UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA Da Usucapião Especial Coletiva Urbana: Aplicabilidade ao caso concreto da Comunidade da Vila Santa Rosa. ACADÊMICA:VANESSA MORAES DE GOUVÊA São José, maio de 2007. 1 UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR – CES VII CURSO DE DIREITO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA COORDENAÇÃO DE MONOGRAFIA Da Usucapião Especial Coletiva Urbana: Aplicabilidade ao caso concreto da Comunidade da Vila Santa Rosa. Projeto apresentado como requisito final da Disciplina Orientação de Monografia I, Curso de Direito, Centro de Educação Superior VII da Universidade do Vale do Itajaí. ACADÊMICA: VANESSA MORAES DE GOUVÊA Orientador: Professor Dr. Ricardo Stanziola Vieira São José, maio de 2007. 2 AGRADECIMENTO Agradeço ao meu pai, Djalma, por me ensinar pelas mais variadas formas que sempre é possível mudar, agradeço, igualmente a minha mãe, mulher de muita força e ternura no olhar. Agradeço aos meus irmãos, Juliano e Philipe e à minha irmã, Isabella, por simplesmente fazerem parte da minha, tornando-a especial. Agradeço aos meus amigos e amigas, em especial, Marcela, Leandra, Natália, Lara, Lia, Lilá, Bete, Valéria, por todo carinho dedicado e por serem simplesmente as parceiras mais certas em todas as horas. Agradeço ao meu orientador Ricardo Stanziola Vieira, por todo apoio e atenção e por sempre ter confiado no meu trabalho. Agradeço ao Sr. Làzaro Daniel, pessoa de muito carisma, o qual contribui de forma relevante para este trabalho, agradeço, também ao Dr. Luís Cláudio Fritzen, que de forma extremamente solicita colaborou para esta monografia. Agradeço a todos aqueles que de uma forma ou de outra, contribuíram para o desempenho deste trabalho. 3 SUMÀRIO RESUMO .........................................................................................................6 ABSTRACT......................................................................................................7 INTRODUÇÃO.................................................................................................8 CAPÍTULO 1...................................................................................................11 DIREITOS DAS COISAS: POSSE, PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL 1.1 Origem e Conceituação de Posse..........................................................11 1.1.1Breve síntese histórica.........................................................................12 1.1.2 Conceito de Posse e seus elementos constitutivos.........................14 1.2 Da Propriedade........................................................................................19 1.2.1 Origem e conceito da propriedade.....................................................20 1.3 Função Social da Propriedade...............................................................26 CAPÍTULO 2...................................................................................................31 POLÍTICA URBANA NACIONAL: PANORAMA JURÍDICO DA USUCAPIÃO 2.1 O instituto da usucapião..........................................................................31 2.1.1 Adoção do gênero feminino.................................................................31 2.1.2 Origem e fundamento do instituto da usucapião...............................32 2.1.3 Conceito de usucapião.........................................................................35 2.1.4 Requisitos..............................................................................................37 2.1.5 Modalidades do instituto da usucapião..............................................41 2.2 Da usucapião especial coletiva urbana.................................................47 2.2.1 O Artigo 9° do EC – usucapião individual urbano.............................48 2.2.2 O artigo 10 do EC – usucapião especial coletiva urbana.................49 2.2.2.1 Parágrafo 1° do artigo 10 e a accessio possessionis....................52 4 2.2.2.2 Parágrafo 2° do artigo 10 e a sentença judicial..............................53 2.2.2.3 Parágrafo 3° do artigo 10 e a atribuição de frações ideais de terreno...............................................................................................................54 2.2.2.4 Parágrafo 4° e 5°do artigo 10 e o condomínio especial ..................55 2.2.3 O artigo 11 do Estatuto da Cidade....................................................... 57 2.2.4 O artigo 12 do Estatuto da Cidade – Legitimidade para agir............. 58 2.2.5 O artigo 13 do Estatuto da Cidade – matéria de defesa................... ..62 2.2.6 O artigo 14 do Estatuto da Cidade e a previsão do Rito Sumário..... 63 CAPÍTULO 3..................................................................................................... 65 APLICABILIDADE DA USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVA URBANA AO CASO CONCRETO DA COMUNIDADE DA VILA SANTA ROSA 3.1 A participação popular no Estatuto da Cidade e exemplos de aplicação da usucapião especial coletiva urbana........................................................ 65 3.2 Breve contextualização histórica acerca da Comunidade da Vila Santa Rosa e síntese do processo judicial............................................................. 71 3.3 Estudo de caso: aplicabilidade do instituto da usucapião especial coletivo urbana ao caso concreto da Comunidade da Vila Santa Rosa.... 81 Considerações finais...................................................................................... 84 Referências Bibliográficas..............................................................................88 Anexos..............................................................................................................93 5 RESUMO A presente monografia teve por finalidade tecer algumas considerações sobre a posse e a propriedade, focalizando o instituto da usucapião. Procuramos analisar a posse sob a ótica das teorias de Savigny e de Lhering, bem como nas demais doutrinas vigentes em nosso ordenamento pátrio, centrando nosso estudo na observação de sua natureza jurídica, além de seus pressupostos e sua classificação, detendo-nos, ainda que ligeiramente, na função social da propriedade, para desenvolver o estudo sobre a usucapião especial coletiva urbana, prevista no Estatuto da Cidade (Lei n° 10.257/2001) e que visa instrumentalizar o disposto na Constituição Federal de 1988, em seus artigos 182 e 183. Diante do regramento específico conferido pelo Estatuto da Cidade, objetiva-se estudar a usucapião especial coletiva urbano, em face do seu caráter inovador e afeto à função socioambiental da propriedade, vetor da atual política urbana nacional. Neste sentido, procuramos investigar sobre a possível aplicação do novel instituto ao caso concreto da Comunidade da Vila Santa Rosa, localizada no bairro Agronômica, no município de Florianópolis. Palavras-chave: Posse. Propriedade. Usucapião. Comunidade da Vila Santa Rosa 6 ABSTRACT The present monograph aimed at making some remarks on ownership and property, with the main focus on the institute of the usucapio. We tried to analyze the concept of ownership under the theory of Savigny and Lhering, as well as under other contemporary doctrines, focusing our study in the observation of its juridical nature, considering its presuppositions and its classification, more specifically, yet briefly, in the social function of property, in order to develop the study of the special urban collective usucapio, as foreseen in the Estatuto da Cidade (Law number 10.257/2001), that aims at making the 1988 Brazilian Federal Constitution viable, in its articles 182 and 183. Considering the specific rules stablished by the Estatuto da Cidade, the objective of the present work is to study the special urban collective usucapio, in relation to its innovative features and association with the social and environmental function of the property, aspect that guides the Brazilian urban policy. Thus, we aimed at investigate the feasible application of the novel institute to the concrete case of the community of Vila Santa Rosa, located in Agronômica, district of the city of Florianópolis. Keywords: Ownership. Property. Usucapio. Community of Vila Santa Rosa 7 INTRODUÇÃO A partir da década de 1980, uma das grandes questões em torno das quais se mobilizaram e organizaram os grupos populares foi a (questão) da política urbana, sendo que, durante o processo de elaboração da Carta Magna de 1988, movimentos originados de diversos setores da sociedade brasileira passaram a reivindicar a inclusão de dispositivos que assegurassem a observância da função social da propriedade e da cidade no texto constitucional. Assim, tais manifestações expressaram o processo de construção da cidadania, criando no espaço urbano a arena pública em que se manifesta a correlação de forças entre os atores sociais e em que se dá o exercício dos direitos sociais por meio da democratização do acesso a esse espaço. De sorte que a Constituição Federal, promulgada em 1988, inovou ao reservar um capítulo inteiro à Política Urbana, em seus artigos 182 e 183, trazendo, ainda, pela primeira vez ao ordenamento jurídico brasileiro, a modalidade do instituto da usucapião especial de imóvel urbano, prevista na forma individualizada e que, portanto, carecia de instrumentalização por meio de lei ordinária, conforme se constataria ante a realidade brasileira dos próximos anos, no tocante às populações de baixa renda, habitantes das favelas. Neste sentido, já nos idos de 2001, foi sancionada a Lei Federal n° 10.257/2001, denominada Estatuto da Cidade, que regulamenta os instrumentos de política urbana a serem aplicados pela União, Estados e Municípios, por meio de princípios e diretrizes gerais. Essa lei revela-se de suma importância para o aparato legislativo nacional, em virtude de seu marcante espírito democrático, pois traz a participação popular para o seio da discussão da política urbana, exigindo que os governantes construam essa política em permanente diálogo com a sociedade, sendo um mecanismo de extrema relevância na construção da democracia participativa em coexistência com o modelo representativo. O Estatuto da Cidade revela uma nítida preocupação em relação à regularização fundiária, tanto que em seu artigo 9° reproduziu o texto 8 constitucional do artigo 183 e o denominou de usucapião especial individual de imóvel urbano. Além disso, inovou ao introduzir a modalidade de usucapião especial coletivo de imóvel urbana, em seu artigo 10, preenchendo a lacuna existente no ordenamento jurídico no tocante à possibilidade de aquisição da propriedade e de urbanização de núcleos habitacionais degradados. A partir disso, tem-se que o objetivo da presente monografia é investigar a possibilidade de aplicação do instituto da usucapião especial coletiva urbana ao caso concreto da Comunidade da Vila Santa Rosa, localizada no bairro da Agronômica, no município de Florianópolis, tendo em vista a ação de reintegração de posse que foi interposta contra vinte famílias ocupantes de um terreno que originalmente era de terras de marinha. Para tanto, no capítulo 1, parte-se do estudo do direito das coisas, delineando-se a origem e o conceito de posse e seus elementos constitutivos, bem como a origem e o conceito de propriedade e suas principais características e, por último, a função social da propriedade. Já no capítulo 2, procede-se à análise do instituto da usucapião, inserido na política urbana nacional. Dessa forma, pontuou-se a adoção do gênero feminino em relação ao vocábulo usucapião, buscou-se situar a origem e o fundamento do referido instituto, bem como seu conceito, seus requisitos e as suas modalidades previstas no arcabouço jurídico, posto que essa temática tem relação direta com o tema proposto, uma vez que tem por objetivo analisar a aplicação da modalidade do instituto da usucapião especial coletiva de imóvel urbana, contemplada neste capítulo. Por fim, no capítulo 3, apresenta-se o objeto de estudo mais especificamente, sendo que num primeiro momento se aborda a questão da participação popular na perspectiva do Estatuto da Cidade e serão pontuados dois exemplos de aplicação da usucapião especial urbana de forma coletiva. A seguir, realizou-se uma breve contextualização histórica acerca da Comunidade da Vila Santa Rosa e uma síntese do processo judicial interposto contra as vinte famílias da localidade. Finalmente, buscar-se-á analisar a aplicabilidade da usucapião coletiva ao caso concreto da respectiva Comunidade. 9 Quanto à metodologia empregada, registra-se que foi utilizado o método dedutivo, no qual parte-se do genérico para o específico. Pois para que pudéssemos entender o instituto da usucapião especial coletiva urbana, fez-se necessário expor algumas noções gerais sobre os institutos da Posse, da Propriedade e da usucapião. Para que, então, se tornasse possível estudarmos a possibilidade de aplicação da modalidade coletiva de usucapião ao caso concreto da Comunidade da Vila Santa Rosa. Como técnicas de investigação foram utilizadas fontes bibliográficas, as quais garantiram o suporte teórico, assim como fontes documentais, a exemplo do processo judicial pendente sobre o tema escolhido e das leis complementares aprovadas pela Câmara dos Vereadores do município de Florianópolis, além de matérias jornalísticas, publicadas em sites e que deram visibilidade ao caso. 10 CAPÍTULO 1 DIREITOS DAS COISAS: POSSE, PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL 1.1 Origem e Conceituação de Posse Para que possamos entender a aplicação do instituto da usucapião fazse necessária a explanação da origem e do conceito de posse, posto que a usucapião é o modo originário de aquisição da propriedade pela posse contínua e prolongada, de forma mansa e pacífica, durante certo lapso temporal, observados os ditames legais, e que pode recair sobre bens móveis e imóveis. Nos dizeres de Sílvio de Salvo Venosa (2006, p. 28), a doutrina tradicional enuncia ser a posse relação de fato entre a pessoa e a coisa. A nós parece mais acertado afirmar que a posse trata de estado de aparência juridicamente relevante, ou seja, estado de fato protegido pelo direito. Se o Direito protege a posse como tal, desaparece a razão prática, que tanto incomoda os doutrinadores, em qualificar a posse como simples fato ou como direito. Com isso, podemos entender que há uma proteção do estado de aparência na posse, da situação de fato, capaz de explicar e justificar a compreensão desse estado de fato que vincula o sujeito à coisa, e que pode não corresponder ao efetivo estado de direito, mas que, no entanto, não prejudica a avaliação deste por meios probatórios e seguros, posteriormente. Todavia, esse estado de aparência, que inicialmente pode surgir sem substrato jurídico, pode servir para a aquisição da propriedade. Esse é o sentido da usucapião. (VENOSA, 2006, p. 28) E sendo a posse continuada por certo tempo um dos fundamentos da usucapião, esse estado de aparência surge como base para um direito, pressupondo até mesmo a compreensão e a definição legal de propriedade e dos demais direitos reais, tendo em vista, ainda, a relação destes para com a destinação econômica da coisa, ou seja, sua função social. 11 1.1.1 Breve síntese histórica Faz-se necessário compreendermos o instituto jurídico da posse em sua origem, vale dizer, em uma perspectiva histórica, posto que seja possível identificá-lo em diversos momentos históricos, repercutindo nas relações estabelecidas entre indivíduos, apresentando-se ora como fenômeno social, ora como fato de ordem política ou, ainda, como fato econômico. Cientes de que a relação do serem humanos com os bens materiais é antiqüíssima, remontando a tempos imemoriais, é notória a impossibilidade de identificar quando surgiu a noção de posse, sendo que, em sua concepção primitiva, se trata de um vínculo estabelecido entre um indivíduo ou um grupo e um determinado bem da vida, conforme Mezzomo.1 Tal vínculo pode expressar um caráter exclusivamente individual, por meio do qual um indivíduo se reconhece com senhoria sobre um bem, ou pode apresentar o reconhecimento por terceiros, entenda-se, a institucionalização. Assim sendo, a consideração do que seria a posse para as primitivas sociedades, bem como os reduzidos conhecimentos sobre detalhes da sua organização, sobretudo pela falta de registros, faz com que a busca por tal gênese não passe de meras especulações, haja vista que somente com o advento da era histórica, é que se passa a ter subsídios seguros para aferir o instituto jurídico da posse. Neste sentido, Astolpho Rezende (2000) nos ensina que: a posse e a propriedade aparecem em constante relação entre os homens; a posse é um fato natural; a propriedade uma criação da lei. Como nasceram uma e outra? É inútil investigar-se, através das diversas teorias imaginadas e desenvolvidas pelos filósofos e pelos juristas, a origem da propriedade, porque, frente a fenômenos jurídicos, é bastante que pesquisemos a origem desses fenômenos na organização romana, porque foi Roma que organizou o Direito, 2 com uma extensa projeção sobre o futuro. 1 MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A posse: uma digressão histórico-evolutiva da posse e de sua tutela jurídica. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 739, 14 jul. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6985>. Acesso em: 19 de janeiro de 2007. 2 Astolpho Rezende. A posse e sua Proteção, 2. ed. São Paulo: Lejus, 2000, apud MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A posse: uma digressão histórico-evolutiva da posse e de sua tutela jurídica. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 739, 14 jul. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6985>. Acesso em: 19 de janeiro de 2007. 12 Basicamente, a estruturação do Direito Ocidental deve-se ao Direito Romano, assim desde o início da mesma a posse vem recebendo tratamento jurídico. Conforme nos explica Marcelo Colombelli Mezzomo (2005), a perfeita dicotomia da propriedade e da posse, porém, parece somente ter surgido a partir da promulgação da Lei das XII Tábuas. 3 Com a queda de Roma, todo esse legado cultural foi transmitido ao Direito Medieval, que resulta da junção do Direito Romano, do Direito Canônico e do direito consuetudinário das tribos que habitavam o norte da Europa.4 Todavia, as concepções presentes no Direito Medieval, com destaque para o Direito Canônico, vigeram até a Revolução Francesa, sendo que os ideais que a motivaram romperam com o modelo feudal de propriedade, retomando o conceito unitário de que sobre a mesma coisa não deveria haver mais de um proprietário. Demonstra-se, dessa maneira, que mesmo que as legislações do começo do século XIX tenham sido construídas a partir de postulados científicos, não diferiam muito do Direito Romano, principalmente, no que diz respeito ao enfoque em relação ao indivíduo. Assim, o modelo do Estado Liberal, oriundo da Revolução Francesa, não tardou a apresentar problemas, em virtude do processo de industrialização, das precárias condições de trabalho, bem como devido à grande concentração de camadas mais abastadas nos centros urbanos, que culminou no seu crescimento desregrado. E foi nesse contexto inicial do século XX, marcado por inúmeros processos revolucionários, pela Primeira Guerra Mundial, pela ascensão do neocolonialismo, que houve o advento do Constitucionalismo Social. Há que se ressaltar a conclusão do supramencionado autor, Marcelo Colombelli Mezzomo (2005, p.26-27), de que ”ressalvadas algumas modificações, podemos afirmar que os instrumentos de proteção possessória mantiveram-se fiéis ao Direito Romano desde então, não obstante as 3 MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A posse: uma digressão histórico-evolutiva da posse e de sua tutela jurídica. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 739, 14 jul. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6985>. Acesso em: 19 de janeiro de 2007. 4 Ibidem, p 26. 13 transformações operadas a partir da Revolução Francesa e do Constitucionalismo Social.” Necessário se faz enfatizar as palavras de Pontes de Miranda (1971, p. 49) acerca da diferença entre a concepção romana de posse e a moderna, o qual esclarece que: A diferença entre a concepção da posse no direito contemporâneo, e a concepção romana da posse não esta apenas na composição do suporte fático (nem animus nem corpus, em vez de animus e corpus, ou de corpus, à maneira de R. von Ihering): está na própria relação (fática) de posse, em que os sistemas antigos viam o laço entre a pessoa e a coisa, em vez de laço entre pessoas. No meio do caminho, está a concepção de I. Kant, que é a do empirismo subjetivista (indivíduos e sociedade humana), a partir da posse comum (Gesamtbesitz) dos terrenos de toda a terra. Como observa Serpa Lopes (1996, p. 116-117), “a concepção romana ainda é a da relação entre homem e coisa”, contrariando o disposto pelo Direito Contemporâneo sobre a inexistência da relação entre homens e coisas, mas somente entre homens, tendo por objeto coisas. Contudo, o Direito Romano se fez tão relevante que ainda hoje deita suas influências no mundo ocidental. 1.1.2 Conceito de Posse e seus elementos constitutivos Superada a contextualização histórica do instituto da Posse, cumpre elucidar alguns conceitos doutrinários sobre o tema. Segundo alguns doutrinadores, a exemplo de Maria Helena Diniz e Sílvio de Salvo Venosa, a tarefa de definir a posse é árdua, pois tudo quanto a ela se vincula é motivo de divergência doutrinária, sendo que seu conceito talvez nunca alcance a unanimidade na doutrina e nas legislações (VENOSA, 2006). Ainda na esteira dos ensinamentos do jurista Sílvio de Salvo Venosa, temos que, para a compreensão do instituto da posse, devem ser caracterizados os dois elementos integrantes do conceito, quais sejam eles, o corpus e o animus. Consoante, o autor explica que: “O corpus é a relação material do homem com a coisa, ou a exterioridade da propriedade. Esse estado, explicado 14 anteriormente, é caracterizador da aparência e da proteção possessória.”5 E, ainda: “O animus é o elemento subjetivo, a intenção de proceder com a coisa como faz normalmente o proprietário.”