O USUCAPIÃO ESPECIAL COLETIVO URBANO COMO FORMA DE RECIONALIZAÇÃO DO ESPAÇOS URBANOS. RAIMUNDO MARTINS NEIVA FILHO1 RESUMO A finalidade deste trabalho foi demonstrar que a falta de políticas públicas de urbanização para fins específicos de moradia provoca grandes problemas sociais. Dentro deste contexto e analisando tanto a legislação constitucional e infraconstitucional, detectou-se vários instrumentos de políticas urbanas, em especial o instrumento do usucapião especial coletivo urbano. O advento da Lei Federal 10.257 de 10 de julho de 2001, trouxe as Diretrizes Gerais das Políticas Urbanas, os instrumentos para sua aplicação e criou uma nova modalidade chamada Usucapião Especial Coletivo Urbano. Isto é, a possibilidade de um número indefinido de pessoas regularizarem os espaços privados que não alcançam sua função social para fins de moradia, pois a Constituição não admite usucapião de bens públicos. A função social da propriedade urbana no Brasil não está sendo alcançada, ou por falta de informação das comunidades ou por vontade dos gestores públicos. A não regularização dominial dos espaços urbanos tem ainda por conseqüência falta de educação, saúde, infra-estrutura e grande número de conflitos sociais dentro das comunidades. O estudo do instituto do usucapião especial coletivo urbano, veio para instrumentalizar o disposto na Constituição de 1988, artigos 182 e 183, ou seja, alcançar e desenvolver a política publica de urbanização e consequentemente a melhoria das condutas sociais. Palavras-chave: Usucapião. Urbanização. Função social. Conduta social. 1. INTRODUÇÃO O artigo ora apresentado traz no seu texto a análise do instrumento uscapião especial coletivo urbano. Devido ao problema habitacional brasileiro e a falta de políticas publicas de urbanização e consequentemente a geração de conflitos sociais, este instrumento apresenta-se como uma das formas de racionalização dos espaços urbanos. O aumento descontrolado e desordenado do processo de urbanização das grandes cidades brasileiras, e por que não dizer das pequenas cidades, ocasiona a falta de infra-estrutura material, jurídica e social, com relação ao atendimento da população 1 Mestre em Ciências Jurídicas - Universidade Americana - UA de Assunção; Especialista em Processo Civil – Instituto de Ensino Superior de Fortaleza – IESF/UNICE/CEFAL; Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. de baixa renda, camada da população que mais sofre danos pela falta dessas políticas públicas de urbanismo. Logo no seu artigo 6º, a Carta Magna prevê o direito à moradia, como um direito social a ser alcançado por todos, indistintamente, e com a participação conjunta da administração pública. Mas a grande conquista com relação às Políticas Urbanas, tanto para estados como para municípios, foi a regulamentação da Lei Federal 10.257, de 10 de julho de 2001, conhecida como o Estatuto da Cidade. Essa lei trouxe para a prática as políticas de urbanização sonhadas e desejadas pela sociedade, mas que, às vezes, não eram aplicadas como deveriam. A referida lei traz, dentro da sua normatização, as Diretrizes Gerais do referido Estatuto e, principalmente, os instrumentos de política urbana com o objetivo de regularização dos espaços urbanos. A novidade trazida foi a criação de um novo instrumento de política urbana, o usucapião especial coletivo urbano. Existe a falta de conhecimento sobre a quantidade de pessoas que passam por dificuldades de moradia, não se pretende neste trabalho discutir a questão subjetiva desse problema e os motivos por que as pessoas chegaram a essa situação, e, sim, falar objetivamente de uma das soluções para esse problema. Soma-se ainda, a falta de políticas públicas concretas e a não aplicação de instrumentos jurídicos específicos para os problemas dos espaços urbanos existentes nos grandes centros, com um mínimo de infra-estruturas dignas, como água tratada e encanada, esgotamento sanitário, coleta de lixo, ruas pavimentadas, iluminação pública, meio ambiente em harmonia com a população, regularização de domínios, ocorrem conflitos de ordem social e estrutural das cidades. A comprovação deste problema é o grande número de submoradias no país, alcançando 323 dos 5.565 municípios existentes. A prática de políticas públicas concretas, visando um melhor desenvolvimento das cidades sempre pensando nas gerações futuras, facilitaria e resolveria em parte o problema da moradia no país. O instrumento do usucapião especial coletivo urbano, surgiu para por em pratica estas políticas de urbanização, junto com outros instrumentos previstos no Estatuto da Cidade. 