamento cardíaco que responde à sobrecarga hemodinâmica por longos períodos com hipertrofia. Se o coração é solicitado a desenvolver alto débito cardíaco por muito tempo com aumento de pressão diastólica, como na insuficiência valvar, o ventrículo desenvolverá hipertrofia excêntrica, com dilatação da cavidade em relação a aumento de espessura da parede mais ou menos constante. Se a hipertrofia ocorrer contra uma alta carga pressórica (pós-carga), no entanto, ela será concêntrica havendo aumento da razão entre a espessura da parede e o tamanho da câmara. Nos primeiros anos, a tensão da parede se mantém em nível normal com função cardíaca estável por anos, mas a função miocárdica pode finalmente deteriorar levando à IC. Com isso, o corpo tentará compensar a perda de função miocárdica, mas desta vez a custa de uma hipertrofia patológica por ativação de sistemas neurohormonais e citocinas que envolvem o sistema renina-angiotensina-aldosterona (fundamental no processo de manutenção pressórica do organismo) e do sistema nervoso autônomo simpático, com um formato mais esférico que aumenta o estresse hemodinâmico na parede do órgão. Outro mecanismo de compensação do nosso corpo que acaba acarretando em problemas é a retenção anormal de água e sal desencadeada por complexa rede de ajustes devido ao menor volume de sangue bombeado pelo coração. Se por um lado isso ajuda a manter o mesmo débito cardíaco e a perfusão dos órgãos vitais (muitos sinais e sintomas surgem dessa incapacidade), por outro lado o acúmulo desse líquido a mais leva a manifestações clínicas problemáticas como a congestão pulmonar e o edema. Anamnese Os sinais e sintomas manifestados variam conforme o tipo de IC podendo ser descrito principalmente como sistólica ou diastólica e direita ou esquerda. O primeiro passo da propedêutica do paciente insuficiente cardíaco é saber identificar o tipo de ICC acometendo-o. Sistólica vs Diastólica – Essa distinção relaciona-se à anormalidade principal do ventrículo. Se for uma insuficiência sistólica temos problemas então em contrair normalmente e ejetar sangue e daí temos manifestações relacionadas a débito cardíaco inadequado com fadiga, redução de tolerância ao esforço por hipoperfusão muscular, confusão mental, dificuldade na concentração, insônia, ansiedade e déficit de memória por hipoperfusão cerebral e outros sintomas de hipoperfusão como apele mais fria, pálida e sudoréica e a oligúria (menor produção de urina pela menor filtração glomerular). Na diastólica temos incapacidade de relaxar o ventrículo e encher-se normalmente. Assim, quando a freqüência cardíaca é aumentada, o tempo total do ciclo é diminuído, principalmente à custa da diástole (não é possível encurtar muito mais o tempo de sístole), o que prejudica o enchimento diastólico. Assim, na ICC diastólica, haverá dispnéia desencadeada por situações de alta freqüência cardíaca, como nervosismo, susto, ou uma arritmia que aumente a freqüência. Também, se o paciente perder a capacidade de contrair o átrio (uma patologia conhecida como fibrilação atrial), terá a função diastólica mais afetada que a sistólica. O exercício físico piora a ICC sistólica e diastólica e não pode ser usado para diferenciar as duas. A IC diastólica é mais freqüente em mulheres que em homens, sobretudo nas idosas hipertensas. A diferenciação entre é feita pelo ecocardiograma (na sistólica, há aumento do volume sistólico final e queda da fração de ejeção, na diastólica, há redução do volume diastólico final e fração de ejeção > 50%). Fora isso, há como avaliar a sístole e diástole do coração pela ausculta cardíaca. Quando há uma disfunção sistólica, há muito sangue dentro do ventrículo ao final da sístole (aumento de VSF), e, quando ocorrer a fase de enchimento rápido do coração, na diástole, o sangue entrando no ventrículo se chocará com o sangue lá dentro, gerando um som característico logo no início da diástole, conhecido como terceira bulha, ou B3 (para diferenciar de B1 e B2, o “tum-tá” do coração normal). Se o coração tiver uma disfunção diastólica e não conseguir relaxar para receber o sangue durante a sístole atrial, o sangue que entrar no final da diástole vai se chocar contra um ventrículo rígido, gerando outro som característico, a quarta bulha (B4). Essas alterações não são sempre encontradas e vale lembrar que na maioria dos pacientes as anormalidades de contração e de relaxamento coexistem podendo haver maior predominância de um sobre o outro. Direita vs Esquerda – Muitas das manifestações clínicas da IC decorrem do acúmulo de líquido a montante (atrás) do ventrículo acometido seja por não conseguir ejetar todo o sangue ou não conseguir encher-se completamente com o volume da pré-carga. Assim, se o VE estiver comprometido ele tentará compensar o processo por dilatação da câmara, mas o VE não pode se dilatar indefinidamente e o excesso de sangue começará a se acumular no átrio e mais tarde no pulmão. O acometimento pulmonar gerará o principal sintoma da ICC esquerda: a falta de ar, ou dispnéia. A dispnéia pode ser de 3 tipos: de esforço, de decúbito (ou ortopnéia – piora da falta de ar ao deitar) ou dispnéia paroxística noturna (dispnéia