(2006, p. 37) A partir da compreensão desses dois elementos, chegamos a dois conceitos diversos do que seja a posse, tendo em vista as clássicas posições de Savigny e Jhering, sendo este autor da teoria objetiva, e aquele, autor da teoria subjetiva, as quais detonaram infindáveis posições intermediárias (VENOSA, 2006). Partindo-se do estudo dessas duas teorias, temos que a teoria de Savigny: [...] denominada subjetivista, reconhece a posse mediante a conjugação de dois elementos: corpus (efetivo contato físico com a coisa ou mera possibilidade de exercer esse contato=detenção) e animus (elementos subjetivo consistente na intenção de exercer sobre a coisa um poder no interesse próprio). Em síntese, para Savigny por posse entende-se o poder de dispor fisicamente de uma coisa, combinado com a convicção do possuidor de que tem esse 6 poder. Portanto, a posse, no conceito de Savigny, compõe-se de dois elementos, quais sejam, o corpus e o animus (rem sibi habendi). Dessa forma: O corpus é o elemento material que se traduz no poder físico sobre a coisa ou na mera possibilidade de exercer este contato, ou melhor, na detenção do bem ou no fato de tê-lo a sua disposição. O animus domini consiste na intenção de exercer sobre a coisa direito de 7 propriedade. Sobre este temática, Orlando Gomes (2004, p. 32) comenta que: O corpus é o elemento material que se traduz no poder físico da pessoa sobre a coisa. O animus, o elemento intelectual, representa a vontade de ter essa coisa como sua. Não basta o corpus, como não basta o animus. Diferentemente, tem-se a concepção de Rudolf Von Jhering (apud REZENDE, 2000, p. 94), ao postular a Teoria Objetivista, que: 5 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 36-37. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado; 3. ed. Rio de Janeiro: Bórsoi, 1971, t. X. p. 26. 7 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 4, p. 34. 6 15 [...] prioriza o corpus na caracterização da posse, assumindo o vocábulo, contudo, sentido outro, afastado do simples contato físico ou possibilidade de ter a coisa à disposição, mas efetiva conduta de dono. Possui quem age como dono, surgindo a posse como exteriorização da propriedade, visibilidade do domínio ou uso econômico da coisa. Ou seja, para Jhering, a posse é a exteriorização do domínio, sendo que para constituir a posse, basta o corpus, uma vez que o animus está implícito no poder de fato exercido sobre a coisa. O fundamento de tal concepção encontra respaldo na seguinte explicação de Washington de Barros Monteiro (1999, p. 18): É que o corpus constitui o único elemento visível e suscetível de comprovação, encontrando-se inseparavelmente vinculado ao animus, do qual é manifestação externa, como a palavra se acha ligada ao pensamento, do qual é expressão. Neste diapasão, Nelson Godoy Assis Dower (2004, p. 23) assinala que: A diferença principal é que, enquanto Savigny dava o ‘animus’ como elemento independente do ‘corpus’, e só aceitava a posse quando a pessoa exercia os atos e manifestava a vontade de ter a coisa, denominando-se, por isso, sua teoria de teoria subjetiva, Jhering dizia que o animus está ínsito no corpus, isto é, existe o animus quando existe corpus, denominando-se sua teoria de objetiva. O Código Civil Brasileiro, ao tratar da Posse, no Livro III de sua Parte Especial, “Do Direito das Coisas”, adotou, por deferência expressa de seu autor, a teoria objetiva do jurista Jhering, exigindo, para a caracterização da posse, a apreensão material, física da coisa pelo possuidor, uma vez que, se exige uma situação exterior entre eles, ou seja, a utilização econômica da coisa, o corpus, independentemente do elemento subjetivo, o animus, que é a intenção, do titular, de ter a coisa, e que, conforme essa teoria, se presume a partir do primeiro elemento. Todavia, Orlando Gomes (2004, p. 23) esclarece que não é possível afirmar que o sistema objetivo tenha sido adotado em toda a sua pureza original, haja vista as concessões feitas à teoria subjetiva, como é o caso, por exemplo, do tratamento dado ao instituto da usucapião, pelo Código Civil de 2002. Assim é que, em seu art. 1196, o Código conceitua a posse, indiretamente, ao prescrever que “considera-se possuidor todo aquele que tem 16 de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. Associando a este preceito o art. 1228, o qual dispõe o rol dos poderes do proprietário, pode-se conceituar a posse como a exteriorização dos efeitos da propriedade, isto é, a situação de fato que, independentemente de apreensão física sobre a coisa, se constitui do exercício de quaisquer dos poderes que o direito real da propriedade confere ao seu titular. 8 Pode-se dividir a posse em várias modalidades; no entanto, para o presente estudo, basta classificá-la quanto aos vícios objetivos e quanto à subjetividade. Atinente aos vícios objetivos, o art. 1200 do Código Civil dispõe que a posse se divide em posse justa e injusta. Diz-se justa a posse que não tem vícios originais, e injusta quando, pela maneira aparente com que foi adquirida, ela sugere ser ilegítima, por se revestir de algum dos vícios de natureza objetiva previstos no artigo supracitado. A saber, a subdivisão dos vícios objetivos se dá da seguinte forma: 1) posse violenta, que se caracteriza pelo uso da força ou da coação tanto moral como física. Sobre esta, Venosa (2006, p. 61) pontua que: “Embora o conceito de posse injusta seja objetivo, a posse violenta, ao menos em sua origem, vem imbuída da mácula da má-fé”; 2) posse clandestina, quando, em razão das circunstâncias em que foi adquirida, o legítimo possuidor não tomou conhecimento da violação de sua posse. Venosa, ao citar Tito Lívio Pontes, elucida que “A posse clandestina se estabelece às caladas, às ocultas daquele que tem interesse em preservá-la”;9 3) posse precária, “ou abuso de confiança, quando, sob mera detenção, a coisa deveria ser restituída ao legítimo possuidor e não o é, convertendo-se essa detenção em posse injusta” (DOMINGUES JUNIOR, p. 4). Segundo Washington de Barros Monteiro (1991, p. 29), “a qualidade contrária a esse vício é a publicidade, a posse desfrutada na presença de todos.” No tocante à subjetividade, a posse, sendo ou não justa, pode ainda ser classificada em posse de boa ou má-fé. Deste modo, é considerada de boa-fé 8 Os poderes conferidos ao proprietário serão estudados no tópico específico sobre a propriedade. PONTES, Tito Lívio. Da posse. 2. ed. São Paulo: Forense Universitária, 1977, p. 69 apud VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 62. 9 17 a posse do adquirente que desconhece a existência do vício, do impedimento à sua aquisição. Nos dizeres de Flavio Augusto Monteiro de Barros (2005, p. 36), “é de boa-fé a posse em que o possuidor, mediante erro escusável, ignora o vício ou obstáculo que impedia a sua aquisição.” Entretanto, será de má-fé a posse em que restar comprovado que o possuidor tem ciência do impedimento, ou quando se presume que não o ignore. A respeito disso, Manuel Rodrigues (1981, p. 294) elucida que: “É de má-fé a posse daquele que sabe que sua posse é viciosa; ou o deve saber, por não ter título de aquisição, nem presunção dele; ou ser este manifestamente falso, ou por outras circunstâncias.” Uma vez definida e caracterizada a posse em seus aspectos relevantes para o conteúdo deste trabalho, cabe, igualmente, destacar os principais efeitos da posse no universo jurídico. Assim, temos na compreensão de Venosa (2006) e Maria Helena Diniz (2002), por exemplo, que a classificação mais completa é a de Clóvis Bevilácqua (1955, p. 21), sendo sete os efeitos da posse, enumerados da seguinte forma: I. o direito ao uso dos interditos; II. a percepção dos frutos; III. o direito de retenção por benfeitorias; IV. a responsabilidade pelas deteriorações; V. a posse conduz à usucapião; VI. inversão do ônus da prova para quem contesta a posse, pois que a posse se estabelece pelo fato; VII. o possuidor goza de posição mais favorável em atenção à propriedade, cuja defesa se completa pela posse. Porém, para o presente estudo, daremos especial atenção para a proteção possessória e a possibilidade de gerar usucapião. A partir dos conceitos acima esclarecidos, é possível extrair da leitura doutrinária, assim como do Código Civil, que a posse, mesmo que injusta e de má-fé, gera direito à proteção possessória. Deste modo, ao possuidor injusto é garantida a proteção possessória contra qualquer pessoa que ameace, perturbe ou esbulhe sua posse, exceto contra aquele de quem a coisa foi subtraída, diferentemente da posse justa, que corresponde à proteção possessória plena. No que diz respeito ao instituto da usucapião, predomina na doutrina o entendimento de que somente a posse justa gera direito à prescrição aquisitiva. 18 No entender de Silvio Rodrigues (1987, p. 55), o fundamento da proteção possessória encontra-se na seguinte explicação: O que o legislador almeja é conceder proteção ao proprietário, evitando que tenha ele de recorrer, cada vez que haja sido esbulhado, a um processo de reivindicação onde se veja obrigado a provar a titularidade de seus direitos. Assim, para facilitar a defesa de seu domínio, a lei confere-lhe proteção desde que prove o estado de fato – isto é, que estava ou está na posse da coisa – e que foi esbulhado, ou está sendo perturbado, ou ameaçado. Ademais, para que possamos adentrar no estudo sobre a aquisição da propriedade imóvel por meio da usucapião, faz-se necessário esclarecermos alguns conceitos sobre a propriedade em geral. 1.2 Da Propriedade Dos direitos de cunho subjetivo, a doutrina considera o instituto da propriedade o direito mais relevante, dada sua grande eficácia e consolidação no campo do Direito, sendo de fundamental importância para o estudo dos direitos reais, justamente, por tratar-se do direito real por excelência. Consoante, ampara-se na doutrina de Washington de Barros Monteiro (1995, p. 88) a seguinte compreensão acerca do instituto: O direito de propriedade, o mais importante e o mais sólido de todos os direitos subjetivos, o direito real por excelência, é o eixo em torno do qual gravita o direito das coisas. Dele pode dizer-se, com scuto, ser a pedra fundamental de todo o direito privado. Sua importância é tão grande no direito, como na sociologia e na economia política. Suas raízes aprofundam-se tanto no terreno do direito privado como no direito público. Dessa forma, a propriedade, em termos teóricos, distingue-se da posse por ser, incontestavelmente, um direito real, embora boa parte da doutrina também considere a posse como um direito real. Mesmo assim, trata-se de institutos bem distintos, recebendo, desta maneira, tratamento diverso pela lei. De tudo o que foi exposto, temos nos dizeres de Venosa (2006, p. 151) “que a posse, merece proteção por ser exteriorização da propriedade e forte indício de sua existência, perante o substrato de fato, visível, palpável, percebido pelos sentidos.” Entretanto, independe a existência de um instituto em relação ao 19 outro, pois pode haver posse sem a propriedade e o contrário também, assim como é possível estarem ambas conjugadas nas mãos de um único titular. 1.2.1 Origem e conceito da propriedade Noticiando historicamente o direito de propriedade, Sílvio de Salvo Venosa (2006, p. 151) pontua o seguinte: [...] Cada povo e cada momento histórico têm compreensão e extensão próprias do conceito de propriedade. [...] O conceito e a compreensão, até atingir a concepção moderna de propriedade privada, sofreram inúmeras influências no curso da história dos vários povos, desde a antiguidade. A história da propriedade é decorrência direta da organização política. Desta feita, ao situar o processo histórico do direito de propriedade, Maria Helena Diniz (2002, p. 99), inicialmente, assinala que “[...] é no direito romano que vamos encontrar a raiz histórica da propriedade”. Pois, conforme o ensinamento de Sílvio de Salvo Venosa (2006, p. 151152): Antes da época romana, nas sociedades primitivas, somente existia propriedade para as coisas móveis, exclusivamente para objetos de uso pessoal, tais como peças de vestuário, utensílios de caça e pesca. O solo pertencia a toda a coletividade, todos os membros da tribo, da família, não havendo o sentido de senhoria, de poder de determinada pessoa. A propriedade coletiva primitiva é, por certo, a primeira manifestação de sua função social. Continuando o pensamento com Maria Helena Diniz (2002, p. 99-100): Na era romana preponderava um sentido individualista de propriedade, apesar de ter havido duas formas de propriedade coletiva: a da gens e a da família. Nos primórdios da cultura romana a propriedade era da cidade ou gens, possuindo cada indivíduo uma restrita porção de terra (1/2 hectare), e só eram alienáveis os bens móveis. Com o desaparecimento dessa propriedade coletiva da cidade, sobreveio a da família, que, paulatinamente, foi sendo aniquilada ante o crescente fortalecimento da autoridade do pater famílias. 20 Dando seqüência ao estudo do processo histórico do direito de propriedade, Melhim Namem Chalhub (2000, p. 1-2), de maneira sintética, elucida que: Assim, é possível vislumbrar um percurso em que, originalmente, a apropriação e utilização das coisas teve como protagonista a coletividade, seguindo pelo individualismo, na concepção do dominium do Direito romano, desviando-se para uma concepção fragmentária, no feudalismo, retornando ao conceito individual, na Idade Moderna, e dirigindo-se, presentemente, para uma nova conformação, em que o direito individual é reconhecido e respeitado, mas desde que exercido conforme uma função social, que se considere inerente à propriedade. Segundo a leitura doutrinária de Venosa (2006, p. 153), tem-se que “a partir do século XVIII, a escola do direito natural passa a reclamar leis que definam a propriedade.” Com o advento da Revolução Francesa, em 1789, o feudalismo passa a deixar de existir no cenário jurídico mundial. A partir disso, tal Revolução, também conhecida como burguesa, é considerada como um importante marco no que diz respeito à configuração da propriedade no mundo moderno. Neste sentido, Chalhub (2000, p. 4), acrescenta que: A nova ordem, ao conferir ao proprietário um poder geral e absoluto sobre a coisa, libertava-o de todos os encargos a que o antigo regime feudal submetia a propriedade. Opondo-se, assim, à concepção da propriedade feudal, o Código de Napoleão restaurou o conceito unitário da propriedade, de origem romana, definindo a propriedade como o direito de fruir e dispor da coisa da maneira mais absoluta, desde que não exercido por forma proibida pelas leis e regulamentos, não estando o proprietário obrigado a ceder seu direito senão por causa de utilidade pública e mediante justa e prévia indenização (arts. 544 e 545). O Código de Napoleão, bem como as idéias presentes no processo revolucionário, serviram de inspiração, repercutindo em inúmeros outros códigos, a exemplo do Código Civil Brasileiro, que não definiu a propriedade, deixando essa árdua tarefa a cargo da doutrina, limitando-se a configurar o direito subjetivo do proprietário, nos moldes do artigo 1228 (antigo 524), o qual será estudado a seguir. A fim de concluir esse breve esboço histórico acerca do instituto da propriedade, temos, com base mais uma vez no ensinamento de Venosa (2006, p. 153), que o ”exagerado individualismo perde força no século XIX com 21 a revolução e o desenvolvimento industrial e com as doutrinas socializantes. Passa a ser buscado um sentido social na propriedade”, que será abordado no tópico a seguir, ainda que de maneira breve. Vislumbrada a origem da propriedade como processo histórico, cumprenos destacar seu conceito, assim como expor alguns de seus elementos constitutivos. Da leitura dos mais eminentes juristas, depreende-se que a tarefa de conceituar a propriedade é árdua, posto que o direito de propriedade é o direito mais amplo da pessoa em relação à coisa. Neste sentido, Arnaldo Rizzardo (2004, p. 169), considera o direito de propriedade, como sendo “o mais amplo dos direitos reais, o chamado direito real por excelência, ou o direito real fundamental.” Assim, sobre o conceito de propriedade, temos a seguinte explicação de Dower (2004, p. 94): “o nosso Código Civil não define a propriedade. Preferiu enunciar os poderes de que dispõe o proprietário sobre seus bens (art. 524), deixando sua conceituação à cargo da doutrina.” Já para Sílvio Rodrigues (2002, p. 76), tal conceito é um pouco mais amplo, sendo apresentado da seguinte forma: O domínio é o mais completo dos direitos subjetivos e constitui, como vimos, o próprio cerne do direito das coisas. Aliás, poder-se-ia mesmo dizer que, dentro do sistema de apropriação de riqueza em que vivemos, a propriedade representa a espinha dorsal do direito privado, pois o conflito de interesse entre os homens, que o ordenamento jurídico procura disciplinar, manifesta-se, na quase generalidade dos casos, na disputa sobre bens. Complementando, Washington de Barros Monteiro (1995, p. 90) conceitua o direito de propriedade assim: [...] num certo sentido, o direito de propriedade é de fato absoluto, não só porque oponível erga omnes, como também porque apresenta caráter de plenitude, sendo incontestavelmente, o mais extenso e o mais completo de todos os direitos reais. Tendo em vista uma definição analítica para a propriedade, Maria Helena Diniz (2002, p. 106) assim dispõe: 22 [...] o direito que a pessoa física ou jurídica tem, dentro dos limites normativos, de usar, gozar e dispor de um bem corpóreo ou incorpóreo, bem como de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha. Observados alguns conceitos formulados pela doutrina, tem-se, nos dizeres de Venosa (2006, p. 163), que o “Código Civil preferiu descrever de forma analítica os poderes do proprietário (ius utendi, fruendi, abutendi) a definir a propriedade.” Com isso, detendo-se ao texto presente no caput do artigo 1.228 do Código Civil, pode-se definir o instituto da propriedade como o direito real que vincula um determinado bem, corpóreo ou incorpóreo, ao seu titular, conferindo-lhe os poderes de usá-lo, gozá-lo, dele dispor e reavê-lo de quem injustamente o possua ou detenha, tudo dentro dos limites estabelecidos pela ordem jurídica. Ressaltam-se por essa concepção, presente no artigo 1.228, os seus elementos constitutivos, ou seja, as faculdades que o direito real da propriedade confere ao titular, que neste contexto se faz oportuno elucidar. A saber, esses poderes/faculdades são: 1) o poder de usar, jus utendi, que se verifica no direito do titular de empregar a coisa conforme a sua destinação material; 2) o poder de gozar/fruir, jus fruendi, que é o direito de desfrutar, de explorar economicamente a coisa e colher os frutos que ela possa produzir; 3) o poder de dispor/consumir, jus abutendi, constituído da capacidade do titular de dar à coisa o destino que bem lhe aprouver, desde que observadas as limitações legais. Somente o proprietário possui a faculdade de dispor, posto que o poder de usar e gozar pode ser atribuído a quem não seja proprietário; e 4) o poder de reaver/reinvidicar, jus reivindicandi, faculdade concedida ao titular de buscar a coisa de quem injustamente a possua, decorrente do poder de seqüela inerente a todo direito real. É oportuno destacar, nesse contexto acerca dos elementos nucleares que compõem o direito de propriedade, as características essenciais que servem de sustentação para tal direito. Convém ressaltar as palavras de Maria Helena Diniz (2002, p. 108): Ante todas as idéias aqui expendidas pode-se atribuir, num certo sentido, ao direito de propriedade, caráter absoluto não só devido a 23 sua oponibilidade erga omnes, mas também por ser o mais completo de todos os direitos reais, que dele se desmembram, e pelo fato de que o seu titular pode desfrutar e dispor do bem como quiser, sujeitando-se apenas às limitações impostas em razão do interesse público ou da coexistência do direito de propriedade de outros titulares. Nesse mesmo raciocínio, Cláudio Teixeira de Oliveira (2003, p. 37) destaca de forma resumida o significado destes elementos: a) Complexo, significa que tem a forma una, ou seja, em que estão presentes, englobadamente, todos os seus elementos nucleares, conforme disposto pelo art. 524 do Código Civil e 1.228 do novo; b) Absoluto (ilimitado), representa a inexistência de qualquer outro direito exercido por terceiro, o que se configura com base no art. 527 do Código Civil e 1.231 do novo; c) Perpétuo, considerando que, via de regra, a propriedade tem duração permanente, isto é, pode ser transmissível por ato inter vivos (por exemplo, alienação e doação) e, também, mortis causa (transmissível por sucessão hereditária); d) Exclusivo, no sentido de que o direito é exercido de forma plena e exclusiva pelo proprietário; por tal exclusividade, fica afastado o exercício de todos terceiros, que não proprietários, salvo quando se dá uma das causas previstas no art. 674 do Código Civil e 1.225 do novo. Cabe esposar aqui os modos de aquisição da propriedade, ainda que de maneira breve, uma vez que Maria Helena Diniz (2002, p. 121) chama atenção para o fato de que “pelos arts. 1.227, 1.238 a 1.259 e 1.784 do Código Civil Brasileiro adquire-se a propriedade imóvel pelo registro do título no cartório de Registro de Imóveis, pela usucapião, pela acessão e pelo direito hereditário.” Diante disso, convém destacar as palavras de Washington de Barros Monteiro (1995, p. 102) sobre a classificação da aquisição da propriedade quanto à sua procedência em originária e derivada: Do ponto de vista doutrinário, os modos de adquirir a propriedade dividem-se em originários e derivados. Nos primeiros, a aquisição é direta e independente da interposição de outra pessoa, o adquirente faz seu o bem, que lhe não é transmitido por quem quer que seja. São modos originários de aquisição da propriedade a ocupação, especificação e a acessão. Nos segundos, a aquisição tem como pressuposto um ato de transmissão por via do qual a propriedade se transfere para o adquirente. Tais são a transcrição e a tradição. Necessário se faz conferir as palavras de Sílvio de Salvo Venosa (2006. p.175-176), ao afirmar: [...] a aquisição da propriedade é originária quando desvinculada de qualquer relação com o titular anterior. Nela não existe relação 24 jurídica de transmissão. Inexiste ou não há relevância jurídica na figura do antecessor. Sustenta-se ser apenas a ocupação verdadeiramente modo originário de aquisição. [...] Ocorre aquisição derivada quando há relação jurídica com o antecessor. Existe transmissão da propriedade de um sujeito a outro. A regra fundamental nessa modalidade é a de que ninguém pode transferir mais direitos do que tem: nemo plus iuris ad alium transferre potest, quam ipse haberet. [...] Existe transmissão derivada tanto por ato inter vivos como mortis causa. Considere-se ainda sobre o tema que a aquisição da propriedade pode se dar a título singular ou universal. No que se refere à aquisição a titulo singular, Arnaldo Rizzardo (2004, p. 245) disserta o seguinte: Esta modalidade de aquisição envolve o aspecto quantitativo e individualizado ou não dos bens. Será a titulo singular sempre que o objeto abranja um ou vários bens individualizados. Integram esta espécie as coisas singulares, as coisas compostas e as universalidades de fato. Normalmente, a aquisição se dá por atos inter vivos, sem afastar, todavia, a origem causa mortis, como no testamento. Já sobre a aquisição a título universal, constata Arnoldo Wald (1995, p. 132) que esta ocorre: [...] quando todos os bens pertencentes a determinada pessoa, e todas as obrigações que lhe incumbiam passam a outrem. O caso por excelência da sucessão a título universal é o da sucessão do herdeiro que assume o ativo e o passivo do de cujus continuando, no plano patrimonial, a pessoa do falecido. Uma vez evidenciados os modos de aquisição da propriedade, não nos deteremos ao estudo das formas de aquisição e perda da propriedade móvel e imóvel. Cabe, porém, destacar que a aquisição da propriedade pela usucapião não será referenciada neste item, posto que a usucapião será objeto de análise do próximo capítulo, específico sobre o assunto. Diante das considerações acima delineadas, trataremos no tópico a seguir de uma das mais importantes limitações, instituída pela Constituição Federal de 1988, a qual encontra na prática sérios entraves, entenda-se, a dificuldade da obrigação da propriedade em satisfazer a sua função social. 