2. O INSTITUTO USUCAPIÃO Conceituando Usucapião, pode-se afirmar que é a aquisição da propriedade ou de outro direito real pelo decurso do tempo estabelecido e com a observância dos requisitos instituídos em lei. Noutras palavras, o usucapião é o meio de aquisição originária da propriedade ou de outro direito real, pela posse prolongada, aquisição essa obtida após a decretação da respectiva sentença judicial declaratória cujos efeitos retroagem à data em que o direito pleiteado se constituiu (MONTEIRO, 2010). É necessário o exame do usucapião historicamente, segundo Maria Helena Diniz (2010), na sua obra Curso de Direito Civil brasileiro, onde a estudiosa faz uma análise etiológico-histórica da Usucapião. O direito romano já o considerava como modo aquisitivo do domínio em que o tempo figura como elemento precípuo. A própria etimologia da palavra indica isso: capio significa “tomar” e usu que dizer “pelo uso”. Entretanto, tomar pelo uso não era obra de um instante; exigia, sempre, um complemento de cobertura sem o qual esse capio nenhum valor ou efeito teria. Consistia esse elemento no fator tempo O usucapião é um direito novo, autônomo, independente de qualquer ato negocial provindo de um possível proprietário, tanto assim que o transmitente da coisa objeto da usucapião não é o antecessor, o primitivo proprietário, mas a autoridade judiciária que reconhece e declara por sentença a aquisição por usucapião. O usucapião tem por fundamento a consolidação da propriedade, dando juridicidade a uma situação de fato: a posse unida ao tempo. A posse é o fato objetivo, e, o tempo, a força que opera a transformação do fato em direito, o que nos demonstra a afinidade existente entre os fenômenos jurídicos e físicos. Também como fundamento deste instituto está o de garantir a estabilidade e segurança da propriedade, fixando prazo, além do qual não se podem mais levantar dúvidas ou contestações a respeito e sanar a ausência de título do possuidor, bem como os intrínsecos do título que esse mesmo possuidor, porventura, tiver (DINIZ, 2010). Ainda sobre o instituto da usucapião, discute-se, se é modo originário ou derivado de adquirir a propriedade. Trata-se de questão obscura e até agora não solucionada pela doutrina, que se inclina, porém, no sentido de conceituá-lo como modo originário, porquanto, para o usucapiente, a relação jurídica de que é titular surge como direito novo independente da existência de qualquer vinculação com seu predecessor, que, se por acaso existir, não será o transmitente da coisa. Para o professor Francisco Morato (1944), na sua obra Da Prescrição nas Ações Divisórias duas forças, se fazem sentir na prescrição aquisitiva e na prescrição extintiva, a força geradora e a força extintora. Na prescrição aquisitiva, predomina a força que cria, na extintiva, a força que extermina; opera aquela criando o direito em favor de um novo titular e, por via oblíqua, extinguindo a ação, que para a defesa do direito tinha o titular antigo; na prescrição extintiva, a força extintora extermina a ação que tem o titular e, por via de consequência, elimina o direito pelo desaparecimento da tutela legal. Na primeira, nasce o direito e, pelo nascimento do direito, fenece a ação; na segunda, fenece a ação e, pelo fenecimento da ação, desaparece o direito. Se a força geradora prepondera sobre a extintora, tem-se a prescrição aquisitiva; se prepondera a força extintora sobre a geradora, tem-se a prescrição extintiva. Salienta-se a primeira pela sua feição positiva, como modo de adquirir a propriedade pela posse prolongada; caracteriza-se a segunda pela sua feição negativa, pois consiste na perda da ação atribuída a um direito pelo não uso dela durante certo lapso de tempo. 