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ISSN 1980-1858
GUAVIRA LETRAS
Programa de Pós-Graduação em Letras
UFMS/Campus de Três Lagoas
Guavira Letras
Três Lagoas
v.13
n.1
p. 1-213
ago./dez. 2011
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Reitora
Célia Maria da silva Oliveira
Vice-Reitor
João Ricardo Filgueiras Tognini
Pró-Reitor de Pós-graduação
Dercir Pedro de Oliveira
Diretor do Campus de Três Lagoas
José Antônio Menoni
Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Letras
Kelcilene Grácia Rodrigues
Conselho Editorial
Eneida Maria de Souza (UFMG)
João Luís Cardoso Tápias Ceccantini (UNESP/Assis)
José Luiz Fiorin (USP)
Paulo S. Nolasco dos Santos (UFGD)
Maria do Rosário Valencise Gregolin (UNESP/Araraquara)
Maria José Faria Coracini (UNICAMP)
Márcia Teixeira Nogueira (UFCE)
Maria Beatriz Nascimento Decat (UFMG)
Rita Maria Silva Marnoto (Universidade de Coimbra – Portugal)
Roberto Leiser Baronas (UNEMAT)
Sheila Dias Maciel (UFMT)
Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos (UEM)
Silvane Aparecida de Freitas Martins (UEMS)
Vera Lúcia de Oliveira (Lecce – Itália)
Vera Teixeira de Aguiar (PUC/Porto Alegre)
Comissão Editorial
Kelcilene Grácia Rodrigues
Rauer Ribeiro Rodrigues
Taísa Peres de Oliveira
Vitória Regina Spanghero
Claudionor Messias da Silva (Apoio Técnico)
Assistente Editorial (bolsista)
Luciano de Jesus Gonçalves
Diagramação
Edson Rosa Francisco de Souza
© Copyrigth 2011 – os autores
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Biblioteca do Campus de Três Lagoas – UFMS, Três Lagoas, MS, Brasil)
G918
Guavira Letras: Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Letras
/ Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Programa de Graduação e
Pós-Graduação em Letras. – v. 1, n. 1 (2005). - Três Lagoas, MS, 2005 -
Semestral.
Descrição baseada em: v. 13, n.1, (ago./dez. 2011).
ISSN 1980-1858
1.
Letras - Periódicos. 2. Funcionalismo - princípios, metas e métodos
I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Programa de
Graduação e Pós-Graduação em Letras. II. Título.
CDD (22) 805
_________________________________________________________________________________________________________
Organização deste volume: Taísa Peres de Oliveira e Edson Rosa Francisco de Souza
Pareceristas deste número:
Anna Christina Bentes (UNICAMP/IEL)
Edson Rosa Francisco de Souza (UFMS/Três Lagoas)
Eduardo Penhavel de Souza (UFV)
Fabio Fernando Lima (USP)
Flávia Bezerra de Menezes Hirata Vale (UFSCAR)
Juliano Desiderato Antonio (UEM)
Liliane Santana (UNESP/São José do Rio Preto)
Maria Angélica de Oliveira Penna (UNICAMP/IEL)
Maria Angélica Furtado da Cunha (UFRN)
Maria Beatriz do Nascimento Decat (UFMG)
Maria Cecilia de Magalhaes Mollica (UFRJ)
Maria Maura Cezário (UFRJ)
Mariângela Rios de Oliveira (UFF)
Marize Mattos Dall’Aglio Hattnher (UNESP/São José do Rio Preto)
Mônica Veloso Borges (UFG)
Nilza Barrozo Dias (UFF)
Rivia Silveira Fonseca (UFRRJ)
Sebastião Carlos Leite Gonçalves (UNESP/São José do Rio Preto)
Taísa Peres de Oliveira (UFMS/Três Lagoas)
Talita Storti Garcia (UNESP/São José do Rio Preto)
Valdirene Zorzo-Veloso (UEL)
Vanessa Hagemeyer Burgo (UFMS/Três Lagoas)
Todos os direitos reservados
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Programa de Pós-Graduação em Letras
Câmpus de Três Lagoas – Três Lagoas/MS
CEP: 79610-011
Fone: +55 (67) 3509-3425
Portal: www.pgletras.ufms.br/revistaguavira
[email protected]
Sumário
FUNCIONALISMO: PRINCÍPIOS, METAS E MÉTODOS
FUNCTIONALISM: TENETS, AIMS AND METHODS
APRESENTAÇÃO
5
ARTIGOS/ ARTICLES
6
Gramática Funcional
Christian Lehmann
7
Linguística funcional: princípios, temas, objetos e conexões
Maria Helena de Moura Neves
23
A natureza contínua das classes de palavras
Roberto Gomes Camacho
39
A influência dos fatores sociais na alternância dos pronomes tu/você na fala manauara
Leandro Babilônia
Silvana Andrade Martins
49
A ordem SV/VS no português em aquisição como L2 na fronteira Brasil/Paraguai: uma
investigação sociofuncionalista na interface aquisição/variação
Sebastião Carlos Leite Gonçalves
Juliana Daher Sabatin
Sandra Denise Gasparini-Bastos
61
Interpretação de padrões de covariação
Livia Oushiro
77
Da forma para função ou da função para forma?
Raquel Meister Ko. Freitag
Sebastião Carlos Leite Gonçalves
89
A origem latina dos advérbios em -mente: um processo de gramaticalização
Júlia Langer de Campos
109
Revisitando a liaison do francês pela via da análise da frequência de uso
Ricardo Araujo Ferreira SOARES
Mônica Maria Rio Nobre
124
A locução conjuntiva temporal ((n)a) hora que: aspectos inovadores e renovadores
Gisele Cássia de Sousa
Nicole Regina Renck
138
(Inter)subjetivização no domínio da modalidade: o processo de gramaticalização das
construções modais ter que + V2 e dever + V2
Patrícia Fabiane Amaral da Cunha Lacerda
151
A natureza fluida da língua e o estudo do português: aproximações entre gramaticalização e
ensino
André Luiz Rauber
165
Motivações sociointeracionais de fenômenos linguísticos e ensino de língua portuguesa:
algumas contribuições
Edvaldo Balduino Bispo
Maria Angélica Furtado da Cunha
180
Orkut: Linguagem oral em suporte escrito
Viviane Yamane da Cunha
196
4
APRESENTAÇÃO
O Grupo de Pesquisa de Estudos Sociofuncionalistas (GPES), atualmente sediado na
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS- Câmpus de Três Lagoas), e o
Programa de Mestrado em Letras têm a satisfação de apresentar aos seus leitores o volume
13 da Revista Guavira, intitulada Funconalismo: princípios, metas e métodos, organizado
pelos professores Taísa Peres de Oliveira e Edson Rosa Francisco da Souza.
O presente volume reúne trabalhos apresentados durante o I Simpósio de Internacional
de Linguística Funcional (SILF 2011), realizado na Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul, Câmpus de Três Lagoas/MS, nos dias 25, 26 e 27 de maio de 2011, sob a coordenação de
Taísa Peres de Oliveira, Edson Rosa Francisco de Souza, Sebastião Carlos Leite Gonçalves,
Eduardo Penhavel e Alessandra Regina Guerra. O evento recebeu apoio financeiro da Capes.
O SILF 2011 reuniu pesquisadores do exterior e de diferentes universidades brasileiras
que se dedicam aos estudos da linguagem a partir das várias vertentes teóricas funcionalistas,
propiciando, assim, um espaço para a divulgação de pesquisas e, principalmente, para a
reflexão e discussão conjunta sobre diferentes objetos de estudo, particularmente os
problemas de análise, as perspectivas teóricas e as metodologias de trabalho.
A diversidade dos temas focalizada nos textos aqui apresentados reflete a pluralidade
de enfoques de análise que marcam o paradigma funcionalista: os trabalhos contemplam as
diferentes teorias funcionalistas bem como as interfaces possíveis. Nesse sentido, buscou-se
construir uma rede de interações assentada no conhecimento diversificado sobre o tema
central, entendendo que do esforço comum pode surgir um pensamento inovador.
A edição de número 13 da Guavira Letras inclui artigos de renomados pesquisadores
do Brasil e do exterior, que são frutos de suas apresentações no SILF 2011 (em conferências,
mesas-redondas, sessões coordenadas e comunicações individuais), e estão distribuídos entre
as variadas temáticas que o Funcionalismo em Linguística permite abordar. Dentre os assuntos
discutidos pelos autores, estão as questões referentes aos aspectos definidores da Gramática
Funcional e suas interfaces, fluidez categorial, variação linguística (Sociolinguística), aquisição
de segunda língua (L2), gramaticalização de construções e itens linguísticos, constituição e
caracterização funcional de perífrases verbais e conjuncionais, intersubjetividade/modalidade,
sociointeracionismo, gêneros discurivos e ensino de língua materna.
Participam deste volume Christian Lehmann (Universität Erfurt, Alemanha), Maria
Helena de Moura Neves (UNESP/Mackenzie), Roberto Gomes Camacho (UNESP/S. J. Rio
Preto), Leandro Babilônia (UEA/Amazonas), Silvana Andrade Martins (UEA/Amazonas),
Sebastião Carlos Leite Gonçalves (UNESP/S. J. do Rio Preto), Juliana Daher Sabatin (UNESP/
S. J. Rio Preto), Sandra Denise Gasparini-Bastos (UNESP/S. J. Rio Preto), Livia Oushiro
(USP/São Paulo), Raquel Meister Ko. Freitag (UFS/Sergipe), Júlia Langer de Campos
(UFRJ/Rio de Janeiro), Ricardo Araujo Ferreira Soares (UFRJ/Rio de Janeiro), Mônica Maria
Rio Nobre (UFRJ/Rio de Janeiro), Gisele Cássia de Sousa (UNESP/ S. J. Rio Preto), Nicole
Regina Renck (UNESP/S. J. Rio Preto), Patrícia Fabiane Amaral da Cunha Lacerda (UFJF/Juiz
de Fora), André Luiz Rauber (USP/São Paulo), Edvaldo Balduino Bispo (UFRN), Maria
Angélica Furtado da Cunha (UFRN), Viviane Yamane da Cunha (Mackenzie/São Paulo).
Os textos aqui reunidos constituem apenas uma pequena amostra dos caminhos
possíveis de pesquisa que podemos percorrer no campo de estudos funcionalistas. Esperamos
que esses textos sirvam de convite para quem deseja conhecer o Funcionalismo linguístico mais
de perto e investigar os componentes constituitivos da linguagem a partir da observação da
língua em funcionamento. Antes de finalizar, gostaríamos de agradecer a todos os pareceristas
deste volume, pelo excelente trabalho realizado, e por terem aceitado o nosso convite.
Uma boa leitura a todos.
Os organizadores
5
ARTIGOS
6
Gramática Funcional
Christian LEHMANN1
RESUMO: Embora exista um modelo bem conhecido de descrição linguística (a saber: Gramática Funcional), o
título na verdade se refere a um conceito de gramaticografia num sentido mais amplo, que é essencialmente
independente de modelos particulares de descrição. Dadas as abordagens complementares para a análise e
descrição linguística, como, a abordagem funcional onomasiológica ou semasiológica, 95% das gramáticas
publicadas atualmente são gramáticas estruturais. Isso inclui tanto as gramáticas puramente estruturais na
tradição do estruturalismo americano, incluindo gramática gerativa (na medida em que produziu descrições
gramaticais), quanto as gramáticas que consideram o significado e a função das construções descritas. Para
analisar as expressões linguísticas, a maioria dessas gramáticas começa pela estrutura, para, então, chegar chegar
ao seu significado ou à sua função. Essa é a abordagem semasiológica. Uma gramática onomasiológica (ou
funcional) começa pelos conceitos, operações e funções subjacentes à linguagem e analisa as estratégias e
construções que, em uma língua particular, são usadas para codificar as informações gramaticais. Essa é a
abordagem adotada pelos 5% restantes. Este desequilíbrio é lamentável, uma vez que os usuários consultam uma
gramática, tanto na qualidade de falante quanto na de ouvinte, mas apenas uma gramática funcional corresponde
ao ponto de vista do falante. Por isso, é importante que mais descrições linguísticas utilizem essa abordagem.
Uma das razões para ser tão raramente utilizada nos estudos linguísticos é porque não há uma tradição linguística
(filologica e estruturalmente orientada), no sentido de que não existe uma base científica para a abordagem
funcional. Este texto busca negar essa suposição. Há, até o momento, tanto uma base teórica sólida para uma
gramática funcional quanto um grande conjunto de domínios funcionais específicos para dar suporte a uma
descrição de base onomasiológica. Isso será ilustrado a partir do domínio funcional do nexo (combinação). É
dada especial atenção à relação de complementaridade entre a gramática funcional e estrutural.
KEYWORDS: Gramática Funcional; Gramática Estrutural; Gramaticografia.
Introdução2
O propósito desta contribuição é
- descrever a abordagem funcional na gramaticografia
- descrever como se compõe uma gramática funcional
- e justificar a necessidade dela frente à gramática estrutural.
Trata-se, pois, de uma questão de gramaticografia e, num sentido mais amplo, de
metodologia linguística. O foco da discussão não é, portanto, constituído por novos dados ou
novas generalizações empíricas. Ao contrário, com poucas excepções, vamos utilizar
exemplos familiares cuja análise não impõe qualquer problema para que possamos
concentrar-nos na maneira de apresentá-los com base na gramática funcional.
Onomasiologia e semasiologia
A língua associa operações e conceitos cognitivos e comunicativos com expressões
perceptíveis. Existe variação nessa associação em todos os níveis, dentro de uma língua
particular, mas também no nível interlingual, tanto na gramática como no léxico. Em termos
mais formais, o pareamento (mapping, em inglês) de expressão com conteúdo não constitui
1
Professor de Linguística Geral e Comparada da Universidade de Erfurt (Alemanha). Email:
[email protected]
2
Agradeço aos assistentes do SILF, sobretudo a Maria Helena de Moura Neves, as sugestões para melhorar este
texto, a Marcos Wiedemer (UNESP) por ter corrigido as minhas falhas de português e a Taísa Peres de Oliveira
por ter dado a forma final ao meu texto.
7
uma relação biunívoca e sim uma relação n : n. Portanto, uma gramática terá uma estrutura
diferente dependendo de se toma a estrutura da expressão como princípio de organização e
leva de uma expressão ao conjunto de conceitos e funções gramaticais, ou ao contrário usa o
mundo das operações e conceitos cognitivos e comunicativos como princípio de organização
e atribui, a cada elemento ou operação, um conjunto de expressões disponíveis na língua.
Embora o objeto da discussão seja a gramática funcional, terei que falar muito da
gramática estrutural também. Isto é uma consequência natural do fato de as gramáticas funcional e
estrutural serem complementares e se definirem uma por delimitação em relação à outra.
As duas perspectivas no léxico
Os termos ‘onomasiologia’ e ‘semasiologia’ foram introduzidos na lexicologia no
século 19 e são tradicionais. Voltarei à questão dos termos mais adiante. Um estudo
lexicológico que toma uma expressão – no caso típico, uma palavra – de uma língua como
ponto de partida e analisa os seus sentidos é um estudo semasiológico. Por outro lado, um
estudo que toma um conceito como ponto de partida e pergunta como esse se exprime na
língua em questão é um estudo onomasiológico. O diagrama apresenta as duas direções da
associação de expressões com conceitos, utilizando como exemplo o verbo inglês entertain.
D1 . Onomasiologia e semasiologia no léxico
Partindo-se dos conceitos, ou seja, em uma perspectiva onomasiológica, apresenta as
possibilidades de exprimir a situação de ‘X diverte Y’. Para tanto, o inglês promove, entre
outros, os verbos divert, entertain e amuse.
Partindo-se das expressões, ou seja, em uma perspectiva semasiológica, o diagrama
responde à questão do quê significa a expressão verbal X entertains Y. Os significados
possíveis são, entre outros os três apresentados em e ilustrados pelos exemplos :3
3 O sentido ‘X sustém Y’, ilustrado em .a, exprimir-se-ia mais comumente por maintain.
8
E1 .
a. Linda has to entertain her destitute brother.
b. Linda entertained the whole party.
c. Linda entertains strange hypotheses on Portuguese grammar.
Assim, o léxico semasiológico dá conta da polissemia de um lexema, mostrando como
este, dependendo do contexto, apresenta sentidos diferentes. Por outro lado, o léxico
onomasiológico dá conta da sinonimia entre todas as expressões que correspondem a um
conceito dado, mostrando como este toma formas diferentes dependendo de condições
contextuais.
As duas perspectivas na gramática
apresenta as duas direções de associação de expressão e conteúdo com base no
exemplo do genitivo inglês.
D2 . Onomasiologia e semasiologia na gramática
Na perspectiva onomasiológica, estamos considerando uma relação possessiva entre
um objeto possuído X e um possuidor Y, e estamos buscando as estratégias da gramática
inglesa para codificar tal relação. Tais estratégias são, entre outras, as quatro construções
esquematizadas na linha de base de , ilustradas pelos exemplos :
E2 .
a.
b.
c.
d.
The pen belongs to the teacher.
the pen of the teacher
the teacher’s pen
the teacher has a pen
Na perspectiva semasiológica, a questão são os sentidos ou as funções da construção
inglesa [ XNom [ of YNP ] ]. Essas incluem, entre outras, as quatro relações conceptuais
9
representadas na parte superior de (com indicação das funções do genitivo tradicionalmente
reconhecidas) e ilustradas, por ordem, pelos exemplos :4
E3 .
a.
b.
c.
d.
the top of the pen
the pen of the teacher
the process of grammaticalization
the teacher’s publications
O exemplo complica-se um pouco pelo fato de que o inglês possui dois genitivos.
O papel das duas perspectivas na lingüística
Como se vê, faz uma sensível diferença metodológica tomar um conceito ou uma
função como ponto de partida e investigar os recursos estruturais que os codificam na língua,
ou, ao contrário, partir de uma expressão e da sua estrutura e investigar os seus significados
ou funções. A primeira perspectiva é a onomasiológica, a segunda a semasiológica.
As duas perspectivas metodológicas têm relação às duas atividades linguísticas, a
produção e o entendimento da fala. De um ponto de vista sistemático, o locutor segue o
procedimento onomasiológico, já que começa com o que quer dizer, ou seja, os conceitos e as
operações cognitivos e comunicativos, e busca os meios de codificá-los na língua. O ouvinte,
ao contrário, segue o caminho semasiológico, porque o que lhe é dado é um texto, portanto
expressões, e a tarefa dele é de procurar-lhes os sentidos.
Na base da onomasiologia, está uma sistemática semântica, ou seja, um sistema de
conceitos, relações conceptuais e operações cognitivas e comunicativas. A estrutura genérica
dessa sistemática é universal e, em parte, até extralinguística, ainda que em níveis mais finos
de granularidade se ramifique nos significados e categorias gramaticais próprias de cada
língua. Do mesmo modo, na base da semasiologia, está uma sistemática estrutural, ou seja,
um sistema de unidades, relações e processos do meio expressivo; e essa também é
parcialmente universal e até extralinguística.
A distinção entre um dicionário semasiológico e um onomasiológico está firmemente
estabelecida na lexicografia. Todos nós temos dois volumes do nosso dicionário de inglês.
Quando escrevemos, tomamos o ponto de vista onomasiológico e nos servimos do volume
português-inglês, enquanto ao ler um texto, assumimos o ponto de vista semasiológico e
utilizamos o volume inglês-português. O volume português-inglês é um dicionário
onomasiológico do inglês, porque os lemas portugueses não nos interessam como unidades do
sistema português, mas os utilizamos somente como representantes dos conceitos que
queremos exprimir em inglês. O volume inglês-português é um dicionário semasiológico do
inglês, porque o que nos interessa nas definições prestadas não são as expressões e sim,
exclusivamente, o significado que representam. Em todo o caso, para um léxico de uma língua
estrangeira, a organização em dois volumes nos parece totalmente natural e até necessária.
Como é bem sabido, existem também dicionários monolíngues onomasiológicos e
semasiológicos. O renomado Thesaurus de Roget (1852) foi um dos primeiros dicionários
onomasiológicos já feitos. No Brasil, o dicionário analógico de Azevedo (1974) é bastante
difundido. Nesse tipo de dicionário, os verbetes estão ordenados em campos semânticos. Por
outro lado, um dicionário semasiológico deveria ser ordenado conforme uma sistemática
estrutural, quer dizer, segundo critérios morfológicos e fonológicos. Ainda que existem tais
dicionários, eles não são comuns. A maioria dos consulentes acha mais útil um dicionário
semasiológico cujas entradas estão ordenadas alfabeticamente.
4 Entende-se que .b é muito menos idiomático do que .c.
10
Gramática onomasiológica e semasiológica
Com a exceção de linguistas que elaboram teorias abstratas, aqueles linguistas que
descrevem línguas concordam em que o sistema significativo de uma língua tem duas seções,
o léxico e a gramática. Como se observa através da comparação dos diagramas e , a
gramática não se distingue do léxico por que as suas unidades não tenham significado e sim
por que possuem um significado mais abstrato. Portanto, a alternativa de se adotar uma
abordagem onomasiológica ou semasiológica faz sentido na gramática exatamente como no
léxico. Contudo, aqui encontramos uma diferença enorme entre as tradições lexicográfica e
gramaticográfica: enquanto ambos os dicionarios onomasiológico e semasiológico estão bem
estabelecidos tanto na metodologia da disciplina quanto no mercado editorial, a distinção
correspondente na gramaticografia é ou bem desconhecida ou não considerada relevante.
Aqui vale a pena uma pequena retrospectiva.
As primeiras gramáticas do mundo ocidental, as gramáticas gregas de Dionísio da
Trácia e Apolônio Díscolo, e as gramáticas latinas de Élio Donato e Prisciano, seguem
essencialmente um modelo semasiológico. Embora os conceitos gramaticais com que operam
sejam compostos de critérios semânticos e estruturais, a organização global dessas gramáticas
é puramente estrutural. Essa estruturação das gramáticas das línguas clássicas pode ser
entendida perfeitamente como uma consequência dos objetivos que levaram os usuários a
consultá-las: Essas obras estavam destinadas a pessoas que falavam uma variedade da koiné
ou do proto-românico e cuja tarefa era a de entender os textos clássicos, médio milênio mais
antigos. Só uma ínfima minoria tinha o propósito de escrever em grego ou latim clássico; e
ninguém tinha o propósito de falar essas línguas.
Essa perspectiva mudou na Idade Média. Agora todos os vernáculos diferiam tanto das
línguas clássicas que já ninguém se enganava acreditando que a sua língua materna fosse o
latim clássico. Por outro lado, havia, sobretudo na administração e jurisdição, nos monastérios
e nas universidades, um crescente número de pessoas que deviam escrever e até falar em
latim, já que essa era, no mundo ocidental, a única língua em que se escrevia e que era
utilizada na comunicação intercultural. Portanto, não é nenhuma coincidência o fato de os
modistas, aqueles escolásticos que se ocupavam da teoria gramatical, terem criado uma teoria
onomasiológica da gramática latina. É interessante observar que Tomás de Erfurt, em certo
sentido o aperfeiçoador dessa corrente linguística, critica por repetidas vezes os gramáticos
antigos pelos seus conceitos estruturais, insistindo que conceitos gramaticais devem ter uma
base puramente semântica.
Aqui se encerra a torrente de gramáticas que são consistentes quanto à alternativa
entre abordagem semasiológica e onomasiológica. As gramáticas das línguas europeias
escritas desde o início da modernidade, bem como as gramáticas das línguas faladas nas
colônias, compostas tipicamente por missionários, mesclam os dois modelos. A típica
gramática tradicional está subdividida em morfologia e sintaxe. A morfologia trata dos
paradigmas de flexão, a sintaxe das construções de dependência e do significado das formas
morfológicas. Até aqui, tudo conforme com o modelo semasiológico. Depois, e na medida em
que uma gramática é completa, de repente muda-se a perspectiva, e encontramos capítulos sobre
interrogação, negação, advérbios locais e temporais e orações causais e concessivas, todos
esses assuntos claramente semânticos. Isso significa que essas gramáticas confundem de
maneira incontrolada as abordagens semasiológica e onomasiológica. Esse tipo de gramática se
encontra até hoje em dia. O que é particularmente desconcertante é o fato de que, naquela corrente
gramaticográfica que se dedica às línguas minoritárias e que se chama tipológica, é bem aceita a
afirmação (que tipicamente figura na introdução do livro) de que já que não parece útil aderir a
um modelo formal de descrição, o autor oferece uma gramática de índole tradicional – e com isso
quer dizer, uma gramática que não obedece a nenhum sistema consistente.
11
O primeiro que reparou nesse estado de coisas foi o linguista alemão Georg von der
Gabelentz. Na sua introdução à linguística (1891), postulou uma gramática bipartida. O
primeiro sistema, chamado gramática analítica pelo autor, deve tomar o ponto de vista do
ouvinte ou leitor e explicar as construções, enquanto o outro sistema, chamado gramática
sintética, deve tomar o ponto de vista do falante ou escritor e descrever os recursos
expressivos que a língua lhe coloca à disposição. Na sua gramática chinesa, o autor levou essa
metodologia a cabo, comprovando com isso que uma gramática bipartida conforme esse
esquema é viável e útil. Tal ideia foi resumida pelo linguista dinamarquês Otto Jespersen,
porém depois não resultou muito frutífera.
Como é bem sabido, o estruturalismo americano declarou a necessidade de uma
gramática puramente estrutural. Muitas das gramáticas produzidas sob tal orientação, com
exemplar clareza as gramáticas tagmêmicas publicadas na década de 1960, não somente
observam uma sistemática puramente estrutural, mas também se negam – perfeitamente
obedientes à doutrina bloomfieldiana – a dar informação semântica alguma. Com isto passam
da medida, simultaneamente, em dois aspetos: o primeiro, porque uma gramática
exclusivamente semasiológica não serve ao falante ou escritor e é, portanto, incompleta; e o
segundo, porque uma gramática semasiológica não pode, de maneira alguma, ser
“assemântica”. Muito pelo contrário, a semasiologia, no entendimento dos linguistas do final
do século 19 e da primeira parte do século 20, é quase o mesmo que a semântica linguística,
vale dizer, uma semântica que, em vez de pressupor uma lógica de conceitos que busca na
língua, parte das expressões e as explica.
A ideia de que uma gramática deve ser puramente estrutural foi, como sabemos,
levada ao extremo pelo modelo da gramática gerativa, o qual, porém, não produziu descrição
linguística completa de quase nenhuma língua. A partir dos anos 1970, surge uma corrente de
linguística funcional que se incumbe da produção de gramáticas de línguas minoritárias.
Ainda que a maioria das gramáticas então produzidas se identificasse com as gramaticas ditas
“tradicionais” já mencionadas, podem-se citar ao menos algumas gramáticas
onomasiológicas. O Summer Institute of Linguistics iniciou a produção, nos anos 1970, de
uma série de gramáticas que deixaram de lado o modelo tagmêmico e se denominaram
‘discourse grammar’ (testemunho a homenagem Abraham et al. 1995), o nome utilizado então
em lugar de ‘functional grammar’.
Resumindo, então: Tanto uma gramática puramente estrutural como uma gramática
puramente funcional são parciais e devem complementar-se mutuamente. Uma gramática em
duas partes (como Lehmann 208ff) é necessária tanto por razões teóricas como por razões
práticas. As razões teóricas dizem respeito ao sistema que subjaz à organização da gramática
em capítulos e seções. Uma gramática deve tratar junto (numa mesma seção) o que é parecido
na língua. Porém, temos que optar por tratar junto ou bem o que é parecido semanticamente
ou bem o que é parecido formalmente. Isso nos força a descrever a língua com base em dois
sistemas independentes. As razões práticas concernem ao usuário. Uma gramática funcional é
inútil para o ouvinte e leitor, bem como uma gramática estrutural é inútil para o falante e
leitor. Esta última experiência tem sido vivenciada por todos os tipólogos que têm tentado
explorar gramáticas estruturais na sua pesquisa comparativa: visto que uma questão de
tipologia gramatical opera forçosamente com um denominador comum de natureza funcional,
para tal fim só serve uma gramática que ofereça esse ponto de vista. Boa parte das gramáticas
publicadas na época do estruturalismo resulta, assim, inúteis até para os profissionais, para
não mencionar os leigos.
Os termos ‘gramática onomasiológica’ e ‘semasiológica’ são altamente enrolados,
fáceis de confundir e pouco espalhados na disciplina. Já utilizei os termos alternativos,
‘gramática funcional’ e ‘estrutural’, muito melhor estabelecidos na linguística contemporânea.
12
Porém, temos que evitar dois mal-entendidos. Primeiro, as gramáticas funcional e
estrutural não se distinguem por tratarem uma das funções e a outra das estruturas da língua.
Ao contrário, ambas tratam de ambos os aspetos. A diferença é que a gramática estrutural
desenvolve uma sistemática estrutural e fornece as funções das construções, enquanto a
gramática funcional desenvolve uma sistemática funcional e converte as operações e
conceitos cognitivos e comunicativos em expressões com as suas estruturas formais. Em
segundo lugar, observamos, na linguística do meio século passado, uma oposição totalmente
estéril entre funcionalismo e formalismo. Um linguísta que pretende descrever a gramática
prestando atenção exclusiva às estruturas sem preocupar-se jamais com as funções
preenchidas por essas é simplesmente um mau linguista; e um linguista que pretende
pesquisar as funções da língua sem basear as suas teorias funcionais numa análise das
estruturas é igualmente um mau linguista. Portanto, se esta contribuição leva o título de
‘gramática funcional’, nenhuma prioridade dessa abordagem está implicada. Qualquer
gramática completa é tanto estrutural como funcional.
A gramática funcional
Enquanto as gramáticas que são ou se dizem estruturais não fazem falta, há
pouquíssimas gramáticas funcionais. Porém, algumas variedades da linguística funcional têm
produzido modelos de gramática funcional que se podem aplicar na descrição. Faço
referência, em particular, aos domínios funcionais preconizados, entre outros, por Talmy
Givón (1993) e Hansjakob Seiler (2000). A ideia que subjaz a esse conceito é a seguinte: O
total dos significados gramaticais transportados pelos formativos e as construções gramaticais
das línguas do mundo se deixa organizar num conjunto não demasiado grande de domínios
que têm certa coerência funcional. Esses são subordinados às duas funções mais gerais da
linguagem humana, a cognição e comunicação. O conjunto enumerado em parece satisfazer
às línguas conhecidas até hoje.
D3 . Domínios funcionais da linguagem
domínio funcional
subdomínios importantes
apreensão e nominação
sistemas de categorização, tipos de conceitos, individuação de objetos
modificação de conceito atribuição, aposição
referência
determinação (incl. dêixis), fora
possessão
possessão na referência, predicação possessiva, possessão e participação
construção do espaço
pontos de referência, relações locais, regiões espaciais, propriedades espaciais e
figurais de objetos
quantificação
quantificação na referência / na predicação
predicação
apresentação, existência/estado, caracterização
participação
controle e afeto, papéis de participante centrais e periféricos
orientação temporal
tipos de situação, aspectualidade, caracteres verbais e modos de ação; tempo
absoluto, relação temporal
contraste, comparação,
graduação
negação, comparação, graduação, intensificação
Nexo
reprodução de fala, orações de conteúdo, relações interproposicionais
estrutura informacional
dinamismo comunicativo, estrutura do discurso
ilocução e modalidade
afirmação, pergunta, exclamação, pedido e comando, exortação, obrigação, volição,
possibilidade, evidencialidade, modalização
13
Ao julgar a utilidade desse quadro, é necessário levar em mente que a associação de
funções e estruturas nas línguas é múltipla. Portanto, uma estratégia estrutural de uma língua
não se deixa necessariamente subsumir exaustivamente sob um dos domínios. Muito pelo
contrário, o caso normal será que uma estratégia sirva em mais de um domínio, preenchendo
várias funções simultaneamente ou alternativamente. Isto não é um ponto fraco do modelo,
mas ao contrário, está previsto nele.
Eis um exemplo que ilustra a questão: uma análise semasiológica do português vai
diagnosticar a construção [[X]Nom de [Y]SN], como em casa do João, e vai reconhecê-la também
em expressões como mãe do João, braço da estátua, ocupação do Iraque e muitas outras. Ora,
a relação semântica que liga X e Y difere nesses exemplos: em casa do João a relação é de
posse; em mãe do João é a relação de parentesco, em braço da estátua é a relação da parte ao
inteiro, e em ocupação do Iraque é a relação do paciente à ação, chamada tradicionalmente
genitivo objetivo. O domínio de possessão exposto acima abrange algumas dessas construções,
mas não todas. Exclui a construção de genitivo objetivo, porque a relação do paciente à ação
não é uma relação possessiva. Essa construção leva uma relação paradigmática à construção
transitiva do tipo (alguém) ocupa o Iraque, a qual não tem contrapartida nos outros exemplos.
De um ponto de vista onomasiológico, esta última construção pertence ao domínio de
participação. Portanto, as fronteiras entre os domínios funcionais - se realmente se trata de
fronteiras - podem separar construções estruturalmente semelhantes.
Por outro lado, o domínio de possessão abrange também as predicações possessivas,
como em o João tem uma casa, a casa é do João. Essas não são construções nominais como
as anteriores e sim verbais. Do ponto de vista estrutural, pertencem a outro capítulo da
gramática. Do ponto de vista funcional, porém, cabe observar que a relação de posse que
existe entre o João e a casa é exatamente a mesma nas expressões casa do João, o João tem
uma casa e a casa é do João. Visto que o que constitui o domínio funcional da possessão é a
natureza da relação entre duas entidades, ele abrange todas essas construções. E mais uma
vez, é verdade que existem relações paradigmáticas entre elas. Por exemplo, a casa do João
transforma-se em a casa que o João tem. Assim, a gramática onomasiológica faz passar pela
mesma fieira construções que podem ter pouco a ver uma com a outra sob um ponto de vista
estrutural, mas o faz com razão e controle metodológico.
Vários linguistas que se localizam na tradição estruturalista acham difícil aceitar uma
descrição onomasiológica. E essa é, sem dúvida, a razão por que há muito mais gramáticas
semasiológicas do que onomasiológicas. Essa desconfiança se explica provavelmente pelo
fato de os critérios de uma análise onomasiológica serem menos óbvios. Porém, os critérios
na análise gramatical são, em geral, os mesmos que na análise lexical: da mesma forma que o
léxico onomasiológico traz todos os lexemas semanticamente relacionados com um conceito
base, e, sobretudo, todos os sinônimos, a gramática onomasiológica traz todas as construções
semanticamente relacionadas que mantêm alguma relação paradigmática entre si. Assim, as
transformações, como modo de formalizar as relações paradigmáticas no nível sintático
adquirem um papel metodológico importante na gramática funcional, afastando o perigo de
arbitrariedade.
O quadro aqui não pode ser justificado nos seus detalhes e serve somente para mostrar
o contexto no qual se enquadra o domínio de nexo, domínio esse a ser analisado um pouco
mais a fundo.
Gramática do período composto
Pressupostos
O campo gramatical a ser brevemente analisado é delimitado pelos dois procedimentos
metodológicos. Do ponto de vista estrutural, o objeto é a frase complexa, enquanto sob o
14
ponto de vista funcional, é a proposição complexa. Uma frase complexa é uma frase que
contém mais de uma forma verbal. Esta definição inclui, naturalmente, as construções que
contêm mais de uma oração, mas exclui as formas verbais perifrásticas, já que cada uma delas
é uma só forma verbal. Uma proposição complexa é aquela que abrange mais de uma
proposição. Vista a associação múltipla entre estruturas e funções, esses dois conceitos não
cobrem,
brem, naturalmente, o mesmo campo de fenômenos. Por exemplo, uma frase clivada como
é complexa sob o ponto de vista estrutural, mas não cabe no domínio funcional de nexo, já
que não há nenhuma relação interproposicional
interprop
entre as duas orações.
E4 .
É assim que se faz.
E por outro lado, a frase de contém o sintagma nominal fraco apoio; mas
semanticamente, grupos carnavalescos não lamentam um apoio e sim lamentam o fato de que
o apoio seja fraco.
E5 .
Grupos carnavalescos lamentam fraco apoio prestado pelo empresariado
(http://www.portalangop.co.ao/motix/pt_pt/noticias/lazer cultura/2011/2/9 …)
(http://www.portalangop.co.ao/motix/pt_pt/noticias/lazer-e-cultura/2011/2/9
A esse sintagma nominal subjaz, pois, uma proposição. Disso, segue-se
segue que nem tudo
o que apresenta complexidade sintática pertence ao domínio de nexo, e igualmente, nem tudo
o que exprime uma proposição complexa é uma frase complexa.
Frase complexa
Tendo em vista o propósito desta contribuição, não vamos aprofundar a abordagem
semasiológica
emasiológica e nos limitaremos à estrutura geral da gramática da frase complexa. Os
parâmetros que articulam esse capítulo da gramática são conceitos puramente estruturais. Os
principais são os apresentados em :
D4. Gramática estrutural da frase complexa
15
Esses parâmetros produzem uma classificação cruzada de forma a permitir uma
descrição semasiológica fina das frases complexas.
Semasiologia da construção de movimento com propósito
A construção que nos vai servir de exemplo para ilustrar a abordagem dupla é a
construção de movimento com propósito (motion cum purpose, em inglês), ilustrada em .5
E6 .
A Linda veio trabalhar conosco / na cidade.
Essa construção tem a estrutura mostrada em :
D5. Construção de movimento com propósito
[ [ A ]V.intr ( [ B ]SAdv ) [ [ C ]V.inf ( D ) ]SV.inf
Explicando: A construção é um sintagma verbal (SV) complexo que contém o verbo
principal (finito ou infinito) (A) e um SV dependente infinitival (SV.inf). Repare-se que não
há nenhuma preposição que introduza esse SV. A é um verbo de movimento orientado.6 No
caso mais simples, é um dos verbos ir e vir, como em e :
E7 .
Após ser liberado fui para casa repousar
(www.recantodasletras.com.br/homenagens/2911611)
Outros verbos de movimento orientado encontram-se raramente na posição de A.
Assim, o verbo sair aparece em frases como .
E8 .
quando chego da escola meio dia, ela já saiu trabalhar
(feelingsjust.tumblr.com/.../vou-contar-as-voces-uma-coisa-que-vi-hoje-quando-eu)
Mas ao se pesquisar, no Google, a incidência da colocação saiu trabalhar, observa-se
que é encontrada ao mais 113 vezes (19/05/2011),7 enquanto a colocação saiu para trabalhar
é encontrada 120.000 vezes. Do mesmo modo, o Google menciona 24 provas de subiu cantar,
como em , mas 2.310 exemplos de subiu para cantar.
E9 .
nosso amigo Anderson Nogueira estava presente e subiu cantar 3 musicas com o loirinho
(www.youtube.com/user/danimosena)
Outros verbos de movimento orientado, como entrar e baixar, não são usados nessa
construção.
B em é um local que representa a meta do movimento. Deve ser simples, como em e :
5 Embora esta construcão esteja firmemente estabelecida no sistema do português (como, aliás, no de muitas
outras línguas), não parece estar igualmente firmemente estabelecida nas grámaticas dessa língua.
6 Os verbos de movimento orientado são uma subclasse gramaticalmente relevante da classe lexical dos verbos
de movimento, a qual abrange também verbos de movimento não-orientado como vadear e nadar.
7 Digo “ao mais” porque não analisei os exemplos encontrados, embora consciente de que o número inclui
vários irrelevantes à nossa construção. (O mesmo vale, naturalmente, para todas as cifras citadas.) No
IBORUNA, encontra-se um único exemplo: o outro sai passeá(r) c’os filho e depois... o carro acaba gasolina ...
16
E10
O capelão que veio a casa dar-lhe a extrema unção … conhecia-o ...
(ultramar.terraweb.biz/.../Imagens_CTIG_HumbertoDuarte_AHomenagem.htm)
C é um verbo transitivo ou intransitivo em infinitivo, que pode ser acompanhado dos
seus dependentes D.
Conforme dito, A é um verbo intransitivo. O uso de verbos de transporte orientado,
como trazer e levar, é muito mais restringido. Assim, no Google se encontram 68 exemplos
de levou trabalhar, como em , mas 11.900 de levou para trabalhar.
E11
Eu tinha 13 anos e meu padrasto me levou trabalhar como boy no Cartório de Notas
(http://www.atibaianews.com.br/index2.php)
As mesmas proporções valem para trouxe trabalhar como oposto a trouxe para
trabalhar. Assim, pode-se dizer que a construção de movimento com propósito está
firmemente estabelecida com os verbos básicos de movimento orientado, que são os verbos ir
e vir. Alguns outros verbos de movimento orientado, como sair e subir, e os verbos básicos
de transporte orientado, levar e trazer, aparecem nessa construção muito raras vezes e
exclusivamente em variedades não-estândar.8 Por fim, cabe mencionar que a construção de
movimento com propósito, com o verbo de movimento orientado mais básico, está na origem
da gramaticalização do futuro perifrástico com ir.
A descrição semasiológica da construção em termos do sistema será, pois, a seguinte:
Uma oração subordinada q segue a uma principal p. Q é uma oração infinita, reduzindo-se a um
sintagma infinitival. O verbo principal é um verbo intransitivo básico de movimento orientado,
em segunda linha um verbo transitivo básico de transporte orientado. A posição de sujeito deixada
livre pelo infinitivo está controlada pelo sujeito do verbo principal se esse é intransitivo, e pelo
objeto direto dele se é transitivo. Q segue p assindeticamente. A construção significa que o
referente do sujeito de p se move para participar, ou que transporta o referente do objeto direto
para que esse participe, na situação designada por q. Esta última frase da descrição semasiológica
faz referência à seção da gramática onomasiológica a que passamos agora.
Nexo
Passando agora à análise funcional dessa construção, encontramo-nos no domínio
funcional de nexo. Os parâmetros que estruturam este capítulo da gramática são conceitos
puramente funcionais, mais precisamente, cognitivos. Como a abordagem onomasiológica é
uma passagem a meios de expressão, e essa não é um mapping direto e sim uma transição
gradual, no seu percurso vão aparecendo categorias gramaticais específicas com a sua face
estrutural. Começamos com a visão geral do domínio funcional de nexo, que aparece em .
D6. Domínio funcional de nexo
8 É possível que sejam próprios da linguagem sincopada dos blogs em internet, como opina Maria Helena de
Moura Neves.
17
I. Relações interproposicionais
A. Reprodução de discurso
i. Discurso direto
ii. Discurso indireto
B. Relações intrínsecas
i. Declarativa indireta: argumento de predicado fasal, modal, de comunicação,
percepção, cognição, emoção, volição, manipulação
ii. Interrogativa indireta
iii. Jussiva indireta
C. Relações extrínsecas
i. Relação lógica
a) Coordenação lógica: conjunção, disjunção, explicação
b)Condição
ii. Relação concreta: local, temporal, modal, causal, final, concessiva,
contrastiva, comparativa
II. Interdependência de proposições
A. Interdependência de referência temporal e aspectualidade
B. Interdependência de referência de participantes
C. Estatuto informacional das proposições
Aqui não vamos poder explicar todos esses conceitos, e, em vez disso, seguiremos a
hierarquia conceptual de cima para baixo para chegar à construção de movimento com
propósito. Uma dependência semântica entre duas proposições pode ser constituída ou bem
por uma relação interproposicional entre elas ou bem pelo fato de que certas propriedades de
uma delas dependem de propriedades da outra. Isto nos dá a divisão principal do domínio de
nexo. A interdependência entre proposições gerada por compartilharem certos componentes
não nos vai ocupar mais aqui. As relações interproposicionais são de três tipos. O primeiro
consiste da relação metalinguística levada pela oração principal ao discurso citado. No resto,
cabe distinguir entre relações interproposicionais intrínsecas e extrínsecas. O critério da
distinção reside na questão de se a relação interproposicional é inerente a uma das
proposições ou fica fora de ambas. No primeiro caso, uma das proposições é tipicamente um
argumento do predicado da outra. Esse subdomínio trata, pois, de predicados de atitudes
proposicionais. A relação de reprodução de discurso poderia parcialmente subsumir-se a esse
conceito. No segundo caso, a relação entre as duas proposições é estabelecida por um relator
que se acrescenta a uma ou ambas delas. Este relator pode ou não ser codificado em forma de
conectivo ou conjunção.
As relações extrínsecas, por sua vez, são de dois tipos, lógicas e concretas. As relações
lógicas não têm nenhum conteúdo semântico e antes dizem respeito ao estatuto das
proposições como asseridas, pressupostas ou hipotéticas. As relações concretas são aquelas
que envolvem os conceitos de espaço, tempo, causa, contraste etc. São estabelecidas por
relatores interproposicionais. Um relator interproposicional é um operador bivalente
assimétrico. Na sua vaga rectiva, toma uma das proposições como argumento, formando com
esta um sintagma que modifica a outra proposição. Por exemplo, em ‘p porque q’, a
conjunção ‘porque’ se combina com q, formando assim uma proposição causal que modifica
p. Nisso, um relator proposicional funciona como um relator de caso.
18
Desse modo, um relator proposicional converte a proposição com que se combina num
ponto de referência para a proposição modificada. A proposição de referência é subordinada,
enquanto a outra é a proposição principal. Muitos relatores têm contrapartidas inversas de
maneira que o falante pode escolher a qual das proposições atribuir o estatuto subordinado.
Por exemplo, em vez de ‘p depois de que q’ podemos ter ‘q antes de que p’; e em vez de ‘p
porque q’ podemos ter ‘q de modo que p’. A escolha depende de considerações de estrutura
informacional, coesão textual e relevância/ênfase.
A assimetria entre as duas proposições numa relação interproposicional concreta pode
refletir-se na estrutura sob forma de uma construção em que a proposição de referência é
codificada por uma oração subordinada enquanto a proposição principal é codificada como
oração principal. Para maior clareza, os conceitos de relações interproposicionais específicas
definidas abaixo serão ilustrados por tais frases complexas assimétricas. Porém, cabe ter em
mente que toda relação interproposicional pode também ser codificada por orações
coordenadas. Os relatores interproposicionais coordenativos diferem semanticamente dos
subordinativos por terem a sua vaga rectiva ocupada por uma referência dêitica ou anafórica à
oração subordinada. Por exemplo, em vez de p porque q podemos ter q, portanto p. A
conjunção coordenativa portanto contém o demonstrativo tanto, que ocupa a posição rectiva
do relator interproposicional por e faz referência a q.
Onomasiologia da construção de movimento com propósito
Numa relação causal da forma ‘p causa q’, p é a causa ou a razão de q, e q a
consequência ou o resultado de p. Em , a subordinada especifica a razão da principal.
E12
A Linda afogou-se porque não via nenhum futuro para a linguística.
O motivo de uma ação pode ser um propósito que o agente persegue, como aparece em .
E13
A Linda afogou-se porque queria que a lagoa transbordasse.
Neste subtipo de período causal, a oração principal é agentiva, quer dizer, tem a
estrutura semântica ‘A faz P’, enquanto a subordinada tem a estrutura semântica ‘A quer q’.
Ora, a configuração ‘[A faz P] é causado por [A quer q]’ subjaz à relação interproposicional
chamada final. Algumas línguas têm conjunções subordinativas cujo significado compreende
justamente o componente sublinhado dessa configuração, como é o caso do português para.
Isto aparece comparando-se com .
E14
A Linda afogou-se para que a lagoa transbordasse.
A relação paradigmática entre e pode descrever-se por uma transformação. Isso
mostra que a relação final está baseada na relação causal combinada com o conceito de
volição. Ora, dada uma relação ‘p causa q’, aquele que controla p também controla,
mediatamente, q. É, portanto, uma configuração natural que p e q tenham o mesmo agente,
como é o caso em .
E15
A Linda afogou-se porque queria chatear seu marido.
19
A relação final com sujeito idêntico é tão básica que é gramaticalizada em muitas
línguas.9 A construção dedicada a essa configuração aproveita o fato de haver controle
anafórico de sujeito através de orações. Em tal configuração, o predicado da subordinada pode
ser um infinitivo, como em .
E16
A Linda afogou-se para chatear seu marido.
Mais uma vez, a relação paradigmática entre e é regular e, portanto, suscetível de
uma descrição transformacional. Ora, numa situação em que A faz P para fazer Q, a ação P
mais básica é um movimento de A. E vice-versa, vista a essencial inércia humana, se alguém
se move, o faz com um propósito. Portanto, uma configuração frequente da relação
interproposicional final é o movimento com propósito, como aparece em :
E17
A estrela subiu ao palco para cantar.
A construção de é a mesma de . Em outras palavras, ainda que exprima um
movimento com propósito, não apresenta nenhuma construção particular que difira do
infinitivo final visto em . Contudo, podemos restringir mais ainda as condições: o movimento
do agente é um movimento genérico, quer dizer, não implica mais que a oposição básica de
dêixis espacial, como em e :
.
.
A Linda veio trabalhar conosco / na cidade.
Após ser liberado fui para casa repousar
Especificando assim cada vez mais as condições semânticas que valem para a relação
final entre p e q, chegamos finalmente ao movimento com propósito propriamente dito. Este
representa, portanto, uma combinação de proposições ‘q causa p’ tal que p é ‘A se desloca a uma
meta’ e q é ‘A quer participar numa certa situação’. Tal combinação de proposições codifica-se
pela construção de movimento com propósito, esquematizado em . Esta última frase da descrição
funcional faz referência ao capítulo da gramática estrutural () que vimos antes.
Conclusão
Quem compara os dois quadros e , da gramática estrutural da frase complexa e do
domínio funcional de nexo, se dá conta imediata de que os conceitos desta última abordagem
são bem familiares da nossa gramática escolar e até das descrições linguísticas de línguas
minoritárias, enquanto os conceitos da gramática estrutural faltam quase por completo nesse
campo da gramática. Assim, o exemplo do período composto mostra com particular claridade
quão inconsistentes são as nossas gramáticas tradicionais: embora sejam preponderantemente
semasiológicas na sintaxe nominal e verbal, rependinamente mudam de perspectiva na
gramática sentencial, assumindo uma abordagem onomasiológica.
Ao mesmo tempo, vemos que o preconceito estruturalista conforme o qual a base
cognitiva e comunicativa da gramática onomasiológica não possa ter fundamento na
linguística e só poderia ser algo de lógica carece de justificação. O método para constituir os
domínios funcionais é a comparação tipológica. E a base metodológica para subsumir
construções diferentes sob um domínio funcional são as relações paradigmáticas regulares que
essas levam entre si.
9 V. Moura Neves 2011: 888 para o português.
20
Assim concluímos que uma gramática completa tem duas partes complementares, uma
que parte das funções cognitivas e comunicativas e mostra como essas se preenchem na
língua em questão por construções gramaticais, e outra que parte das expressões com a sua
estrutura e mostra quê significados têm e quê funções preenchem.
FUNCTIONAL GRAMMAR
ABSTRACT: Although there is a well-known model of linguistic description by the name of the title of this article
(Functional Grammar), the title actually refers to a grammaticographic concept in a wider sense which is
essentially independent of particular models of description. Given the complementary approaches to linguistic
analysis and description, viz. the onomasiological alias functional and the semasiological alias structural
approach, 95% of the grammars published to this day are structural grammars. This is true both of the purely
structural grammars in the tradition of American structuralism, including Generative Grammar (to the extent it
has produced grammatical descriptions), and of grammars that do include the meaning and function of the
constructions described. The far majority of these grammars start from the structures of linguistic expressions,
analyze these and thus arrive at their meaning or function. That is the semasiological approach. An
onomasiological (or functional) grammar starts from the concepts, operations and functions underlying
language and seeks the strategies and constructions which in the particular language code and fulfill them. That
is the approach taken by the other 5%. This imbalance is unfortunate, because users consult a grammar both in
their capacity as speakers and as hearers; but only a functional grammar corresponds to the point of view of the
speaker. It is therefore important that more linguistic descriptions take this approach. One of the reasons why it
is so seldom taken is that there is an inveterate tradition in (both philologically and structurally oriented)
linguistics to the effect that a scientific basis for a functional approach does not exist. The lecture will falsify this
assumption. There is, by now, both a sound theoretical basis for a functional grammar and a large set of specific
functional domains which are known in sufficient detail to base an onomasiological description on. This will be
illustrated from the functional domain of nexion (whose structural counterpart is complex sentence formation).
Particular attention is paid to the complementary relationship between functional and structural grammar.
KEYWORDS: Functioal Grammar; Structural Grammar; Grammaticographic.
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21
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SEILER, Hansjakob 2000, Language universals research. A synthesis. Tübingen: G. Narr
(Language Universals Series, 8)
22
Linguística funcional: princípios, temas, objetos e conexões
Maria Helena de Moura NEVES10
RESUMO: O estudo dedica-se a traçar um panorama de propostas funcionalistas das diferentes vertentes, a partir
da verificação dos princípios funcionalistas que estariam em relevância, nos diferentes casos. Entende-se que por
aí pode ficar revelado o caminho que leva ao abrigo diferenciado de determinados temas e de determinados
objetos de análise, e, muito especialmente, o caminho que leva ao aproveitamento mais efetivo, em cada
proposta, de determinadas conexões com outros campos de conhecimento.
PALAVRAS-CHAVE: Funcionalismo; Deslizamentos categoriais; Dicionário e gramática.
[As abordagens funcionalistas] se caracterizam, antes de tudo e principalmente, pela
visão de que a linguagem deve ser entendida, em primeiro lugar como um meio de
comunicação humana em contextos cocioculturais e psicológicos, e de que esse fato
deve determinar nossa consideração de como a linguagem deve ser modelada.
(BUTLER, Functional approaches to language, 2005)11.
Introdução
Escolhi tratar aqui, daquilo que tem representado, nas minhas atividades de pesquisa e
ensino, o abrigo teórico em que me movo, e que tenho indicado como um Funcionalismo sem
bandeira nem filiação exclusiva.
Compete-me, então, esboçar exatamente o que o título desta conferência registra: os
princípios que me movem, os temas que ressaltam, os objetos de escolha de análise e as
conexões que naturalmente se delineiam, pela própria escolha das propostas.
De tudo isso, como exposição, farei um apanhado, e oferecerei como amostra uma
atividade a que me tenho dedicado e de que pouco tenho falado em minhas publicações,
atividade na qual as escolhas de princípios, temas, objetos e conexões ficam patentes. Faço-o
especialmente para dizer que, também nela, diferentemente do que se poderia pensar, são
princípios funcionalistas que guiam minhas decisões e minhas ações.
Trata-se da atividade de elaboração de dicionários em que me tenho envolvido, dentro
de uma equipe, na UNESP de Araraquara, com publicação de três obras, em 1990, 2002, 2004,
respectivamente, e com uma obra (um thesaurus) em elaboração12.
Quero justamente dar uma amostra do que representa, do ponto de vista teórico, buscar
ver na elaboração de dicionários uma explicitação da gramática da língua (em função), ou
seja, formular e registrar informações de natureza dicionarística, mas com a nítida noção de
que o que se está pretendendo registrar é uma lexicogramática dos itens. Isso significa
entender que, vistos no ponto de partida, a formulação e o registro de informações de natureza
dicionarística são uma tradução lexicográfica de resultados de sentido captados no uso, e daí
10
UPM - Universidade Presbiteriana Mackenzie, Centro de Comunicação e Letras, Programa de Pós-Graduação
em Letras; UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquista Filho, Câmpus de Araraquara, Faculdade
de Ciências e Letras, Departamento de Linguística. Araraquara-SP, Brasil. CEP: 14801-308. E-mail:
[email protected].
11
Tradução minha de: Functionalist approaches [....] are characterised first and foremost by the claim that
language should be seen primarily as a means of human communication in sociocultural and psychological
contexts, and that this fact must determine our view of how language should be modelled. (BUTLER, 2005, p. 4).
12
Eu poderia ainda falar de outra equipe, a que fez o primeiro Dicionário grego-português, em 5 volumes,
publicados sucessivamente em 2006, 2007, 2008, 2009 e 2010, de cuja coordenação participei, juntamente com
duas colegas da UNESP, e em cuja elaboração também atuei.
23
traduzidos para formulações abrigáveis em um dicionário, que são sempre tidas como
informações sobre itens, não sobre construções, como em uma gramática.
Além disso, vou-me deter mais especialmente nas conexões, porque é por elas que
chego mais limpidamente à questão de indeterminação de fronteiras na gramática, o ponto que
mais ficará em evidência no exame de usos que farei, em contraponto às apresentações
dicionarísticas que aqui entrarão como amostra de como as obras lexicográficas estão
comprometidas com a gramática.
Princípios
Quando se fala de descrição da língua em uso, de língua em função, fica implicado
que a consideração das estruturas lingüísticas se pauta pelo que elas representam de
organização dos meios linguísticos que expressam as funções a que serve a linguagem.
Nessa linha, são lições básicas de uma gramática de direção funcionalista, como
aponto em Neves (2006):
1) A linguagem não é um fenômeno isolado, mas, pelo contrário, serve a uma variedade de
propósitos (Prideaux, 1987), e, portanto tem motivações: há uma competição de forças
(externas e internas à língua), que, vindas de diferentes direções e possuindo natureza
diferente, buscam equilibrar a forma da gramática.
2) A língua (e sua gramática) não pode ser descrita nem explicitada como um sistema
autônomo (Givón, 1995), imune a uma relação com fatores externos de ativação: embora o
sistema lingüístico exiba algum grau de arbitrariedade, ele se ativa motivado por fatores
externos (e de mais de um tipo).
3) As formas e os processos da língua (a gramática) são meios para um fim, não um fim em si
mesmos (Halliday, 1994): na atividade bem-sucedida, os fins são os correlatos das
motivações.
Nesses três princípios entra a importância das motivações de uso e das necessidades
comunicativas, às quais voltarei adiante, com uma sugestão em figuras que elaborei.
Isso é o que estará na base da amostra de análise de entradas de dicionários que vou
oferecer.
Temas
Subordinados a esses princípios, vêm os temas de uma consideração funcionalista da
gramática13:
1) relações entre discurso e gramática (porque o discurso conforma a gramática, mas
principalmente porque ele não é encontrável despido da gramática);
2) liberdade organizacional do falante, dentro das restrições construcionais (porque o falante
processa estruturas regulares, mas é ele que faz as escolhas que levam a resultados de
sentido e a efeitos pragmáticos);
3) distribuição de informação e relevo informativo (porque os diversos eventos têm,
inerentemente, diferente importância comunicativa, mas é o falante que lhes confere
relevo, segundo seus propósitos);
4) fluxo de informação e fluxo de atenção (porque no discurso há sempre uma informação
que flui, mas é o falante que dirige, dentro de um ponto de vista, o fluxo de atenção que
“empacota” a informação, para apresentá-la ao ouvinte);
Fica assumida a existência das seguintes propriedades na organização gramatical14: (i)
caráter não-discreto das categorias; (ii) fluidez semântica, com valorização do papel do
13
A base é Neves (2006, p. 17).
24
contexto; (iii) gradualidade das mudanças e coexistência de etapas; (iv) regularização,
idiomatização e convencionalização contínuas.
Conexões
Considerados tais princípios e tal natureza dos temas que se oferecem à incursão do
pesquisador, pode-se entender que uma teoria funcional seguramente se assume em conexão
com dois outros campos teóricos: o cognitivismo e o socioculturalismo. Com a primeira
conexão (cognitivista) têm especial ligação, por exemplo, as chamadas Gramática funcional
(FG/GF), Gramática discursivo-funcional (FDG/ GDF), Gramática de papel e referência
(RRG)15, bem como o Funcionalismo da Costa Oeste (de Givón e outros). Com a segunda
conexão (socioculturalista) tem especial ligação a Gramática sistêmico-funcional (SFG/GSF).
Nas vinculações com essas outras duas teorias, chegam algumas escolas / autores a
desviar para uma quase fusão ou combinação de seu funcionalismo com tais propostas,
embora seja evidente, por exemplo, que (como mostra Butler, 2005) teorias cognitivistas
como a Gramática cognitiva ou uma Gramática das construções (também de base
cognitivista), têm suportes epistemológicos e assunções básicas que diferem das
funcionalistas, indo em busca de metas e respostas diferentes.
As conexões, entretanto são evidentes:
1) Partindo da conexão com o cognitivismo – mas sempre abrigando as relações com as
determinações situacionais / socioculturais – chega-se à noção de que a gramática inclui o
embasamento cognitivo das unidades lingüísticas, o que se dá no conhecimento que a
comunidade tem a respeito da organização dos eventos e de seus participantes (Beaugrande,
1993).
2) Partindo da conexão com o socioculturalismo – mas sempre abrigando as determinações
do domínio cognitivo – chega-se à noção de que há um componente conceptual como força
condutora por trás do componente gramatical, entretanto a gramática é susceptível às pressões
do uso (Du Bois, 1993), ou seja, às determinações do discurso (Givón, 1979b), visto o
discurso como a rede total de eventos comunicativos relevantes (Beaugrande, 1993). Por aí,
fica estabelecido que a gramática se resolve no equilíbrio entre forças internas e forças
externas ao sistema (Du Bois, 1985), e essas forças externas são tanto as cognitivas como as
socioculturais16.
Objetos
Nesta direção das reflexões, seleciono três objetos de análise17:
1)
motivação icônica e competição de motivações (porque as forças externas ao sistema
interagem com as forças internas, em contínua busca e manutenção de equilíbrio); é o que
explorarei nos gráficos 2 e 3;
2)
gramaticalização, e suas bases cognitivas (porque a atividade do discurso pressiona o
sistema, chegando a reorganizar o quadro das estruturas lingüísticas, embora dentro de
regularidades previsíveis); é o que explorarei no gráfico 1;
3)
fluidez de categorias, e prototipia (porque, no lento processo de extensão de membros
de uma categoria, há uma constante alteração de limites, com redefinição de protótipos).
14
Ver Neves (2002, p.176).