25 1.3 Função social da propriedade Com a Constituição de 1988, o princípio da função social da propriedade teve a sua importância reconhecida em vários dispositivos: no art. 5º, XXII, quando trata dos direitos e deveres individuais e coletivos; no art. 170, III, quando traz os princípios da ordem econômica e financeira; no art. 182, § 2º, quando disciplina a política de desenvolvimento urbano; e no art. 186, a respeito da função social da propriedade rural. A respeito do tema, Paulo Affonso Leme Machado (2005, p. 142) comenta que: [...] pelo menos oito vezes a expressão ”função social” está presente na Constituição: arts. 5º, inc. XXIII; 170, III; 173, § 1°, I ; 182, caput; 182, § 2°, 184, caput; 185, parágrafo único; e 186, II. A expressão ‘função social da propriedade’ foi inserida pela primeira vez na Constituição Federal de 1967 (art. 157, III). Ressalta-se que o artigo 5º, em seus incisos XXII e XXIII, dispõe sobre os princípios basilares da propriedade, sendo que o primeiro visa garanti-la, e o segundo tem por objetivo atrelá-la à função social. O referido autor, na obra que tem por título “Estudos de Direito Ambiental”, continua salientando sobre a função social da propriedade, destacando que: Reconhecer que a propriedade tem, também, uma função social é não tratar a propriedade como um ente isolado na sociedade. Afirmar que a propriedade tem uma função social não é transformá-la em vítima da sociedade. A fruição da propriedade não pode legitimar a emissão de poluentes que vão invadir a propriedade de outros indivíduos. O conteúdo da propriedade não reside num só elemento. Há o elemento individual, que possibilita o gozo e o lucro para o proprietário. Mas outros elementos aglutinam-se a esse: além do fator 10 social, há o componente ambiental. É com propriedade que o constitucionalista José Afonso da Silva (1994, p. 246), ao esposar sobre o regime jurídico da propriedade privada, elucida que: 10 MACHADO, Paulo Afonso Leme. Estudos de Direito Ambiental, p. 127, apud Direito Ambiental Brasileiro, 13. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 143. 26 Os juristas brasileiros, privatistas e publicistas, concebem o regime jurídico da propriedade privada como subordinado ao Direito Civil, considerado direito real fundamental. Olvidam as regras de Direito Público, especialmente de Direito Constitucional, que igualmente disciplinam a propriedade. E ainda acrescenta que: Essa é uma perspectiva dominada pela atmosfera civilista, que não levou em conta as profundas transformações impostas às relações de propriedade privada, sujeita, hoje, à estreita disciplina do Direito Público, que tem sua sede fundamental nas normas constitucionais. (1994, p. 246) Ao citar a Encíclica Mater et Magistra do Papa João XXIII, de 1961, o jurista Sílvio de Salvo Venosa (2006, p. 154) aduz que: [...] a propriedade é um direito natural, mas esse direito deve ser exercido de acordo com uma função social, não só em proveito do titular, mas também em benefício da coletividade. Destarte, o Estado não pode omitir-se no ordenamento sociológico da propriedade. Deve fornecer instrumentos jurídicos eficazes para o proprietário defender o que é seu e que é utilizado em seu proveito, de sua família e de seu grupo social. Deve, por outro lado, criar instrumentos legais eficazes e justos para tornar todo e qualquer bem produtivo e útil. Bem não utilizado ou mal utilizado é constante motivo de inquietação social. A má utilização da terra e do espaço urbano gera violência. O real significado da expressão “função social da propriedade” é tema recorrente de discussões. Para Melhim Namem Chalhub (2000, p. 11), “o significado e a extensão do conceito de função social da propriedade têm sido objeto de controvérsia na doutrina”, mas ao citar Gustavo Tepedino (1999, p. 282, apud CHALHUB, 2000, p.11), entende “haver consenso quanto à capacidade do elemento funcional em alterar a estrutura do domínio.” Na busca de um conceito da função social da propriedade, o constitucionalista Celso Ribeiro Bastos (2001, p. 218) ilustra a questão afirmando: A função social visa coibir as deformidades, o teratológico, os aleijões, digamos assim, da ordem jurídica. É o que cumpre examinar agora. Vale dizer, em que consistem aquelas destinações que poderão levar ao uso degenerado da propriedade a ponto de colocar o seu titular em conflito com as normas jurídicas que a protegem. A chamada função social da propriedade nada mais é do que o conjunto de normas da Constituição que visa, por vezes até com medidas de grande gravidade jurídica, recolocar a propriedade na sua trilha normal. 27 E complementa, com relação à propriedade urbana, evidenciando que: [...] a função social do solo urbano é cumprida pela sua utilização econômica plena, o que pode ocorrer com ou sem edificação. Em outras palavras, é o critério econômico o que predomina. Se o bem estiver se prestando a uma utilização econômica plena, evidentemente levando-se em conta a sua adequação topográfica, localização etc., não será passível das medidas sancionatórias.(2001, p.219) O autor supramencionado, José Afonso da Silva (1994, p. 244-245), por sua vez, ao enfocar a propriedade sob a perspectiva da ordem econômica, ou melhor, como instituição das relações econômicas, salienta que: [...] ela não mais poderá ser considerada puro direito individual, relativizando-se seu conceito e significado, especialmente porque os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Esse doutrinador afirma, ainda, que nossa Carta Magna está alinhada com a doutrina da função social da propriedade urbana, que “é formada e condicionada pelo direito urbanístico a fim de cumprir sua função social específica”. (SILVA, 1995, p.67) Dentre essas funções, o autor destaca a de propiciar habitação, trabalho e demais funções sociais da cidade. Nesse cenário, José Renato Nalini (2003, p. 170) cita Gregório R. de Yurre expondo que: [...] a função social denota os deveres que a propriedade privada tem para com os demais homens e com a sociedade; desses deveres derivam seus limites. A propriedade não é direito absoluto e ilimitado, como o concebeu a filosofia liberal, senão um direito limitado pelos deveres sociais. Nalini (2003, p. 171), mantendo a linha de pensamento acima, entende que: A propriedade reflete duas vertentes do ser humano: a pessoal e a social. Para superar o individualismo, é necessário tornar eficaz e real a função social. O Estado, enquanto instrumento da realização do bem comum, precisa assegurar o cumprimento da função social da propriedade. E o faz, impondo limites jurídicos a esse direito 28 fundamental. Conferir à propriedade uma função social é tema primeiramente ético. Diante do que foi acima delineado, pode-se considerar satisfeita a função social da propriedade, quando esta recebe uma destinação, seja para fins de moradia, seja para estabelecimento econômico, político, científico, cultural, histórico ou mesmo social, ou ainda, para preservação ambiental, hipótese em que a propriedade estará cumprindo sua função permanecendo inalterada, resguardando-se e protegendo o que estiver dentro de seus limites. Em face da inserção do conceito da “função social” em relação à propriedade assim como em relação à posse, pode-se dizer que a função social da propriedade representa uma mitigação do poder absoluto do proprietário e uma condicionante do exercício da posse, caracterizando-se pela submissão da propriedade e da posse a uma utilidade que transcende o mero interesse individual, dadas as repercussões destas sobre dimensões coletivas, como o meio ambiente, a economia, dentre outros. Oportunamente, Venosa (2006, p.157) frisa que “toda propriedade, ainda que resguardado o direito de proprietário, deve cumprir uma função social.” Consoante, o vigente Código Civil, em seu artigo 1.228, § 1°, dispõe expressamente sobre a adoção da função social da propriedade, e, portanto, da posse, sustentando que a propriedade deve ser exercida: [...] em consonância com suas finalidade econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem, como evitada a 11 poluição do ar e das águas. Sob esse aspecto, Venosa (2006, p. 158) tece os seguintes comentários: Presentes estão nessas dicções princípios afastados do individualismo histórico que não somente buscam coibir o uso abusivo da propriedade, como também procuram inseri-la no contexto de utilização para o bem comum. Utilizar a propriedade adequadamente possui no mundo contemporâneo amplo espectro, que desborda para aspectos como a proteção da fauna e da flora e para sublimação do patrimônio artístico e histórico. Há que se preservar a natureza e todo o seu equilíbrio com desenvolvimento 11 Artigo 1.228, §1° do Código Civil de 2002. 29 sustentável, para que não coloquemos em risco as futuras gerações deste planeta. Conclui-se, então, que a propriedade, a partir da perspectiva de sua função social, sofre diferentes formas de limitações. Não obstante, o fundamento da usucapião não é outro senão o princípio da função social da propriedade. Importante destacar que, por um lado, a usucapião nada mais é do que uma das medidas sancionatórias do não cumprimento da função social da propriedade, pelo abandono da coisa. Destarte, pelo princípio da função social da propriedade é que se justifica a possibilidade de um mero possuidor, pela usucapião, adquirir o direito de propriedade, em face do abandono a do desinteresse do proprietário verificados durante um lapso temporal considerável. É conveniente trazer a lume, novamente, os ensinamentos do doutrinador Sílvio de Salvo Venosa (2006, p. 159): A proteção àquele que se utiliza validamente da coisa nada mais é do que revigoramento do usucapião. É obrigação do proprietário aproveitar seus bens e explorá-los. O proprietário e possuidor, pelo fato de manter uma riqueza, tem o dever social de torná-la operativa. Assim, estará protegido pelo ordenamento. O abandono e a desídia do proprietário podem premiar a posse daquele que se utiliza eficazmente da coisa por certo tempo. A prescrição aquisitiva do possuidor contrapõe-se, como regra geral, à perda da coisa pelo desuso ou abandono do proprietário. O instituto do usucapião é veículo perfeito para conciliar o interesse individual e o interesse coletivo na propriedade. Daí ter a Constituição atual alargado seu alcance. A finalidade do usucapião é justamente atribuir o bem a quem dele utilmente se serve para moradia ou exploração econômica. Cabe também ao Estado regular sua intervenção sempre que as riquezas não forem bem utilizadas ou relegadas ao abandono, redistribuindo-se aos interessados e capazes de fazê-lo. Tecidas as considerações acerca dos Direitos das Coisas, compreendendo os institutos da posse, propriedade e o princípio da função social de ambos, encerra-se o primeiro capítulo deste trabalho, partindo-se agora ao estudo do instituto da usucapião e de suas previsões a partir da Constituição Federal de 1988, no Código Civil e, também, no Estatuto da Cidade. 30 CAPÍTULO 2 POLÍTICA URBANA NACIONAL: PANORAMA JURÍDICO DA USUCAPIÃO 2.1 O instituto da usucapião Este segundo capítulo tem por escopo, analisar e descrever a usucapião, conceituando-a e apresentando seus requisitos e as modalidades existentes acerca desse instituto jurídico, para que num segundo momento deste capítulo possa-se estudar a modalidade de usucapião especial coletiva urbana, prevista no Estatuto da Cidade, ora objeto de análise de aplicação ao estudo do caso concreto da Comunidade da Vila Santa Rosa, situada no bairro Agronômica, no município de Florianópolis. 2.1.1 Adoção do gênero feminino Inicialmente, cumpre destacar que o vocábulo usucapião pode ser usado tanto no gênero feminino quanto no masculino, sendo que as razões podem ser amparadas nas palavras de José Carlos de Moraes Salles (2006, p. 47), que assim diz: Para o insigne Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, o vocábulo é do gênero feminino, de modo que se deverá dizer “a usucapião”. O ilustre Laudelino Freire, entretanto, afirma ser usucapião palavra de gênero masculino, de sorte que se imporia dizer “o usucapião”. No mesmo sentido, a opinião de Silveira Bueno. Theotonio Negrão, todavia, com o espírito prático que sempre o caracterizou, depois de esclarecer que a Lei 6.969, de 10.12.1981, manda dizer “a Usucapião” – o que estaria de acordo com a etimologia –, afirmou que continuaria a dizer “o usucapião” até que o uso consagrasse o gênero feminino, mesmo porque Caesar non super grammaticos. Há, também, o argumento daqueles que se referem ao instituto como “a usucapião” de que as palavras latinas da terceira geração eram, invariavelmente, femininas. O Código Civil de 1916 consagrou a utilização do termo no masculino, concordando com a tradição de nosso direito; já o Código de 2002, bem como a Lei 10.257/2001, por sua vez, acolheu a versão feminina, 31 rompendo com essa longa tradição. Com isso, a presente monografia, igualmente, adotou a expressão no feminino. 2.1.2 Origem e fundamento do instituto da usucapião Ao analisar a origem do instituto da usucapião, observa-se que este é derivado do vocábulo latino usu capere, ou seja, etimologicamente significa “tomar pelo uso”. Nos dizeres de Sílvio de Salvo Venosa (2006, p.193), tem-se que: Usucapio deriva de capere (tomar) e de usus (uso). Tomar pelo uso. Seu significado original era de posse. A Lei das XII Tábuas estabeleceu que quem possuísse por dois anos um imóvel ou por um ano um móvel tornar-se-ia proprietário. Era modalidade de aquisição do ius civile, portanto apenas destinada aos cidadãos romanos. A jurista Maria Helena Diniz (2002, p. 142) autentica as palavras de Venosa, acrescentando, no entanto, que “tomar pelo uso não era obra de um instante; exigia, sempre, um complemento de cobertura sem o qual esse capio nenhum valor ou efeito teria. Consistia esse elemento no fator tempo. “ Conforme anuncia a doutrina, o Direito Romano já tratava da usucapião na Lei das XII Tábuas, na Tábua 6ª, inciso III, como um modo de aquisição do domínio de bens, fossem móveis ou imóveis, pelo decurso de prazo previsto em lei no exercício da posse do referido bem. Assim, no tocante às origens do instituto, Washington de Barros Monteiro (1971, p. 124) enfatiza que este foi: [...] regulado pela Lei XII Tábuas, o usucapião estendia-se não só aos bens móveis como também aos imóveis, sendo a princípio de um ano o prazo para os primeiros e de dois anos para os segundos. Posteriormente, esse prazo foi elevado para dez anos entre presentes e vinte entre ausentes. Importante trazer à baila o fato de que Roma, na busca pela expansão territorial, veio a adquirir vastas áreas fora da península itálica, as quais eram povoadas por diversos peregrinos que não podiam invocar a usucapião, posto 32 que esta era uma instituição de “direito quiritário”. (DINIZ, 2002, p. 142) Todavia, conforme leciona Venosa (2006, p. 194) a respeito dos dois institutos existentes no período clássico do Direito Romano, sabe-se que: Desaparecendo a distinção entre terrenos itálicos e provinciais, os dois institutos surgem já unificados na codificação de Justiniano, sob o nome de usucapião. Daí a razão de, com freqüência, utilizar-se da expressão prescrição aquisitiva como sinônimo de usucapião. De fato, enquanto a prescrição extintiva, ou prescrição propriamente dita, implica perda de direito, o usucapião permite a aquisição do direito de propriedade. Em ambas as situações, levam-se em consideração o decurso de certo tempo. Mais uma vez, colaciona-se a reflexão de Maria Helena Diniz (2002, p. 143-144), que complementa sobre o assunto: [...] Entendemos que a usucapião é, concomitantemente, uma energia criadora e extintiva. Extintiva porque redunda na perda da propriedade por parte daquele que dela se desobriga pelo decurso do tempo. Aquisitiva porque ele leva à apropriação da coisa pela posse prolongada. O autor já citado Moraes Salles (2006, p. 53) também compartilha desse posicionamento, ratificando-o da seguinte forma: Podemos dizer, portanto, que a usucapião é prescrição aquisitiva, apesar da impropriedade da expressão, como assinalado por Caio Mário da Silva Pereira. Daí dizer Tupinambá Miguel Castro do Nascimento que a prescrição aquisitiva é, hodiernamente, sinônimo de usucapião, tendo a doutrina usado, indiferentemente, as duas expressões. Câmara Leal explica a origem da expressão prescrição aquisitiva como sinônimo de usucapião: Até aqui, o usucapião, meio aquisitivo da propriedade, e a prescrição longi et longissimi temporis, meio extintivo da reivindicatória, conservaram-se como institutos diversos, constituindo um, título de aquisição da propriedade, e representando o outro, simples exceção processual contra a reivindicação. Frise-se que a usucapião serve para consolidar a aquisição, entenda-se, por conseguinte, dar segurança e estabilidade à propriedade, podendo ainda facilitar como meio de prova, bem como ser alegada como matéria de defesa. 12 Destarte, o fundamento da usucapião justifica-se pela sua utilidade social. 12 Vide súmula 237 do STF, art. 7º da lei 6.969/81 e art. 13 do Estatuto da Cidade, o qual terá sua explicação em momento oportuno no presente trabalho. 33 Nesse diapasão, vale citar mais uma vez os escritos de Sílvio de Salvo Venosa (2006, p. 195): O usucapião tem o condão de transformar a situação do fato da posse, sempre suscetível a vicissitudes, em propriedade, situação jurídica definida. Nesse sentido, também se coloca a prescrição extintiva que procura dar estabilidade à relação jurídica pendente. Desse modo, justifica-se a perda da coisa pelo proprietário em favor do possuidor. José Carlos de Moraes Salles (2006, p. 49), mantendo a linha de pensamento acima, descreve, de forma brilhante, o fundamento do instituto da usucapião: Todo bem, móvel ou imóvel, deve ter uma função social. Vale dizer, deve ser usado pelo proprietário, direta ou indiretamente, de modo a gerar utilidades. Se o dono abandona esse bem; se se descuida no tocante à sua utilização, deixando-o sem uma destinação e se comportando desinteressadamente como se não fosse o proprietário, pode, com tal procedimento, proporcionar a outrem a oportunidade de se apossar da aludida coisa. Essa posse, mansa e pacífica, por determinado tempo previsto em lei, será hábil a gerar a aquisição da propriedade por quem seja seu exercitador, porque interessa à coletividade a transformação e a sedimentação de tal situação de fato em situação de direito. À paz social interessa a solidificação daquela situação de fato na pessoa do possuidor, convertendo-a em situação de direito, evitando-se, assim, que a instabilidade do possuidor possa eternizar-se, gerando discórdias e conflitos que afetem perigosamente a harmonia da coletividade. Assim, o proprietário desidioso, que não cuida do que é seu, que deixa seu bem em estado de abandono, ainda que não tenha a intenção de abandoná-lo, perde sua propriedade em favor daquele que, havendo se apossado da coisa, mansa e pacificamente, durante o tempo previsto em lei, da mesma cuidou e lhe deu destinação, utilizando-a como se sua fosse. Logo, conclui-se que o princípio da função social da propriedade é o fundamento da usucapião. 