3. O ESTATUTO DAS CIDADES O Estatuto das Cidades nasce com base nos Fundamentos Constitucionais, previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (BRASIL, 1988), dentro do Título pertinente à ordem econômica e financeira, um capítulo destinado à política urbana, consubstanciada, em linhas gerais, nos artigos 182 e 183. 3.1 Da política urbana conforme o estatuto da cidade e Constituição de 1988 No texto constitucional verifica-se que a finalidade precípua dos arts. 182 e 183 é de natureza social, no sentido amplo da expressão. Com efeito, o art. 182, já no seu caput, prescreve que a política de desenvolvimento urbano, a ser executada pelos Municípios, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. É bem verdade que um adequado desenvolvimento urbano constitui também condição fundamental para o desenvolvimento das atividades econômicas que ocorrem nas cidades, e sem as quais não são criadas riquezas a serem compartilhadas por todo o corpo social. Mas parece certo que a finalidade mais imediata dos dispositivos constitucionais em questão é viabilizar a democratização das funções sociais da cidade, em proveito de seus habitantes, prevendo mecanismos de promoção do adequado aproveitamento do solo urbano. Já o art. 183 institui o usucapião especial de pequenas áreas urbanas utilizadas para moradia, enfatizando, assim, a preocupação com o social no sentido estrito do termo. Entretanto, carecendo o texto constitucional de normatização suficiente para a consecução das finalidades para as quais aponta, e postulando expressamente uma produção normativa infraconstitucional, eis que vem a lume a Lei 10.257, de 10.7.2001, assinalado em seu “Preâmbulo” que “regularmente os arts. 182 e 183, da Constituição Federal, estabelecem diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências”. Ora, a lei que consubstancia o denominado Estatuto da Cidade não se limita a estabelecer regras orgânicas e procedimentos para a execução dos dispositivos constitucionais que “regulamenta”. Inova originariamente a ordem jurídica, estabelece obrigações e proibições a particulares e agentes públicos, cria institutos jurídicos, prevê sanções para os que violarem as regras que prescreve.(DALARI e FERRAZ 2010) 3.2. Diretrizes Gerais As normas urbanísticas tem antepassados ilustres (regulamentos edilícios, normas de alinhamento, as leis de desapropriação, etc.), ou seja, seria anacronismo pensar em um direito urbanístico anterior ao século XX. O direito urbanístico é o reflexo, no mundo jurídico, dos desafios e problemas derivados da urbanização moderna (concentração populacional, escassez de espaço, poluição) e das idéias da ciência do urbanismo (como a de plano urbanístico, consagrada a partir da década de 30). Esses foram os fatores responsáveis pelo paulatino surgimento das soluções e mecanismos que, frente ao direito civil e ao direito administrativo da época, soaram impertinentes ou originais e que acabaram se aglutinando em torno da expressão “direito urbanístico”. O grande marco da adolescência do direito urbanístico brasileiro será a promulgação da Constituição de 1988, que afirmará sua existência e fixará seus objetivos e instrumentos Neste contexto surgiu o Estatuto da Cidade, com a pretensão de pôr fim à prolongada adolescência em que ainda vive o direito urbanístico brasileiro. Coube à nova lei enfrentar o desafio de consolidá-lo (fixando conceitos e regulamentando instrumentos), de lhe conferir articulação, tanto interna (estabelecendo vínculos entre os diversos instrumentos urbanísticos) como externa (fazendo a conexão de suas disposições com as de outros sistemas normativos, como as do direito imobiliário e registral), e, desse modo, viabilizar sua operação sistemática. O pressuposto da disciplina do art. 2º do Estatuto da Cidade é a existência, para o Poder Público, dos deveres de ordenar e controlar o emprego (uso, parcelamento, ocupação e edificação) do solo (incisos VI, XIII, XIV e XV) e de proteger o patrimônio coletivo (inciso XII). Esses deveres não foram