Van Valin & LaPolla, 1997, p. 3 dizem que o estudo do uso da língua em diferentes situações sociais não é
uma prioridade.
16
Ver Neves (2006, p.16).
17
A base é Neves (2006, p.20-24).
15
25
Para o que acabo de apontar quanto à fluidez de categorias (o objeto de estudo 3),
trago, mais adiante, as indicações da análise ilustrativa que escolhi fazer a partir de
dicionários gerais de língua, particularmente, da língua portuguesa.
Por outro lado, para o que apontei nos objetos de estudo 1) e 2) trago, a seguir, três
esquemas ilustrativos daquilo que representa:
a) o DINAMISMO DA GRAMÁTICA, mostrado pela gramaticalização (esquema 1, logo a
segui);
b) a ATIVAÇÃO DA GRAMÁTICA, mostrada pela motivação icônica e pela competição de
motivações (esquemas 2 e 3, na sequência).
26
Explanando:
Partindo-se da linguagem como negociação entre os interlocutores (novamente com
fundamento nas mais básicas lições funcionalistas), fica ela entendida como resultante das
motivações de uso somadas às necessidades comunicativas. Esse quadro desemboca
exatamente no acionamento das duas categorias que respondem a essas motivações e a essas
necessidades: de um lado, INFORMATIVIDADE, de outro, ECONOMIA.
São características da INFORMATIVIDADE, no esquema registrado, descendo-se pela
esquerda:
aumento na forma fônica;
aumento da complexidade;
maior dispêndio de tempo no enunciado;
relação (mais) direta entre forma lingüística e estrutura da experiência.
Em correlação negativa, são características da ECONOMIA, no esquema registrado,
descendo-se pela direita:
redução da forma fônica; 
perda de complexidade; 
rapidez do enunciado; 
relação mais frouxa entre forma linguística e estrutura da experiência. 
Ora, relacionados a essas quatro características estão estes fatores (no centro),
respectivamente:
frequência de uso;
existência de marcas;
velocidade de processamento;
grau de iconicidade.
Reguladas por esses quatro fatores as quatro características chegam aos seguintes
resultados (à direita), respectivamente:
27
A frequência de uso leva a:
clareza, quanto à INFORMATIVIDADE,
e rotinização, quanto à ECONOMIA;
A existência de marcas leva a
expressividade, quanto à INFORMATIVIDADE,
e regularização, quanto à ECONOMIA;
A velocidade de processamento leva a
amliação do contexto, quanto à INFORMATIVIDADE,
redução do contexto, quanto à ECONOMIA;
A iconicidade leva a
maior transparência, quanto à INFORMATIVIDADE,
e maior opacidade, quanto à ECONOMIA.
E, afinal, INFORMATIVIDADE se liga a maior elaboração e a expressividade, enquanto
ECONOMIA se liga a simplificação e a normalidade, tudo isso dando um mapa equilibrado do
uso da linguagem para responder a motivações e a necessidades comunicativas.
Motivações e/ou necessidades (como desejo de clareza, desejo de expressividade,
busca de rotinização, busca de regularização, redução ou ampliação de contexto, obtenção de
maior transparência ou de maior opacidade) facilmente serão encontradas no exame das
diversas variações que os enunciados exibem. Por exemplo, muito disso se pode ver na
criação de novas locuções conjuncionais adverbiais: mais claras e mais expressivas, menos
rotinizadas e menos regularizadas, mais transparentes do que os já gastos itens gramaticais
que são as conjunções simples (por exemplo, um depois que, um logo que, um assim que em
relação a um quando). Também muito disso se pode ver na continuação do processo de
gramaticalização de certas locuções conjuncionais adverbiais que, já num determinado
momento, se aproximam de valores mais neutros de conjunções simples, mostrando-se mais
opacas, mais reduzidas, mais regulares, mais rotineiras (o caso, por exemplo, do porque, mais
reduzido e mais opaco do que qualquer locução condicional causal.
Afinal, fala-se de gramática, mas, diferentemente do que muitas vezes se tem
entendido, fala-se confortavelmente de discursividade (de um lado) e de determinações
cognitivo-perceptuais (de outro lado) –“conexões” que invoquei –, justamente aquilo que
realmente nos ensina o trato com a análise do uso lingüístico.
Um outro modo de mostrar o processamento está no ESQUEMA 2, a seguir:
28
Explanando:
O centro do esquema mostra um círculo vicioso (e ao mesmo tempo virtuoso) em que
informatividade e economia, duas qualidades da linguagem, se combinam em contínuo no uso
lingüístico, o que resulta do fato de que, canonicamente, de um lado (ver à esquerda, no alto)
economia elevada representa baixa informatividade, e de outro lado (ver à direita, no alto)
informatividade elevada representa baixa economia. O primeiro caso (à esquerda) leva à
busca de reforço (para a informação) e o segundo caso (à direita) leva à busca de desbaste (na
informação). Ou seja, o que poderia constituir resultado negativo da alta informatividade (que
é a baixa economia) corrige-se, fica compensado (no centro, abaixo) com a própria economia,
com a busca de desbaste; e, por outro lado, o que poderia constituir resultado negativo da alta
economia (que é a baixa informatividade) corrige-se com a própria informatividade, com a
busca de reforço, o que acaba por representar correção e compensação (ver ao alto), ou seja,
compatibilização e equilíbrio.
29
Nos dois esquemas apresentados se envolve a ICONICIDADE, que é, afinal, a própria
determinação cognitiva dos processos de levam a variação e a mudança na língua.
Afinal, no terceiro esquema eu explicito o “dinamismo da gramática” pela
gramaticalização.
Como se lê (colocado no alto desse esquema 3, como rubrica inicial do processo), o
dinamismo da gramática é visto a partir de uma visão em PANCRONIA. Essa visão domina o
percurso de caixas que descem verticalmente pelo centro e que podem ser lidas como segue.
a) Nesse eixo vertical central, com fundamento nas mais básicas lições funcionalistas, que
aqui expus, parto exatamente da categoria “gramática”, definida como de
equilíbrio
instável / dinâmico / provisório,
devido a
pressões externas e internas,
30
o que configura a existência de
categorias não discretas.
b) Nesse ponto da descida, ou seja, assentado o estatuto da gramática como instável, dinâmica
e provisória em seu equilíbrio, flechas apontam para a direita e para a esquerda, e vão tocar as
duas linhas laterais que, descendo da rubrica PANCRONIA, marcam as duas perspectivas
pelas quais a gramática pode ser vista em seu uso: de um lado (esquerdo), a “perspectiva
sincrônica”, na qual se pode verificar, no USO, a “fluidez de padrões”; do outro lado (direito),
a “perspectiva diacrônica”, na qual se pode verificar, no USO, a “alteração de padrões”.
c) Ambas as perspectivas anunciam a existência de uma concorrência de formas (no centro):
fica registrado que “padrões emergentes’ continuamente “se somam” a “padrões estáveis”.
padrões estáveis +
+ padrões emergentes
Isso leva a
gradualidade das alterações
semânticas +
+ categoriais
Essas
alterações se resolvem,
na “perspectiva sincrônica”, de um lado (esquerdo), em “variação”; e, na perspectiva
diacrônica, do outro lado (direito), em “mudança”. A caixa seguinte, na descida central,
mostra a chegada à “reanálise”, que desemboca, mais uma vez, em
categorias não discretas
E mais uma vez se chega, nesse círculo vicioso, a um
equilíbrio provisório/ dinâmico / instável
Ora, facilmente se postula que
a) A chegada à gramática de uma expressão (a gramaticalização) se inicia por forças que se
encontram fora da estrutura lingüística, e aí se inclui prioritariamente a cognição.
b) Existe uma correlação (diagramaticamente) icônica entre o “empacotamento” cognitivo e o
“empacotamento” gramatical, reconhecendo-se a possibilidade de que as diversas línguas
apresentem diferenças na codificação estrutural de um mesmo evento ou na codificação de
semelhantes tarefas do processamento da fala (pelo fato de haver diferentes recursos à
disposição do falante nas diferentes línguas).
c) O componente conceptual é, mesmo, a força condutora que está por trás do componente
gramatical, colocando os níveis estipulados para a gramática em interação com esse
31
componente cognitivo (mesmo que ele seja considerado fora do componente propriamente
gramatical).
d) Exatamente por essa relação entre um processamento global de origem e um
processamento linear e segmentável de chegada, fica evidenciado que os limites entre as
categorias gramaticais são vagos, difusos, e até móveis: cada membro da categoria pode ser
conceituado segundo o grau de semelhança que tenha com o membro que configura a
representação mais característica dessa categoria (prototipia), dentro de um conjunto de
categorias naturais, formadas por ação da analogia e por interpretação metafórica, com
contínua redefinição de sentidos (incluída aí a estereotipia).
Com esta última questão – a fluidez dos limites categoriais na gramática (NEVES,
2010a; 2010b) – eu chego à minha amostra prática, que abrange dois campos de categorização
da gramática do português: uma zona mais evidentemente “lexical” e uma zona exatamente de
transição entre o considerado “(mais) lexical” e o considerado “(mais) “gramatical”). O
objetivo geral da pesquisa foi verificar em que medida e de modo a apresentação lexicográfica
abriga esse deslizamento funcional (um típico caso de “gramaticalização”).
Uma amostra de análise
O que ofereço a seguir retoma dois estudos (NEVES, 2010b; NEVES, no prelo), em
que reconheço a necessidade que têm as obras lexicográficas de, seja qual for a direção
teórica que lhes dê suporte, oferecer uma categorização que organize as entidades sob certos
critérios, o que, aliás, ocorre em qualquer organização de campos, na visão humana das
entidades. O que pus em discussão foi a noção do que possa significar a adoção dos rótulos
disponíveis, se sabemos que a visão categorizadora não pode simplificar-se na noção corrente
que costuma sustentar a sua aceitação: a noção de que, realmente, as categorias têm limites
rígidos e estanques.
Selecionaram-se como objeto de análise seis dicionários: dois mais antigos, o Aulete
(1948) e o Melhoramentos (1964); dois dicionários contemporâneos, o Aurélio (1999) e o
Houaiss (2001), que já sugerem regras de acionamento gramatical, além daquelas tradicionais
regras de flexão e das indicações ortográficas dos dicionários tradicionais; dois dicionários
baseados em usos (elaborados a partir de bancos de dados), que registram indicações
gramaticais mais explícitas ainda, o já rotulado como Dicionário de usos do português do Brasil
(2002), doravante DUP, e o Dicionário UNESP (2004), doravante Dic. UNESP18. A verificação
dos usos, para cotejo, fez-se no banco de dados disponível no Laboratório de Estudos
Lexicográficos da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, Câmpus de Araraquara (o
chamado Córpus de Araraquara), banco que constitui exatamente a fonte dos dois últimos
dicionários que citei, ambos elaborados exclusivamente com base em usos19:
A primeira incursão buscou verificar, no próprio interior do léxico, esse caráter
categorial contínuo, identificando casos daquilo que considero “deslizamentos” categoriais de
substantivos a adjetivos, com todos os graus de avanço do processo que, com certeza, se
formam, sem muita condição de decidir-se exatamente em que ponto de deslizamento a palavra
se encontra, num determinado uso.
18
Devo observar que sou coautora desses dois últimos dicionários, elaborados por uma equipe de seis e de cinco
linguistas, respectivamente, sob coordenação de Francisco da Silva Borba, na UNESP, Câmpus de Araraquara.
19
Há a observar que esse banco de dados se vem ampliando (sua extensão, hoje, é de mais de 220 milhões de
ocorrências). Ele era, portanto, mais reduzido quando da elaboração do DUP e do Dicionário UNESP.
32
Sirva como primeiro exemplo esta ocorrência encontrada no banco de dados
disponível20:
(1)
Avise-me a tempo para fazer um vestido à moda, saia balão e babados grandes....
A primeira indicação vai no sentido de que qualquer falante do português identificará,
nessa ocorrência, que o texto fala de uma saia, não de um balão, e que, portanto, saia é o
substantivo, o núcleo do sintagma. No entanto, se o falante foi a um dicionário para consultar o
verbete balão, lá encontrou o registro de categoria Sm (substantivo masculino), e, seguramente,
essa discrepância nem foi percebida, ou, pelo menos, não chocou. Ocorre que, na interpretação
do sintagma, operou a regra (interiorizada) do sistema da língua portuguesa segundo a qual um
(considerado) substantivo, posto à direita de outro, tem alguma perda da categoria substantivo e
algum ganho da categoria adjetivo. Tal percepção é natural, já que, colocado no sintagma
português na posição canônica do adjetivo, o substantivo faz acréscimo de propriedade(s) ao
feixe de propriedades que o substantivo da esquerda já carrega, tal como opera o adjetivo (e,
ainda mais especificamente, dada a maior complexidade de traços existente na configuração de
um substantivo do que na de um adjetivo). Assim, no caso da frase oferecida, propriedades de
“balão” são acrescidas ao feixe de propriedades que define um determinado representante da
classe “saia”.
Os graus de tal sensibilização ao contexto variam, e assim varia a natureza do valor
adjetivo ganho, a intensidade desse valor, e até o encaminhamento posterior do processo, na
direção de alguma possível mudança categorial que seja visivelmente assimilável pela
comunidade de fala.
Facilmente se observa essa variedade na natureza dos deslizamentos, no sentido de que
o substantivo da direita pode, por exemplo:
a) Simplesmente subcategorizar o substantivo da esquerda (que se encaminha para um adjetivo
classificador), como em (1) a (3):
(2)
(3)
O quarto reversível está mobiliado com um sofá bicama.
A Cooperativa obrigava os compradores a adquirir 55% do açúcar cristal empacotado
por ela mesma.
b) Qualificar o substantivo da esquerda (que se encaminha para um adjetivo qualificador), como
em (4) a (6):
(4)
(5)
(6)
Um bedel chaleira levou-o às pressas ao Dr. Ribas.
Habib, o nariz colosso apontando o chão
A comunidade neste período é denominada comunidade clímax.
Entretanto, não é de um modo assim discreto que a categoria adjetiva se insere, já que
é muito evidente a fluidez em que se encontra a decisão subcategorial de substantivos da
direita como os que ocorrem em (7) a (12), que, no todo do enunciado, podem estar
qualificando, mas também podem simplesmente estar tipificando (ou ambos):
(7)
(8)
(9)
Sua diretoria chegou a considerar uma solução camicase.
Importante lembrar que os escravos eram o elemento chave da mineração.
A geração blitz [...] até então não tinha dado nenhum depoimento
20
A busca no banco de dados foi absolutamente aleatória. Por economiade espaço, e dada a nenhuma relevância
da informação, deixo de fornecer as referências bibliográficas de cada ocorrência.
33
(10) Oh, que é, virei o homem borracha.
(11) personagem camaleoa
(12) à p. 230 de seu romance azorrague
Fica mais evidente ainda essa difusão de limites, para estabelecimento de
(sub)categorizações, quando se verifica que oum mesmo substantivo caubói pode qualificar
(13) ou tipificar (14) um substantivo da esquerda, do mesmo modo que um mesmo
substantivo cristal pode qualificar (15) ou tipificar (16) um substantivo da esquerda (dadas as
relações semânticas contraídas, e/ou dados os enquadramentos pragmáticos instituídos no
enunciado):
(13)
(14)
(15)
(16)
Mostrou [...] que seu jeito caubói de ser não é mero efeito especial.
Comemoram sorvendo goladas de uísque caubói.
olhos vidrados na sua beleza cristal
Arrancou Piano desse reinar uma topada numa pedra cristal
As indecisões de categorização espontânea (aquela que realmente constitui resposta da
atuação linguageira) ainda se refletem em escolhas funcionais, tais como:
a) Fazer ou não a concordância de número no sintagma com os dois “substantivos”:
(17)
(18)
(19)
(20)
O resultado são leis centauros.
O escrivão revela dois depoimentos bomba.
os exageros da ponta das botinas agulha
outras trinta e quatro cartas consulta
b) Manter os dois “substantivos” como formadores de um sintagma, ou compor com eles um
substantivo composto (registro com hífen)21:
(21) Seria um livro-brinquedo?
(21) doações que ela encaminha a públicos-alvo
Dado esse tipo de situação – aqui apenas esboçada – cabe verificar qual é a contraparte
dos dicionários no tratamento da questão. Aqui reproduzo uma amostra de resultados que obtive
em duas análises de substantivos que costumeiramente ocorrem nesse tipo de construção
(NEVES, 2010b), questão que continuei a tratar em Neves (no prelo).
Em Neves (2010b), examinei, entre outros, os substantivos fantasma e padrão, em
sintagmas como conta fantasma, ou empresa fantasma, e operário padrão, ou unidade padrão.
Nos dois dicionários mais antigos (Aulete e Melhoramentos) não há nenhuma indicação
que leve a considerar um deslizamento de funções. Nos dicionários contemporâneos a questão
já é tratada, mas com grau e natureza diferentes, em cada obra, ou, mesmo, em cada verbete.
GRAM/ USO
O Houaiss introduz, no final dos verbetes, um compartimento sob a rubrica
para os casos em que é oferecida alguma indicação de natureza gramatical: nos casos de
fantasma e de padrão22, mantém-se a classificação inicial Sm e faz-se uma indicação que
21
Há a observar que esse tipo de decisão muitas vezes pode não representar escolha do usuário, dada a existência
de algum órgão regulador da ortografia; no Brasil, por exemplo, o Vocabulário Ortográfico da Língua
Portuguesa (VOLP), elaborado pela academia Brasileira de Letras, e com poder de lei, na questão.
22
Na íntegra: a) Para fantasma, GRAM/ USO seguindo um subst., ao qual se liga por hífen, é um determinante
específico e significa ‘fictício, não existente, criado esp. para iludir o fisco’ (empresa-fantasma, conta-fantasma).
34
apenas contempla a união dos dois elementos por hífen (a formação de um substantivo
composto), o que, na verdade, desvia a reflexão do processo de deslizamento categorial, além
de desrespeitar a maciça preferência dos usuários (que verifiquei quantitativamente no banco
de dados) pelas construções sem hífen. O Aurélio, por sua vez, trata diferentemente os dois
casos: para o Sm fantasma, a indicação vai no mesmo sentido da de Houaiss, ou seja, ele
também reduz à união por hífen as construções com esse substantivo à direita de outro
substantivo (com exemplos como empresa-fantasma)23; para o Sm padrão, porém, há um
encaminhamento explícito para categorização como adjetivo, entretanto sem nenhum
exemplo24.
Por fim, os dois dicionários que são elaborados a partir de um banco de dados
contemplam o deslizamento categorial, mas não exatamente da mesma maneira. O DUP,
declaradamente um “dicionário de usos”, que, realmente, só abriga usos atestados no córpus,
escancara a indicação de que cada um desses Sm se usa com “função adjetiva”, contemplando
diversas acepções e documentando com ocorrências sem hífen e com hífen25. O Dic UNESP,
que também parte de usos, embora não se restrinja a um registro documentado, apenas anota a
“associação” de um substantivo a outro (ilustrando com ocorrências sem hífen e com hífen),
partindo daí para as definições lexicográficas e/ou para o oferecimento de acepções, todas
claramente adjetivas26
Em resumo, verifica-se que: (i) o Houaiss, com o rótulo “GRAM/ USO”, cria, para o
verbete, uma subseção que, em certa medida, já relativiza a categorização inicial Sm, e dentro
dessa subseção já categoriza explicitamente fantasma e padrão como “determinantes”27, se
usados “seguindo um subst.”; (ii) o Aurélio fala em “valor adjetivo”; (iii) o DUP fala em
“função adjetiva”; (iv) o Dic. UNESP28 já vai à sintagmatização, falando da “associação de
um substantivo a outro substantivo” (o da direita ao da esquerda, o que sugere dependência do
segundo ao primeiro). Verifica-se, então, que tais reflexões gramaticais o consulente tem de
operar por si, no caso de dicionários mais antigos, como o Aulete e o Melhoramentos,
enquanto os contemporâneos Aurélio e Houaiss já sugerem regras de acionamento gramatical,
além daquelas tradicionais regras de flexão e das indicações ortográficas dos dicionários
tradicionais.
b) Para padrão, GRAM/ USO após subst., ao qual se liga por hífen, é um determinante específico invariável e
significa ‘que serve de modelo’, ‘exemplar’ (unidade-padrão, operários-padrão); não se modifica no pl.
23
Na íntegra: [Posposto a outro substantivo ao qual se liga por hífen, este vocábulo tem valor adjetivo e significa
‘que existe apenas aparentemente, e/ou que existe apenas no papel, e/ou que esconde propósitos fraudulentos, etc.’:
(empresa-fantasma, conta-fantasma).]
24
Na íntegra: [Posposto a substantivo, este voc. tem valor adjetivo.]
25
Na íntegra: a) Para fantasma: [Função adjetiva] [nome+~] 7 falso; fictício: temos preferido criar pequenos
monstros e funcionários fantasmas, em lugar de indagarmos nossas necessidades (AR-O) 8 imaginário; irreal:
os ansiosos temem a ameaça, esse perigo-fantasma, mas ao mesmo tempo a desejam (NE) 9. mal-assombrado: o
nômade garimpeiro abandona as corrutelas e arraiais fazendo surgir as cidades-fantasmas (FN) 10.
fantasmagórico: Vamos chamar o primeiro batalhão de marinheiros fantasmas (PF). b) Para padrão:
[Função adjetiva] [nome+~] 5 que serve de modelo; exemplar; prototípico: Ela se firmou como um modelo padrão
para as mulheres de todas as idades. (VEJ) 6 uniforme: Os trilhos são fabricados nos comprimentos padrão de 12
ou 18 m. (EFE).
26
Na íntegra: a) Para fantasma:
Associado a um S é invariável e equivale a: (i) falso, fictício: Os projetos
aprovados estariam favorecendo empresas-fantasma. (ii) mal-assombrado: Até hoje os navegantes contam
histórias da nau fantasma. b) Para padrão: Associado a um S é invariável e equivale a “que serve de padrão”,
“que constitui modelo”: operários padrão; famílias padrão.
27
Registre-se que esse tipo de informação não deve ter interpretação fácil do consulente de dicionário.
28
A indicação sobre a invariabilidade do segundo substantivo constitui uma evidência de que não se trata,
realmente da categoria “adjetivo”, pois este concordaria com o substantivo que seria seu núcleo (o da esquerda),
no caso de plural.
35
Entretanto, não apenas a diferença de medida dessas indicações como também a
diferença de natureza delas atesta inquestionavelmente a falta de rigidez de fronteiras na
avaliação da pertença dos elementos lingüísticos a categorias firmemente rotuladoras.
Em Neves (no prelo), com consulta aos mesmos dicionários, estendi a análise a um
grupo maior de substantivos, de que são amostra: alvo (como em público alvo), chave (como
em palavra chave), limite (como em situação limite), mãe (como em ideia mãe), objeto (como
em mulher objeto), padrão (como em língua padrão), fantasma (como em navio fantasma),
pirata (como em cópia pirata), problema (como em criança problema), prodígio (como em
criança prodígio), símbolo (como em cidade símbolo), esporte (como em carro esporte). Na
apresentação lexicográfica desses dez substantivos, verifica-se que, num extremo de
manutenção da categorização como substantivo, ou seja, sem nenhuma sugestão, pelos
dicionários em exame, de gramaticalização, estão objeto e símbolo: todos os dicionários
examinados, mesmo os de usos, só abrigam, nessas entradas, a categorização pura
“substantivo”, o que aponta, pelo menos, para a baixa frequência de ocorrências em que se
verifica deslizamento de função. No outro extremo estão os substantivos mãe, padrão,
fantasma e esporte, registrados na sua direção adjetiva em todos dicionários contemporâneos.
Na sequência estão chave e pirata. Um caso interessante é o de prodígio, que, sem registro
ligado a adjetivação em nenhum dos dicionários contemporâneos, entretanto já tinha essa
sugestão no Melhoramentos (1964).
Neste ponto, cabe voltar a acentuar o foco deste estudo, exatamente a natureza
gradual, necessariamente não categórica das decisões, o que precisa constantemente nos
alertar para a pouca consistência de uma prisão a rótulos, que sugerem um sim/não muito
longe de existir.
A análise (NEVES, no prelo) verificou que as condições para a formação desses
sintagmas variam de acordo com uma grande ordem de fatores. Em primeiro lugar, e em todos
os casos, é determinante a compatibilidade semântica, já que o substantivo “qualificador” ou
“tipificador” tem de pertencer a uma subclasse que seja aplicável (tal como o seria uma
oração adjetiva do tipo restritivo) ao substantivo nucleador do sintagma, aquele que realmente
faz a nominação. Como atribuidor de propriedade(s) a um feixe de propriedades já
configurado (no núcleo nominal), o tipificador ou qualificador só pode trazer propriedades
compatíveis com as desse feixe. Casos há com carga muito forte de restrições de seleção por
parte do núcleo, e esse foi, aqui na nossa análise, o caso dos substantivos “atribuidores” que
tiveram zero de reconhecimento nos dicionários: objeto e pirata. De fato, a atribuição do
substantivo objeto a outro seleciona a categoria “pessoa”, e, mais restritivamente ainda, uma
pessoa que possa constituir “objeto de desejo” de outra, como se vê claramente em mulher
objeto e homem objeto; e a atribuição do substantivo pirata a outro seleciona uma categoria
relativa a produção ou a criação, já que o que se “pirateia”, o que se reproduz ilegalmente, é
necessariamente uma obra com autoria, como se vê claramente em cópia pirata e disco
pirata.
Considerações finais
Como indicou o resumo do texto, o objetivo foi traçar um panorama de propostas
funcionalistas das diferentes vertentes, a partir da verificação dos princípios funcionalistas que
estariam em relevância, nos diferentes casos. Entendo que, por aí, pode ficar revelado o
caminho que leva ao abrigo diferenciado de determinados temas e de determinados objetos de
análise, e, muito especialmente, o caminho que leva ao aproveitamento mais efetivo, em cada
proposta, de determinadas conexões com outros campos de conhecimento.
Acima de tudo procurei mostrar, dentro do que une as propostas funcionalistas de
análise lingüística, que é necessário pautar nossos exercícios metalingüísticos por uma visão
36
que não subverta a própria natureza e direção da produção linguística, o que significa montar,
para respaldo da análise, um círculo virtuoso (apesar de “vicioso”, ou por isso mesmo) que
permita ter como parâmetros que: a contínua redefinição da relação entre formas e funções – e
seu aproveitamento no uso – leva à readaptação contínua do sistema lingüístico; tal flexibilidade
do sistema leva à multiplicidade dos arranjos; o múltiplo aproveitamento desse aparente
desarranjo (virtuoso) leva à renovação; a renovação – garantida nesse caráter sempre emergente
da gramática – leva à garantia de uma gramática sempre equilibrada, bastante e suficiente, sem
as falhas, os vícios ou cacoetes que os desavisados ou alheados gostam de impingir-lhe,
desfigurando-a e banalizando-a.
FUNCTIONAL LINGUISTICS: PRINCIPLES, THEMES, OBJECTS AND CONNECTIONS
ABSTRACT: This paper aims at offering an overview of the different functionalist approaches in all their
programmes, by verifying which functionalist premises would be relevant in each case. This may be a way to
elucidate the differentiated approach of certain themes and of certain objects of analysis, and especially, to
contribute to a better account of certain relations between each proposal and others realms of knowledge.
KEYWORDS: Functionalism; Categorical landslides; dictionary and grammar.
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38
A natureza contínua das classes de palavras
Roberto Gomes CAMACHO29
RESUMO: A continuidade categorial é uma propriedade indiscutível da linguagem para a tradição funcionalista,
que a trata como um verdadeiro universal linguístico. Além de buscar evidência sistemática para a comprovação
desse axioma, o principal objetivo deste trabalho é analisar a estrutura argumental da nominalização, num esforço
concentrado por demonstrar que esse mesmo princípio universal é metodologicamente útil e teoricamente válido
para postular relações intralinguísticas de continuidade categorial mesmo entre classes aparentemente discretas
como as de substantivo e verbo. A trajetória percorrida para a sustentação da hipótese da continuidade categorial
passa necessariamente pela comprovação de uma hipótese secundária, a de preservação de valência, postulada
por Dik (1985; 1997), segundo a qual a estrutura argumental é parte constitutiva da nominalização. Essa busca
não teria êxito se a trajetória percorrida não utilizasse um atalho necessário, representado pela teoria prototípica
de categorização. A existência de estrutura argumental, que sinaliza a representação de entidades de ordem
superior, permite aproximar a nominalização de membros não-prototípicos da categoria dos verbos como formas
não-finitas, enquanto a ausência de estrutura argumental, que sinaliza a representação de uma entidade de
primeira ordem, permitiu aproximá-lo de membros prototípicos da categoria dos substantivos.
PALAVRAS-CHAVE: prototipicidade; classes de palavras; nominalização.
Palavras iniciais
A continuidade categorial é uma propriedade indiscutível da linguagem para a tradição
funcionalista, que a trata como um verdadeiro universal linguístico. Além de buscar evidência
sistemática para a comprovação desse axioma, o principal objetivo deste trabalho é analisar a
estrutura argumental da nominalização, num esforço concentrado por demonstrar que esse
mesmo princípio universal é metodologicamente útil e teoricamente válido para postular
relações intralinguísticas de continuidade categorial mesmo entre classes aparentemente
discretas como as de nome e verbo.
A trajetória a ser percorrida para a sustentação da hipótese da continuidade categorial
passa necessariamente pela comprovação de uma hipótese secundária, a de preservação de
valência, postulada por Dik (1985; 1997), segundo a qual a estrutura argumental é parte
constitutiva da nominalização. Essa busca não teria êxito se a trajetória percorrida não
utilizasse um atalho necessário, representado pela teoria prototípica de categorização.
De fato, postular a existência de categorias intermediárias, como a de nominalização,
implica necessariamente a existência de membros mais prototípicos de uma categoria. A
existência de estrutura argumental, que sinaliza a representação de entidades de ordem
superior, permite aproximar a nominalização de membros não-prototípicos da categoria dos
verbos como formas não-finitas, enquanto a ausência de estrutura argumental, que sinaliza a
representação de uma entidade de primeira ordem, permite aproximá-lo de membros
prototípicos da categoria dos nomes.
Esse é o roteiro deste trabalho, que se divide em três seções. A seção 1 discute a
questão da natureza contínua das classes de palavras; a seção 2 examina a situação da
nominalização nesse contínuo categorial; a seção 3 trata de fornecer critérios discursivos para
a natureza prototípica dos nomes. Os dados que servem de suporte para as posições aqui
assumidas são extraídos do córpus do Projeto Nurc-São Paulo (CASTILHO, PRETI, 1986).
29
UNESP – Universidade Estadual Paulista – Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas – Departamento
de Estudos Linguísticos e Literários – São José do Rio Preto – Estado de São Paulo – Brasil – CEP: 15054-000 –
email: [email protected].
39
A natureza contínua e não-discreta das classes de palavras
Na tradição gramatical, a divisão do discurso em partes chamadas classes de palavras
baseia-se em critérios nocionais de natureza discreta que acabam por fornecer uma
abrangência supostamente universal, como se categorias próprias das línguas clássicas indoeuropeias pudessem aplicar-se a todas as línguas naturais.
Todavia, a realidade é que a conhecida diversidade tipológica das línguas, com base na
relação raramente biunívoca entre as categorias ontológicas e as categorias gramaticais
disponíveis, não tem deixado livre de problemas nem mesmo a alegada distinção universal
entre nome e verbo. E, com efeito, a literatura funcionalista sobre tipologia está repleta de
evidências que comprovam essa afirmação.
Num trabalho bastante ilustrativo, Hengeveld (1992), postula que os sistemas de
classes de palavras podem ser ordenados na escala contida em (1), conforme as línguas
disponham ou não das quatro classes de palavras predicadoras.
(1)
Verbo > Nome > Adjetivo > Advérbio
(HENGEVELD, 1992, p.70)
Essa hierarquia pressupõe que uma categoria de predicados é mais provável de ocorrer como
uma classe de palavras distinta se ela estiver localizada mais à esquerda da escala; pressupõe,
ainda, que cada estágio pode servir de ponto de corte para os diferentes tipos de línguas.
Generalizando observações como essas, Hengeveld (1992) assinala que os sistemas de
classes de palavras podem ser divididos em dois grupos principais: o de línguas diferenciadas,
como o inglês e o português, que têm quatro diferentes classes de palavras exercendo quatro
diferentes funções, e o de línguas não-diferenciadas, como o holandês, com menos de quatro
das categorias de predicados presentes nas línguas diferenciadas.
Expandindo ainda mais essas observações, pode-se afirmar que sistemas nãodiferenciados de classes de palavras podem ser subdivididos em dois outros grupos: o das
línguas flexíveis, em que uma única parte do discurso pode ser usada com diferentes funções,
como o holandês; e o das línguas rígidas, em que falta uma parte do discurso para o exercício
de algumas funções.
A Figura 1 mostra que um caso de língua com grau máximo de flexibilidade é o
tongan (língua polinésia falada nas ilhas de Tonga), para a qual, uma única classe pode ser
empregada, sem qualquer modificação formal, para traduzir todas as funções predicadoras
exercidas por verbos, nomes, adjetivos e advérbios no português.
Um caso extremo de língua rígida é o tuscarora (língua da América do Norte da
família do iroquês), que dispõe de apenas uma classe de palavra, o verbo; desse modo, para
traduzir, por exemplo, o significado de nomes típicos do português é necessário usar uma
predicação verbal.
1
tongan
V/N/A/Adv
2
quechua
V
N/A/Adv
3
V
N
A/Adv
holandês
Diferenciada
4
V
N
A
Adv
inglês
5
V
N
A
--wambon
Rígida
6
V
N
----!xù30
7
V
------tuscarora
Fig. 1: Sistemas de classes de palavras (adaptado de HENGEVELD, 1992, p. 69)
Flexível
30
!xù é uma língua da família Khoisan (Coisã) falada no sudoeste da África, principalmente Botsuana e
Namíbia, pelos bosquímanos ou hotentotes.
40
Para dar um exemplo simples, o tuscarora necessita fazer uma predicação do tipo de
“ele é jovem” para traduzir o que o português denota com o nome menino. Assim, para
traduzir o que se diria em português com o menino olhou para o bode, seria necessário criar
em tuscarora, aproximadamente uma sequência de predicações do tipo “ele é jovem, ele olha
para ele, ele fede”.
É por isso que os pesquisadores que reconhecem alguma universalidade na distinção
categorial entre nomes e verbos se apoiam não numa categorização em unidades discretas,
nitidamente distintas, mas numa categorização prototípica, que prevê uma continuidade
categorial.
Em termos tipológicos, é possível predizer que certas percepções prototípicas de
entidades próximas a coisas são codificadas numa forma gramatical identificável como
nomes, ao passo que percepções prototípicas de ações ou eventos são gramaticalmente
codificadas como verbos (cf. HOPPER; THOMPSON, 1984).
As classes de nomes e de verbos dispõem, assim, de correlatos semânticos que
correspondem aproximadamente a entidades cognitivamente percebidas no mundo real. Para
os nomes, a entidade é qualquer coisa similar a objeto, ou a uma percepção que Givón (1979)
designa por “estabilidade temporal” (time-stability). Ao contrário, os verbos são
prototipicamente ações ou eventos: representam percepções sem estabilidade temporal.
Essa dualidade se deriva de numa tendência universal de associar entidades
temporalmente estáveis com a classe gramatical dos nomes e entidades não temporalmente
estáveis com a classe gramatical dos verbos. Como essa correlação tem validade quase
universal, Hopper e Thompson (1984) aplicam à noção de categorialidade o princípio
cognitivo da prototipia, desenvolvido por Rosch (1973, apud TAYLOR, 1989), segundo o
qual a categorização humana não é arbitrária, mas procede de exemplares mais centrais para
exemplares mais periféricos de categorias sendo prototípicos justamente os exemplares
centrais que parecem mais salientes aos falantes.
A nominalização no continuum categorial
Um aspecto teoricamente instigante, relacionado às classes de palavras é a
identificação categorial das nominalizações, que, a rigor, não podem ser consideradas
membros prototípicos nem da classe dos nomes nem da classe dos verbos. Consistem, na
realidade, em categorias complexas, intermediárias num continuum funcional com os polos
ocupados pelo nome e pelo verbo.
Como nomes, deveriam referir-se a entidades perceptíveis do mundo, mas, como os
verbos, podem ser providos de valência e representar não entidades de primeira ordem, que
são percepções cognitivas de objetos físicos, palpáveis, mas entidades de segunda ordem, ou
estados de coisas. Nesse aspecto, um bom postulado a defender é o de que quanto mais uma
nominalização preservar a estrutura argumental herdada do verbo input, mais próximo ela está
da referência a um estado de coisas.
De acordo com a definição de classes de palavras, proposta por Hengeveld (1992), o
português pode ser classificado, conforme já mencionado, como uma língua diferenciada, já
que dispõe de classes gramaticais distintas para exercer funções predicadoras distintas. Por
disporem de certa rigidez formal, línguas diferenciadas precisam contar com operações
transcategoriais para derivar nomes de verbos, o que costuma ocorrer, por exemplo, no
português, com processos produtivos de sufixação, como a nominalização.
Qual seria, então, o correlato gramatical mais evidente para as classes de palavras
desse traço tipológico do português? Como língua diferenciada, nem flexível, nem rígida, a
gramática do português necessita, em geral, de ajustes formais para converter um item lexical
de uma classe de predicados num item lexical de outra. A morfologia derivacional do
41
português é rica em afixos, conforme mostra o seguinte exemplo: forma [N] > formar,
deformar, reformar [V] > formoso, formal, deformado, reformável [Adj] > formosamente,
formalmente [Adv] para uma derivação a partir de uma palavra primitiva da classe dos nomes
e partindo da classe de verbos, construir [V] > construção [N] > construtivo [Adj] >
construtivamente [Adv].
Em seus estudos sobre nominalização, Dik (1997) alega que esse tipo de forma
derivada atua como uma construção encaixada que tem propriedades em comum com um
termo nominal primário, como é o caso de demissão em (2).
(2)
Maria lamentou a demissão de Pedro.
Com efeito, em (2), o constituinte na função de paciente da nominalização aparece sob
forma de sintagma de possuidor31, que é especialmente adequada para expressar relações no
interior de sintagmas nominais. O fato de Pedro aparecer em (2) sob a forma de sintagma de
possuidor é interpretado por Dik como uma propriedade nominal, e o SN a demissão de
Pedro é descrito como uma construção encaixada na posição de complemento da oração
matriz que tem como núcleo o predicado lamentou (cf. DIK, 1997, p. 57-8).
A principal implicação teórica dessa posição é a de que nominalizações dispõem de
valência potencial como outras construções encaixadas. Como um tipo derivado de nome,
os deverbais podem ser mono, bi e trivalentes, na mesma medida em que são os verbos que
lhe dão origem, conforme entende Dik (1985; 1997).
As nominalizações deverbais constituem exemplos flagrantes de predicados verbais
que necessitam submeter-se a ajustes formais próprios de um modelo prototípico de termo,
que é o nome denotando entidades de primeira ordem, ou seja, os chamados nomes concretos
(DIK, 1985; LYONS, 1977).
Como mostra a Figura 2, os ajustes mais comuns da predicação verbal encaixada à
expressão do termo nominal são os seguintes: um predicado verbal transforma-se num núcleo
nominal; um operador de predicado verbal, como o sufixo modo-temporal, torna-se zero no
predicado nominal e, inversamente, um zero no predicado verbal, como a noção de definitude
expressa pelo artigo, transforma-se num operador de termo no predicado nominal; o primeiro
e o segundo argumento podem tanto assumir a forma de uma expressão de possuidor quanto a
de um adjetivo; já um satélite adverbial só pode assumir a forma de um adjetivo (DIK, 1985;
1997).
Construção encaixada
∅
Operador
Verbo
Argumento1
∅
Determinante
Quantificador
Nome
Argumento2
Satélite
Possuidor
Adjetivo
Termo de primeira ordem
Fig. 2: Ajustes formais entre verbos e nomes
(DIK, 1997, p. 158)
31
Conforme será tratado mais adiante, forma de sintagma de possuidor nem sempre significa função semântica
de possuidor. Nomes denotando membros prototípicos contêm, de fato, a noção semântica de posse, como em o
livro de Maria. Nesse caso, nominalizar um predicado verbal é aproximá-lo da estrutura de um nome, ajustando
os termos do predicado à estrutura de um membro prototípico da classe. Esse ajuste implica que as relações
argumentais sejam representadas por um SP introduzido por de. É esse o significado da expressão “sintagma de
possuidor”.
42
Os predicados verbais de (3a) e nominal de (3b) são casos ilustrativos desses ajustes.
(3)
a.
b.
O Brasil comprou rapidamente os dólares do mercado
A rápida compra brasileira dos dólares do mercado
O mesmo é verdadeiro para os predicados nominais derivados de predicados
adjetivais, os quais, na condição de monoargumentais, tendem simplesmente, como os
nominais derivados de verbais de um lugar, a preservar o argumento central, como se observa
em (4a-b).
(4)
a.
b.
eles conseguem chegar a uma fidelidade linear... da natureza... à extrema
exatidão do desenho (EF- SP-405).
A natureza é linearmente fiel e o desenho é extremamente exato
Observe-se, além disso, outras mudanças categoriais, mediante o uso de processos
derivacionais, como as que ocorrem entre linear e linearmente e extrema e extremamente.
Esses ajustes permitem limitar os tipos de nominalização que podem variar entre quase
completamente verbais para quase completamente nominais.
Conforme mostra a Figura 2, a nominalização envolve tanto a aquisição de
propriedades nominais como a perda de propriedades verbais, numa relação de oposição
discreta. Entretanto, segundo Malchukov (2004), a pesquisa tipológica mais recente tem
reconhecido que a articulação entre os dois processos acarreta possibilidades mais graduais
que discretas e, portanto, empiricamente mais adequadas. E, com efeito, as operações
transcategoriais, quando aplicadas à nominalização, envolvem tanto descategorização quanto
recategorização.
O termo descategorização, introduzido inicialmente por Hopper e Thompson (1984),
indica que nomes e verbos perdem algumas das propriedades morfossintáticas associadas com
suas funções primárias de relatar estados de coisas e referir-se a entidades, respectivamente.
Quando usado como expressão referencial, um verbo adquire propriedades nominais, como
caso (se houver), determinação, modificação, concordância nominal etc. E é por isso que o
termo “nominalização” reúne propriedades relacionadas tanto ao processo de desverbalização
quanto ao de nominalização propriamente dito (cf. MALCHUKOV, 2004).
Usando exemplos do inglês, Malchukov menciona quatro possibilidades na tipologia
das construções completivas encaixadas, contidas em (5):
(5)
a
b
c
d
[-D –R] complementos sentenciais:
[+D -R] infinitivos:
[-D +R] nominalização oracional:
[+D +R] nominalizações:
I know that he comes.
I want him to come early
I disapprove of his driving the car so carelessly
I didn’t see John’s arrival
(MALCHUKOV, 2004, p. 57
A construção (5a) se refere a um complemento sentencial: embora ocorra numa
posição de objeto (SN), ela retém a estrutura de uma sentença e raramente adquire traços
nominais.
No caso (5b), os infinitivos retêm a sintaxe interna de um SV em relação a alguns
traços semânticos, como possibilidade de argumento, aspecto e voz, mas não podem assumir
outras propriedades tipicamente verbais, como tempo e modo e, no caso citado do inglês,
concordância e combinação com um sujeito nominativo da forma sentencial.
43
O caso (5c) combina, por seu lado, traços nominais e verbais: é capaz de receber
objeto, enquanto o sujeito é expresso como um SP, isto é, na forma gramatical típica de
possuidor.
Finalmente, em (5d), o verbo é completamente assimilado a um nome: assume todas as
flexões nominais e raramente preserva traços gramaticais próprios de verbo. Enquanto
complementos sentenciais e nominalizações, representando os polos opostos na escala, são
codificados por classes lexicais quase universais, como verbo e nome respectivamente, o
estatuto categorial das classes intermediárias difere muito de uma língua para outra.
Vale acrescentar que os exemplos do inglês servem apenas para ilustrar as construções
encaixadas possíveis e não podem, por isso, ser tomados como universais, principalmente em
função da diversidade tipológica das línguas; na realidade, o que constitui um traço universal,
que os exemplos ilustram bem, é o caráter contínuo, não discreto das classes. Assim, a
gramática do português, por exemplo, não licencia a ocorrência da categoria intermediária
(2c), e só permite construções não-finitas com predicados volitivos (5b), se houver identidade
de sujeito entre matriz e encaixada, como em (6).
(6)
Eu quero ir para casa cedo hoje.
Nesse aspecto, difere da gramática do inglês, que, como se vê em (5b), licencia a
forma não-finita mesmo com identidade entre objeto da matriz e sujeito manifesto como
anáfora zero na encaixada.
Um critério discursivo para a prototipicidade
O critério semântico de estabilidade temporal, invocado por Givón (1979) para
determinar o grau de prototipia dos nomes, não é suficiente para atribuir uma classe lexical a
uma dada forma: “a prototipia de categorias linguísticas depende não apenas de propriedades
semânticas independentemente verificáveis, mas também – e talvez mais crucialmente – da
função linguística no discurso” (HOPPER; THOMPSON, 1984, p. 708) 32. Nem sempre o uso
de um nome é capaz de construir ou de identificar um referente (DIK, 1989, p. 114), como
ocorre, por exemplo, com o termo definição na sentença (7).
(7)
ela quer saber as matérias que ela vai ter... o curso::... o segundo ciclo que ela
pretende fazer... sabe? bom já está numa:: idade de definição quanto ao segundo
ciclo porque elas já estão na oitava série as mais velhas não é? (D2-SP-360)
Segundo Hopper e Thompson (1984), o fato semântico de que um termo denote uma
entidade concreta, visível (que já não é o caso de uma entidade de segunda ordem, como
definição) não é crucial para determinar se esse termo é um membro prototípico da classe. Em
vez disso, é mais importante e decisivo que o nome exerça algum papel no discurso em que
ele figura, seja construindo seja identificando um referente na interação, como o caso de
definição em (8), núcleo de um SN com um conjunto completo de possíveis constituintes. 33
32
Cf. o original: prototypicality in linguistic categories depends not only on independently verifiable semantic
properties, but also – and perhaps more crucially – on linguistic function in the discourse.
33
Considerando que entidades são coisas que podem ser construções mentais, é possível distinguir duas funções
principais para o uso de termos: ao empregar um termo numa referência construtora, o falante pretende ajudar o
ouvinte a construir um referente, o que implica em introduzir a entidade no modelo mental do ouvinte; já ao
empregar um termo numa referência identificadora, o falante pretende ajudar o ouvinte a identificar um referente
que já se acha disponível (cf. DIK, 1989, p. 114).
44
(8)
Você entendeu aquela segunda definição de sintagma que o professor deu na
aula de ontem?
Do mesmo modo, os traços semânticos do verbo (visibilidade, movimento e
efetividade) não são suficientes para determinar sua prototipia. Para qualificar-se como
membro prototípico da classe, uma forma verbal deve referir-se à ocorrência de um evento do
discurso. Assim, uma forma não-finita, como acertar em (9), não é um membro prototípico
como o de (10), em que a forma finita representa o evento de acertar como efetivamente
concluído no passado. Também para verbos, é o papel discursivo da forma empregada que
consiste, para Hopper e Thompson (1984) no principal fator que determina se ele é um
membro central ou periférico de sua categoria.
(9)
Acertar traves exige habilidade.
(10)
Neymar acertou a bola na trave para provar que é habilidoso.
A nominalização tem como modelo prototípico o nome comum não-derivado e, como
tal, usa a expressão de possuidor, típica dos nomes comuns, para a expressão argumental.
Entretanto, enquanto a nominalização fizer referência não a uma entidade de primeira ordem,
mas a uma entidade de ordem superior, a correspondência entre os argumentos do nome e os
do verbo input, deve estar representada na estrutura subjacente de ambas as classes de
palavras.
Muito raramente nomes deverbais se referem a entidades de primeira ordem,
especialmente quando representarem nominais de ação, como em (11a). A única situação em
que é possível esse tipo de referência é aquela em que os deverbais indicam estados de coisas
resultantes de ação, como em (11b).
(11)
a.
b.
A construção da casa (por José) demorou dois anos.
Aquela construção do alto da colina é muito sólida
O nome destacado em (11b) se deriva do verbo construir, mas não é dotado de
estrutura argumental, por não se referir a um estado de coisas, mas ao resultado de um estado
de coisas, que constitui uma entidade de primeira ordem; nesse caso, a função do SP do alto
da colina é localizar a entidade referida. Já o mesmo nome deverbal em (11a) representa uma
predicação encaixada na posição de sujeito e a função do SP da casa é indicar o argumento
paciente de construção.
Em vista dessa diferença, é possível aplicar os rótulos categoriais de (12) para as duas
expressões possíveis do nome em comparação ao verbo:
(12)
construir
[+ V – N]
>
construção1
[+V + N]
>
construção2
[-V + N]
Na escala de desverbalização (MALCHUKOV, 2004), a nominalização só perde a
condição de referência a um estado de coisas quando se transforma realmente num nome
representando uma entidade de primeira ordem. As categorias mais externas e respectivas
camadas são mais prontamente afetadas pelas operações transcategoriais do que as mais
internas. Desse modo, a valência é, na visão do autor, a categoria semanticamente mais
próxima do lexema verbal e, portanto, a camada mais preservada. Considerando os processos
45
complementares de desverbalização e de nominalização, Malchukov (2004) propõe o modelo
em (13), que ele chama Modelo Escalar Generalizado:
(13)
Modelo Escalar Generalizado34
[[[[[N] CL ] NUM ] POS ] DET] CAS]
<---------------------------------------------- [[[[[[V] VAL] ASP] TEM] MOD] CONC] FI]
nominalização
<----------------------------------desverbalização
(MALCHUKOV 2004: 27)
O que ocorre com o nome construção2 no esquema em (12) é que além de
descategorizar-se a partir de um lexema verbal, ele continua o processo, recategorizando-se
como termo referente a uma entidade de primeira ordem. Nesse caso, perde valência e recebe,
todas as marcas possíveis de um membro prototípico da classe dos subtantivos. Já o que
ocorre com construção1 é que apenas sofre processo de descategorização, o que implica
preservação da referência a uma entidade de ordem superior e, consequentemente, da
estrutura argumental do predicado verbal correspondente.
Da categoria verbal para a categoria nominal não ocorre de fato redução de valência; o
que se altera é apenas o mecanismo formal de marcação dos argumentos. O uso de
preposições como de e por constitui um mecanismo formal das nominalizações para
visibilizar as mesmas relações gramaticais de sujeito e de objeto, que, em português, pelo
menos, são geralmente marcadas por outros mecanismos, tais como ordem de palavras,
posição pré e pós-verbal respectivamente, e concordância verbal.
Em (11b), a preposição de estabelece uma relação de modificador com o núcleo
nominal, devendo ser analisada como preposição lexical e a relação que estabelece especifica
a localização da construção, enquanto em (11a), estabelece uma relação argumental,
consistindo, portanto, numa preposição gramatical.
Palavras finais
Vimos que há uma possibilidade exploratória potencialmente relevante de
aproximação entre classes de palavras e processos de descategorização e recategorização, o
que me levou a fixar como objetivo mostrar que a nominalização tem uma natureza complexa
em um continuum categorial. Ela figura entre duas classes potencialmente universais por atuar
na constituição do ato locutório de formulação de uma sentença, a do nome, mediante um ato
de referenciação, e a do verbo, mediante um ato de predicação (cf. HENGEVELD;
MACKENZIE, 2008).
A continuidade categorial parece uma propriedade indiscutível da linguagem, pelo
menos na tradição funcionalista, onde é tratada como um verdadeiro universal, evidenciada
nos diferentes pontos de corte que caracterizam tipos regulares de línguas naturais. Além de
mostrar evidências para esse axioma, este trabalho se debruçou também sobre a estrutura
34
As abreviaturas têm o seguinte significado: no polo nominal, N representa nome; CL, classificador; NUM,
número; POS, possuidor; DET, determinante e CAS, caso. Já no polo verbal, V representa verbo; VAL, valência;
ASP, aspecto; TEM, tempo; MOD, modo; CONC, concordância; FI, força ilocucionária.
46
argumental da nominalização, num esforço concentrado por demonstrar que esse mesmo
princípio universal é metodologicamente útil e teoricamente válido para postular relações
intralinguísticas de continuidade categorial mesmo entre classes aparentemente discretas
como nome e verbo.
A existência de estrutura argumental, que sinaliza a denotação de entidades de ordem
superior, permite aproximar a nominalização - um membro não-prototípico da categoria dos
nomes - de membros não-prototípicos da categoria dos verbos, como formas não-finitas. Por
outro lado, a ausência de estrutura argumental, que sinaliza um nome de primeira ordem,
permite incluir a nominalização entre os membros prototípicos da categoria dos nomes.
As nominalizações ocupam justamente essa região amorfa, indistinta, a meio caminho
entre membros prototípicos dos nomes e membros prototípicos do verbo. Na posição em que
se situa na gramática, a nominalização não se identifica com um indivíduo solitário, dado que
desfruta da companhia de outras categorias igualmente híbridas, como as formas não-finitas,
enquadramento que a tradição gramatical vem reconhecendo sistematicamente ao denominar
infinitivos, gerúndios e particípios como formas nominais do verbo. Essas formas híbridas
comprovam um traço relevante da linguagem, amplamente reconhecido pelas teorias
funcionalistas, a de que as classes constituem categorias contínuas.
THE CONTINUOUS NATURE OF PARTS OF SPEECH
ABSTRACT: Category continuity is an undisputable language property for the functionalist tradition, which
treats this principle as a true axiom. Besides seeking systematic evidence for confirming this principle, the main
objective of this study is to analyze the argument structure of nominalization as an effort to demonstrate that this
very principle is both methodologically useful and theoretically valid to postulate intralinguistic relations of
category continuity even between such apparently discrete word classes as nouns and verbs. The path for giving
support to the category continuity hypothesis necessarily involves confirming a secondary one, that is, the
valence preservation hypothesis, as postulated by Dik (1985, 1997), in which the argument structure is a
constituent part of nominalization. However, that search would not be so successful if the path did not pass by a
necessary shortcut, represented by the prototypical theory of categorization. The existence of argument
structure, which indicates the representation of higher-order entities, allows inserting the nominalization into
such non-prototypical members of verbs as non-finite forms, while the absence of argument structure, which
indicates the representation of a first-order entity, allows inserting it into the prototypical members of nouns.
KEYWORDS: Prototypicality; parts of speech; nominalization.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTILHO, A. T.; PRETI, D. (Org.) A linguagem falada culta na cidade de São Paulo. São
Paulo: T. A. Queiroz. 1986. V. 1: materiais para seu estudo
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the clause).
______. The theory of Functional Grammar. Edited by Kees Hengeveld. Berlin: Mouton de
Gruyter, 1997. (Part II: Complex and Derived Constructions).
GIVON, T. On understanding grammar. New York: Academic Press, 1979.
HENGEVELD, K. Non-verbal predication: theory, typology, diachrony. Berlin: Mouton de
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HOPPER, P.; S. A. THOMPSON. The discourse basis for lexical categories in universal
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47
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MALCHUKOV, A. L. Nominalization/verbalization: constraining a typology of
transcategorial operations. Lincom: Lincom Europa, 2004.
TAYLOR, J. R. Linguistic categorization: prototypes in linguistic theory. Oxford: Oxford
University Press, 1989.
48
A influência dos fatores sociais na alternância dos pronomes tu/você na fala
manauara
Leandro BABILÔNIA35
Silvana Andrade MARTINS36
RESUMO: Apresenta-se uma análise do uso dos pronomes tu/você no falar urbano manauara, com o objetivo de
descrever os fatores sociais que condicionam a variação em situações discursivas de elocuções formais (EF),
dialógicas (D2) e entrevistas (DID). Os corpora analisados pertencem ao banco digital do Projeto Fala Manauara
Culta (FAMAC) e constituem-se de 30 gravações. São consideradas como variáveis sociais: gênero, faixa etária
(20-35 anos, 36-55 e 56 em diante), escolaridade (ensino superior completo) e ser nascido e residente em
Manaus há pelo menos vinte anos. Convergindo os princípios da Sociolinguística Variacionista e do
Funcionalismo, a partir da proposta dicotômica do uso T/V e suas díades sociais de Brown e Gilman (1960),
investigou-se a alternância tu e você, mensurando essas ocorrências, analisando os critérios de escolha entre as
formas disponíveis para se dirigir a segunda pessoa e verificando os fatores sociais e ideológicos
condicionadores destas escolhas. Em termos absolutos, os resultados obtidos apontam o predomínio da forma
inovadora você (cerca de 65%); contudo, quanto mais informal for o contexto de elocução, mais provável será o
uso de tu (70,5% nos D2 e 70% nas díades “amigos”).
PALAVRAS-CHAVE: Formas de tratamento. Variação pronominal. Fala culta manauara.
Introdução
Embora o uso das formas de tratamento no Brasil venha sendo objeto de inúmeros
estudos na atualidade, subsiste ainda a crença generalizada de que, em quase todo nosso
território, o pronome você substituiu o tu, restringindo o uso deste “ao extremo Sul do País e a
alguns pontos da região Norte, ainda não suficientemente demarcados” (CUNHA & CINTRA,
2001, p. 292 apud MOTA, p. 18, 2008). A assertiva não é totalmente verdadeira, pois diversos
trabalhos atestam o uso de ambos os pronomes nas regiões Sudeste (MODESTO, 2007;
MOTA, 2008; PAREDES SILVA, 2008), Centro Oeste (DIAS, 2007; LUCCA, 2005) e
Nordeste (SOARES, 1980). Neste texto, entretanto, objetivamos corroborar a afirmação
apresentando resultados preliminares sobre a variação desses pronomes na fala urbana
manauara, mais especificamente, no âmbito da variedade manauara socialmente privilegiada.
Buscamos convergir os princípios da Sociolinguística Variacionista e a abordagem
funcionalista porque ambas compreendem o objeto língua como um fato social que não pode
ser entendido quando considerado isoladamente, abstraído de suas influências políticas,
econômicas, culturais etc. Logo, tem-se uma visão dinâmica desse objeto, o qual é construído
e reconstruído por seus e para seus falantes, pois atende às suas necessidades de interlocução.
Assim, entendemos que a existência de dois pronomes para se dirigir a segunda pessoa
implica na agregação de valores a cada um. A escolha, portanto, feita pelo falante é
condicionada por fatores sociais e ideológicos; além disso, ao selecionar uma dessas formas,
ele revela sua atitude quanto aos valores sociais do grupo em que está inserido.
A hipótese norteadora deste texto fundamenta-se no estudo de Brown e Gilman (1960)
denominado The pronouns of the power and solidarity, em que os autores discorrem sobre as
mudanças no uso das formas de tratamento a partir do latim e como essas mudanças se
cristalizaram de modo diferente nas línguas, mas ainda preservaram elementos comuns. Para
35
UEA – Universidade do Estado do Amazonas. Escola Normal Superior – Coordenação de Letras. Manaus –
AM – Brasil. 69050-010 – [email protected].
36
UEA – Universidade do Estado do Amazonas. Escola Normal Superior – Coordenação de Letras. Manaus –
AM – Brasil. 69050-010 – [email protected].
49
eles, essas mudanças podem ser analisadas na oposição entre poder e solidariedade,
normalmente vinculada à oposição distanciamento e proximidade, respectivamente. Também
sugerem a criação dos símbolos T/V, em que T (proveniente do tu latino) é o pronome da
solidariedade, da familiaridade, e V (originário do vos) é o do poder, da formalidade. Partindo
disso, inquirimos se, na variedade pesquisada, a alternância entre tu e você forma um par do
tipo T/V. Além disso, almejamos mensurar e analisar a variação descrevendo os fatores
sociais que a condicionam e os contextos em que ocorrem.
Para tanto, empregaremos nesta pesquisa os dados coletados pelo Projeto Fala
Manauara Culta (FAMAC)37, o qual está constituído de 30 gravações. Seu procedimento
metodológico considera como variáveis: gênero (masculino e feminino), faixa etária (20 a 35
anos, 36 a 55 e 56 em diante), escolaridade (ensino superior completo) e ser nascido e/ou
residente em Manaus há pelo menos vinte anos. Ainda, os registros estão divididos em três
situações de fala, a saber: elocuções formais (EF), dialógicas (D2) e entrevistas (DID).
Por este Projeto estar em desenvolvimento e ainda não preencher equitativamente
todas as variáveis definidas, advertimos que os resultados e as análises aqui apresentados
apontam tendências e têm caráter preliminar, podendo ou não serem confirmados com a
expansão dos dados.
Revisitando conceitos e formulando hipóteses
Em Sociolinguística – os níveis de fala, Dino Preti (2003) afirma que, quando a
variação se dá nos níveis estrutural (morfossintático) e lexical, os processos de estratificação
da língua tornam-se mais claros, pois tais níveis são mais representativos da estratificação
social. Segundo ele, “a mensagem apresentaria variações de escolha, embora essa diversidade
possa sofrer a ação de uma força contrária, repressiva, constituída pela norma da mesma
comunidade em que o diálogo ocorre” (p. 16-17). Tal escolha obedeceria a fatores
extralinguísticos como a posição do falante e do ouvinte na comunidade e o tipo de relação
que os une. Assim, se numa comunidade em que coexistem dois ou mais pronomes de
tratamento, optarmos pelo emprego de uma forma quando se espera a outra, podem ser
acionados processos reparadores por qualquer dos interlocutores.
É nesse sentido que Brown e Gilman (1960) compreendem o uso dos pronomes de
tratamento e formulam sua proposta de estudo. Conforme dissemos, eles sugerem os símbolos
T/V38 para designar os pronomes de segunda pessoa nas diversas línguas e afirmam que tal
complexidade gera-se ainda na língua latina quando o sistema pronominal começa a refletir
valores sociais.