34 2.1.3 Conceito de usucapião Para José Carlos de Moraes Salles (2006, p. 48-49), a usucapião pode ser conceituada “como a aquisição do domínio ou de um direito real sobre coisa alheia, mediante posse mansa e pacífica, durante o tempo estabelecido em lei.” Esse mesmo autor destaca que essa conceituação se baseia, em linhas gerais, na definição de Modestino, contida no Digesto, Livro 41, Título III, frag. 3, segundo a qual “usucapião é a aquisição do domínio pela posse continuada por um tempo definido na lei”. No dizer de Maria Helena Diniz (2002, p. 144-145), quanto a ser a usucapião um modo originário ou derivado de se adquirir a propriedade, não há harmonia de entendimento doutrinário. Assim, ao citar outros autores, a eminente jurista expõe que: Para Girad só a ocupação pode merecer a inclusão na categoria das aquisições originárias. Já De Ruggiero propõe o enquadramento da usucapião numa classe intermediária entre as aquisições originárias e as derivadas, sendo por isso, diz ele, que a usucapião não apaga os ônus que podem recair sobre a coisa usucapida. Todavia, pelos princípios que presidem as mais acatadas teorias sobre a aquisição da propriedade, é de aceitar-se que se trata de modo originário, uma vez que a relação jurídica formada em favor do usucapiente não deriva de nenhuma relação do antecessor. O usucapiente torna-se proprietário não por alienação do proprietário precedente, mas em razão da posse exercida. É de bom alvitre sublinhar as palavras de Cláudio Teixeira de Oliveira (2003, p. 53): Logicamente, em face das considerações históricas e do conceito, a única posse capaz de gerar o usucapião é a originária. De fato, somente a posse originária pode conduzir ao usucapião. Posse originária é aquela em que está presente em favor do usucapiente o animus domini (vontade de dono) e que não guarda qualquer relação de dependência (nexo causal) deste (usucapiente) com o anterior proprietário. A posse derivada não pode conduzir ao usucapião, haja vista que o direito de outrem não está sendo lesado, na realidade ele próprio o está exercendo. Não obstante o fato de uma corrente minoritária da doutrina nacional defender a tese de que a usucapião é modo derivado de aquisição da 35 propriedade, a exemplo do jurista Caio Mário da Silva Pereira, prospera na opinião de vários juristas que a usucapião é o modo originário de aquisição da propriedade, ou de qualquer outro direito real, suscetível de apropriação material, que se dá pela prescrição aquisitiva, entenda-se, pelo decurso de um determinado lapso temporal, e desde que cumpridos os demais requisitos previstos em lei, tendo em vista que esses requisitos variam conforme a modalidade de usucapião, como veremos adiante, ainda que brevemente. Considerando que, na prática, o instituto em questão tem sua aplicação quase que exclusivamente para aquisição da propriedade, é também possível, conforme prelecionam Washington de Barros Monteiro, Caio Mário da Silva Pereira, Orlando Gomes e Tupinambá Miguel Castro do Nascimento (apud SALLES, 1991, p. 48), “que a usucapião pode estender-se à aquisição de outros direitos reais, tais como as servidões, o domínio útil na enfiteuse, o usufruto, o uso e a habitação.” Neste ponto, faz-se necessário enfatizar que o efeito mais importante que se pode verificar a respeito do instituto da usucapião está no fato de consolidar-se o domínio pelo adquirente, eliminando qualquer questionamento sobre a propriedade. 36 2.1.4 Requisitos Na concepção de Sílvio de Salvo Venosa (2006, p. 194), estabeleceramse os seguintes requisitos para a usucapião, mantidos na lei e na doutrina modernas: res habilis (coisa hábil), iusta causa (justa causa), bona fides (boafé), possessio (posse), tempus (tempo). Da leitura da obra de Orlando Gomes (2004, p. 194), depreende-se que “a posse e o tempo são os dois requisitos básicos, considerados formais, característicos do instituto e presentes em quaisquer das modalidades de usucapião. Outras exigências para se caracterizar a usucapião variarão de acordo com cada espécie.” Cabe, neste momento, contextualizar tais requisitos, mesmo que de forma sucinta, tendo ciência de que cada um desses elementos integram, dentro das suas particularidades, os pressupostos para a efetivação da transformação do possuidor em proprietário. Concernente à res habilis, Cláudio Teixeira de Oliveira (2003, p. 54) defende que: [...] por coisa hábil entende-se tudo que pode ser objeto de comercialização ou até mesmo de uma relação de direito. Deve, portanto, se tratar de coisa que esteja no comércio e que seja passível de sofrer alienação. Maria Helena Diniz (2002, p. 148) adverte que: [...] jamais poderão ser objeto de usucapião: a) as coisas que estão fora do comércio, pela sua própria natureza, por não serem suscetíveis de apropriação pelo homem, como o ar, a luz solar, etc.; b) os bens públicos que estando fora do comércio são inalienáveis (STF, Súmula 340). Na lição de Vitor Frederico Kümpel (2005, p. 96), sobre a coisa hábil ou res habilis, temos que: São os bens hábeis passíveis de serem usucapidos, no caso em questão, os imóveis. Existe uma presunção de que todos os bens são passíveis de serem usucapidos, de forma que podemos excluir: a) os fora do comércio (terras indígenas); b) os bens públicos; c) as 37 servidões não aparentes (áreas de recuo nas rodovias); d) as terras devolutas. Em relação ao justo título, Cláudio T. de Oliveira (2003, p. 54), de forma resumida, ensina que: [...] é a chamada justa causa, e significa que deve estar escorado em lei ou ter suporte legal a lhe proteger. O justo título deve ser provado e não meramente presumido. É de ordem concreta e não abstrata. È entendível por justo título todo o documento considerado como sendo hábil para a transferência da propriedade. Sob esse mesmo prisma, Venosa (2006, p. 202) afirma que: [...] Trata-se do fato gerador da posse. Nesse fato gerador ou fato jurígeno, examinar-se-á a justa causa da posse do usucapiente. Esse título, por alguma razão, não logra a obtenção da propriedade. Não é necessário que seja documento. Melhor que a lei dissesse título hábil [...] Em regra, é justo título todo ato ou negócio jurídico que em tese possa transferir a propriedade. Esse mesmo autor continua sustentando que: A noção de justo título está intimamente ligada a boa-fé. O justo título exterioriza-se e ganha solidez na boa-fé. Aquele que sabe possuir de forma violenta, clandestina ou precária não tem justo título. Documento que faz crer a todos transferir a propriedade é justo título. Cabe ao impugnante provar a existência de má-fé, porque (a) boa-fé se presume. (2006, p. 202) Sendo a boa-fé (fides) uma mera crença, haja vista tratar-se de uma presunção em decorrência dos atos praticados pelo possuidor, Sílvio Rodrigues (2002, p. 111) complementa que “necessário também se faz esteja o prescribente de boa-fé. E ele o está quando ignora o vício, ou obstáculo, que lhe impede a aquisição da coisa ou do direito possuído (CC/1916, art. 490; CC/2002, art. 2.001)”. Levando em consideração as explicações contidas neste trabalho sobre a posse, é sabido de todos que sem esta não há usucapião, principalmente, se lembrarmos que a definição do instituto se refere à aquisição do domínio pela posse prolongada. Dessa forma, a posse, no ensinamento de André Chateaubriand Bandeira de Melo (2006, p. 309): [...] deve ser contínua durante o período necessário para a caracterização da usucapião, não sofrendo discussão, contestação, impugnação ou dúvida alguma. É exigida para a posse ad usucapionem que ela seja exercida com o animus domini, ou seja, 38 que o usucapiente possua o imóvel como se seu fosse ainda que de má-fé, não bastando a posse ad interdicta. Oportunamente, Venosa (2006, p. 197) afirma o seguinte sobre a posse ensejadora da usucapião: Entende-se, destarte, não ser qualquer posse propiciadora do usucapião, ao menos o ordinário. Examina-se se existe posse ad usucapionem. A lei exige que a posse seja contínua e incontestada, pelo tempo determinado, com ânimo de dono. Não pode o fato da posse ser clandestino, violento ou precário. Para o período exigido é necessário não ter a posse sofrido impugnação. Desse modo, a natureza da posse ad usucapionem exclui a mera detenção. Cumpre destacar o conceito de posse ad usucapionem, ainda que conciso, extraído da obra de Natal Nader (1991, p. 20): Posse ‘ad usucapionem’ é a que, além dos elementos indispensáveis à configuração da posse, preenche ainda os requisitos exigidos à aquisição da propriedade pelo usucapião. Deve ser sem interrupção, sem oposição e exercida com intenção de dono, ‘animus domini’. Claro está que o instituto da posse é qualificado pela pacificidade, pela continuidade e pelo elemento subjetivo. Com isso, em se tratando de posse ad usucapionem, para a caracterização da posse não basta somente o elemento objetivo, ou seja, a apreensão física da coisa pelo possuidor; faz-se necessário também o elemento subjetivo, leia-se, a intenção desse possuidor de ter a coisa como sua, isto é, que ele esteja agindo como se proprietário fosse. Contudo, retomando as lições iniciais contidas no presente estudo, temos que, para efeito da usucapião, a legislação nacional exige a posse no sentido atribuído pela teoria subjetivista de Savigny, em contraposição ao tratamento dado à posse com relação aos seus demais efeitos, lembrando novamente que o Código Civil adota a teoria objetivista. Sobre o transcurso do tempo (tempus), atenta-se para a contagem física do tempo da posse, a qual deve ser contínua, ou melhor, deve-se levar em conta o início efetivo da posse até a data da efetiva pretensão do possuidor se tornar proprietário, por meio da ação de usucapião. Nesse aspecto, convém destacar mais uma vez as palavras de André Chateaubriand Bandeira de Melo (2006, p. 309), que assim dispõe: 39 É o período exigido por lei, específico para cada tipo de usucapião. E é muito importante para qualquer tipo. Como já visto, independente do tempo de posse; é indispensável que esta se estenda ininterruptamente pelo período mínimo de cinco e pelo máximo de vinte anos, contados por dias e não por horas. Em tempo de concluir a apresentação dos requisitos necessários para a concretização da usucapião, cabe anunciar o último requisito para que o possuidor adquira a condição de proprietário, que é o requerimento ao juiz, por meio de sentença judicial, a qual constituirá título hábil para assento no Registro de Imóveis. Sobre o assunto, Sílvio Rodrigues (2002, p. 113) ensina que “determina a lei que o usucapiente, adquirindo o domínio pela posse mansa e pacífica do imóvel, pode requerer ao juiz que assim o declare por sentença”. Porém, Maria Helena Diniz (2002, p. 152) atenta para o fato de que: A sentença declaratória na ação de usucapião [...] e seu respectivo registro não têm valor constitutivo e sim meramente probante, como um elemento indispensável para introduzir o imóvel usucapido no registro imobiliário, para que ele possa daí por diante, com esta forma originária, seguir o curso normal de todos os bens imóveis, quer em sua utilização, quer na criação de seus direitos reais de fruição ou de disposição, antes do que não seria possível criá-los. Mais adiante, a autora cita Sílvio Rodrigues (apud DINIZ, p. 152), expondo que ele: [...] entende que essa sentença tem caráter constitutivo, porque antes dela o possuidor reúne em mãos todos os requisitos para adquirir o domínio, mas, até que a sentença proclame tal aquisição, o usucapiente tem apenas expectativa de direito. Por fim, antes de apresentarmos as modalidades de usucapião presentes na legislação pátria, cumpre-nos destacar, no que tange aos efeitos advindos da usucapião, que a constituição de título de transferência do bem ao usucapiente é oponível erga omnes, sendo que a transferência da propriedade da coisa ao possuidor, como sendo o efeito fundamental, no entendimento de André Eduardo de Carvalho Zacarias (2006, p. 23), opera efeitos ex tunc. 40 2.1.5 Modalidades do instituto da usucapião Nas palavras de Maria Helena Diniz (2002, p. 153), quatro são as modalidades de usucapião previstas no Código Civil: a extraordinária, a ordinária, a urbana e a especial ou pro labore, que estão disciplinadas nos artigos 1.238 a 1.244. Com isso, passaremos a expor brevemente cada uma delas, uma vez que o presente trabalho tem por intuito analisar a aplicação do instituto da usucapião especial coletivo urbano. Dessa maneira, pode-se dizer que, basicamente, as diferenças entre a usucapião ordinária e a extraordinária consistem no lapso temporal e na existência de presunção juris et de jure. O artigo 1.238 de nossa lei civil, que prevê a usucapião extraordinária, encontra-se disposto da seguinte forma: Art. 1.238 – Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título pra o Registro no Cartório de Registro de Imóveis. (CÓDIGO CIVIL, 2002) Acrescente-se que no parágrafo único desse artigo o lapso temporal pode ser reduzido para dez anos “se o possuidor houver estabelecido no imóvel a sua moradia habitual, ou nele realizado obras ou serviços de caráter produtivo.”13 Para ilustrar a temática, André Eduardo de Carvalho Zacarias (2006, p. 27) comenta que a usucapião extraordinária “é aquela que se formula pelo transcurso da posse, mansa e pacífica, por 15 anos ininterruptos. Caracterizase pela maior duração da posse e por dispensar o justo título e a boa-fé.” Dessa espécie de usucapião, conclui-se que são quatro os requisitos ensejadores do instituto, quais sejam: a posse, justa ou sem oposição (mansa e pacífica), considerada a mais importante dos requisitos que ensejam a 13 Artigo, 1.238, parágrafo único, do Código Civil de 2002. 41 usucapião; o tempo, decurso do prazo de quinze anos, sem interrupção; o animus domini, ou seja, a intenção de ter a coisa como dono, e o objeto hábil. Já a usucapião ordinária tem sua previsão inserida no art. 1.242 do Código Civil (2002), que assim impõe: Art. 1.242 – Adquire também a propriedade do imóvel aquele que, continua e incontestadamente, com justo título e boa-fé, o possuir por dez anos. Parágrafo único. Será de cinco anos o prazo previsto neste artigo se o imóvel houver sido adquirido, onerosamente, com base no registro constante do respectivo cartório, cancelada posteriormente, desde que os possuidores nele tiverem estabelecido a sua moradia, ou realizado investimentos de interesse social e econômico. No entendimento de Maria Helena Diniz (2002, p. 154), “trata-se da posse-trabalho, que, para atender ao princípio da sociabilidade, reduz o prazo de usucapião.” Os pressupostos da usucapião ordinário, conforme anuncia a mesma autora, são a posse mansa, pacífica e ininterrupta, exercida com a intenção de dono, bem como o decurso do tempo de dez anos ou de cinco anos, o justo título devidamente registrado, a boa-fé e, por último, a sentença judicial que lhe declare a aquisição do domínio.(DINIZ, 2002, p. 154-156) Necessário se faz cotejar, mais uma vez, os dizeres de Cláudio Teixeira de Oliveira (2003, p. 56), ao postular que: Os atuais parâmetros estabelecidos pelo novo Código Civil procuram valorar a chamada “posse-trabalho”, e assim é que os prazos (para o usucapião de coisas imóveis), tanto o ordinário como o extraordinário, são reduzidos quando presentes a “posse qualificada”, como refere Reale, em face de ter parecido mais conforme aos ditames sociais situar o problema em termos de “posse-trabalho”, que se manifesta através de obras e serviços realizados pelo possuidor. Conforme foi dito acima, o legislador civil previu ainda, nos artigos 1.239 e 1.240, a modalidade de usucapião especial, que poderá ser pro labore, se o imóvel tiver por finalidade assegurar a subsistência do proprietário e de sua família, assim como em razão da função, ou seja, se for destinado para fins de moradia. Tais institutos, segundo as doutrinas nacionais, foram inspirados nos artigos 183 e 191 da Constituição Federal de 1988. Vejamos, então, as principais características de cada um deles. 42 Temos que a usucapião especial rural ou pro labore, como também é conhecida, está prevista no art. 1.239 do Código Civil (2002), que assim dispõe: Art. 1.239 – Aquele que, não sendo proprietário de imóvel rural ou urbano, possua como sua, por cinco anos ininterruptos, sem oposição, área de terra em zona rural não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu trabalho ou de sua família, tendo nela sua mordia, adquirir-lhe-á a propriedade. Vale citar os escritos de Moraes Salles (1991, p. 168), que preceitua o seguinte: Esse dispositivo é reprodução quase literal do artigo 191 (caput) da Constituição Federal de 1988, corrigida a falha constante deste último, que utilizou a expressão “possua como seu” ao invés da expressão “possua como sua sua”, que seria a correta, pois o pronome possessivo deve concordar com “área”, substantivo feminino. Verifica-se, portanto, que o legislador quis institucionalizar, também no âmbito do Código Civil, a usucapião especial rural e o fez, a nosso ver, acertadamente, pois a matéria estará regulada de modo mais adequado na Lei Civil do que no Estatuto Básico da República. E ainda sobre essa modalidade de usucapião, Vitor Frederico Kümpel (2005, p. 97-98) relata que: O instituto fora originalmente regulado pela CF de 1934, passando pela Carta Magna de 1946, ganhando contornos pelo Estatuto da Terra (Lei n. 4.504/64) e, por fim, pela Lei n. 6.969/81. Todos esses diplomas autorizavam o usucapião rural em área de até 25 hectares, permitindo, também, o sobre terras devolutas. Não vigora o Estatuto da Terra em matéria de usucapião rural, na medida que mais uma vez o legislador constitucional, copiado pelo art. 1.239 do CC, referendou o critério da localização da área e não o da destinação. Toda área situada fora do perímetro urbano é passível de usucapião rural. Outra observação importante está no fato de que o possuidor, além de residir na área só ou com sua família, deve produzir nela. É uma posse produtiva, portanto, o que implica que parte do sustento deve ser extraído da atividade agrária desenvolvida na área. A partir da leitura do artigo, bem como das mais eminentes doutrinas, conclui-se que os requisitos para a aquisição da propriedade por meio dessa modalidade de usucapião residem no fato de que o ocupante não tenha outro imóvel, a posse se dê com animus domini, de forma ininterrupta e sem oposição no prazo de cinco (5) anos, e que tenha tornado a terra produtiva com 43 seu trabalho ou de sua família, tendo-a como moradia habitual, não podendo a área ser superior a 50 hectares, devendo ser observada ainda a vedação quanto às terras públicas. Venosa (2006, p. 210) tece a seguinte consideração sobre o tema: A lei refere-se à moradia no local. Essencial que exista, portanto, edificação no imóvel que sirva para moradia do usucapiente ou de sua família. Não existe exigência de justo título e boa-fé nessa modalidade, o que se aplica tanto ao usucapião especial urbano, assim como ao usucapião especial rural. [...] Há também o intuito de fixar a pessoa no campo. Daí a razão de denominar-se esse usucapião rural de pro labore. Por último, tem-se a usucapião urbana, também conhecida pelo termo especial urbana, ou ainda, pro morare, e que se encontra disposta no Código Civil (2002), em seu art. 1.240, que assim estabelece: Art. 1.240 – Aquele que possuir, como sua, área urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. o § 1 O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. o § 2 O direito previsto no parágrafo antecedente não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. Esse dispositivo repete, quase literalmente, a previsão expressa no artigo 183, §§ 1° e 2°, da Constituição Federal de 1988. Contudo, Moraes Salles (1991, p. 165) constata que: Como se verifica, os artigos 1.240 do atual Código Civil e 183 da Constituição da República só diferem na redação dos §§ 2° respectivos, sem, entretanto, nenhuma alteração de conteúdo. Por outro lado, o art. 183 da Carta Magna contém um § 3°, que não foi repetido no art. 1.240 do atual Código Civil, mas que se insere no seu art. 102 (com outra redação, mas com o mesmo significado). Encontra-se respaldo na explicação de Vitor Frederico Kümpel (2005, p. 97) sobre a intenção do legislador, ao dispor sobre a modalidade em questão: Observe que o legislador estabeleceu um rígido critério social, não autorizando uma pessoa que já tenha propriedade ou que já tenha usucapido a ver sua posse transformar-se em propriedade. A área urbana significa que o critério adotado pelo legislador não é o da destinação da área e, sim, da sua localização. A dimensão de 250 metros quadrados diz respeito à área linear do terreno, pouco 44 importando se a edificação é maior ou menor. Isso significa que a pessoa pode usucapir um terreno de 250 metros quadrados em uma área de 400 metros quadrados. Também é bom observar que o imóvel precisa ter a metragem mínima autorizada pelo Município, sob pena de não ser registrada a sentença declaratória de usucapião. A Constituição Federal de 1988 inovou ao trazer para o nosso ordenamento jurídico essa modalidade de usucapião. A respeito de tal inovação e do avanço dado por nossa CF/88, José Carlos Tosetti Barruffini (1998, p. 141) diz que: [...] o enfeixamento no usucapião desta perspectiva representa um papel de destaque para nossa Constituição, numa visão de recuperação histórica indisfarçável, realçando a supremacia dos interesses sociais. Ressalte-se que tal espécie de usucapião tem algumas particularidades bem diversas das demais categorias de usucapião, além dos requisitos já exigidos por estas. A primeira diz respeito ao prazo, pois juntamente com a usucapião pro labore, verifica-se que é o mais curto, uma vez que, para gerar direito a usucapião, são necessários apenas 5 (cinco) anos de posse. Todavia, se por um lado a lei reduziu o prazo, por outro, ela trouxe uma série de limitações, a exemplo da área do imóvel usucapiendo que não poderá ultrapassar duzentos e cinqüenta metros quadrados, compreendida a área do terreno. Vale destacar ainda a exigência de que o possuidor efetivamente utilize o imóvel para sua moradia ou de sua família, além de não poder o requerente ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural. Além disso, também é vedado esse direito a quem dele já se beneficiou uma vez. Note-se que essa previsão contida no § 2º, qual seja, a de que não será concedida essa usucapião ao mesmo possuidor mais de uma vez, embora pareça desnecessária em face da exigência do caput de que o possuidor não seja proprietário de outro imóvel, não se faz redundante, uma vez que é perfeitamente possível que alguém adquira a propriedade de um imóvel por essa modalidade de usucapião, depois se desfaça desta e venha a possuir outro imóvel, intentando, após cinco anos novamente, ação idêntica. Há de se pensar, todavia, que nada obsta a possibilidade de a usucapião especial urbana ser deferida ao requerente que atualmente não seja proprietário de 45 outro imóvel, mas que já tenha sido beneficiado, no passado, por outra ação de usucapião, porém em uma modalidade diversa. Somente são usucapíveis por essa modalidade os imóveis localizados em zona urbana. Apesar de grande parte da doutrina problematizar a questão se o critério adequado para atender a finalidade de identificação da área é o da destinação ou da localização, temos que o caráter de urbano e rural, empregado tanto para essa categoria como para a usucapião especial rural, leva em consideração tão-somente a localização do imóvel, não tendo qualquer relevância se a sua destinação é urbana ou rural, como se depreende, com relação ao urbano, do capítulo em que se insere – “Da Política Urbana” – e com relação ao usucapião rural, não só pelo capítulo “Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária”, mas também pela clareza do disposto no art. 191, quando prevê a usucapião de “área de terra, em zona rural”. Observando-se ainda a redação dos artigos 183 e 191, conclui-se que as modalidades de usucapião especial urbano e especial rural, por exigirem a moradia do possuidor ou de sua família, são exclusivas para pessoas físicas. Sob esse aspecto, Moraes Salles (2006, p. 284), ao analisar a posse na usucapião especial urbana, registra o seguinte: Ademais, a posse do prescribente há de ser pessoal, o que decorre da exigência constitucional de utilização do imóvel (área urbana) ”para sua moradia ou de sua família”. Destarte, não vale para esta espécie de usucapião a posse exercida por intermédio de preposto ou de terceiro. Por todo o exposto, pode-se perceber que a usucapião, em suas diversas modalidades, insere-se como um importante instrumento de regularização da questão fundiária, ensejando, neste sentido, a concretização do princípio constitucional da função socioambiental da propriedade em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse aspecto, oportuno se faz contemplar as palavras do desembargador José Renato Nalini (2003, p. 172), a respeito da busca de uma feição renovada ao direito de propriedade, a saber: Ninguém o desconhece: a) distribuir a propriedade, para a supressão da miséria, mas a edificação de um povo solidamente apoiado sobre um pedaço de terra; b)fortalecer a família camponesa, mediante seu acesso à propriedade do solo que cultiva e que tal solo seja fonte de ingressos suficientes para um nível digno de existência; c) fortalecer a 46 família urbana, propiciando moradia digna, próxima ao trabalho, acesso aos equipamentos urbanos essenciais ao desenvolvimento em plenitude. Feitas as devidas considerações acerca do instituto da usucapião e de suas modalidades, propõe-se a seguir a análise, detalhada, da espécie denominada usucapião especial de imóvel urbana, prevista no Estatuto da Cidade. 