criação do Estatuto da Cidade, pois já haviam sido claramente impostos pela própria Constituição de 1988, tanto em seu art. 30, VIII (relativo ao emprego do solo), bem como nos arts. 23, III e VI, 216 e 225 (relativos ao patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e ambiental). Mas o Estatuto disciplinou o exercício dessas competências estatais, estabelecendo-lhes orientações e limites, além de atribuir direitos subjetivos públicos à sua observância. O Estatuto afirmou com ênfase que a política urbana não pode ser um amontoado de intervenções sem rumo. Ela tem uma direção global nítida: “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana” (art. 2º, caput), de modo a garantir o “direito a cidades sustentáveis” (incisos I, V, VIII e X). Ao assentar suas diretrizes gerais, o Estatuto expressa a convicção de que, nas cidades, o equilíbrio é possível – e, por isso, necessário. Deve-se buscar o equilíbrio das várias funções entre si (moradia, trabalho, lazer, circulação, etc.), bem como entre a realização do presente e a preservação do futuro (art. 2º, I); entre o estatal e o não estatal (incisos III e XVI); entre o rural e o urbano (inciso VII); entre a oferta de bens urbanos e a necessidade dos habitantes (inciso V); entre o emprego do solo e a infra-estrutura existente (inciso VI); entre os interesses do Município e dos Territórios sob sua influência (incisos IV e VIII). O crescimento não é um objetivo; o equilíbrio, sim; por isso, o crescimento deverá respeitar os limites da sustentabilidade, seja quanto aos padrões de produção e consumo, seja quanto à expansão urbana (inciso VIII). Toda intervenção individual potencialmente desequilibrada deve ser previamente comunicada (inciso XIII) estudada, debatida e, a seguir, compensada. (DALARI e FERRAZ 2010) 3.3. Instrumentos da política urbana O art. 4º do Estatuto da Cidade enumera um rol de instrumentos que são colocados à disposição do Poder Público visando à organização conveniente dos espaços habitáveis e ao cumprimento das funções sociais da propriedade e da cidade. São estes: a) desapropriação; b) servidão administrativa; c) limitações administrativas; d) tombamento de imóveis; e) instituição de unidades de conservação; f) instituições de zonas especiais de interesse social; g) concessão de direito real de uso; h) concessão de uso especial para fins de moradia; i) parcelamento, edificação ou utilização compulsórias; j) usucapião especial de imóvel urbano; l) direito de superfície; m) direito de preempção; n) outorga onerosa do direito de construir e alteração de uso; o) transferência do direito de construir; p) operações urbanas consorciadas; q) regularização fundiária; r) assistência técnica e jurídica gratuita para comunidades e grupos sociais menos favorecidos; s) referendo popular e plebiscito; t) demarcação urbanística para fins de regularização fundiária; u) legitimação de posse” (alínea acrescentada pela Lei nº 11.977. de 7.7.2009). A redação do artigo deixa claro que tal relação não é exaustiva, ao dizer que eles deverão figurar “entre os instrumentos” - o que significa um reconhecimento da validade de instrumentos existentes e utilizados antes da edição do Estatuto da Cidade e também que, mesmo agora, novos instrumentos (não previstos nesta relação) poderão vir a ser criados, inclusive por Estados e Municípios. O mais importante, porém, é destacar a instrumentalização da atuação do Poder Público em matéria urbanística. Ou seja, a institucionalização de um conjunto de meios e instrumentos expressamente vocacionados para a intervenção urbanística, possibilitando ao Poder Público uma autuação vigorosa e concreta neste setor. Cabe também mencionar que o § 2º do art. 4º prescreve que os instrumentos em exame, quando demandarem dispêndios de recursos financeiros municipais, além dos controles institucionais, formais, devem também submeter-se ao controle social, garantindo-se a participação de comunidades, movimentos e entidades da sociedade civil. Em síntese, a utilização de todos esses instrumentos sempre deve estar submetida a controles institucionais, sociais e comunitários. Os