Esse sistema possuía originalmente tu, para a segunda pessoa do singular, e vos, para a
do plural. Entretanto, como uma marca de poder e distanciamento social, o vos tornou-se a
forma dirigida somente ao imperador. Com o tempo, seu uso foi estendido a outras pessoas
que, de alguma forma, também detinham o poder. Evidenciavam-no com o tratamento não
recíproco e assimétrico: ao receberem V de seus inferiores, respondiam-lhes utilizando T.
Segundo os autores, esse fato caracteriza a semântica do poder que, apesar de originária do
âmbito político, generalizou-se e passou a vir de outras esferas: força física, idade, sexo,
riqueza, igreja, exército, posição dentro da família.
Eles também criaram um par binário em que opõem a semântica do poder à da
solidariedade. Nesta, os interlocutores tratam-se igualmente, isto é, dizem e recebem T, e seu
37
Coordenado pela profª Drª Silvana Martins e em desenvolvimento desde 2009, o Projeto FAMAC possui um
acervo de dados digitalizados, incluindo documentação sonora, cuja finalidade principal é subsidiar análises
linguísticas.
38
“As a convenience we propose to use the symbols T and V (from the Latin tu and vos) is a generic designators
for a familiar and a polite pronoun in any language” (Brown e Gilman, p. 157, 1960)
50
uso é mais provável quanto mais semelhantes forem os comportamentos e as atitudes dos
indivíduos.
Prosseguem afirmando que, durante o século XIX, a semântica do poder perdeu
espaço e o sistema passou a ter somente uma dimensão na qual os dois pronomes são usados
mutuamente: T entre iguais solidários e V entre iguais não solidários. Contudo, perda de
espaço não significa apagamento, por esse motivo alguns resquícios daqueles tipos de
relações fazem-se presentes ainda hoje nas relações hierárquicas, por exemplo.
Conforme vimos acima em Preti (2003), a seleção de um pronome obedeceria a fatores
extralinguísticos como a posição social dos interlocutores. Fundamentados nesse pressuposto
linguístico, Brown e Gilman (1960) estabelecem díades para suas análises, isto é, identificam
os interlocutores a partir das posições sociais que ocupam no momento do registro. Nessas
díades, o pronome parte do primeiro elemento e é dirigido ao segundo.
No Brasil, podemos citar Mota (2008), que, baseada nessa sugestão, estabeleceu
dezoito díades para seus estudos realizados no município de São João da Ponte (MG), a saber:
pai/filho, filho/pai, mãe/filha; filha/mãe; esposa/marido; marido/esposa; colegas de escola;
colegas de trabalho; vizinhos; amigos; aluno/professor; professor/aluno; vendedor/comprador;
comprador/vendedor; chefe/subordinado; subordinado/chefe; entrevistador/entrevistado;
entrevistado/entrevistador.
Consideramos fundamental estabelecer díades para as análises deste estudo,
principalmente, porque trabalhamos com pessoas de níveis sociais semelhantes, além de todos
possuírem formação escolar superior. As diferenças de uso, portanto, deverão ser favorecidas
pelo grau de intimidade entre os falantes, grau de monitoramento estilístico e contexto
conversacional.
Artaxerxes Modesto (2007), por exemplo, para estudar a alternância na fala santista
(SP) formulou cinco hipóteses, das quais destacamos três:
a) a alternância das formas de tratamento não seria um caso de variação aleatória,
mas sim condicionada por fatores linguísticos, discursivo-pragmáticos e sociais; a
correlação entre as formas de tratamento tu e você está ligada à configuração do
contexto conversacional. O contexto conversacional envolve o propósito do evento
da fala, os falantes e o contexto discursivo como um todo;
b) o uso da forma tu é desencadeado por situações de [+envolvimento], [monitoramento] e [+expressividade];
c) o uso de você é desencadeado por situações de [-envolvimento],
[+monitoramento] e [-expressividade]. (p. 01)
Também é relevante destacar que, no cruzamento dos fatores escolaridade e
monitoramento, Modesto constatou que, em situações de maior monitoramento, os falantes de
ensino superior utilizaram o tu em somente 19% dos casos, mas o índice salta para 42%
quando o monitoramento é menor. A explicação do autor se fundamenta em Cunha e Cintra
(1985, p. 284 apud MODESTO, 2007, p. 21-22) quando afirmam que “[o pronome tu] é
empregado como forma própria da intimidade, usado entre pais e filhos, amigos, entre outros,
com tendência a ultrapassar os limites da intimidade propriamente dita, em consonância com
uma intenção igualitária ou, simplesmente, aproximativa”.
Podemos, a partir dessas observações, formular a hipótese de que o pronome você é a
forma de tratamento utilizada no primeiro contato e quando há limitações sociais para um
trato mais íntimo entre os interlocutores? A nosso ver, parece possível. Além disso, se
seguirmos os resultados desses estudos, esperamos encontrar o uso mais abrangente de tu nos
diálogos e o de você nas elocuções formais, restando às entrevistas o entremeio.
51
Metodologia da pesquisa
A obtenção de gravações que favoreçam a naturalidade da fala ou a registrem
fidedignamente é questão discutida há bastante tempo pela Sociolinguística. Em seus
postulados, Labov (2008) afirma que no modelo tradicional de coleta, isto é, através de
entrevistas, o pesquisador tenta minimizar os efeitos negativos de sua presença na fala dos
entrevistados objetivando analisá-la tal qual não estivesse em observação. Do mesmo modo, o
falante tenta minimizar os efeitos de uma possível marcação social na sua variedade
linguística, atentando mais para a própria fala. A esse fenômeno sociolinguístico, Labov
nomeou paradoxo do observador (2008, p. 244).
Ao empregarmos neste estudo os corpora coligidos pelo Projeto FAMAC,
tencionamos averiguar como se dá a alternância em função de fatores sociais, mas também
discursivo-pragmáticos, pois fundamentam sua coleta nos dois domínios. Seu procedimento
teórico-metodológico delimita a população de referência atendendo a dois critérios: i) grau de
escolaridade, no mínimo, nível superior completo; ii) ter nascido em Manaus e residir nela há
pelo menos 20 anos e ser preferencialmente filho de amazonenses. Os corpora também se
estabelecem considerando como variáveis a idade e o gênero dos falantes. Por fim, são três as
situações de registro: Elocuções Formais (EF), Diálogos entre Informante e Documentador
(DID) e Diálogos entre Dois Informantes (D2).
Os corpora somam trinta gravações e, aproximadamente, doze horas. Apesar de termos
totalizado 40 informantes no Quadro 1, informamos que o número real de falantes é 37, pois
três informantes participaram de dois registros cada. Obtemos, assim, o seguinte quadro com
a distribuição dos falantes:
Situação de
registro
D2
DID
EF
Quadro 01 – Perfil dos Informantes
Gênero
1ª faixa
2ª faixa
3ª faixa
etária
etária
etária
Masculino
03
02
02
Feminino
05
08
Masculino
03
01
02
Feminino
03
04
01
Masculino
Feminino
Nº de Informantes
Nº de
informantes
07
13
06
08
01
01
02
02
-
03
03
16
19
05
40
Análise dos dados
A existência (ou coexistência) de várias formas de tratamento numa comunidade torna
complexa a seleção pelos falantes, principalmente quando essas formas não possuem regras e
domínios bem definidos. Adequação ao contexto conversacional talvez seja a atitude mais
ajustada para a resolução dessas questões.
Ao analisarmos a fala manauara, encontramos, por exemplo, a utilização da forma
senhor (e variações morfológicas) em contextos muito formais: uma reunião entre chefe e
assessor ou entre professor e aluno. Ainda, numa fala relatada, em que a informante dirigia-se
à diretora da escola em que o filho estuda. Todavia, esse pode ser o trato com os mais velhos,
pois, nesses casos, L2 pertence à primeira faixa etária e seu interlocutor, à terceira. Vejamos
abaixo os excertos:
52
(1)
L2: [...] o: Argemiro falô que o senhô teria que indicar uma pessoa senhor lembra?
L2: já já tá terminando ali pra trazê pro senhor já (D2-Inq. 10)
L2: [...] inclusive o senhor escreveu sobre isso [...] (D2-Inq. 09)
L2: faça uma coisa cancele a matrícula do meu filho ela não você tem que se adaptá eu
não senhora quem tem que se adaptá é a senhora (D2-Inq. 05)
Também foi possível notar o uso do sujeito nulo, sobretudo nos marcadores
conversacionais, como: sabe, tá entendendo, entendeu etc. Alguns, muito poucos, ocorreram
em contextos não estudados por nós, como nos exemplos retirados do D2-Inq. 01:
(2)
L1: pois é falando de cinema... já assistiu Ensaio sobre a cegueira?
L1: pra ti teres uma ideia quando eu me aproximei [...]
L2: tá dando aula de Forense também?
L2: [...] talvez a gente desenvolva aí uma parceria sabe [...] a gente como né como
supervisora desse grupo entendeu (est: hum hum)
Assentimos ao entendimento de Dias (2007) quando afirma que a não marcação do
sujeito pode não ser uma simples omissão do pronome escolhido mentalmente e que se optou
por não pronunciar; ela compreende que “a referência nula obedece a condicionamentos
distintos em relação às demais opções de referência a segunda pessoa” (p. 63). Leão,
Altenhofen e Klassmann (2003) supõem que o sujeito nulo surge “como uma espécie de
‘solução intermediária’ entre duas variantes (tu e você) em confronto, a primeira
(estigmatizada?) [...], e a segunda mais inovadora (e provavelmente mais prestigiada) [...]” (p.
04); desse modo, os falantes neutralizariam uma possível marcação social.
Com essas constatações, surge a necessidade de estudos mais aprofundados sobre o
uso dessas outras formas na fala manauara. Neste trabalho, contudo, nos limitamos a
investigar o uso dos pronomes tu e você.
É importante informar que cogitamos a exclusão dos casos em que o pronome não
vem seguido por verbo, seja provocado por pausas, interrupções, seja por constituir um objeto
ou um predicativo. No entanto, concluímos que o emprego de determinada forma, mesmo sem
a conclusão do enunciado, revela a atitude do falante em relação aos valores sociais da
comunidade:
(3)
L2: mas eu eu anotei as tuas ideias as tuas cores que tu... (D2-Inq.03)
L2: e tu Alice? (D2-Inq. 05)
INF: faz com que você deixa de executar OU execute mal uma atribuição dada a você
através de uma Obrigação jurídica ta bom? (EF-Inq. 01)
Fator situação discursiva
Em nosso corpus, verificamos que, estatisticamente, a forma você é a mais frequente,
pois apresentou percentual de 65%, enquanto a forma tu, apenas 35%, conforme exposto na
Tabela 1:
Pronomes
Quantidade
Tu
174
Você
318
Total
492
Tabela 1: Valores absolutos dos pronomes de tratamento
53
Embora exista o predomínio da forma você, nota-se que a diferença estatística não é
tão grande quando verificamos os resultados encontrados noutras investigações. Mota (2008),
por exemplo, registrou somente 47 ocorrências da forma tu, o que representava apenas 10%
do total do corpus. Dias (2007) encontrou somente 113 casos de tu contra 814 de cê e você. A
investigação cujos resultados mais se aproximam do nosso foi feita por Modesto (2007), na
qual ele encontrou percentuais de 67% para você e 32% para tu.
Entretanto, quando consideramos somente o fator situação discursiva para a
distribuição dos dados, o predomínio de você permanece apenas em elocuções formais e
entrevistas, porque nos diálogos seus índices são superados pelos da forma tu.
Registro
D2
DID
EF
Tu
161/228 = 70,5%
9/223 = 4%
4/43 = 9,3%
Você
65/228 = 29,5%
214/223 = 96%
39/43 = 90,7%
Total
174/492 = 35%
318/492 = 65%
Tabela 2: Distribuição dos dados em função do fator situação discursiva
Desse modo, podemos responder ao nosso questionamento confirmando o uso mais
abrangente de tu nos diálogos. O pronome você foi percentualmente mais utilizado nas
entrevistas (94%), embora seus resultados estejam muito próximos aos encontrados nas
elocuções formais (90,5%).
Essas duas situações discursivas se assemelham quanto ao grau de monitoramento
empregado pelos falantes: nas EF, registramos aulas em curso superior de diversas áreas,
palestras; nos DID, coletamos entrevistas. Em ambos os casos, o falante tende a manter um
distanciamento do seu interlocutor; apesar disso, encontramos catorze ocorrências da forma tu
nesses contextos. Ainda, os D2 registram conversas entre pessoas que possuem certo grau de
intimidade anterior à investigação (são casais, amigos, colegas de trabalho) propiciando uma
elocução mais fluida e espontânea. Mesmo assim, o pronome você corresponde a 29,5% do
total nesse tipo de registro.
Assim, nossa indagação muda e passa a inquirir o que propicia a ocorrência de uma
forma no contexto em que esperávamos encontrar outra.
Não obstante possamos retomar a proposta de Brown e Gilman (1960) e compreender
os D2 como a situação discursiva mais favorecedora para a ocorrência do pronome da
familiaridade, percebe-se a não existência na fala manauara de um par de oposições extremas.
Com base nos resultados da Tabela 2, fez-se necessário o emprego do parâmetro
díades para situarmos em quais contextos se deram seus usos. Advertimos que a díade
“entrevistador/entrevistado” não foi computada na somatória final, porque os inquiridores do
FAMAC não são manauaras e/ou não possuem ensino superior. Ainda assim, elas foram
consideradas durante a análise qualitativa, pois podem influenciar a fala dos interlocutores.
1.
2.
3.
4.
5.
Díade
Esposa/marido
Marido/esposa
Colegas de trabalho
Professor/aluno
Aluno/professor
Tu
18
04
66
11
00
Você
00
00
38
40
00
54
6. Chefe/subordinado
03
7. Subordinado/chefe
00
8. Amigos
57
9. Entrevistado/entrevistador
09
Tabela 3: Distribuição dos dados em díades
03
01
25
156
Verifica-se que é categórico o uso da forma tu nas díades 01 e 02. Esse fato vem
corroborar a afirmação de Brown e Gilman (1960) quando qualificam esse pronome como o
da familiaridade. Os falantes participam do D2-Inquérito 03, ambos são da primeira faixa
etária e os temas da conversa são a reforma da casa e a abertura de um negócio próprio. Além
disso, o diálogo foi gravado no quarto do casal. Observa-se também que as formas
possessivas relacionam-se canonicamente com a forma subjetiva, mas a concordância verbal
se faz de modo inovador, como no excerto abaixo:
(4)
L2: mas eu eu anotei as tuas ideias as tuas cores que tu...
L1: quando tu anotô?
L2: no dia que decidimos reformar (est.: hum:)... eu anotei que é pra não esquecer e pra
mim sabê o que tu qué (est.: hum hum) aí:... quem sabe a gente não pode mesclá com
aquilo que eu escolhê
L1: mas tu vai vim com o teu verde e azul?
É importante ressaltar que a forma tu não foi utilizada quando era esperada para
confirmar a ideia de familiaridade. No D2-Inquérito 06, L2 relata à L1 uma conversa que teve
com os filhos, primeiro com o mais novo, depois com o mais velho. Logo, na fala relatada, L2
assume outra posição social: a de mãe. Ainda assim, fez parte da computação na díade
“amigos”.
(5)
L2: desliga ou você estuda porque você passa a tarde e a noite porque eu chego à noite
Dani e ele ainda tá no computador
Podemos observar que a imposição está marcada inclusive no modo do primeiro verbo
empregado com o uso do imperativo. Todavia, é interessante notar que a concordância se faz
com o tu. É como se o verbo nesse modo ganhasse independência em relação ao pronome,
pois raramente se usa construções como desliga tu, a não ser quando se pretende enfatizar
algo ao interlocutor.
(6)
L2: tanto é que tira até pelo Maico tipo assim Maico pra fazê a faculdade a gente tá
bancando o Maico agora eh num quis estudá parô terminô num vi ninguém obrigando o
Maico disse seu caso é diferente meu filho em você eu podia metê a porrada porque
você é meu filho o Maico ainda meti duas vezes não ainda dei no Maico
L1: mas não deu jeito né?
L2: eu não podia fazê isso o Maico não é meu filho
L1: ele é teu irmão né?
L2: é chato até batê nele às vezes (inint.) minha mãe né porque você não você saiu de
dentro de mim bato mesmo (risos)
Em seu estudo, Dias (2007) informa que necessitou considerar as repreensões como
um fator separado porque “observamos empiricamente que os falantes tendem a usar a forma
55
plena você quando desejam expressar reprovação ou crítica” (p. 66). E cita um caso similar ao
nosso: uma mulher de 36 anos, AN, repreendendo a filha de um ano.
(7)
AN: Imagina quando cê tiver grande, grandinha, fazendo isso na mesa do restaurante,
hein? Quando você começar a falar, você vai apanhar tanto! Ó!
A forma você, nessas ocasiões, serve para marcar a distância existente entre os
interlocutores – nesses casos, mães e filhos; as mães não utilizam tu, porque, sendo o
pronome da familiaridade, não conseguiriam enfatizar o distanciamento pretendido. Ao que
parece, a intenção de repreender é princípio favorecedor para a seleção do pronome você.
Fator Gênero
Conforme exposto no Quadro 1, a composição da amostra não é uniforme; dos
quarenta participantes, 24 são mulheres e dezesseis homens.
Faz-se necessário considerar esse fator, pois nossas leituras preliminares apresentaram
resultados muito distintos quanto ao seu favorecimento pelo uso de uma ou outra forma, ainda
que seja comum encontrarmos pesquisas afirmando que as mulheres são mais propensas a
utilizar as formas socialmente prestigiadas:
Quando se trata de implementar na língua uma forma considerada prestigiada, as
mulheres tendem a liderar o processo de mudança. Quando, ao contrário, se trata da
implementação de uma forma desprestigiada, as mulheres assumem uma atitude
conservadora e os homens tomam a ponta do processo de mudança. Esta tendência,
bastante consistente, pode ser exemplificada pelo estudo de diversos fenômenos de
mudança linguística (PAIVA, 1992, p. 71)
Na pesquisa de Nívia Lucca (2005) sobre a variação na fala brasiliense, por exemplo,
foram obtidos os seguintes resultados: na faixa etária de 15 a 19 anos, há frequência de 78%
de uso do pronome tu entre os homens, enquanto entre mulheres foram encontrados apenas
23%. Já Edilene Dias (2007), que também estudou o tu na fala brasiliense, deparou-se com
índices menores: “a frequência de uso de tu entre os falantes do sexo masculino é de 14,9%.
As mulheres, por sua vez, o usam com frequência de 10,8%” (p. 75). No estudo de Artaxerxes
Modesto (2008), essa variável foi descartada pelo programa GoldVarb, pois “os coeficientes
de probabilidade que o programa atribuiu para esta variável são muito próximos: 0,49 para
homens e 0,51 para mulheres, o que os tornam estatisticamente não relevantes” (p. 21).
Gênero
Tu
Você
Total
Masculino
66
139
205
Feminino
100
146
246
Total
166
285
451
Tabela 4: distribuição das ocorrências em função do fator gênero
Na Tabela 4, nota-se que, apesar da diferença entre a quantidade de homens e
mulheres da amostra, houve uma quase neutralização do fator gênero em relação ao uso do
pronome você: numa leitura vertical, eles o utilizaram em 49% dos casos; elas, em 51%. Com
o pronome tu, o mesmo não se deu: os homens o empregaram em 40% dos casos e as
mulheres em 60%.
56
Numa leitura horizontal, os falantes do sexo masculino apresentaram frequência de
32,2% para a forma tu, enquanto as mulheres 40,7%. Para a forma você, os índices são de
68,8% entre homens e 59,3% entre mulheres.
Diferentemente das pesquisas supracitadas, em Manaus, são as mulheres que tendem
ao uso do pronome tu. As afirmações de Paiva (1992) não seriam verdadeiras se
retomássemos a assertiva de Leão, Altenhofen e Klassmann (2003) quando declaram existir
“duas variantes (tu e você) em confronto, a primeira (estigmatizada?) [...], e a segunda mais
inovadora (e provavelmente mais prestigiada) [...]” (p. 04). Devemos, contudo, perceber como
se dão as relações sociais na comunidade de estudo.
Nossa hipótese para a resolução dessa questão é de que não há entre os manauaras
cultos uma negativização social para o pronome tu, talvez por compreenderem (mesmo que
inconscientemente) a existência de contextos de uso.
Cientificamos na Metodologia que três informantes haviam participado de dois
registros cada. Tais informantes atuaram nos diálogos e nas entrevistas, contextos que
favorecem uma ou outra variante, conforme vimos. Há duas mulheres cujos registros são D2Inq. 01, DID-Inq. 11 e DID-Inq. 13; o outro informante, homem, está nas gravações D2-Inq.
09 e DID-Inq. 12.
No contexto dos diálogos, L1 utilizou o pronome tu oito vezes e você nove (sem
levarmos em consideração se a referência é genérica ou específica); na entrevista (DID-Inq.
13), ela fez uso de você 19 vezes. Por sua vez, L2 emprega a forma tu 18 vezes no diálogo e
uma vez na entrevista; a forma você é utilizada três vezes em cada registro. O informante
masculino usa o tu seis vezes nos diálogos, e a forma você apenas duas. Já na entrevista,
utiliza apenas você e por onze vezes.
Todos esses números servem para mostrar que não há implicação de valores sociais
negativos quanto ao uso do pronome tu e, talvez por isso, as mulheres não o recriminem.
Fator Faixa Etária
O fator faixa etária é um importante mecanismo de análise nos estudos variacionistas,
especialmente, porque os resultados podem indicar estabilidade da variável ou mudança em
curso. Isto é, comparando-se os índices obtidos em função desse fator poderemos verificar se
a concorrência entre os pronomes é recente na comunidade, se há reinserção ou resistência de
um pronome mais antigo, se há um direcionamento para a supressão de uma das formas ou
um convívio estável entre elas, etc.
No artigo intitulado “O sujeito pronominal de 2ª pessoa na fala carioca: variação e
mudança”, Paredes Silva (2008) traça um panorama das pesquisas que realiza sobre o assunto
desde a década de 1980. Ela afirma que, no Rio de Janeiro, “desde a metade do século
passado [século XX] prevalece a forma você para o tratamento íntimo do ouvinte”
(PAREDES SILVA, 2008, p. 97); por esse motivo, havia “um fato aparentemente novo: o
ressurgimento de tu como pronome sujeito na fala carioca, agora com a flexão verbal não
padrão” (idem, p. 98). Desse modo, a pesquisadora sugere que, durante um período, o
pronome tu caiu em desuso, momento em que vigorou o pronome você. Ela conjectura que o
ressurgimento da forma tu foi favorecida pelo processo de cliticização do você (tornando-se
cê), fato que gerou a necessidade de um pronome mais forte “principalmente, [para] interpelar
o ouvinte de forma mais incisiva” (idem, p. 100). Assim, a recuperação do tu não foi
proporcionada somente fatores pragmáticos, mas também puramente linguísticos, como a
saliência fônica.
Na variedade manauara, a cliticização do você não pode ser usada como argumento
para a existência do tu, porque, das 318 ocorrências daquele pronome, apenas 17 se
realizaram como cê (o que representa apenas 5% da amostra). Pelo contrário, parece-nos que
57
esse processo está iniciando, mas afeta as três faixas etárias estudadas: são cinco ocorrências
na primeira faixa, nove na segunda e três na terceira.
No estudo que realizou em São João da Ponte (MG), Maria Alice Mota (2008)
verificou que o tu estava presente em todas as faixas etárias com as quais trabalhou, embora
fosse predominante na faixa dos jovens. Ela entende o pronome tu como uma marca de
ruralidade, que destoa da urbanidade do Norte mineiro: “O fato de SJP ter mantido o
tratamento por ‘tu’, enquanto os municípios vizinhos, mais urbanizados e desenvolvidos o
perderam, permite-nos concluir que essa variante linguística seria um vestígio de um modo de
falar rural” (MOTA, 2008, p. 83). Assim, a existência desse pronome pode ser considerada
como uma resistência. Segundo a pesquisadora, nessa comunidade, os jovens utilizam o
pronome tu em um nível de intimidade, sendo uma estratégia linguística para a construção de
uma identidade do grupo, ideia que comunga com Lucca (2005).
Tal ideia não parece fundamental em nossas análises. A Tabela 5 mostra que, do
mesmo modo que acontece com o fator gênero, o que importa são os contextos de utilização
do pronome: tu mais utilizado nos diálogos e você nas entrevistas e elocuções formais.
Faixa etária
1ª (20-35
anos)
Pronome
Tu
Você
D2
56
18
DID
05
48
EF
00
07
2ª (36-55
anos)
3ª (56 anos
em diante)
Tu
Você
Tu
Você
88
32
08
06
04
92
01
54
04
28
_
Tabela 5: distribuição das ocorrências em função dos fatores faixa etária e situação discursiva
Pode-se notar certa estabilidade quanto aos usos em função de ambos os fatores. O que
nos chama a atenção é o equilíbrio dos pronomes nos diálogos da terceira faixa etária. Vale
ressaltar que nessa situação de registro gravamos apenas dois informantes, ambos do sexo
masculino. Esse fato pode ter provocado um enviesamento nos resultados, o que pode ser
mais bem estudado com a ampliação do acervo.
Se há uma mudança em andamento, não diz respeito à variação entre os pronomes,
mas quanto ao acordo verbo-sujeito. Em termos percentuais, a terceira faixa etária apresenta
alto índice de concordância canônica com o pronome tu, enquanto a primeira oferece um
índice irrelevante, como se pode observar na seguinte Tabela 6:
Faixa etária
1ª (20-35 anos)
2ª (36-55 anos)
3ª (56 anos em diante)
Concordância
Canônica
1/63 (1,6%)
30/96 (31,3%)
8/9 (89%)
Concordância
Inovadora
62/63 (98,4%)
66/96 (68,7%)
1/9 (11%)
Tabela 6: concordância verbal com o pronome tu em função do fator faixa etária
Considerações finais
As análises expostas no decorrer do texto apontam para uma não pertinência das
variáveis gênero e faixa etária como fatores sociais que influenciam a alternância entre
58
pronomes tu e você. Conclui-se, portanto, que a variação é determinada pelo contexto
conversacional, pelos tipos de registro.
Retomando a sugestão de Brown e Gilman (1960), em se estabelecer a dicotomia T/V,
pronomes de familiaridade e formalidade, de intimidade e distanciamento, verificamos que a
forma tu mostrou-se mais frequente como indicador de +envolvimento, -monitoramento e
+expressividade, enquanto a forma você assinala a direção contrária. O você, com sua variável
cliticizada cê, marca distanciamento social na variedade manauara.
Quanto ao acordo verbo-sujeito (tu), constatamos que a concordância canônica vem
sendo suprimida. Apesar de muito utilizada pela terceira faixa etária, seu uso decresce à
medida que a idade dos informantes diminui, apresentando na primeira faixa etária um índice
irrelevante. Assim, tal fato sugere a existência de uma mudança em progresso.
Há a necessidade de estudos mais detalhados em relação à referenciação do pronome,
se genérica ou específica, pois, em determinados registros, o amplo uso de uma forma com
referência genérica exige que a outra faça a referência específica.
Também é observável a utilização dos dois pronomes no mesmo enunciado. Esse fato
demonstra que não são apenas os fatores sociais que implicam a variação, mas outros mais
não estudados aqui por nós.
Como nos restringimos ao estudo da variação na fala culta, sugerimos que se averigúe
o comportamento desses pronomes na variedade popular e também em interações de falantes
com e sem formação escolar superior. Além disso, lembramos que há na comunidade duas
outras formas de se dirigir a segunda pessoa que são o pronome senhor (e variações
morfológicas) e sujeito nulo.
Todas essas considerações demandam pesquisas sobre a realidade linguística do
Amazonas e do Norte brasileiro como um todo.
THE SOCIAL FACTORS’ INFLUENCE IN SHIFTING BETWEEN TU AND VOCÊ PRONOUNS IN
THE MANAUARA SPEECH
ABSTRACT: Abstract: This work introduces an analysis of the use of the pronouns tu/você in the Manauara
urban speech, with the objective of describing the social factors which influence the variation in discursive
situations of formal utterances (EF), dialogical utterances (D2) and interviews (DID). The analyzed corpora
belong to the digital data bank of the Projeto Fala Manauara Culta (FAMAC) and are made from a total of 30
recordings. It is considered as social variables: genre, age group, schooling, and be born and be living in
Manaus for at least twenty years. Converging the principles of the Variationist Sociolinguistics and of the
Functionalism, from the dichotomic proposal of the use of T/V and its social dyads of Brown and Gilman (1960),
it was investigated the shifting between tu and você, measuring these occurrences, analyzing the criteria of
choices between the available forms to refer to a second person and verifying the social factors and ideological
conditioners of these choices. In absolute terms, the results obtained point to the predomination of the innovating
form você; nevertheless, the more informal the elocution context is, the more probable is the use of tu.
39
KEYWORDS: Pronouns of address; Pronoun variation; Manauara cult speech.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BROWN, R.; GILMAN, A. 2003. The pronouns of power and solidarity. In: Sociolinguistics:
the essencial readings. PAULSTON, C. Brat; TRUCKER, G. R. (org.)
DIAS, E. P. O uso de tu no português brasiliense falado. 104 f. Dissertação (Mestrado em
Linguística) – Instituto de Letras, UnB, Brasília, 2007.
39
Agradecemos à prof. Ms. Maristela Barbosa Silveira por ter traduzido para o inglês título, resumo e palavraschave.
59
FAMAC. Corpora. Disponível em: www.famac-uea.com.br/corpora
LABOV, William. Padrões sociolinguísticos. Trad. Marcos Bagno, Maria Marta Pereira
Scherre e Caroline Rodrigues Cardoso. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
LEÃO, Paula; ALTENHOFEN, Cléo; KLASSMANN, Mário. A variação de “tu” e “você”
no
português
falado
no
Sul
do
Brasil.
Disponível
em:
http://www.ufrgs.br/propesq/livro2/artigo_paula.htm Acessado em: 15/02/2011.
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MODESTO, Artaxerxes. Formas de tratamento no Português Brasileiro: a alternância tu/você
na cidade de Santos-SP. Revista Letra Magna. n. 07, p. 1-27, 2º semestre, 2007. Disponível
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PAIVA, Maria da Conceição. Sexo. In: Introdução à sociolinguística variacionista. Rio de
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PAREDES SILVA, Vera Lúcia. O sujeito pronominal de 2ª pessoa na fala carioca: variação e
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SOARES, Maria Elias. As formas de tratamento nas interações comunicativas: uma pesquisa
sobre o português falado em Fortaleza. 1980. Dissertação (Mestrado em Letras) – PUC, Rio
de Janeiro, 1980.
60
A ordem SV/VS no português em aquisição como L2 na fronteira
Brasil/Paraguai: uma investigação sociofuncionalista na interface
aquisição/variação
Sebastião Carlos Leite GONÇALVES40 (UNESP/CNPq)
Juliana Daher SABATIN41 (UNESP)
Sandra Denise GASPARINI-BASTOS42 (UNESP)
RESUMO: Sob perspectiva sociofuncionalista, apresentamos, neste artigo, resultados da investigação da ordem
SV/VS em dados de aquisição do português brasileiro (PB) como segunda língua (L2) por crianças paraguaias
residentes na fronteira Brasil/Paraguai, as quais têm como língua materna (L1), até idade escolar, o espanhol
paraguaio (EP) e/ou o guarani paraguaio (GP). Apesar de se tratar de línguas tipologicamente semelhantes, o EP
e o GP apresentam mais padrões de variação na ordem de constituintes sentenciais do que o PB. A hipótese
central do trabalho é a de que parâmetros de ordenação de constituintes sentenciais de L1 interferem na aquisição
de L2. Os dados foram coletados na escola brasileira frequentada pelas crianças por meio da gravação de
interações espontâneas e por meio de entrevistas com pais e professores das crianças. Apoiados no método da
Sociolinguística Quantitativa, os resultados apontam para uma confirmação apenas parcial da hipótese de que a
ordem VS presente no PB em aquisição como L2 é resultante de transferência de regras das línguas previamente
adquiridas pelas crianças.
PALAVRAS-CHAVE: Sociolinguística. Aquisição de L2. Ordem SV/VS. Línguas em contato.
Introdução
Desde o trabalho pioneiro de Greenberg (1963) sobre a ordem de Sujeito, Verbo e
Objeto (daqui em diante, S, V e O, respectivamente) na oração, é consenso que, numa
perspectiva translinguística, o modo como esses constituintes se arranjam no interior da
sentença é variável. Dos seis padrões de ordenação possíveis de S, V e O, as línguas naturais
distribuem-se em três padrões dominantes e três padrões mais raros. É de Greenberg o quadro
abaixo, que sintetiza os padrões tipológicos de ordenação de constituintes sentencias.
Tipo I
Tipo II
Tipo III
VSO (p. ex. árabe)
SVO (p. ex. português, espanhol)
dominantes
SOV (p. ex. japonês)
VOS, OVS, OSV
raros
Quadro 1: Padrões tipológicos de ordenação de S, V e O (GREENBERG, 1963, p. 61)
Em termos interlinguísticos, no entanto, há, por um lado, línguas de ordenação de
constituintes mais rígida, como o japonês, que, apesar de ser língua de caso morfológico,
categoricamente posiciona V ao final da sentença (KUNO, 1990), e, por outro, línguas de caso
morfológico que apresentam ordenação livre, como o latim, para as quais não parece tarefa
fácil estipular uma ordem básica (MITHUN, 1992).
Entre esses dois extremos, há ainda línguas sem marcação morfológica de caso e com
40
CNPq/UNESP – Universidade Estadual Paulista. Departamento de Estudos Linguísticos e Literários. São José
do Rio Preto – São Paulo – Brasil. 15054-000 – [email protected]
41
UNESP – Universidade Estadual Paulista. Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos. São José do
Rio Preto – São Paulo – Brasil. 15054-000 – [email protected]
42
UNESP – Universidade Estadual Paulista. Departamento de Letras Modernas. São José do Rio Preto – São
Paulo – Brasil. 15054-000 – [email protected]
61
ordenação flexível, as quais, a depender do contexto sintático, semântico e pragmático,
permitem variação em relação a sua ordem não-marcada, como é o caso do português e do
espanhol, este com padrões de ordenação mais variável do que aquele, em relação a suas
ordenações básicas SVO (OLIVEIRA, 1989; BRAGA & BENTIVOGLIO, 1988;
BENTIVOGLIO & WEBER, 1986).
Apesar da diversidade de abordagens e do grande número de investigações sobre a
variação na ordem de constituintes oracionais em diferentes línguas, incluindo o português
brasileiro (BITTENCOURT, 1980; LIRA, 1982; BERLINCK, 1988; OLIVEIRA, 1989;
PEZATTI & CAMACHO, 1997), são raros na literatura estudos que tratem desse tema
considerando contextos de aquisição de uma segunda língua (L2) em uma abordagem
variacionista, como a que aqui pretendemos desenvolver. Na interface variação/aquisição de
L2, outros temas, no entanto, já foram investigados (cf. EMMERICH & PAIVA, 2009;
GOMES, 2009; LUCCHESI & MACEDO, 1997).
O resultado da pesquisa que aqui apresentamos centra-se na investigação da ordem de
S e V no português brasileiro (PB) em aquisição como L2 (doravante PBAL2) por crianças
paraguaias, as quais têm o espanhol paraguaio (doravante EP) e/ou o guarani paraguaio
(doravante GP) como língua materna (L1). Para tanto, controlamos um conjunto de variáveis
para investigação da ordem de S em relação a V, nos moldes da Sociolinguística Variacionista
(LABOV, 1972), pressupondo que resultados quantitativos para variáveis linguísticas podem
ser reveladores das regras de L1 que interferem na aquisição de L2. Nossa hipótese principal é
a de que, no caso das crianças da fronteira Brasil/Paraguai, parâmetros de L1 influenciem o
PBAL2, sendo esses parâmetros não só de natureza intralinguística, mas também de natureza
extralinguística.
Além de buscar evidências para a sustentação dessa hipótese, neste trabalho propomos
traçar um paralelo entre o PBAL2 por crianças e o PB falado como L2 por adultos da mesma
comunidade de fala, tomando por base os resultados da pesquisa sociolinguística realizada por
Chaves (1989), sob a hipótese de que a ordem VS, dada a interferência da gramática do EP, é
mais frequente na fala das crianças do que na dos adultos.
Este trabalho segue apresentado da seguinte forma: expomos, inicialmente, como
metodologia da pesquisa, breve caracterização da situação sociolinguística da fronteira e dos
sujeitos selecionados e as variáveis controladas na investigação do fenômeno; em seguida,
encontram-se teorizados aspectos da ordem de S e V no PB, no EP e no GP e a noção de
transferência (transfer) no processo de aquisição de L2; a esses aspectos teóricos, seguem os
resultados para as variáveis selecionadas pelo programa estatístico GOLDVARB. A última
seção é reservada às nossas conclusões.
Aspectos metodológicos da pesquisa
A comunidade de fala de onde provêm as crianças sujeitos desta pesquisa situa-se na
fronteira Brasil/Paraguai, tendo, em território brasileiro, a cidade de Bela Vista (MS), e, em
território paraguaio, a cidade de Bella Vista Norte. O intenso contato linguístico nessa área
deve-se não somente ao fato de se tratar de região fronteiriça, mas também ao livre acesso
entre os dois países. O bilinguismo já estabilizado em terras paraguaias é o que propicia o
contato de três diferentes línguas na fronteira: o EP, o GP e o PB.
Em razão das condições socioeconômicas da cidade de Bella Vista (PY) e do livre
acesso permitido aos moradores da fronteira, os paraguaios, diariamente, migram para Bela
Vista (MS) em busca dos serviços públicos ali oferecidos, principalmente serviços de saúde e
de educação, garantidos apenas aos que nascem em território brasileiro. Assim, é comum
encontrar nessa região filhos de paraguaios de nacionalidade brasileira, mas que não são
falantes do PB, ao menos até a idade normal de escolarização. Por outro lado, é raro encontrar
62
brasileiros proficientes em duas e/ou em três línguas, pela exposição a elas, embora sejam
ausentes pesquisas nessa direção.
A peculiaridade ocorre no desenrolar do processo de escolarização das crianças
paraguaias, que, em sua maioria bilíngue, chegam às escolas brasileiras sem falar o PB.
Mesmo diante dessa realidade, na comunicação diária em ambiente escolar, é “vedado” pelos
professores e funcionários da escola o uso de qualquer outra língua que não seja o PB. Dessa
forma, diferentemente da instanciação de bilinguismo simultâneo na aquisição do EP e do GP,
as crianças, coercitivamente, acabam por adquirir uma segunda e/ou terceira língua, conforme
o caso, ainda dentro do período crítico de aquisição da linguagem (ELLIOT, 1982), vindo a
constituir, assim, na cidade paraguaia da fronteira, uma situação de multilinguismo e
multiculturalismo.
Foram seis as crianças paraguaias selecionadas para a pesquisa, as quais, residentes em
Bella Vista Norte (PY), encontravam-se, à época da coleta de dados, entre os anos de 2009 e
2010, frequentando a Escola Municipal “Nossa Senhora do Perpétuo Socorro”, de Bela Vista
(MS).
Diante da impossibilidade de realização de um estudo longitudinal sobre aquisição de
L2, nessas situações, o ambiente escolar não preparado para o acolhimento de crianças
falantes de outras línguas nativas, como afirma Gonçalves (1997), é local propício para um
estudo transversal, que pode ser realizado escolhendo-se crianças de diferentes séries
escolares. Esse procedimento permite prever que o tempo de contato das crianças com a
língua falada na escola seja coincidente com o ano/série em que elas se encontram
matriculadas.
Em vista desse procedimento se mostrar adequado à investigação aqui relatada, foram
selecionadas, então, duas crianças do 1º ano do Ensino Fundamental, duas do 2º ano e duas do
3º ano, por não ser exequível, no período de tempo de realização da pesquisa, o
empreendimento de um estudo de natureza longitudinal, o que seria possível somente por
meio de acompanhamento das diferentes fases do desenvolvimento linguístico dessas
crianças. Adotando-se esse procedimento e seguindo Gonçalves (1997), investigamos a
hipótese de que possíveis interferências de padrões de L1 diminuem à medida que aumenta o
tempo de contato da criança com L2.
O quadro 2 apresenta informações das crianças selecionadas.43
Idade
Criança
(anos;meses)
B.
P.
R.
G.
F.
C.
6;7
6;3
7;2
7;8
8;1
8;3
Uso das línguas de contato
Série
do
PB
EP
GP
EF Família Escola Família Escola Família Escola
1ª
+
+
+
+
1ª
+
+
+
2ª
+
+
+
2ª
+
+
+
3ª
+/+
+
+
3ª
+
+
+
Quadro 02: Dados das crianças selecionadas
A primeira criança, B., de 6 anos e 7 meses, é a mais falante pelo uso que faz das três
línguas: o PB, na escola e na família, o EP e o GP, na família.
As crianças C., de 8 anos e 3 meses, e R., de 7 anos e 2 meses, irmãs, bilíngues, usam
o PB na escola e na família, e o EP apenas na família; têm irmãos e primos brasileiros com os
43
Como garantia de anonimato, as crianças são referidas aqui apenas pelas iniciais do primeiro nome.
63
quais convivem nos finais de semana, o que explica suas fluências no PB; ambas não
dominam o GP.
A criança P., de 6 anos e 3 meses, é a mais nova e sua família é toda paraguaia;
entretanto, seus irmãos mais velhos estudaram no Brasil, e ela, durante as gravações, ressaltou
o fato de eles ajudarem-na com as tarefas escolares; também não domina o GP.
A criança F., de 8 anos e 1 mês, foi a menos disposta a interagir durante as gravações,
talvez pela pouca fluência em PB; de família paraguaia, ela utiliza tanto o GP quanto o EP em
contexto familiar e social; faz uso restrito do PB, mesmo na escola, onde é a única das
crianças a usar o EP.
Por fim, a criança G., de 7 anos e 8 meses, tem forte influência do EP, visto que toda
sua família fala esse idioma, além do GP; seu contato com o PB se restringe ao tempo que
passa no ambiente escolar.
Quanto ao uso das línguas em contato, aspecto preliminarmente investigado por meio
de entrevista com os profissionais da escola e com as famílias das crianças, verificamos que
todas elas falam o PB mais como meio de comunicação em ambiente escolar. O EP é falado
por todas elas de maneira superior ao PB, enquanto o GP, de uso restrito ao convívio familiar,
é utilizado somente na interação com pais e com avós monolíngues, que dominam apenas o
GP. O uso do EP é predominante no ambiente familiar. Observe-se, ainda, que, em ambiente
familiar, as tradições e os costumes no uso do EP e do GP não se alteram.
Para a obtenção de amostras do PBAL2, as crianças foram entrevistadas
individualmente e em grupo na biblioteca da escola, durante aproximadamente duas horas,
perfazendo cerca de 12 horas de gravação. As entrevistas foram transcritas integralmente e,
posteriormente, foram selecionadas unidades sentenciais mínimas, eliminando-se ocorrências
de sentenças sem V, sem S ou sem combinação mínima de S e V, independentemente da
ordem na sentença. O critério utilizado para se detectar a interferência sintática de L1 sobre
L2 foi a verificação de fatores linguísticos, em sua maioria, identificados na literatura e que
podem condicionar a inversão da ordem de S e V, conforme mostrado no quadro 03 a seguir.
Variável dependente: ordens SV e VS
1. Fatores de natureza sintático-semântica
a) grau de transitividade da construção (HOPPER & THOMPSON, 1980);
b) flexão do verbo (CHAVES, 1989);
c) estrutura do SN-sujeito (RUBIO, 2008);
d) tipo de estado-de-coisas (DIK, 1997);
e) advérbio no início da sentença (CHAVES, 1989);
f) modalidade de frase (TORREGO, 1984)
2. Fatores de natureza semântica
a) tipo de verbo (HALLIDAY, 1994);
b) animacidade do sujeito (CHAVES, 1989)
3. Fatores de ordem pragmática
a) status informacional do sujeito (BENTIVOGLIO & WEBER, 1986)
4. Variáveis extralingüísticas
a) informante;
b) sexo/gênero;
c) tempo de contato com o PB;
d) fluência nas línguas em contato;
e) grau de exposição ao português.
Quadro 03: Variáveis controladas nos dados da pesquisa
64
Dentre os fatores verificados na análise, são explicitados e exemplificados, neste
artigo, apenas os fatores selecionados pelo programa estatístico GOLDVARB, os quais são
apresentados de acordo com a ordem de relevância indicada pelo programa, a saber: status
informacional do sujeito, tipo de estado-de-coisas, presença de advérbio inicial, animacidade
do sujeito, fluência nas línguas de contato.44
Para a implementação do fator de natureza pragmática status informacional do sujeito,
serviu-nos de base a taxonomia de Prince (1981), que nos permitiu verificar se se tratava de
sujeito portador de informação nova (01a) ou de informação dada (01b).45
(1)
a.
b.
P: Você estuda aqui faz tempo?
B: Da primera série.
P: Essa aqui é sua professora?
B: Não, a Miraci é minha professora. [B. 6;7]
P: E você gosta da sua professora?
B: Gosto. Mas ela não deixa a gente subi na árvore. [B. 6;7]
Seguindo parcialmente a proposta de Prince (1981), consideramos como informação
dada e nova referentes mencionados e não mencionados, respectivamente, em porção anterior
do discurso. Alternativamente à proposta de Prince, a de Chafe (1976), de base mais
cognitiva, caracteriza o status informacional da seguinte maneira: quando um referente é
informação dada, o falante assume que ele esteja disponível na consciência do destinatário no
momento da interação, e quando informação nova, que não esteja disponível ao ouvinte.
Adotamos em nossa análise a proposta de Prince, por considerarmos que, por se tratar de
proposta de base textual, apresenta critérios de mais fácil implementação por parte do analista,
diferentemente da proposta de Chafe, a qual requer que se lide com inferências que muitas
vezes não são acessíveis ao analista no contexto de interação.
Entre os fatores de natureza sintático-semântica investigados, uma proposta semântica
para fazer referência ao evento transitivo codificado na sentença pode ser buscada na
tipologia de estado-de-coisas (doravante EsCo), de Dik (1997).
Um EsCo, conceituado como algo que pode ocorrer em algum mundo (real ou
mental), localiza-se no espaço e no tempo, tem certa duração, pode ser visto, ouvido ou
percebido, e, portanto, ser avaliado em termos de sua realização. A natureza semântica de
toda predicação pode ser codeterminada pelos argumentos e adjuntos com os quais um
predicado se combina. O EsCo é então uma função composicional de propriedades tanto de
predicados quanto de termos.
Os mais importantes parâmetros para uma tipologia de EsCo são, segundo Dik (1997),
[+/- dinamicidade], [+/- controle] e [+/- telicidade].
EsCo [+din], ou Evento, envolve algum tipo de mudança de uma entidade, após a
ocorrência do evento. No EsCo [-din], ou Situação, as entidades envolvidas são apresentadas
como estando ou permanecendo as mesmas durante o intervalo de tempo em que o EsCo
ocorre.
EsCo [+con] permite reconhecer o papel que uma entidade tem de determinar a
realização ou não do EsCo; a não realização caracteriza o EsCo [-cont].
O EsCo [+tel], ou realização, refere-se a ações totalmente efetuadas que alcançam um
ponto terminal natural, enquanto processos [-tel] têm duração não limitada.
44
Para detalhamento das demais variáveis, ver Sabatin (2010).
Na interação dialógica, a letra P marca o início do turno da pesquisadora (deslocado à esquerda); as letras
iniciais do turno deslocado à direita identificam a fala das crianças (apresentadas no quadro 1).
45
65
Adotando-se, nesta pesquisa, apenas os parâmetros [dinamicidade] e [controle], no
quadro 4, a seguir, é apresentada a tipologia básica de EsCo, de que as ocorrências em (02)
são exemplos.
Dinamicidade
Controle
+ cont
- cont
(2)
+ Din
- Din
Ação (02ª)
Posição (02b)
Processo (02c)
Estado (02d)
Quadro 04: Tipos de estados-de-coisas (DIK, 1997)
a. Daí eu vai tomar banho. [P. 6;3]
b. De pé eles ficam. [B. 6;7]
c. Transbordô o rio. [G. 7;8]
d. Parece um vulto o carro. [G. 7;8]
Essa tipologia de EsCo, embora não adotada em nenhum trabalho que fundamenta
nossa pesquisa, nos pareceu bastante interessante, uma vez que permite verificar se o tipo de
EsCo interfere na ordem dos constituintes da sentença.
Em relação ao contexto precedente da sentença, consideramos a presença de advérbio
(03a) ou não (03b), fator que, segundo Silva Corvalán (1982), correlaciona-se fortemente com
a ordem VS em espanhol, por se tratar de posição usada como mecanismo apresentacional.
(3)
a. Lá em casa a gente só fala português. [R. 7;2]
b. Eu não sei a música do sítio. [R. 7;2]
Em relação à animacidade do sujeito, fator de natureza semântica, Berlinck (1988)
afirma que a verificação dessa variável é importante para o fenômeno da ordem SV/VS. Em
vários estudos, a correlação a que se chega é a de que a ordem VS é favorecida pela presença
de referente sujeito com traço [- animado]. Esse também é o resultado dos estudos de Chaves
(1989), para o PB da fronteira, de Pontes (1987), para a variedade mineira do PB, de Givón
(1976), para o hebraico falado em Israel, de Hatcher (1956, apud Chaves 1987), para o
espanhol, inglês e alemão, e os de Silva Corvalán (1982), para o espanhol. Em relação a esse
critério, realizamos a análise dos dados classificando os sujeitos apenas em [+humano] (04a),
e [-animado] (04b).
(4)
a. Eu num sei como ele feiz isso. [B. 6;7]
b. Era lindo o cabelo dela. [P. 6;3]
Como variável extralinguística, investigamos a fluência das crianças nas línguas de
contato, variável que, conforme dados do quadro 1, ficou restrita às variantes fluência no PB e
no EP e fluência no PB, no EP e no GP, com três crianças em cada uma delas. Essa variável
não leva em conta o nível de fluência em cada uma das línguas nem a equiparação entre cada
nível, mas apenas a capacidade de se comunicar nas línguas em contato. Nossa hipótese com
essa formulação é a de que quanto maior o número de línguas usadas pelas crianças, maior a
possibilidade de interferência de padrões de ordenação de L1 no PBAL2.
Para a realização da análise quantitativa, o processamento dos dados foi feito
eletronicamente, empregando-se o “pacote” estatístico GOLDVARB, criado com a finalidade
específica de tratamento de fenômenos variáveis. Além da apuração de frequência, o
GOLDVARB permite a extração de pesos relativos, que expressam a probabilidade de
66
ocorrência do fenômeno variável em análise, frente à consideração dos diferentes contextos
variáveis que compõem o envelope de variação.46
A ordem de constituintes sentenciais e a aquisição de L2
Como já deve ter ficado claro até este momento, a ordem do S é um aspecto variável
nas línguas em contato na fronteira.
Segundo Dietrich (2009), o GP, língua que provém do tronco tupi-guarani, é uma
língua que se caracteriza por mais de quatrocentos anos de influência espanhola. A ordem
não-marcada dos constituintes sentenciais do guarani é o padrão OV, com a posição de S
relativamente livre. Entretanto, o GP moderno tem se modificado ao longo do tempo, em
razão do contato intenso com outras línguas, como o PB e o EP. Segundo Dietrich, no GP
moderno a ordem OV não é impossível, porém é pouco frequente. As ordens SVO ou OVS
são dominantes, não só na linguagem coloquial como também em textos literários.
Por influência do EP, a ordem dos constituintes no GP tem se tornado bastante
flexível, sendo rígida em alguns contextos, como o EP. Dietrich acrescenta que a
possibilidade de ambiguidade nas orações com objeto direto favorece a permanência da
ordem SVO, como acontece no PB e no espanhol, em geral.
O espanhol caracteriza-se como uma língua de ordem de constituintes flexível, em
razão, principalmente, da mobilidade de seus sujeitos e complementos. Em termos
tipológicos, como afirma Martínez Caro (2006), o espanhol pode ser considerado como uma
língua de ordem dominante SVO, à semelhança da maioria das línguas românicas. Apesar
dessa característica predominante, a ordem de constituintes em espanhol admite considerável
variação na posição dos constituintes da sentença, em especial do sujeito.
Uma característica típica do espanhol é a possibilidade de se omitir o sujeito quando
este representa informação dada ou quando a desinência verbal torna sua presença
desnecessária, fato que parece divergir do português (especialmente o português falado),
idioma em que a função de sujeito aparece quase sempre preenchida em razão de a desinência
verbal nem sempre permitir identificação inequívoca do sujeito gramatical.
Como mostra Martínez Caro (2006), embora a ordem SVO seja típica nas construções
transitivas, outras ordens são possíveis sob certas condições. Uma típica exceção, segundo a
autora, são construções que trazem, principalmente por razões pragmáticas, argumentos não
sujeitos para a posição inicial, tais como deslocamentos e topicalizações. Nesses casos, há
uma tendência geral de posposição do sujeito. A ordem OVS é preferida ou mesmo requerida
nos predicados que contenham um objeto experienciador (como em Me (experienciador)
gusta mucho la ciudad (S)). Essa ordem, baseada numa combinação de fatores sintáticos,
semânticos e pragmáticos, apoia-se também na natureza semântica do verbo (nesse caso,
gustar) e na tendência universal de se colocar o elemento experienciador na primeira posição.
Há que se considerar, também, a possibilidade de ordem VS não marcada com verbos
intransitivos, sendo os do tipo existenciais os que mais favorecem essa ordenação, conforme
também atestam Bentivoglio & Weber (1986) para o espanhol falado. E, ainda, algumas
orações podem apresentar uma ordem VS por especiais razões pragmáticas, como
topicalização e focalização.
Importantes estudos sobre o PB apontam a ordem SVO como a não-marcada
(OLIVEIRA, 1989; PONTES, 1987; BRAGA & BENTIVOGLIO, 1988; BERLINCK, 1988;
CASTILHO, 1987; BITTENCOURT, 1980; PEZATTI, 1992; PEZATTI & CAMACHO,
1997), estando a ordem VS restrita a alguns contextos linguísticos.
46
Peso relativo acima de 0.5 favorece a atuação de uma variante sobre o fenômeno variável e abaixo,
desfavorece tal atuação.
67
Apesar da possibilidade de inversão dos constituintes S, V e O em alguns casos, o PB
é uma língua em que a ordem dos constituintes tem um valor gramatical, pois, em construções
transitivas, por exemplo, mudando-se de posição S e V, corre-se o risco de mudar o
significado expresso no enunciado.
No PB, é consensual que o verbo intransitivo é o fator principal da ordem VS
(PONTES, 1987; LIRA, 1982, dentre outros). Segundo Pontes (1987, p. 149), a generalização
a que se pode chegar para a ordem VS, no PB, ocorre em “ambientes em que não seja
necessário recorrer à ordem SVO para distinguir sujeito de objeto [...]. Daí ela ser mais
encontrada com verbos intransitivos”. Conforme Pezatti & Camacho (1997), fica na
obscuridade a ordem em construções com argumento único, já que a classificação de
Greenberg não esclarece se as sequências VS e SV já estariam implícitas nas estruturas
básicas depreendidas. O que se pode supor é que essas sequências, nas línguas naturais, têm
comportamento semelhante ao dos verbos de dois argumentos.
Tratar a ordem VS como uma forma variante de SV, dentro do modelo laboviano de
variação linguística, tem sido alvo de críticas por parte de alguns pesquisadores, por
considerarem que elas se encontram em distribuição complementar, não constituindo regra
variável. Assim como Berlinck (1988), entendemos que o estudo da regra variável, em tal
situação, deve ser empreendido como procedimento de descoberta e como recurso capaz de
verificar a ausência de variação.
No tocante à ordem de constituintes sentenciais nas fases de aquisição da linguagem,
segundo Bloom (1994), esse parece ser um dos primeiros aspectos a ser dominado pela
criança, que elege um padrão de ordenação fixo para marcar relações gramaticais, mesmo em
casos em que a ela é fornecida evidência de ordenação de constituintes livre, como, por
exemplo, em línguas de marcação morfológica de caso. Até que adquira a morfologia de caso,
a criança expressará relações gramaticais recorrendo-se a uma ordem fixa.
Na aquisição de uma L2, entretanto, se L1 e L2 apresentam parâmetros diferentes de
ordenação, a criança tende a recorrer aos padrões de ordenação de sua L1. Gonçalves (1997),
investigando o PBL2 de crianças que, até idade escolar, falavam unicamente o japonês como
L1, mostra que essas crianças transferem o padrão OV do japonês para o PBL2. Reforça essa
sua evidência a transferência também de padrões de ordenação interna do SN do japonês para
o PBL2, resultando SNs em que o léxico é do português, mas a estrutura é a do japonês.47
Ao tentar formular uma teoria que explicasse a interiorização e aquisição de L2,
muitos estudiosos dedicaram-se à análise da transferência, da interferência ou da interlíngua e
da fossilização. Nos anos 50, os estudos sobre a transferência remetem à ideia de que essa tem
papel fundamental na aquisição de L2 (ORTIZ ALVAREZ, 2002).
Essa teoria de transferência postula ainda que, na aquisição de uma L2, dificuldades
ou facilidades são consequências de diferenças e/ou semelhanças que existam entre L1 e L2
(ODLIN, 1989). A transferência de regras semelhantes parece ser aspecto facilitador da
aquisição de L2, enquanto a de regras diferentes exige que a criança vá aos poucos
eliminando de sua produção em L2 diferenças de padrões entre o que ela ouve e o que ela
produz. Em nosso caso, é o que parece ocorrer no PBAL2.
Análise quantitativa dos resultados
Das 440 ocorrências analisadas em nosso trabalho, 380 (86,4%) apresentaram a ordem
SV e 60 (13,6%), a ordem VS. O fato de prevalecer nos dados a ordem SV, entretanto, não
torna menos relevante os resultados para o PBAL2, quando se compara esse resultado aos
47
São exemplos do autor (i) de ordem OV: “Eu churrasco comeu”, “Eu casa dela vai não”; (ii) de ordem
complemento-Nome no SN: “Haru de papai” (= papai de Haru), “rei leão do irmão” (= irmão do rei leão).
68
obtidos por Chaves (1987), para o PB falado como L2 por paraguaios adultos na mesma área
de fronteira. A comparação dos resultados segue na Tab. 1.48
Ordem
SV
VS
Indivíduos
Crianças
380/440
86,4%
60/440
13,6%
Adultos (CHAVES, 1987)
1.230/1.306
94,2% 76/1.306
5,8%
Tab. 1: Frequência de ordem SV e VS no PB da fronteira
Ao compararmos os índices apresentados, verificamos um percentual bem diferente de
ordem VS no PBAL2. Enquanto na fala das crianças o percentual é de 13,6% de ordem VS,
na dos adultos da mesma comunidade é de apenas 5,8%, diferença bastante significativa. Esse
percentual de ordem VS na fala das crianças pode ser explicado não só pela influência do EP,
mas também pelo postulado de Givón (1995), sobre o processo de sintaticização da fala da
criança e da fala do adulto de modo geral: enquanto esta é marcada por uma maior rigidez dos
padrões sintáticos, aquela, estruturada pragmaticamente, apresenta uma sintaxe mais “frouxa”,
diferenças que também se verificam entre escrita e fala, entre estilo formal e informal e entre
crioulos e pidgins.
Na consideração do postulado givoniano, concluímos que, nos estágios mais iniciais
da aquisição do PB como L2, a ordem de palavras é mais livre, também por razões
pragmáticas, e nos estágios finais, se torna mais fixa, mais sintaticizada, portanto.
Dos fatores sociais e linguísticos propostos, alguns se mostraram relevantes, em maior
ou menor nível, conforme apresentados em (05), respeitando-se a ordem de significância
indicada pelo GOLDVARB.
(5)
Ordem de significância das variáveis selecionadas
1ª) status informacional do sujeito
2ª) tipo de estado-de-coisas
3ª) presença do advérbio inicial
4ª) animacidade do sujeito
5ª) fluência nas línguas de contato
Como se observa, das cinco variáveis selecionadas, uma é de natureza pragmática (1ª),
duas são de natureza sintático-semântica (2ª e 3ª), uma é de natureza semântica (4ª) e uma de
natureza social (5ª).
O status informacional do sujeito, único critério pragmático selecionado, foi proposto
por ser amplamente aceita a ideia de que S portador de informação nova tende a se pospor a
V. Os resultados desse fator discursivo são semelhantes quando comparamos a produção de
informantes adultos à de crianças. Expomos na Tab. 2 o percentual e os pesos relativos (PR,
daqui em diante) das variantes.
VS
SV
Ordem
Status Inf.
%
PR
%
PR
Dado
21/60=35%
.38
274/380=72,1%
.62
Novo
39/60=65%
.72
106/380=27,9%
.28
Tab. 2: Ordem SV/VS, segundo o status informacional do sujeito
48
Sempre que houver similaridade com as variáveis por nós estabelecidas, nossos resultados serão comparados
ao trabalho de Chaves (1987) e ao de outros autores, quando pertinente.
69
Verificamos, na Tab. 2, que a ordem SV é favorecida por sujeito dado, ou seja,
mencionado em discurso anterior. Em relação à ordem VS, o percentual eleva-se
consideravelmente quando se trata de sujeito novo, ou seja, introduzido pela primeira vez no
discurso. Ao compararmos, na Tab. 3, os resultados apresentados em nosso trabalho aos
apresentados por outras três pesquisas, evidencia-se um comportamento regular da atuação do
fator status informacional do sujeito sobre a ordem VS.