2.2 DA USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVA DE IMÓVEL URBANO Nas palavras de Jacqueline Severo da Silva, tem-se que: [...] os princípios fundamentais da Constituição Federal de 1988, em especial o da função social da propriedade, intimamente associado ao direito à moradia, tiveram acrescida substância com a Lei Federal n° 10.257/2001. A norma federal implementou no art. 12, I e II, a possibilidade do ajuizamento de ações de usucapião especial urbano em formação litisconsorcial ativa e ações de usucapião urbano 14 coletivo. O Estatuto da Cidade, então, por meio da criação de uma nova modalidade de usucapião, a partir do reconhecimento da espécie existente na Carta Magna, conhecida como usucapião especial constitucional, demonstra uma efetiva preocupação do legislador em ordenar a propriedade urbana, com a devida observância dos princípios urbanísticos, no intuito de viabilizar o direito à moradia de quem já ocupa as áreas urbanas. Assim, os artigos 9° a 14, dispostos na Lei n. 10.257/2001, devem ser interpretados como mecanismos de regularização fundiária, os quais visam ainda à reorganização urbanística. Cumpre-nos, portanto, analisar esses dispositivos mais especificamente. De acordo com Francisco Loureiro: [...] cumpre destacar que o Estatuto da Cidade disciplinou duas modalidades de usucapião, dotadas de características próprias e 14 SILVA, Jacqueline Severo da. A Usucapião Especial Urbana – Legitimação Ativa, in: ALFONSIN, Betânia de Moraes e FERNANDES, Edésio (Orgs.). Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 143. 47 inconfundíveis entre si: o usucapião individual (art. 9°) e o usucapião 15 coletivo (arts. 10 a 14). 2.2.1 O artigo 9° do EC – Usucapião especial individual Com efeito, o artigo 9° da referida lei preceitua: o Art. 9 Aquele que possuir como sua área ou edificação urbana de até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. o § 1 O título de domínio será conferido ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. o § 2 O direito de que trata este artigo não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. o § 3 Para os efeitos deste artigo, o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel por ocasião da abertura da sucessão. Tem-se que a redação do artigo 9° no Estatuto da Cidade é semelhante ao artigo 183 da Constituição Federal, substancialmente, porque essa modalidade de usucapião mantém a área de até 250 metros quadrados. Todavia, no que se refere à usucapião individual do artigo supracitado, o autor Francisco Loureiro (op.cit., p. 88-89) tece a seguinte consideração: [...] cabe apenas fazer a breve observação de que o preceito encontra-se revogado pelo art. 1.240 do Código Civil, que trata exatamente da mesma situação jurídica. Embora seja lei geral, o novo Código Civil tratou do mesmo tema, com disciplina algo diversa. Logo, a revogação deu-se pela incompatibilidade das duas normas regularem a mesma situação jurídica, para os mesmos destinatários. Prevalece, portanto, a lei posterior, que no caso é o Código Civil. Em contrapartida, o referido autor, ao concluir seu raciocínio, defende que: [...] deve haver, por parte do intérprete, um permanente esforço para libertar-se da figura do usucapião individual disciplinada na lei civil, 15 LOUREIRO, Francisco. Usucapião Coletivo e Habitação Popular, in: ALFONSIN, Betânia de Moraes e FERNANDES, Edésio (Orgs). Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 88. 48 que tem por escopo apenas a aquisição da propriedade por modo originário. Aqui, o legislador é mais ambicioso e almeja não só a regularização fundiária, mas também a urbanização da gleba. (op.cit., p. 110) Em face das inúmeras discussões doutrinárias sobre a questão da quantidade máxima tanto da área do terreno como da edificação existente neste, preceituado pelo artigo 9°, como regulamentação da carta Magna, Moraes Salles (1991, p. 291) tece os seguintes comentários: Verifica-se, portanto, que o art. 9° da Lei 10.257, de 10.7.2001 (Estatuto da Cidade), alude, agora, a área ou edificação urbana de até 250 metros quadrados, querendo com isso significar que tanto a área de terreno como a da edificação no mesmo construída não poderão ultrapassar a mencionada metragem quadrada, espancando, assim, a dúvida que o texto do art. 183 da Constituição da República gerara [...]. Teria sido preferível, entretanto, que a redação do art. 9° do Estatuto da Cidade tivesse utilizado a expressão “área e edificação urbana” ao invés de “área ou edificação urbana”, porque não haverá edificação sem que se alicerce sobre uma área. Todavia, parece-nos indubitável que, mesmo com a impropriedade da expressão utilizada, quis o legislador estabelecer que tanto a área do terreno como a edificação não poderão ultrapassar os duzentos e cinqüenta metros quadrados a que alude o art. 183 da Constituição Federal de 1988. 2.2.2 O artigo 10 do EC – Usucapião especial coletiva de imóvel urbano Inicialmente, cumpre-nos destacar o questionamento acerca da inconstitucionalidade do novel instituto, tendo em vista que a Constituição Federal de 1988 dispôs expressamente sobre o domínio por meio da usucapião individual, sendo que em momento algum faz referência à possibilidade do seu reconhecimento de forma coletiva. Destarte, o artigo 10 do Estatuto da Cidade não criou uma nova modalidade de usucapião destoante da forma inserida no texto constitucional, posto que os requisitos necessários para ambos são os mesmos. Assim, para Paulo José Villela Lomar (2001, p. 140): [...] a inovação reside na possibilidade de reconhecimento coletivo da usucapião com a instituição de uma espécie original e temporária de condomínio, que perdurará até que se efetive a reurbanização da área ocupada. Esse mesmo autor acrescenta: 49 A redação mais adequada ao artigo 10 do Estatuto da Cidade seria a que exprimisse que as áreas urbanas, aqui entendidos os terrenos e edificações, ocupadas, por período superior a cinco anos, por agrupamento ou conjunto de pessoas ou famílias de baixa renda para a sua moradia, cujas habitações individuais não ultrapassem a área de duzentos e cinqüenta metros quadrados, são suscetíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. (p. 140) Para tanto, a redação do artigo 10 da Lei n. 10.257/2001 está expressa da seguinte maneira: Art. 10. As áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, são susceptíveis de serem usucapidas coletivamente, desde que os possuidores não sejam proprietários de outro imóvel urbano ou rural. o § 1 O possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas. o § 2 A usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz, mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro de imóveis. o § 3 Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas. o § 4 O condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio. o § 5 As deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes. Verifica-se, então, que esse artigo repete alguns dos requisitos exigidos pela usucapião especial urbana constitucional, disposta no artigo 183 da Carta Magna, os quais já foram analisados de forma elucidativa no tópico anterior. Logo, trataremos de expor aqui os requisitos introduzidos em função da usucapião coletiva. Conforme os ditames do artigo 10 da Lei n. 10.257/01, os requisitos da usucapião coletiva são: 50 a) inicialmente, o objeto da usucapião coletiva são as “áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados”. Note-se que não há restrição ao tamanho mínimo ou máximo de área para cada morador; b) o requisito subjetivo que enseja a legitimidade ativa circunscrita à ocupação da área por “população de baixa renda”, termo este que não foi claramente explicado pelo legislador, mas que pode ser entendido, conforme observação de Francisco Loureiro ( 2004, p. 95): [...] como a camada da população sem condições econômicas de adquirir, por negócio oneroso, um imóvel de moradia. Caberá ao juiz, a quem se conferiu razoável dose de discrição, examinar caso a caso se os requerentes encaixam-se no conceito de “baixa renda” usado pelo legislador; c) ocupação da área para fins de moradia, ou seja, a garantia fundamental do direito à moradia. Não obstante, Daniel Lobo Olimpio advoga em seu artigo, intitulado “Usucapião Coletivo”, que: [...] a existência de imóveis com destinação mista, residencial e comercial, ou, até mesmo somente comercial, não deve ser empecilho para a incidência da usucapião coletivo, uma vez que os núcleos habitacionais ou favelas formam um todo orgânico, tratado como uma unidade pelo legislador, de tal modo que excluir poucos imóveis comerciais, abrindo retalhos na gleba, pode significar, em certos casos, a inviabilidade da urbanização futura. Em havendo essas hipóteses (alguns poucos imóveis não residenciais), desde que não desfigure o todo, pode-se aplicar o princípio da razoabilidade e a vocação eminentemente residencial da área, vista como uma 16 unidade. ; d) prazo mínimo de cinco anos de ocupação da área total, ou seja, o mesmo prazo previsto pelo artigo 183 da CF/88. Esse período pode ser computado a partir da vigência da Carta Magna, e não somente o período de posse posterior à vigência do Estatuto da Cidade; e) posse sem oposição, caracterizando a posse pacífica; f) posse da respectiva área de forma ininterrupta, ou seja, desde que seja contínua, admitindo, ainda, a soma de posses, nos moldes do § 1° do artigo em questão; g) impossibilidade de identificar os terrenos ocupados individualmente por cada possuidor. Nesse ponto, Loureiro (2004, p. 96) salienta que “a 51 expressão deve ser interpretada pelo critério teleológico e com certa largueza, evitando-se a interpretação literal.” Dessa forma, remetendo ao exemplo das favelas, esse autor conclui que, “nos aludidos núcleos habitacionais não há propriamente terrenos identificados, mas sim espaços que não seriam passíveis de regularização pela via do usucapião individual”(2004, p. 97); h) possuidores não proprietários de outro imóvel urbano ou rural, requisito este que pode auxiliar na constatação da baixa renda da população, tendo em vista as dificuldades de se adquirir a casa própria, assim como a onerosidade dos aluguéis, na contemporaneidade. Vistos os requisitos exigidos para usucapião especial coletiva de imóvel urbano, passaremos ao exame dos parágrafos do artigo 10 e dos demais dispositivos relativos ao instituto, presentes na Lei n. 10.257/2001. 2.2.2.1 Parágrafo 1° do artigo 10 e a accessio possessionis Segundo consta no § 1° do artigo 10, “o possuidor pode, para o fim de contar o prazo exigido por este artigo, acrescentar sua posse à de seu antecessor, contanto que ambas sejam contínuas”. Nesse caso, trata-se de accessio possessionis, sendo que a norma aqui contida se refere, tão-somente, ao possuidor, “sem fazer qualquer outra distinção, ou seja, sem distinguir entre sucessor a título universal e sucessor a título singular”. (SALLES, 2006, p. 323) A esse respeito, Moraes Salles (op. cit., p. 323) , completa argumentando: Parece-nos, portanto, que a norma em referência se aplica tanto a um quanto ao outro. Basta, portanto, que as posses do antecessor e do sucessor sejam ininterruptas (contínuas) e sem oposição (pacíficas), para que uma possa se acrescentar à outra. Isto se justifica, provavelmente, pelo fato de ser muito flutuante a população das favelas, com os moradores vendendo seus barracos a outros, com grande freqüência. Justifica-se, também, por serem bastante 16 OLIMPIO, Daniel Lobo. Usucapião Coletivo. www.jfrn.gov.br/doutrina/doutrina218.doc, acesso em 23/03/2007. Artigo publicado em 52 diferentes as situações fáticas que dão origem à usucapião especial urbana individual, de um lado, e à usucapião especial urbana coletiva, de outro. Francisco Loureiro (2004, p. 99), mantendo a linha de pensamento do autor acima, evidencia que: [...] ao contrário do que ocorre no usucapião individual, aqui admite o legislador (§ 1º, do artigo 10) – com generosidade – a soma das posses, tanto pela accessio como pela successio possessionis, bastando que ambas sejam contínuas e cumpram os demais requisitos do usucapião coletiva. Note-se a diferença de tratamento dado às situações de usucapião individual e coletivo. Há nítida preferência pelo coletivo, mediante estímulos e abrandamento dos requisitos, mediante atividade impulsionadora, numa autêntica função promocional do direito. 2.2.2.2 Parágrafo 2° do artigo 10 e a sentença judicial Da leitura do § 2°, extrai-se que o reconhecimento da usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarado pelo juiz, mediante sentença, e que atuará como título para registro no cartório de registro de imóveis competente. De acordo com os ensinamentos de Moraes Salles (2006, p. 324), corrobora-se a idéia de que: O dispositivo em apreço só reforça o axioma de que a sentença proferida em ações de usucapião é meramente declaratória de um direito preexistente, o qual se consubstancia no momento em que o usucapiente preenche todos os requisitos previstos em lei para a aquisição por usucapião. Entretanto, é a partir da sentença que se dará a determinação da fração ideal de terreno para cada possuidor, bem como a regulamentação do condomínio, conforme dispõem os parágrafos subseqüentes do artigo 10 do Estatuto da Cidade. Dessa forma, evidencia-se a dupla natureza da sentença, ou seja, ela é tanto declaratória como constitutiva, pois reconhece a existência de usucapião coletivo, atribuindo a cada possuidor, em regra, igual fração ideal do terreno, independentemente da dimensão da área que esse possuidor ocupe, salvo se existir acordo escrito entre os condôminos estabelecendo frações ideais 53 diferenciadas, caso em que o juiz deverá observá-lo na própria sentença, e por isso pode ser considerada declaratória. Outrossim, é constitutiva, porque na própria sentença o juiz determina a constituição do condomínio entre os copossuidores. 2.2.2.3 Parágrafo 3° do artigo 10 e a atribuição de frações ideais de terreno O § 3° do artigo 10 do EC determina o seguinte: Na sentença, o juiz atribuirá igual fração ideal de terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas. Tendo em vista a previsão contida no caput do referido artigo, em relação às áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, suscetíveis de serem usucapidas de forma coletiva, a razão desse parágrafo reside no fato de que não seja possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor. Mais uma vez, merecem ênfase as considerações tecidas por José Carlos Moraes Salles (2006, p. 325) a respeito do tema, ao acrescentar o seguinte: Todavia, ressalva o dispositivo em análise que, havendo acordo escrito entre os condôminos, as frações ideais poderão ser diferenciadas. A lei não estabelece forma especial para este acordo nem diz como deve ser acertado entre os interessados. Tratando-se de acordo, entendemos que bastará a existência de um único discordante entre os condôminos, para que o mesmo não se efetue, pois o diploma legal estabelece que as frações ideais serão iguais, só deixando de sê-lo se houver acordo a respeito. E a esse acerto ninguém estará obrigado. Cabe, nesse tocante, a reflexão quanto à dificuldade de se estabelecer tais frações ideais de terreno, tanto pelo magistrado, quanto pela comunidade, ainda que organizada em condomínio. Primeiro, em função do tempo que demandaria, por exemplo, nas análises geográficas e topográficas; depois 54 porque, em se tratando de unanimidade nas decisões de grupo, há que se levar em conta a presença de muitas divergências e controvérsias. 2.2.2.4 Parágrafo 4° e 5°do artigo 10 e o condomínio especial Nos termos do § 4° do artigo 10, tem-se que: [...] o condomínio especial constituído é indivisível, não sendo passível de extinção, salvo deliberação favorável tomada por, no mínimo, dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio. É nesse contexto que se vislumbram as palavras de Francisco Loureiro (2004, p. 107), ao demonstrar que: Não se trata, como é óbvio, da figura do “condomínio especial” da Lei n° 4.591/64, porque não se cogita de unidades autônomas atreladas à fração ideal do terreno. Não cabe ao juiz, na sentença, a instituição do condomínio especial de casas do artigo 8° da Lei n° 4.591/64, sem prévia urbanização da gleba. Tal solução somente será viável se, no curso da demanda, constatar-se que já contém a gleba todos os requisitos necessários à urbanização e que as acessões estão perfeitamente individualizadas, passíveis de descrição como unidades autônomas. Sílvio de Salvo Venosa (2006, p. 212), por sua vez, lembra bem ao postular que “se o condomínio representa por si só uma causa permanente de desentendimentos, podem-se prever maiores problemas em um condomínio que se origina dessa forma”. Complementando, Benedito Silvério Ribeiro aduz que: [...] é sabido e consabido ser no condomínio que ocorrem as maiores divergências entre consócios, sendo fonte de desavenças, ainda mais entre pessoas de nível cultural baixo. Assim, dependendo o condomínio de quorum especial, para que se viabilize urbanização da área objeto de usucapião (§4. do art. 10 do Estatuto da Cidade), pode ocorrer que não se chegue a isso, como no caso de favela controlada por quadrilha de traficantes de drogas, em que não se queira abertura 55 de ruas, preferindo-se caminhos tortuosos que impeçam a livre 17 passagem da polícia. Contudo, esse condomínio especial constituído entre os moradores tem as seguintes características, no entendimento de Diliani Mendes Ramos: a) Igualdade de frações, quer dizer, cada possuidor tem fração ideal da área urbana que foi objeto da ação de usucapião, salvo acordo escrito, feito antes da inserção da carta de sentença no registro imobiliário, que estabeleça quotas diversas; b) Indistinção das frações ideais. Assim, não há que se falar em áreas comuns e autônomas; c) Indivisibilidade. Dessa forma, salvo deliberação favorável de dois terços dos condôminos, em caso de execução de urbanização posterior à constituição do condomínio, não podem os condôminos dividir a área usucapida entre si; d) Validade das decisões por maioria dos presentes; e) Vinculação dos discordantes ou ausentes (as decisões da maioria dos presentes vinculam os discordantes e os 18 ausentes). Diante da determinação do artigo 5º de que “as deliberações relativas à administração do condomínio especial serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes, obrigando também os demais, discordantes ou ausentes”, destaque-se que, apesar de estabelecer esse condomínio especial, o Estatuto da Cidade não definiu as regras que devem vigorar quanto à sua administração, entendendo a doutrina que, ante o silêncio da lei, por analogia, deve-se operar o regime jurídico do condomínio em edificações, ou seja, aplica-se o regime semelhante ao da Lei n° 4.591/64, que dispõe sobre o condomínio em edificações e incorporações imobiliárias, vinculando todos os condôminos à deliberação da maioria, inclusive os discordantes e os ausentes, visando disciplinar o uso das áreas de ocupação comum, assim como os temas de interesse da coletividade. Nesse passo, coloca-se a dificuldade ou mesmo a impossibilidade de se reunir centenas ou mesmo milhares de condôminos para deliberarem sobre a administração do condomínio especial. Consoante, Moraes Salles (2006, p. 327) enfatiza que: 17 RIBEIRO, Benedito Silvério. Críticas à usucapião urbana coletiva. Artigo extraído do Boletim Eletrônico Disponível em: http://www.controlm.com.br/artigos/020.asp. Acesso em: do IRIB nº. 584 de 05/12/2002. 23/03/07 18 RAMOS, Diliani Mendes. Principais inovações introduzidas pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) na ação de usucapião especial urbano . Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 331, 3 jun. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5289>. Acesso em: 23/03/2007. 