institutos jurídicos e políticos acima referidos visam não apenas a vedar comportamentos dos proprietários deletérios aos interesses da coletividade, mas, sim, mais que isso, busca obter comportamentos positivos, ações, atuações, necessárias à realização da função social da propriedade. Entretanto, a experiência indica que, na prática, será muito difícil obter tais comportamentos, sejam eles omissivos (abstenções) ou, principalmente, comissivos (obrigações de fazer), pois será preciso vencer preconceitos, especialmente no tocante à jurisprudência, que é predominantemente individualista e não contempla a dimensão social da propriedade. (DALARI e FERRAZ 2010) 4. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA NO BRASIL Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, a chamada “constituição cidadã”, a propriedade foi elevada à categoria de direto fundamental (art. 5º XXII) ao lado da vida, liberdade, igualdade. O direito de propriedade constitucional da propriedade vem estampado no artigo 5º, inciso XXII (garantia), XXIII (atendimento a função social), XXIV (prévia e justa indenização em caso de desapropriação por necessidade e utilidade ou por interesse social). No título VII “Da Ordem Econômica e Financeira” o texto maior disciplina os princípios da atividade econômica e dentre eles traz a propriedade (170, II) e a função social (170, III). Quando se fala em função social da propriedade urbana, está-se a dizer sobre, nas palavras de José Afonso da Silva, “necessidades conexas do estabelecimento humano na cidade”. Parece adequado partir do momento da ruptura da estratificação feudal, fato esse que contribuiu para a evolução das cidades, crescimento, e desenvolvimento do comércio. O enfraquecimento da vida no campo e a expulsão das terras conduziram grande parte da população aos centros urbanos, em busca do trabalho, tendo sido absorvida pela indústria que nascia. Foi nesse contexto que a vida na cidade cresceu e, com o passar do tempo, surgiu um conglomerado de indústrias, comércios, atividades e uma enorme concentração de pessoas. Com essas breves digressões, pode-se passar ao conceito de cidade na atualidade. Washington Peluso Albino de Souza caracteriza cidade da seguinte forma: “O chão define o espaço utilizado pelo individual e pelo social na configuração e na prática da própria convivência e a partir dos problemas de sua subsistência. Como indivíduo ou como componente do todo social, é do chão que ele retira tudo de que depende e no exercício de sua própria vida, é dele que se utiliza. Enquanto gente, os problemas do homem projetam-se do âmbito individual ao social. Mais do que a sobrevivência animal, configura-se todo condicionamento da estrutura social, na qual ele se inclui. Desejos, necessidades, sonhos, anseios, compõem a gente no organismo urbano. Por fim, os conhecimentos, as experiências, as vivências acumuladas pela própria humanidade vão traduzir-se na cultura. Reunidos no conceito de cidade, estes elementos permitem-nos afirmativas incontestáveis como a de que devemos tratá-la como organismo vivo, ou, no dizer de Bandeira, que ela tem caráter (SOUZA, 1978). A Constituição Federal de 1988 delineou também normas próprias do meio ambiente, sendo, hoje, o meio ambiente, direito fundamental de terceira geração. A urbanização, portanto, é fenômeno moderno que desencadeia uma série de problemas com uma infinidade de formas de escassez, tais como, falta de emprego, inexistência de habitação digna para toda a população, saneamento básico que atenda a todos os moradores, excesso de população e degradação ambiental. Com a consolidação da urbanização, o solo urbano passar a ter múltiplas utilizações. A cidade passa a ter como funções essenciais a habitação, o trabalho, o lazer, a circulação e tudo isso visando à qualidade de vida. Da análise do dispositivo constitucional em comento, conclui-se que a política urbana determina o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, alcançando essa plenitude no momento em que for proporcionado aos seus habitantes o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e propriedade – artigo 5º da CF – e também garantidos a educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados - artigo 6º da CF. A preocupação com a moradia veio gizada na Constituição Federal, na medida em que estabeleceu o usucapião urbano – artigo 183 – e rural, artigo 191, bem como, posteriormente, com a emenda 26, elencada objetivamente no caput do artigo 6º da Constituição Federal como direito social. Assim a cidade estará cumprindo sua função social quando garantir a possibilidade de moradia digna a seus habitantes, impedindo que a utilização do solo urbano se transforme em forma de segregação e exclusão social. (PIRES 2007) 5. USUCAPIÃO COLETIVO URBANO 5.1. Conceito e Requisitos Na concretização dos princípios constitucionais fundantes do ordenamento jurídico, o Estatuto da Cidade, além de reiterar, no art. 9º, o que já nitidamente se continha no art. 183 da Constituição Federal, aparentemente foi além ao instituir o chamado usucapião coletivo, no ponto em que, por seu art. 10, torna suscetível de serem usucapidas coletivamente áreas urbanas com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupadas por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor”, e “desde que os possuidores não sejam proprietário de outro imóvel urbano ou rural”. Não se põe em dúvida que o art. 10º do Estatuto da Cidade orientou-se segundo a diretriz obrada pelo constituinte no art. 183 da Carta Federal, que o Estatuto da Cidade se propõe a regulamentar. Alguns dos requisitos vazados no dispositivo são próprios decalques do enunciado constitucional, reproduzidos quase à letra, como o lapso de tempo exigido, a destinação de moradia e a circunstância de não ostentar a favorecida titulação outra de propriedade imobiliária. Mas o legislador ordinário foi além para permitir que áreas urbanas superiores ao limite gizado para o usucapião constitucional (duzentos e cinquenta metros quadrados), onde não for possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, possam também ser usucapidas coletivamente. E a resposta afirmativa vem depressa, bastando que se considere a referência na disposição a áreas de dimensão superior à bitola constitucional alusiva ao conjunto da área na qual existam diversas moradias precariamente edificadas, onde cada uma das áreas ocupadas pelos moradores (ou famílias de moradores), isoladamente consideradas, não ultrapasse a limitação espacial de duzentos e cinquenta metros quadrados, seja terreno, seja edificação. Uma interpretação assim construída afeiçoa-se ao fim social do Estatuto e espanca a idéia de maltrato à isonomia. De tudo isso dimana a franca convicção de que o mencionado art. 10º do Estatuto não cria uma nova modalidade de usucapião distinta daquela prevista no art. 183 da Carta Federal. A única novidade está na possibilidade de reconhecimento coletivo do usucapião com a instituição de uma modalidade diferenciada de condomínio até que se consume a reurbanização da área ocupada pelo conjunto de moradias, quando então aqueles caros valores que informam os princípios constitucionais fundamentais, animadores de todo o engenho legislativo, alcançarão plena concretização. Em suma, o usucapião coletivo somente direcionou o usucapião individual especial, que já existia em nosso ordenamento desde 1988, para uma finalidade urbanística. Logo, é possível o pronto ajuizamento de ações de usucapião coletivo, com o aproveitamento do período de posse anterior à vigência do Estatuto da Cidade. Nesse sentido, parece que se postará a jurisprudência (LIMA, 2009). 