Ordem
SV
VS
Pesquisas
Dado Novo Dado Novo
PBL2 de crianças da fronteira
72,1% 27,9% 35,0% 65,0%
PBL2 de adultos da fronteira (CHAVES, 1987)
96,0% 4,0% 43,4% 56,5%
PB adulto do Rio de Janeiro (LIRA, 1982)
37,0% 63,0%
Espanhol adulto falado nos EUA (SILVA 61,0% 39,0% 39,0% 61,0%
CORVALÁN, 1982)
Tab. 3: Ordem SV/VS, segundo o status informacional do sujeito entre diferentes pesquisas49
É possível notar, na Tab. 3, que as porcentagens confirmam a forte tendência de S
portador de informação nova favorecer a ordem VS, e S portador de informação dada, a
ordem SV, independentemente de se tratar de L2 já adquirida ou em fase de aquisição, como
revelam nossos resultados comparados aos de Chaves (1989), ou de PB falado como L1 ou
como L2, como mostram nossos resultados e os de Chaves (1989) comparados aos de Lira
(1982). Aliás, a convergência desses resultados com os de Silva Corvalán (1982) parece
apontar para a atuação do fluxo de informação na ordenação SV e VS como princípio
universal, como atestam outras pesquisas envolvendo línguas diferentes (BRAGA &
BENTIVOGLIO, 1988; BENTIVOGLIO & ASHBY, 1993).
O grupo de fatores tipo de EsCo, segundo em ordem de relevância, traz como
diferencial o fato de não ter sido adotado em nenhuma das pesquisas que serviram como
referência ao presente estudo. Os resultados permitem destacar dois tipos de EsCos relevantes
para correlação segura com a ordem: Ação e Posição, tendo em vista que os dois outros
(Processo e Estado), em princípio, apresentam problemas de distribuição dos dados, com
baixo número de ocorrências em uma das variantes de ordem, conforme se verifica na Tab. 4,
resultado que exige cautela na sua interpretação.
Ordem
SV
VS
EsCo
%
PR
%
PR
Ação [+din, +cont]
186/380=48,9%
.39
33/60=55,0%
.61
Processo [+din, -cont]
2/380=0,5%
.05
5/60=8,3%
.95
Posição [-din, +cont]
182/380=47,8%
.63
19/60=31,6%
.37
Estado [-din, -cont]
10/380=2,63%
.59
3/60=5,0%
.41
Tab. 4: Frequência e PR de ordem SV/VS, segundo o tipo de estado-de-coisas
Recorrendo-se aos PRs, verifica-se que o EsCo Ação favorece a manutenção da ordem
VS (PR .61), enquanto o EsCo Posição favorece a ordem SV (PR .63). Quanto aos EsCos
Estado e Processo, embora apresentem PR acima de .50, os resultados não são plenamente
confiáveis, pois no primeiro caso há menos de cinco ocorrências para a ordem VS, e, no
segundo, há cinco ou menos ocorrências para ambas as variantes, razão forte para
49
Algumas comparações com outras pesquisas serão feitas apenas por meio de frequência, em razão de os
resultados estarem expressos somente em porcentagem.
70
desconsiderar os resultados para esses dois tipos de EsCos, apesar de a variável ter sido
selecionada como relevante pelo programa estatístico.
Desses resultados, o que se verifica é que a atuação da variável tipo de EsCo está
polarizada entre os fatores Ação e Posição, este na manutenção da ordem SV e aquele na da
ordem VS. Observe-se, no entanto, que, em razão de esses dois tipos de EsCos serem
equivalentes quanto ao traço [controle], é, em última instância, a dinamicidade interna do
EsCo que responde pela ordenação de S e V. Assim, pode-se concluir que eventos dinâmicos
favorecem a ordem VS, enquanto eventos não dinâmicos favorecem a ordem SV, conclusão
que permite reincorporar à análise os EsCos Processo e Estado.
Para o grupo de fatores presença de advérbio inicial, a expectativa era a de que esse
fator se mostrasse favorável à ordem VS, tendo em vista que, em tal contexto sintático em
espanhol, a regra de inversão é facultativa (TORREGO, 1984). Dessa maneira, em se tratando
do PBAL2 na fronteira, é de se esperar que advérbios iniciais favoreçam a ordem VS. Os
resultados são os que seguem na Tab. 5.
Ordem
SV
VS
%
PR
%
PR
Advérbio inicial
Presença
11/380=2,9%
.15
9/60=15,0%
.85
Ausência
369/380=97,1%
.53
51/60=85,0%
.47
Tab. 5: Frequência e PR de ordem SV/VS, segundo a presença de advérbio inicial
Os resultados da Tab. 5 de fato confirmam nossa expectativa inicial de que o advérbio
no início da sentença é fator bastante favorável à ordem VS, conforme se pode constatar pelos
PRs, que colocam, de um lado, a presença de advérbio inicial com a ordem VS (PR .85) e, do
outro, a sua ausência com a ordem SV (PR .53), embora, este último caso possa até ser
considerado caso de neutralidade quanto à ordenação de SV.
Por meio da comparação dos nossos resultados aos de Chaves (1987), para a variável
presença de advérbio inicial, é possível observar que advérbio no início da sentença é fator
que favorece a ordem VS também no PB falado como L2 pelos adultos, muito mais até do que
no caso das crianças, como revela a comparação na Tab. 6.
PBL2/Ordem
Adv. inicial
Presença
Ausência
Crianças
Adultos (CHAVES, 1987)
SV
VS
SV
11/380=2,9%
9/60=15,0%
229/1230=18,6%
369/380=97,1% 51/60=85,0% 1001/1230=81,38%
VS
44/76=57,9%
32/76=42,1%
Tab. 6: Ordem SV/VS no PB da fronteira, segundo a presença de advérbio inicial
Os resultados de Chaves (1987) demonstram que a presença de advérbio inicial é
bastante favorável à ordem VS (57,9% dos casos), fato que pode ser explicado com base no
argumento de Silva Corvalán (1982), que considera o advérbio inicial um mecanismo
apresentacional introdutório. Nossos resultados em porcentagem não são tão expressivos
quanto os de Chaves (1987), mas demonstram claramente que diante de advérbio inicial é
maior a frequência de ordem VS (15%) do que de SV (2,9%).
Para a variável animacidade do sujeito, verifica-se na literatura que a ordem VS é
favorecida com sujeito não-humano (GIVÓN, 1976; LIRA, 1982). Assim, a expectativa era
de que haveria maior percentual de ordem SV com sujeitos [+ humano] e VS com sujeitos [animado]. Os resultados obtidos para essa variável seguem na Tab. 7.
71
Ordem
SV
VS
%
PR
%
PR
Sujeito
[+ humano]
348/380=91,5%
.54
40/60=66,6`%
.46
[- animado]
32/380=8,5%
.20
20/60=33,4%
.80
Tab. 7: Frequência e PR de ordem SV/VS, segundo a animacidade do sujeito
Convergindo com resultados de outras pesquisas, a hipótese aqui também se confirma
para a atuação da variável animacidade do sujeito: a ordem SV é levemente favorecida por
sujeito [+ humano] (PR .54), enquanto a presença de sujeito [- animado] favorece fortemente
a ordem VS. A relevância da atuação dessa variável mostra conformidade tanto com os dados
do PBAL2, como também com os do PB falado como L2 por adultos da mesma região,
segundo mostram os resultados de Chaves (1987), expostos na Tab. 8.
PBL2
Crianças da fronteira
SV
VS
Sujeito
[+ humano]
348/380=91,5%
Adultos da fronteira (CHAVES, 1987)
SV
VS
40/60=66,6%
1175/1230=95,5%
63/76=82,9%
[- animado]
32/380=8,5%
20/60=33,4%
55/1230=4,5%
13/76=17,1%
Tab. 8: Ordem SV/VS no PB da fronteira, segundo a animacidade do sujeito
Na tabela anterior, verificamos que no PBAL2, o percentual de ordem VS com
referente sujeito [- animado] é praticamente o dobro (33,4%) do percentual do PB falado
como L2 pelos adultos, que apresenta 17,1% de ordem VS. Esse resultado demonstra que a
criança parece ser mais sensível a essa regra semântica do que o adulto.
Por fim, o único fator extralinguístico selecionado foi fluência nas línguas de contato.
A hipótese para esse grupo era a de que quanto maior o número de línguas de uso pela
criança, maior seria a ocorrência de ordem VS, pelo fato de ela recorrer à sintaxe de L1 no
uso de L2.50 Dessa maneira, ocorreria que, tendo a criança fluência no PB, no EP e no GP,
consequentemente, ela recorreria à sintaxe do EP e do GP, podendo, nesse caso, haver maior
ocorrência de ordem VS, do que no caso de crianças fluentes somente em PB e em EP. Os
resultados seguem na Tab. 9.
Ordem
Língua de uso
PB e EP
SV
%
303/380=79,7%
VS
PR
.55
%
42/60=70,0%
PR
.45
PB, EP e GP
77/380=20,3%
.35
18/60=30,0%
.65
Tab. 9: Frequência e PR de ordem SV/VS, segundo a fluência nas línguas de contato
Observa-se, nos resultados da Tab. 9, que o PR de .65 para fluência nas três línguas de
contato leva à confirmação da hipótese de que a fluência em mais línguas favorece a ordem
VS, resultado que ratifica a ideia de que, no momento de adquirir o PB, as crianças se valem
de regras sintáticas das línguas a que têm acesso.
50
No caso de aquisição simultânea de duas línguas desde o início do processo de aquisição da linguagem, não há
como decidir em favor de uma ou outra língua como L1. Na literatura especializada sobre bilinguismo,
considera-se, nesse caso, que a criança tem duas línguas maternas (DE HEREDIA, 1989).
72
Conclusão
Na proposição desta pesquisa, quatro hipóteses movimentaram a investigação do
PBAL2 na fronteira. Como hipótese principal, postulamos que a ordem VS seria resultado
de transferências de regras da(s) língua(s) previamente adquiridas pelas crianças, o EP e o GP,
línguas tipologicamente semelhantes quanto à ordenação de seus constituintes oracionais.
Como hipóteses secundárias, postulamos que (i) a frequência de ordem VS seria maior na
produção dessas crianças do que na dos adultos da mesma região fronteiriça que usam o PB
como L2; (ii) quanto maior o número de línguas usadas pelas crianças (= fluência), maior a
possibilidade de interferência da(s) língua(s) previamente adquiridas na aquisição do PB
como L2; (iii) com o aumento de tempo de contato das crianças com o PB, diminuem as
interferências da(s) língua(s) previamente adquirida(s).
Relativamente à hipótese principal, ela se confirma parcialmente na correlação com as
outras hipóteses, uma vez que fatores que seriam determinantes para comprovar a
interferência de L1 em L2 (como tipo semântico de verbo, modalidade de frase, grau de
transitividade da construção) não foram selecionados pelo programa estatístico.
Iniciando essa discussão pelas variáveis linguísticas selecionadas, constatamos que
status informacional do sujeito, presença do advérbio inicial e animacidade do sujeito
correlacionam-se com a ordem VS, independentemente de línguas, de dialetos de uma mesma
língua ou de fases do PB como L2, como mostramos na revisão de literatura e nos resultados
comparativos. Podendo ser essas variáveis de caráter universal na ordenação de S e V, não
podemos concluir que sejam elas atuantes na transferência da ordem VS para o PBAL2. A
variável tipo de EsCo, pelo seu caráter inovador na postulação dos contextos variáveis e pela
sua ausência em estudos sobre ordem de constituintes oracionais, impede-nos de estabelecer
comparações que possam assegurá-la como variável linguística que, de fato, leva à
interferência de L1 na L2 em aquisição. Parece-nos mais sensato, seguindo tendência das
demais variáveis linguísticas selecionadas, não atribuir peso aos resultados alcançados em
torno dos fatores dessa variável para confirmar a hipótese principal.
Relativamente à hipótese auxiliar (i), na comparação da frequência de ordem VS na
produção das crianças e dos adultos da fronteira, mostramos que, de fato, um processo de
fixação da ordem toma lugar no PB usado como L2 pelos adultos, uma vez que a frequência
de ordem VS no PBAL2 é um pouco mais do que o dobro (13,6%) em relação ao PB usado
pelos adultos. Esse resultado auxilia na confirmação da hipótese principal, uma vez que se
espera que as crianças cheguem à fase adulta usando o PB como L2 de modo mais livre de
interferências da(s) língua(s) que adquiriram previamente.
Em relação às variáveis linguísticas propostas e não selecionadas na análise
quantitativa (cf. quadro 3), para modalidade da frase a expectativa era a de que esta seria uma
das mais relevantes para a comprovação da hipótese (i), uma vez que a língua espanhola
apresenta regras rígidas de inversão de S em sentenças interrogativas (TORREGO, 1984),
mas não o PB. Embora não tenha sido selecionada, a frequência de ordem VS em contextos
de interrogativas (26%) é o dobro da de contextos de declarativas (13%), resultado que apenas
indicia a interferência de padrões sintáticos de L1 em L2, uma das razões de considerarmos a
comprovação da hipótese (i) apenas parcialmente.
Para a verificação da hipótese (ii), a única variável extralinguística selecionada,
fluência nas línguas de contato, nos termos por nós postulados, constitui inovação desta
pesquisa. A expectativa subjacente a ela pode ser confirmada, uma vez que, quanto maior a
fluência da criança nas línguas de contato da região, maior a ocorrência da ordem VS,
resultado que constitui também explicação auxiliar para a confirmação parcial da hipótese (i).
Das variáveis extralinguísticas não selecionadas, tempo de contato com o PB
permitiu confirmar a hipótese (iii). Os resultados mostraram que, à medida que aumentam os
73
anos de contato com o PB, diminui a frequência da ordem VS (49%, 35% e 17%, para
crianças no primeiro, no segundo e no terceiro ano de contato, respectivamente), embora não
se possa afirmar o contrário para a ordem SV (42%, 28% e 30%, para crianças no primeiro,
no segundo e no terceiro ano de contato, respectivamente). Esse resultado mostra que à
medida que aumenta o tempo de exposição da criança à língua alvo, ela vai eliminando de L2
as interferências da(s) língua(s) previamente adquirida(s). Assim, também essa variável,
apesar de não selecionada, contribui para a confirmação parcial da hipótese principal.
Em termos concludentes, podemos afirmar que a ordem VS no PB inicial das crianças
da fronteira encontra sustentação mais em fatores linguísticos de ordem universal do que em
fatores que possam justificar a influência de regras específicas de L1 sobre a L2 em aquisição.
Quando regras específicas são atuantes, essas podem constituir apenas explicações “ad hoc”
da interferência de L1 na L2 em aquisição.
SV/VS ORDER IN ACQUISITION OF PORTUGUESE AS L2 IN BRAZIL/PARAGUAY BORDER: A
SOCIOFUNCTIONALIST INVESTIGATION ON ACQUISITION/VARIATION INTERFACE
ABSTRACT: Under sociofunctionalist approach, in this paper we analyze SV/VS order in acquisition of
Brazilian Portuguese as a second language by paraguayan children who lives in Brazil/Paraguay border. These
children speak paraguayan Spanish and/or Guarani until scholar age. The data were collected in the Brazilian
school where children study, in a natural interaction context. Based on Sociolinguistic Quantitative method, the
results indicate that the VS order in Brazilian Portuguese in acquisition as a second language is a result of
transfer of rules from languages acquired early by children.
KEYWORDS: Sociolinguistics. L2 acquisition; SV/VS order; Linguistic contact.
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76
Interpretação de padrões de covariação
Livia OUSHIRO51
RESUMO: A metodologia de análises quantitativas dos estudos sociolinguísticos (Sankoff, 1980; Guy, 2007
[1993]; Bayley, 2002), com auxílio de programas como GoldVarbX e Rbrul, constitui uma valiosa ferramenta
para a investigação da língua em uso, pois permite entrever padrões de covariação que podem não ser aparentes
de outro modo. Entretanto, a simples identificação de correlações não conduz automaticamente à interpretação
de seu significado; verificada uma correlação entre duas variáveis A e B, cabe interpretar se A motiva B, se B
motiva A ou, ainda, se A e B são motivadas por uma terceira variável C. Com esse pano de fundo, este trabalho
discute resultados de análises quantitativas sobre o emprego variável de formas interrogativas, definidas pela
posição do constituinte interrogativo: (a) pré-verbal (“Onde (que/é que) você mora?”); e (b) pós-verbal/in-situ
(“Você mora onde?”). A discussão desses resultados concerne a uma teoria da língua em uso na medida em que
visa ao exame dos mecanismos de seu funcionamento e das razões pelas quais não se observa a categoricidade
de uma única forma linguística.
PALAVRAS-CHAVE: Sociolinguística; Análises quantitativas; Interpretação de resultados; Interrogativas-Q.
Introdução
Este artigo discute a questão da interpretação de resultados de análises quantitativas,
dentro do arcabouço teórico e metodológico da Sociolinguística Variacionista (Labov, 1972;
2006 [1966]). Essa linha de estudos, como é de conhecimento corrente, assume que a variação
linguística verificada na língua em uso, longe de ser assistemática, é estruturada, forma
padrões e exibe heterogeneidade ordenada (Weinreich et al, 1968). Assim, os casos de
alternância entre “nós vamos”/“nós vai” (Cf. p.ex. Rodrigues, 1987), entre a realização média
alta ou alta de vogais pré-tônicas em palavras como “menino”/“minino” (Cf. p.ex. Celia,
2004), entre a presença e a ausência de morfema de plural em sintagmas nominais como “as
pessoas”/“as pessoa” (Cf. p.ex. Scherre, 1997) não são aleatórios ou caóticos, mas
correlacionam-se a outras variáveis, linguísticas ou não-linguísticas. Esses padrões de
covariação podem ser investigados e descritos através de análises quantitativas, mais
comumente com o auxílio dos programas GoldVarb X e Rbrul, que constituem valiosas
ferramentas no estudo da variação e da mudança linguística.
Contudo, a simples identificação de correlações não conduz automaticamente à
interpretação de seu significado. É certo que o sociolinguista, ao levantar hipóteses de
correlação sobre a variação nos usos linguísticos e ao operacionalizar tais hipóteses em grupos
de fatores, está em busca de explicações para a alternância. No entanto, correlação não é
sinônimo de motivação: a observação de que determinado grupo de fatores se correlaciona ao
emprego variável de formas linguísticas não implica, necessariamente, que tal grupo seja o
causador da heterogeneidade e da instabilidade na relação forma-função dentro do sistema
linguístico.
Desse modo, verificada uma correlação entre duas variáveis A e B, cabe interpretar se
A motiva B, se B motiva A ou, ainda, se A e B são motivadas por uma terceira variável C (ver
Fig.1); em todos esses casos, deve-se buscar uma explicação plausível para que os dados se
organizem do modo como se observou. Para ilustrar essa problemática, tome-se como
exemplo uma conhecida variável social dos estudos variacionistas: o sexo/gênero dos falantes.
Frequentemente se verifica, em diversas comunidades e em diferentes fenômenos linguísticos
51
USP – Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Departamento de
Linguística. São Paulo – SP – Brasil. E-mail: [email protected].
77
em variação, que mulheres apresentam a tendência de empregar formas consideradas “mais
corretas” ou “de prestígio” e, inversamente, que homens tendem a empregar as formas “nãopadrão” ou “estigmatizadas” naquela comunidade (Chambers, 1995; Labov, 2001; Cheshire,
2002; Paiva, 2004). A recorrência dessa correlação certamente é digna de nota. Contudo, a
explicação para esse fenômeno é menos consensual; para dar conta dessa correlação, já se
sugeriu que as mulheres tendem a empregar formas de prestígio como maneira de tentar
superar sua posição desprevilegiada na sociedade (Fasold, 1990), de não se identificar
simbolicamente com a promiscuidade (Gordon, 1997), de manter a face em interações nas
quais não detêm o poder (Deuchar, 1988), de adquirir status social indiretamente, enquanto os
homens podem fazê-lo através de sua ocupação e renda (Trudgill, 1972). Também já se
postulou que as mulheres teriam uma maior capacidade neurobiológica para a linguagem, de
modo que uma expectativa é que elas tenderiam a um domínio de uma gama maior de
variantes na comunidade (Chambers, 1995). Explicações alternativas argumentam que não
são as mulheres que favorecem as formas de prestígio, mas sim que são as formas por elas
empregadas que tendem a ser vistas como “mais corretas” (Milroy et al., 1994), ou ainda que
não são as mulheres que favorecem as formas de prestígio, mas sim que são os homens que se
orientariam a formas de prestígio encoberto, em geral identificadas com classes sociais mais
baixas, cujo trabalho mais frequentemente braçal se relaciona simbolicamente com ideais de
virilidade (Cheshire, 2002). Independentemente da interpretação que se prefere adotar, fica
claro que a explicação é sempre mais complexa do que a descrição dos fatos linguísticos,
fornecida através da análise de correlações.
(i) A → B
(ii) A ← B
(iii) A ← C → B
Variável A motiva variável B.
Variável A é motivada por variável B.
Variáveis A e B são motivadas por variável C.
Figura 1: Possibilidades de interpretação para a correlação entre duas variáveis A e B.
Neste trabalho, objetiva-se discutir duas questões relacionadas à interpretação de
resultados de análises quantitativas, a saber, o direcionamento da correlação e os fatores
desencadeadores da variação, com base em um estudo do emprego variável de interrogativas
de constituinte no português paulistano contemporâneo (Oushiro, 2011).
Interrogativas de constituinte referem-se a sentenças que contêm um pronome,
advérbio ou adjetivo interrogativo: (o) que, que + NP, qual(-is), qual(-is) + NP, quanto(-a, os, -as), quanto(-a, -os, -as) + NP, quem, como, quando, onde e por que. Na variedade
paulistana falada, há pelo menos quatro possibilidades de estruturação sintática dessas
interrogativas, como mostram os exemplos em (1):52
(1)
a. Interrogativas-qu:
b. Interrogativas qu-que:
c. Interrogativas é-que:
d. Interrogativas qu-in-situ:
Quando você vem?
Quando que você vem?
Quando é que você vem?
Você vem quando?
52
Ainda é possível citar duas outras estruturas de interrogativas de constituinte atestadas no PB: Q que é que –
p.ex., “O que que é que você está querendo?” (Mioto, 1997), e É Q que – p.ex. “É o que que ele quer?” (Lessa de
Oliveira, 2005), em que “Q” corresponde ao constituinte interrogativo. Como essas formas não são produtivas no
português paulistano atual, elas não serão discutidas aqui.
78
Essas estruturas foram estudadas em um corpus composto de 53 entrevistas
sociolinguísticas com informantes paulistanos,53 gravadas entre os anos de 2003 e 2008 por
alunos do curso de Sociolinguística da USP, alguns dos quais também paulistanos; dado o
fenômeno linguístico investigado e dada a variabilidade do corpus quanto aos
documentadores, decidiu-se incluir as ocorrências de interrogativas de constituinte não apenas
da fala de informantes, mas também da fala de 19 alunos-documentadores.54
Antes de discutir possíveis interpretações para as correlações observadas, no entanto, é
necessário fazer uma distinção conceitual entre “interrogativas” e “perguntas”. Ambos os
termos muitas vezes são tomados como sinônimos na linguagem cotidiana e mesmo em textos
especializados. No entanto, dentro de uma perspectiva que se preocupa em descrever os usos
linguísticos, faz-se necessário discriminar, ainda que brevemente, aquilo que se entende como
formas em alternância daquilo que é definido por funções dessas mesmas formas. Aqui,
entende-se “pergunta” como expressões que desempenham funções discursivas, enquanto o
termo “interrogativa” é usado para se referir a estruturas sintáticas. Embora muitas vezes uma
expressão possa ser, ao mesmo tempo, uma interrogativa e uma pergunta, esta relação formafunção nem sempre coincide: uma mesma forma pode exercer mais de uma função, e uma
mesma função pode ser expressa de diversas formas. De fato, é exatamente tal relação
assimétrica que caracteriza a variação linguística. Conforme lembram Milroy & Gordon
(2003, p. 170): “(...) uma vez que não há relação isomórfica entre função e forma, perguntas
nem sempre são realizadas sintaticamente como interrogativas e formas interrogativas podem
realizar muitas funções discursivas.”55
Neste artigo, o conjunto de dados analisados se define, de modo amplo, pela
intersecção de forma e função: formas interrogativas que têm a função de perguntas, sejam
elas perguntas que de fato buscam uma informação (abaixo denominadas “perguntas
pragmaticamente sinceras”), retóricas (cuja resposta é óbvia dado um certo contexto
discursivo) ou de estruturação do discurso (cuja resposta é fornecida pelo próprio falante
corrente). Apresentam-se análises que enfocam a posição do constituinte interrogativo: préverbal, como em (1a-c), ou pós-verbal, como em (1d). Oushiro 2011 constatou uma
correlação entre a variável Posição do Constituinte Interrogativo e diversas variáveis
linguísticas e não linguísticas, dentre as quais se encontram a extensão da sentença
interrogativa, o grau de “espontaneidade” da pergunta, o grau de ativação do fundo comum
entre os interlocutores e o grau de relação entre documentador e informante.
A discussão que segue se organiza com base nas questões (i) da direção da correlação
e (ii) de possíveis fatores subjacentes às variáveis investigadas. O artigo se encerra com um
resumo dos resultados e suas consequências para uma teoria da língua em uso.
A direção da correlação
Na análise qualitativa do emprego variável de interrogativas de constituinte, percebeuse que interrogativas qu-in-situ pareciam ser mais curtas (“Você nasceu onde?”; “Você faz o
53
Essa amostra é estratificada de acordo com o sexo/gênero, a faixa etária e a escolaridade do falante. Para uma
análise dessas variáveis sociais, cf. Oushiro (2010, 2011).
54
Os 53 documentadores foram contatados através de seus endereços eletrônicos e a eles foi enviado um
questionário que teve o duplo objetivo de obter a sua autorização para o uso/análise dos dados de sua fala, assim
como maiores informações a respeito de seu perfil sociolinguístico (idade, cidade de nascimento, bairros/locais
em que já morou, ocupação, escolaridade e profissão dos pais) e da situação da entrevista sociolinguística (grau
de relação com o informante, local da gravação). Dos documentadores que responderam ao questionário, 19
eram paulistanos.
55
Tradução própria do seguinte texto original: “(...) since there is no isomorphic relationship between function
and form, questions are not always realized syntactically as interrogatives and interrogative forms may realize
many different functions.”
79
quê?”). Levantou-se então a hipótese de que isso poderia ocorrer a fim de facilitar a entonação
de pergunta. Observe-se a ocorrência 2a abaixo, realizada como uma interrogativa com
constituinte interrogativo pré-verbal:
(2)
a. Cecília: por que você vai ser contra a transformação de uma língua que é algo tão...
tão... enraizado no indivíduo né? (F2S-INF)56
b. você vai ser contra a transformação de uma língua que é algo tão... tão... enraizado
no indivíduo por quê?
A realização alternativa em (2b), com constituinte interrogativo pós-verbal ou in situ, é
perfeitamente gramatical na língua. No entanto, pode-se prever que, quanto mais longa a
sentença, mais inviável ela se torna com a estrutura de uma interrogativa qu-in-situ – tanto
por questões prosódicas quanto de facilidade de processamento cognitivo da sentença, por
parte do falante ou do ouvinte.
As ocorrências foram codificadas de acordo com o número de palavras na sentença em
que se encontra o constituinte interrogativo a partir dos seguintes critérios: (a) a variante
interrogativa conta como uma palavra, i.e. “por que”, “por que que” e “por que é que” contam
igualmente como uma palavra; (b) expressões lexicalizadas/gramaticalizadas (“a gente”, “o(a)
senhor(a), “a respeito de” etc.) contam como uma palavra; (c) excluem-se marcadores
discursivos (“né”, “assim”, “então”, “daí” etc.), hesitações (é:::... ahn...) e vocativos. Os 19
fatores iniciais, de 2, 3, 4... até 20 palavras, foram posteriormente reagrupados em dois: de 2 a
6 palavras e de 7 a 20 palavras. Os resultados da análise quantitativa de covariação se
encontram na Tabela 1:
P.R.
%
N in-situ
N total
Número de palavras na oração
De 2 a 6 palavras
.54
27,3
183
670
De 7 a 20 palavras
.42
13,4
44
329
range:
12
22,7
227
999
Tabela 1: Correlação entre interrogativas qu-in-situ e Número de Palavras na Oração. Input:
0,115; p < 0,05. Rodada com 7 outros grupos de fatores.57
O grupo de fatores Número de Palavras na Oração é selecionado como significativo (p
< 0,05, range: 12) para a variação na posição do constituinte interrogativo: sentenças mais
curtas, com 2 até 6 palavras, favorecem o emprego de interrogativas qu-in-situ, com peso
relativo de 0,54, enquanto sentenças mais longas, com 7 até 20 palavras, desfavorecem a
estrutura, com peso relativo de 0,42. Esse resultado, em princípio, parece confirmar a hipótese
inicial.
No entanto, é possível questionar essa interpretação e sugerir uma explicação
alternativa: em vez de a extensão da sentença influenciar a estrutura da interrogativa, não seria
a estrutura interrogativa que influencia a estrutura da sentença? Em uma análise que inverte o
56
Todas as ocorrências do corpus são apresentadas e itálico, seguidas do perfil sociolinguístico do falante: seu
sexo/gênero (M; F), sua faixa etária (1 – de 20 a 30 anos; 2 – de 25 a 35 anos; 3 – mais de 50 anos), sua
escolaridade (G – até Ensino Fundamental II; S – Ensino superior completo ou incompleto) e seu papel na
entrevista sociolinguística (DOC – documentador; INF – informante).
57
Faixa Etária, Espontaneidade da Pergunta, Grau de Relação entre Documentador e Informante, Grau de
Ativação do Fundo Comum, Ocorre outro Elemento antes da Oração Principal?, Conjunto de Respostas
Previstas, Função Sintática do Constituinte Interrogativo.
80
direcionamento da correlação – Número de palavras como variável dependente e Posição do
constituinte interrogativo como variável independente (ver Tabela 2) – o efeito parece ser
mais significativo (p < 0,001; range: 21), visto que há um forte desfavorecimento de
sentenças mais extensas com as interrogativas qu-in-situ (P.R. 0,34).
P.R.
%
N sentenças
longas
N total
Posição do constituinte interrogativo
Q pré-verbal
.55
36,9
285
772
Q in situ
.34
19,4
44
227
21
32,9
329
999
range:
Tabela 2: Correlação entre sentenças longas e Posição do Constituinte Interrogativo. Input:
0,323; p < 0,001. Rodada one-level.
É necessário, claro, tomar cuidado com os resultados quantitativos e não tomá-los
prima facie como evidência de direcionamento da correlação. A análise da Tabela 2 refere-se
a uma rodada one-level, sem a inclusão de outros grupos de fatores, uma vez que não faria
sentido incluir outras hipóteses de correlação, levantadas em princípio para a Posição do
Constituinte Interrogativo (in situ ou não), em uma análise que incluía a extensão da sentença
como variável dependente. Seria mais adequado comparar os resultados da Tabela 2 com uma
rodada igualmente one-level de Número de Palavras na Oração como variável independente
(ver Tabela 3).
P.R.
%
N in-situ
N total
Número de palavras na oração
De 2 a 6 palavras
.57
27,3
183
670
De 7 a 20 palavras
.35
13,4
44
329
range:
22
22,7
227
999
Tabela 3: Correlação entre interrogativas qu-in-situ e Número de Palavras na Oração. Input:
0,227; p < 0,001. Rodada one-level.
Nesta rodada, Número de Palavras na Oração é novamente selecionado, mas desta vez
com range de 22 e p < 0,001. Esses resultados são bastante semelhantes àqueles em que o
direcionamento da correlação foi invertido (Cf. Tabela 2), de modo que é difícil determinar,
somente a partir desses parâmetros, a interpretação mais plausível para a correlação
verificada.
Esquematicamente, a questão se coloca do seguinte modo:
A→B
A←B
Sentenças mais curtas ↔ qu-in-situ
Sentenças mais longas ↔ Q pré-verbal
Figura 2: Direção da correlação.
São sentenças mais curtas que favorecem o emprego de interrogativas qu-in-situ, ou é
a estrutura de qu-in-situ que privilegia um “encurtamento” da sentença? Ou, ainda, são
81
sentenças mais longas que favorecem o emprego de interrogativas com constituinte
interrogativo pré-verbal, ou é o emprego de um Q-pré-verbal que favorece um “alongamento”
da sentença?
Parece fazer mais sentido imaginar que é a estrutura da sentença interrogativa que tem
uma influência em sua extensão do que o contrário; ao empregar uma interrogativa com
constituinte pré-verbal (“Onde (que/é que) você mora?”), o falante teria a opção de continuar
elaborando-a (“Onde (que/é que) você mora aqui na cidade de São Paulo...”). Ademais, é
possível que, por questões de cooperação comunicativa, um falante, ao iniciar uma sentença
sem constituinte interrogativo (“Você mora...” ) – que em princípio também poderia se tornar
uma pergunta total (“Você mora aqui?”), uma afirmação (“Você mora em São Paulo.”), um
pedido de confirmação (“Você mora em São Paulo, né?”) etc. –, tende a empregar o
constituinte interrogativo tão logo quanto possível, a fim de esclarecer suas intenções
comunicativas naquele momento.58 Embora possa haver diferenças prosódicas entre uma
pergunta total, uma pergunta parcial e uma afirmação, tais distinções muitas vezes se diluem
na comunicação face-a-face, já que o processamento em linha costuma gerar pausas,
hesitações e truncamentos. Nesse sentido, a análise mais plausível parece ser aquela que
entrevê a Posição do Constituinte Interrogativo como variável independente, que influencia a
extensão da sentença interrogativa (Tabela 2).
Um denominador comum?
A segunda questão interpretativa diz respeito a fatores que possivelmente
desencadeiam e condicionam a variação linguística. Na análise das interrogativas de
constituinte, levantaram-se hipóteses de correlação entre a posição do constituinte
interrogativo e grupos de fatores relacionados ao contexto discursivo-pragmático.
Visto que a análise incluiu dados de fala dos documentadores, que se pautaram por um
roteiro de entrevista, o grupo de fatores Grau de Espontaneidade da Pergunta buscou verificar
se a pré-formulação de perguntas em um roteiro tinha influência no emprego variável de
interrogativas, já que todas elas apresentavam-se como interrogativas com constituinte
interrogativo pré-verbal (p.ex., “Em que bairro de São Paulo você mora?”, “Até que série
você estudou?”). Essa variável se restringe, portanto, apenas aos dados dos documentadores.
No roteiro, havia um grupo de perguntas sobre percepções linguísticas, chamadas de
obrigatórias, que deveriam ser feitas compulsoriamente ao fim da entrevista e em uma
determinada ordem, sem alterações (3-a); outras partes da entrevista foram divididas em
temas, com algumas perguntas sugeridas, mas não obrigatórias (3-b); outras perguntas feitas
pelos documentadores podem ser consideradas temáticas, já que se enquadram em temas
arrolados no roteiro (3-c); além dessas perguntas, os alunos deveriam preencher uma ficha
com dados pessoais do informante (nome completo, idade, data de nascimento etc.), que
poderiam ser obtidos ou não durante a gravação (3-d); por fim, há perguntas que surgem da
própria interação, a partir de informações dadas pelos informantes durante a entrevista e que,
assume-se, não foram formuladas previamente (3-e). Assim, esses fatores se organizam em
um contínuo de espontaneidade, desde as perguntas obrigatórias, para as quais os alunos
foram explicitamente instruídos a seguir tal e qual, até perguntas que não eram previstas no
roteiro. A expectativa era a de que perguntas espontâneas apresentariam uma maior tendência
a serem empregadas com a estrutura de interrogativas qu-in-situ. Alguns exemplos de cada
tipo de pergunta são fornecidos abaixo:
58
Não se pretende sugerir, no entanto, que o falante faça isso de modo consciente.
82
(3)
Espontaneidade da pergunta
a. Obrigatória
(i) Ligia: tá... e quando você tá conversando com alguém... qual que você fala
mais... “nós” ou “a gente”? (F1S-DOC)
(ii) Carlos: entendi... é... quando você está falando sobre você junto com mais
alguém... você usa mais que palavra “nós”... ou “a gente”? (M3S-DOC)
b. Sugerida
(i) Helena: pensando em São Paulo... na cidade... qual que é o maior problema que
cê acha que é [hes.] tem... a cidade de São Paulo? segurança... roubo trânsito?
(F1S-DOC)
(ii) Amanda: cê pensa que tem que ser mais importante o quê? segurança
transporte educação... (F1S-DOC)
c. Temática
(i) Mariana: e o que que você acha que seria uma solução... pro transporte? (F1SDOC)
(ii) Rafael: aqui perto tem quantas escolas aqui... na região... assim? (M1S-DOC)
d. De dados pessoais
(i) Renata: que escola você estudou? que faculdade você fez? (F1S-DOC)
(ii) Rafael: e:: o senhor estudou em que escolas? (M1S-DOC)
e. Espontânea
(i) Fernanda: e como que é esse curso? explica um pouquinho (F1S-DOC)
(ii) Regina: você aluga mais ou menos quantos filmes assim por... por mês? (F1SDOC)
Weiner & Labov (1983 [1977]), em seu estudo sobre a alternância entre voz ativa e
voz passiva sem agente no inglês, investigaram se a ativação de referentes no discurso têm
uma influência no emprego das diferentes estruturas sintáticas. De modo semelhante, o grupo
de fatores Grau de Ativação do Fundo Comum tem o objetivo de verificar se pressuposições e
referentes recentemente ativados no discurso influenciam o emprego da estrutura com
constituinte pré-verbal ou in situ. Os fatores exemplificados abaixo (4) organizam-se em
diferentes graus de ativação, desde a sentença anterior (máximo grau de ativação) até a não
menção até aquele momento da entrevista (mínimo grau de ativação). Nesse grupo de fatores,
excluem-se as ocorrências de perguntas retóricas, dado que nelas a pressuposição sempre está
ativada; a hipótese aplica-se, portanto, a perguntas pragmaticamente sinceras e de estruturação
do discurso. Os números entre parênteses no interior dos exemplos abaixo indicam a
contagem de sentenças anteriores.
(4)
Grau de ativação do fundo comum
a. Pressuposição ativada na sentença anterior
(i) Pedro: eu acho horrível... (1) acho horrível
Carla: por que você acha horrível? (F1S-DOC)
(ii) Aline: assim... (1) eles tão falando muito da saúde...
Marcio: é né?
Aline: mas tão falando da saúde por quê? (F1G-INF)
b. Pressuposição ativada na 2ª sentença anterior
(i) Mariana: (2) tem o caso das pessoas que têm dinheiro demais... e aí... (1) que
que você acha? como- como que elas vivem com tanto dinheiro né? (F1S-DOC)
(ii) Paulo: e (2) você sabia que hoje em dia “a gente” é considerado um pronome
pessoal do mesmo jeito que “eu você tu eles”?
Lucia: (1) não sabia
83
c.
d.
e.
f.
Paulo: quando você...
Lucia: mas é considerado aonde? (F3G-INF)
Pressuposição ativada na 3ª, 4ª ou 5ª sentença anterior
(i) Beatriz: “eu sou bandido tô cumprindo prisão perpétua e (4) hoje eu resolvi
por minha bola e minha corrente no pé” aí (3) eu falei assim (2) “não mas eu achei
interessante... (1) eu não vim criticar... por que que o senhor tá usando isso?”
(F3S-INF)
(ii) Valter: ele morreu dentro d/ (3) esse meu irmão que morreu morreu dentro da
da casa dele dentro do banheiro... (2) ele falava que nunca tinha problema de
saúde nenhuma... e (1) ele não ia no médico
Rafael: morreu com quantos anos? (M1S-DOC)
Pressuposição mencionada na conversa, mas não nas últimas 5 sentenças
(i) Carolina: aonde que é o colégio que cê dá aula mesmo? (F1SDOC)
(ii) Rafael: agora tem que idade mesmo? (M1S-DOC)
Referente ativado em uma das últimas 5 sentenças
(i) Carla: eu já tinha esquecido o nome da sua irmã... quantos anos ela tem?
(F1S-DOC)
(ii) Amanda: não sabe ainda mas ele gosta de computador...
Joaquim: ele tá com quantos anos? tá com dezoito ou dez-...? (M3G-INF)
Pressuposição não ativada previamente na conversa
(i) Carlos: que que cê faz como lazer assim? (M3S-DOC)
(ii) Marina: você vem de que canto pra cá? (F1G-INF)
O grupo de fatores Grau de Relação entre Documentador e Informante teve o objetivo
de testar se o grau de proximidade ou distância entre interlocutores tem influência no emprego
variável de interrogativas de constituinte. Para testar essa hipótese, o formulário enviado aos
documentadores incluiu uma pergunta sobre a relação que ele tinha com o informante à época
da entrevista: o documentador deveria assinalar uma de cinco opções em um contínuo de
proximidade-distância de relação (5); assumiu-se que o grau assinalado pelo documentador
era o mesmo para o seu informante. Para dados de entrevistas feitas por alunos que não
responderam ao questionário, criou-se um sexto fator, “informação não disponível”.
(5)
Grau de relação entre Documentador e Informante
1 – Bastante próximo. O entrevistado fazia parte documentador e informante do meu
círculo imediato de amigos/familiares e conversávamos frequentemente.
2 – Próximo. Conversávamos frequentemente, mas o entrevistado não fazia parte de
meu círculo imediato de amigos/familiares.
3 – Próximo, mas não conversávamos frequentemente.
4 – Neutro. Ele era meu conhecido, mas não nos falávamos com frequência.
5 – Distante. Não o conhecia anteriormente e só conversamos na ocasião da entrevista.
? – Informação não disponível.
A Tabela 4 apresenta os resultados da análise multivariada. Para Grau de
Espontaneidade da Pergunta, foram amalgamadas as perguntas obrigatórias e sugeridas (χ2 =
0,63(1), p > 0,30) no novo fator “perguntas do roteiro”. As perguntas espontâneas, como se
esperava, favorecem o emprego de interrogativas qu-in-situ (P.R. 0,56), enquanto perguntas
relacionadas ao roteiro as desfavorecem consideralmente (P.R.s abaixo de 0,30). Em
princípio, esse resultado pode sugerir que o emprego variável de interrogativas é
condicionado pelo grau de monitoramento ou planejamento da fala. No entanto, verifica-se
que as perguntas de dados pessoais (“Você mora onde?”, “Você faz o quê?”) são aquelas que
84
mais favorecem o emprego de interrogativas qu-in-situ (P.R. 0,80). Se se tratasse de uma
questão de monitoramento ou planejamento da fala, era de se esperar que perguntas de dados
pessoais também desfavorecessem o emprego de qu-in-situ, pois a obtenção desses dados
também era prevista no roteiro utilizado para proceder às entrevistas. Uma interpretação
alternativa se faz necessária, ponto ao qual se retornará adiante.
P.R.
Grau de espontaneidade da pergunta
De dados pessoais
.80
Espontânea
.56
Do roteiro
.30
Temática
.22
range:
58
Grau de ativação do fundo comum
Pressup. ou referente ativado na 1ª ou
.63
2ª sentença anterior
Pressup. ou referente ativado na 3ª
.51
sentença anterior ou antes
Pressuposição não ativada
.38
range:
25
Grau de relação entre documentador e informante
Distante
.54
Próximo
.36
18
range:
Tabela 4: Correlação entre interrogativas qu-in-situ e
0,115; p < 0,05.
%
N in-situ
N total
52,6
22,6
6,8
5,9
22,4
51
47
8
4
110
97
208
117
68
490
34,0
89
262
21,2
29
137
18,0
24,2
62
180
345
744
24,1
186
771
18,0
41
228
22,7
227
999
grupos de fatores discursivos. Input:
No grupo de fatores Grau de Ativação do Fundo Comum, amalgamaram-se os dois
graus em que a pressuposição da interrogativa está maximamente ativada (na última ou
penúltima sentença) e os dois graus de ativação intermediária (na 3ª, 4ª, 5ª sentença anterior e
ativada anteriormente na conversa mas não nas últimas 5 sentenças) (χ2 = 0,77(2), p > 0,50).
Os resultados se alinham com a hipótese inicial, que previa maior tendência ao emprego de
interrogativas qu-in-situ quando a pressuposição ou um dos referentes havia sido
recentemente ativado (P.R. 0,63). Os demais fatores se conformam à hierarquia de ativação,
pois pressuposições ativadas a partir da terceira sentença anterior apresentam um peso relativo
menor para o emprego de qu-in-situ, próximo ao ponto neutro (P.R. 0,51), enquanto
pressuposições não ativadas anteriormente desfavorecem a estrutura ainda mais (P.R. 0,38).
Aqui, nota-se a importância do aqui-e-agora na conversa para o emprego de interrogativas
qu-in-situ: há uma diferença relevante para a ativação de pressuposições e referentes em uma
das últimas duas sentenças. Isso sugere que o “gerenciamento” da conversação (nos termos de
Sacks et al. 1974) ocorre localmente e que os falantes são bastante sensíveis ao fluxo de
informações, fato que reflete na escolha que os falantes fazem de diferentes estruturas
sintáticas. Os resultados de Grau de Ativação do Fundo Comum apontam para o papel de
informações compartilhadas entre os interlocutores no emprego variável de interrogativas de
constituinte: as interrogativas qu-in-situ são mais favorecidas quanto mais ativado está o
fundo comum.
Em Grau de Relação entre Documentador e Informante, foram amalgamados os graus
de relação mais próximos (1, 2 e 3), por um lado, e os graus de relação mais distante (4 e 5),
por outro (χ2= 6,04(3), p > 0,10). Dos 31 documentadores que responderam ao questionário,
20 indicaram ter uma relação distante com o entrevistado. Decidiu-se também amalgamar os
85
dados daqueles para os quais essa informação não estava disponível juntamente com os dados
de relação distante (em vez de descartá-los), já que era mais provável que, se os
documentadores houvessem respondido ao questionário, tais seriam os graus de relação
assinalados. O teste de qui-quadrado (χ2 = 0,66(1), p > 0,30) confirma que essa amalgamação
é plausível. A Tabela 4 indica o desfavorecimento de interrogativas qu-in-situ (P.R. 0,36)
para graus mais próximos e pequeno favorecimento (P.R. 0,54) para graus mais distantes. Um
olhar mais detalhado aos dados e à situação discursiva podem elucidar essa correlação:
quando os interlocutores têm um grau de relação mais distante, o fundo comum entre eles
depende mais diretamente da situação interacional em que se encontram, diferentemente do
que pode ocorrer em interações conversacionais entre pessoas mais próximas, cujo fundo
comum engloba outras conversações prévias. Nesse sentido, os resultados deste grupo de
fatores se aproximam daqueles para Grau de Ativação do Fundo Comum: o fluxo de
informações no aqui-e-agora da conversa parece ter papel crucial na variação entre diferentes
estruturas interrogativas.
Com esses dados, é possível retornar à interpretação do grupo de fatores Grau de
Espontaneidade da Pergunta, em que as interrogativas qu-in-situ se revelaram mais
favorecidas por perguntas de dados pessoais e espontâneas. Esses dois tipos de perguntas têm
em comum o fato de serem mais previsíveis ou esperadas: em situação de entrevista é natural
que se pergunte sobre a profissão, local de residência, família. Aliás, mesmo que não se
tratasse de uma entrevista gravada, esses seriam tópicos bastante propícios para a condução de
uma conversa “natural”. De modo semelhante, as perguntas espontâneas, que surgem da
interação conversacional, estão mais diretamente ancoradas no fluxo de informações da
conversação e, portanto, também podem ser consideradas mais esperadas. Assim, o grupo de
fatores Espontaneidade da Pergunta, cujo objetivo inicial era testar a influência do grau de
planejamento da fala, acaba revelando mais propriamente o papel da previsibilidade da
pergunta: quanto mais previsível ou ancorada na situação discursiva, maior a tendência de se
empregar qu-in-situ.
Desse modo, a relação entre os três grupos de fatores podem ser assim resumidos:
Previsibilidade
A←C→B
← Fluxo de informações →
Ativação de pressuposições
Figura 3: Motivação da correlação.
Aqui se interpreta que essas variáveis, embora independentes entre si, podem
manifestar um efeito mais geral que se relaciona com o fluxo de informações no aqui-e-agora
da conversa. Por fim, entretanto, cabe ainda questionar a natureza desse fluxo de informações:
trata-se de princípios de cooperação comunicativa, através dos quais os falantes mantém a
interação? Ou trata-se de princípios de processamento cognitivo ou ainda de paralelismo
linguístico (Scherre, 1998), em que o emprego de determinadas estruturas produz um efeito de
coerção sobre as próximas? Novas questões se apresentam para testes de hipóteses futuros.
Considerações finais
O estudo da língua em uso deve abarcar aspectos vários da comunicação humana:
extralinguísticos, discursivo-pragmáticos, sintáticos, morfológicos, prosódicos, fonéticofonológicos, cognitivos. As análises quantitativas de covariação, como instrumentalizadas na
Sociolinguística, permitem uma investigação desse caráter multifacetado da linguagem.
86
Neste artigo, procurou-se discutir duas problemáticas relacionadas à interpretação de
resultados quantitativos de análises de covariação: o direcionamento da correlação e a
motivação da correlação. A análise do grupo de fatores Número de Palavras na Oração
buscava verificar se a posição do constituinte interrogativo se correlaciona com a extensão da
oração; aqui se interpreta que não é a extensão da oração que influencia a alternância entre as
formas interrogativas, mas o oposto, ou seja, que o emprego de uma determinada estrutura de
interrogativa de constituinte tem consequências para a extensão do enunciado. A análise dos
grupos de fatores Grau de Espontaneidade da Pergunta, Grau de Ativação do Fundo Comum e
Grau de Relação entre Documentador e Informante, que examinam o contexto discursivopragmático, verificou que todos eles se correlacionam ao emprego variável de interrogativas;
neste caso, é possível que todos os efeitos verificados decorram de um aspecto mais geral da
conversação face-a-face, que diz respeito ao fluxo de informações no aqui-e-agora da
conversa.
Tais interpretações, no entanto, ainda levantam novas questões a serem investigadas a
respeito da natureza desse fluxo de informações. Nas palavras de Guy (2007 [1993], p.42),
“os números não são a resposta a nenhuma de nossa perguntas; eles são apenas estatísticas
inferenciais adicionais que podemos usar como indicadores empíricos na nossa busca por
respostas.” Em poucas palavras, a explicação não se encontra no método, e sim na teoria.
Essas questões, portanto, devem ser tratadas na elaboração de uma teoria da língua em uso, da
variação e da mudança.
INTERPRETATION OF PATTERNS OF VARIATION
ABSTRACT: The methodology of quantitative analyses in sociolinguistic studies (Sankoff, 1980; Guy, 1993;
Bayley, 2002) with softwares such as GoldVarbX and Rbrul is a valuable tool for investigating language in use,
as it allows for the analysis of patterns of covariation that may not be apparent otherwise. Nevertheless, mere
identification of correlations does not automatically lead to its interpretation. Whenever two variables A and B
are correlated, one must interpret if A motivates B, if B motivates A or yet if A and B are motivated bu a third
variable C. With this question in mind, this work discusses the results of quantitative analyses of the variable use
of wh-interrogatives, defined by the position of the wh-word: (a) preverbal (Onde (que/é que) você mora?
‘Where (that/ is-it that) you live?’); and (b) posverbal/in-situ (Você mora onde? ‘You live where?’). This
concerns a theory of language in use insofar as it aims at examining its mechanism and the reasons why the
linguistic system does not present categorical rules.
KEYWORDS: Sociolinguistics; Quantitative Analyses; Interpretation of results; Wh-interrogatives.
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88
Da forma para função ou da função para forma?
Raquel Meister Ko. FREITAG59
Sebastião Carlos Leite GONÇALVES60
RESUMO: Neste artigo, lidamos com duas diretivas para estudos da mudança linguística, via gramaticalização:
da forma para a função e da função para a forma. Tais opções teórico-metodológicas requerem que se reconheçam
atuantes na gramaticalização dois princípios, por meio dos quais tornam viáveis estudos na interface
gramaticalização e variação: o principio da estratificação, que prediz que formas que se gramaticalizam passam a
coexistir, num mesmo domínio funcional, com formas antigas funcionalmente equivalentes, e o princípio da
divergência, que postula que uma forma pode desenvolver múltiplas funções no curso de sua gramaticalização, uma
das quais revestida de estatuto mais gramatical do que sua congênere lexical (HOPPER, 1991). Na investigação da
gramaticalização de formas e de funções, torna-se fundamental a apuração das frequências token (forma) e type
(função) (BYBEE, 2003). Para mostrar a viabilidade da conjugação desses diferentes critérios, reinterpretamos,
neste artigo, resultados de três estudos de casos envolvendo gramaticalização de Tempo, Aspecto e
Modo/Modalidade, em duas variedades do português brasileiro. Na direção forma
função, apresentamos
resultados do estudo da gramaticalização da perífrase ir+infinitivo (FONSECA, 2010) e, na direção função
forma, resultados da gramaticalização no domínio funcional de aspecto (FERNANDES, 2010) e no domínio
funcional de tempo passado (FREITAG, 2007; COAN, 1997). Os resultados mostram que a opção por uma das
diretivas pode determinar a adoção de critérios mais seguros para a proposição de trajetórias de gramaticalização.
PALAVRAS-CHAVE: Gramaticalização. Variação. Forma. Função. TAM.
Introdução
O ressurgimento do interesse pela gramaticalização no cenário mundial data do início
da década de 1980 e, no Brasil, a temática só tomou fôlego quase dez anos mais tarde. Desde
então, os estudos de gramaticalização no português do Brasil tornaram-se campo fértil de
investigação. A análise empírica de fenômenos de mudança, em diferentes níveis gramaticais,
tem promovido reflexões sobre o quadro teórico (ou teorias) de gramaticalização, apontando
os limites e limitações do modelo e a busca de abordagens de interface. Se num primeiro
momento, os estudos de gramaticalização focavam o delineamento da trajetória de mudança
de um item/construção (forma), atualmente, o domínio funcional (função) tem sido elevado
também a objeto de análise. O fator frequência de uso, amparado seja nas noções de token e
type (BYBEE, 2003), seja nas noções de variável e variantes da abordagem variacionista
(LABOV, 1972), também vem sendo incorporado de modo produtivo ao quadro da
gramaticalização, conferindo-lhe maior poder explanatório.
Os estudos de gramaticalização têm evidenciado que as trajetórias de mudança
pressupõem estágios de menor estabilidade do sistema, na medida em que ocorre a
sobreposição de funções para uma mesma forma e/ou a sobreposição de formas para o
desempenho de uma mesma função, constatações que têm propiciado interessantes
correlações com a Teoria da Variação e Mudança Linguística, vertente que vem se
denominando Sociofuncionalista (NARO & BRAGA, 2001; TAVARES, 2003; GORSKI &
TAVARES, 2009). É sob tal vertente que, neste artigo, focamos nosso olhar para fenômenos
de gramaticalização no domínio das categorias verbais do português e, considerando o fator
frequência de uso, discutimos as implicações e os limites da análise de trajetórias de
59
UFS – Universidade Federal de Sergipe. Centro de Educação e Ciências Humanas – Departamento de Letras
Vernáculas. São Cristóvão/SE, 49100-000 – [email protected] /CNPq
60
UNESP – Universidade Estadual Paulista. Câmpus de São José do Rio Preto – Departamento de Estudos
Linguísticos e Literários – Rua Cristóvão Colombo, 2265, Jardim Nazareth, São José do Rio Preto/SP,
15054-000 – [email protected] / CNPq
89
gramaticalização em duas direções: da forma para a função e da função para a forma. Nosso
objetivo é mostrar que os dois direcionais de abordagens não são excludentes e permitem,
quando conjugados, maior confiabilidade de resultados, de modo a se delinear o escopo do
fenômeno, especialmente em amostras sincrônicas de língua, como as de que nos valemos
nesta exposição.
Para a sustentação dessa proposição, reinterpretamos, nesse artigo, resultados de três
casos de mudança, os quais envolvem a gramaticalização das categorias verbais do complexo
TAM (Tempo, Aspecto e Modo/Modalidade), em duas variedades do português do Brasil
função, apresentamos resultados do estudo da
(PB, daqui em diante). Na direção forma
gramaticalização da perífrase ir+infinitivo (FONSECA, 2010) e, na direção função
forma,
resultados da gramaticalização no domínio funcional de aspecto (FERNANDES, 2010) e no
domínio funcional de tempo passado (FREITAG, 2007; COAN, 1997). Os dados empíricos
que subsidiam esses estudos de caso são provenientes de amostras de fala de dois bancos de
dados constituídos nos moldes da Sociolinguística Variacionista: a amostra de Florianópolis
do banco de dados do Projeto “Variação Linguística Urbana na Região Sul do Brasil”
(VARSUL) e a amostra censo do banco de dados IBORUNA do Projeto “Amostra Linguística
do Interior Paulista” (ALIP).
O banco de dados VARSUL, disponível em <http://varsul.cce.ufsc.br>, é resultado do
projeto “Variação Linguística Urbana na Região Sul do Brasil”, cujos objetivos são o
armazenamento, a disponibilização e a realização de estudos descritivos de amostras de fala
de habitantes das áreas urbanas representativas de cada um dos três estados da região sul do
Brasil. O VARSUL vem, desde a década de 1990, promovendo a realização de estudos
sociofuncionalistas em diferentes níveis de análise (TAVARES, 1999; GIBBON, 2000;
VALLE, 2001; ROST, 2002; FREITAG, 2003, 2007, entre outros). O banco de dados
IBORUNA, disponível em <http://www.iboruna.ibilce.unesp.br> e constituído entre os anos
de 2004 e 2007 no interior do Projeto ALIP, teve por objetivo primeiro registrar a variedade
falada na região noroeste do Estado de São Paulo, nucleada pela cidade de São José do Rio
Preto, de modo a também promover estudos de descrição da variedade falada no interior
paulista, por recurso a amostras do censo linguístico da região e a amostras de interação social
livre, gravadas secretamente. Desde então, o Projeto ALIP tem também propiciado a
realização de estudos na interface variação/gramaticalização (GONÇALVES & RUBIO,
2011, FERNANDES, 2010; FONSECA, 2010; FORTILLI, 2009, dentre outros).
Para a consecução de nossos objetivos, o presente artigo está estruturado em cinco
seções. Nas duas primeiras seções, explicitamos as bases teóricas que embasam nossa
proposição, procurando articular as perspectivas da Gramaticalização e da Variação (seção 1),
para, em seguida, discutir a inter-relação entre forma e função e as implicações decorrentes do
recorte da trajetória: se a partir da forma ou a partir da função (seção 2). Com base neste
arcabouço, nas duas seções que se seguem, apresentamos o domínio das categorias verbais do
PB, focando a gramaticalização de formas perifrásticas (seção 3) e a gramaticalização no
domínio tempo passado (seção 4). Por fim, reservamos a última seção às nossas considerações
acerca das abordagens pautadas em diferentes pontos de partida, fazendo um balanço dos
resultados obtidos e ressaltando a importância do fator frequência de uso.
A interface gramaticalização/variação
Basilares na definição de fenômenos em variação são os conceitos de variável e de
variante linguística. Duas ou mais formas distintas em variação que transmitam um mesmo
conteúdo informativo constituem uma variável linguística ou identifica um fenômeno
variável. Formas alternantes de se dizer a mesma coisa constituem formas variantes. Para que
se reconheça um fenômeno variável é necessário, portanto, que duas ou mais variantes tenham
90
o mesmo significado referencial ou denotativo (LABOV, 1972). Essa premissa básica dos
estudos variacionistas se aplica sem grandes controvérsias a variáveis fonológicas, contudo a
situação parece não ser a mesma para além desse nível de análise, como já fez sugerir o
intenso debate, no interior da Sociolinguística, entre Beatriz Lavandera e William Labov, ao
final dos anos de 1970, início dos 80 (LABOV, 1978; LAVANDERA, 1978, 1984; WEINER
& LABOV, 1983), desencadeado a partir de uma série de trabalhos variacionistas que, já na
década de 1970, passaram a dispensar mais atenção à variação de nível sintático, com o
sacrifício, por vezes, de variáveis sociais. Exemplar desse tipo de abordagem variacionista é o
trabalho de Weiner e Labov (1983), que, na investigação da alternância entre construções de
voz ativa e construções de voz passiva sem agente, no inglês, desconsideraram em suas
análises o componente social.
A questão norteadora do debate diz respeito a se, para além do nível morfofonológico,
permaneceria válida a premissa variacionista de manutenção do significado referencial para
formas consideradas alternantes. Contrárias à consideração de que, para se definir variável
não-fonológica, bastaria a manutenção do significado referencial, independentemente de sua
forma de expressão, colocaram-se os trabalhos de três representativas linguistas: E. Garcia
(1985), B. Lavandera (1978, 1984) e S. Romaine (1981, 1984). Acerca dessa questão, assim
se pronuncia criticamente Lavandera, por exemplo:
as unidades para além do [nível] fonológico, digamos, um morfema, um item
lexical, ou uma construção sintática, têm cada uma por definição um significado.
[...] as afirmações quantitativas devem ser tratadas [nesse caso] como dados que
necessitam de interpretação, e as regras probabilísticas constituem apenas recursos
heurísticos. (LAVANDERA, 1984, p. 42; 46)
A respeito dessas críticas, Labov (1978) considera que, inicialmente, a preocupação da
Sociolinguística era investigar a motivação social de algumas mudanças linguísticas e
demonstrar sua distribuição na escala social. Todavia, a Sociolinguística evoluiu e não pode
se confinar apenas a estudos de fenômenos variáveis que estejam atrelados aos fatores sociais.