56 Conhecendo-se – como se conhece – o nível cultural das populações de baixa renda, num País em que, desgraçadamente, o número de analfabetos ou de semi-analfabetos é elevadíssimo, será fácil avaliar como serão conduzidas essas assembléias, com toda a certeza presididas por aproveitadores e oportunistas e em detrimento da grande maioria dos condôminos. E mais: como não se exigiu que as deliberações fossem tomadas por maioria absoluta, pequenas e eventuais maiorias simples dos condôminos presentes poderão decidir os destinos da maioria ausente! Ante essa atmosfera de irrealidade e de lacunas deixadas pelo legislador é que o Estatuto da Cidade suscita tantas críticas e dúvidas quanto a sua aplicabilidade e efetividade. 2.2.3 O artigo 11 do Estatuto da Cidade Cuida o artigo 11 que “na pendência da ação de usucapião especial urbana, ficarão sobrestadas quaisquer outras ações, petitórias ou possessórias, que venham a ser propostas relativamente ao imóvel usucapiendo”. Sobre o assunto, o magistrado Gilberto Schafer (2004, p. 128) esclarece que: [...] segundo a dicção do artigo ele se refere às ações futuras, conforme se extrai do verbo “venham” e não as atuais ações petitórias ou possessórias, que já estão propostas que deverão ser reunidas para evitar julgamentos conflitantes. Nesse caso melhor reunir as ações, como se vem fazendo, julgá-las conjuntamente, 19 tendo em vista a prejudicialidade e a comunhão de provas. Por seu turno, o já citado Francisco Loureiro (2004, p. 106-107) assinala o seguinte: Guarda o preceito certa semelhança com o art. 923 do Código de Processo Civil. Não é feliz o dispositivo que pode dar margem a abuso de direito, impedindo, por tempo indeterminado, eventual retomada do prédio pelo proprietário. A pretexto de separar o petitório 19 SCHAFER, Gilberto. Usucapião Especial Urbana: Da constituição ao Estatuto da Cidade in ALFONSIN, Betânia de Moraes e FERNANDES, Edésio (Orgs.). Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto Da Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p. 128. 57 do possessório, de modo paradoxal o legislador subordina um ao outro, criando um atrelamento inconveniente. Melhor seria que se omitisse a respeito do tema, ficando a critério do juiz a suspensão de um dos feitos, quando houver o risco de sentenças contraditórias. A matéria, no entanto, está longe de ser pacífica tanto na doutrina como na jurisprudência. Melhor seria, na compreensão de Moraes Salles (2006, p. 331), que o artigo 11 da Lei n° 10.257/2001: [...] houvesse determinado, ao invés do sobrestamento das ações petitórias e possessórias na pendência de ação de usucapião especial urbana, a reunião e processamento conjunto dos processos em apreço, evitando-se, assim, decisões contraditórias. 2.2.4 O artigo 12 do Estatuto da Cidade – Legitimidade para agir O artigo 12 da Lei n° 10.257/2001 dispôs sobre o rol de legítimos ativos para fins de ajuizamento de ações de usucapião especial urbano, preceituando da seguinte forma: Art. 12. São partes legítimas para a propositura da ação de usucapião especial urbana: I – o possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente; II – os possuidores, em estado de composse; III – como substituto processual, a associação de moradores da comunidade, regularmente constituída, com personalidade jurídica, desde que explicitamente autorizada pelos representados. o § 1 Na ação de usucapião especial urbana é obrigatória a intervenção do Ministério Público. o § 2 O autor terá os benefícios da justiça e da assistência judiciária gratuita, inclusive perante o cartório de registro de imóveis. Primeiramente, há que se ressaltar que o dispositivo regulado pelo artigo 12 se aplica tanto à usucapião especial urbana individual, prevista no artigo 9°, quanto à usucapião especial urbana coletiva, inscrita no artigo 10. 58 Jacqueline Severo da Silva (2004), em seu artigo “A Usucapião Especial Urbana – Legitimação Ativa”, aponta a visão de que: O ordenamento inovou, trazendo a possibilidade de ajuizamento de ações em litisconsórcio necessário e em litisconsórcio comum ativo facultativo, cabendo, então, analisar, em que casos se recomendam ações coletivas de usucapião e em que situações a via litisconsorcial 20 ativa facultativa. Vale citar que o litisconsórcio está regulado pelos artigos 4621 a 49 do Código de Processo Civil; entretanto, não cabe para o propósito deste trabalho o exame minucioso desse dispositivo. Somente para ilustrar a questão, Moraes Salles (2006, p. 331-332) discorre que: [...] a formação de litisconsórcio ativo verificar-se-á, entretanto, com muito maior freqüência, nos casos de usucapião especial urbana coletiva, fundados no artigo 10 do Estatuto da Cidade. Nesse caso, o litisconsórcio poderá ser originário ou superveniente, nos termos do inciso I do art. 12 do citado Estatuto. O mesmo autor complementa que: [...] muito embora seja recomendável que a propositura da ação de usucapião especial urbana coletiva seja feita, em litisconsórcio, por todos os possuidores de área nas condições previstas no art. 10 do Estatuto da Cidade, esse litisconsórcio será facultativo e não necessário. Não percamos de vista que nem sempre será possível obter a anuência de centenas ou de talvez milhares de possuidores para a propositura dessa ação em litisconsórcio, sendo lícito a um único interessado intentar a referida ação, decorrendo essa legitimação do disposto na primeira parte do inc. I do art. 12, ou seja, da expressão ‘o possuidor, isoladamente’. (SALLES, 2006, p. 335) Em contrapartida, Celso Augusto Coccaro Filho argumenta o seguinte: 20 SILVA, Jacqueline Severo da. A usucapião Especial Urbana – Legitimação Ativa in ALFONSIN, Betânia de Moraes e FERNANDES, Edésio (Orgs.). Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto Da Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p.132. 21 Art. 46 - Duas ou mais pessoas podem litigar, no mesmo processo, em conjunto, ativa ou passivamente, quando: I - entre elas houver comunhão de direitos ou de obrigações relativamente à lide; II - os direitos ou as obrigações derivarem do mesmo fundamento de fato ou de direito; III - entre as causas houver conexão pelo objeto ou pela causa de pedir; IV - ocorrer afinidade de questões por um ponto comum de fato ou de direito. Parágrafo único - O juiz poderá limitar o litisconsórcio facultativo quanto ao número de litigantes, quando este comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa. O pedido de limitação interrompe o prazo para resposta, que recomeça da intimação da decisão. 59 A menção aos "possuidores, em estado de composse", do inc. II, também confronta o litisconsórcio mencionado no inc. I, que é facultativo e não unitário (no pólo processual ativo). O inc. II do art. 12, ao prever a legitimidade dos "possuidores, em estado de composse", leva a crer que há litisconsórcio necessário e unitário, decorrente do estado de indivisão e concomitância de direitos que qualifica a figura jurídica. Todos os integrantes da comunidade, aptos a se beneficiar da sentença, deverão integrar o pólo processual ativo, apresentando-se como compossuidores. O estado de composse deverá, evidentemente, ser demonstrado, e, 22 também de forma evidente, tal prova não é documental. Validamente, nas hipóteses dos incisos I e II do artigo em questão, o sujeito comparece em juízo objetivando o reconhecimento da prescrição aquisitiva do ponto de vista individual, ainda que o faça de forma conjunta. Por seu turno, o inciso III do referido artigo, dispõe que é parte legítima para ajuizamento da ação de usucapião especial urbana coletiva, como substituto processual, a associação de moradores da comunidade, regularmente constituída, com personalidade jurídica, desde que explicitamente autorizada pelos representados, evidenciando-se, dessa forma, no âmbito processual, uma preocupação com os interesses supraindividuais envolvidos na demanda. No que se refere à divergência processualista e jurisprudencial quanto à confusão do legislador no emprego dos conceitos de substituição processual e representação, dispostos respectivamente no artigo 6° do CPC e no artigo 5°, inciso XXI da CF de 1988, colaciona-se o entendimento de Moraes Salles (2006, p. 337), ao dizer que: Filiamo-nos à opinião de Fabio Caldas de Araújo, que, como vimos, se assenta na jurisprudência hoje pacificada, de modo que, para nós, o inc. III do art. 12 do Estatuto da Cidade consubstancia hipótese de representação e não de substituição processual, apesar de aludir à figura do substituto processual. Assim, para que a associação de moradores da comunidade, na qualidade de “substituto processual” (entenda-se representante), tenha legitimidade para propor a ação de usucapião especial urbana coletiva, faz-se 22 COCCARO FILHO, Celso Augusto. Usucapião especial de imóvel urbano: instrumento da política urbana. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 437, 17 set. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5709>. Acesso em: 25/03/2007 60 necessária deliberação em assembléia regularmente convocada para tal fim e desde que respeitadas as disposições contidas no estatuto social da entidade. Nesse cenário, merece ainda ressalva a possibilidade da utilização de Ação Civil Pública, uma vez que admite legitimidade do tipo concorrente e disjuntiva, prevista no artigo 5° da Lei 7.347/85, haja vista que o desenvolvimento urbano e o direito à moradia são interesses metaindividuais, seja difuso, coletivo ou individual homogêneo. Concernente ao assunto, Ibraim Rocha posiciona-se da seguinte forma: Evidente que facilitar ou diminuir a possibilidade de legitimidade extraordinária está no âmbito de discricionariedade de legislador, mas considerando a natureza destes interesses, notadamente sociais, bem como o flagrante interesse que teria a administração pública em ajuizar este tipo de ação, em áreas de ocupação consolidada, retirando-lhe o pesado ônus de eventualmente se ver obrigada a desapropriar áreas para regularização de assentamentos urbanos, ou difusão de instrumentos e equipamentos sociais, poderia o legislador ter deferido um espectro de legitimidade mais ampla, legitimando 23 entes da administração pública e o Ministério Público. Em tempo, adverte-se que o § 1° do artigo 12 preceitua a obrigatoriedade de intervenção do Ministério Público, na ação de usucapião especial urbana, sendo que esse preceito guarda em seu conteúdo semelhança com a disposição inscrita no artigo 944 do CPC, da qual se depreende que o Ministério Público age como fiscal da lei, na ação de usucapião, intervindo obrigatoriamente e devendo ser intimado para todos os atos do processo. 24 Por último, o § 2° do artigo 12 do Estatuto da Cidade, determina que: “O autor terá os benefícios da justiça e da assistência judiciária gratuita, inclusive perante o cartório de registro de imóveis.” A assistência gratuita é garantia constitucional, conforme anuncia o artigo 5° LXXIV da CF/88, ao dispor que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.” Tal dispositivo encontra, ainda, respaldo no artigo 6° da Lei n° 6969/81, sendo que 23 ROCHA, Ibraim José das Mercês. Ação de usucapião especial urbano coletivo. Lei nº 10.257/2001 (Estatuto da Cidade): enfoque sobre as condições da ação e a tutela. Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, nov. 2001. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2406>. Acesso em: 25/03/2007. 24 Vide artigo 83, inciso I do CPC. 61 no caso da usucapião especial urbana, a assistência deverá ser concedida caso o autor da ação afirme a impossibilidade de arcar com as custas e demais despesas do processo, a exemplo dos honorários advocatícios, por intermédio da declaração de que trata o art. 4.º da Lei n. 1.060/50 (com a redação que lhe foi conferida pela Lei 7.510/86). 2.2.5 O artigo 13 do Estatuto da Cidade – matéria de defesa O artigo 13 da Lei n. 10.257/2001 preceitua que “A usucapião especial de imóvel urbano poderá ser invocada como matéria de defesa, valendo a sentença que a reconhecer como título para registro no cartório de registro de imóveis.” Convém destacar as palavras de Gilberto Schäfer (2004, p. 127-125), ao postular que: A argüição de usucapião como defesa em ações reais sempre foi admitida sem qualquer restrição. Alegada em defesa, a sentença que a reconhecia se limitava a declarar que o réu tem direito a ela, mas não lhe servia de título para a transcrição no registro imobiliário. A transcrição era buscada através da ação adequada para possibilitar a intervenção da União, do Estado e do Município ou por terceiros, citando-se inclusive a pessoa que movera a ação anterior. De acordo com a Súmula 237 do STF, é pacífica a possibilidade de invocação de usucapião como defesa do prescribente, ou seja, pode haver alegação da usucapião especial em contestação. Porém, embora a sentença de improcedência reconheça a consumação da prescrição aquisitiva, isso não quer dizer que esta seja hábil para ensejar o registro da aquisição, segundo pode-se depreender do julgado da 3ª Turma do STJ: Dúvida não há sobre a possibilidade da argüição de usucapião como matéria de defesa. Todavia, nesse caso, o Magistrado, acolhendo a argüição da defesa, não pode emitir julgado declarando a aquisição do domínio, mas, apenas, julgar improcedente o pedido de reivindicação. (STJ, 3ª T., Resp n. 139.126/PE, DJU de 21.9.1998, RSTJ 116/221). 62 Todavia, algumas doutrinas, como a de Moraes Salles e Celso Coccarco, bem como decisões jurisprudenciais, dentre elas, alguns julgados da Terceira Turma do STJ, diferentes do referido acima, assinalam que a usucapião especial urbano, tanto individual quanto coletivo, recebem o mesmo tratamento que a Lei n. 6.969/81, no seu art. 7º, que dispõe sobre a usucapião pro labore, determinando que "a usucapião poderá ser invocada como matéria de defesa, valendo a sentença que a reconhecer como título para transcrição no registro de imóveis". Nessa esteira, o artigo 13 reproduz a regra; assim, a sentença que reconhecer a usucapião afirmada em defesa é título hábil para registro no cartório de registro de imóveis. Fato é que, apesar de ser pacífica a admissibilidade da usucapião como matéria de defesa, o mesmo não vale para a possibilidade de registro da sentença que reconhece a usucapião especial em defesa. 2.2.6 O artigo 14 do Estatuto da Cidade e a previsão do Rito Sumário Segundo o artigo 14 do Estatuto da Cidade, “na ação judicial de usucapião especial de imóvel urbano, o rito processual a ser observado é o sumário.” Esse artigo é cumulado com o artigo 275 do Código de Processo Civil, uma vez que o procedimento sumário se encontra regulado nos artigos 275 a 281 do CPC. Ressalte-se que, com exceção da usucapião pró-labore, a usucapião sempre foi considerada uma modalidade com rito especial. Consoante, Gilberto Schäfer (2004, p. 127-128) pontifica que: O Estatuto silencia como se dará este procedimento sumário, ao contrário da Lei n° 6.969/81, que no seu artigo 5°, § 2°, esclarece os requisitos e propõe um rito para tal ação. No entanto, a pergunta sobre qual rito aplicar permanece: será o sumário do CPC, o especial do CPC ou sumário da lei da usucapião rural? A experiência do processo sumário não tem sido das melhores em nosso meio, por isso se possibilitou ao juiz converter o procedimento para ordinário (art. 277 do CPC), especialmente para velar pela ‘rápida solução do litígio’. 63 Tendo em vista as dificuldades que poderão advir da ação de usucapião coletiva, a exemplo da impossibilidade de comparecimento pessoal à audiência das inúmeras pessoas reunidas no pólo ativo da ação, poderá ocorrer a conversão do rito sumário para o ordinário, conforme disposições tanto do parágrafo 4° como do 5° do artigo 277 do CPC. Sob esse aspecto, Celso Augusto Coccarco Filho expõe o seguinte: [...] parece-nos provável, porém, que as citações e intimações, pessoais e editalícias, possam prejudicar a realização da audiência inicial no prazo do art. 277 do Código de Processo Civil, mesmo computado em dobro, em função da intimação da Fazenda. É recomendável a conversão de rito, nos termos do § 4.º do art. 277, sendo notório que, em determinadas circunstâncias, o procedimento 25 ordinário se mostra mais célere e menos oneroso. Diante do exposto, vimos neste capítulo que, relativamente aos bens imóveis, existem hoje quatro modalidades de usucapião em nosso ordenamento jurídico: a usucapião ordinária, a usucapião extraordinária, a usucapião especial rural ou pro labore e a usucapião especial urbana. Cada modalidade tem sua previsão legal e características específicas distintas das demais. Todas têm em comum a necessidade de o requerente se encontrar na posse pacífica e ininterrupta do imóvel, com animus domini, há um determinado intervalo de tempo. Ademais, o Estatuto da Cidade tem por escopo regulamentar os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, estabelecendo diretrizes da política urbana nacional. Nesse contexto inseremse os preceitos da usucapião especial urbana, tanto individual, prevista no artigo 9°, quanto coletiva, inserida nos artigos 10 a 14 da Lei n. 10.257/2001, os quais foram analisados em suas principais características no presente trabalho. 25 COCCARO FILHO, Celso Augusto. Usucapião especial de imóvel urbano: instrumento da política urbana. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 437, 17 set. 2004. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5709>. Acesso em: 25/03/2007. 64 CAPÍTULO 3 APLICABILIDADE DA USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVA URBANA AO CASO CONCRETO DA COMUNIDADE DA VILA SANTA ROSA 3.1 A participação popular no Estatuto da Cidade e exemplos de aplicação da usucapião especial coletiva urbana. Há uma grande interrogação sobre o futuro das cidades. O processo de urbanização crescente, desordenado e defeituoso ao atendimento direto à população, principalmente em áreas mais carentes de equipamentos públicos, deixa muitas dúvidas sobre como o poder público, por meio de políticas publicas, aproximará os cidadãos ao direito à cidade. É sabido de todos que a legislação urbana, como quaisquer outros instrumentos jurídicos, quase sempre está defasada em relação à realidade que quer regular. Diante dessa constatação, torna-se imprescindível uma cultura de contínuo aperfeiçoamento desses instrumentos, a fim de viabilizar o planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do município no seu território, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e os conseqüentes efeitos sobre o meio ambiente e a qualidade de vida dos habitantes da cidade. Nessa seara, o Estatuto da Cidade (Lei Federal n° 10.257, de 10 de julho de 2001), além de tratar de novos instrumentos jurídicos, tendo em vista outros já existentes, notabiliza-se por consolidar a noção de função socioambiental da propriedade e a importância do equilíbrio ambiental das cidades, por disciplinar e criar mecanismos para a regularização fundiária, como é o caso do instituto da usucapião especial coletiva urbana, objeto de análise deste trabalho, e ainda, por ratificar a participação popular na gestão das cidades, sendo esta uma das inovações mais significativas trazidas pelo Estatuto da Cidade. Consoante, Marcus Alexsander Dexheimer (2006, p. 161), acrescenta dizendo: Também possui o Estatuto da Cidade marcante espírito democrático, exigindo que os governantes construam a política urbana em permanente diálogo com a sociedade, para que o espaço urbano seja 65 estruturado para atender a todos e não seja traçado de modo a favorecer unicamente determinados grupos sociais. Cabe, neste momento, destacar que a participação popular na formulação e na execução de políticas públicas coloca-se como um dos elementos fundamentais do Estado Democrático de Direito, ante as relações sociais, políticas e econômicas por ele estabelecidas na contemporaneidade. Considerando que o ordenamento jurídico brasileiro é praticamente resultado dos mecanismos de democracia representativa, e tendo em vista as dificuldades que esse modelo de representação política encontra para atender os anseios da sociedade, evidencia-se, na atualidade, a importância de se criar mecanismos efetivos de participação dos cidadãos. A respeito do tema, Dexheimer (2006, p. 162-163), aponta a visão de que: Diante dessa incapacidade resulta um momento de baixa legitimidade vivenciado pela democracia representativa. Daí a necessidade de aperfeiçoar-se o sistema político, criando mecanismos outros de participação política, que transcendam os limites da representação. È a construção da democracia participativa, estabelecendo relações de coexistência e de complementaridade entre participação e representação. Esse mesmo autor, em outro ponto de sua obra alude que “esta é a expectativa que se abre com o advento do Estatuto da Cidade: um exemplo típico de coexistência entre participação e representação.” (DEXHEIMER, 2006, 132) Assim, tem-se que o advento do Estatuto da Cidade é de suma importância, não só por prever novas diretrizes para a formulação e execução da política urbana brasileira, mas também por estabelecer mecanismos e instrumentos que possibilitem a construção de uma nova realidade urbana nas cidades do Brasil. Todavia, esse diploma recebeu e ainda recebe inúmeras críticas, quanto à possibilidade de sua efetiva aplicação, haja vista as dificuldades em atender as previsões nele contidas, principalmente no que se refere à adequação por parte dos Planos Diretores de cada município, sem descuidar da previsão do 66 Estatuto, em seu artigo 40, § 4°, no tocante à obrigatoriedade de transparência e ao amplo debate com a população. Contudo, o Estatuto da Cidade também trouxe inovações no tocante ao instituto da usucapião, ao prever a modalidade coletiva, sendo que essa previsão igualmente enseja discussões acerca de seu alcance e aplicação nos casos concretos, tendo em vista as polêmicas que residem, por exemplo, na questão da formação do condomínio especial, previsto por essa modalidade, conforme se pode observar no item específico do capítulo anterior deste trabalho. Por oportuno, destaca-se o exemplo da Associação dos moradores da Vila Manchete, da cidade de Olinda/PE, a qual obteve sentença favorável de usucapião coletiva contra a Novolinda Construtora e Incorporadora S/A e que beneficiou 376 famílias, em uma área de 15.574m² ocupada há 15 anos aproximadamente, por população de baixa renda. Verifica-se com essa decisão a utilização inédita do instrumento previsto pelo Estatuto da Cidade, com o objetivo de cumprir a função social da propriedade e atender o direito à moradia, ressaltando-se ainda que a