5.2. Falta de regularização fundiária provocando conflitos sociais O Brasil, em menos de um século, especificamente falando, o século XX, passou de uma economia praticamente rural para uma sociedade capitalista e industrializada, ocasionando assim um grande êxodo rural, em que pessoas vinham de todas as regiões do país, em especial o nordeste, para os grandes centros da época, São Paulo e Rio de Janeiro, que, até os anos 60, era a capital federal. Com esta explosão demográfica e com o grande aumento da mão-de-obra industrial, não houve a preocupação quanto à questão da moradia, como consequência os migrantes de outras regiões começaram a instalarem-se nas periferias dos grandes centros, em localidades de grandes riscos naturais (chuvas, deslizamentos, antigos lixões), e sem estrutura física adequada, como casas de tijolos, ruas pavimentadas, esgotos aparentes, iluminação pública e transporte públicos. A expulsão da população pobre do centro da cidade, local onde se estabeleceu a maior parte dos cortiços, levou ao incremento das favelas. Na realidade os cortiços e as favelas aparecem como a forma mais viável, para a capital, de reproduzir a classe trabalhadora a baixos custos. Este problema habitacional no Brasil está enraizado na própria formação das cidades brasileiras. As políticas públicas desenvolvidas pelo estado na tentativa de regularização de áreas urbanas com o objetivo de receberem o grande número de pessoas que vieram do campo e de outras regiões do país não lograram o êxito esperado. Primeiro porque as políticas públicas iniciais de desenvolvimento urbano tinham como meta a chamada urbanização aparente, onde se retirava as pessoas dos centros das grandes cidades empurrando-as paras as periferias, e apenas revitalizavam estes mesmos centros, para dar uma idéia de limpeza e organização. Deve-se ressaltar que a transferência destas pessoas para as periferias era feita desordenadamente, isto é, havia a transferência, mas sem nenhuma estrutura física digna para essa nova camada da sociedade. Daí o surgimento das grandes favelas, como exemplo maior a favela da “Rocinha”, no Rio de Janeiro, a maior da América Latina. Depois vieram os programas habitacionais para o desenvolvimento e facilitação de investimentos para construção da casa própria, mas estes planos limitavam-se a pequenos grupos com rendimentos viáveis para tal, não alcançavam quem realmente necessitava, a população de baixa renda. Após todos estes obstáculos para tentar solucionar o problema da moradia no Brasil, se junta a isso a chamada especulação imobiliária, isto é, os grandes grupos necessitavam das áreas centrais e menos periféricas das grandes cidades para a construção e vendas de habitações para as classes mais abastadas, e, mais uma vez, a população de baixa renda é empurrada para longe dos centros urbanos de comércio e trabalho. A falta de políticas públicas direcionadas a moradias dignas é uma realidade, porque não é suficiente construir novos conjuntos habitacionais sem disponibilizar um mínimo de estrutura física, jurídica e social para estas futuras comunidades. O resultado da falta de políticas públicas de moradia irá provocar conflitos sociais, de segurança e de saúde. Buscam-se novas alternativas de sobrevivência, e, na maioria das vezes, relacionadas com a criminalização, grande número de pessoas que começam a roubar, furtar, matar, e com a formação do crime organizado, que vê nessas comunidades a facilidade de angariar novos simpatizantes, pois o Estado os abandona literalmente. Outro problema, não menos importante, é a questão da saúde. O que acontece na prática com estas comunidades surgidas em aglomerado de barracos, às vezes de papelão ou resultante da junção de vários outros materiais, é o surgimento de favelas sem nenhuma organização urbana e arquitetônica, onde existem as mais diversas formas de construções feitas em áreas de risco, sem acompanhamento de técnicos especializados, construções sem respeitar o espaço físico dos outros e construções sem a regularização dominial. A falta de estrutura física ocasiona, no caso dos esgotamentos sanitários e ruas não pavimentadas, a proliferação de doenças infectocontagiosas, a exemplo da cólera, dengue, leptospirose e outras; redes elétricas ilegais provocam, além da falta de iluminação pública, que aumenta a criminalidade, choques de alta voltagem ou grandes incêndios, devido também às construções serem feitas de material inflamável. Somamse a isso outros conflitos sociais, como a falta de espaços de lazer, falta de escolas públicas presentes na própria comunidade, o que evitaria o dispendioso deslocamento para os centros urbanos e os conflitos envolvendo os chamados direitos reais, ocasionados pela falta de regularização dos espaços urbanos. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS A modernidade, assim como a evolução da sociedade, é de vital importância para o desenvolvimento das grandes cidades, mas este mesmo desenvolvimento provoca a transferência de uma quantidade exorbitante de pessoas, buscando novas oportunidades, esta migração desordenada das pequenas cidades para médias e grandes cidades, provoca uma grande escassez de espaços físicos para instalação dessas pessoas. Então o grande aglomerado de pessoas, ou pela especulação imobiliária ou devido aos baixos salários ou falta de políticas públicas, acomodam-se em lugares de uso comum do povo como praças, parques, bens públicos e regiões naturalmente perigosas como margens ribeirinhas e encostas de morros, provocando o surgimento de grandes comunidades e favelas, totalmente sem infra-estrutura física como a falta de vias pavimentadas, saneamento básico, iluminação pública, transporte público e toda a estrutura necessária para viver e morar dignamente. É importante ressaltar que esse problema, atualmente, vem ocorrendo também em pequenos centros. Então, o Estatuto da Cidade veio para facilitar a aplicação dessas políticas públicas de urbanização. Dentro dessas políticas, mas especificamente, o instrumento previsto no artigo 4º, IV, j, da referida lei, o chamado usucapião especial coletivo urbano. No entanto, o Estatuto da Cidade trouxe para a esfera urbana, a aquisição da propriedade imóvel para fins de moradia. Existe um grande déficit habitacional atualmente no Brasil. O problema da moradia atinge os grandes centros urbanos do mundo. Somente na cidade de São Paulo, existem mais de 100.000 prédios abandonados sem nenhuma função, ocasionando, às vezes, grandes invasões de movimentos sociais, formados principalmente por moradores de rua. Em 2010, o Brasil possuía 6.329 (seis mil trezentos e vinte nove) aglomerados subnormais (assentamentos irregulares, conhecidos como favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros). Nos municípios brasileiros a concentração da população é de 6% o equivalente a 11.425.644 (onze milhões quatrocentos e vinte cinco e seiscentos e quarenta e quatro) pessoas. O grande volume de imóveis urbanos não regularizados ocasiona o surgimento de novas favelas e comunidades, bem como o aumento das já existentes nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, conhecidas mundialmente. O instrumento do usucapião especial coletivo urbano, é uma das principais formas de racionalização dos espaços urbanos, ou seja, através deste um número impreciso de pessoas conjuntamente representado, por associações, pode requerer em juízo sentença declaratória de usucapião urbano e regularização de determinada área privada ocupada, individualmente para cada uma das famílias ou pessoa participante desta relação processual. Este instrumento jurídico para uso e ordenação do solo urbano, com seus espaços definidos individualmente, provocaria uma melhora na convivência social entre pessoas, evitando conflitos que envolvam direitos de vizinhança, problemas sexuais relacionados ao abuso do pátrio poder e diminuição dos crimes comuns e do crime organizado. REFERÊNCIAS BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. DALARI, A. A. e FERRAZ, S. Usucapião especial. In: Estatuto da Cidade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2010. DINIZ, MARIA HELENA, Curso de Direito Civil, Obrigações, São Paulo, Saraiva, 2010. LIMA, M. K. Usucapião Coletivo e desapropriação judicial: instrumentos de atuação da função social da propriedade. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2009. MONTEIRO, W. B. Curso de Direito Civil. v. 3, 40. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. MORATO, F. Da Prescrição nas Ações Divisórias. São Paulo: Saraiva, 1944. SILVA, J. A. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. SOUZA, W. P. A. O direito econômico e o fenômeno urbano atual. Conferência de estudos urbanos. Belo Horizonte, p. 1, 1978. PIRES, L. R. G. M. Função Social da Propriedade Urbana e Plano Diretor. Belo Horizonte: Fórum, 2007.