Sem aprofundar o mérito dessa discussão, o certo é que muito já se avançou nos
estudos sociolinguísticos na comprovação da pertinência de se considerar todos os níveis de
análise da língua como sujeitos à variação. Assim, a dimensão variável da língua inclui não
somente aspectos dos níveis morfofonológicos, mas também do sintático, do semântico e do
pragmático, como bem demonstram estudos sobre a mudança linguística que se desenvolvem
na interface gramaticalização/variação, recorrendo-se, sobretudo, ao afrouxamento da noção
estrita de variável/variante, e adotando-se, como princípio, a comparabilidade funcional, tal
como postulou por Lavandera (1978) ao final do debate.
Para o reconhecimento da viabilidade de aproximações entre estudos de
gramaticalização e de variação, é preciso que se tenha claro a concepção de mudança
linguística que cada vertente esposa. Como bem argumentam Gorski e Tavares (2009), a
mudança, na perspectiva laboviana, só ocorre quando há a disseminação da inovação ao longo
da comunidade de fala; não é, portanto, inovação em si. Diferentemente, em
Gramaticalização, a mudança refere-se tanto ao surgimento de formas inovadoras quanto a
sua propagação social; uma mudança bem sucedida contém essas duas etapas. Essas
diferenças de abordagem se devem às preocupações centrais de cada teoria: no caso da Teoria
da Variação e Mudança, a preocupação com o significado e as diferentes formas que o
codificam e, no da gramaticalização, com uma forma que desempenha diferentes funções.
Argumento relevante das autoras, ainda para justificar um estudo na interface
Sociolinguística/Gramaticalização, é o de que, enquanto na teoria Sociolinguística, a mudança
decorre da variação, na perspectiva da Gramaticalização, a variação é que decorre da
91
mudança, porque é sob tal concepção que se averigua o percurso evolutivo de um dado
item/construção, que, no decorrer de sua trajetória, adquire múltiplas funções. Se uma ou mais
dessas funções já estiverem sendo desempenhadas por outro item, ocorre uma situação de
variação. Assim, a variação é consequência da multifuncionalidade de um item em processo
de gramaticalização. São palavras de Gorski e Tavares, a esse respeito:
Ao estudar variação, estamos analisando uma etapa da mudança em que convergem os
percursos de gramaticalização; ao estudar gramaticalização estamos averiguando
diferentes etapas de variação ao longo do tempo (GORSKI & TAVARES, 2009, p.13).
Independentemente de estarmos lidando, neste artigo, com casos de variação strictu
sensu, optamos por apresentar análises sociofuncionalistas, "afrouxando" os conceitos de
variável e variante, para incluir tanto a variação de forma quanto a de função.
Forma e função
A relação entre forma e função no âmbito das teorias da linguagem tem sido, desde
sempre, conflituosa: formalistas e funcionalistas defendem, cada qual, sua perspectiva como a
primordial para os estudos da linguagem. Em nossa abordagem, não nos envolvemos nesta
polêmica; limitamo-nos a tecer reflexões acerca das implicações para o delineamento do
fenômeno de gramaticalização a partir de dois direcionais, da forma para a função e da função
para a forma, e como a articulação entre ele, aliada ao fator frequência de uso, permite melhor
captar os matizes da gramaticalização de fenômenos em níveis gramaticais mais altos e
domínios funcionais complexos, como o são o das categorias verbais.
Como ponto de partida, assumimos a premissa funcionalista de que a estrutura da
língua reflete a estrutura da experiência, instaurando uma relação natural entre forma e
função, denominada iconicidade (cf. BOLINGER, 1977; GIVÓN, 1995). Em sua versão forte,
a iconicidade prevê uma relação ideal de um-para-um entre forma e função. Em uma versão
mais branda, admite que possa haver opacização entre a forma de codificação e a função por
ela desempenhada, perda de transparência que abre a possibilidade para interpretação de casos
à luz da variação. É nessa perspectiva que se inserem os direcionais de análise da
gramaticalização em discussão.
Givón (1995) defende que a correlação ideal um-para-um entre forma e função é
superestimada. Em uma situação real de uso linguístico é preciso admitir a arbitrariedade na
codificação linguística, uma vez que a iconicidade do código linguístico está sujeita às
pressões que atuam tanto na forma, afetando o código/estrutura, quanto na função, afetando a
mensagem: o código sofre constante erosão decorrente de atrito fonológico, e a mensagem
sofre alterações em virtude da elaboração criativa do falante. Tais pressões geram
ambiguidade de código (polissemia), com uma forma e várias funções, e de mensagem, várias
formas e uma função (variação).
Para lidar com essas implicações decorrentes da superestimação da iconicidade em
estudos da mudança, tem-se articulado a abordagem variacionista e a abordagem da
gramaticalização, cujo foco são as relações entre funções e formas, decorrentes de pressões
linguísticas e sociais, com destaque para a história e a coexistência de diferentes formas,
configurando-se como uma situação de estratificação/variação (HOPPER, 1991). Essa
interface sociofuncionalista lida com estágios de gramaticalização, pressupondo que a
estratificação/variação decorre da trajetória de gramaticalização.
Nessa perspectiva, os direcionais propostos configuram duas possibilidades de
abordagem de trajetória de gramaticalização: a primeira, da forma para a função, é uma
abordagem que parte da forma, com o mapeamento de suas diferentes funções/domínios
92
funcionais por que perpassa em sua trajetória; a segunda, da função para a forma, é uma
abordagem que parte da função/domínio funcional e busca o mapeamento das diferentes
formas que o codificam. Para distinguir essas duas possibilidades, chamaremos a abordagem
da forma para a função de gramaticalização de itens/construções e a abordagem de função
para a forma, de gramaticalização de funções/domínios funcionais.
A gramaticalização de itens/construções refere-se ao processo, conforme Bybee
(2003), pelo qual uma sequência de morfemas ou palavra frequentemente utilizada torna-se
automatizada como uma única unidade no processamento e passa a desempenhar novas
funções, ampliando seu escopo de atuação para outros domínios funcionais. A automatização
do processo incrementa a frequência de uso, tanto a frequência type, como a frequência token.
Frequência token é um método de quantificação que requer a contagem de uma forma
(construção, palavra ou morfema), independentemente da função que assume no contexto em
que ocorre, critério que admite a abordagem da gramaticalização de itens/construções, à
medida que o aumento de frequência de uso é um dos primeiros indícios, não causa, que
permite reconhecer processos de gramaticalização de itens/construções (BYBEE, 2003). Já
frequência type é a contagem da frequência de um padrão particular (ou função) de dicionário
que uma dada forma (construção, palavra ou morfema) assume no contexto em que ocorre,
como, por exemplo, funções de tempo, aspecto, modo/modalidade etc, o que requer que se
adote, para o acionamento desse critério, uma abordagem mais próxima a da gramaticalização
de funções/domínios funcionais. Em grande parte de estudos casos de gramaticalização, um
critério de apuração de frequência nem sempre exclui o outro, aliás, o desejável é que, na
medida do possível, sejam conjugados (BYBEE, 2003).
Em termos metodológicos, o levantamento de frequência token e type constitui
importante ferramenta que se associa aos princípios propostos por Hopper (1991), para
diferenciar processos de gramaticalização de outros processos de mudança linguística:
estratificação (“layering”), divergência, especialização, persistência e decategorização. De
aplicação mais direta ao presente estudo, interessa-nos detalhar os princípios de estratificação
e de divergência, que podem ser considerados à luz da noção de variável, em sentido mais
lato, uma vez que o primeiro diz respeito à variação de formas dentro de um mesmo domínio
funcional, enquanto o segundo refere-se à variação de funções para uma mesma forma.
Domínio funcional é o escopo de atuação de uma dada função desempenhada por uma
ou mais formas da língua (cf. GIVÓN 1984). A complexidade dos domínios funcionais
decorre do fato de as fronteiras entre cada um de seus subcomponentes nem sempre serem
claras e precisas, impossibilitando a dissociação, na prática, de um componente do outro.
Mais detalhadamente, o princípio da estratificação de Hopper sugere que, com o surgimento
de novas camadas dentro de um domínio funcional, as camadas (ou formas) velhas não são
necessariamente descartadas, podem coexistir e interagir com as camadas novas, que podem
reter vestígios de seu sentido lexical antigo (persistência). Em decorrência dos estágios de
polissemia que um item/construção experimenta num processo de gramaticalização, é forçoso
que se reconheçam nuanças de sentido diferentes associadas à forma desencadeadora do
processo, variância que é captada pelo princípio de divergência. A forma lexical original
permanece autônoma no sistema, podendo se submeter a outros processos de mudanças que
afetam os itens lexicais em geral. É, principalmente, na atuação conjunta desses dois
princípios, que o item/construção sofre gramaticalização, na medida em que se submete a um
rebaixamento categorial (decategorização), distanciando-se, assim, de seu congênere lexical
(ou menos gramatical) para assumir função gramatical (ou mais gramatical ainda).
Nos estudos de gramaticalização, o foco da análise é captar as nuanças do processo
pelo qual passam as construções e os domínios funcionais, evidenciando-se o caráter gradual
da mudança, uma vez que há uma quebra na correlação prototípica entre a forma e a função.
Esta quebra propicia situações de usos linguísticos variáveis em função da dinamização da
93
trajetória dos itens/construções. Para Torres Cacoullos (2001), o termo “layering” pode ser
visto em duas perspectivas nos estudos de gramaticalização. Na perspectiva de Hopper
(1991), o princípio das camadas é explorado em termos da sua diversidade formal dentro de
um dado domínio funcional. Torres Cacoullos sugere que esse princípio pode ser explorado
em termos de divergência de forma e de sentido, ou seja, a coexistência de diferentes usos
linguísticos em um mesmo recorte temporal, decorrente da trajetória de gramaticalização do
item/construção. Sob tal perspectiva, o princípio de divergência de Hopper (1991) passa a ser
apreciado também como um tipo especial de estratificação, como mostrado na fig. 1.
“layering”
diversidade formal
(variação sincrônica entre diferentes formas no mesmo domínio
funcional)
polissemia
(variação sincrônica entre diferentes usos linguísticos da mesma
forma)
Fig. 1: “Layering” como diversidade formal e polissemia (TORRES CACOULLOS, 2001, p. 463)
Variação em categorias verbais do português
Nas línguas naturais, a categoria verbal permite a expressão de funções sintáticosemânticas variadas, codificadas morfologicamente, tais como valência, voz, aspecto, tempo e
modo/modalidade e concordância. Uma análise minuciosa da categoria verbal nas línguas do
mundo permite verificar a existência de um continuum de relevância entre tais expressões
morfológicas na alteração do significado lexical codificado na raiz verbal, como mostra
Bybee (1985) em pesquisa tipológica envolvendo cinquenta línguas. A autora mostra que a
grande maioria das línguas (72%) traz expressa na base verbal a categoria aspecto, ao passo
que concordância de número e pessoa ocorre em menor número de línguas (56%). Diante
dessas evidências, é possível se chegar a uma escala, em que as categorias modificadoras da
base verbal são dispostas de acordo com seu grau de relevância para a mudança do radical,
como mostrado na fig. 2.
Grau de
Menor
relevância
Valência > Voz > Aspecto > Tempo > Modo /modalidade> Concordância (número > pessoa > gênero)
Fig. 2: Ordem de relevância de categorias verbais (adaptada de BYBEE, 1985)
maior
Sob tal hierarquização icônica, quanto mais contribui para a alteração semântica do
radical, mais próximo dele uma dada categoria se coloca. Assim, categorias morfêmicas que
ocupam posição mais à esquerda do continuum contribuem mais significativamente para a
modificação do conteúdo da base verbal do que as posicionadas mais à direita.
No presente trabalho, interessam-nos destacar dessa escala as categorias do complexo
TAM para verbo (aspecto>tempo>modo/modalidade), que mostram que, na composição do
sentido global da expressão verbal, aspecto é mais relevante do que tempo, que, por sua vez, é
mais relevante do que a modo/modalidade, permitindo, assim, inferir dessa relação que, entre
tais categorias, existe um continuum de gramaticalização de sentidos, que vai de menos
abstrato > mais abstrato. Tal disposição pode encontrar seus reflexos nos correlatos
gramaticais de codificação dessas categorias semânticas, seja por meio de perífrases verbais
seja por meio de sufixos flexionais, uma vez que universais de base semântica encontra
94
amparo tanto nas codificações morfológicas, caso de afixos, quanto nas codificações
morfossintáticas, caso de perífrases verbais (HENGEVELD, 2004).
De acordo com Bybee (1985), a categoria aspecto refere-se à temporalidade interna do
evento descrito pela predicação verbal, a qual aciona noções como duração, momentaneidade,
fases de desenvolvimento do evento, resultatividade, iteratividade etc. Isso significa dizer que
significados aspectuais não afetam participantes de um evento, como as categorias valência e
voz afetam, nem fazem referência à temporalidade externa ao evento de fala (tempo dêitico),
como é função da categoria tempo, que deixa inalterado o evento em si, independentemente
de ele estar situado em momento anterior, concomitante ou posterior ao evento de fala. Como
a mais abstrata, a categoria modo/modalidade é acionada para a expressão da atitude do
falante, não tendo relação direta nem com o evento descrito pela predicação verbal nem com
sua localização temporal, propriedade semântica que torna essa categoria menos relevante
para o significado do verbo do que aspecto e tempo.
Diferentemente das línguas que serviram de base para pesquisa tipológica de Bybee
(1985), em português, as categorias do complexo TAM não são codificadas exclusivamente
por afixos verbais; podem ser expressas também por formas de expressão variadas, como as
perífrases constituídas de Verbo auxiliar (V1) + Verbo principal (V2), em uma de suas
formas nominais (particípio, gerúndio e infinitivo), pela própria predicação, por complexos
oracionais ou ainda por partes maiores do discurso.
Para tratar empiricamente dos direcionais envolvendo forma e função, voltamos nossa
atenção para resultados de três estudos de caso de mudança: a) a gramaticalização de
ir+infinitivo (FONSECA, 2010) e a de perífrases constituídas por V1 + V2-ndo, com V1 =
andar, continuar, ficar, viver (FERNANDES, 2010); e b) a gramaticalização no domínio do
pretérito. É de que passamos a tratar nas duas próximas seções.
Gramaticalização de perífrases verbais
Não há consenso na literatura linguística acerca da definição de propriedades claras
que permitam distinguir verbos plenos de verbos auxiliares. Como mostram Fonseca (2010) e
Fernandes (2010), a depender da posição teórica do investigador e dos critérios por ele
adotados, haverá um diferente conceito de auxiliar e diferentes tipos de verbos que podem
integrar essa classe. Recorrendo então a diferentes estudos (LOBATO, 1975; LONGO, 1990;
HEINE, 1993, LONGO & CAMPOS, 2002), as autoras levantam 25 critérios diferentes para
testar a auxiliaridade em construções perifrásticas, os quais transcrevemos no quadro 1, a
seguir, com o intuito de mostrar a falta de consenso em torno desses critérios.
Autor Lobato
(1975)
Critérios de Auxiliaridade
1. Inseparabilidade (prosódica, sintática e semântica)
√
2. Detematização (sem propriedade de predicação)
√
3. Incidência da negação sobre a perífrase
√
4. Restrição paradigmática (defectividade)
√
5. Frequência alta (auxiliar + v. na forma nominal)
√
6. Incidência de circunstante de tempo sobre a perífrase
√
7. Impossibilidade de desdobramento da oração
√
8. Critério da apassivização
√
9. Recursividade (coocorrência com mesma raiz)
10. Oposição a uma forma simples correspondente
√
11. Impossibilidade se substituição por pronome
√
Longo Heine
Longo e
(1990) (1993) Campos (2002)
√
√
√
√
√
√
√
√
√
√
√
√
√
√
√
95
12. Sujeito único
√
√
13. Posição fixa na perífrase
√
√
14. Participação do complexo TAM
√
15. Categoria fluida entre pleno e auxiliar
√
16. Formas variantes (plena e reduzida foneticamente)
√
17. Impossibilidade de receber contraste enfático
√
18. Tendência a se tornar clítico/afixo
√
19. Flexão em pessoa, número, concordância, TAM etc
√
20. Não-regência por outros auxiliares
√
21. Sinsemânticos e sincategoremáticos
√
22. Categoria separada do verbo principal
√
23. Acepção egocêntrica
√
24. Impossibilidade de ser complementado por oração
√
25. Sem restrições semânticas sobre sujeito e auxiliado
√
Quadro 1: Critérios de auxiliaridade (LOBATO, 1975; LONGO, 1990; HEINE, 1993;
LONGO & CAMPOS, 2002)
Mesmo diante da tentativa de se estabelecerem critérios para a distinção de auxiliares,
Heine (1993), de posição moderada, advoga não haver limites claros entre verbos plenos e
auxiliares, os quais se sujeitam a um continuum ou a uma gradiência de gramaticalidade, vista
sempre como resultante de processos de gramaticalização que tornam, em certos contextos,
verbos plenos em auxiliares. Assumindo, aqui, essa posição para a análise de construções
perifrásticas, a questão que permanece diz respeito a quais parâmetros adotar para a
identificação de um gradiente verbal do tipo pleno > pleno/auxiliar > auxiliar, visto que, num
recorte temporal da língua, um mesmo elemento pode assumir funcionamento
prototipicamente ora de verbo pleno ora de auxiliar, havendo contextos de sobreposição entre
essas duas funções. Assim, a verificação da aplicação de critérios de auxiliaridade no estudo
da gramaticalização de perífrase verbal constitui ferramenta útil para aferir o seu grau de
gramaticalidade, pois, por meio desses critérios, torna possível verificar o grau de conexão
entre V1 e V2 na construção perifrástica, que pode variar de simples justaposição a fusão,
conforme Lehmann (2002 [1982]).
Tratemos então dos dois estudos de casos que, envolvendo construções perifrásticas,
contemplam os direcionais enfocados neste trabalho. O primeiro estudo, partindo da forma de
construções perifrásticas constituída de ir+infinitivo, procura detectar, na multifuncionalidade
da construção, a função mais gramaticalizada na atualização das categorias TAM
(FONSECA, 2010), enquanto o segundo, partindo do domínio funcional do aspecto
imperfectivo cursivo, considera a variação de construções perifrásticas, nesse domínio,
implementada pelos verbos andar, continuar, ficar e viver (V1), seguidos de gerúndio (V2),
para verificar quais, dentre elas, encontram-se em estágio mais avançado de gramaticalização
(FERNANDES, 2010). Está na base desses dois estudos de caso a consideração dos princípios
de divergência e de estratificação, tal como discutidos na seção anterior.
Para testar a gramaticalização dessas perífrases, elegemos, para cada tipo, um conjunto
de 10 critérios de auxiliaridade, dos 25 expostos no quadro 1, associados à apuração da
frequência de uso, considerada não como resultado da gramaticalização, mas como “força
ativa na investigação das mudanças que ocorrem em gramaticalização” (BYBEE, 2003, p.
602). A adoção desses dois critérios permite verificar, respectivamente, as seguintes
hipóteses: a) quanto maior o número de critérios de auxiliaridade atualizados na perífrase,
mais coesa, mais conectada e mais gramaticalizada ela estará; b) formas/funções mais
96
gramaticalizadas são mais frequentes no discurso. Os dados empíricos que sustentam as
análises das perífrases são provenientes do banco de dados IBORUNA do Projeto ALIP.
Analisemos inicialmente o caso de ir + infinitivo, sob a expectativa de que sua
gramaticalização acompanha a gramaticalidade das categorias verbais (aspecto > tempo >
modo/modalidade), como anteriormente discutida (BYBEE, 1985). As diferentes funções de
TAM identificadas nos usos de ir+infinitivo são ilustradas no quadro 2.
Funções de ir+infinitivo
Aspecto Imperfectivo
Iterativo
T2
Aspecto Imperfectivo
Semelfactivo
T3 Aspecto Perfectivo
Semelfactivo
T4 Tempo Futuro Próximo
T1
T5
Tempo Futuro Remoto
T6
Tempo Futuro do Pretérito
T7
T10
Modalidade orientada para
o Falante
Modalidade Orientada
para o Agente
Modalidade Epistêmica
(Possibilidade)
Marcador discursivo
T11
Função Ambígua
T8
T9
Ocorrências Prototípicas
as mulheres às vezes vão passeá(r) pra lá ... elas ficam bem assustada
quando chega e vê aquilo lá (AC-093; DE ; L. 146)
ela disse que sem::pre amô(u) ele que sempre vai amá(r)... apesar da mor::te
dele né?... (AC-038; NR; L.139)
uma amiga minha foi viajá(r) pra Laranjais e ela achô(u) o hotel de lá muito
bonito... (AC-004; NR; L.62)
depois de amanhã na sexta-fe(i)ra a gente vai:: vai voltá(r) pra lá:: (AC046; NE; L.115)
eu ficava sempre falan(d)o –“um dia eu vô(u) passá(r) de lá vô(u) conhecê(r)
ela”– (AC-067; NE; L.07)
um moleque maior falô(u) que ia batê(r) nele na hora do recreio... (AC-067;
NR; L.170)
“vamo(s) fazê(r) uma macumba?... nós temo(s) que fazê(r) uma macumba
pa matá(r) essa mulher” (AC-100; NR; L.114)
então você vai lê(r) a embalagem... você vai pegá(r) a forminha... você já vai
passá(r)... não é fácil não viu? (AC-106; RP; L.548)
às vez nunca dá certo porque se eles tivé(r) a carta... eles vai sabê(r) que é
sinal falso... é a única coisa que tem (AC-059; RP; L.190)
vamos supor mente vazia é a oficina do diabo né? então:: lá é um lugar que
cê num fica de mente vazia (AC 029-RO; L.205)
nós ligamo(s) pra mãe da M.... e pra minha mãe daÍ elas foram lá na praça
achá(r) essa meNIna... (AC-010; NE; L.68)
Quadro 2: Ocorrências prototípicas das funções de ir+infinitivo
Na tabela 1, apresentamos a frequência das funções (T1,..., Tn) de ir + infinitivo.
Tabela 1: Multifuncionalidade (T1...Tn) e frequência de uso de ir + infinitivo
Types (funções)
T1. Imperfectivo Iterativo
ASPECTO (03)
T2. Imperfectivo Semelfactivo
280 tokens
19% da amostra
T3. Perfectivo Semelfactivo
T4. Futuro Próximo
TEMPO (03)
T5. Futuro Remoto
631 tokens
43% da amostra
T6. Futuro do Pretérito
T7. Orientada para Falante
MODALIDADE (03)
T8.
Orientada para Agente
469 tokens
31% da amostra
T9. Epistêmica (Possibilidade)
T10. Marcador Discursivo
OUTRAS (02)
112 tokens
T11. Função Ambígua
7% da amostra
TOTAL
Tokens
99/1492 = 6,6%
93/1492 = 6,2%
88/1492 = 5,9%
532/1492 = 35,6%
18/1492 = 1,2%
81/1492 = 5,4%
52/1492 = 3,5%
98/1492 = 6,6%
319/1492 = 21,4%
65/1492 = 4,4%
47/1492 = 3,2%
1492 = 100%
97
Pelo critério frequência, a função temporal seria a mais gramaticalizada, a função
ambígua a menos gramaticalizada e as funções aspectuais e modais teriam grau de
gramaticalização intermediário, disposição categorial que não atestaria a hipótese de que a
gramaticalização de ir+infinitivo ocorreria em um processo maior de gramaticalização das
categorias verbais flexionais (aspecto > tempo > modo/modalidade). Vejamos, a seguir, no
quadro 3, os resultados da análise da atualização dos critérios de auxiliaridade para
aprofundarmos essa discussão. A verificação da atualização dos critérios selecionados é feita
atribuindo-se 1, se um dado critério se aplica, e 0, se não se aplica. Considerando-se o
direcional forma
função, cada critério é aplicado mediante a análise de construções de
ir+infinitivo, prototípicas de cada uma das funções do complexo TAM (FONSECA, 2010).
Funções
Aspecto
Tempo
Modo/Modalidade
Ambígua
Critérios
1. Inseparabilidade na perífrase
2. Detematização
3. Incidência de negação
4. Restrição paradigmática
5. Frequência alta
6. Incidência de circunstante de tempo
7. não desdobramento em orações
8. Apassivização
9. Recursividade
10. Oposição a forma simples
Grau de Gramaticalidade
T1
1
0
1
1
1
1
0
0
0
1
6
T2
1
0
1
1
1
1
0
0
0
0
5
T3
1
0
1
1
1
1
0
0
0
1
6
T4
1
0
1
1
1
1
1
0
1
1
8
T5
1
0
1
1
1
1
1
0
0
1
7
T6
1
1
1
1
1
1
1
0
0
1
8
T7
1
1
1
1
1
1
1
1
0
0
8
T8
1
1
1
1
1
1
1
1
0
1
9
T9
1
1
1
1
1
1
1
1
0
1
9
T10
0
0
0
1
0
0
0
1
0
0
2
Quadro 3: Multifuncionalidade (T1...Tn) e auxiliaridade de ir+infinitivo (FONSECA, 2010)
Pelos resultados do quadro 3, observa-se que ir+infinitivo encontra-se em estágio
avançado de gramaticalização. Não há grandes discrepâncias entre os graus de
gramaticalidade de cada função, e inexistem graus baixos, com exceção da função ambígua
(Grau 2), para a qual a maioria das ocorrências (63%) não tem ainda o grupo verbal formado.
Outro dado que confirma um estágio avançado de gramaticalização dessa construção é
a atualização do critério Recursividade, exemplificado pela ocorrência em (01).
(1)
“eu/ eu quero eu quero uma arma?” ... “ah num tem/ num tem jeito de comprá(r)?”... é
inlegal eu vô(u) í(r) num algum lugar aí eu conSIgo” (AC-062; RO; L.444)
O grau de gramaticalidade da função ambígua destoa das demais funções porque se
trata de construções que, na maioria dos casos, ainda preservam a estrutura de deslocamento e
de finalidade. Funções aspectuais, pela baixa frequência, estariam em estágio intermediário de
gramaticalização (Graus 5 e 6), constatação decorrente do fato de ocorrências prototípicas
ainda estarem ligadas à estrutura argumental do verbo ir e, portanto, não totalmente
detematizadas; combinadas, frequentemente, com locativos expressos, essas ocorrências
também podem ser desdobradas em estruturas de deslocamento e finalidade. Funções
temporais, com grau 7 ou 8, estariam mais gramaticalizadas que as aspectuais. Embora alguns
types temporais ainda não estejam totalmente detematizados (futuro próximo e remoto), já não
é mais possível seu desdobramento oracional. Observe-se que o critério da Recursividade só
foi atualizado na função de futuro próximo, o que indicia que essa função estaria um pouco
mais gramaticalizada que as demais temporais. Por fim, as funções modais são as mais
gramaticalizadas, com graus 8 e 9; só não atualizam o critério da Recursividade, e, no caso da
Modalidade Orientada para o Falante, o critério da Oposição a uma forma simples
correspondente, já que a perífrase, sob valor de exortação, não é variante de futuro.
98
A partir desses resultados, confrontemos na fig. 3, os clines de gramaticalidade de
ir+infinitivo, considerando os critérios de frequência e de auxiliaridade.
Critério frequência token
Função Ambígua Função Aspectual
Função Modal
Função Temporal
___________________________________________________________________________
menos frequente
menos gramaticalizada
mais frequente
mais gramaticalizada
Critérios de auxiliaridade
Função Ambígua Função Aspectual
Função Temporal
Função Modal
_________________________________________________________________________
atualização de menos critérios
menos gramaticalizada
atualização de mais critérios
mais gramaticalizada
Fig. 3: Clines de gramaticalidade de ir+infinitivo (FONSECA, 2010)
No confronto dos dois clines de gramaticalidade de ir+infinitivo, pelo critério
frequência, modo/modalidade gramaticaliza-se em tempo, portanto tempo seria a categoria
mais gramaticalizada; pelos critérios de auxiliaridade, tempo gramaticaliza-se em
modo/modalidade, portanto modo/modalidade seria a categoria mais gramaticalizada. Diante
dessa divergência, advogamos que o cline mais confiável é o que obedece aos critérios de
auxiliaridade, porque permite ratificar o postulado universal de Bybee (1985) sobre a ordem
de gramaticalização das categorias verbais: aspecto seria a menos gramatical, tempo, uma
categoria intermediária, e modo/modalidade, a mais gramatical.
Analisemos, agora, o estudo de caso das perífrases constituídas por andar, continuar,
ficar e viver + V-ndo (FERNANDES, 2010), o qual assume a diretiva função
forma. No
quadro 4, seguem ocorrências exemplificativas das diferentes funções de cada uma delas.
Funções
Imperfectivo
cursivo
semelfactivo
Imperfectivo
cursivo
iterativo
Imperfectivo
cursivo
progressivo
Perfectivo
pontual
Ocorrências prototípicas
ficar +V_ndo
eu a:: minha cunhada e a minha mãe fico(u) conversan(d)o nas: ... na:: sacada (AC-013; NE: L.09)
continuar +V_ndo
a gente ia continuá(r) namoran(d)o (AC-022; NE: L. 60)
andar +V_ndo
as polícia ... nu/ num anda fazen(d)o muita coisa não (AC-030; RO: L. 355)
ficar +V_ndo
aí com a mão aqui ((mostra com a mão)) e ficava falan/ repitin(d)o isso toda hora...(AC-001;NE:L.12)
continuar +V_ndo
aí lá a gente assim continuô(u) mantendo contato
andar +V_ndo
há vários dias já... que ela... anda me contan(d)o que os dois num tavam in(d)o muito BEM
(AC-022; NR: L. 230)
viver +V_ndo
meu pai só vivia brigan(d)o com o patrão (AC-048; NR: L. 200)
ficar +V_ndo
o buraco na Camada de Ozônio fica aumentando a água no mar (AC-076; RO: L. 413)
continuar +V_ndo
e vai continuá(r) aumentan(d)o as vagas... tá nítido isso... o governo já... além de tudo... o
governo... acabô(u) de... a universidade em si acabô(u) de acampá(r)... o campus da
FAMERP... (AC-080; RO: L.279)
ficar +V_ndo
e os moleque também fica contan(d)o assim ... hoje eu fiquei sabendo que... a C. gosta do
E.... nossa maior frescura lá na classe (AC-014-NR L.120)
Quadro 4: Ocorrências prototípicas das funções de andar, continuar, ficar e viver + _ndo
99
Da análise do quadro 4 e dos resultados de frequência token e type, na tab.2, a seguir,
depreende-se que construções com V1 continuar são as que apresentam maior variedade de
função aspectual, ao passo que as formadas por andar realizam os aspectos imperfectivo
cursivo semelfactivo e iterativo. Por fim, perífrases constituídas por viver+_ndo não
apresentam variabilidade funcional, expressando apenas aspecto imperfectivo cursivo
iterativo. Construções com V1 ficar são as mais frequentes (86%), seguidas das com V1
continuar (11%) e, com mesma frequência, as com andar+_ndo e viver+_ndo (1,5%).
V1 (frequência type)
Funções
Imperfectivo cursivo
semelfactivo
Imperfectivo cursivo
iterativo
Imperfectivo cursivo
progressivo
Perfectivo pontual
ficar
(4)
continuar
(3)
andar
(2)
199/593=
33,4%
289/593=
48,7%
2/593= 0,5%
47/74=
64,8%
25/75=33,7%
2/12=
16%
10/12=
84%
12/12=
100%
-
-
-
-
103/593=
17,4%
2/74= 1,5%
-
viver
(1)
-
Total
249/691=
36%
335/691=
48,5%
4/691=
0,5%
103/691=
15%
TOTAL (tokens)
593/691=
74/691=
12/691=
12/691=
691
86%
11%
1,5%
1,5%
Tabela 2: Frequência de uso das perífrases V1+V-ndo (FERNANDES, 2010)
Por fim, no quadro 5, a seguir, apresentamos os resultados para a aplicação dos
critérios de auxiliaridade às perífrases em questão. Nesse estudo de caso, a aplicação dos
critérios às diferentes perífrases considera que se há atualização de um critério em alguma
ocorrência de uma dada perífrases analisada, então deve-se considerar que ele se aplica àquele
tipo de perífrase, independentemente da frequência com que o critério se aplica.
V1 + V2-ndo Andar Continuar Ficar Viver
Critérios
1. Inseparabilidade na perífrase
0
0
0
0
2. Detematização
0
0
0
1
3. Incidência de negação
0
0
0
1
4. Sujeito único
1
1
1
1
5. Irreversibilidade
1
1
1
1
6. Incidência de circunstante de tempo
0
0
0
1
7. não desdobramento em orações
0
0
0
1
8. Apassivação
1
1
1
1
9. Recursividade
0
0
0
0
10. Oposição a forma simples
1
1
1
1
Grau de gramaticalidade
4
4
4
8
Quadro 5: Multifuncionalidade e auxiliaridade em perífrases de V1 + V2-ndo (FERNANDES,
2010)
Os resultados do quadro 5 evidenciam que construções com V1 viver estariam mais
gramaticalizadas (grau 8) em relação às demais, que apresentam, todas, o mesmo grau médio
de gramaticalidade (grau 4).61 Vejamos, a seguir, a análise de ocorrências ilustrativas da
aplicação dos critérios, para uma melhor discussão sobre o resultado obtido no quadro 5.
Consideremos inicialmente a ocorrência em (02).
61
Grau baixo: 0-3 pontos; grau médio: 4-7 pontos; grau alto: 8-10 pontos.
100
(2)
eu andava ali direto... procuran(d)o aquelas abelhinha jataí (AC-063; RO: L. 1347)
Da análise de (02), podemos apreender que V1 atribui papel temático a seus argumentos e que
V1 ocorre separado de V2 pelo locativo ali. Por essa razão, há possibilidade de
desdobramento da oração em duas outras: uma principal e uma reduzida de gerúndio.
Os critérios “incidência de negação sobre a perífrase” e “incidência de circunstante de
tempo sobre a perífrase” podem ser averiguados por meio de testes, em que se altera a posição
da negação ou do advérbio temporal, para verificar se, a depender da posição, o circunstante
continua incidindo sobre a perífrase. Em (03) e (04), mostramos como funciona o teste.
(3)
do dia que eu casei até hoje eu continuo na minha casa e cuidan(d)o do meus filhos
(AC-110; NE: L. 81)
a. até hoje eu não continuo na minha casa e cuidan(d)o do meus filhos
b. até hoje eu continuo na minha casa e não cuidan(d)o do meus filhos
(4)
a gente vai:: compra sorvete e fica na praci::nha conversan::(d)o (AC-001; DE: L. 197)
a. a gente vai:: compra sorvete e não fica na praci::nha conversan::(d)o...
b. a gente vai:: compra sorvete e fica na praci::nha não conversan::(d)o...
É evidente que a razão da não atualização desses critérios nesses exemplos é a
formação ambígua das perífrases, e não a alteração de seu escopo, a depender da posição do
circunstante, já que em qualquer outro tipo de perífrase a atualização dos critérios é clara,
como mostrado em (05).
(5)
minha filha é muito alegre muito brincalhona vivia saindo com as amigas (AC-148; NR:
L. 60)
a. (não) vivia (não) saindo com as amigas...
b. (sempre) vivia (sempre) saindo com as amigas...
Lobato (1975) afirma que testes como esses são pouco confiáveis, já que resultam
construções por vezes estranhas ou agramaticais. Também o critério da apassivação é isento
de críticas, já que é impossível passivar verbos intransitivos, como é o caso dos quatro tipos
de V1 aqui tratados. Nesse sentido, todas as ocorrências atualizam esse critério. O critério
“sujeito único” se atualiza em todas as ocorrências coletadas, assim como o critério
“irreversibilidade” e “oposição a forma simples correspondente”. Os dados demonstram que,
assim como a base verbal determina os traços e o papel temático do sujeito, não há casos em
que V1 e V2 ocorram invertidos. No caso das “oposições”, qualquer construção pode ser
expressa por uma conjugação simples, e não por uma perífrase, como em (07).
(7)
eu nunca fiquei saben(d)o o que é aquilo lá (AC-015; DE: L. 487)
a. eu nunca soube o que é aquilo lá
As perífrases formadas por V1 viver diferenciam-se das demais, por apresentarem
apenas inserção de material não relevante para a modificação do estatuto de auxiliar das
construções, como pronomes. Ocorre, então, que há detematização de V1, incidência de
negação e de circunstante temporal sempre sobre a perífrase, e não há possibilidade de
desdobramento em duas orações, como demonstrado em (08).
(8)
meu vizinho vive me chaman(d)o pra ajudá(r) ele ... (AC-010; RO: L. 339)
101
No caso do critério da “recursividade”, não há ocorrência de V1 com mesma raiz em
forma gerundiva. De fato, com os tipos de V1 analisados, causa bastante estranheza uma
perífrase constituída de V1 e V2 de mesma raiz, como hipotetizamos nos exemplos abaixo.
(9)
(10)
(11)
(12)
* Gostaria de emagrecer, então ando andando na esteira.
* Continuo continuando comendo muito.
* Desde aquele dia fico ficando com dores nas costas.
* Vivo vivendo triste
Diante da oposição de apenas dois níveis de gramaticalização de auxiliares apurados,
uma alternativa para maior diferenciação dessas perífrases seria a inclusão gradativa de outros
critérios, além dos adotados, o que permitiria checar em que aspectos uma perífrase vai se
diferenciando de outra.
Confrontando os resultados do quadro 5 aos da tabela 2, os clines de gramaticalidade
seriam os dados na fig. 4, cuja análise permite observar uma aparente contradição na apuração
da gramaticalidade das perífrases analisadas, uma vez que os critérios de auxiliaridade não
permitem recompor os mesmos clines de gramaticalidade alcançados pela apuração da
frequência token/type. Enquanto, pelos critérios de auxiliaridade, a perífrase com V1 viver é a
mais gramaticalizada (grau 8), pela frequência token, ao lado de V1 andar, ela é a menos
frequente.
Critério de frequência type
viver+_ndo
andar+_ndo
continuar+_ndo
ficar+_ndo
___________________________________________________________________________
menos frequente
menos gramaticalizada
mais frequente
mais gramaticalizada
Critério de frequência token
andar/viver+_ndo
continuar+_ndo
ficar+_ndo
___________________________________________________________________________
menos frequente
menos gramaticalizada
mais frequente
mais gramaticalizada
Critérios de auxiliaridade
andar/continuar/ficar+_ndo
viver+_ndo
___________________________________________________________________________
atualização de menos critérios
menos gramaticalizada
atualização de mais critérios
mais gramaticalizada
Figura 4: Clines de gramaticalidade andar, continuar, ficar e viver+_ndo
O impasse gerado entre os dois critérios empregados parece apontar como
problemáticos os critérios de auxiliaridade adotados, em razão de que a baixa frequência
token (apenas 12, para viver) restringe a verificação de uma maior estratificação funcional
(apenas 1 type para viver), o que, por consequência, reduz a possibilidade de atualização de
um número maior de critérios de auxiliaridade, ao contrário do que se verifica para os casos
de ficar e continuar, cuja maior variabilidade funcional é reflexo das altas frequências tokens.
Para o estudo de caso em questão, uma formulação mais geral, então, que considera
também a baixa frequência token e type de V1 andar (12 e 2, respectivamente) é a de que
quanto maior a frequência de uma dada forma, maior a possibilidade de, numa escala de
gramaticalidade, ela representar a forma mais gramaticalizada, e quanto menor a frequência,
maior a possibilidade de, na escala de gramaticalidade, ela representar a forma menos
102
gramaticalizada, formulação que confirma a importância da frequência na gramaticalização
(BYBEE, 2003). Portanto, o cline mais seguro para afirmar a gramaticalização das perífrases
aspectuais é o estabelecido com base no critério de frequência, diferentemente do que se
apurou para a investigação da gramaticalização de ir+infinitivo.
Gramaticalização no domínio do tempo passado
Como mostramos, as categorias verbais, no português, abarcam diferentes domínios
funcionais que articulam valores de tempo, aspecto e modalidade. Estudos de orientação
variacionista e/ou sociofuncionalista têm mostrado que as categorias verbais do PB se
apresentam em camadas, tanto quanto à diversidade formal, como quanto à polissemia. Para
ilustrar a importância da confluência das abordagens de itens/construções e de
funções/domínios funcionais, recortamos, nesse outro estudo caso, o macrodomínio funcional
da expressão do tempo passado em português, circunscrito, no escopo desta análise, à amostra
relativa à cidade de Florianópolis do banco de dados do Projeto VARSUL.
O macrodomínio da expressão verbal do tempo passado refere-se aos recursos
linguísticos de base verbal para a expressão de situações que ocorreram em momento anterior
ao momento de fala. Os tempos verbais que expressam passado no português podem ser
definidos em função do arranjo temporal específico, como sugere Côroa (2005), que, baseada
em Reichenbach (1947), define-os em função da articulação do momento do evento (ME),
momento da fala (MF) e momento da referência (MR), como explicitado em (13) a (16).
(13) ME – MR – MF: o ME é anterior ao MR, que, por sua vez, é anterior ao MF, valor
temporal prototipicamente associado ao pretérito mais-que-perfeito;
(14) ME, MR – MF: o ME é simultâneo ao MR e ambos são anteriores ao MF, valor
temporal prototipicamente associado ao pretérito imperfeito;
(15) ME – MF, MR: o ME é anterior ao MF e este simultâneo ao MR, valor temporal
prototipicamente associado ao pretérito perfeito;
(16) MR – ME – MF: o MR é anterior ao MF, que é anterior ao ME, valor temporal
prototipicamente associado ao passado condicional.
Os arranjos temporais elencados acima têm em comum o fato de se referirem a
situações que ocorreram (ou poderiam ter ocorrido) no passado, ou seja, as formas
prototípicas associadas a cada um dos arranjos (microdomínios) podem ser consideradas
como equivalentes se levarmos em consideração a função semântico-discursiva ampla
(macrodomínio) de expressão do tempo passado; porém, essas variantes carregam consigo
matizes de significado muito mais salientes do que a expressão de tempo passado. Assim,
embora as formas prototípicas virtualmente possam ser consideradas variantes, os matizes de
significado mais salientes barram essa possibilidade, o que não impede, no entanto, que as
formas permeiem pelos diferentes microdomínios da expressão verbal do tempo passado no
português. Vejamos.
No domínio funcional da expressão do passando anterior (anterioridade a um ponto de
referência passado) ilustrado em (13), Coan (1997) identificou duas formas que podem
desempenhar essa função: a forma de pretérito mais-que-perfeito composto (18) e a forma de
pretérito perfeito simples (17).
(17) Aí eu peguei, telefonei pra Macarronada e descobri que aconteceu um acidente (FLP 03,
l. 867, Banco de dados VARSUL) (COAN, 1997, p. 53)
(18) Aí eu peguei, telefonei pra Macarronada e descobri que tinha acontecido um acidente.
(COAN, 1997, p. 53)
103
Dos 576 contextos de passado anterior encontrados na amostra de Florianópolis (type),
encontram-se apenas duas ocorrências da forma de pretérito mais-que-perfeito simples
(token), especificamente em contextos com valor de projeção futura em expressões
cristalizadas, como “tomara que eu esteja enganado!” (SC FLP 21, l.666), e apenas 141
ocorrências da forma de pretérito mais-que-perfeito composto. Canonicamente, costumamos
associar a forma de pretérito perfeito simples à expressão de passado anterior à fala, e não ao
valor de passado anterior a outra situação passada (a essa função, associamos as formas de
pretérito mais-que-perfeito). No domínio funcional da expressão de passado anterior, tanto em
termos de layering como diversidade formal, coexistem duas formas, a de pretérito perfeito
simples e a de pretérito mais-que-perfeito composto, embora Coan (1997) sugira que,
assumindo uma noção ampla para o domínio do passado anterior, a forma de pretérito
imperfeito também possa atuar, como em (19), em que a situação de “chegávamos em casa”
ocorre antes da situação “apanhávamos uma surra”, e poderia ser indicada pela forma de
pretérito mais-que-perfeito composto.
(19) Então chegávamos em casa, apanhávamos uma surra do pai... (FLP 18, L1123) (COAN,
1997, p. 17)
A forma de pretérito perfeito simples, por sua vez, pode ser enquadrada em termos de
layering como polissemia, já que, em uma mesma fatia temporal, a forma assume valores do
domínio funcional do passado anterior (passado anterior a uma situação anterior), do passado
simples (passado anterior ao momento de fala) (cf. COAN, 1997). Em suma, para expressar o
valor de passado anterior, em PB, a forma mais frequente é a forma de pretérito perfeito, mas
as formas de pretérito mais que perfeito composto e de pretérito imperfeito do indicativo
também atuam neste domínio funcional. O critério de produtividade de uso (frequência)
aponta para uma mudança na forma prototípica da correlação icônica um-para-um: não mais a
forma de pretérito mais que perfeito composto, mas a forma de pretérito perfeito.
Ainda no domínio das categorias verbais, o valor de passado imperfectivo (passado
concomitante a outra situação passada), arranjo temporal ilustrado em (14), no PB pode ser
expresso pelas formas de pretérito imperfeito do indicativo (20) e pela construção perifrástica
constituída por estar + gerúndio (21) (cf. FREITAG, 2007).
(20) Na época que eu mais precisei dele, que eu mais precisava de um apoio, foi quando a
minha mãe morreu. (FLP 03) (FREITAG, 2007, p. 20)
(21) Aí também foi na época que a gente voltou, a gente estava precisando economizar pra
começar nossa vida. (FLP 01) (FREITAG, 2007, p.20)
Foram identificados 882 contextos de passado imperfectivo (type) na amostra de
Florianópolis, dos quais 546 se referem à forma de pretérito imperfeito (token). Na
perspectiva de layering como diversidade formal, na expressão do passado imperfectivo, as
formas de pretérito imperfeito e forma perifrástica coexistem no mesmo domínio funcional.62
Na perspectiva de layering como polissemia, a forma de pretérito imperfeito assume outros
valores, que são coexistentes ao de passado imperfectivo, adentrando em outros domínios
funcionais, como é o caso do domínio do passado anterior, visto acima, e do passado
62
Embora ambas as formas coexistam no macrodomínio da expressão do passado em curso, a análise
empreendida aponta para a especialização das formas em subfunções específicas, relacionadas a matizes da
expressão do aspecto imperfectivo: a análise quantitativa mostra evidência para a polarização entre formas e
funções, encaminhando-se para a prototipicidade. Assim, a forma perifrástica está fortemente associada à
expressão do aspecto imperfectivo progressivo, e a forma de pretérito imperfeito, à expressão dos aspectos
imperfectivo iterativo e habitual (FREITAG, 2007).
104
condicional (cf. COSTA, 1997), prototipicamente associado à forma de futuro do pretérito,
em (22).
(22) Aí eu perdi ser miss do Pólo I, ganhava biquínis, sandálias, e depois davam um
cartãozinho, eu tinha crédito, qualquer loja, sabe? (Inf. 40 – Amostra Censo/ PEUL)
(COSTA, 2005, 940)
Na definição do microdomínio do passado condicional, em (16), o ME é anterior ao
MF, e a situação é vista como futuro a partir de uma perspectiva passada; como essa
possibilidade é contemplada a partir de um sistema de referência que se coloca antes da
situação, o MR é anterior ao ME. A forma de pretérito imperfeito permeia também este
domínio funcional.63
O entrelaçamento dos microdomínios funcionais do escopo da expressão verbal do
tempo passado e a sobreposição de formas que transitam por estes microdomínios são reflexos
dos efeitos de layering, tanto como diversidade formal (as diferentes formas que coexistem
em um dado domínio funcional, como o passado anterior, o passado condicional ou o passado
imperfectivo), como de polissemia (os diferentes valores que o pretérito imperfeito assume),
como ilustrado na fig. 5.
Pretérito mais que perfeito
Pretérito imperfeito
Futuro do pretérito
Pretérito
imperfeito
PASSADO ANTERIOR
PASSADO CONDICIONAL
Perífrase
de imperfeito
PASSADO
IMPERFECTIVO
Fig. 5: Interface entre as abordagens de itens/construções e de funções/domínios funcionais na
gramaticalização de passado verbais no PB
Na esquematização da fig. 5, podemos observar que a forma de pretérito imperfeito do
indicativo configura-se como um item/construção multifuncional, transitando por diferentes
matizes do macrodomínio da expressão verbal do tempo passado. A coexistência de camadas
no domínio funcional da expressão do tempo verbal passado em PB leva a uma situação de
quebra da correlação icônica ideal um-para-um, fazendo com que o sistema de codificação se
reacomode para voltar a instaurar o equilíbrio cognitivo. Neste processo, outras motivações
convergentes atuam, especialmente a marcação, princípio cognitivo-comunicativo (GIVÓN,
1984; 2001) que atua sobre os padrões de distribuições das formas verbais (tokens) relativos a
cada subfunção assumida (types).
A atuação do princípio da marcação impõe restrições de uso às formas, o que pode
levar aos direcionais de mudança. Formas que coexistem no mesmo domínio funcional são
analisadas/implementadas na gramática dos falantes como mais ou menos complexas,
63
A variação entre as formas de futuro do pretérito e pretérito imperfeito foi objeto de um estudo variacionista
na fala de Florianópolis do banco de dados do Projeto VARSUL (SILVA, 1998). No entanto, o microdomínio da
condicionalidade não foi controlado, não permitindo que se teçam considerações acerca da frequência.
105
resultando em distribuições diferenciadas: o fato de uma forma ser menos ou mais marcada
correlaciona-se à probabilidade maior ou menor de sua ocorrência em certos contextos, em
detrimento de outras formas que desempenham a mesma função. Diversos estudos vêm
constatando a existência de correlação entre o grau de marcação de formas de categorias
gramaticais variadas e o uso que se dá a elas nas situações de comunicação do dia-a-dia (cf.
GIVÓN, 2001; GÖRSKI & FREITAG, 2006; GÖRSKI, TAVARES & FREITAG, 2008).
Esse princípio costuma exercer ação regularizadora sobre fenômenos variáveis: variantes
menos marcadas tendem a ser favorecidas em contextos de menor complexidade, ao passo
que variantes mais marcadas tendem a predominar em contextos de maior complexidade.
Assim, tanto as situações de multifuncionalidade de itens/construções (polissemia)
como as situações de diversidade formal em um dado domínio funcional são resultados da
dinâmica do uso linguístico, sujeitas às pressões comunicativo-cognitivas reguladoras. Uma
abordagem que considere apenas um direcional de análise, seja da forma para a função, seja
da função para a forma, não consegue captar todos os matizes do processo.
Considerações finais
Neste artigo, considerados dois direcionais para o estudo da mudança linguística que
função e o
se implementa por meio de processos de gramaticalização, o direcional forma
função
forma, tentamos argumentar em favor da clareza necessária, aos estudiosos da
gramaticalização, na adoção desses direcionais. Por meio de diferentes estudos de casos de
gramaticalização em variedades diferentes do PB, mostramos que a conjugação desses
direcionais ao critério de frequência de uso proporciona resultados mais confiáveis na análise
de fenômenos de mudança.
Considerando-se os mesmos critérios aplicados ao estudo da gramaticalização de ir +
infinitivo e ao das perífrases aspectuais, como se explicaria a aparente divergência dos efeitos
desses critérios na obtenção dos clines de gramaticalidade em cada estudo de caso? A resposta
para essa questão parece-nos mesmo residir na diretiva que se assume num trabalho de
investigação. Para um estudo de gramaticalização de perífrases que assuma a diretiva função
formas (abordagem de domínio funcional), o critério frequência é o mais adequado para
aferir o grau de gramaticalidade das formas pertencentes àquele dado domínio funcional, caso
típico da atuação do princípio de estratificação de Hopper (1991). Na investigação das
perífrases aspectuais, os critérios de auxiliaridade não parecem necessários nem suficientes
para determinar seus graus de gramaticalidade, “já que um dos critérios – o da
inseparabilidade – pode determinar todos os outros” (FERNANDES, 2010, p. 62). Para
estudo de gramaticalização de perífrases que assuma a diretiva forma
funções (abordagem
da gramaticalização da forma, que passa a atuar em domínios funcionais diferenciados),
critérios de auxiliaridade mostram-se ferramentas mais confiáveis do que o critério
frequência. É o que se verifica na apuração da frequência das funções de ir+infinitivo, uma
única forma que integra diferentes domínios funcionais (Tempo, Aspecto,
Modo/Modalidade), caso típico da atuação do princípio de divergência, de Hopper (1991).
Sob tais considerações, a aparente contradição se desfaz, não havendo incoerência entre os
resultados alcançados na aferição do grau de gramaticalização de perífrases.
A análise da gramaticalização no domínio funcional da expressão verbal do tempo
passado em PB permitiu ver que a complementariedade das abordagens promove uma
descrição mais acurada e dinâmica do processo.
Respondendo à pergunta do título deste artigo, concluímos que no domínio das
categorias de TAM para verbo, no PB, faz-se necessário testar as duas possibilidades de
análise, que, cotejadas ao critério frequência de uso, garantem resultados mais confiáveis para
a descrição do fenômeno.
106
FROM FORM TO FUNCTION OR FROM FUNCTION TO FORM?
ABSTRACT: In this article, we address two directions for studies of language change whereby grammaticalization: from
form to function and from function to form. These theoretical and methodological options are associated to two principles of
grammaticalization by which studies in the interface variation and grammaticalization are feasible: layering principle, which
predicts that grammaticalized forms coexist in the same functional domain with old forms, and divergence principle, which
postulates that a form in grammaticalization can developed multiples functions, one of which covered more grammatical
status than its lexical counterpart (HOPPER, 1991, 1996). In the investigation of grammaticalization, it is essencial to
determine type and token frequency (BYBEE, 2003). Combining these different criteria, we reinterpreted, in this
paper, results of three case studies involving grammaticalization of tense, aspect and mode/modality in two
varieties of Brazilian Portuguese. In the form
function way, we present results of the study of
grammaticalization of ir (´go´)+infinitive (FONSECA, 2010); in the function
form way, we present results
from grammaticalization in functional domains of aspect (FERNANDES, 2010) and past time (FREITAG, 2007,
COAN, 1997). The results show that choosing one of the directives can determine adoption of criteria for safer
proposition of grammaticalization paths.
KEYWORDS: Grammaticalization. Variation. Form. Function. TAM.
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108
A origem latina dos advérbios em -mente: um processo de gramaticalização
Júlia Langer de CAMPOS64
RESUMO: O presente artigo propõe uma análise da construção adjetivo + mente (ex: profunda mente) em textos
da língua latina a fim de buscar a origem do sufixo -mente, formador de advérbios na maioria das línguas
românicas, e demonstrar a trajetória de mudança do substantivo mente, categoria lexical, para o sufixo -mente,
categoria gramatical, caracterizando este processo como mudança por gramaticalização. (Hopper e Traugott:
2003; Traugott e Dasher: 2005; Heine e Kuteva: 2007). Ou seja, um sintagma de formação relativamente livre,
sofre univerbação passando um de seus elementos formadores a assumir uma função gramatical e uma vez
gramaticalizado, pode assumir funções ainda mais gramaticais. No caso da construção estudada, o sintagma
adjetivo + substantivo mente, ambos no caso ablativo, feminino, singular e com função adverbial, tornam-se um
único vocábulo e mente para de uma categoria lexical para uma categoria gramatical (sufixo). Com a pesquisa,
conseguimos chegar a algumas evidências da gramaticalização do item mente, como: o seu contexto inicial de
uso, a extensão para novos contextos, o aumento da frequência e a regularização da ordenação adjetivo + mente.
PALAVRA-CHAVE: Advérbio; Mudança; Gramaticalização.
Introdução
Este trabalho propõe uma análise da construção qualitativa na língua latina, formada por
um adjetivo mais o substantivo mente, ambos no caso ablativo, feminino, singular (tranquila
mente). Mais especificamente este trabalho busca a origem do sufixo -mente, formador de advérbios
na maioria das línguas românicas, a fim de detectar o conjunto de processos que caracterizam o
desenvolvimento dessa construção como uma mudança por gramaticalização.
Este estudo se justifica pelo fato de algumas gramáticas históricas apontarem para esta
estrutura como originária na língua latina, argumentando que esse mecanismo de derivar
advérbios de adjetivos surgiu em substituição aos processos formadores de advérbios no latim
clássico. Nesta fase do latim, os advérbios derivavam de adjetivos por meio das desinências -e
e -o para os adjetivos de tema em -u/-o e também pelo sufixo -ter para os adjetivos de tema
em -e. Porém, este trabalho irá mostrar que a construção estudada, adjetivo + mente, já se
encontra em textos do latim clássico, com uma significação ainda literal do substantivo mente,
mas já com traços semânticos de valor qualitativo, ou seja, um valor de advérbio de modo. A
freqüência desta construção se elevará nos textos de latim medieval, período posterior à
língua clássica.
De acordo com a lingüística funcionalista, esta estrutura parece estar ligada a alguns
pressupostos da teoria da Gramaticalização (Hopper e Traugott: 2003; Traugott e Dasher:
2005; Heine e Kuteva: 2007). Ou seja, um sintagma de formação relativamente livre, sofre
univerbação passando a assumir uma função gramatical e uma vez gramaticalizado, assume
funções mais gramaticais. No caso da construção estudada, o sintagma adjetivo + substantivo
mente, ambos no caso ablativo, feminino, singular e com função adverbial, tornam-se um
único vocábulo e -mente assume função sufixal, ou seja, uma função gramatical.
Corpus
O corpus deste trabalho é dividido em duas partes, uma referente ao período clássico
da língua latina, que vai do século I a.C. ao século I d.C., e a outra referente ao período do
64
UFRJ. Faculdade de Letras – Departamento de Linguística e Filologia. Rio de Janeiro – RJ – Brasil. Cep:
21941- 917 – e-mail: [email protected]
109
latim medieval, que corresponde basicamente ao período da língua latina após a queda do
Império romano. Em ambos os períodos, o corpus é formado por textos de língua escrita.
A parte referente ao latim clássico é composta dos seguintes textos: De Bello Gallico:
Constans, 1926; As Catilinárias: CICÉRON. Discours. Tome X: Catilinaires. Texte établi par
H. Bornecque et traduit par E. Bailly. Paris: Les Belles Lettres, 2007; O livro de Catulo:
Carmina. São Paulo: EDUSP, 1996 ; As Bucólicas: VIRGILE. Bucoliques. Texte établi et
traduit par Eugène de Saint-Denis. Paris: Les Belles Lettres, 2008; Amor: OVIDE. Les
Amours. Texte ét. et traduit par H. Bornecque. Paris: Les Belles Lettres, 2009; A Breve
História de Roma (livros I, II e III): EUTROPE. Abrégé d'histoire romaine. Texte établi et
traduit par J. Hellegouarch. Paris: Les Belles Lettres, 1978. São textos de características
diferentes, sendo o primeiro um relato de guerra, no formato de um diário; o segundo, um
discurso; As Bucólicas e Carmina são textos poéticos e o último é um texto historiográfico.
São textos que refletem a realidade da língua clássica, pois são representativos deste período.
Referentes ao latim medieval foram utilizados os textos: Anticlaudianus, Historia
Hierosolymitanae Expeditionis, De amore et dilectione Dei et proximi et aliarum rerum et de
forma vitae, De rebus Gestis Aelfredi, Nouus Esopus, Dantes Alagherii Epistolae, Declaratio
Arbroathis, Disticha Catonis, Explicit Líber Quintus, Gesta Roberti Wiscardi, Gesta
Frederici Imperatoris, Disciplina Clericalis, Líber ad honorem Augusti Sive de rebus Siculis,
Richeri Historiarum, Vita Caroli, Manus fortis e Historia rerum in partibus transmarinis
gestarum. São textos de cunho basicamente religioso e historiográfico, de diversos autores,
alguns conhecidos e renomados, outros não. São textos disponíveis na biblioteca de latim
medieval. Lembrando que consideramos importante para esta pesquisa a quantidade de textos,
tendo em vista a dificuldade para encontrar dados e lidar com eles.
Considerando o número de palavras de cada fase, verifica-se um total de 85.432
palavras para o latim clássico, constando 19 ocorrências do substantivo mente, sendo que 11
dessas ocorrências se deram na locução adverbial estudada. Por outro lado, o latim medieval
totaliza 188.024 palavras com 46 ocorrências do substantivo mente, sendo que 40 se deram
dentro da locução adverbial estudada. É relevante dizer que em dois textos do latim clássico,
As Bucólicas e A Breve História de Roma, não foi encontrada nenhuma ocorrência, tanto do
substantivo mente, quanto deste na construção analisada. Estas informações são importantes
para esta pesquisa, visto que foi feita uma análise quantitativa, então quanto maior fosse o
número de textos, significaria mais dados para a pesquisa.
Em relação ao número de palavras em cada fase é importante porque, muitas vezes, os
textos de latim clássico são maiores que os textos da fase medieval e isso poderia afetar nos
resultados da pesquisa, ou seja, na quantidade de dados encontrados em cada fase. Então
decidimos contar o número de palavras de todos os textos de cada fase. A quantidade de
palavras da fase medieval foi superior à fase clássica, mas não consideramos isso algo
prejudicial aos resultados, pois a diferença em termos de dados de acordo com a construção
estudada, a fase medieval foi notoriamente superior à fase clássica desde o início da análise de
dados. O que corrobora essa informação é o fato de em dois textos do latim clássico não
encontrarmos um dado com o substantivo mente.