regularização da área seria realizada de modo sustentável, contando com verba tanto do governo Federal, como do Estadual. Para ilustrar a questão, destacam-se alguns trechos da sentença proferida sobre o Processo de n° 2003.008384-4, na data de 31 de maio de 2005, pelo Juiz Élson Zopollaro Machado, da vara da Fazenda Pública: [...] Assevera que a população da Vila Manchete, a qual representa, ocupa as irregulares artérias há mais de quinze anos, iniciada que foi – a ocupação – nos idos dos anos 80, de forma pacífica e sem oposição de ninguém, não possuindo os moradores ora REPRESENTADOS – CONFORME Relação/Cadastro de Moradores Associados de fls. 36 a 64 qualquer outro bem imóvel, preenchendo, assim, os requisitos do Usucapião Especial. [...] Os associados nominados às fls. 36 a 64 e que constam da Certidão de fls. 161 a 170, demonstram /quantum satis/, quer pela prova documental quer pela testemunhal, que exerceram e exercem a posse sobre a gleba e área individualizadas na inicial, nelas residindo com suas famílias, de forma contínua e pacífica, por todos aqueles anos, não bastassem os precários títulos que alguns exibem, e que não são proprietários de um imóvel, positivando o atendimento de todos os requisitos da usucapião especial constitucional. De outro lado, a alegação da ré de que a posse dos moradores da Vila 67 Manchete é ilegítima, ou que provém de atos de raposia, não encontra qualquer respaldo nos autos, sendo pública e notória a existência daquela comunidade naquelas terras desde o ano de 1980, consolidada a Vila, com a precária infra-estrutura que exibe, pela inércia ou aquiescência dos proprietários das glebas. [...] Em suma como asseverou a ilustre Promotoria de Justiça em seu judicioso Parecer: Consolidada esta a compreensão de que a propriedade sem função social não tem o status que antes lhe atribuía, criando o Estado meios de retirar-lhe do meio social quando não cumpra o seu essencial caráter, destinando-a a um fim de utilidade social, criando mecanismos que permitam a inserção da propriedade como utilidade à comunidade. Dentro destes meios é que vem se inserir a presente ação de usucapião coletivo [...] Neste sentido, nos termos do Art. 12, III, da Lei nº 10.257/01, é que vem a Associação dos Moradores da Vila Manchete, na qualidade de substituto processual, por seu presidente, perseguir em juízo o usucapião coletivo das áreas descritas na exordial e delimitadas nas Plantas de fls. 34 e 35. [...] Com estes fundamentos de fato e de direito, julgo procedente em parte o pedido nestes autos formulado pela ASSOCIAÇÃO DOS MORADORES DA VILA MANCHETE, para declarar apenas o domínio útil dos seus associados, aqueles elencados no Cadastro de fls. 36 a 64 e concomitantemente na Certidão de fls. 161 a 170v, sobre a gleba e área descritas na exordial e delimitada conforme as plantas de fls.34 e 35, atribuindo a cada um deles, como requerido, a fração ideal de 80,00m² (oitenta metros quadrados), destinando o remanescente das áreas aos logradouros públicos, praças, postos de saúde e de segurança, escola, creche, centro comunitário e desportivo e demais obras de infra-estrutura, servindo esta Sentença de título hábil para a transcrição no Registro Geral de Imóveis e para a constituição do Condomínio Especial, acompanhada dos competentes Mandados, como também para se firmar Termo de 26 Aforamento perante Prefeitura Municipal de Olinda/PE. Verifica-se, dessa forma, que a modalidade de usucapião especial coletiva urbana é passível de aplicação aos casos concretos, sendo que a sentença transitada em julgado do processo acima referido pode ser considerada uma referência jurisprudencial. Vale citar, ainda, a experiência de usucapião coletivo em Jaboatão dos Guararapes, também em Pernambuco e anterior ao caso da Vila Manchete em Olinda. A experiência de Jaboatão dos Guararapes, ocorrida no período de 1990 a 1992, também foi inovadora, pois nos dizeres de Isolda Leitão : 26 Sentença Judicial disponível em: http://listas.cidades.gov.br/pipermail/rederegularizacao/2005-October/000108.html. Acesso em: 14 de abril de 2007. 68 [...] foi percussora na questão da usucapião especial urbana, de forma que foram necessárias na época, algumas reinterpretações e adaptações à legislação, pois não havia regulamentação a respeito 27 do art. 183 da Constituição Federal. O caso de Jaboatão dos Guararapes contou com a efetiva participação da população e com o expressivo apoio do Poder Público Municipal, com destaque para o Prefeito da época que criou um amplo programa, denominado “Programa Nosso Chão”, de regularização fundiária das 52 áreas ocupadas por população de baixa renda. No tocante às ações judiciais, Isolda Leitão (in: ALFONSIN; FERNANDES, 2004, p. 153) esclarece o seguinte: Definiu-se naquela época, que a propositura das ações judiciais de usucapião especial seriam ajuizadas através de ações plúrimas, ou seja, vários autores contra um único proprietário, em grupos de no máximo dez autores para cada proprietário, considerando a situação de contigüidade física da ocupação, tentando-se formar grupos numa mesma quadra. Logo seria uma forma coletivizada de requerimento da usucapião especial, pois desde aquela época, se pretendeu via ações plúrimas fazer constar no pólo ativo da ação diversos possuidores, tratando-se, portanto, de litisconsórcio ativo, sendo que cada um dos requerentes apresentou documentação comprovando a ocupação, bem como o croqui e a descrição do seu respectivo lote, com limites e confrontações. Deste modo, o pedido de usucapião nesse caso foi fundamentado no artigo 183 da Constituição Federal de 1988 e no artigo 941 e seguintes do Código de Processo Civil, o qual foi julgado procedente, e após o trânsito em julgado da sentença, foram expedidos os mandados necessários e procedidos os registros no Registro Geral de Imóveis. A autora supracitada, no entanto, complementa afirmando que, posteriormente, o programa foi paralisado em função da mudança do governo municipal. Concluindo, a mesma autora destaca: É interessante salientar que naquela época já se previu na Lei Municipal n° 114/91 a prestação de assessoria técnico-jurídica nas ações de usucapião plúrimas ou coletivas, com fins de regularização fundiária, o que mostrava a necessidade de uma legislação que tratasse da matéria, o que só veio a ocorrer em 2001 com a promulgação do Estatuto da Cidade (Lei n° 10.257/01), o qual dispõe além da usucapião especial urbana coletiva, sobre diversos instrumentos que vieram facilitar ainda mais a regularização de áreas 27 LEITÃO, Isolda. Uma Experiência de Usucapião Coletivo em Jaboatão dos Guararapes- Pernambuco, in in ALFONSIN, Betânia de Moraes e FERNANDES, Edésio (Orgs.). Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2004. p.174. 69 ocupadas por populações de baixa renda. (LEITÃO in: FERNANDES, 2004, p. 175) Assim, pode-se notar que esses dois exemplos, ALFONSIN; o primeiro especificamente tratando da usucapião especial coletiva urbana, e o segundo versando sobre a previsão constitucional do artigo 183, porém, contemplando a propositura de forma coletiva, por meio de litisconsórcio ativo, ainda que não existissem na época as regulamentações que viriam ser definidas pelo Estatuto da Cidade, demonstram a possibilidade dessa modalidade de usucapião especial coletiva urbana ser invocada e aplicada às situações fáticas, bem como ser reconhecida nos tribunais pátrios. Tecidas essas breves considerações acerca da participação popular, prevista como diretriz básica no Estatuto da Cidade, e evidenciados esses dois exemplos de aplicação da usucapião especial coletivo urbana, passemos ao relato sobre o caso da Comunidade da Vila Santa Rosa e à síntese do processo judicial interposto contra seus moradores, analisando por fim a possibilidade de aplicação do instituto da usucapião especial coletiva urbana. 70 3.2 Breve contextualização histórica acerca da Comunidade da Vila Santa Rosa e síntese do processo judicial Segundo Ermínia Maricato (2002, p. 168), “o espaço urbano não é apenas um mero cenário para as relações sociais, mas uma instância ativa para a dominação econômica ou ideológica”. Nesse contexto, insere-se o caso da cidade de Florianópolis, conhecida por suas belezas naturais, com litoral exuberante, sendo por isso e outros tantos motivos, igualmente conhecida pelo seu potencial turístico, o qual vem sendo fomentado pelas políticas governamentais do Estado e do município, nos últimos anos. Portanto, para quem conhece a cidade de Florianópolis, bem como a Avenida Beira-Mar, sabe que a área ocupada pela comunidade da Vila Santa Rosa é uma área supervalorizada, principalmente em termos financeiros e em função de seu valor imobiliário, haja vista tratar-se de um local privilegiado com uma das paisagens e localização mais cobiçadas da cidade. Cumpre lembrar, no entanto, que até a década de oitenta do século passado, a maior parte da região em questão era apenas mangue. Tal fato aparece como referência no relato de Dona Hilda28, uma das moradoras da Comunidade da Vila Santa Rosa, ao lembrar que os caranguejos andavam por dentro de sua casa. Para que possamos entender o complexo sócio-político-jurídico em torno da Comunidade da Vila Santa Rosa, faz-se necessário retrocedermos algumas décadas, quando o Brasil passava por um período de reabertura política e acesso democrático, bem como pela elaboração e aprovação das legislações que passariam a disciplinar a expansão urbana nos municípios. Ocorre que, em 1975, a empresa Emedaux Engenharia e Empreendimentos S. A. comprou um terreno de 828 metros quadrados, no qual, segundo um dos advogados que representam a Comunidade, havia uma casa do século XVIII e que foi demolida, sendo posteriormente construídos em seu lugar três blocos de apartamentos. A empresa continuou com um projeto 28 Relato coletado do centro de mídia independente. Disponível http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/11/337732.shtml. outubro de 2006. em: Disponível em: Acesso em: 04 de 71 de ampliação da área, comprando outros lotes (de mangue) em volta do terreno. Em 18 de abril de 1984, A Emedaux Engenharia e Empreendimentos S. A. firmou termo de constituição de aforamento do terreno da marinha com a União Federal, sob o n° 0983-05195/82 (anexo 2), adquirindo dessa maneira o domínio útil de um terreno com dimensão de 5.152,32m², que somado ao terreno adquirido anteriormente, formava um total de 6.580,38m². Nesse ponto, cabe chamar a atenção para a conceituação da transferência de aforamento, que segundo a Secretaria do Patrimônio da União, “denomina-se transferência de aforamento ou transferência de obrigações enfitêuticas, a alienação do domínio útil do imóvel da União submetido ao regime enfitêutico.”29 Sobre o assunto, Maria Helena Diniz (2002, p. 331) comenta que: [...] a enfiteuse pode ter objeto terrenos de marinha e acrescidos; como esses bens são da União, constituindo bens públicos dominiais, seu aforamento é regido por lei especial. [...] No caso em questão, o termo de Constituição de aforamento foi celebrado sob a égide do Decreto-Lei n° 9.760 de 1946, que tratava da utilização dos bens imóveis da União, com capítulo específico sobre o aforamento. Ainda, na década de 1980, a empresa supramencionada ofereceu o terreno aforado localizado na Avenida Beira-Mar Norte, em garantia para a construção do prédio da Justiça Federal de Santa Catarina, que situa-se à rua Arcipreste Paiva, no centro da cidade de Florianópolis. Entretanto, a empresa, em uma determinada etapa do empreendimento, acabou por decretar falência, sendo a concretização da construção realizada pela empresa Cecomtur. Por conseguinte, em 1987, o Banco Meridional adquiriu a posse do terreno de marinha, transferida pela empresa. Posteriormente, em face de um 29 LEITE, Maria José Vilalva Barros. Transferências de Aforamento, de direitos sobre benfeitorias e de direitos relativos à ocupação de imóveis da União e benfeitorias existentes. P.2. Disponível em http://www.spu.planejamento.gov.br/arquivos_down/spu/orientacao_normativa/ON_gea rp_001_Transferencia_aforamento.PDF. Acesso em: 26 de outubro de 2006. 72 processo de falência, esse banco foi incorporado pelo Banco Santander, passando-se a designar como Banco Santander Meridional S.A. Todavia, insere-se nesse contexto que esse terreno de marinha foi ocupado a partir da década de 1980 por pessoas de baixa renda, vindas de diversas regiões do Estado de Santa Catarina, em busca de melhores condições de vida, como oportunidades de emprego, assistência médica e educação para seus filhos. Sobre este fato desencadeado a partir das décadas de setenta e oitenta do século passado, em Florianópolis, Etienne Luiz Silva (In: TEIXEIRA; SILVA, 1999, p. 87) aponta o seguinte: Com o crescimento das migrações rurais, inevitáveis no atual contexto fundiário catarinense-nacional, agravado ainda pelo desemprego decorrente da globalização e de quadros recessivos, ampliou-se a ocupação de mangues, dunas, áreas inundáveis e encostas tanto no continente quanto na Ilha. Dessa forma, uma vez ocupados os terrenos, os moradores edificaram suas casas, muitas, inclusive constituídas na forma de “barracos”, e o poder público, com o tempo, passou a regularmente cobrar impostos dos moradores, como IPTU, contas de água e de luz. Saliente-se, ainda, que grande parte dos moradores construíram suas casas com financiamento oficial da Caixa Econômica Federal, conforme se pode depreender a partir dos relatos dos moradores. Assim é que surge a Comunidade da Vila Santa Rosa, situando-se à direita da Avenida Beira-Mar Norte, para quem vem do centro da cidade, localizando-se entre a Ordem dos Advogados do Brasil e o Clube Novo Horizonte, conforme se pode observar pelo mapa político anexado (anexo1). Próximos à região, ainda se situam o prédio da Polícia Federal, o Colégio Geração, o supermercado Angeloni e o restaurante Ataliba. Porém, em 1993, o Banco Meridional ingressou com o Processo Judicial de n° 023.94.013479-0, com pedido de reintegração de posse contra vinte famílias da Comunidade, sendo a decisão favorável ao Banco, em 1997. Os advogados dos/as moradores/as da Vila Santa Rosa apelaram no Tribunal de Justiça e, após a negação deste, tentaram uma nova apelação no Superior Tribunal de Justiça, obtendo nova resposta negativa, sendo que, no dia 24 de março de 2004, a sentença de primeiro grau transitou em julgado. 73 A partir da análise do Processo Judicial, pode-se extrair do despacho publicado em 8 de abril de 2005, o seguinte: Trata-se de Ação de Reintegração de Posse proposta pelo Banco Meridional do Brasil contra vários réus já nos idos de 1993, sendo a presente julgada procedente em 10/06/1997, conforme sentença de fls. 210/211. Os réus apelaram e o recurso foi negado pelo e. Tribunal de Justiça de Santa Catarina em 20/03/2003 (fls. 287/297), momento em que novamente recorreram, sendo inadmitido o recurso pelo TJSC, conforme decisão da Vice-Presidência de fls. 340/341, datada de 16/06/2003. Os réus ainda ingressaram com Agravo Regimental junto ao Superior Tribunal de Justiça, visando o exame do Recurso Especial impetrado, porém tal recurso também foi negado pela Superior Instância, transitando em julgado a decisão de primeiro grau 30 em 24/03/2004 (certidão de fls. 673.) Tem-se que a partir de 1994, travou-se uma verdadeira batalha judicial, marcada por inúmeros impasses, além de manifestações por parte da Comunidade, esta contando com apoio de grupos solidários à causa da habitação, bem como da União Florianopolitana de Entidades Comunitárias – Ufeco, do Fórum da Cidade, e intervenções por parte, principalmente, da Câmara de Vereadores do município de Florianópolis. De qualquer maneira, o Banco Meridional Santander S. A. via-se no seu direito de pleitear a causa. No curso do processo a Construtora Tarumã ingressou como assistente litisconsorcial do Banco, em função do contrato firmado entre essas instituições sobre a promessa de compra e venda do terreno aforado da marinha, com área de 4.802,60 metros quadrados, pelo valor de cento e sessenta mil reais, conforme atesta o contrato de compromisso de compra e venda, firmado em 5 de setembro de 2001 (anexo 3). Dentre as manifestações realizadas pela Comunidade, ante a eminência das inúmeras tentativas de cumprimento da sentença que julgou procedente a reintegração de posse, destacam-se o ato realizado na frente do Banco Santander, localizado na praça XV, no centro da cidade na data de 23 de junho de 2004, bem como as vigílias realizadas em frente à entrada da Vila Santa Rosa e a efetiva participação em diversas plenárias da Câmara Municipal de Vereadores. 74 No que tange às medidas alternativas propostas para solucionar a problemática envolvendo a Comunidade, tem-se que a Câmara de Vereadores reuniu-se para votar e aprovar várias leis complementares que favoreceriam a permanência da Comunidade no local, mediante a adequação no Plano Diretor da cidade. Para tanto, os vereadores Márcio de Souza, Marcílio Guilherme Ávila, Nildomar Freire Santos e Lázaro Daniel propuseram dois projetos na Câmara. O primeiro, valendo-se de uma prerrogativa do Poder Executivo (já que versava sobre possíveis gastos do Poder Público Municipal), tratava do Projeto de Lei Complementar n° 574/2004 (anexo 4), que tinha por finalidade autorizar a desapropriação do terreno da Vila Santa Rosa, para fins de utilidade pública. Nesse caso, a Prefeitura deveria pagar uma indenização para os proprietários e transformar o local numa área de moradia de baixa renda, o que poderia servir como um forte argumento para influenciar e reverter a decisão final do processo de reintegração de posse. Tal Projeto de Lei atendeu de certa forma a demanda da Comunidade da Vila Santa Rosa, uma vez que obstou por um determinado período a execução da sentença de reintegração de posse, determinada pelo juízo da 1ª Vara Cível da Capital, pois segundo o relato do ex-vereador Lázaro Daniel, essa foi uma das maneiras encontradas pela Câmara de Vereadores no sentido de mediar junto ao Poder Judiciário em favor das famílias da Comunidade. Inobstante, o Projeto de Lei Complementar de n° 574/2004, que tinha por objetivo autorizar a desapropriação, foi posto em caráter de urgência para votação, porém, não houve consenso entre os vereadores. Assim, depois de muita discussão, o PLC n° 574/2004 foi aprovado em primeira votação, no dia 15 de junho de 2004, com a adição de uma emenda. Deste modo, o projeto permitia que a prefeitura desapropriasse o terreno, pagando uma indenização para os proprietários, sendo que por meio da emenda, a prefeitura poderia buscar apoio Federal para juntar recursos e realizar a desapropriação, posto que a prefeitura alegava não ter recursos para pagar a indenização, haja vista 30 Processo n°023.94.013479-0. Disponível em: http://tjsc3.tj.sc.gov.br/cpopg/pcpoSelecaoPG.jsp?cbPesquisa=NUMPROC&dePesquisa=023940134790. Acesso em: 30 de abril de 2007. 75 que o preço exigido pelos proprietários era muito elevado, em torno de R$ 5 milhões. Em relação ao segundo Projeto de Lei Complementar n° 585/2004 (anexo 5), tem-se que este tinha por objetivo alterar o zoneamento de uso e ocupação do solo, compreendendo a área ocupada não só pelas vinte famílias em litígio, mas sim a área total da Comunidade da Vila Santa Rosa, ocupada aproximadamente por cento e cinqüenta famílias, transformando-a em “ARP 0”, que significa Área Residencial Predominante Zero, ou seja, destinar-se-ia ao assentamento de população de baixa renda. Dessa forma, estimava-se que o valor do imóvel seria modificado, o que conseqüentemente diminuiria a quantia da indenização pleiteada pelos proprietários, gerando, dessa maneira, a possibilidade de criação de assentamentos para as famílias de baixo poder aquisitivo, afastando a eminente possibilidade do cumprimento da determinação de reintegração de posse. Contudo, no dia 2 de agosto de 2004, na presença de vários membros da Comunidade da Vila Santa Rosa, a Câmara de Vereadores de Florianópolis aprovou os dois Projetos de Lei Complementares, que possibilitariam a permanência da comunidade no terreno em litígio. Ressalte-se que as propostas contidas em tais projetos revelavam um verdadeiro esforço em atender ao direito de propriedade no cumprimento de sua função social, visando, inclusive, à supressão da especulação imobiliária sobre o terreno, resguardando-se o direito à moradia. Por oportuno, necessário se faz conferir as palavras do juiz responsável na época, em despacho datado de 15 de julho de 2004, o qual pronunciou o seguinte: Com relação à suspensão do feito, face a informação de que foi proposto projeto de desapropriação da área, é inviável no caso, pois, conforme os próprios documentos, a desapropriação depende de verba federal, a qual não se sabe quando virá (nem se virá), pelo que, não pode a parte ficar a espera de tal providência. Além disso, o feito está na fase de execução mandamental da sentença de reintegração de posse, sendo que o ato de desapropriação poderá ocorrer quando 31 o autor estiver na posse. Assim, indefere-se tal pedido. 31 Processo n°023.94.013479-0. Disponível em: http://tjsc3.tj.sc.gov.br/cpopg/pcpoSelecaoPG.jsp?cbPesquisa=NUMPROC&dePesquisa=023940134790. Acesso em: 30 de abril de 2007. 