que ocorre no meio da noite: o paciente vai dormir bem e, de repente, acorda com falta de ar e precisa se levantar da cama para que melhore. Ela ocorre porque, no sono, há um aumento da ação do sistema parassimpático, que, entre outras coisas, reduz a força de contração do coração, piorando a ICC.). A dispnéia pode se manifestar também como estertores crepitantes, inspiratórios e úmidos e macicez à percussão sobre as bases pulmonares. Alguns quadros de dispnéia acompanhados de sibilos ou referidos pelo paciente como “chiados” podem refletir doença pulmonar obstrutiva, como a asma brônquica, ou uma insuficiência cardíaca levando a broncoconstrição por edema pulmonar, a assim chamada “asma cardíaca”. A New York Heart Association estabeleceu uma importante escala para avaliar a disfunção que essa falta de ar provoca no paciente. Classe funcional segundo classificação NYHA Mortalidade anual Grau I – dispnéia a esforços extremos – subir dois lances de escada sem parar. É a dispnéia que qualquer pessoa sem preparo físico experimenta. Grau II – dispnéia a médios esforços – andar no plano. È importante quantificar, se possível, o numero de metros que a pessoa anda antes de ter a dispnéia. Grau III – dispnéia a pequenos esforços – dispnéia nas atividades do dia a dia, como lavar louça ou tomar banho. Grau IV – dispnéia a mínimos esforços – dispnéia em repouso, o paciente não consegue falar sem sentir falta de ar. 5% 10% 30% 50 a 60% Quando o maior comprometimento é no VD, temos então acúmulo de líquido a montante, isto é, no reservatório venoso sistêmico levando a edema, hepatomegalia congestiva e distensão venosa sistêmica, inclusive anorexia e náuseas associadas a dor abdominal e plenitude devido à congestão venosa. Diagnóstico Como os achados de história e de exame físico tendem a ser manifestações pouco específicas, podendo ser encontradas isoladamente ou em conjunto em alguns dos diagnósticos diferenciais, foram elaborados alguns critérios diagnósticos como os de Boston e o de Framingham (listado abaixo) que atribuem diferentes valores diagnósticos para determinados sinais e sintomas e exames complementares (ortopnéia e dispnéia paroxística noturna apesar de não serem exclusivas, patognomônicas, são bastante comuns na IC. A tosse noturna, por outro lado, já é comum a várias doenças.) de forma a estabelecer o diagnóstico clínico quando dados critérios são preenchidos. Critérios de Framingham para diagnóstico de Insuficiência Cardíaca CRITÉRIOS MAIORES Dispnéia paroxística noturna Ortopnéia Elevação da pressão venosa jugular Estertores crepitantes bilaterais Terceira bulha Cardiomegalia na radiografia de tórax CRITÉRIOS MENORES Edema bilateral de membros inferiores Tosse noturna Dispnéia aos esforços Hepatomegalia Derrame pleural Freqüência cardíaca > 120 bpm Congestão pulmonar na radiografia de tórax Perda de peso > 4,5 Kg após 5 dias de tratamento para insuficiência cardíaca DIAGNÓSTICO 2 ou mais critérios maiores 1 critério maior + 2 ou mais menores Diagnósticos diferenciais Às vezes, é difícil distinguir a IC de uma doença pulmonar. Pacientes com doença pulmonar obstrutiva crônica ou asma brônquica também podem acordar com sintomas de dispnéia intensa, mas estes obtêm alívio da dispnéia com a expectoração, no caso de pacientes hipersecretores, ou após uso de medicação específica, no caso de asmáticos. É importante notar que o paciente para apresentar dispnéia paroxística noturna tem que ter necessariamente edema periférico. O desenvolvimento súbito de dispnéia sugere diagnósticos como pneumotórax, embolia pulmonar, edema pulmonar agudo ou obstrução brônquica, enquanto que história de dispnéia com piora progressiva sugere insuficiência cardíaca ou pneumopatia crônica. Dispnéia de repouso pode ocorrer no edema pulmonar, embolia de pulmão, pneumotórax. Edema de tornozelo pode ser decorrente de veias varicosas ou efeitos gravitacionais, mas esses pacientes não manifestam hipertensão venosa jugular ao repouso ou à compressão do abdome (refluxo abdominojugular). Igualmente a hepatomegalia e ascite devido a cirrose hepática não manifestam esses sinais. O edema secundário a doença renal pode ser reconhecido por exames de função renal (uréia, creatinina) alterados. Tratamento Como há diversas causas, características hemodinâmicas e manifestações clínicas de diversas gravidades não há uma regra simples para estabelecer o tratamento destes pacientes. Habitualmente dividimos os pacientes com ICC em 4 diferentes estágios de evolução (A- alto risco de IC, mas sem cardiopatia estrutural ou sintomas de IC; B- Cardiopatia estrutural, mas sem sintomas de IC; C- Cardiopatia estrutural com sintomas pregressos ou atuais de IC; D- IC refratária que requer intervenções especializadas) com um tratamento recomendado a cada estágio conforme ilustrado pela figura em anexo (Tto_ICC.jpg) divulgada pela American Heart Association (AHA). Bibliografia consultada: Clínica médica, volume 2: doenças cardiovasculares, doenças respiratórias, emergências e terapia intensiva. Diversos autores. Editora Manole. 2009. Páginas 240 a 260. Cecil: Medicina Interna. Diversos autores. 2009. Capítulo 216. Páginas 1434 a 1444.