Objetivos e hipóteses
Esta pesquisa tem como objetivos:
a) Confirmar a origem dos advérbios em -mente do português. Motivados pelo o que
dizem as gramáticas históricas, de que o sufixo -mente surgiu no latim, decidimos confirmar
cientificamente a origem latina deste sufixo.
b) Observar os tipos de sujeito que se relacionam com o verbo modificado pela
construção. Para esta pesquisa é de grande importância sabermos quais tipos de sujeito se
110
relacionam à construção adj. + mente, pois partimos da hipótese de que inicialmente, o sujeito
tenderia a ser +humano, +individuado e +singular, comprovando o caráter ainda literal do
substantivo 2mente, como no exemplo:
“quam primum cernens ut laeta gaudia mente agnoscam, cum te reducem aetas
prospera sistet.” (Tradução) Porque eu, assim que te olhar, perceba alegremente o gáudio ao
te trazer de volta o tempo próspero. (Catulo 64). Este seria, portanto um exemplo prototípico
de sujeito com os traços +humano, +individuado e +singular.
c) Observar os tipos de adjetivos que modificam o substantivo mente nas construções
analisadas. Uma vez que os adjetivos fazem parte da construção analisada, devemos avaliar
quais tipos de adjetivos ela privilegia.
d) Analisar o grau de fixidez da construção através da observação da ordem dos seus
constituintes. A questão da ordenação é de grande importância nos estudos de
gramaticalização, principalmente neste caso em que se trata da trajetória de um substantivo
para um sufixo: tranqüila mente (adj. + mente) > tranqüilamente (adj. -mente), pois a medida
que o substantivo mente começa a se fixar logo após o adjetivo, verificamos uma das
características de um sufixo, logo, do processo de gramaticalização desta estrutura.
e) Observar o valor semântico da construção adverbial. Visto que inicialmente, o
sufixo -mente se tornou produtivo na formação de advérbios qualitativos, logo, queremos
verificar nesta pesquisa se o valor semântico desta construção adverbial também resultava em
um valor qualitativo ou em outros valores.
f) Observar os tipos de verbo que ocorrem na construção analisada. Uma vez que
estamos lidando com uma construção adverbial, devemos observar os tipos de verbo que
ocorrem nestes enunciados modificando a construção analisada.
A cada um desses objetivos estão associadas às hipóteses apresentadas abaixo:
a) A origem dos advérbios em -mente, que existem em quase todas as línguas
românicas, se encontra nas locuções adjetivo + mente, que começaram a sofrer o processo de
gramaticalização durante o latim medieval.
b) Os sujeitos relacionados à construção tenderiam, inicialmente, a ter os traços
+humano, +singular, + individuado, pois estaria compatível com o sentido original do
substantivo mente, uma vez que este também possui os traços +humano, +singular e
+individuado. Partimos da hipótese de que os sujeitos que se relacionam a esta construção
adverbial, apresentariam, a princípio, estes traços.
c) Os adjetivos avaliativos refletem uma visão mais subjetiva do falante, ou seja,
aquilo que depende da opinião individual de quem fala, o que também é compatível com o
sentido literal da palavra mente. Por isso acreditamos que a maioria dos adjetivos analisados
se enquadraria nesta classificação.
d) O substantivo mente tende a ser posposto ao adjetivo na maioria das construções,
visto que este se tornará um sufixo. A construção adjetivo + mente começa a se fixar nesta
posição a partir do latim medieval, em que o processo de gramaticalização começa a atuar
sobre estes elementos. A ordenação, neste caso, é um indício importante para o processo de
gramaticalização, pois uma vez que o substantivo mente se torna um item gramatical,
assumindo uma função sufixal, este precisa necessariamente ser posposto ao adjetivo que ele
modifica.
e) Espera-se que toda a construção resulte num valor semântico qualitativo, pois,
inicialmente, a formação de advérbios em -mente tornou-se produtiva para advérbios de valor
qualitativo. Hoje, com o resultado de algumas pesquisas recentes (Martelotta: 2006; Moraes
Pinto: 2008), sabemos que estes advérbios continuam se gramaticalizando, assumindo valores
não apenas modais, mas também aspectuais, oracionais, intensificadores e outros.
f) A maioria das construções com valor qualitativo se relaciona a verbos materiais,
pois estes dão conta do mundo sócio-cognitivo do falante.
111
Variáveis analisadas
Analisamos as seguintes variáveis neste trabalho:
Associadas ao sujeito
As variáveis associadas ao sujeito relacionam-se com os traços semânticos que ele
pode apresentar, sendo relevantes os traços: ±humano; ±individuado e ±singular, por motivos
citados anteriormente neste trabalho no item 1.2, objetivos e hipóteses. Chamamos de sujeito
+humano todo sujeito que pertença à espécie humana e –humano um sujeito que não seja um
substantivo relativo espécie humana; o traço +individuado está relacionado à idéia de
indivíduo, no sentido de ser específico, de distinguir-se num grupo, individualizar-se. Quando
não há no sujeito essas características, recebe o traço –individuado. Receberá o traço
+singular quando não estiver flexionado quanto ao número, ou seja, não estiver no plural, no
sentido de “mais de um”, caso contrário, receberá o traço –singular.
Exemplos:
(1)
+humano: Latim: “sede o diuinius ipsa sompniat archana rerum celique profunda mente
Plato, sensumque Dei perquirere templat.” (Anticlaudianus)
Tradução: mas Platão imagina as próprias coisas celestes com a mente mais profunda que ele
(Aristóteles), e tenta procurar o sentimento de Deus.
(2)
-humano: Latim: “Haec autem apostolicus mente voluntária et intenta ut accepit, in
omnibus se promisit mandatis parere sanctorum precibus.” (Historia Hierosolymitanae
Expeditionis)
Tradução: Assim, visto que o ato apostólico retomou estas coisas voluntária e atentamente, e
prometeu que estaria presente nos mandamentos de todos os santos.
(3)
+individuado: Latim: “terrarum motus, ogitum fulminis, iras occeani, uentorum mente
fideli conspicit et certa solers indagine claudit temporis excursus” (Anticlaudianus)
Tradução: Ele observa a movimentação das terras, o barulho do raio, a ira do oceano e a luta
dos ventos com a mente fiel.
(4)
-individuado: Latim: Procedunt portis Siculi, non star eferentes, Egressique foras
audaci mente repugnant” (Gesta Roberti Wiscardi)
Tradução: Os Siculos saem pelas portas, postos para fora e recriminam audaciosamente.
(5)
+singular: Latim: “Mente tibi laeta studuit parere poeta.” (Explicit Líber Quintus)
Tradução: O poeta aplicou-se em obedecer-te com a mente alegre.
(6)
-singular: Latim: ”Quam etiam reges sereníssima mente excipientes, papae et
episcoporum mandatis in nullo tunc refragati sunt” (Richeri Historiarum)
112
Tradução: Os reis que vieram depois se opuseram com a mente sereníssima aos pedidos dos
papas e dos bispos.
Associadas à posição do substantivo mente na construção
Foram consideradas as seguintes posições dos adjetivos e do substantivo mente a fim
de observar a ordenação dos elementos e grau de fixidez destes na construção. A ordenação
destes elementos é um fator importante nesta pesquisa, visto que este se tornará um sufixo
formador de advérbios. Dividimos este posicionamento entre estruturas simples e estrutura
composta. A estrutura simples que se caracteriza apenas pela presença do adjetivo e do
vocábulo mente, exemplificado abaixo nas letras a e b, enquanto que a composta apresenta
estruturas mais complexas do que a simples ocorrência do adjetivo e do substantivo mente,
podendo, inclusive, aparecer um elemento “x” entre o adjetivo e o substantivo. Consideramos
este elemento “x” qualquer classe de palavra que não seja a conjunção e, em latim et, visto
que esta conjunção é aceita no processo de formação de advérbios em -mente. Vejamos.
Exemplos:
a) mente + adjetivo:
(7) Latim “In celo mente beata viuat et in terris peregrinet corpore solo”.
Tradução: Depositado na terra, que viva no céu com a mente feliz e que só o corpo
peregrine nas terras
b) adjetivo + mente:
(8) Latim: “Hec autem Sanctissimi Patres et Predecessores vestri sollicita mente pensantes
ipsum Regnum et populum”
Tradução: Desse modo os Santíssimos padres e seus predecessores que examinam com a
mente solicita o próprio reino e o povo.
c) mente + X + adjetivo:
(9) Latim: “Mente tibi laeta studuit parere poeta.”
Tradução: O poeta aplicou-se em obedecer-te com a mente alegre.
d) adjetivo + X + mente:
(10) Latim: “Quale sid id, quod amas, celeri circumpisce mente”. (Historia Hierosolymitanae
Expeditions)
Tradução: Que seja assim, observa aquilo que tu amas com a mente pronta.
e) mente + adjetivo + adjetivo:
(11) Latim: “Haec autem apostolicus mente voluntaria et intenta ut accepit”. (Historia
Hierosolymitanae Expeditionis)
Tradução: Assim, visto que o ato apostólico retomou estas coisas com a mente voluntária e
atenta.
113
f) adjetivo + mente+ adjetivo:
(12) Latim: “et eum in caelo et in terra regnantem recta mente et fide credidossent” (Gesta
Francorum)
Tradução: se eles acreditassem que ele reina no céu e na terra com a mente reta e fiel.
Tipos de adjetivos
Consideramos relevante para a pesquisa observar os tipos de adjetivos avaliativos e
descritivos, a fim de avaliar o nível de subjetividade do falante. Os adjetivos avaliativos são
mais subjetivos, ou seja, dependem da opinião do falante, enquanto que os descritivos são
menos subjetivos pois descrevem as características dos substantivos a que se referem e por
isso não dependem da opinião de quem fala.
Exemplos:
a) Adjetivo avaliativo
(13) Latim: “Theseu, toto animo, tota pendebat perdita mente.” (Catulo 64)
Tradução: Teseu pensava em ti com a mente perdida, com o peito inteiro, a alma inteira.
b) Adjetivo descritivo
(14) Latim: “Cum ergo uterque exercitus dúbio esset statu, et de Victoria altrinsecus tota
mente quaereretur” (Richeri Historiarum)
Tradução: Algum exército que fosse não apenas perigoso e determinado, mas também que
tivesse buscado a vitória completamente.
Tipos de advérbios
Procuramos observar o valor semântico da construção adverbial estudada, podendo
resultar em valores como de modo, tempo, intensidade, lugar e outros. Porém, o mais
esperado seria o valor qualitativo, o que foi correspondido pelos dados da pesquisa. No
entanto, encontramos alguns dados cujo valor semântico é aspectual, ou seja, abarca ao
mesmo tempo traços qualitativos e traços temporais.
Exemplos:
a) Qualitativo
(15) Latim: “mora tarda mente cedat: simul ite, sequimini
Phrygiam ad domum Cybeles”
Tradução: Não tarde com a mente lenta, segui-me à frigia casa de Cibele. (Catulo63)
(16) Latim: “Expediunt dubia mente laboris iter”
114
Tradução: Eles desimpediram o caminho do trabalho com a mente arriscada . (Líber ad
honorem Augusti Sive de rebus Siculis)
b) Aspectual
(17) Latim: “haec mandata prius constanti mente tenentem
Thesea céu pulsae uentorum flâmine nubes
Aereum niuei montis liquere cacumen”
Tradução: Teseu, assim, disseminada a nuvem negra na mente, demitiu as ordens do peito
imêmore, às quais constantemente seguira. (Catulo 64)
(18) Latim: “Nam decem numero juvenes quibus constanti mente fixum erat omne
periculum subire”
Tradução: Com efeito, sustentar um número de dez jovens que constantemente tinha fincado
todo o perigo. (Richeri Historiarum)
Tipos de verbos
Procuramos observar os tipos de verbos a que compõem a construção. Nesse sentido,
utilizamos a classificação de verbos apresentada em Scheibman (2001). A autora, tomando
como base classificações propostas em Halliday (1994) e Dixon (1991), apresenta uma lista
de dez classes semânticas de verbos. Vejamos os tipos de verbos propostos por Scheibman
(2001), ilustrados com exemplos do corpus desta pesquisa:
a) Verbos de cognição- indicam atividade cognitiva (saber, pensar, lembrar, etc.).
(19) Latim: “sede o diuinius ipsa sompniat archana rerum celique profunda mente Plato”
Tradução: Platão imagina as mesmas arquiteturas do céu mais profundamente.
(Anticlaudianus)
b) Verbos de sentimento- indicam emoção e desejo (gostar, querer, amar, sentir, precisar,
etc.).
(20) Latim: “Diliges dominum deum tuum ex toto corde tuo, et ex totamente tua, et ex tota
anima tua”
Tradução: Ama teu Deus de todo teu coração, de toda sua mente e de toda sua alma. (De
amore et dilectione Dei et proximi et aliarum rerum et de forma vitae)
c) Verbos materiais- indicam ocorrência e ações concretas e abstratas (fazer, ir, ensinar,
trabalhar, usar, brincar, etc.)
(21) Latim: “campisque ducentos agricolas captos furibunda mente trucidat.”
Tradução: Trucida duzentos escravos agrícolas nos campos com a mente furiosa. (Gesta
Roberti Wiscardi)
115
d) Verbos de percepção- indicam sensações, atenção (olhar, ver, escutar, encontrar, notar,
etc.).
(22) Latim: “Terrarum motus, mugitumfulminis, iras occeani, uentorum mente fideli
conspicit”
Tradução: Observa a movimentação das terras, o barulho do raio, a ira do oceano, a luta dos
ventos com a mente fiel. (Anticlaudianus)
e) Verbos relacionais- indicam processo de ser (ser, tornar-se, parecer, etc.).
(23) Latim: “Si deus est animus, nobis ut carmina dicunt, hic tibi praecipue sit pura mente
colendus.”
Tradução: Se Deus é espírito, este deve ser cultuado primeiramente com a mente pura,
recitam poesias para nós. (Disticha Catonis)
f) Verbos de crença: eles expressam a crença do sujeito em relação a algo do mundo real.
(24) Latim: “eum in caelo et in terra regnantem recta mente et fide credidissent.”
Tradução: eles acreditassem reta e fielmente que ele reina no céu e na terra. (Gesta
Francorum)
Referencial teórico
Esta pesquisa tem como base alguns pressupostos da teoria da Gramaticalização
(Hopper e Traugott: 2003; Traugott e Dasher: 2005; Heine e Kuteva: 2007). Em linhas gerais,
esta teoria diz que um sintagma relativamente livre passa a assumir função gramatical dentro
de um determinado contexto e uma vez já gramatical, assume uma função ainda mais
gramatical. Para que se conceba melhor essa proposta, é necessária a compreensão do aspecto
não-estático da gramática, que está sempre se reestruturando. Levando em conta as diferentes
possibilidades de arranjos e criações na estrutura lingüística em diferentes eventos de fala,
pode-se concluir o caráter relativamente instável da gramática, o que permite uma constante
mudança nas línguas.
A chamada gramática centrada no uso (Barlow e Kemmer: 2000) acredita que o
discurso é organizado de acordo com intenções comunicativas dos usuários da língua, ou seja,
por fatores de ordem cognitiva e comunicativa. Devido a este fato, dizemos que a gramática é
feita no discurso, a depender das diferentes situações comunicativas. Segundo Givón (1979), a
sintaxe evoluiu do discurso e a linguagem humana se fez do modo pragmático para o
sintático, de maneira que as formas lingüísticas e sua estrutura sintática seriam um reflexo de
processos cognitivos e das intenções comunicativas que o falante organiza no momento da
interação discursiva. Quando um fenômeno lingüístico passa ter uma maior freqüência de uso,
ocorrendo de forma previsível e estável, podemos dizer que se regularizou como norma de
uma língua, ou seja, saiu do discurso e entrou para a gramática.
O processo de gramaticalização é um dentre outros processos de mudança lingüística,
que se associam a aspectos semântico-pragmáticos. Um determinado uso é estendido para
outros contextos numa trajetória unidirecional e regular. Esta trajetória pode se dar em dois
sentidos: de elementos lexicais para elementos gramaticais (ex: adjetivo mente > sufixo 116
mente), que é o caso da presente pesquisa, ou também entre elementos gramaticais para outros
mais gramaticais (ex: aí anafórico > aí conclusivo).
Esta pesquisa se enquadra na primeira forma, ou seja, um item lexical, substantivo,
migra para uma categoria gramatical, sufixo. O substantivo mente (ablativo, feminino,
singular) aumenta sua freqüência de uso num determinado contexto lingüístico, ocorrendo, na
maioria das vezes, logo após os adjetivos modificadores deste substantivo e indicando a noção
de modo, com isso seu uso torna-se regular e previsível, os itens lexicais sofrem univerbação
naquele contexto, resultando num mecanismo de formação de advérbios a partir de adjetivos
(processo gramatical). Sendo assim, podemos dizer que esta estrutura se gramaticalizou.
A mudança por gramaticalização implica alguns parâmetros (Heine e Kuteva: 2007).
O primeiro deles é o da extensão ou generalização de contextos. Isto acontece quando uma
construção linguística é usada em um contexto restrito e determinado, e tem seu uso estendido
a novos contextos. Isso acontece por fatores de ordem cognitiva e pela necessidade
comunicativa dos usuários de uma língua, que se utilizam de processos criativos para dar
conta dessas necessidades. Nesta pesquisa podemos observar a atuação deste parâmetro
quando pensamos na palavra mente como um substantivo e na restrição de seu uso em
contextos específicos e determinados, em que o falante refere-se a alguma atividade psíquica
e mental. Como sabemos, a classe dos adjetivos pode modificar o valor de um substantivo,
sendo assim, a construção analisada neste trabalho sempre terá um adjetivo modificando o
substantivo mente. Isto é o início, melhor dizendo, a origem da formação de advérbios em mente a partir de adjetivos.
Este uso inicial que, por sua vez, não desapareceu da nossa língua, começou a ser
estendido a novos contextos, em que o falante utiliza essa construção adjetivo + mente com
um valor qualitativo. A construção passa a aceitar não só sujeitos +humanos, +individuados e
+singulares, mas também sujeitos que, a princípio, não corresponderiam ao significado literal
do substantivo mente, ou seja, sujeitos –humanos, –individuados e –singulares.
Outro parâmetro proposto pela teoria da gramaticalização é o da dessemantização
(bleaching, redução semântica), é a perda de conteúdo semântico. De acordo com os objetivos
desta pesquisa, podemos dizer que há um esvaziamento semântico da palavra mente quando
esta passa a desenvolver função gramatical de afixo, ou seja, deixa de ter a significação
“intelecto, pensamento, entendimento, alma, espírito” para ser apenas um sufixo adverbial,
indicador de advérbio.
O parâmetro da decategorização refere-se à perda de propriedades características das
formas fonte, incluindo perda de status de forma independente, que é o caso de clitização e
afixação, por exemplo. O substantivo mente, quando este se torna um sufixo, ele perde o
status de forma independente, pois sua estrutura não se sustenta mais sozinha, sendo
necessário algum elemento para que o sufixo se apóie, neste caso dos advérbios em -mente,
este suporte sempre será um adjetivo. O último parâmetro proposto por esta teoria é o da
erosão ou redução fonética, que nada mais é que a perda de substância fonética. No caso dos
advérbios em -mente não há propriamente uma perda de substância fonética, o que ocorre é a
redução de dois vocábulos fonológicos para apenas um, acompanhado da uma perda de
tonicidade típica de vocábulo livre.
Estes são os fatores mais importantes dentro da teoria da Gramaticalização para dar
conta do fenômeno estudado neste trabalho.
Análise dos dados
Latim clássico
117
Vejamos agora as características da construção analisada no latim clássico, levando
em conta as variáveis analisadas.
As características do sujeito
Observamos as características do sujeito do verbo modificado pela construção
adverbial adjetivo + mente. A tabela abaixo apresenta esses resultados:
Traço ±Indiv
Traço ±Sing
+Ind
-ind
+sing
-sing
11
0
8
3
Total
11 Ocorrências
Tabela 1: Distribuição dos dados pelos diferentes tipos de sujeito do Latim clássico
Sujeito
Traço ±Hum
+Hum
-Hum
11
0
O que merece ser destacado nesta tabela, é o fato de, na fase clássica, só ocorrerem
sujeitos com os traços +humano e +individuado, associados aos verbos que são modificados
pela construção adjetivo + substantivo mente. Isso está de acordo com as hipóteses desta
pesquisa (item 1.2). Cabe também registrar que a maior parte dos dados apresenta o traço
+singular, e mesmo os três dados que apresentam o traço -singular, são todos +humanos e
+individuados.
Posição do vocábulo mente
Passemos agora a analisar a posição do vocábulo mente dentro da construção
observada, a começar pelo que estamos caracterizando aqui como estrutura simples, ou seja,
aquela que se caracteriza apenas pela presença do adjetivo e do vocábulo mente. A tabelas
abaixo apresenta os resultados:
Posição
mente + adjetivo
adjetivo + mente
9
Tabela 2: Distribuição dos dados pelas diferentes posições nas construções de estrutura simples
Podemos notar na tabela que em todas as ocorrências encontradas com estruturas
simples, a ordem dos elementos foi adjetivo seguido do vocábulo mente. Isso demonstra o alto
grau fixação dos elementos, condição básica para a gramaticalização que ocorrerá mais tarde
com a construção.
Vejamos agora o que ocorre com o que estamos chamando aqui de construções de
estrutura composta, ou seja, aquelas que apresentam estruturas mais complexas do que a
simples ocorrência do adjetivo e do substantivo mente. Eis a tabela referente a esses dados:
Posição
mente + adjetivo + adjetivo
1
adjetivo + mente + adjetivo
adjetivo + adjetivo + mente
mente + X + adjetivo
adjetivo + X + mente
1
Tabela 3: Distribuição dos dados pelas diferentes posições nas construções de estrutura composta
118
Podemos notar, na tabela acima, a ocorrência apenas de dois dados no que chamamos
de estrutura composta, comprovando, mais uma vez, maior fixidez do substantivo mente após
o adjetivo, visto que a produtividade apresentada na tabela 2 foi superior a da tabela 3.
Tipo de adjetivo
Outra variável observada em nossa análise foi o tipo de adjetivo que compõe a
construção. Vejamos a tabela abaixo:
Adjetivo
Avaliativo
9
Descritivo
2
Tabela 4: Distribuição dos dados pelos diferentes tipos de adjetivos
O que merece ser observado nesta tabela é a quantidade de adjetivos avaliativos em
relação aos descritivos, pois de acordo com as hipóteses apresentadas nesta pesquisa, os
adjetivos que se relacionam à construção analisada tenderiam a ser avaliativos em sua
maioria, correspondendo ao grau de subjetividade do substantivo mente, o qual o adjetivo está
modificando.
Tipos de advérbios
A variável tipo de advérbio diz respeito à função adverbial que a construção
desempenha na sentença em que ocorre. A tabela abaixo apresenta os resultados:
Advérbios
modo
10
aspectual
1
Tabela 5: Distribuição dos dados pelos diferentes tipos de advérbios
Como podemos ver, na tabela acima, o valor semântico da construção teve em 90%
dos dados um valor qualitativo, ou seja, o valor inicial mais produtivo dos advérbios em mente. Então, ainda na fase embrionária dos advérbios em -mente, a construção resultava em
valores modais, por isso o primeiro valor assumido na formação de advérbios em -mente, foi
o valor qualitativo. Somente em fases posteriores, com os mecanismos de extensão e
dessamntização, típico do processo de gramaticalização (Heine e Kuteva: 2007), a construção
desenvolveu outras funções que hoje caracterizam os usos dos advérbios em -mente. A tabela
também nos mostra um dado com valor aspectual, ou seja, um caso em que a construção
apresente um valor temporal e qualitativo ao mesmo tempo, como por exemplo constanti
mente> constantemente. Este valor é muito comum hoje tendo em vista a gramaticalização
destes advérbios.
Tipos de verbos
Verbos
Cognitivo
3
De crença
Material
7
De percepção
1
Tabela 6: Distribuição dos dados pelos diferentes tios de verbos
119
Esta tabela é interessante, pois há dois fatos que merecem ser comentados. O primeiro
deles é que antes de iniciar a presente pesquisa, pensávamos que encontraríamos na fase
clássica mais verbos cognitivos que materiais, pois de acordo com a classificação dos verbos
utilizada neste trabalho (Scheibman: 2001), os verbos de cognição estariam mais compatíveis
com o significado literal do substantivo mente. No entanto, sabemos que construções de valor
qualitativo tendem a se relacionar a verbos materiais, pois são verbos que dão conta do mundo
sócio-cognitivo do falante. E é por esse motivo que o número de verbos materiais superou o
número de verbos de cognição, pois 90% dos dados do latim clássico apresentaram valor
qualitativo.
Latim Medieval
Passemos agora a observar as características da construção analisada no latim
medieval, levando em conta as variáveis analisadas.
As características do sujeito
Assim como fizemos com o Latim Clássico, observamos as características do sujeito
do verbo modificado pela construção adverbial adjetivo + mente. A tabela abaixo apresenta
esses resultados:
Traço ±Indiv
Traço ±Sing
Sujeito Traço ±Hum
+Hum
-Hum
+Ind
-ind
+sing
-sing
34
2
30
6
22
14
Total
36 Ocorrências
Tabela 7: Distribuição dos dados pelos diferentes tipos de sujeito no Latim Medieval
Observando a tabela acima, vemos que dos 36 dados, 34 receberam o traço +humano e
2 receberam o traço -humano, diferentemente do que ocorreu no latim clássico, em que só
temos sujeitos +humanos. Acreditamos que o aparecimento de dois dados -humano, assim
como o aparecimento dos traços -individuado e -singular, seja um pequeno indício de
gramaticalização quando pensamos no parâmetro da extensão, ou seja, um uso é estendido
para novos contextos (item 3 desta pesquisa), pois no contexto clássico o uso do substantivo
mente se restringiu a contextos em que o sujeito fosse +humano, +individuado e +singular, em
sua maioria, o que está de acordo com o significado literal deste substantivo. Enquanto que no
período medieval vemos uma pequena mudança no uso deste substantivo no que desrespeita
aos sujeitos envolvidos na construção estudada, pois nesta fase, observando os dados, vemos
que houve uma extensão do uso desta construção para contextos em que permitem sujeitos humanos, -individuados e -singulares.
Posição do vocábulo mente
Vejamos agora a posição do vocábulo mente dentro da construção observada, a
começar pelo que estamos caracterizando aqui como estrutura simples. As tabelas abaixo
apresentam os resultados referentes a essa variável:
Posição
mente + adjetivo
7
adjetivo + mente
25
Tabela 8: Distribuição dos dados pelas diferentes posições nas construções de estrutura
simples no Latim Medieval
120
O que merece ser comentado em relação à tabela acima, é a predominância da posição
adjetivo + mente, como nós esperávamos ser em ambos os períodos analisados. É interessante
notar que no latim medieval a maioria dos dados se limitou à estrutura simples, sendo 25
casos dentro do esperado, ou seja, o substantivo mente imediatamente posposto ao adjetivo
modificador e 7 casos com os mesmos componentes na ordem inversa. Acreditamos que estes
7 casos nesta posição ocorreram no latim medieval enquanto que no clássico não encontramos
nenhum, pelo fato de possuirmos mais dados na fase medieval que na fase clássica, estando,
portanto, mais suscetível à alternâncias entre os elementos principais envolvidos na
construção, ou seja, um adjetivo e o substantivo mente.
Posição
mente + adjetivo + adjetivo
adjetivo + mente + adjetivo
adjetivo + adjetivo + mente
mente + X + adjetivo
adjetivo + X + mente
Tabela 9: Distribuição dos dados pelas diferentes
composta no Latim Medieval
1
1
1
1
posições nas construções de estrutura
Na tabela acima, podemos observar que apenas 4 dos 36 casos ocorreram no que
chamamos de estrutura composta, o que corrobora a fixidez dos elementos principais
envolvidos na estrutura, sendo muito superior a ordenação adjetivo + mente, como estava
previsto nas hipóteses desta pesquisa. Com isso, vemos a maior produtividade da tabela 8 em
relação à tabela 9.
Tipo de adjetivo
Vejamos os resultados apresentados em relação aos tipos de adjetivos envolvidos na
construção com base nos dados da fase medieval:
Adjetivo
Avaliativo
34
Descritivo
2
Tabela 10: Distribuição dos dados pelos diferentes tipos de adjetivos no Latim Medieval
Como já foi dito na análise dos dados no período clássico, da mesma forma temos
nestes dados o resultado esperado, que é a predominância de adjetivos avaliativos, como nos
mostra a tabela acima.
Tipos de advérbios
Advérbios
modo
34
aspectual
2
Tabela 11: Distribuição dos dados pelos diferentes tipos de advérbios no Latim Medieval
Em relação ao valor semântico da construção adverbial, houve da mesma forma que na
fase clássica a sobreposição do valor qualitativo aos outros valores possíveis. Na amostra
medieval encontramos dois casos com valor aspectual, enquanto que no latim clássico este
121
valor semântico já havia aparecido em um dos dados. É importante lembrar que os advérbios
com valor aspectual, não deixa de ter em algum grau um valor qualitativo, juntamente com o
temporal.
Tipos de verbos
Verbos
Cognitivo
1
De crença
1
Material
27
Relacional
2
De percepção
4
De sentimento
1
Tabela 12: Distribuição dos dados pelos diferentes tipos de verbos no Latim Medieval.
Como podemos ver nos resultados da tabela acima, a grande maioria dos verbos que
modificam a construção são verbos materiais; o que está de acordo com a nossa hipótese.
Vemos nesta amostra quatro verbos de percepção, que são verbos de atividade mais cognitiva,
o que também é esperado que se relacione a este tipo de construção.
Conclusão
De acordo com os dados coletados e analisados nesta pesquisa, podemos chegar a
algumas conclusões acerca da origem dos advérbios em -mente:
a) Perante a dificuldade de encontrar textos disponíveis, a pesquisa não obteve muito
sucesso em relação à quantidade de dados que se esperava. No entanto, conseguimos
desenvolver um trabalho com resultados interessantes no ponto de vista diacrônico referentes
a esta formação adverbial (adjetivo+ -mente). Verificamos que realmente esta construção já
existia na língua latina, não ainda com a produtividade alta, mas que seu uso foi se
intensificando com o passar do tempo. Afirmamos isso observando a quantidade de dados
encontrados na fase clássica, apenas 11, e 36 na fase medieval.
b) Com o aumento da freqüência desta construção e analisando as variáveis, chegamos
a conclusão de que a construção adverbial adjetivo + mente, começa a sofrer o processo de
gramaticalização a partir da fase medieval da língua latina, por motivos já ditos na análise dos
dados (item 4).
c) Ao final desta pesquisa não conseguimos traçar objetivamente a trajetória do
processo de gramaticalização mente > -mente, visto a dificuldade para lidar e encontrar textos.
Porém este é um desejo para pesquisas futuras.
THE LATIN ORIGIN OF ADVERBS IN -MENTE: A PROCESS OF GRAMMATICALIZATION
ABSTRACT: This article proposes an analysis of the junction adjective + mente (eg,profunda mente) in the Latin
language texts in order to find out the origin of the suffix-mente, which is responsible for creating adverbs in the
most of Romance languages, and demonstrate the changes trajectory of the noun mente, lexical category, into
the the suffix-mente, grammatical category, characterizing this process as a change in grammaticalization.
(Hopper and Traugott, 2003, Traugott and Dasher, 2005; Heine and Kuteva, 2007). In other words, it´s a
relative free combination of words turning into an univerbazation, that makes one of its former elements to
assume a grammatical function and once it´s gramaticalizated, can take much more grammatical functions. In
this construction research, the phrase adjective + mente, both in the ablative case, feminine, singular and
adverbial function, become a single word and mente turns to a lexical category into a grammatical category
122
(suffix). Therefore, we deduce some evidence from mente grammaticalization item, such as: its initial usage
context, its extension to new contexts, the frequency increase, and the regulation of the order adjective + mente.
KEYWORDS: Adverbs; Ghanging; Grammaticalization.
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Cambridge: Cambridge University Press, 2005.
TROUGOTT, Elizabeth C. e BRINTON, Laurel J. Lexicalization and language change.
Cambrige: Cambridge University Press, 2005.
123
Revisitando a liaison do francês pela via da análise da frequência de uso
Ricardo Araujo Ferreira SOARES65
Mônica Maria Rio NOBRE66
RESUMO: Nosso trabalho volta-se para o (re-)exame de fenômenos de fala conectada em francês, entre os quais
inclui-se aquele conhecido como liaison. Tal fenômeno, conhecido como truncamento, ou, de modo mais
genérico, como sândi externo, requer, para sua implementação, informação de mais de um componente da
gramática. Para que se possa ter uma melhor compreensão da complexidade do fenômeno da liaison do francês,
procuramos, além de fazer uma breve revisão de textos de base gerativa, enfocar a abordagem não-gerativista
específica preconizada por Joan Bybee (2001). Segundo a autora, os papéis da morfologia, sintaxe e léxico são
fundamentais no tocante ao fenômeno da liaison, contudo, cada uma dessas contribuições tem gerado
controvérsias ao longo da literatura linguística. Assim é que realizamos uma revisão no tratamento dado a esse
fenômeno considerando textos fundadores tais como: Schane (1967), Selkirk (1972), Rotenberg (1978) e Kaisse
(1985), além de tecermos no presente artigo algumas considerações críticas sobre Bybee (2001) comparando os
resultados da autora com os obtidos em Soares (2005, 2010).
PALAVRAS-CHAVE: Interface fonologia/sintaxe; Liaison; Sândi externo; Fala conectada.
Introdução
O presente trabalho propõe um re-(exame) de “Constructions as processing units: The
rise and fall of French Liaison”, de Joan Bybee (2001). Nesse artigo, a autora faz
considerações sobre o fenômeno da liaison da língua francesa, também conhecido, de forma
mais genérica, como sândi externo ou, mais modernamente, como fala conectada.
Em francês, os ajustes feitos entre uma palavra e outra são conhecidos como elision e
liaison, os quais podem ser expressos, de modo informal, da seguinte maneira: o primeiro é
definido pela supressão ou queda de vogal final de palavra antes de outra que inicie por vogal
(ex: le ami - [lami] ‘o amigo’), e o último é a “ligação” de uma palavra terminada por
consoante com outra iniciada por vogal, sendo a consoante final da primeira palavra, muda
(ex: les amis - [lezami] ‘os amigos’).
Numa ótica tradicional, Grevisse & Goose (1995:23-24) também fornecem definição
dos fenômenos, a saber: “... a liaison é o fato de que uma consoante final, muda em uma
palavra isolada, articula-se com um sintagma quando a palavra seguinte inicia por vogal”.
Sobre a elision, os autores a definem como “... o desaparecimento de uma vogal final diante
de outra palavra iniciada também por vogal.”
Além da apreciação do artigo de Bybee (2001) e de considerações críticas a respeito
do que tem a dizer a autora a sobre o fenômeno em causa, será feita, também, uma breve
explanação de textos referentes ao fenômeno em questão – considerados pela literatura
linguística como fundadores -, para um melhor debate entre os diversos pontos de vista
presentes defendidos por todos esses autores.
Algumas palavras sobre textos fundadores
Schane (1967) trouxe a primeira grande contribuição: não só tratou os fenômenos da
liaison e elision de forma unificada – truncamento –, como também confirmou, ainda que
timidamente, o papel que tem a sintaxe para sua implementação. Tal visão reconhece que a
representação subjacente de palavras que podem vir a se submeter à liaison (isto é, palavras
65
66
UFRJ, Depto. de Linguística, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 21941-917 [email protected]
UFRJ, Depto. de Letras Vernáculas, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 21941-917 [email protected]
124
que terminam por consoante) deve incluir a consoante final, e que esta consoante não é
pronunciada quando não se opera o fenômeno da liaison. Deste modo, Schane assume que
tanto a elision para as vogais como a ausência de liaison para as consoantes podem ser
consideradas um mesmo processo – apagamento de um segmento em posição final de palavra
–, sendo que uma vogal só será apagada antes de outra palavra também iniciada por vogal
(elision) e uma consoante final será igualmente apagada antes de palavra iniciada por
consoante (não-liaison). Assim, a elision e a ausência de liaison são – nos termos de Schane
(1967) – denominadas como processos de truncamento em língua francesa.
Em francês, uma palavra pode ser também finalizada por uma consoante líquida ou
'glide'. Schane (1967) considera que as consoantes líquidas são um tipo de consoante e que os
glides são subclasses de vogais. Contudo, as líquidas em final de palavra não se comportam
como consoantes, da mesma forma que glides, em final de palavra, não se comportam como
vogais, razão pela qual o autor trata líquidas e glides separadamente.
Tendo-se uma palavra que termine por consoante, vogal, líquida ou glide contígua a
outra que tenha quaisquer destas quatro classes de sons, obtêm-se dezesseis possibilidades
exemplificadas a seguir em (1), através dos itens lexicais camarade 'camarada', ami 'amigo',
rabbin 'rabino', oiseau 'pássaro' – precedidos, cada um deles, dos adjetivos petit 'pequeno',
admirable 'admirável', cher 'querido' e pareil 'parecido':
Quadro 1
Consoante
Vogal
Líquida
Glide
petit ami
peti(t) rabbin
petit oiseau
Consoante peti(t) camarade
admirable camarade
admirable ami
admirable rabbin
admirabl(e) oiseau
Vogal
cher camarade
cher ami
cher rabbin
cher oiseau
Líquida
pareil camarade
pareil ami
pareil rabbin
pareil oiseau
Glide
Nos termos de Schane, estão indicados, entre parênteses, os segmentos que não têm realização fonética.
A partir do quadro acima, podem-se formular as seguintes generalizações descritivas:
Em posição final de palavra:
i) consoantes sofrem truncamento antes de consoantes e líquidas
ii) vogais são truncadas antes de vogais e glides
iii) líquidas e glides não sofrem truncamento
Em termos do sistema de traços distintivos tal como proposto por Chomsky & Halle
(1968), as quatro classes de segmentos acima referidos podem se diferenciar umas das outras
pela utilização de apenas dois traços, a saber: [consonantal] e [vocálico], atribuindo-se, para
cada traço, os valores positivo ou negativo, como se vê no Quadro 2:
Quadro 2
Consoante
+ cons
- voc
Líquida
+ cons
+ voc
Vogal
- cons
+ voc
Glide
- cons
- voc
Desta forma, pode-se chegar a um refinamento do que é generalização descritiva.
Assim:
i) consoantes sofrem truncamento antes de segmentos [+cons]
ii) vogais sofrem truncamento antes de segmentos [-cons]
iii) líquidas e glides não sofrem truncamento, ou ainda:
125
SEGMENTOS
iv) [+cons; -voc] sofrem truncamento antes de segmentos [+cons]
v) [-cons; +voc] sofrem truncamento antes de segmentos [-cons]
Por convenção, α pode possuir valor positivo ou negativo, sendo que -α possuirá
necessariamente valor contrário àquele assumido por α. Com isso, Schane chega
discursivamente à regra geral do truncamento entre palavras 1(a), que pode ser representada
em termos formais em 1(b):
(1) a.
Em posição final de palavra:
Segmentos [α cons,- α voc] sofrem truncamento antes de segmentos [α cons].
b.
α cons
-α voc
º
# [α cons]
A utilização da notação a para a língua francesa permite que se separe a classe das
vogais e das consoantes (que podem sofrer truncamento) da classe dos glides e líquidas, que
não se submetem a truncamento.
Para Schane (1967), a liaison não ocorre entre duas palavras contíguas quaisquer, uma
vez que há configurações sintáticas em jogo. Um bom exemplo disto é a ocorrência do
fenômeno entre adjetivo e o nome seguinte em contraposição à sua não ocorrência entre um
nome e um adjetivo seguinte, como se vê em (2):
(2)
a. 'un savant Anglais’ (adj) (nome)
'um Inglês sabichão'
b. 'un savant anglais'
(nome) (adj)
'um sábio inglês'
-
[A‡savA‡tA‡glE]
[A‡savA‡A‡glE]
-
HÁ LIAISON
-
NÃO HÁ LIAISON
Considerando-se as duas regras de apagamento até aqui enunciadas (a regra de
truncamento entre palavras e o apagamento de consoante em final de frase), Schane (1967)
levanta a seguinte hipótese: as regras de truncamento não preveem o apagamento do segmento
[t] de 'savant' em (2b) acima. Para este segmento ser apagado, seria necessária a presença de
um segmento contíguo do tipo consoante ou líquida, fato que não ocorre no exemplo em
questão, pois 'anglais' é palavra iniciada por vogal. Isto significa dizer que o apagamento ou
não de tal segmento não depende do ambiente fonológico.
Alguns aspectos relativos à posição de Schane (1967) são fudamentais. Para ele, não
há distinção entre os fenômenos da liaison e da elision, sendo ambos tratados como
truncamento – o que constitui, aparentemente, um avanço, já que os dois fenômenos são
unificados como um único processo. São importantes, para a ocorrência do truncamento, tanto
a fonologia, quanto os aspectos sintáticos ainda que estes últimos não tenham sido plenamente
explorados por esse autor.
Selkirk (1972), avançando bastante em relação à visão de Schane, reiterou que não
apenas aspectos prosódicos e fonológicos estariam envolvidos na liaison.
126
De acordo com Selkirk (1972), há uma tendência, em língua francesa, de se apagar
consoantes finais de palavras, a menos que se encontrem estas em contexto de liaison, a qual
ocorrerá se a palavra seguinte for iniciada por vogal e se as palavras envolvidas apresentaremse em determinados contextos sintáticos. Para exemplificar o contexto de liaison, a autora
fornece o seguinte exemplo:
(3)
Lorenzo est° un petit 67
° enfant
[EtA‡p´titA‡fœ‡]
'Lorenzo é uma criança'
Segundo Selkirk, as análises tradicionais relativas ao fenômeno têm dividido os
contextos sintáticos em três categorias, a saber: a liaison pode ser obrigatória, opcional, ou
proibida, categorias essas que não são aproveitadas pela autora. Eis o que diz Selkirk (1972) a
respeito de sua classificação:
Abordagens tradicionais têm dividido os contextos sintáticos de liaison em três
categorias, dependendo de ser a liaison obrigatória, opcional ou proibida. Tais
distinções não serão utilizadas nesse estudo. (...) Ao invés de utilizar esses termos,
introduzirei os termos ‘básico’ e ‘estilístico’ para descrever o fenômeno. Os
contextos de liaison são ‘básicos’ quando aparecem em qualquer estilo de fala, e
‘estilísticos’ se seu aparecimento é determinado por fatores estilísticos. (SELKIRK,
1972, p. 188)
Seguindo Fouché (1959), seu estudo encontra-se dividido em “estilos de discurso”: a
conversação corrente (conversation familière), a conversação cuidada (conversation soignée)
e finalmente o estilo culto (lecture ou discours), denominados por Selkirk como estilos I, II e
III, respectivamente. Ressalte-se ainda que, à medida em que o estilo se torna mais culto,
maior a probabilidade de existência de ambiente para que ocorra a liaison.
A teoria defendida em Selkirk (1972) é a de que o fenômeno fonológico característico
da liaison ocorre quando apenas uma fronteira de palavra (#) separa uma palavra de outra.
Mais especificamente, as palavras P e Q estão em contexto de liaison quando houver a
seguinte estrutura: ...P] [# Q... Selkirk (1972) baseia sua proposta para o fenômeno da liaison
em língua francesa na Teoria de Fronteiras desenvolvida por Chomsky & Halle (1968).
Segundo essa teoria, a sintaxe produz sequências de nódulos terminais constituídos de
segmentos e pelas junturas (fronteiras) que separam esses segmentos.
Aplicando a Teoria de Fronteiras a uma sequência determinante–nome, teríamos um
contexto básico de liaison - nos termos de Selkirk (1972) -, uma vez que o artigo não
possui fronteira própria, como se vê no esquema: [# [art] [# [nome] # ]. Desta forma,
então, sempre serão pronunciadas consoantes finais de estruturas como em (4):
(4)
a. 'son° ennemi' [sonenemi] (seu inimigo)
b. 'cet a° spect' [setaspE]
(este aspecto)
c. 'les° atrocités' [lezatRosite] (as atrocidades)
Ainda, Selkirk ressalta o fato que, em francês, ocorrem, sobretudo no estilo culto
(estilo III), regras de reajustamento, de forma a converter sequências como P # ] [ # Q em
sequências do tipo P ] [ # Q, fato que não aconteceria nos demais estilos.
No estilo corrente (estilo I), então, estariam os contextos "básicos" de liaison, isto é, o
fenômeno dar-se-ia entre itens lexicais e itens não-lexicais (por exemplo, preposições,
67
O símbolo ° indica, neste trabalho, que houve liaison.
127
determinantes e clíticos). Na conversação cuidada (estilo II), ocorrem novas possibilidades de
contextos para haver liaison, como, por exemplo, especificadores de verbos e sintagmas
adjetivos expandidos, de forma que categorias lexicais que precedem cabeças de sintagmas
podem reter sua consoante final. Por fim, no estilo culto (estilo III), nomes, verbos e
adjetivos e elementos que os complementam estão em contexto de liaison. Cada um destes
estilos estaria sujeito a regras de reajustamento, de maneira a haver apenas uma fronteira de
palavra nos três casos em questão.68
Em Selkirk (1972) é visível o recurso a regras de reajustamento, quer para fortalecer
fronteiras e impedir a liaison, quer para enfraquecer fronteiras e, assim, representar
formalmente os contextos favorecedores da liaison. Se, por um lado, há utilização de regras
de reajustamento como um recurso formal - válido, na época - para que a fonologia pudesse
operar a partir de um output sintático, por outro lado, vê-se em Selkirk (1972) uma exploração
muito maior do que aquela encontrada em Schane (1967). Assim, Selkirk já registra a
importância dos itens não-lexicais (categorias funcionais na terminologia mais atual) para os
contextos básicos de liaison.
Rotenberg (1978) atribuiu igualmente importância à configuração sintática, tendo
traduzido os contextos de liaison levantados por Selkirk (1972) - com quem, aliás, afirmou
concordar - em termos de c-comando imediato.
Para um mesmo contexto, então, Rotenberg (1978) afirma poder ser a liaison tanto
obrigatória quanto opcional, ou mesmo não ocorrer. Segundo Rotenberg (1978), se a liaison
é permitida em um contexto sintático, haverá, então, a obrigatoriedade da ocorrência deste
fenômeno no 'estilo culto', ao mesmo tempo em que pode não ocorrer no mesmo contexto, em
conversação corrente. Daí, a conclusão de que o fenômeno em questão terá maior
opcionalidade quando se trata do estilo corrente, sendo obrigatório na linguagem culta. Isto
ocorreria porque, entre outros fatores, o falante está consciente de uma pressão social para que
realize liaison em contextos referentes ao uso culto da língua francesa, havendo, segundo
Rotenberg, uma certa absorção por parte de instituições normativas de ideias relativas à
“liaison correta” em estilos formais. Ao falante de francês “educado”, por exemplo, é
explicitamente ensinado que, para ler e recitar poesia, a liaison é obrigatória antes de um
adjetivo pós-nominal, como se vê em 'des° idées °absurdes' [dezidezabYRd´] ‘ ideias absurdas”.
Ainda que exista a tendência à maior ocorrência de liaison nos estilos mais formais,
não existe, segundo Rotenberg (1978), uma norma para a ocorrência deste fenômeno pelo fato
de não haver regras produtivas. O que se verifica é, simplesmente, uma tendência, por parte
do falante, a realizar o fenômeno na medida em que é maior a situação de formalidade
linguística. Isto posto, o que dizer, então, da ocorrência do fenômeno em situações menos
formais? Se existe artificialidade em relação a tais regras na norma culta, então ela ocorrerá
em proporções ainda maiores na linguagem corrente, que é, em última análise, o lugar em que
deve ocorrer por excelência o fenômeno linguístico.
Para chegar à melhor formalização do fenômeno, Rotenberg (1978) recorre a algumas
definições, tais como a de Selkirk (1972:208): "o fenômeno fonológico característico da
liaison opera quando justo uma fronteira de palavra, #, separa uma palavra da seguinte."
Assim como em Selkirk (1972), nota-se também em Rotenberg (1978) o recurso a
regras de reajustamento, uma vez que a liaison só será possível se houver apenas uma
fronteira de palavra separando dois itens (lexicais ou não-lexicais) que poderão assim entrar
em liaison. Também Rotenberg (1978) atribui importância à configuração sintática, mas com
um passo à frente: traduz em termos de c-comando imediato os contextos básicos para liaison
identificados por Selkirk e por ela tratados pela via de regras de reajustamento
(introdução/eliminação de fronteiras).
68
Os exemplos de cada um dos contextos citados estão tanto em Selkirk (1972) quanto em XXX (2005, 2010)
128
Ainda, dando forma explicitamente ao que é fonético/fonológico e ao que é sintático,
Rotenberg (1978) postula dois níveis para a ocorrência de liaison, preocupando-se com o tipo de
condicionamento que há nas regras referentes ao fenômeno: condicionamento fonético ou
condicionamento sensível à configuração sintática. À primeira ele chama de regra dependente de
adjacência prosódica, e à segunda, de regra sensível à configuração sintática. A formulação do que
cabe à prosódia e do que compete à sintaxe constitui, para a época, um rumo promissor.
Por fim, para dar maior peso a essa visão em prol da relevância da configuração
sintática, temos Kaisse (1985) que, além de ter adotado a condição de ramificação à direita,
traduziu também, em seus próprios termos, os ambientes propícios ou não para a ocorrência
da liaison (complemento-núcleo e núcleo-complemento).69
Primeiramente, convém mencionar que o trabalho de Kaisse já se insere num modelo
de gramática gerativa mais moderno, proposto nos anos 80.
Em relação ao trabalho de Selkirk (1972), Kaisse (1985) reconhece que a teoria de
fronteiras, defendida pela primeira como condição básica para que o fenômeno da liaison
ocorra, não corresponde à realidade no tocante ao fenômeno da liaison.
Kaisse (1985) aproveita parte da proposta de Rotenberg (1978), e avança no que diz
respeito à proposta desse autor. Em primeiro lugar, é importante ressaltar o papel que tem,
para Kaisse, a simetria relativa às relações núcleo-complemento e complemento-núcleo. A
proposta de Kaisse constitui um avanço na medida em que propõe uma parametrização para o
fenômeno de sândi externo nas línguas naturais partindo do comportamento interlinguístico
de dois parâmetros importantes para a realização desse fenômeno: c-comando e condição de
margem. No fenômeno da liaison, por exemplo, a relação de c-comando estabelece que duas
palavras a e b estão em relação de c-comando se b c-comanda a, sendo que a condição de
margem completa essa relação exigindo que b esteja na margem direita. Vale ressaltar que
outro avanço de Kaisse (1985) é o de fixar a noção de margem de constituinte como
parâmetro combinável a c-comando - o que amplia as possibilidades de se lidar formalmente
com diferentes fenômenos de fala conectada em várias línguas naturais.
Algumas palavras de Bybee (2001)
Em seu texto intitulado “Constructions as processing units: the rise and fall of French
liaison” (2001), Joan Bybee utiliza a liaison do francês para ilustrar o fato de que a construção
ou a frequência de determinada estrutura condiciona o desenvolvimento de alternâncias entre
variantes da mesma palavra, e que a frequência também faz com que tais variantes sejam
resistentes à regularização. Bybee até prevê, no caso da liaison do francês, que o fenômeno
seja sensível ao componente sintático: a informação contida no limite das palavras seria
insuficiente, e as restrições de natureza sintática seriam relevantes para as regras de sândi
externo. A autora também admite, ainda que com ressalvas, uma argumentação pela via da
fonologia - segundo tal hipótese, o fenômeno estaria também ligado a aspectos
suprassegmentais, incluindo-se aí o fato de constituírem a pausa e/ou a velocidade da fala70
um aspecto relevante para a realização dos fenômenos de liaison.
De acordo com Bybee (2001), então, liaison “é o nome para a emergência de uma
consoante de final de palavra antes de uma vogal que inicie palavra seguinte em palavras que,
em outros contextos, terminam por vogal.”71 . Assim sendo, a terceira pessoa do singular do
verbo cópula est ‘é’ é pronunciada [Et] no exemplo (5) e [E] no exemplo (6), como se vê a seguir:
69
Cf. Kaisse (1985)
Nesse ponto, Bybee (2001) mostra-se claramente de acordo com a proposta de Selkirk (1972), cujo resumo
encontra-se em seção anterior.
71
Cf. 2001:167
70
129
(5)
a. le climat est °également très différent72
[EtegalmA‡]
‘O clima é igualmente muito diferente’
b. c’est ° encore un refuge de notables
[sEtA)kOR]
‘É ainda um refúgio de notáveis’
(6)
a. c’est le meurtre
‘É o assassinato’
b. le Conseil Regional qui est donc son assemblée délibérante
‘O conselho Regional que é a sua assembléia deliberativa’
Bybee (2001) indica-nos que a condição fonológica para o aparecimento de liaison é
que haja, “após palavra terminada por consoante, outra iniciada por vogal, mas isto apenas
sob certas condições sintáticas”. (Cf. 2001: 168). É nítido, então, o peso que a sintaxe possui
para a implementação do fenômeno. A própria autora fornece um exemplo: o morfema
indicador de plural do SN pode variar diante de um adjetivo iniciado por vogal, ao passo que
em (7), a presença de [z] no final do mesmo SN não é possível, uma vez que tal construção
envolve seu verbo.
(7)
le[z] enfants ([z])73 intelligents
[lezA‡fœ‡zœ‡teliZA‡]
le[z] enfants arrivent
[lezA‡fœ‡aRiv´]
‘crianças inteligentes’
‘as crianças chegam’
Ainda que admita que o fenômeno focalizado seja sensível tanto ao componente
sintático quanto ao componente fonológico, Bybee (2001) argumenta, principalmente, que os
contextos morfossintáticos e lexicais nos quais a liaison ocorria com maior frequência de
forma categórica foram armazenados pela memória do falante. Com a perda do fenômeno, ao
longo do tempo, o que vemos é, na realidade, a manifestação do fenômeno em contextos em
que ocorriam com maior frequência.
Para provar sua tese, a autora recorre ao histórico do apagamento das consoantes em
posição final de palavra, o que, para Bybee, “é um fenômeno foneticamente condicionado”.
(Cf. 2001:168). O resultado desta mudança fonética foi que muitas palavras, nomes e
adjetivos perderam sua consoante final completamente, como por exemplo, bois ‘madeira’,
goût ‘gosto’ ou tabac ‘tabaco’. Tais palavras, no entanto, se sucedidas por outra iniciada por
vogal, deverão fazer liaison. A seguir, contextos para a ocorrência do fenômeno segundo
Bybee (2001). Em (8) e 9) a liaison é considerada obrigatória.
(8)
(9)
72
73
determinantes
a. vos° enfants
b. les° autres
[vozA‡fœ‡] ‘seus filhos’
[lezotR´] ‘os outros’
pronomes clíticos
a. nous° avons
[nuzavo‡] ‘nós temos’
b. ils° ont
[ilzo‡]
‘eles têm’
O símbolo ° indica que houve liaison
A notação ([x]) é da própria autora
130
(10) plural /-z/ em construções nome-adjetivo
des découvertes° inquietantes
‘descobertas inquietantes’
[dekuvERtzA‡kietA‡t´]
(11) desinências número-pessoais
a. nous vivons° à Paris
[vivo‡zapaRi] ‘nós vivemos em Paris’
b. ils chantent ° en choeur [SA‡tA‡S{R]
‘eles cantam em coro’
(12) um pequeno grupo de adjetivos pré-nominais (masculino singular)
a. um petit° écureil
[p´tit´kuREy]
‘um pequeno esquilo’
b. un gros° amiral
[gRozamiRal]
‘um almirante gordo’
c. un long° été
[lo‡gete]
‘um longo verão’
(13) plural de alguns adjetivos
a. deux petites° histoires [p´tit´zistwah]
(14) preposições, advérbios
[pA‡dA‡tA‡mwa]
a. pendant° un mois
(15) frases fixas
a. c’est° à dire
b. pas °encore
[sEtadih]
[pazA‡kOh]
‘duas histórias curtas’
‘durante um mês’
‘quer dizer’
‘não ainda’
Segundo Bybee (2001), os papéis da morfologia, sintaxe e léxico são inegáveis no
tocante ao fenômeno da liaison, contudo cada uma dessas contribuições é que tem sido
assunto para controvérsias ao longo da literatura linguística. Ainda, segundo a autora,
trabalhos fundamentais para avanços significativos no que diz respeito ao fenômeno da
liaison teriam sido os de Selkirk (1974)74 e Chomsky & Halle (1968) - a primeira porque
prevê contextos de liaison através de estabelecimento de fronteiras75 e a segunda porque, nos
termos de Bybee, estabelece fronteiras para categorias lexicais, mas não para categorias
gramaticais. Por fim, Bybee cita o trabalho de Kaisse (1985), cuja proposta admite maior
peso da configuração sintática para a ocorrência de liaison.
Outros autores (Baxter, 1975; Green & Hintze, 1988; Morin & Kaye, 1982; Tranel,
1981) oferecem, segundo Bybee (2001), uma análise que se refere não apenas a fatores
morfossintáticos mas também a fatores lexicais, o que vai ao encontro da visão da própria
autora:
eu argumento que o uso de estruturas que fazem liaison é que as mantêm vivas,
preservadas. Mais especificamente, argumentarei que o grau de coesão sintática
que é sempre mencionado em estudos sobre liaison é um resultado direto da
frequência com a qual os dois itens envolvidos na liaison ocorrem na sentença.
(BYBEE, 2001,p.172)
Esta proposta abarca a totalidade da construção envolvida pela liaison (exemplo: cher°
ami ‘querido amigo’) como uma unidade básica. Segundo tal visão, construções linguísticas
têm diferentes graus de ‘convencionalização’, uma vez que só se estabilizam na língua a partir
de uso repetitivo. Os mecanismos para a estabilização de construções linguísticas seriam:
74
Tal referência aparece na bibliografia com a data de 1972, data da defesa de Tese de Elisabeth Selkirk. A
publicação de obra só se deu em 1974.
75
Cf. seção anterior deste trabalho
131
(i) o fato de ficarem automáticos para o falante os chunks de material linguístico repetidos;
(ii) categorização de itens que ocorrem em posições particulares nesses chunks.
Para ilustrar a discussão, Bybee (2001) utiliza uma construção bastante discutida na
literatura linguística, a saber: o plural de nomes seguidos de adjetivos iniciados por vogal.
Segundo a autora, em alguns casos ocorre [z] entre o nome e o adjetivo, como se vê em (16):
(16) a. des enfants [z] intelligents76
b. des découvertes [z] inquiétantes
‘crianças inteligentes’
‘descobertas inquietantes’
Os dados acima sugerem duas construções para as expressões nome-adjetivo, assim:
(17) les
[des
NOME
ces, etc.
ADJETIVO
]
(18) les
[des
NOME
ces, etc.
-z-
Plural
]
[vogal] - ADJETIVO
Plural
Ainda, nos termos de Bybee (2001), haveria um terceiro esquema - este para adjetivos
iniciados por vogais, como seria o caso de anglais ou américain:
(19) les
[des
NOME
ces, etc.
]
-z-
anglais
Plural
Por fim, Bybee aponta construções que ela chama de ‘falsa liaison’77 e que consistem
de numerais cardinais adicionados de fonema [z] e de nome iniciado por vogal. Os exemplos
estão em (20):
(20) a. quatre enfants
b. huit épreuves
[katRza)fa)]
[ÁizepR{v]
‘quatro crianças’
‘oito provas’
Para a solução dos casos acima, Bybee recorre aos trabalhos de Morin & Kaye (1982)
e Klausenburger (1984). Ao invés de inserir ou apagar qualquer material fônico, a solução
consiste em introduzir uma consoante default, no caso [z], que poderia, inclusive, dar conta de
pausa causada por hesitação, como se vê em (21):
(21) quatre euh... [z] obligations [katRPzobligasio‡]
‘quatro hum... obrigações’
Todos os exemplos acima mostram, segundo Bybee, que os morfemas gramaticais
estão extremamente imbricados com as construções em que aparecem, não apenas em língua
francesa, mas em qualquer idioma.
Ainda, a autora aponta uma nítida tendência em direção à perda da liaison em
inúmeros contextos, o que só não ocorreria ‘em casos de coesão sintática firme’, nos termos
da própria Bybee (Cf. 2001:177). O problema é que nenhum autor jamais teria conseguido
76
As transcrições fonéticas desses itens encontram-se acima, nesta mesma seção.
Neste ponto, a autora argumenta haver a ‘intromissão de um [z] ‘não etimológico’. (Cf. 2001:176). A partir
de tal ‘intromissão’ haveria, então, o que ela chama de ‘falsa liaison’.
77
132
predizer que contextos sintáticos seriam esses, uma vez que numerosas construções estão
envolvidas na liaison.
Assim sendo, a proposta de Bybee é que a liaison, ainda que ocorra entre palavras e
não no interior de palavras, é muito similar às alternâncias condicionadas morfologicamente e
lexicalmente que ocorrem internamente nas palavras. A partir de motivação fonética original,
alternâncias gradualmente associaram-se a contextos morfossintáticos e lexicais. Nesse
sentido, segundo Bybee, a frequência de determinada construção está diretamente ligada à sua
produtividade.
Além da produtividade e frequência, a liaison, para ocorrer, dependeria das condições
sintáticas envolvidas - no caso destas serem ‘firmes’, na terminologia de Bybee, a tendência
seria a que a liaison ocorresse. Isto explicaria a ocorrência do fenômeno em (8) e em (9).
Em contextos ‘sintaticamente mais frouxos’, como seriam, por exemplo, aqueles envolvendo
adjetivos pré-nominais, Bybee argumenta que a frequência de uso desses adjetivos acabaria
por resultar na ‘coesão sintática’ necessária para a ocorrência do fenômeno. Assim sendo, a
autora fornece uma lista de adjetivos que, segundo ela, condicionam liaison. Ei-los:
(22) Adjetivos pré-nominais que condicionam liaison
‘bon’ (bom), ‘long’
(longo), ‘nouveau’ (novo), ‘mauvais’
(grande), ‘gros’ (gordo), ‘petit’ (pequeno)
(ruim), ‘grand’
Para corroborar sua tese, Bybee utiliza ainda o corpus de Agren (1973). Tal estudo,
que levava em consideração as flexões do verbo être (ser), indicou que a presença de liaison
era diretamente proporcional ao uso das formas em questão. Assim sendo, por exemplo, uma
forma como soit (seja), menos frequente na língua, tenderia a entrar menos em liaison com
palavra seguinte iniciada por vogal.