76 Ademais, em decorrência do falecimento do Sr. Abílio de Souza, um dos integrantes do pólo passivo do processo, ocorreu a suspensão da execução de reintegração de posse, pelo prazo de vinte dias. Outrossim, se faz necessário contemplar as palavras proferidas no despacho supramencionado: [...] Quanto ao óbito do Sr. Abílio de Souza (fls. 443/444), inobstante os r. argumentos do e. Relator do Agravo de Instrumento, para evitar possível nulidade, suspendo o feito por vinte (20) dias, para habilitação dos herdeiros ou inventariante. Findo o prazo, com ou sem habilitação, seguirá o feito, devendo vir concluso para extinção em relação ao referido réu, no caso de não habilitação. Ressalte-se que a morte ocorreu em 16/04/2004, sendo comunicada ao juízo somente em 15/06/2004, porém, após a morte, nenhuma decisão foi proferida nos autos, ocorrendo somente audiências visando acordar 32 as partes e a forma como executar a decisão de mérito. Ocorre que, em 21 de outubro de 2005, o prefeito em exercício Marcílio Guilherme Ávila encaminhou para a Câmara de Vereadores o Projeto de Lei Complementar n° 705/2005 (anexo 7), que definia como zona especial de interesse social (ZEIS) a área ocupada pela Comunidade da Vila Santa Rosa, sendo que a demarcação dessa área obedeceu às delimitações da Lei Complementar CMF n° 080/2004 (Projeto de Lei n° 585/2004), que entrou em vigor no dia 27 de agosto de 2004. Tal projeto baseou-se, ainda, na previsão do Estatuto da Cidade, sobre as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), estabelecida no artigo 4°, inciso IV, alínea “f”, da Lei 10.257/2001. Sobre o assunto, Paulo Somlanyi Romeiro e Patrícia de Menezes Cardoso (2006, p. 60) ensinam que: [...] A demarcação de ZEIS em áreas ocupadas visa reconhecer o direito dos moradores de áreas ocupadas informalmente por população de baixa renda à regularização fundiária da área demarcada, ou seja, a permanência no local que ocupam. Cumpre ressaltar que a demarcação de ZEIS não é uma ação meramente administrativa que deve considerar apenas as áreas ocupadas informalmente que o Poder Público entende ter condições de intervir no sentido de realização da regularização fundiária, a demarcação de áreas ocupadas por população de baixa renda como ZEIS significa o reconhecimento do direito da população que ocupa a área a regularização fundiária e decorrente permanência no local. 32 Processo n°023.94.013479-0. Disponível em: http://tjsc3.tj.sc.gov.br/cpopg/pcpoSelecaoPG.jsp?cbPesquisa=NUMPROC&dePesquisa=023940134790. Acesso em: 30 de abril de 2007. 77 Deste modo, o Poder Público de Florianópolis, por meio do referido Projeto de Lei, tinha por objetivo garantir a permanência da Comunidade da Vila Santa Rosa no local, bem como futuramente visava implantar os equipamentos comunitários e urbanos na área e seu entorno a fim de propiciar a integração da comunidade e garantir melhores condições de vida, adequando o zoneamento da área ao Plano Diretor da cidade. Assim, o Projeto de Lei Complementar n° 705/2005, aprovado como Lei Complementar n° 229, foi sancionado pelo Prefeito Dário Elias Berger, em 25 de abril de 2006, entrando em vigor na data de 03 de maio de 2006. Da análise do processo judicial tem-se que, até o ano de 2006, a parte autora tentou executar o mandado de reintegração de posse inúmeras vezes, sendo, no entendimento do juiz, obstada pelas mais variadas formas. Para cada tentativa de cumprimento do mandado, havia a determinação por parte do magistrado de intervenção das autoridades de segurança pública, ou seja, reforço policial, antevendo a possível recusa das famílias residentes na Comunidade. Extrai-se, também, da análise do processo, que o entendimento do juiz da 1ª Vara Cível sobre as alterações realizadas pela Câmara legislativa municipal que foram noticiadas nos autos, não tinha condão de impedir a reintegração, pois, se era aplicável aos ocupantes do local, também poderia ser aplicada ao autor reintegrado. Nessa seara, colaciona-se outro trecho do despacho publicado em 8 de abril de 2005: Infelizmente, com relação aos ocupantes da área, este juízo nada pode fazer senão orientá-los no sentido do cumprimento da ordem judicial, bem assim, que procurem os seus direitos junto aos "vendedores" dos terrenos (evicção) ou ainda, as autoridades públicas competentes para ocupação de outras áreas destinadas para tal. Já foram realizadas audiências (fls. 441/442), neste processo e outras, inclusive no Ministério Público (fls. 504), visando à desocupação da área, porém, nada foi resolvido. A questão não pode ficar indefinidamente sem solução, sob pena da instalada a insegurança jurídica no País, tendo em vista o Estado Democrático de Direito e a independência do Poder Judiciário, além da obrigatoriedade do cumprimento das decisões judiciais, "máxime" 33 quando transitada em julgado, como é o caso. 33 Processo n°023.94.013479-0. Disponível em: http://tjsc3.tj.sc.gov.br/cpopg/pcpoSelecaoPG.jsp?cbPesquisa=NUMPROC&dePesquisa=023940134790. Acesso em: 30 de abril de 2007. 78 Tem-se ainda, relacionado ao caso da Comunidade e referenciado nos autos do processo, o fato da criação da servidão Zumbi dos Palmares, reconhecida pela Lei Municipal CMF n° 1.016, de 3 de maio de 2004 (anexo 8), promulgada pela Câmara de Vereadores em 4 de junho de 2004. A criação dessa servidão gerou outro impasse, justamente porque o logradouro localizase na área reinvidicada, e a construtora Tarumã, uma vez reintegrada na posse, teria que respeitar um recuo legal para construir no local. Verificou-se, ainda, que no curso do processo foram propostos embargos de terceiros, os quais não tiveram o condão de suspender a execução, posto que os recursos interpostos somente tiveram efeito devolutivo. Há, no entanto, uma ressalva quanto aos embargos propostos pela Sociedade Recreativa e Cultural Novo Horizonte (autos nº 023.04.058724-2), o qual foi provido pelo egrégio Tribunal de Justiça do Estado, pois a parte autora do embargo peticionou requerendo de que parte da área estava indevidamente incluída na Ação de Reintegração de Posse, haja vista pertencer à embargante, devendo ser excluída, até exame daqueles embargos, deixando, segundo os autos, a discussão sobre aquela parte da gleba para data futura, o que não impediria a reintegração do autor na área remanescente. Finalmente, após anos de embate entre as partes do processo e após várias tentativas por parte da Câmara Municipal de Vereadores de interceder em favor da Comunidade, foi firmado um acordo, em 6 de dezembro de 2005, no qual os moradores aceitaram uma indenização, no valor de R$ 72.500,00 (setenta e dois mil e quinhentos reais) para cada uma das vinte famílias moradoras do local a ser pago pelos proprietários do terreno. Em 12 de janeiro de 2006, o acordo foi homologado por sentença, suspendendo o mandado de reintegração e o tramite do feito, até execução do acordo. Entretanto, o cumprimento do acordo ficou condicionado à aprovação pela Câmara de Vereadores da mudança de zoneamento da Área Predominante Zero (ARP-0), definida pela Lei CMF 080/2004, para Área Turística Residencial – asterisco seis (ATR-6*), que permite a construção de prédios de até 18 andares, sendo que pela CMF 080/2004 só poderiam ser construídas no local casas de até dois pavimentos. 79 A partir disso, em 5 de abril de 2006, o prefeito Dário Berger encaminhou para a Câmara Municipal o Projeto de Lei Complementar n° 740/2006, alterando o zoneamento aprovado pelas Leis Complementares n° 001/97 e n° 080/2004, justificando que o objetivo da Lei n° 740/2006 visava ao cumprimento do estabelecido no acordo datado de 6 de dezembro de 2005, ajustado entre as partes. Por fim, a Lei Complementar foi aprovada sob o n° 262, de 27 de dezembro de 2006 (anexo 9), alterando parte da Área Predominante Zero (ARP-0) para Área Mista Central – asterisco três (AMC*-3), devendo ainda respeitar: [...] o afastamento frontal mínimo para a via Zumbi dos Palmares para qualquer empreendimento na área localizada entre esta via e a área localizada a Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/SC) será de 4,00 (quatro metros) a partir do meio-fio, não se aplicando os §§ 2°, 3° e 6° do art. 52 da Lei Complementar n° 001 de 1997.” (artigo 2° da LC n° 262/2006). Vale citar, ainda, que o habite-se de qualquer empreendimento na área ficou condicionado à doação pelo empreendedor, para o município de Florianópolis, de terreno e respectivo prédio a ser destinado à creche, para atendimento de no mínimo sessenta crianças, conforme o artigo 3° da Lei. Destarte, a condição para o cumprimento do acordo foi cumprida, as vinte famílias desocuparam o local, e suas antigas casas já foram demolidas. Contextualizado o processo histórico referente à Comunidade da Vila Santa Rosa e considerando o processo judicial de reintegração de posse contra vinte famílias que moravam no local, passemos a analisar, ainda que de forma hipotética, a aplicabilidade do instituto da usucapião especial coletiva urbana ao caso concreto. 80 3.3 Estudo de caso: aplicabilidade do instituto da usucapião especial coletivo urbana ao caso concreto da Comunidade da Vila Santa Rosa Por todo o exposto no item anterior acerca do litígio envolvendo a Comunidade da Vila Santa Rosa, tem-se que, na prática, o instituto da usucapião especial coletiva urbana não se aplica ao caso concreto, uma vez que as famílias ocupantes do terreno que originalmente era terra de marinha sofreram oposição a suas posses, por meio de uma ação de reintegração de posse, que transitou em julgado a favor do autor da ação. O caso da Comunidade assemelha-se ao exemplo citado na primeira parte deste capítulo da Associação da Vila Manchete em Olinda/PE, pois como no caso pernambucano, parte do terreno também era originalmente de terras de marinha e o proprietário à época da ação judicial também era uma construtora. No entanto, a Associação da Vila Manchete, não sofreu oposição à posse, ingressando antes com o pedido de usucapião coletiva urbano, figurando a construtora como parte ré no processo. Todavia, analisa-se a aplicação do instituto da usucapião especial coletiva urbana, em tese, posto que a Comunidade da Vila Santa Rosa, com exceção ao fato de ter sofrido oposição, preenche os demais requisitos previstos no artigo 10 do Estatuto da Cidade, estudados no ítem 2.2.2 deste trabalho. Logo, se o objeto da usucapião coletiva são as áreas urbanas com mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, ou seja, não há restrição ao tamanho mínimo ou máximo de área para cada morador, tem-se que a área ocupada pela Comunidade da Vila Santa Rosa é igual a 4.802,60 metros quadrados, sendo de se ressaltar a impossibilidade de identificar os terrenos ocupados individualmente por cada possuidor, haja vista a forma de ocupação do terreno e a configuração das casas e “barracos” que existiam no local. Tendo em vista que o requisito subjetivo que enseja a legitimidade ativa para propor a ação de usucapião coletiva está circunscrito à ocupação da área por população de baixa renda, notadamente, vê-se que a Comunidade atende a esse requisito. Tal situação pode ser comprovada pela observação do perfil das áreas carentes (anexo 9), elaborado pelo IPUF em 1993, no qual acusa um 81 alto índice de precariedade no estado de conservação da Comunidade, bem como se pode depreender a partir da leitura dos textos das Leis Complementares que buscavam pôr um fim ao litígio, tendo por base especificamente a CMF n° 080/2004, a qual alterou o zoneamento da área para ARP-0, que conforme foi visto, é destinada a assentamento de população de baixa renda. Sob esse mesmo argumento, atende-se ainda a outro requisito do instituto da usucapião coletivo, que é o da ocupação da área para fins de moradia, justamente, porque desde os primórdios da ocupação no local, a utilização dava-se em virtude da moradia, tanto que em 2004 a área foi reconhecida como residencial predominantemente para população de baixo poder aquisitivo. Por tratarem-se comprovadamente de moradores de baixa renda, vislumbra-se que os possuidores não eram proprietários de outro imóvel urbano ou rural, sendo de se ressaltar que, em vários relatos os moradores alegaram que só conseguiram construir no terreno ocupado graças ao financiamento pela Caixa Econômica Federal. Salienta-se, neste tocante, o empenho dos moradores em permanecer na Comunidade em decorrência das várias tentativas de cumprimento do mandado de reintegração de posse, ante o temor e a falta de um lugar que pudesse substituir a moradia dessas famílias. Como vimos em item específico no capítulo anterior, o prazo mínimo de ocupação da área total é de cinco anos. Note-se que é o mesmo prazo previsto pelo artigo 183 da CF/88, sendo que a contagem desse prazo pode ser computada a partir da sua vigência, e não somente o período de posse posterior à vigência do Estatuto da Cidade. Da leitura do processo judicial citado neste trabalho, tem-se que a ocupação do terreno pelos moradores da Comunidade iniciou em meados de novembro do ano de 1987. O Banco somente ingressou com a ação judicial em 1993, ou seja, passaram-se seis anos da ocupação para que o Banco oferecesse oposição. No caso, como a ocupação é anterior a vigência da Constituição Federal de 1988 e ainda, a propositura da ação antecede a criação do Estatuto da Cidade, caberia a alegação da modalidade de usucapião especial urbana, prevista no artigo 183 da CF/88, podendo se cogitar como hipótese o exemplo de Jaboatão dos Guararapes, que como vimos, ingressou com ação de 82 usucapião pro-morare, nos moldes do artigo 183 da CF/88, e propôs ações plúrimas, na forma de litisconsórcio ativo. No que se refere à previsão do artigo 12, inciso III, do Estatuto da Cidade, tem-se que na Comunidade existia uma associação de moradores, regularmente constituída, a qual poderia ser parte legítima para representar a coletividade na ação de usucapião coletiva. Sobre a posse da respectiva área de forma ininterrupta, verifica-se que as vinte famílias ocupavam o terreno de forma contínua. Contudo, não tivessem os posseiros sofrido oposição por parte do Banco, restaria caracterizada a pacificidade da posse. Portanto, resta-nos concluir que a modalidade de usucapião especial coletiva urbana não se aplica ao caso concreto dessas vinte famílias da Comunidade da Vila Santa Rosa, uma vez que estas sofreram oposição a suas posses por meio da ação de reintegração de posse, interposta pelo Banco Santander, sendo que, na fase de cumprimento da sentença, integrou o pólo ativo da ação, junto ao ente financeiro e como assistente litisconsorcial, a Construtora Tarumã. Contudo, há que se ressaltar que o mesmo não vale para o restante da Comunidade, que têm aproximadamente cento e trinta famílias. Estas detêm a posse de terrenos nessa área considerada predominantemente zero (ARP-0) e que não sofreram, ainda, nenhum tipo de oposição, restando neste sentido, investigar a viabilidade da proposição de uma ação de usucapião especial coletiva urbana. 83 CONSIDERAÇÕES FINAIS O momento histórico contemporâneo registra um excesso populacional nas camadas de baixa renda, tanto em decorrência de elevados índices de natalidade, quanto em virtude das migrações desenfreadas e inconseqüentes, e que acabam por engendrar a crise habitacional. Dessa forma, em busca de melhores oportunidades nos centros urbanos, porém, sem capital para se fixar, tais camadas populacionais são levadas a ocupar bens de uso comum do povo, como encostas, mananciais e outras áreas que não permitem habitação ou não são para tanto adequadas. O caso da Comunidade da Vila Santa Rosa, não se afasta muito dessa problemática. Como vimos, originalmente, a população dessa Comunidade ocupou áreas de mangue que começavam a ser aterradas no processo de urbanização da Avenida Governador Irineu Bornhausen, também conhecida como Beira-Mar Norte, em Florianópolis. O terreno, inicialmente, era considerado terras de marinha, que foram aforadas na década de oitenta do século passado para a empresa Emedaux S. A. Antes, porém, para que fosse possível delinear o objeto de estudo desta monografia, foi necessário esclarecer alguns tópicos extremamente relevantes ao instituto da usucapião. O primeiro deles foi o instituto da posse, requisito fundamental para a aquisição do direito de usucapião, sendo este um direito de fato. Deste modo, a posse foi conceituada, situada historicamente e teve seus principais elementos constitutivos apresentados neste trabalho. Não foi possível, entretanto, esgotar todos os conteúdos a respeito da posse, sendo abordadas as matérias que consideramos mais relevantes ao tema, para dar suporte ao presente trabalho. Outrossim, foi de extrema relevância o estudo acerca da propriedade, dada a complexidade que envolve essa matéria, bem como acerca da sua função social. Cumpre destacar que hoje se pode falar em função socioambiental da propriedade, em atendimento aos dispositivos contidos no texto constitucional e à evidência do Estado de Direito do Ambiente. Salienta-se, igualmente, no tocante ao instituto da propriedade, a impossibilidade de se abarcar todo o conteúdo a respeito do tema. Assim, restringimo-nos a conceituá-la e a apresentar sua origem e principais 84 características, haja vista que a propriedade se apresenta de várias formas e aspectos. Uma vez explicitados os pressupostos básicos para a compreensão do instituto da usucapião, considerado um dos meios mais utilizados de aquisição ao direito de propriedade, o presente trabalho dedicou-se ao seu estudo, ressalvando suas principais características, as modalidades previstas no ordenamento pátrio e seus respectivos requisitos. Seguiu-se, deste modo, a análise detalhada da espécie denominada usucapião especial de imóvel urbana, prevista no Estatuto da Cidade. Tem-se que os interesses regulados pelo Estatuto da Cidade são de natureza notadamente social e visam atender a antigo reclamo social por uma gestão mais democrática do espaço urbano, instrumentalizando, nesse sentido, o exercício da democracia participativa em coexistência com a democracia representativa. Dessa forma, pode-se concluir que o legislador, ao regulamentar o instrumento da política urbana, por meio de ação de usucapião especial urbana, no Estatuto da Cidade, não se ateve ao disposto no artigo 183 da Constituição Federal de 1988, e sim, inovou ao preceituar a modalidade de ação de usucapião especial urbana, de forma coletiva. Note-se que a posse ad usucapionem, nas hipóteses previstas no Estatuto da Cidade, deve ser qualificada pela sua função socioambiental, que submete a propriedade que dele deverá decorrer. As mesmas imposições ditadas pela função social da propriedade devem ser transferidas à posse capaz de ensejá-la, sendo de se ressaltar que a ocupação nociva do meio ambiente, evidentemente contrária ao interesse comum, deve excluir da posse, ainda que presentes os demais pressupostos legais, a aptidão para gerar a aquisição da propriedade. Em face do aspecto processual, disposto no Estatuto da Cidade, constata-se que houve uma mudança relativamente significativa, em relação ao âmbito do processo civil. As principais modificações processuais foram: a adoção do procedimento sumário, no lugar do procedimento dos artigos 941 a 945 do CPC; a criação de uma causa de suspensão do processo; o estabelecimento da gratuidade da justiça com a extensão desta para o registro da sentença declaratória de usucapião no Registro Imobiliário; a validade da sentença que reconhecer a usucapião alegada como exceção como título para 85 registro no Cartório de Registro de Imóveis; e a ampliação da legitimidade da ação. Porém, conforme elucidamos neste trabalho, nota-se que, apesar da boa intenção do legislador em viabilizar a efetivação do direito à moradia, várias das inovações elencadas pela Lei 10.257/2001 não foram adequadas, conforme opinião dos doutrinadores pátrios. No que se refere à natureza da sentença de usucapião coletivo, evidenciou-se neste trabalho seu caráter duplo, ou seja, ela é tanto declaratória, quanto constitutiva, pois reconhece a existência de usucapião coletivo e, na própria sentença, o juiz determina a constituição do condomínio entre os co-possuidores. Sobre a admissibilidade da alegação de usucapião como matéria de defesa, conforme preceito do artigo 13 do Estatuto da Cidade, conclui-se neste trabalho que, apesar de ser pacífica a admissibilidade da usucapião como matéria de defesa, o mesmo não vale para a possibilidade de registro em Cartório Imobiliário da sentença que reconhece a usucapião especial em defesa. Contudo, dentre as disposições contidas nos artigos 10 a 14 do Estatuto da Cidade, interessou para o estudo de caso os pressupostos legais inscritos no artigo 10 dessa lei. Como vimos, a Comunidade da Vila Santa Rosa atendia, com exceção ao fato de ter sofrido oposição por parte Banco Santander, os demais requisitos expressos no artigo 10, que trata da usucapião especial coletivo urbana, uma vez que a área compreendia mais de mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados, a população era de baixa renda e ocupava o local para sua moradia há mais de cinco anos, de forma contínua. Além disso, os terrenos ocupados por cada família não eram individualizados, e os possuidores não eram proprietários de outro imóvel urbano ou rural. Todavia, quando houve oposição à posse dos moradores da Comunidade da Vila Santa Rosa, o Estatuto da Cidade sequer existia no ordenamento jurídico brasileiro. Caberia, até o momento anterior à ação de reintegração de posse, interposta em 1993, ingressar com a modalidade de usucapião especial urbana, prevista no artigo 183 da Constituição Federal, tendo em vista o atendimento ao prazo mínimo de cinco anos e o fato de as famílias ainda não terem sofrido a oposição. Mesmo assim, registraram-se neste trabalho inúmeras tentativas por parte do Poder Público, mais 86 especificamente por parte da Câmara de Vereadores do município de Florianópolis, em interceder a favor desses moradores da Comunidade, que no final restaram indenizados por suas benfeitorias e tiveram que obedecer à determinação judicial de desocupar o local e verem suas moradias demolidas. Conclui-se que, em face das discussões e polêmicas que o Estatuto da Cidade ainda enseja, bem como do pequeno número de demandas que versem sobre o tema e da dificuldade de acesso às informações por parte das populações de baixa renda, o instituto da usucapião especial coletiva urbana ainda tem uma expressão bastante tímida quanto a sua aplicabilidade aos casos concretos, restringindo-se no mais das vezes aos trabalhos acadêmicos. 87 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALFONSIN, Betânia de Moraes e FERNANDES, Edésio (Orgs.). Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Horizonte: Fórum, 2004. 368p. ARAÚJO, Fábio Caldas de. O Usucapião no âmbito material e processual. Rio de Janeiro: Forense, 2005, 372p. BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Manual de Direito Civil: Direito das Coisas e Responsabilidade Civil, Vol. 3. São Paulo: Método, 2005, 271p. BARRUFFINI, José Carlos Tosetti. 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LC nº 229/2006 Anexo VII .......................................... LC n° 1016/2004 Anexo VIII ......................................... LC nº 262/2006 Anexo IX ........................................... Perfil das Áreas Carentes Anexo X ............................................ Escritura Pública 93