A frequência - ela e somente ela - do primeiro elemento de uma locução verbal
(exemplos: aller (ir), devoir (dever), pouvoir (poder), vouloir (querer)) igualmente, não
determina se haverá liaison da locução com um termo seguinte iniciado por vogal. A
ocorrência da locução como um todo é que predirá se haverá ou não liaison.
Para ilustrar este fato, Bybee recorre aos seguintes exemplos, ambos retirados de
Agren (1973):
(23) Marie-Claire, est-ce que vous pensez que l’homme et la femme doivent [t] être placés
sur le même plan intellectuel et social? (...)]
[dwavtEtR´]
‘Maria Clara, você pensa que o homem e a mulher devem estar colocados no mesmo
plano intelectual e social?’
(24) Ça doit bien t-être bien cuit, maintenant
[byA‡tEtR´]
‘Isto deve estar bem cozido, agora’
A seguir, o esquema que representa a generalização proposta pela autora para os casos
envolvendo locuções verbais:
(25) a. [
[dwa]
b. [
[dwa]
-t-
INFINITIVO
]
[vogal]
INFINITIVO
]
133
Finalmente, após apresentar todos os dados acima78, a autora finaliza por perguntar-se
se o fenômeno em questão pode ser condicionado a partir de fronteira de palavras. Em sua
opinião, isto até pode acontecer, isto é, liaison pode ser foneticamentre condicionada.
Entretanto, Bybee (2001) argumenta que é importante distinguir o que é foneticamente
condicionado e que opera através de fronteiras de palavras daquilo que ocorre em ‘instâncias
lexicalizadas’ - usando seus próprios termos - dentro de frases fixas ou determinadas
construções.
Algumas palavras sobre Bybee (2001)
Primeiramente, valeria a pena voltar à definição que a autora nos fornece acerca da
liaison. Diz ela: “é o nome para a emergência de uma consoante de final de palavra antes de
uma vogal que inicie palavra seguinte em palavras que, em outros contextos, terminam por
vogal.” A seguir, para ilustrar sua definição, a autora fornece os exemplos que se encontram
em (5) e (6) deste artigo.
Ora, se observarmos bem os exemplos que estão em (6), perceberemos que tal
definição não se aplicaria nesses casos, pois a consoante em questão não tem materialização
fonética.
Ocorre que, tradicionalmente, há uma distinção entre o que se vê em (5) e (6).
Respectivamente, são o que se conhece, na literatura linguística, por liaison e elision. Schane
(1967), por exemplo, opta por denominar ambos os processos como truncamento - assumindo
que os dois nada mais são do que apagamento de um segmento em posição final de palavra.
Outro ponto interessante para discussão é, sem dúvida, o fato de haver, no artigo de
Bybee, uma crítica aos autores que assumem que a liaison é um fenômeno sensível ao
componente sintático. A mesma autora afirma que a condição fonológica para o
aparecimento de liaison é que haja, “após palavra terminada por consoante, outra iniciada por
vogal, mas isto apenas sob certas condições sintáticas”. (Cf. 2001: 168). Além disso, propõe
que, nos contextos em que a liaison é categórica, haja uma ‘condição sintática firme’.
Vimos anteriormente que Schane (1967) enfatiza o peso que a sintaxe exerce no
tocante ao fenômeno aqui descrito . O autor é bastante claro ao revelar a importância que o
componente sintático pode(ria) ter na implementação do fenômeno. No decorrer dos anos,
outros autores79 confirmaram a tese a favor do argumento sintático. Por que, então, Bybee
insiste em negar algo que parece consenso?
Se observarmos os exemplos utilizados por Schane (1967) - 2 (a) e 2 (b) - ,
perceberemos que o que está em jogo é, na realidade a natureza do sintagma. Só haverá
liaison se o adjetivo vier antes do nome. Este último - o adjetivo - também é discutível em
Bybee (2001). Em (22), percebemos que a autora propõe uma lista de adjetivos que, segundo
ela, condicionam liaison.
A questão subjacente a esta é: por que os adjetivos listados por Bybee (2001)
condicionam liaison? Não há, ao longo da exposição da autora, qualquer explicação para tal
fato. Além disso, listar adjetivos com os quais determinadas palavras poderiam entrar em
liaison parece uma solução custosa do ponto de vista da linguística.
Ainda, parte do corpus analisado por Bybee (2001) e já referido no exemplo (21) deste
artigo encontra-se reproduzido abaixo:
(21) quatre euh... [z] obligations
78
79
‘quatro hum... obrigações’
Cabe salientar aqui que, em Bybee (2001), os dados linguísticos não são primários.
Selkirk (1972), Rotenberg(1978), Kaisse (1985)
134
Segundo a autora, a consoante [z] seria aqui inserida em virtude de haver pausa ou
hesitação por parte do falante. Tal fato causa estranheza pelos seguintes motivos:
(i) não há, em XXX (2005, 2010)80 qualquer dado que se assemelhe à descrição acima;
(ii) mesmo que isto fosse possível, de onde o falante teria tirado tal consoante uma vez
que ela não existe na representação subjacente? As alternativas de solução
possíveis, nesse caso, seriam: [z] carregar o traço [+ PLURAL] sempre que
estivessem envolvidos números a partir de ‘dois’ em francês - o que necessitaria
de comprovação em base empírica ampliada; [z] entraria por inserção default caso em que teríamos que explicar a escolha entre [z] e outro segmento possível de
realizar liaison em seu lugar.
Um outro fato curioso: Bybee (2001), ao fazer generalizações acerca do fenômeno,
utiliza sempre ou quase sempre dados de fontes não primárias - recorre, mais especificamente,
aos dados de Morin & Kaye (1982) e Agren (1973). A pergunta que ora se coloca é a
seguinte: como explicar, em termos do uso atual da língua francesa, o fenômeno em questão
pela via da lexicalização levando em conta dados coletados há 27 anos? Se objeto de estudo é
um fenômeno de língua em curso - como é o caso da liaison do francês - então é fundamental
que haja também dados recentes e preferencialmente primários para análise.
Por fim, no que se refere aos dados linguísticos de Bybee (2001) - ou melhor, aos dados
linguísticos aos quais a autora faz referência - pode-se dizer que em XXX (2005, 2010) há
dados que contrariam aqueles presentes em Bybee (2001). Um bom exemplo disso é o caso
das locuções verbais. A seguir, alguns exemplos de ambientes em que não se verificou liaison
( / ), ao contrário do que era esperado pela autora:
(26) on avait /été deprimé parce qu’on n’était pas content’
[o‡navE\ete]
‘nós tínhamos estado deprimidos porque não estávamos contentes’
avait \ été
prise bien° avant l’aval ...
[avE / ete]
‘Nós reconhecemos que a decisão tinha sido tomada bem antes do aval...’
(27) on° a reconnu que la décision
No tocante ao verbo être, ambiente em que, para Bybee, há casos em que a liaison é
praticamente categórica81, os dados linguísticos contidos em XXX (2005, 2010)
absolutamente não confirmam a tendência apontada pela autora, como se vê abaixo:
(28) je trouve que les espaces sont/ immenses..
[so‡/imA‡s]
‘eu acho que os espaços são imensos’
80
Em XXX (2010), os dados linguísticos encontram-se distribuídos sob a forma de anexos com características
específicas. No anexo 1, estão reunidas seis entrevistas que, totalizando cerca de uma hora de material gravado,
foram realizadas com falantes nativos de língua francesa, a saber: entrevista 1 (Marie), entrevista 2 (Pierre),
entrevista 3 (Laurence), entrevista 4 (Xavier), entrevista 5 (Welfran) e, finalmente, entrevista 6 (Leopoldine).
No anexo 2, encontram-se fragmentos de texto, sendo que 10 pertencem a uma coletânea de textos retirados de
jornais franceses, e outros 10 pertencem ao romance Madame Bovary, de Gustave Flaubert.
81
Cf. Bybee, 2001:180. No quadro 7.1, a autora afirma haver tendência de se fazer liaison em 97 % das vezes
quando a forma do verbo être é ‘est’ (3ª pessoa do sg. do presente do indicativo), 86% quando a forma é ‘sont’
(3ª pessoa do plural do presente do indicativo) e 75 % quando a forma do verbo é ‘était’ (3ª pessoa do sg. do
imperfeito do indicativo).
135
(29) on voit/ à quel point la ville est/ aussi penetrée par, enfin, ...
[vwåakEl]
[E\osi]
‘a gente vê a que ponto a cidade é penetrada por, enfim...’
Conclusão
Para uma melhor compreensão da complexidade do fenômeno da liaison do francês,
procuramos, além de fazer uma breve revisão de textos de base gerativa, enfocar uma
abordagem não-gerativista específica: Bybee (2001). A autora utiliza a liaison do francês para
ilustrar o fato de que a construção ou a frequência de derminada estrutura condiciona o
desenvolvimento de alternâncias entre variantes da mesma palavra, e que a frequência
também faz com que tais variantes sejam resistentes à regularização. Bybee até prevê, no caso
do francês, que o fenômeno seja sensível ao componente sintático: a informação contida no
limite de palavras seria insuficiente e as restrições de natureza sintática seriam relevantes para
as regras de sândi externo.
Contudo, explicar a liaison seja pela frequência do uso, seja pela via do peso que a
sintaxe poderia possuir para a implementação do fenômeno pareceu-nos uma visão
parcimoniosa tendo em vista (i) a complexidade do fenômeno em si e (ii) o fato de que muitos
dos dados apresentados em Bybee (2001) não estão em concordância com os dados de fonte
primária obtidos em XXX (2005, 2010).
Uma vez que nem a frequência do uso pareceu apontar uma saída satisfatória para a
implementação da liaison do francês, resta-nos investigar outras opções teóricas que forneçam
subsídios para uma descrição desejável do fenômeno em causa.
REVISITING THE FRENCH LIAISON THROUGH THE ANALYSIS OF FREQUENCY OF USE
ABSTRACT: Our work deals with the (re-) examination of the connected speech phenomenon in French, known
as “liaison”. This phenomenon, also known as truncation, or, more generally, such as external sandi,
requires for its implementation, information from more than one component of the grammar. In order to have a
better understanding of the complexity of the phenomenon of French liaison, we make a brief review
of basic generative texts, focusing
on
a
non-generative specific approach advocated by
Joan Bybee
(2001). According to the author, the roles of morphology, syntax and vocabulary are essential to the
understanding of the phenomenon in terms of liaison. However, each of these contributions has generated
controversies over the linguistic literature. So, we make a review of the treatment of
this
phenomenon considering the founding texts such as Schane (1967), Selkirk (1972), Rotemberg (1978)
and Kaisse (1985). In this article we try to make critical observations on Bybee (2001) comparing the
results with those obtained by Soares (2005, 2010).
KEYWORDS: Phonology/ syntax interface; Liaison; External sandi; Connected speech.
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137
A locução conjuntiva temporal ((n)a) hora que: aspectos inovadores e
renovadores
Gisele Cássia de SOUSA82
Nicole Regina RENCK83
RESUMO: O objetivo deste trabalho é comparar o comportamento de orações temporais introduzidas pela
conjunção quando e pela locução conjuntiva ((n)a) hora que, a partir de dados representativos do português
falado no interior paulista. Com base na distinção proposta por Meillet (1948a, b) entre renovação, entendida
como mudança “conservadora”, e gramaticalização, concebida como mudança “inovadora”, investiga-se,
especificamente, em que medida o comportamento da locução conjuntiva (n(a)) hora que se distancia e se
aproxima do comportamento da conjunção temporal prototípica quando. Com a comparação entre o
comportamento desses dois conectivos temporais, busca-se evidenciar aspectos “conservadores” e “inovadores”
subjacentes ao desenvolvimento de ((n)a) hora que como conectivo temporal. As análises revelam que, na
variedade investigada, a forma ((n)a) hora que mantém a função de localizar temporalmente um evento em
relação a outro (expresso na oração principal), também desempenhada por quando, mas indica tendência de
especialização de ((n)a) hora que na expressão de eventos pontuais, localizados no passado. De modo geral, os
resultados apontam a relevância desse tipo de análise para a compreensão das causas subjacentes à
gramaticalização, em especial, de formas conjuncionais.
PALAVRAS-CHAVE: Gramaticalização; Oração adverbial temporal; Locução conjuntiva.
Introdução
No âmbito dos estudos descritivos, especialmente os de base funcionalista, várias
pesquisas já se voltaram ao funcionamento das orações adverbiais no português brasileiro.
Trata-se, em especial, de identificar a variedade de formas em que se apresentam e as funções
pragmático-discursivas que cumprem na interação verbal (DECAT, 1993, 1999; NEVES,
1999a, b, c, 2000, 2001; BRAGA, 1995, 1999a, b, 2001a, b; NEVES, BRAGA e
DALL’AGLIO-HATTNHER, 2008). Trata-se também, sob essa mesma perspectiva, de
analisar as adverbiais quanto ao estatuto gramatical que exibem na combinação com outra
oração, em outras palavras, quanto ao seu grau de gramaticalização, em comparação a outros
modos de combinação oracional (NEVES e BRAGA, 1998; BRAGA, 2001b; NEVES, 2001,
2008).
Esses estudos têm evidenciado, entre outras coisas, uma ampla variedade de formas
conjuncionais introdutoras de orações adverbais em português. No que tange às adverbiais
temporais, foco deste trabalho, identificam-se, ao lado da conjunção prototípica quando,
locuções conjuntivas de base adverbial (antes que, depois que, logo que, assim que, sempre
que), de base preposicional (até que, desde que) e locuções formadas a partir de um numeral
ordinal (primeiro que) ou de um sintagma nominal com valor habitual/frequentativo (todas as
vezes que, cada vez que) (NEVES, 2000).
Além dessas formas, encontram-se, especialmente na modalidade falada do português,
conectores temporais constituídos de estruturas relativas, encabeçados por um substantivo
82
UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Biociências, Letras e
Ciências Exatas – Departamento de Estudos Linguísticos e Literários. São José do Rio Preto – São Paulo –
Brasil. 15054-000 – [email protected].
83
UNESP – Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”. Instituto de Biociências, Letras e
Ciências Exatas. São José do Rio Preto – São Paulo – Brasil. 15054-000 – [email protected]. Graduanda
do curso de Licenciatura em Letras. Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP – IC – processo no. 2010/09567-5).
138
referente a tempo (dia, hora, época) seguido do pronome relativo que. Lima-Hernandes
(2000) identifica, em córpus representativo do português popular falado na cidade de São
Paulo, cinco dessas “expressões relativas” introdutoras de orações temporais em português,
quais sejam: a hora que, no dia que, um dia que, na época que, depois de X anos que.
Dentre essas formas, o português falado no interior paulista emprega, com notável
139reqüência, a expressão ((n)a) hora que, por vezes iniciada pela preposição em, como em
(01ª), por vezes, apenas pelo determinante a, como em (01b), ou, em alguns casos, marcada
apenas pelo substantivo seguido do pronome relativo, sem expressão de um determinante
antecedente, como em (01c):
(1)
a. meu filho estudava em escola longe e eu todo dia ia buscá(r) ele né?... no mesmo
horário... e eu c’a cha::ve c’a bolsi::nha... de guardá(r) moeda eu tô subin(d)o::...
sossegada sem olhá(r) pa trás... de repente... eu vi uma a/ sabe? senti uma MÃO...
puxan(d)o com TU-DO... minha mão/ eu assusTEI quase caí até no chão só num caí
porque eu:: encostei na parede assim na hora que ele puxô(u)... e ele correu... um
BAIta d’um negão cumPRIdo assim... é NOvo mas aqueles mulecão ALto...
b. aí:: aguarda o avião pouSANdo... o avião pousá(r) o avião pousan(d)o a gente já...
tem po/ os passageiros que desembarcam a gente leva pra uma outra sala... pra eles tá
pegan(d)o a bagagem... só que é tudo... éh:: muito rápido... muito sincronizado
porque nós temos... quinze minutos de porta aberta... então a hora que o avião...
pousa... no aeroporto de São José do Rio Preto... a gente tem que:: é quinze
minutos... se DÉ(R) dezesseis a gente tem que justificá(r) o porQUÊ que foi esse::
um minuto a mais...
c. ...tem um pouco de tudo lá TEM a tranquilida::de... de cidade TÍpica do interior
peQUEna... e à noite tem as FEStas né? que toca forró:: assim... forró:: todo tipo de
música... e é uma coisa gostosa porque não é que num/ hora que você TEM a
tranquilida::de... você an::da um pouco assim você tem agitação... e por sê(r) um
local turístico assim... é preserVAdo né? porque hoje em dia o turismo no Brasil cê...
é aquele turismo de MAssa...
O principal objetivo deste trabalho é investigar se há, nessa variedade do português,
contextos indicativos de especialização (HOPPER, 1991) do uso de ((n)a) hora que em
comparação ao emprego da conjunção quando, forma prototípica para introduzir orações
temporais (NEVES, 2000; BRAGA, 1999a, DECAT, 1993). Com esse objetivo, retoma-se a
distinção proposta por Meillet (1948a [1912]) entre renovação e inovação, essa última
entendida pelo autor como mecanismo associado à gramaticalização de uma forma linguística.
Pretende-se, assim, averiguar se, na sincronia e na variedade investigadas, o comportamento
sintático-funcional de ((n)a) hora que distingue-se do comportamento da conjunção quando e,
se sim, em quais aspectos se traduzem essa diferença. Em outras palavras, investiga-se em que
medida o comportamento de ((n)a) hora que é semelhante (e, assim, apenas renovador) ou
diverso (e, portanto, inovador) do funcionamento da forma quando.
O texto encontra-se dividido em quatro seções. Primeiramente, apresentam-se os
conceitos de “inovação” e “renovação” conforme propostos por Meillet (1948a, b) e discutese a relevância de adotá-los para a análise de formas em processo de gramaticalização, em
especial, formas conjuncionais como as que constituem objeto de estudo deste trabalho. Na
segunda seção, expõem-se os aspectos metodológicos da pesquisa, tais como o córpus
investigado e os fatores analisados; na terceira, apresentam-se os resultados obtidos, e, ao
final, expõem-se as conclusões.
139
Inovação e renovação na gramaticalização de conjunções
A coexistência de formas conjuncionais para expressão de uma mesma relação entre
orações não é fenômeno incomum em português, nem em outras línguas. Meillet (1948b
[1912]), precursor dos estudos modernos em gramaticalização, já indicava o domínio das
conjunções como um dos mais propensos a inovações, impulsionadas pela necessidade de
manter-se sempre renovada a expressividade das construções. Ele afirma que: “A primeira e a
mais importante dessas causas [da mudança das conjunções] consiste na necessidade que o
sujeito falante tem de ser expressivo, de bem expressar seu pensamento e de agir sobre seu
interlocutor” (MEILLET, 1948b, p.163).84
Meillet considera que, em função de seu uso frequente e, ainda, da velocidade com
que são pronunciadas, as conjunções, assim como outros instrumentos gramaticais ou
“palavras acessórias” (mots accessoires), tendem a enfraquecer-se e a reduzir-se, tornando
menos expressivo o significado das orações em que ocorrem, o que conduz à constante
necessidade de renovação dessas formas. Nas palavras do autor:
As conjunções podem assim se renovar muito facilmente, já que toda partícula, ou
mesmo toda palavra empregada como acessório de frase, tende a perder seu sentido
próprio... No momento em que ocorre a renovação, obtém-se uma expressão
relativamente viva e intensa; assim que o processo termina, não resta mais nada
dessa força que é, afinal, transitória. A história das conjunções se limita quase toda
a um esforço sempre repetido e, por natureza, perpetuamente inútil para obter
formas expressivas de frase. 85 (MEILLET, 1948b, p. 171)
Para ilustrar essas suas considerações, Meillet apresenta vários casos de mudança de
formas conjuncionais, aos quais atribui uma mesma motivação: a necessidade de renovação
da força expressiva das construções. A maioria dos casos de mudança descritos por Meillet
ocorre pelo acréscimo de uma palavra ou elemento gramatical a uma conjunção ou partícula
considerada pouco expressiva. Disso resulta uma nova forma que, quando criada, é
considerada mais expressiva do que a forma antiga de que deriva. É o que ocorreu, segundo
Meillet, com a criação, no francês, das locuções concessivas quand même, quand bien même,
quand même que e malgré que, ao lado das antigas formas bien que e quoique. Nas palavras
de Meillet, “a criação é constante aqui, devido à necessidade que se tem de exprimir a
concessão com uma força sempre renovada” (MEILLET, 1948b, p.173).86
Um ponto da discussão de Meillet ao qual, conforme aponta Lehmann (2002), pouca
atenção tem sido dada nos estudos contemporâneos de gramaticalização diz respeito à
distinção entre esse processo de mudança e a simples “renovação analógica”.
Meillet (1948b) considera que há dois processos pelos quais novas formas gramaticais
se constituem nas línguas: a analogia, que “consiste em criar uma forma segundo o modelo de
outra”, e a gramaticalização, que “consiste na passagem de uma palavra autônoma ao papel de
84
La première et la plus importante de ces causes consiste dans le besoin qu’éprouve le sujet parlant d’être
expressif, de bien faire sentir sa pensée et d’agir sur son interlocuteur (Meillet, 1948b, p.163).
85
Les conjonctions peuvent ainsi se renouveler très aisément, puisque toute particule, ou même toute mot
employé comme accessoire de phrase, tend à perdre son sens propre... Au moment oú a lieu le renouvellement,
on obtient une expression relativement fraîche et intense ; dès que le procès est terminé, il ne rest plus rien de
cette force que est chose toute transitoire. L’histoire des conjonctions se ramène presque tout entière à un effort
toujours répété et, par nature, perpétuellement inutile pour obtenir des tours de phrase expressifs (Meillet,
1948b:171).
86
La création est constante ici, par suite du besoin qu’on a d’exprimer la concession avec une force toujours
renouvelée (MEILLET, 1948b, p.173).
140
um elemento gramatical” (p. 130 e 131).87 Meillet demonstra que, embora a analogia possa
por vezes estar associada à criação de novas funções gramaticais, de um modo geral, ela
apenas introduz no sistema gramatical novas formas para funções gramaticais já existentes. A
gramaticalização, diferentemente, altera todo o sistema gramatical de uma língua, ao criar
funções gramaticais para as quais, antes, não havia expressão linguística. Há assim, em
Meillet (1948b), uma associação entre analogia e renovação de funções gramaticais, e entre
gramaticalização e criação de funções gramaticais. Afirma Meillet que:
Enquanto a analogia pode renovar os detalhes das formas, mas, mais
frequentemente, mantém intacto o plano de conjunto do sistema existente, a
“gramaticalização” de certas palavras cria as novas formas, introduz categorias que
não tinham expressão linguística, transforma o conjunto do sistema.88 (MEILLET,
1948a, p.133; ênfases acrescentadas).
Conforme aponta Lehmann (2002), teoricamente, a distinção entre inovação e
renovação é inteiramente clara. “A inovação é revolucionária; ela cria categorias que não
existiam na língua anteriormente. A renovação é conservadora; ela somente introduz novas
formas para velhas categorias.” (LEHMANN, 2002, p. 19)89. Como o autor reconhece,
entretanto, na prática, observam-se muitos casos limítrofes entre renovação e inovação, e esse,
aliás, parece ser o caso da locução conjuntiva (n(a)) hora que, objeto deste estudo, conforme
será demonstrado adiante.
A substituição das flexões de caso do latim por construções preposicionais nas línguas
românicas, por exemplo, como Lehmann aponta, é conservadora apenas na medida em que
nenhuma nova categoria gramatical é criada, mas as construções preposicionais das línguas
românicas não são funcionalmente idênticas aos sufixos de caso do latim. Por um lado, as
preposições fazem menos do que os sufixos, e a ordem de palavras nas línguas românicas
supre as funções que as preposições não são capazes de cumprir, como marcar os papéis
sintáticos de sujeito e objeto. Por outro lado, as preposições podem expressar distinções
semânticas mais finas porque são em maior número do que os sufixos.
É sabido que, conforme apontam Hopper e Traugott (1993), à época da publicação do
trabalho de Meillet, prevalecia, nos estudos linguísticos, uma concepção restrita de analogia,
entendida como processo por meio do qual irregularidades na gramática, particularmente no
nível morfológico, são regularizadas. Uma vez que o resultado dessa “regularização” também
pode ser a gramaticalização de uma forma ou construção, torna-se pouco produtiva a
associação de gramaticalização apenas aos casos de inovação no sentido de Meillet, razão
pela qual, modernamente, são objetos de estudos em gramaticalização tanto casos de inovação
quanto de renovação, e à analogia atribui-se o papel de mecanismo subjacente ao processo, ao
lado da reanálise (HOPPER e TRAUGOTT, 1993).
Defende-se, neste trabalho, a relevância de se reavivar, para o estudo de formas
conjuncionais, a distinção proposta por Meillet entre inovação e renovação, não como forma
de associar a ocorrência de gramaticalização apenas a casos de inovação, de surgimento de
categorias antes inexistentes no sistema linguístico, como propunha o autor, mas como
recurso analítico capaz de evidenciar motivações possíveis para a ocorrência de
87
...consiste à faire une forme sur le modèle d’une autre (MEILLET, 1948a, p. 130). ...consiste dans le passage
d’un mot autonome au rôle d’élément grammatical (MEILLET, idem, p. 131).
88
Tandis que l’analogie peut renouveler le détail des formes, mais laisse le plus souvent intact le plan d’ensemble
du système existant, la «grammaticalisation» de certains mots crée des formes neuves, introduit des catégories
que n’avaient pas d’expression linguistique, transforme l’ensemble du système (MEILLET, 1948a, p.133).
89
“Innovation is revolutionary; it creates grammatical categories that had not been in the language before.
Renovation is conservative; it only introduces new forms for old categories.” (LEHMANN, 2002, p. 19).
141
gramaticalização de uma forma. Isso porque, com o reconhecimento de aspectos inovadores
e/ou renovadores da forma em estudo, pode-se explicar em que medida a mudança se instaura
em razão do surgimento de alguma função gramatical previamente inexistente (ou não fixada
gramaticalmente) na língua e em que medida essa mudança é motivada pela necessidade
comunicativa de se renovar a força expressiva de uma função. De modo mais geral, a
principal contribuição desse tipo de análise, fundamentada em Meillet, encontra-se no fato de
que ela permite que se incluam nos estudos explicações, de natureza pragmático-discursiva
mais ampla, para a ocorrência da gramaticalização de uma forma.
Material e metodologia de análise
Os dados da pesquisa, representativos de orações iniciadas tanto por quando quanto
((n)a) hora que, foram extraídos de inquéritos que integram o banco de dados IBORUNA,
constituído no âmbito do projeto “Amostra Linguística do Interior Paulista (ALIP)”, sediado
na Universidade Estadual Paulista, câmpus de São José do Rio Preto. O banco de dados é
composto de dois tipos de amostras de fala: “Amostra Comunidade” (ou “Amostra Censo” AC), que reúne amostras de fala controladas sociolinguisticamente, divididas em cinco tipos
de texto (narrativa de experiência, narrativa recontada, descrição, relato de procedimento e
relato de opinião); e “Amostra de Interação Dialógica” (AI), composta por amostras coletadas
secretamente, em situações de interação social livre.
A fim de se investigarem os aspectos inovadores e renovadores de ((n)a) hora que, em
comparação a quando, as ocorrências, extraídas de inquéritos integrantes dos dois tipos de
amostra, foram analisadas segundo os fatores: (i) posição da oração temporal; (ii) aspecto do
verbo na oração temporal; (iii) correlação modo-temporal nas construções; (iv)
correferencialidade dos sujeitos na oração principal e na temporal; e (v) tipo de texto a que a
ocorrência pertence.
Para a compilação dos dados e a obtenção das frequências de ocorrência, utilizou-se o
pacote estatístico Goldvarb X (SANKOFF; TAGLIAMONTE; SMITH, 2005), empregado,
neste estudo, apenas para análise unidimensional dos dados.
Quando vs. ((n)a) hora que: aspectos inovadores e renovadores
Para este trabalho, foram analisadas 219 ocorrências de orações iniciadas por quando e
por ((n)a) hora que. A distribuição dessas ocorrências pela forma do conectivo empregado é
mostrada no quadro 1.
Tipo
conectivo
de
quando
na hora que
a hora que
hora que
173
10
30
06
Número
de
ocorrências
Quadro 1: Número de ocorrências das formas de conectivo investigadas
Conforme se observa, entre os dados coletados, o número de ocorrências de orações
temporais introduzidas por quando se mostra bem maior do que o de orações com ((n)a) hora
que, o que ratifica o caráter mais gramaticalizado de quando, e o estatuto “inovador”, menos
gramaticalizado, de ((n)a) hora que no português falado no interior paulista. Conforme
atestam Bybee (2005) e Bybee e Hopper (2001), há uma estreita relação entre frequência de
ocorrência e gramaticalização de estruturas linguísticas. Bybee (2005), por exemplo, afirma:
142
[o aumento da frequência de ocorrência] surge como resultado de um aumento do
número e dos tipos de contextos em que os morfemas gramaticais são apropriados.
A frequência não é apenas um resultado de gramaticalização, é também um
contribuinte primário ao processo, uma força ativa que instiga as mudanças que
ocorrem em gramaticalização (BYBEE, 2005).
Para esses autores, a frequência de ocorrência de uma forma em processo de
gramaticalização pode ser atestada de duas maneiras: observando-se sua frequência em
diferentes tipos de contextos, o que Bybee (2005) chama de “frequência type”, e observandose a frequência com que a forma aparece independentemente de seus contextos de ocorrência,
ou seja, sua frequência token (“de sinal”), ou frequência textual. Segundo Bybee (2005), o
aumento da frequência token de uma forma indica o aumento dos contextos em que ela passa
a ocorrer, o que aponta para um estágio mais avançado de gramaticalização da forma.
A maior frequência de ocorrência atestada para a conjunção quando pode ser
explicada pelo maior número de types, de contextos de ocorrência em que ela aparece no
português atual, em comparação a ((n)a) hora que. Conforme atesta Neves (2000), a orações
iniciadas por quando do português podem estar associadas nuances adicionais ao significado
temporal indicado pela conjunção, o que aparentemente não ocorre com ((n)a) hora que. As
construções em (02) abaixo, extraídas de Neves (2000), exemplificam, respectivamente, a
ocorrência de orações iniciadas por quando com nuance causal, condicional e concessiva.
(2)
a. “Mudou de conversa QUANDO alguém perguntou pelas dicas.”
b. “Como é possível dizer tal coisa QUANDO se sabe universalmente que as drogas
são depressivas, viciantes e causam distúrbios físicos e mentais?”
c. “Essa mulher procura um trabalho QUANDO centenas de outros abandonam seus
trabalhos.” (NEVES, 2000, p. 798-800)
Os resultados obtidos com a análise do fator posição da oração temporal, iniciada por
quando e por ((n)a) hora que, encontram-se na Tabela 1, a seguir.90
Conectivo
Quando
((n)a) hora que
nº.
%
nº.
%
Posição
anteposta
121
70%
39
85%
posposta
51
29,5%
06
13%
intercalada
01
0,5%
01
2%
173
100%
46
100%
Total
Tabela 1: Posição da oração temporal introduzida por quando e por ((n)a) hora que
Os resultados evidenciam que a anteposição é preferida para orações iniciadas por
ambos os conectivos, conforme também atestam Braga (1999a, b), Decat (1993) e Neves
(2000) para as orações temporais do português.
Ao se comparar o comportamento das orações introduzidas por quando e por ((n)a)
hora que, verifica-se tendência à anteposição maior para as orações iniciadas pela locução
conjuntiva do que para as que se iniciam por quando, já que, conforme os resultados
90
Para a exposição dos resultados, considera-se o total geral de ocorrências da locução na hora que, em suas
formas na hora que, a hora que e hora que.
143
mostrados na tabela, 70% do total de orações com quando ocorrem antepostas à principal, ao
passo que, para as orações com ((n)a) hora que, esse percentual é de 85% do total de dados.
Essa maior tendência à anteposição para as orações iniciadas pela locução conjuntiva pode ser
vista como indício de sua especialização na expressão de tempo, ficando reservada a orações
com quando a expressão de tempo associado a outras nuances circunstanciais, como causa,
condição e concessão.
Com relação à posposição, menos típica à expressão de tempo, os resultados revelam
predomínio das orações com quando, o que também se pode explicar pelo estágio mais
avançado de gramaticalização da conjunção quando, se comparado ao da locução conjuntiva
na hora que. Quanto à intercalação, não se atestam diferenças entre as orações, e, para os dois
tipos, o número de ocorrências é baixo. Entre os dados, há apenas uma ocorrência com a
conjunção quando e uma com ((n)a) hora que, mostradas em (03) e (04):
(3)
tinha que pegá(r) ela por trás assim e í(r) descen(d)o seguran(d)o no corrimão da escada
e descen(d)o deva::gar-zi::nho...porque ela num andava mas ela su/ sabe trocá(r) os
passinho...e descia com ela devagarzinho...subi::a...na hora que tinha que subí(r)...meio
empurran(d)o ela assim c’a barriga...deva::garzi::nho...(IB-AC-062-RP, L361)
(4)
Inf.2.: (eu lembro) (inint.)... a filha dele quando viu blufe ((imita o som da pessoa
caindo)) [caiu] (IB-AI-007-FER, L75)
A Tabela 2, a seguir, mostra os resultados obtidos com a análise do aspecto codificado no
verbo da oração temporal.
Conectivo
Aspecto
perfectivo
imperfectivo
quando
no.
((n)a) hora que
%
no.
51
29,5%
21
46%
122
70,5%
25
54%
%
173
100%
46
100%
Total
Tabela 2: Aspecto verbal nas orações com quando e ((n)a) hora que
Os resultados demonstram que orações temporais com quando expressam
predominantemente aspecto imperfectivo (70,5%), comportamento que, mais uma vez,
explica-se pela possibilidade que tem essa conjunção de introduzir orações com outras
nuances circunstanciais, além da temporal. Observe-se que, nas construções em (02b) e (02c)
que exemplificam orações introduzidas por quando com nuance de condição e de concessão,
o aspecto codificado pelo verbo da oração temporal é o imperfectivo.
As orações com ((n)a) hora que, por outro lado, embora também veiculem
predominantemente aspecto imperfectivo (54%), apresentam maior tendência do que as
orações com quando para a expressão de aspecto perfectivo (46% para ((n)a) hora que, e
apenas 29,5% para quando). A esse comportamento pode estar associada uma espécie de
“compensação”: reserva-se quando à expressão de tempo não pontual, da qual, inclusive
podem decorrer outras nuances de sentido, e emprega-se ((n)a) hora que para indicar
localização temporal pontual de eventos. Favorece essa explicação o fato de que a
pontualidade temporal de eventos perfectivos marcada por ((n)a) hora que mostra-se mais
precisa do que quando essa pontualidade é marcada pela conjunção quando, conforme revela
a comparação entre as construções em (05) e (06) abaixo.
144
(5)
e::... todos ficaram surpreendidos né?... na hora que ele::... entregô(u) o carrinho
né?... na véspera de Natal... (IB-AC-011-NE, L35)
(6)
aí quando chegô(u) o dia... eu a/ eu acordei escovei meus den::tes... arrumei as minhas
coisas... e fui... esperá(r) eles chegá(r)... (IB-AC-008-NE, L9)
A maior tendência de ((n)a) hora que à ocorrência com verbos que codificam aspecto
perfectivo é ratificada pela análise do tempo verbal presente nos dois tipos de oração. Os
resultados relativos a esse fator encontram-se na Tabela 3.91
Conectivo
quando
((n)a) hora que
Correlação
nº.
%
nº.
%
modo-temporal
20,5%
14
32%
pretérito
perfeito-pretérito 34
perfeito
46%
07
16%
presente
do
indicativo- 77
presente do indicativo
8,5%
06
14%
pretérito imperfeito-pretérito 14
perfeito
4%
07
16%
presente do indicativo- futuro 06
do subjuntivo
1%
01
2%
futuro do indicativo-futuro 02
do subjuntivo
5,5%
02
4%
pretérito
perfeito-pretérito 09
imperfeito
14%
06
14%
pretérito imperfeito-pretérito 23
imperfeito
0,5%
01
2%
futuro do indicativo-futuro 01
do indicativo
166
100%
44
100%
Total
Tabela 3: Correlação modo-temporal nas construções com quando e ((n)a) hora que 92
Conforme se observa, os resultados revelam a existência de uma ampla variedade de
correlações modo-temporais possíveis. Nas ocorrências com a conjunção quando, entretanto,
a correlação “presente do indicativo - presente do indicativo” mostra-se claramente mais
frequente (46%) do que nas ocorrências com ((n)a) hora que, o que também pode estar
relacionado às diferentes nuances de sentido possíveis de serem expressas nas orações com
quando, já que, conforme demonstra Neves (2000), tanto a leitura condicional quanto a leitura
concessiva das adverbiais temporais com quando apresentam o presente como tempo verbal
característico.
Por outro lado, nas orações com a locução conjuntiva ((n)a) hora que, verifica-se o
predomínio da correlação “pretérito perfeito do indicativo - pretérito perfeito do indicativo”
91
Não estão contempladas na tabela combinações que ocorreram uma única vez e/ou apenas em um dos tipos de
construção (ou com quando ou com na hora que), não permitindo, assim, a comparação entre o comportamento
dos dois conectores. São elas: afirmativo – futuro do subjuntivo, futuro do indicativo – pretérito perfeito,
presente – pretérito perfeito, futuro do pretérito – pretérito perfeito, presente do indicativo – futuro do indicativo,
pretérito imperfeito – presente e presente – futuro do indicativo. Isso explica o fato de os resultados para esse
fator se basearem em apenas 210 das 219 ocorrências.
92
Nas correlações listadas, o primeiro elemento diz respeito ao tempo-modo do verbo da oração principal, e o
segundo, ao do verbo da oração temporal.
145
(32%). Esse comportamento se torna ainda mais significativo se somadas todas as correlações
com a locução conjuntiva em que o pretérito perfeito aparece na oração subordinada (46%),
fato que confirma a preferência, na variedade investigada, ao emprego de ((n)a) hora que, em
vez de quando, para a localização temporal de eventos passados, marcados pontualmente. Em
(07a) e (07b) abaixo, encontram-se ocorrências representativas das correlações modotemporais mais frequentes nas construções com quando e com ((n)a) hora que.
(7)
a. ele joga bo::la comigo também::... quando ele vem aqui...
(IBORUNA, AC-007-RO, L177)
b. . ....a hora que eu voltei no aeroporto o F. falô(u) assim –“146E... éh:: vai lá na
Loja... à TARde que a I. qué(r) falá(r) com você... eu num o sei que que É mas eu
acho que ela vai te contratá(r)” (IBORUNA, AC-051-NE, L78)
Os resultados relativos à análise do fator “correferencialidade dos sujeitos” nas
construções encontram-se na Tabela 4.
Conectivo
quando
((n)a) hora que
Identidade
nº.
%
nº.
%
dos sujeitos
70
40%
15
30%
idênticos
103
60%
31
70%
não-idênticos
173
100%
46
100%
Total
Tabela 4: Correferencialidade dos sujeitos nas construções com quando e ((n)a) hora que
Com relação a esse fator, a análise dos resultados permite destacar a maior tendência a
sujeitos idênticos em construções com quando do que em construções com ((n)a) hora que.
Se se considerar que, conforme propõem Hopper e Traugott (1993) e Lehmann (1988), a
identidade dos sujeitos em orações combinadas é indicativo de grau de integração e, assim, de
gramaticalização entre oração matriz e oração dependente, pode-se afirmar que também em
relação a esse fator a conjunção quando se mostra mais gramaticalizada, já que introduz
orações mais integradas à matriz com que elas ocorrem, do que a locução conjuntiva ((n)a)
hora que.
As construções em (08a) e (08b), abaixo, são ilustrativas da ocorrência de sujeitos
correferenciais, nas construções com quando, e de sujeitos não-correferenciais, nas
construções com ((n)a) hora que.
(08) a. aí quando eu vejo que começa a ficá(r) tarde assim... daí eu VÔ(u)... tomo um banho
né? (IBORUNA, AC- AC-010-RP, L291)
b. eu tava falan(d)o com a C. ... nessa hora... daÍ a hora que eu vi que a M. tava
apanhan(d)o a gente foi LÁ::.. (IBORUNA, AC-011-NE, L63)
Na Tabela 5 abaixo, encontram-se os resultados obtidos com a análise do tipo de texto
de onde foram extraídas as ocorrências de orações com quando e com ((n)a) hora que. Os
dados para este fator não incluem as ocorrências extraídas dos inquéritos integrantes da
“Amostra de Interação Dialógica”, cuja composição não envolve controle do tipo de texto
produzido.
146
Conectivo
quando
nº.
Tipo de texto
Narrativa
de 38
experiência
22
Relato de opinião
Descrição
28
((n)a) hora que
%
nº.
%
29%
15
44%
17%
01
3%
21%
04
12%
20%
09
26%
Relato
de 26
procedimento
17
13%
05
15%
Narrativa
recontada
131
100%
34
100%
Total
Tabela 5: Oração com quando e com ((n)a) hora que vs. tipo de texto
Os resultados para este fator indicam predomínio de orações iniciadas por ((n)a) hora
que em narrativas (especialmente se somados os resultados para as recontadas e as de
experiência (59%)) e em relatos de procedimento (26%), comportamento que também se
justifica em razão da marcação de tempo pontual propiciada pela locução conjuntiva.
Orações introduzidas por quando, por outro lado, apresentam percentuais mais altos
do que ((n)a) hora que em relatos de opinião e textos descritivos, tipos textuais que podem ser
considerados mais “atemporais”, em que prevalecem marcas de tempos presente e futuro.
Relatos de procedimento, em que predominam orações com ((n)a) hora que, também podem
ser considerados mais “atemporais” nesse sentido, entretanto, nesse tipo de texto, é relevante
a marcação pontual de um evento como referência, ponto de partida para o prosseguimento de
novas ações/eventos, função que pode ser cumprida por ((n)a) hora que, conforme
exemplifica o trecho em (09).
(9)
corto um monte de pedacinho de tomate... e coloco num prato... pra pra comê(r) junto
com o miojo... daí::... hora que acaba eu ti::ro... vô(u) lá:: na pia porque eu gosto de
deixá(r) um po(u)quinho de água... aí eu ti::ro um po(u)co só de água de(i)xo ele... tipo
uma SOpa sabe? que eu de(i)xo bastante água... aí:: eu:: já já coloco o molhinho de::le...
espero esfriá(r) mexo espero esfriá(r) um pouco jogo lá no prato cheio de toma::te...
daí:: acabô(u)... aí eu como (IB-AC-010-RP, L281)
Conclusões
A partir de dados representativos do português falado no interior paulista, buscou-se,
com este estudo, investigar a existência de contextos linguísticos indicativos de possível
especialização de uso da locução conjuntiva ((n)a) hora que, em comparação ao emprego da
conjunção temporal prototípica quando, na marcação de orações adverbiais temporais.
Retomando-se a clássica distinção proposta por Meillet (1948a [1912]) entre renovação,
entendida como mudança “conservadora”, e gramaticalização, concebida como mudança
“inovadora”, o principal objetivo foi averiguar em que medida o comportamento da locução
((n)a) hora que se distancia e se aproxima do comportamento da conjunção quando,
buscando-se, assim, a partir da comparação entre as duas formas conjuncionais, evidenciar
aspectos conservadores e inovadores subjacentes ao desenvolvimento do valor de conector
temporal para ((n)a) hora que.
Conforme reconhece Lehmann (2002), em grande parte dos casos de gramaticalização
são observados tanto aspectos inovadores quanto aspectos renovadores. Esse parece ser
147
também o caso de ((n)a) hora que. A análise do funcionamento da locução conjuntiva
evidenciou que são associados a essa forma conjuncional aspectos indicativos de renovação,
mas também de inovação.
De fato, não há qualquer inovação ligada a ((n)a) hora que no que diz respeito à
função de marcar orações temporais em português, isto é, de iniciar uma oração que contém
um evento em referência ao qual outro evento (expresso na oração principal) é localizado
temporalmente. Essa função gramatical existe e é desempenhada por formas conjuncionais
desde os mais antigos textos em português (MATTOS e SILVA, 2001). Nesse sentido, o
comportamento da locução conjuntiva seria apenas “renovador”.
As análises aqui descritas, entretanto, evidenciaram que ((n)a) hora que indica
nuances não marcadas, ou marcadas de modo menos direto, pela conjunção quando, o que
permite reconhecer para a forma comportamentos de mudança “inovadora”, em vez de
simples renovação analógica. Uma dessas nuances diz respeito ao aspecto pontual ligado ao
evento introduzido por ((n)a) hora que, propriedade que, aliás, como adjunto adverbial, a
forma na hora atribui ao evento que ele modifica.
Além disso, nota-se que, embora também localize um evento em relação a outro no
tempo, ((n)a) hora que o faz sem “ambiguidades”, diferentemente de quando, que, conforme
se mostrou, pode ligar construções temporais que propiciam também uma leitura causal,
condicional ou concessiva (NEVES, 2000).
Outro aspecto inovador de ((n)a) hora que diz respeito ao fato de a forma estar, a que
tudo indica, especializando-se na expressão de tempo passado, divergindo, nesse sentido, da
conjunção prototípica quando, que, conforme atestado nas análises, vem sendo mais
frequentemente empregada para a expressão de tempo presente (genérico) e de aspecto
habitual.
A relevância de se reconhecerem aspectos renovadores e inovadores de uma forma
envolvida em um processo de mudança encontra-se, conforme se propõe aqui, na
possibilidade que a análise permite de se identificarem razões, de natureza pragmáticodiscursiva, subjacentes ao desenvolvimento de uma forma, em um sistema linguístico que já
dispõe de outras formas para o cumprimento da mesma função. Essas razões se localizam nos
aspectos inovadores da forma em comparação à forma previamente existente com a qual a
forma gramaticalizada passa a conviver. Conforme se buscou demonstrar, no caso de ((n)a)
hora que, esses aspectos inovadores, que justificariam o desenvolvimento da forma na
variedade do português investigada, dizem respeito à expressão de aspecto pontual do evento
introduzido pela locução conjuntiva e à especialização de uso do conectivo na expressão de
tempo passado. Os aspectos renovadores e inovadores da locução conjuntiva ((n)a) hora que
identificados neste estudo são sintetizados no quadro a seguir.
Aspectos renovadores
•
Aspectos inovadores
Localização temporal de um evento
•
Expressão de aspecto pontual;
em relação a outro.
•
expressão de tempo passado.
Quadro 2: Aspectos renovadores e inovadores de ((n)a) hora que
Ressalte-se, por fim, que o predomínio de ((n)a) hora que em narrativas, também
atestado com análise dos resultados, pode ser interpretado como reflexo direto da inovação
propiciada pelo desenvolvimento de ((n)a) hora que como parte do paradigma dos conectivos
temporais do português, ou seja, de sua especialização na expressão de eventos pontuais,
ocorridos em um tempo passado.
148
THE TEMPORAL CONJUNCTIVE PHRASE “((N)A) HORA QUE” IN PORTUGUESE:
INNOVATIVE AND RENOVATIVE ASPECTS
ABSTRACT: The aim of this paper is to compare the behavior of temporal clauses introduced by conjunction
quando (“when”) and by conjunctive phrase ((n)a) hora que (“in the time that”) based on data from the
Portuguese spoken in in the northwestern of São Paulo. Following the distinction proposed by Meillet (1912)
between renewal, change understood as "conservative" and grammaticalization, conceived as a change
"innovative", this study investigates, specifically, to what extent the behavior of the conjunctive phrase ((n)a)
hora que is different or similar to the behavior of prototypical temporal conjunction quando. From this
comparison, we seek to highlight the "conservative" and "innovative" aspects underlying the development of
((n)a) hora que as a temporal connective. The analysis reveals that, in the dialect under investigation, the form
((n)a) hora que keeping function to locate an event in temporal relation to another (expressed in the main
clause), also fulfilled for quando, but indicates a trend of specialization for ((n)a) hora que to express pontual
events, located in the past. The results also indicate the relevance of this type of analysis for understanding the
causes underlying to grammaticalization of conjunctions.
KEYWORDS: Grammaticalization; Temporal adverbial clause; Conjunctive phrase.
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150
(Inter)subjetivização no domínio da modalidade: o processo de
gramaticalização das construções modais ter que + V2 e dever + V2
Patrícia Fabiane Amaral da CUNHA LACERDA93
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar a gramaticalização das construções modais ter que + V2 e
dever + V2, buscando determinar em que medida revelariam um processo de expansão semântico-pragmática no
qual se observa a instanciação de significados epistêmicos a partir de uma significação primariamente deôntica.
Assumimos aqui a gramaticalização enquanto processo de (inter)subjetivização, já que defendemos um modelo
de mudança que nos explique como os interlocutores interagem, construindo seus argumentos e demonstrando
sua avaliação acerca das proposições que produzem (TRAUGOTT, 1995, 2010; TRAUGOTT E DASHER,
2005). Também adotamos a perspectiva da “gramaticalização de construções” (TRAUGOTT, 2003, 2009), uma
vez que partimos do princípio de que a gramaticalização envolveria a mudança construção > gramática. E,
considerando que a análise da frequência de uso é um subsídio importante para atestar processos de
gramaticalização (VITRAL, 2006; BYBEE, 2003), realizamos uma pesquisa pancrônica, que considerou a
distribuição das construções analisadas desde o século XIII até o português contemporâneo. Como pudemos
comprovar em relação à construção ter que + V2, houve o desenvolvimento de usos mais subjetivos e
epistêmicos a partir de um uso menos subjetivo. Já no processo de mudança da construção dever + V2, chegouse também a um uso [+ intersubjetivo].
PALAVRAS-CHAVE: Gramaticalização; (Inter)subjetivização; Gramaticalização de construções; Modalização.
Introdução
O presente trabalho tem como objetivo analisar a gramaticalização das construções
modais ter que + V2 e dever + V2 na língua portuguesa, procurando delimitar em que medida
revelariam um processo de expansão semântico-pragmática no qual se observa a instanciação
de significados epistêmicos a partir de uma significação primariamente deôntica, caracterizada
pela noção de obrigatoriedade.
Assumimos aqui a gramaticalização enquanto processo de (inter)subjetivização, já que
defendemos um modelo de mudança que nos explique como os interlocutores interagem,
construindo seus argumentos e demonstrando sua avaliação acerca das proposições que
produzem (TRAUGOTT, 1995, 2010; TRAUGOTT E DASHER, 2005). Também adotamos a
perspectiva da “gramaticalização de construções” (TRAUGOTT, 2003, 2009), uma vez que
partimos do princípio de que a gramaticalização envolveria a mudança construção > gramática.
Portanto, consideramos que é a construção inteira – e não apenas o significado lexical de um
item – que é precursor do sentido gramatical. No caso das construções analisadas, trabalhamos
com a hipótese de que os significados modais, que inicialmente estariam relacionados a um
valor deôntico, caminhariam em uma direção crescente de orientação para os falantes.
Considerando que a análise da frequência de uso é um subsídio importante para atestar
processos de gramaticalização (VITRAL, 2006; BYBEE, 2003), realizamos uma pesquisa
pancrônica, que considerou a distribuição das construções analisadas desde o século XIII até o
português contemporâneo. Os dados sincrônicos foram coletados em dois corpora, a saber: o
corpus do projeto “Mineirês: a construção de um dialeto”, constituído pela Profa. Jânia Martins
Ramos, na Universidade Federal de Minas Gerais, e o corpus do projeto “PEUL - Programa de
Estudos sobre o Uso da Língua”. Já os dados diacrônicos foram retirados do corpus do projeto
“CIPM – Corpus Informatizado do Português Medieval” e do “Corpus Histórico do Português
Tycho Brahe”.
93
UFJF/Faculdade de Letras. Professora do Programa de Pós-graduação em Linguística. Juiz de Fora, Minas
Gerais, Brasil. CEP: 36036-900. [email protected]
151
Conforme demonstraremos, a análise da frequência permite estabelecer quais são os
diferentes usos das construções modais ter que + V2 e dever + V2 e delimitar pontualmente de
que maneira o cline94 de mudança [deôntico] > [epistêmico] seria instanciado. A partir da
realização de uma pesquisa pancrônica, que considerou a distribuição das construções modais
ter que + V2 e dever + V2 desde o século XIII até o português contemporâneo, buscamos
comprovar, então, que seus diferentes usos revelariam o cline de gramaticalização [- subjetivo]
> [+ subjetivo].
A fim de cumprir os objetivos apontados acima, primeiramente discutiremos o aporte
teórico que fundamenta este trabalho. Posteriormente, trataremos pontualmente da noção de
modalização, procurando estabelecer em que consistem a modalização deôntica e a
modalização epistêmica. Em um terceiro momento, discutiremos os métodos e os
procedimentos que subsidiaram a análise dos dados e promoveremos a descrição dos corpora
sincrônicos e diacrônicos que foram levantados nesta pesquisa. Por fim, nos deteremos na
análise dos dados a fim de comprovar de que maneira se observa, nas construções modais ter
que+V2 e dever+V2, a instanciação de significados epistêmicos a partir de uma significação
primariamente deôntica, caracterizada pela noção de obrigatoriedade.
Gramaticalização: algumas discussões acerca do enquadramento teórico adotado
A noção de gramaticalização foi formalmente estabelecida a partir do trabalho
fundador de Meillet (1912), o qual estabelece que a mudança se daria a partir do cline
[lexical] > [gramatical], já que haveria a passagem de uma palavra autônoma para um
elemento com conteúdo gramatical. A partir do trabalho de Heine et al. (1991), a
gramaticalização passou a ser concebida também como sendo a mudança em que um item
gramatical poderia se tornar ainda mais [+ gramatical] ao longo do tempo. A partir dessa
perspectiva centrada na forma – e não no uso –, foram estabelecidas várias propostas de cline
que se preocupam primordialmente em compreender de que maneira os itens linguísticos
passariam por processos de mudança. Um dos clines de unidirecionalidade mais clássicos é o
proposto por Hopper e Traugott (1993, p. 7): item lexical > item gramatical > clítico > afixo.
Por outro lado, adotando uma perspectiva nitidamente centrada no uso, Traugott
(1995) propõe que a gramaticalização seja concebida como um processo de subjetivização,
segundo o qual ocorreriam processos de mudança semântico-pragmáticos através dos quais os
significados se tornariam cada vez mais baseados nas crenças e atitudes dos falantes acerca da
proposição. A autora considera que a subjetivização seria um processo gradiente a partir do
qual as construções – que primeiro expressam significados concretos/lexicais/objetivos –
passariam, a partir da reiteração de seu padrão de uso, a indicar funções
abstratas/pragmáticas/interpessoais baseadas na crença dos falantes. Sob essa perspectiva, a
gramaticalização poderia ser compreendida como um processo de “reanálise pragmática”
(TRAUGOTT, 1995, p. 36). Ainda segundo a autora, a subjetivização estaria presente, até
mesmo, em estágios iniciais do processo de gramaticalização e seria decorrente da
necessidade que têm os falantes de expor sua perspectiva acerca do que é dito.
Em trabalhos posteriores, Traugott e Dasher (2005) e Traugott (2010) assumem que,
além da subjetivização, a gramaticalização também pode se estabelecer a partir de um
processo de intersubjetivização. Segundo essa perspectiva, os significados seriam codificados
94
Como destacam Hopper & Traugott (1993, p. 6-7), no processo de gramaticalização, as formas não mudam
abruptamente de uma categoria para outra. Na verdade, o processo se realizaria em série (em camadas) e
gradualmente. Os clines seriam, portanto, as camadas que marcam o processo de gramaticalização, indicando
suas transições.
152
pelo falante de acordo com a imagem ou self do interlocutor. Portanto, a intersubjetivização,
que é – por sua própria natureza, interpessoal – envolve a atenção do locutor em relação ao
interlocutor, considerando-o um participante do evento de fala. Vemos, portanto, que a
gramaticalização compreendida como um processo de intersubjetivização envolve a noção de
face95, uma vez que o falante, ao construir os enunciados em sua elocução, acabaria por
proteger a sua “imagem social” e a dos interlocutores durante o evento de fala, evitando que
algo possa ser tomado como invasivo ou comprometedor. Considerando que a
gramaticalização pode se estabelecer a partir de um processo de (inter)subjetivização,
Traugott (2010) propõe o seguinte cline de mudança linguística: [- subjetivo] > [+ subjetivo]
> [intersubjetivo].
Neste trabalho, também nos pautamos na perspectiva da “gramaticalização de
construções”, tal como defendida por Traugott (2003, 2009). A autora, nesse sentido, assume
uma interface com a gramática das construções (CROFT, 2001; CROFT & CRUISE, 2004;
GOLDBERG, 1995, 2006), destacando, entretanto, que, enquanto a gramaticalização tem sido
estudada primordialmente do ponto de vista diacrônico, a gramática das construções tem se
dedicado fundamentalmente a pesquisas de caráter sincrônico. Com base na interface com a
gramática das construções, Traugott (2003, 2009) considera que a unidade básica de análise é
a construção, formada pelo par forma/sentido. Além disso, ao se basear no “princípio da fraca
composicionalidade”, parte do princípio de o que significado de uma construção não pode ser
depreendido pela soma de suas partes individualmente. Portanto, a “gramaticalização de
construções” compreenderia “a mudança pela qual, em certos contextos linguísticos, os
falantes usam (partes de) uma construção com uma função gramatical ou designam uma nova
função gramatical para uma construção gramatical já existente” (TRAUGOTT, 2009, p. 91).
Ainda segundo a autora, a perspectiva da “gramaticalização de construções” pode trazer as
seguintes contribuições: a) mudança entendida como um processo dinâmico, uma vez que a
emergência de novos padrões construcionais se dá através do tempo e dos falantes, ou seja, o
uso reiterado de padrões construcionais levaria à sua gramaticalização); b) alinhamento entre
padrões de uso e padrões gramaticais via significado → forma; c) incorporação das microconstruções em uma rede, o que levaria a pensar em redes construcionais estabelecidas a
partir de processos de gramaticalização integrados e interligados (TRAUGOTT, 2009, p. 99).
Com base no aporte teórico discutido acima, consideramos que, nas construções
modais ter que + V2 e dever + V2, os significados modais, que inicialmente estariam
relacionados a um valor deôntico, caminhariam em uma direção crescente de orientação para
os falantes, passando a expressar sentidos relacionados a um valor epistêmico. E, nesse
processo de mudança, estaria envolvido o cline de gramaticalização [- subjetivo] > [+
subjetivo] > [intersubjetivo].
A modalização epistêmica e a noção de (inter)subjetivização
A argumentação e a persuasão são elementos que carregam, mesmo que
implicitamente, a intencionalidade do indivíduo envolvido no processo de comunicação,
sendo, por isso, importante destacar que o ato de argumentar representa a orientação planejada
de um discurso, no sentido de conduzir a uma determinada conclusão, uma vez que “a todo e
qualquer discurso subjaz uma ideologia” (KOCH, 1987, p. 19) Assim, podemos observar que
95
O falante buscaria resguardar a imagem dos interlocutores, evitando aquilo que possa ser tomado como
invasivo ou comprometedor. A essa imagem atribui-se o nome de face (GOFFMAN, 1970). O conceito de face
foi caracterizado por Goffman (1970) de acordo com as necessidades e desejos de cada interactante de uma
conversação. Para o autor, quando se entra em contato com o outro, tem-se a preocupação de preservar a autoimagem pública que cada interlocutor possui.
153
as manifestações linguísticas são iniciativas que se baseiam na intenção de persuadir, uma vez
que, por trás de todos os discursos, existe sempre uma intencionalidade determinada.
Nesse sentido, a modalização discursiva está relacionada diretamente a essa
elaboração das ideias, constituindo um processo de seleção de recursos linguísticos a serem
utilizados na construção de um texto oral ou escrito, a fim de que o mesmo transmita a
ideologia de quem o elabora e, além disso, alcance o objetivo de persuadir o leitor ou ouvinte da
referida mensagem. Esses pressupostos vão ao encontro do que afirma Koch (1987, p. 138):
“[...] consideram-se modalizadores todos os elementos linguísticos diretamente
ligados ao evento de produção do enunciado e que funcionam como indicadores
das intenções, sentimentos e atitudes do locutor com relação ao seu discurso. Estes
elementos caracterizam os tipos de atos de fala que deseja desempenhar, revelam
maior ou menor grau de engajamento do falante com relação ao conteúdo
proposicional veiculado, apontam as conclusões para as quais os diversos
enunciados podem servir de argumento, selecionam os encadeamentos capazes de
continuá-los, dão vida, enfim, aos diversos personagens cujas vozes se fazem ouvir
no interior de cada discurso” (KOCH, 1987, p. 138).
Como destaca Neves (2000, p. 159-162), “necessidade” e “possibilidade” são as
noções que se colocam tradicionalmente na subcategorização da modalização. E, sob essa
perspectiva, a autora diferencia cinco diferentes tipos de modalidade, a saber:
a) modalidade alética ou lógica, que está relacionada às condições de verdade que envolvem a
proposição (ex.: A água pode ser encontrada em estado sólido, líquido ou gasoso);
b) modalidade bulomaica ou volitiva, que diz respeito à necessidade ou à possibilidade
relacionadas aos desejos do falante (ex.: Desta vez, o titulo deve ser nosso);
c) modalidade disposicional ou habilitativa, que se refere à disposição, à habilitação ou à
capacitação para que algo aconteça (ex.: A cirurgia foi realizada. O paciente, agora, pode
andar);
d) modalidade deôntica, que está relacionada à instanciação de obrigações e permissões (ex.:
Você não deve viajar agora. Esta é a minha decisão!);
e) modalidade epistêmica, que indica o julgamento do falante diante do mundo, tendo como
característica o seu (des)comprometimento pessoal em relação à verdade da proposição (ex.:
É provável que haja funcionários bem treinados no escalão inferior da gestão).
Segundo Finegan (1995), haveria uma relação estrita entre a noção de subjetividade e
modalização epistêmica. A respeito dessa relação, o autor reforça que a modalização
epistêmica seria talvez a ocorrência mais explorada na manifestação da subjetividade do
falante. Quando falamos em modalidade epistêmica, estaríamos falando, portanto, da atitude
do falante em relação ao que ele diz.
Portanto, como defendemos neste trabalho, a (inter)subjetivização na gramaticalização
consistiria no desenvolvimento de expressão gramaticalmente identificável que indicaria as
crenças dos falantes. A noção de (inter)subjetivização estaria, nesse sentido, intimamente
relacionada à modalização epistêmica, uma vez que haveria a emergência de novos padrões
construcionais – e sua consequente reiteração ao longo do tempo – a partir da perspectiva dos
participantes em situações reais de uso da língua.
Métodos e procedimentos de análise
Neste trabalho, assumimos a importância do levantamento da frequência de uso para
atestar/elucidar processos de gramaticalização (cf. BYBEE, 2003; VITRAL, 2006).
154
Segundo Vitral (2006, p. 149), é necessário o “desenvolvimento de uma metodologia
quantitativa específica que permita identificar processos de gramaticalização”. Para o autor,
se o item em análise estiver passando por um processo de gramaticalização, a tendência é: a)
que sua frequência de uso aumente; b) que a sua frequência quando em função gramatical
aumente; c) que a sua frequência quando em função lexical diminua. É importante destacar
aqui a postura formalista de Vitral (2006) em comparação à postura construcionista adotada
por Bybee (2003). Mesmo com esse enfoque formalista, Vitral (2006) consegue chamar a
atenção para o papel da frequência de uso nos estudos sobre gramaticalização.
Também de acordo com Bybee (2003), o aumento na frequência de uso seria um fator
que contribui para atestar a ocorrência de processos de gramaticalização. Em suas postulações
acerca do papel da frequência na gramaticalização, a autora adota uma perspectiva
construcionista. Ao ir de encontro à visão tradicional, que é representada pelos clines [lexical]
> [gramatical] e [gramatical] > [+ gramatical], Bybee (2003) defende que é uma construção
com itens lexicais que se torna gramaticalizada, e não apenas itens lexicais ou gramaticais.
Ao considerar a preponderância da frequência na análise de processos de
gramaticalização, a autora se baseia em Haiman (1994), para quem o processo de
gramaticalização é concebido como um processo de ritualização baseado na repetição e
constituído pelas seguintes fases: (i) a habituação, (ii) a automatização, (iii) a redução da
forma e (iv) a emancipação. O primeiro aspecto resultaria da repetição e da redução do
sentido que estaria relacionada a aspectos culturais, caracterizando, portanto, o desbotamento
semântico96. Já o segundo aspecto, envolveria a reanálise97 de uma sequência de unidades
como sendo uma única unidade, isto é, cada unidade particular perderia seu sentido
individual, caracterizando, portanto, a visão construcional baseada na teoria da fraca
composicionalidade. Já a redução da forma ocorreria devido à repetição, e tal processo estaria
relacionado à reanálise de uma sequência de unidades como sendo uma única unidade. E,
finalmente, a emancipação envolveria o reconhecimento da gramaticalização, em que os itens
envolvidos seriam considerados unidades construcionais.
Partindo das postulações de Haiman (1994) sobre ritualização, Bybee (2003, p.604)
advoga que a repetição frequente desempenharia um papel crucial no processo de
gramaticalização e conclui que: (a) a frequência de uso leva ao enfraquecimento da força
semântica dos itens pela habituação; (b) as mudanças fonológicas de redução e fusão nas
construções gramaticalizadas são condicionadas por sua alta frequência de uso; (c) o aumento
da frequência leva à interpretação dos itens que coocorrem como uma unidade construcional,
e não mais como itens isolados; (d) a perda da transparência semântica faz com que a
construção gramaticalizada apresente uma expansão funcional, ocorrendo em novos contextos
a partir de novas associações pragmáticas, o que, para a autora, advém da autonomia de
construções em gramaticalização e da opacidade crescente de estruturas internas.
Neste trabalho, também assumimos a relevância do levantamento da frequência de uso
no estudo dos processos de gramaticalização. É nossa intenção, portanto, comprovar que teria
havido, ao longo do tempo, um aumento na frequência dos usos [+ (inter)subjetivos] das
construções modais ter que+V2 e dever+V2.
96
Segundo Bybee (2003, p. 604-605), um dos mais evidentes processos de mudança semântica em
gramaticalização é o bleaching ou generalização do sentido, já que ocorreria perda de traços específicos de
significado. Tal fato implicaria a ampliação do contexto no qual uma dada construção pode ocorrer. Dessa
forma, a autora percebe essa generalização como um continuum, uma vez que os itens gramaticalizados sempre
se tornariam mais gerais e mais abstratos em relação ao seu significado, passando a atuar em novos contextos e
tendo sua frequência consideravelmente aumentada.
97
A reanálise se dá em um estágio mais avançado da gramaticalização. Se certas formas encontram-se em
processo de gramaticalização, elas são passíveis de serem reanalisadas, podendo haver mudança de categoria,
sem que, necessariamente, ocorra mudança de forma.
155
A fim de confirmar esse percurso de mudança, realizamos uma pesquisa pancrônica,
que considerou o levantamento de dados tanto em corpora sincrônicos como em corpora
diacrônicos. A fim de atestar os usos contemporâneos das construções modais ter que + V2 e
dever + V2, trabalhamos com dois corpora sincrônicos, a saber: a) o corpus do “Projeto
Mineirês: a construção de um dialeto”, constituído pela Profa. Jânia Martins Ramos, na
Universidade Federal de Minas Gerais 98; b) o corpus do PEUL/RJ (Programa de Estudos
sobre o Uso da Língua)99. Como critério para a comparação entre esses dois corpora,
baseamo-nos no mesmo gênero discursivo: entrevista. Desse modo, procuramos minimizar
possíveis enviesamentos no levantamento da frequência. Ainda com a preocupação de manter
a uniformidade no tratamento dos dados, foram analisadas 120.000 palavras em cada corpus.
Já em relação à análise diacrônica, tomamos como base textos produzidos entre os séculos
XIII e XIX, os quais se encontram publicados no CIPM – Corpus Informatizado do Português
Medieval100 – e no corpus eletrônico do projeto Tycho Brahe101. A fim de também manter
uma uniformidade na análise dos dados, optamos por analisar 100.000 palavras em cada
século. Apresentamos, no quadro a seguir, a distribuição dos corpora diacrônicos analisados:
Século analisado
Século XIII
Século XIV
Século XV
Século XVI
Século XVII
Composição do corpus por século
- Notícia do Torto (1214)
- Textos Notariais (entre 1243 e 1274)
- Foros de Garvão (entre 1267 e 1280)
- Foro Real (1280)
- Dos Costumes de Santarém (1294)
- Crónica de Afonso X in Crónica Geral de Espanha de 1344
- Dos Costumes de Santarém (1340/1360)
- Foros de Garvão (século XIV - sd)
- Textos Notariais (entre 1304 e 1397)
- Livro da Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela (século
XV - sd)
- Castelo Perigoso (século XV - sd)
- Orto do Esposo (século XV - sd)
- Crónica do Conde D. Pedro de Meneses (século XV - sd)
- Monarchia Lusitana (1584)
- Da Monarquia Lusitana (1569)
-Poesia e Pintura (1597)
- Gazeta (1541)
- A vida de Frei Bertolameu dos Mártires (1556)
- Nova Floresta (1644)
- Cartas de Alexandre de Gusmão (1695)
- Cartas de Antonio Vieira (1608)
- Tácito Português (1608)
- Cartas Familiares (1608)
Número
de
palavras analisado
por corpus em
cada século
100.000 palavras
100.000 palavras
100.000 palavras
100.000 palavras
100.000 palavras
98
Disponível em http://www.letras.ufmg.br/mineires/.
Disponível em http://www.letras.ufrj.br/peul/.
100
O Corpus Informatizado do Português Medieval disponibiliza textos produzidos entre os séculos XII e XVI e
pode ser acessado em http://cipm.fcsh.unl.pt/.
101
O Corpus Histórico do Português Tycho Brahe é um corpus eletrônico anotado, composto de textos em
português escritos por autores nascidos entre 1380 e 1845. Este corpus pode ser acessado eletronicamente em
http://www.tycho.iel.unicamp.br/t~tycho/.
99
156
Século XVIII
Século XIX
- Cartas, Cavaleiro de Oliveira (1702)
- Cartas de Garrett (1799)
- Verdadeiro Método de Estudar (1713)
- Cartas do Abade Antonio da Costa (1714)
- Obras Completas de Correia Garção (1724)
100.000 palavras
- Cartas de Eça de Queirós e Oliveira Martins (1845)
- Atas dos Brasileiros (1830)
- Cartas a Emília (1836)
- Memórias do Marquês da Fronteira e d'Alorna (1802)
- Maria Moisés (1826)
100.000 palavras
Quadro 1 – Corpora diacrônicos analisados por século
Tanto nos corpora sincrônicos como nos corpora diacrônicos, foi encontrado um
número bastante significativo das construções modais ter que+V2 e dever+V2. Como
podemos observar na tabela abaixo, enquanto houve um aumento na frequência de uso da
construção dever+V2, houve, por outro lado, um decréscimo na frequência de uso da
construção ter que+V2 ao longo do tempo.
Construção ter que + V2
Construção dever + V2
Total
Corpora sincrônicos
N.º
380
%
89.62%
N.º
102
%
3.96%
482
Corpora diacrônicos
44
10.38%
2477
96.04%
2527
Total
424
2579
3003
Tabela 1 – Levantamento geral da frequência de uso das construções modais ter que +
V2 e dever + V2 nos corpora analisados
Nas duas próximas seções, nos deteremos pontualmente na análise dos dados. Será
nossa intenção identificar os diferentes usos de cada uma das construções modais aqui
estudadas, levantando sua frequência de uso século a século. Procuraremos, portanto,
evidenciar em que medida as construções ter que+V2 e dever + V2 teriam desenvolvido usos
[+ (inter)subjetivos] ao longo do tempo.
A gramaticalização da construção modal ter que + V2
Em relação à construção modal ter que + V2, identificamos a existência de três
diferentes usos nos corpora sincrônicos, os quais intitulamos de: a) marcador deôntico com
obrigação instanciada por agente externo; b) marcador deôntico com obrigação instanciada
pelo falante para si mesmo; c) marcador epistêmico de avaliação. A seguir, descreveremos e
exemplificaremos cada um desses usos:
I - Marcador deôntico com obrigação instanciada por agente externo → uso [- subjetivo]
Neste caso, a construção ter que + V2 apresentaria sentido deôntico, indicando uma
obrigação instanciada por um agente externo. Através desse padrão construcional, o falante
reportaria alguma norma e/ou regra que foi imposta para si ou para outrem em determinada
situação. Como veremos, em comparação com os demais usos apresentados adiante, este uso teria
um caráter [- subjetivo]. Vejamos dois exemplos de obrigação instanciada por agente externo:
157
(1)
Ficava no bar bebendo direto. Com isso, o tempo, a gente foi vendo que aquilo ali era
uma bagunça, entendeu? E eu quis saí logo, o dono do edifício não deixou eu saí.
E: Mas, por quê?
F: Falou que eu tinha que pagá uma multa contratual de quase cinco mil reais [caramba!].
Eu falei, como? Eu fui assaltada (Corpus do Grupo PEUL)
Em (1), o falante indica que o dono do edifício em que morava – que seria, nesse caso, o
agente externo – teria estabelecido como obrigação o pagamento de uma multa contratual.
II - Marcador deôntico com obrigação instanciada pelo falante para si mesmo → uso [+ subjetivo]
Este uso seria [+ subjetivo] em relação ao anterior: embora também tenhamos aqui
presente a noção de obrigatoriedade, o próprio falante é o responsável por instanciar para si
mesmo aquilo que considera importante. O exemplo (2) exemplifica esse uso:
(2)
E eu comecei a trabalhá e eu percebi que eu tinha que fazer de tudo pra mi enturmá.
Entendeu? Tanto com a sociedade, na loja, eu tinha que me abrir, eu tinha que seu uma
pessoa mais... entendeu? (Corpus do Projeto Mineirês)
Em (2), o falante indica que ele mesmo julgou necessário se “enturmar” um pouco
mais em seu ambiente de trabalho, ou seja, o próprio falante, diante de uma avaliação da
realidade, expressa suas crenças e atitudes.
III - Marcador epistêmico de avaliação subjetiva → uso [+ subjetivo]
Já neste caso, a noção de obrigatoridade/necessidade não se encontra presente. O que
vemos aqui é o caráter avaliativo do discurso do falante diante da realidade que percebe.
Observamos, portanto, que este uso é mais subjetivo ainda em relação aos dois usos
apresentados anteriormente, uma vez que o falante empregaria a construção ter que + V2 para
indicar sua avaliação subjetiva acerca da importância da situação envolvida na proposição,
baseando-se, desse modo, em evidência subjetiva. Vejamos um exemplo:
(3)
Eu então... eh... eu acho que isso é meio imaturo da parte das empresas, acho isso
errado. Tem que estabelecê um limite, senão o pessoal, se você dexá, o pessoal vai
chegá... vai ficá um dia sem trabalhá e o outro dia, trabalhá vinte e quatro horas, num é
isso, entendeu? (Corpus do Grupo PEUL)
Em (3), o falante emprega a construção ter que + V2 para indicar que, na sua opinião,
as empresas precisam ser mais rígidas em relação aos funcionários. Portanto, o falante, com
base na realidade observada, avalia subjetivamente a situação manifestada na proposição.
Após descrever cada um dos três usos encontrados nos corpora sincrônicos analisados,
apresentamos abaixo o levantamento de frequência. Como podemos observar, das 380
ocorrências da construção ter que + V2 atestadas, apenas 58 representam o marcador deôntico
com obrigação instanciada por agente externo. Em segundo lugar no levantamento de
frequência, se encontra o uso da construção como marcador deôntico com obrigação
instanciada pelo falante para si mesmo. E, com uma nítida representatividade – 57,63% do
total –, a construção ter que + V2 foi encontrada como marcador epistêmico de avaliação
subjetiva. Esse resultado indica que a gramaticalização dos usos [+ subjetivos] está bastante
avançada, uma vez que os falantes tendem a empregar, reiteradamente, a construção modal ter
que + V2 em contextos que envolvem suas crenças e julgamentos pessoais.
158
Marcador deôntico com
obrigação instanciada por
agente externo
Corpus
Projeto
“Mineirês
Marcador epistêmico
de avaliação subjetiva
N.º
%
Total
%
22
18.03%
44
36.07%
56
45.90%
122
36
13.95%
59
22.87%
163
63.18%
258
do
Corpus
do
Grupo PEUL
Total
N.º
Marcador deôntico com
obrigação instanciada
pelo falante para si
mesmo
N.º
%
58
15.26%
103
27.11%
219
57.63%
380
Tabela 2 – Levantamento dos usos da construção modal “ter que + V2” nos corpora sincrônicos
A fim de comprovar como o cline de mudança [- subjetivo] > [+ subjetivo] estaria
presente na gramaticalização da construção ter que + V2, apresentamos, a seguir, os
resultados obtidos na análise dos corpora diacrônicos que foram analisados.
Marcador deôntico com
obrigação instanciada por
agente externo
N.º
%
Marcador deôntico com
obrigação instanciada
pelo falante para si
mesmo
N.º
%
Marcador epistêmico
de avaliação subjetiva
N.º
%
Total
0
0
0
0
0
0
0
2
100%
0
0
0
0
2
3
42.86%
0
0
4
57.14%
7
0
0
0
0
1
100%
1
3
16.67%
13
72.22%
2
11.11%
18
1
9.09%
7
63.64%
3
27.27%
11
1
10
22.73%
20%
0
20
45.45%
0
4
14
31.82%
80%
5
Século XIII
Século XIV
Século XV
Século XVI
Século XVII
Século XVIII
Século XIX
Total
44
Tabela 3 – Levantamento dos usos da construção modal “ter que + V2” nos corpora diacrônicos
É importante ressaltar aqui que o corpus diacrônico analisado é apenas um recorte
bastante parcial do uso da língua nos séculos anteriores. Portanto, temos consciência de que a
análise diacrônica realizada não pode trazer conclusões definitivas acerca das construções
estudadas neste trabalho. A nossa intenção é somente buscar, no passado, indícios que possam
esclarecer, um pouco mais, os usos sincrônicos que foram atestados. Curiosamente, no século
XIV, já encontramos 04 ocorrências da construção como marcador epistêmico de avaliação
subjetiva. Já em relação ao uso da construção ter que + V2 como marcador deôntico com
obrigação instanciada pelo falante para si mesmo, as primeiras ocorrências foram encontradas
apenas no século XVII. Como dissemos anteriormente, estes resultados não são conclusivos, e
servem apenas para comprovar que os usos mais subjetivos da construção modal analisada
não teriam sido instanciados tardiamente na língua.
159
A gramaticalização da construção modal dever + V2
Em relação à construção modal dever + V2, foram identificados quatro diferentes usos
nos corpora sincrônicos, os quais intitulamos aqui de: a) marcador deôntico com obrigação
instanciada por agente externo; b) marcador deôntico com obrigação instanciada pelo falante
para si mesmo; c) marcador epistêmico de avaliação subjetiva; d) marcador epistêmico de
suposição. A seguir, descreveremos e exemplificaremos cada um desses usos:
I - Marcador deôntico com obrigação instanciada por agente externo → uso [- subjetivo]
Assim como ocorre com a construção ter que + V2, a construção dever + V2 também
apresenta valor deôntico e é empregada pelo falante para sinalizar uma obrigação instanciada
por um agente externo. Também aqui, em comparação com os demais usos apresentados
abaixo, haveria um caráter [- subjetivo]. Vejamos um exemplo:
(4)
“a Zulmira num pode mais fazer isso, você deve terminá, eu já disse.” – aí eu respondo :
“a Zulmira faz porque ela quer... porque eu já disse à Zulmira que ela era a melhor
tesoureira e que ela ficaria só como tesoureira... porque na festa do fim do ano ...
(Corpus do Grupo PEUL)
Em (4), o falante está reportando uma situação que teria ocorrido no passado. Através
do discurso direto, ele indica uma obrigação que teria sido instanciada por um agente externo
para uma pessoa cujo nome é Zulmira. Ou seja, através da construção modal dever + V2, o
falante destaca que seria obrigação de Zulmira fazer aquilo que lhe está sendo solicitado.
II - Marcador deôntico com obrigação instanciada pelo falante para si mesmo → uso [+
subjetivo]
Também aqui este uso seria [+ subjetivo] em relação ao anterior, uma vez que o
próprio falante julga, com base em suas crenças pessoais, aquilo que considera ser ou não sua
obrigação. O exemplo (5) ilustra esse uso:
(5)
A filha do meu primo me chama de tio, né? Tem dezessete, dezoito anos, “Por que tio
Vasquinho?” Falei: “Porque eu não participei da... do presente, então eu acho que não
devo assinar.” “Ah, mas não tem nada a ver!” Eu falei: “Tem sim, eu não vou assiná.”
(Corpus do Grupo PEUL)
Neste enunciado, o falante emprega a construção modal dever + V2 com a intenção de
sinalizar, com base em sua percepção da realidade, que não seria sua obrigação assinar algo
que lhe foi exigido por outrem.
III - Marcador epistêmico de avaliação subjetiva → uso [+ subjetivo]
Este uso da construção modal dever + V2 – assim como ocorre com a construção ter
que + V2 – apresenta a avaliação subjetiva que o falante realiza em relação ao conteúdo
proposicional. Este uso seria também [+ subjetivo], uma vez que se baseia nas crenças e
atitudes do falante acerca da realidade. Observemos como a avaliação subjetiva do falante se
encontra claramente expressa no enunciado (6):
160
(6)
Acho que a NP fez muito bem, que ela mostrô ser uma filha de Arceburgo de
verdade, por que se todas as pessoas que forem embora, que ainda vivem com seus
setenta, setenta e cinco, oitenta anos, que possa se lembrar. Que possa fazer alguma
coisa pra cidade, devia fazer. (Corpus do Projeto Mineirês)
Neste exemplo, fica claro que o falante avalia subjetivamente a realidade. Ao
empregar a construção modal dever + V2, ele expressa a opinião de que os moradores da
cidade de Arceburgo, sempre que possível e mesmo tendo se mudado, devem fazer algo para
melhorar o município. Temos, portanto, aqui um julgamento bastante particular e pessoal que
é emitido pelo falante em uma situação de interação.
IV - Marcador epistêmico de suposição → uso [+ intersubjetivo]
Neste caso, os falantes empregariam a construção modal dever + V2 com a intenção
de não se comprometerem com a verdade daquilo que está sendo dito e protegerem sua face
diante do(s) interlocutor(es): em vez de afirmar categoricamente determinada informação, o
falante opta por apresentá-la como uma suposição, que é passível, portanto, de confirmação
ou não. Vejamos um exemplo deste uso:
(7)
E já estava mais ou menos com catorze quinze anos. A NP deve ter onze meses
menos que eu. Então a gente ficava sempre juntas. (Corpus do Projeto Mineirês)
Em (7), o falante, em vez de afirmar a idade que NP possui, opta por tratar a
informação como uma suposição. Desse modo, visando a proteger sua face diante de seus
interlocutores e, consequentemente, a manter a imagem social que detém, o falante projeta a
informação no campo da incerteza.
Também aqui, após descrever cada um dos usos encontrados nos corpora sincrônicos
analisados, apresentamos o levantamento de frequência. Como podemos verificar abaixo, o
uso da construção dever + V2 como marcador epistêmico de suposição é o que apresenta
maior número de ocorrências – 54 ocorrências das 102 que foram atestadas no total. Esse
resultado aponta que o uso [+ intersubjetivo] da construção modal em questão já se encontra
em avançado processo de gramaticalização. O uso da construção como marcador epistêmico
de avaliação subjetiva, que seria [+ subjetivo], também apresentou uma alta frequência, já que
foram atestadas 39 ocorrências. Já para os usos como marcador deôntico com obrigação
instanciada pelo falante para si mesmo e marcador deôntico com obrigação instanciada por
agente externo foram encontradas, respectivamente, 06 e 03 ocorrências.
Marcador deôntico
com
obrigação
instanciada
por
agente externo
N.º
%
Marcador deôntico
com
obrigação
instanciada
pelo
falante para si
mesmo
N.º
%
Marcador
epistêmico
avaliação
subjetiva
Corpus do
Projeto
“Mineirês
0
0
0
0
19
48.72
%
20
51.28%
39
Corpus do
Grupo
PEUL
3
4.76%
6
9.52%
20
31.75
%
34
53.97%
63
de
Marcador
epistêmico
suposição
N.º
%
N.º
%
Total
de
Total
161
3
2.94%
6
5.88%
39
38.24%
54
52.94%
102
Tabela 4 – Levantamento dos usos da construção modal “dever + V2” nos corpora sincrônicos
Com a intenção de comprovar que o cline de mudança [- subjetivo] > [+
(inter)subjetivo] estaria presente na gramaticalização da construção dever + V2,
apresentamos, a seguir, os resultados obtidos na análise dos corpora diacrônicos.
Marcador deôntico
com
obrigação
instanciada
por
agente externo
N.º
%
Marcador deôntico
com
obrigação
instanciada
pelo
falante para si
mesmo
N.º
%
Marcador
epistêmico
avaliação
subjetiva
N.º
%
N.º
%
385
100%
0
0
0
0
0
0
385
519
100%
0
0
0
0
0
0
519
577
100%
0
0
0
0
0
0
577
111
100%
0
0
0
0
0
0
111
191
100%
0
0
0
0
0
0
191
477
85.79%
4
0.72%
75
13.49
%
0
0
556
50
36.23%
13
9.42%
73
52.90
%
2
1.45%
138
de
Marcador
epistêmico
suposição
Total
de
Século XIII
Século XIV
Século XV
Século XVI
Século XVII
Século
XVIII
Século XIX
Total
2310
93.26%
17
0.69%
148
5.97%
2
0.08%
2477
Tabela 5 – Levantamento dos usos da construção modal “dever + V2” nos corpora diacrônicos
Os resultados encontrados revelam que o uso da construção modal dever + V2 como
marcador epistêmico de suposição – embora em avançado processo de gramaticalização –
seria recente, uma vez que as primeiras ocorrências foram atestadas somente a partir do século
XIX. Também seriam recentes os usos da construção como marcador epistêmico de avaliação
subjetiva e marcador deôntico com obrigação instanciada pelo falante para si mesmo, uma vez
que não foram encontradas ocorrências antes do século XVIII. Por outro lado, o uso menos
subjetivo da construção modal dever + V2 seria bastante antigo, visto que foram encontradas
385 ocorrências já no século XIII. Conforme já apontado anteriormente, é fundamental
destacar que o corpus diacrônico analisado é somente um recorte bastante parcial do uso da
língua no passado. Entretanto, no caso da construção dever + V2, os resultados se mostraram
bastante conclusivos, permitindo atestar o cline de mudança [- subjetivo] > [+ subjetivo] > [+
intersubjetivo] no processo de gramaticalização.
Considerações finais
162
O presente trabalho buscou analisar a gramaticalização das construções modais ter que
+ V2 e dever + V2 na língua portuguesa, procurando verificar se revelariam o cline de
mudança [- subjetivo] > [+ subjetivo] > [+ intersubjetivo]. Como pudemos observar em
relação à construção ter que + V2, houve o desenvolvimento de usos mais subjetivos e
epistêmicos a partir de um uso menos subjetivo, caracterizado pela obrigatoriedade
instanciada por um agente externo. Já no processo de mudança da construção dever + V2,
chegou-se também a um uso [+ intersubjetivo]. Portanto, conforme verificamos, os
significados modais, que inicialmente estariam relacionados a um valor deôntico,
caminhariam em uma direção crescente de orientação para os falantes, passando a expressar
sentidos relacionados a um valor epistêmico.
Com base na análise empreendida neste trabalho, esperamos contribuir para
demonstrar que a gramaticalização, quando concebida a partir da perspectiva da
(inter)subjetivização, permite explicar como novas construções emergem a partir da
perspectiva que têm os falantes de codificar suas crenças e atitudes durante o processo de
interação (TRAUGOTT, 1995, 2010; TRAUGOTT E DASHER, 2005). Também assumiu um
papel importante neste trabalho a perspectiva da “gramaticalização de construções”. Quando
consideramos que a gramaticalização envolveria a mudança construção > gramática, partimos
do princípio de é a construção inteira, e não apenas o significado lexical de um item, que é
precursor do sentido gramatical.
(INTER)SUBJECTIFICATION IN THE DOMAIN OF MODALITY: THE PROCESS OF
GRAMMATICALIZATION OF THE MODAL CONSTRUCTIONS ‘TER QUE + V2’ E ‘DEVER + V2’
ABSTRACT: This work intends to analyse the grammaticalization of the modal constructions ter que + V2 and
dever + V2, seeking to determine how they reveal a process of semantic-pragmatic expansion, in which we
observe the emergence of epistemic meanings from an initial deontic meaning. In this work, we assume
grammaticalization as a process of (inter)subjectification since we are based on a model of language change
that can explain how speakers interact, constructing their arguments and demonstrating their evaluation of the
statements that they produce (TRAUGOTT, 1995, 2010; TRAUGOTT E DASHER, 2005). We are also based on
the perspective of grammaticalization of constructions (TRAUGOTT, 2003, 2009), since we consider that
grammaticalization involves the following change: construction > grammar. Considering the role of frequency
to explain processes of grammaticalization (VITRAL, 2006; BYBEE, 2003), we developed a panchronic
analysis that considered corpora between the 13th century and the contemporary Portuguese language. As we
could observe in the case of the construction ter que + V2, some subjective usages were developed from a less
subjective usage. And in the case of the construction dever + V2, we also found a [+ intersubjective] usage.
KEYWORDS: Grammaticalization; (Inter)subjectification; Grammaticalization of constructions; Modalization.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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VITRAL, L. O papel da frequência na identificação de processos de gramaticalização.
Scripta, vol. 9, n. 18, Belo Horizonte, 2006.
164
A natureza fluida da língua e o estudo do português: aproximações entre
gramaticalização e ensino
André Luiz RAUBER102
RESUMO: O caráter fluido da língua, marcado pelo processo natural de variação e mudança das formas e
funções de construções linguísticas, e sua repercussão no ensino da língua portuguesa constituem o tema deste
estudo. Apresentam-se propostas teórico-didáticas que consideram a língua em uso na modalidade escrita e em
contextos marcadamente formais. A base teórica segue princípios do funcionalismo europeu (HALLIDAY,
1978) e holandês (DIK, 1989), bem como trabalhos de funcionalistas brasileiros (CUNHA & TAVARES, 2007;
NEVES, 2001 [1990]). Dá-se ênfase a determinados fenômenos de variação categorial, vistos a partir do viés da
gramaticalização (HEINE, CLAUDI, HÜNNEMEYER, 1991; LIMA-HERNANDES, 2009), como, por
exemplo, a função textual assumida pelo item daí, a variação semântica e transitiva do verbo visar e a função
pronominal da expressão a gente. Objetiva-se, assim, apresentar sequências didáticas que tratem de fenômenos
de variação e mudança categorial, segundo a perspectiva de uma gramática emergente (HOPPER, 1991). As
propostas citadas sinalizam para a possibilidade de um tratamento pedagógico às questões que envolvem o
estudo da gramática da língua em uso, sem, com isso, desconsiderar as descrições da gramática padrão, mas
ampliando-as.
PALAVRAS-CHAVE: Funcionalismo; Gramaticalização; Ensino de língua portuguesa.
Introdução
A noção de língua adotada neste estudo ancora-se em pressupostos funcionalistas,
segundo os quais a linguagem é uma atividade de interação social (DIK, 1989) para suprir
determinados propósitos comunicativos. Nesse sentido, pressupõe-se uma dinâmica baseada
em princípios que consideram o contexto, os interlocutores, os fatores pragmáticos e
discursivos, determinantes das expressões verbais.
Ao observar situações reais do uso da língua, constatam-se variações categoriais de
um mesmo elemento linguístico que assume diferentes funções gramaticais a depender do uso
e do contexto em que é empregado, para cumprir determinada função comunicativa. Assim,
uma construção de valor mais lexical pode passar a desempenhar uma função mais
gramatical, ou mesmo uma construção de natureza já gramatical passa a desempenhar funções
mais gramaticais ainda (cf. BRINTON, TRAUGOTT, 2005).
Diante dessa concepção, cabe perguntar: em que medida o reconhecimento de que uma
mesma forma linguística pode desempenhar diferentes funções gramaticais é ativado dentro
dos domínios do ensino de língua portuguesa (doravante LP)? Se o que se espera, em
qualquer estágio de estudo da LP no contexto escolar, é o desenvolvimento de competências e
habilidades ligadas ao domínio da língua padrão, como aproximar variação e padrão? Enfim,
até que ponto as descobertas em torno dos fenômenos de variação e mudança da língua
chegam ao contexto de ensino na educação básica? Como chegam e de que maneira
contribuem ou interferem nesse processo de ensino?
São essas as questões que permearão as discussões neste artigo, que objetiva discorrer
sobre o alcance e a necessidade do estudo gramatical no contexto educacional, sem, contudo,
desconsiderar os dois extremos perigosos envolvidos nessa questão: o reducionismo teórico
desse estudo, marcado pela superficialidade conceitual, e a hipervalorização de uma
102
Professor efetivo do Departamento de Letras da Universidade Federal de Mato Groso. Atualmente afastado
para realizar doutorado no Departamento de Filologia e Língua Portuguesa FFLCH/USP. São Paulo, SP, Brasil,
Cep 05406-040. E-mail: [email protected].
165
metalinguagem de padrões internos (forma), isolada de padrões externos (contexto) (cf.
HALLIDAY, McINTOSH, STREVENS, 1974).
Para a exemplificação deste estudo, foram selecionadas três sequências didáticas,
fundamentadas em princípios funcionalistas, que representam o resultado de um curso lato
sensu, intitulado “Princípios funcionalistas e perspectiva para o ensino”, realizado na
Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), campus de Rondonópolis, em janeiro de
2011, e destinado a professores de LP. As propostas foram elaboradas como atividade final
desse curso e representam a transposição de alguns pressupostos funcionalistas e de
gramaticalização ao contexto de ensino de LP. São elas: 1) a função textual de daí; 2) a
semântica de visar e sua transitividade; e 3) a função pronominal de a gente.
Equilibrar uma perspectiva teórica que reconhece a multifuncionalidade da língua,
portanto, sua fluidez, com outra abordagem, que leva em conta a estabilidade dessa mesma
língua e serve à padronização de usos, como se percebe em uma gramática da norma, é algo
que suscita questionamentos e muita atenção. De certo modo, este é o desafio proposto aqui.
A mudança categorial e o ensino de LP
A consideração da natureza fluida da língua, evidenciada nos fenômenos de variação e
mudança, entendidos aqui na dimensão das mudanças categoriais, em que as unidades e
construções da língua sofrem alteração em relação à forma e à função que desempenham no
sistema linguístico, não é algo novo. A constatação de Vossler (1943 [1923]) é um exemplo
disso. Segundo esse autor,
pero lástima que la lógica gramatical no quiera coincidir jamás con la verdadera
lógica. Lástima que la lengua no quiera renunciar a la mala costumbre de usar el
representante del concepto de sustancia, el sustantivo, para expresar significaciones
modales, relativas y hasta irreales; de elevar el adjetivo al plano de la sustancia; de
poner la sustancia en comparativo; de cambiar la multiplicidad en cualidad; de
trasponer la actualidad en el futuro; y de petrificar lo verosímil en lo absoluto; en
suma, de entrever revueltamente todas las categorías103. (VOSSLER, 1943 [1923],
p.29-30)
O reconhecimento desse vislumbre “revoltoso” de todas as categorias, como sugere
Vossler (1943 [1923]), de fato, não é algo negativo, mas deriva da percepção de que a
gramática não tem suas bases fixadas em pressupostos inalteráveis. E isso já vem sendo
considerado nos trabalhos de cunho funcionalista publicados no Brasil. Neves (2001 [1990]),
por exemplo, já na década de noventa, defendia uma gramática do texto, inspirada,
principalmente, nas macrofunções da linguagem propostas por Halliday (1978); e Silva
(1997), numa perspectiva mais sócio-histórica, há algum tempo tem discutido as contradições
no ensino de português e o papel da escola diante da norma padrão e das normas sociais. Tais
casos são exemplos relevantes em razão da língua em uso oferecer complicadores no nível
semântico e no nível pragmático-discursivo que merecem ser estudados no contexto escolar
(NEVES, 2001 [1990], p.49).
103
Tradução livre: mas é uma lástima que a lógica gramatical não queira coincidir jamais com a verdadeira
lógica. É uma pena que a língua não queira renunciar ao mau costume de usar o representante do conceito de
substância, o substantivo, para expressar significações modais, relativas e até irreais; de elevar o adjetivo ao
plano da substância; de colocar a substância em comparação; de trocar a multiplicidade em qualidade; de
transpor a atualidade no futuro; e de petrificar o verossímil no absoluto; em resumo, de vislumbrar,
revoltosamente, todas as categorias.
166
Recentemente, questionamentos que vão muito além da gramática são apresentados
por Antunes (2003, 2007) em sua discussão sobre “as normas do uso”. Defende a autora a
relevância de um debruçar-se sobre
a realidade dos fatos linguísticos (fatos e, não, suposições), para ver e ouvir a
língua acontecendo, tal e qual (sem tirar nem pôr, como diz o povo). E,
consequentemente, dar crédito ao que se vê e ao que se ouve, para não delegar aos
manuais apenas toda a legitimidade ou a adequação de um uso ou de uma norma.
(ANTUNES, 2007, p.115).
Em texto intitulado Livro didático e ensino de gramática: para um estudo reflexivo
das classes de palavras, Rauber et alii (2010) analisam, em corpus constituído de livros
didáticos de LP, a ocorrência ou não de alterações em relação ao tratamento dado aos
conteúdos gramaticais, em especial às classes de palavras. Trabalho semelhante, publicado em
Portugal, foi desenvolvido por Defendi et alii (2011), com a observação de incongruências
entre o ensino escolar brasileiro e a realidade dos usos.
Além dos muros da academia, as instâncias que regulamentam o ensino público
brasileiro também já reconheceram que a língua é um sistema em variação. Como exemplo
disso, merecem citação os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1999) que
legitimaram aquilo que algumas das pesquisas linguísticas, principalmente de cunho
funcionalista, já defendem como premissa, ou seja: os usos da língua estão condicionados ao
contexto, aos sujeitos envolvidos e à modalidade oral e/ou escrita que, juntos, determinam o
“como” dizer. Com isso, contudo, tais parâmetros não rebaixaram o estatuto da norma
padrão, como sugeriu o gramático Evanildo Bechara (2011) em entrevista à Folha de São
Paulo no dia 16 de maio de 2011. Para contrapor-se a essa preocupação de Bechara, é
importante recuperar aqui as principais competências a serem desenvolvidas pelo ensino de
LP, segundo as orientações legais. São elas:
1) considerar a Língua Portuguesa como fonte de legitimação104 de acordos e
condutas sociais e como representação simbólica de experiências humanas
manifestas nas formas de sentir, pensar e agir na vida social;
2) analisar os recursos expressivos da linguagem verbal, relacionando
textos/contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura, de acordo
com as condições de produção/recepção (intenção, época, local, interlocutores
participantes da criação e propagação de idéias e escolhas);
3) compreender e usar a Língua Portuguesa como língua materna, geradora de
significação e integradora da organização do mundo e da própria identidade
(BRASIL, 1999, p.142-144)
As competências que devem ser desenvolvidas no aluno da educação básica, segundo
as orientações acima, levam em conta as situações de uso específico, considerando, também, o
valor da língua enquanto legitimadora de acordos e de condutas e de “representação simbólica
de experiências humanas” (BRASIL, 1999, p.142). Ou seja, reconhece-se o papel social da
língua e de seu estudo sistemático, sem, com isso, representar um “erro de visão”, conforme
julgou Bechara.
Contudo, cabe ainda reconhecer que o texto dos PCNs apresenta lacunas conceituais e
metodológicas que geram compreensões as mais diversas possíveis e colocam em risco o real
objeto e objetivo do ensino de LP no Brasil. Exemplo disso é a própria leitura feita por um
104
Grifo meu.
167
gramático reconhecidamente competente acerca dos parâmetros em questão. Se para ele, tais
parâmetros apresentaram um “erro de visão”, há elementos textuais inscritos nesse documento
que permitiram essa interpretação.
O questionamento de Bechara (2011) tem sua razão de ser quando se percebe o
reducionismo teórico-metodológico por que tem passado o estudo sistematizado da gramática,
seja da norma padrão ou de outras normas, no ensino brasileiro. O que fora promulgado, pelos
parâmetros e as diretrizes curriculares oficiais, como o estudo mais reflexivo da língua,
passou a ser entendido, em muitos casos, como estudo do texto, mas não de sua gramática, no
que se refere à sua organização linguística interna. Ou, por outro lado, como estudo do texto
isolado, e a manutenção de uma gramática fragmentada, desvinculada da situação
comunicativa. Em outras palavras, o reconhecimento de uma gramática da língua em uso,
materializada no nível do texto, quando transposto para o nível pedagógico, tem recebido, em
muitos casos, uma interpretação destituída de embasamento teórico e reflexivo adequados,
causando sérios equívocos, principalmente aos professores do ensino básico, pertinentes à
concepção do objeto e do objetivo do ensino de LP.
Nesse terreno de poucas certezas teórico-metodológicas, a constatação da natureza
variável das categorias linguísticas pode surgir como algo polêmico ou como fenômeno, visto
de uma perspectiva teoricamente embasada, auxiliar para um ensino mais reflexivo da língua.
A fluidez linguística e o ensino de LP: a gramaticalização como conteúdo
Nesse estudo sobre a movimentação do sistema linguístico e seu tratamento na aula de
LP, os fenômenos de variação e mudança linguísticas serão entendidos sobre uma dimensão
que considera o continuum entre léxico e gramática e a não rigidez entre as fronteiras dessas
categorias da língua. Assim, variação e mudança serão aqui compreendidas como processos
naturais que, de acordo com Hopper (1991), denotam a emergência da gramática, que está em
constante (re)fazer-se. Diante disso, os pressupostos da gramaticalização podem servir como
uma perspectiva viável para observação de tais fenômenos.
A gramaticalização é aqui entendida como um processo, dentro de uma perspectiva
funcional da linguagem, que objetiva estudar a evolução de construções da língua a partir da
movimentação do léxico rumo à gramática ou de palavras gramaticais que passam a
desempenhar, em contextos determinados, função mais gramatical ainda, conforme Heine,
Claudi & Hünnemeyer (1991). É claro que fatores externos também estão envolvidos no
processo de variação e mudança linguísticas, e podem ser vistos a partir de uma abordagem
sociolinguística. Contudo, neste estudo, propomos investigar a polissemia funcional
observando apenas os aspectos ligados ao processo de gramaticalização. Segundo LimaHernandes (2008, p.5), ao trabalhar a gramaticalização como um processo, “o pesquisador
guia-se pelo comportamento individualizado do item, pelas minúcias e propriedades que
permitem o contraste entre elementos de mesma categoria (padrões funcionais)”, cada vez
mais abstratos em relação à sua forma-fonte.
O emprego mais antigo do termo Gramaticalização é atribuído a Meillet (1912), que o
empregou para definir a atribuição de uma característica gramatical a uma palavra
anteriormente autônoma.
Como afirmam Casseb-Galvão e Lima-Hernandes (2007, p.159-160), “esse tipo de
mudança implica alterações morfológicas (mudança de classe de palavras), semânticas
(mudança de sentido) e sintáticas (mudança de contextos e funções nas relações entre
palavras)”, e até mesmo mudança fonológica. Logo, trata-se de uma mudança global que afeta
todos os níveis de organização sistêmica da língua.
Em linguística diacrônica, para Dubois et alii (2007 [1973], p.318), a gramaticalização
ocorre quando “um morfema lexical, durante a evolução de uma língua em outra, tornou-se
168
um morfema gramatical”. Essa noção está vinculada à gênese das línguas e é, por assim dizer,
uma visão macro da gramaticalização (Casseb-Galvão, Lima-Hernandes, 2007).
A literatura recente parece concordar que não é suficiente afirmar que um único item
se gramaticaliza. Na verdade, é mais preciso afirmar, de acordo com Bybee (2003), que uma
construção com itens lexicais é que se torna gramaticalizada. Neste artigo, essa é a
perspectiva adotada.
Os estudos sobre gramaticalização vêm recebendo maior destaque nas discussões
sobre variação e mudança categorial da língua e consideram, como mecanismos que estão em
ação nesse processo, fatores como contexto pragmático, intenção comunicativa, sentido, valor
discursivo, elaboração cognitiva, todos determinantes para o “surgimento” de (novas) funções
gramaticais. Explicar por que um termo varia e observar como varia até desempenhar outra
(ou outras) função (ou funções) têm sido um dos pontos de investigação daqueles que se
dedicam aos estudos de gramaticalização.
Para contextualizar tal teoria na dinâmica de uma aula de LP, basta simular uma
situação em que um aluno pergunta ao seu professor se nas frases (1) João chegou aqui cedo
e (2) João chega chora de raiva o verbo chegar exerce a mesma função (e seria muito bom se
os alunos fizessem perguntas desse tipo!). Diante desses exemplos, não é difícil perceber que
o sentido de chegar não é o mesmo em (1) e (2). Em João chegou aqui cedo, o verbo chegar
indica movimento/deslocamento no espaço físico e no tempo do argumento externo “João”,
tendo como escopo um adjunto adverbial. Nesse caso, chegar é verbo pleno e exerce a função
de núcleo da predicação.
Em (2) João chega chora de raiva, não é possível entender que João chega de algum
lugar e começa a chorar. Em (2), a forma chegar parece funcionar como um operador
argumentativo que assinala o argumento mais forte de uma escala orientada no sentido de
determinada conclusão. Ele poderia ser parafraseado por "até", "até mesmo", "inclusive". Há
evidências semânticas e pragmáticas que demonstram um caso de mudança morfossintática de
uma forma verbal para uma forma adverbial (nesse contexto, chegar fica invariável - uma das
características do advérbio -, mantendo-se sempre na 3ª pessoa do singular, no presente do
indicativo: chega dói, chega chora)105, na função de operador argumentativo. Para citar
Hopper (1991), tem-se um exemplo de estratificação e recategorização106, uma vez que, num
domínio funcional, novas “camadas” continuamente emergem e convivem com as antigas.
Tudo isso para mostrar que, diante de uma pergunta sobre o estatuto categorial de um
verbo, o professor de LP terá de lançar mão de seu conhecimento linguístico a fim de
considerar que as formas e funções dos elementos da língua estão em constante processo de
“mutação”, alguns mais, outros menos. Reconhecer que esse dinamismo pode ser explicado
pelo viés da gramaticalização é uma ferramenta poderosa que auxiliará o professor em seu
modo de refletir sobre a linguagem, tendo reflexos no processo de ensino-aprendizagem, uma
vez que o aluno terá a chance de compreender os fenômenos que acontecem em sua língua.
Esse foi o motivo que desencadeou as propostas que serão apresentadas na próxima
seção.
105
Em pesquisa desenvolvida por Rauber e Ribeiro (2010), são apresentados alguns padrões funcionais da forma
chegar, a partir de análise de amostras do português falado na cidade de São Paulo e na cidade de Goiás.
106
Hopper (1991) apresenta cinco princípios de gramaticalização: a estratificação, quando dentro de um domínio
funcional, novas camadas estão constantemente emergindo; a divergência, quando convivem formas
gramaticalizadas e a forma fonte (lexical); a especialização, quando algumas formas assumem sentidos
gramaticais mais gerais, com redução de variantes e estreitamente de possibilidade combinatória; a persistência,
quando uma forma sofre gramaticalização, alguns traços de sua forma lexical fonte podem ser refletidas na sua
forma gramatical; e a decategorização, quando a forma gramaticalizada tende a perder ou neutralizar as
características morfológicas e sintáticas desempenhadas pela forma fonte.
169
Gramaticalização e propostas de aplicação
Inicialmente, cabe perguntar:
•
Se, numa perspectiva funcionalista da linguagem, a língua em uso deve ser o foco de
estudo nas aulas de LP, como fazer para, efetivamente, operacionalizar isso?
•
Do que se tem discutido teoricamente acerca da gramaticalização, o que é possível
“transpor” para o ensino de LP?
As propostas teórico-didáticas que serão apresentadas a seguir indicam possíveis
respostas a essas duas questões.
Contextualização da proposta
Como foi dito no início deste texto, este estudo tem como propósito relatar uma
experiência de aplicação de pressupostos funcionalistas e de gramaticalização em atividades
didáticas destinadas a alunos da educação básica. Para isso, é imprescindível situar o contexto
em que se deu esse trabalho. Trata-se do resultado de um curso, com carga horária de 45
horas-aula, intitulado “Princípios funcionalistas e perspectiva para o ensino”, ministrado em
uma especialização (lato sensu) em LP, organizada pelo Departamento de Letras, do campus
universitário de Rondonópolis/UFMT, e destinado a professores da cidade de Rondonópolis e
região, no período de 2010 a 2011.
O curso se concentrou basicamente no estudo da relação entre teoria e prática no
ensino da gramática do português e sua interface com a produção de texto e atividades de
leitura, uma vez que a língua se manifesta em enunciados concretos produzidos em situações
de interação efetiva. Para isso, foi bastante útil a noção de gênero discursivo de Bakhtin
(1997), e, aliado a tudo isso, reflexões em torno do tratamento da multifuncionalidade da
língua e sua repercussão no estudo do conteúdo metalinguístico na aula de LP.
Assim, fora apresentada, como atividade de avaliação desse curso, a seguinte proposta:
•
Selecione texto(s) de qualquer gênero e, a partir dele(s), monte uma sequência didática,
considerando, para isso, o que foi discutido teoricamente (a partir de um viés funcionalista). Essa
atividade deverá conter uma sequência de aula que contemple: atividades de leitura, de produção
textual e de análise gramatical. Para tanto, também deverá trazer reflexões teórico-práticas que
fundamentem as atividades propostas e as habilidades linguísticas a serem desenvolvidas.
Ainda que as propostas divulgadas a seguir tratem de temas aparentemente distintos,
todas estão vinculadas a um olhar sobre a língua em uso efetivo, que considera a instabilidade
natural entre forma e função das construções linguísticas, motivadas por fatores pragmáticos,
cognitivos e comunicativos. Essa perspectiva direciona as três propostas de reflexão
metalinguística apresentadas nas seções seguintes, com o intuito de tornar mais evidente, no
contexto escolar, alguns dos princípios da gramaticalização. São elas: os usos de “daí” como
operador textual; de “visar” como auxiliar aspectual e de “a gente” assumindo, em contextos
determinados, a função de pronome pessoal.
Proposta 1: a função textual de “daí”
Esta atividade, apresentada por Santos, Ortiz e Melo (2011), teve como objeto de
estudo uma redação de vestibular, publicada pela Fuvest (Fundação Universitária para o
170
Vestibular), exame 2010, e considerada uma das dez melhores redações desse ano. A partir
desse texto, foram tratadas questões sobre o gênero argumentativo, sua leitura e produção, e,
no que se refere à análise gramatical, observaram-se os usos de daí, que, de construção
formada pela contração da preposição de com o dêitico locativo aí (cf. TAVARES, 2002),
com sentido mais espacial, como em (3), passou a usos mais textuais, como marcador
coesivo, organizando a sequência informativa. Com valor de operador argumentativo, parece
introduzir sequências conclusivas, como se verifica na redação do vestibulando em (4).
(3)
Daí onde você está é possível ver algo?
(4)
As imagens, segundo os estudos do psicanalista austríaco, são uma das fontes mais
poderosas de compensação psicológica e de prazer. Daí a facilidade com que o olhar se
deixa enganar por simulacros publicitários, daí se acreditar tanto nas proposições que as
imagens do consumo engendram e vendem, daí os fatos serem possíveis das mais
bizarras reinvenções, como a de ser uma estrela de cinema pelo simples uso de um
sabonete, desde que tal imagem promova a fantasia e o deleite do olhar. (Redação
Fuvest, 2010)
O fato de ser uma redação que recebeu nota máxima pelos corretores da Fuvest indica
que um uso pouco recomendado por autores de manuais de redação e, até mesmo, por
professores de LP, parece receber certo “licenciamento” em contextos mais formais. Eis um
exemplo de um termo que, de marcador de lugar, passa a assumir características de um
operador textual, que, apesar de ser muito empregado com essa função na modalidade oral,
ainda é pouco reconhecido na modalidade escrita de registro formal, principalmente se
consideradas as prescrições apontadas por gramáticas normativas.
Fazer desse caso tema de estudo na aula de LP é oportunizar reflexões acerca da
ocorrência de daí em usos variados, seja na modalidade oral, seja na escrita. Tal atividade
poderá suscitar vários questionamentos, tais como: quais as condições de produção do texto
em epígrafe? Em que contexto é empregado o daí? Que função marca? Trata-se de um uso
considerado padrão ou não-padrão? Por quê? Em que suporte e gênero ele mais aparece?
Atividade semelhante já foi sugerida por Tavares (2007) em um estudo sobre os conectores e,
aí e então.
Além disso, um simples cotejo entre o daí visto em (3) com o que se apresenta em (4)
já conduz a uma reflexão acerca da fluidez categoria das entidades linguísticas. Ora daí
funciona como marcador espacial - como em (3) -, situando algo no mundo sócio-físico; ora,
opera no nível do texto - como em (4) -, assumindo funções como a de um marcador
conclusivo em relação à informação que o antecede.
O simples fato de fazer com que os alunos percebam tais distinções de uso,
certamente, é uma forma de mostrar-lhes uma gramática em processo. O mesmo pode ser
visto no estudo da semântica de visar e os reflexos em sua transitividade.
Proposta 2: a semântica de “visar”
Esta proposta, de autoria de Calicchio, Moura e Maia (2011), teve como foco a análise
de alguns usos de visar em textos da esfera jornalística. Para isso, as professoras selecionaram
notícias, veiculadas na mídia on-line, sobre a polêmica, ocorrida em 2010, em torno de
algumas das obras de Monteiro Lobato, que, para certos críticos, manifestariam preconceito
de raça. Com essa proposta, foi possível dinamizar o estudo da transitividade verbal e, por
conseguinte, um de seus subdomínios, a regência verbal. Para tanto, considerou-se a variação
do valor transitivo de alguns verbos com complemento preposicionado, que apresentam, não
171
só na fala, como também na escrita, seu argumento interno introduzido sem preposição. Esse
é o caso dos verbos assistir, já bastante estudado linguisticamente, e de visar, um verbo ainda
pouco estudado, mas que tem se mostrado frequente em construções como visa passar, visa
ganhar, visa aumentar, por exemplo, sem a preposição “a”, com o sentido, conforme Houaiss
e Villar (2004, p.763), de “ter como objetivo; mirar, propor-se”.
Para a atividade em questão, as professoras citaram os seguintes casos encontrados em
notícias da mídia nacional:
(5)
Em suma: “em vez de proteger a miscigenação a qualquer custo”, necessário “examinar
como as relações desiguais e hierárquicas foram reproduzidas dentro de um sistema que
não visa à separação de raças como na América do Norte, mas uma suposta tendência à
integração e à cordialidade.” (http://www.cartacapital.com.br/politica/monteiro-lobatoracismo-e-cne)
(6)
Toda a pesquisa de linguagem realizada pelo autor visa reforçar os modos de expressão
no
Mississipi
à
época
da
narrativa.
(http://g1.globo.com/platb/fimdeexpediente/2011/01/11/queimem-os-livros/)
Como visto em Cunha e Tavares (2007, p.27), “para a gramática tradicional, a
transitividade é uma propriedade do verbo, e não da oração.” Contudo, casos como os
evidenciados com a forma visar são indícios de que a transitividade vai além do verbo uma
vez que afeta e é afetada por todos os constituintes oracionais e, no nível, extralinguístico,
pelas intenções comunicativas. Por essa razão, Hopper e Thompson (1980 apud CUNHA e
TAVARES, 2007) propõem uma noção de transitividade contínua e não categórica. Eles
associam a transitividade a uma função discursivo-comunicativa, e é o falante que organiza
essa transitividade (alta ou baixa), baseando-se em objetivos comunicativos e na percepção
das necessidades informativas de seu interlocutor.
Sobre a transitividade do verbo visar, os gramáticos Cunha e Cintra (1989, p.536-537)
afirmam que, no sentido de “ter em vista”, “ter por objetivo”, “pretender”, pode organizar-se
com objeto indireto, introduzido pela preposição a, como visto em (5), ou com objeto direto,
emprego, segundo os autores, “condenado por alguns gramáticos”. Várias são as ocorrências
desse segundo caso:
(7)
A estratégia visa pressionar o governo federal.
(8)
A medida visa abrir caminho para o debate do orçamento do período 2011/2012 em um
Parlamento dividido.
(9)
Secretaria da Saúde promete que não haverá diferença nos tempos de atendimento e que
a medida visa remunerar as unidades pela procura que já existe de pessoas com planos.
(<http://g1.globo.com>)
Interessante observar a definição de visar, bem como sua transitividade, apresentada
em Houaiss e Villar (2004, p.763): “Visar 1. V t.d. pôr sinal de visto em [ORIGEM: do fr.
Viser ‘examinar documento para validá-lo’] Visar 2. t.d. 1 dirigir a vista para; olhar 2 dirigirse (projétil, tiro) para; t.d. e t.i. fig. 3 (prep. a) ter como objetivo; mirar, propor-se [ORIGEM:
do fr. Viser ‘dirigir o olhar para’]”.
Diante dessa classificação, a hipótese aqui levantada é a de que visar pode ter passado
(ou está passando) por três padrões semântico-pragmáticos de uso. No primeiro, visar tem
sentido [+ concreto], sujeito [+ animado] e [+ humano], complemento afetado, ausência de
172
preposição entre verbo e complemento, como em (10). Em outro contexto de uso, visar
manifesta estatuto semântico [- concreto], sujeito [+ animado] e [+ humano], complemento
alvo/meta, presença de preposição entre verbo e objeto, como em (11). Já em usos como os
evidenciados em (7), (8) e (9), visar mostra-se [+ abstrato], sujeito [- animado] e [- humano],
complemento alvo e presença (ou não) de preposição entre verbo e objeto.
(10) Ele visou o documento.
(11) Ele visa ao sucesso.
No padrão visto, por exemplo, em (7), A estratégia visa pressionar o governo federal,
verifica-se a construção de uma perífrase formada por VISAR (geralmente na 3ª pessoa do
singular, no presente do indicativo) + Verbo principal (forma infinita). Parece haver uma
elaboração cognitiva no sentido de uma informação mais concreta, como “dirigir o olhar
para”, codificar a manifestação de um desejo ou o cumprimento de uma meta. Nesse contexto,
a construção com visar parece prescindir de material interveniente, como uma preposição, por
exemplo. Contudo, essa constatação não é categórica, porque, em contextos mais formais de
uso da língua, como o acadêmico, a preposição eventualmente aparece, como em (12):
(12) Este artigo visa a sintetizar os principais resultados de pesquisas da gramaticalização de
a
gente
no
português
do
Brasil
(...)
(http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/viewFile/2408/1882)
Surpreendente foi encontrar em um livro didático de LP para o Ensino Médio uma
nota, intitulada “Quando o uso muda a regra” (CEREJA e MAGALHÃES, 2005, p.296), com
a seguinte informação acerca da transitividade de visar:
Quando o uso muda a regra
Há alguns verbos, como aspirar, atender, visar, que, embora apresentem, tradicionalmente, diferentes
regências para sentidos diferentes, na linguagem usual e na linguagem jornalística costumam ser empregados,
indiferentemente, como transitivos diretos. Assim, tradicionalmente, o verbo visar, no sentido de “ter em vista,
pretender”, exige a preposição a, como se vê nesta frase, por exemplo:
A reunião com representantes estrangeiros visava à ampliação das exportações de soja.
Entretanto, é possível também encontrar esse verbo empregado assim:
A reunião com representantes estrangeiros visava a ampliação das exportações de soja.
(CEREJA e MAGALHÃES, 2005, p.296)
Ao lado dessa nota, dizem os autores desse manual didático: “Professor: O uso desses
verbos com essa regência já consta do Dicionário Houaiss da língua portuguesa e é estudado
no Guia de uso do português: confrontando regras e usos, de Maria Helena de Moura Neves
(Editora Unesp).” (CEREJA e MAGALHÃES, 2005, p.296). Eis um exemplo de como o
material pedagógico em questão tenta, de algum modo, apresentar conceitos ligados à
gramática padrão da LP, sem, contudo, desconsiderar os condicionamentos causados pelo uso
efetivo.
Diante dos casos encontrados, exemplificados em (7), (8) e (9), a maior incidência sem
preposição sinaliza que a regência de visar está caminhando em direção a usos quase
exclusivos com complemento direto, mesmo em contextos que tradicionalmente exigiriam
173
complemento preposicionado. Essa mudança pode estar condicionada ao valor semântico que
visar parece assumir em alguns contextos de uso, como o marcado em (7), em que já não
funcionaria como verbo pleno, mas um auxiliar aspectual de meta ou de finalidade: “visa
pressionar”.
Saber se essa variação tem sua motivação apenas no emprego (ou não) da preposição
ou se está relacionada a algumas mudanças semânticas pelas quais vêm passando o verbo
visar, como citado acima nas acepções dessa palavra, e se tais mudanças estão afetando seu
estatuto categorial, evidenciando um processo de gramaticalização, é algo a ser pesquisado.
Essa discussão deixa claro que o estudo da regência verbal no contexto escolar não
deve prescindir da análise da língua em uso, considerando que esta pode apresentar novas
relações estabelecidas pelos falantes a verbos e nomes, por exemplo. Perceber e explicar essas
variações é algo possível e viável numa aula de LP, como sugere outra proposta: o uso de a
gente em função pronominal.
Proposta 3: a função pronominal de a gente
A proposta apresentada por Souza e Lima (2011) centrou-se no estudo do uso
discursivo e pragmático da expressão a gente em textos escritos em contextos formais de uso
da língua. O texto selecionado foi a crônica “Crucificar Monteiro Lobato?”, de Lya Luft,
publicada na revista Veja, no dia 10 de dezembro de 2010. Nessa crônica, observou-se a
ocorrência da expressão a gente, na função de pronome pessoal, como se vê em (13):
(13) No curso de uma vida somos submetidos a muita insensatez e muita tolice. Nem tudo é
Mozart ou Leonardo da Vinci, carinho de amigos e filhos, abraço da pessoa amada.
Então, a gente vai ficando calejado, para não expor demais a alma como alguém a quem
retiram a pele (...)
Vários são os estudos sobre a expressão a gente, em função verificada em (13), que
demonstram que tal expressão já não pode ser entendida como um substantivo precedido de
artigo, mas como uma construção de valor pronominal. No exemplo em questão, essa
expressão assume a função de sujeito, papel este que, segundo Borges (2004), é favorecedor
do uso de a gente em concorrência com o pronome nós; além de o gênero do predicativo desse
sujeito passar a assumir o gênero do referente (cf. ZILLES, 2007), como verificado em (13):
Então, a gente vai ficando calejado (...). Isso é um indício de que nem mesmo a marca de
gênero feminino da expressão a gente é mantida (LOPES, 2003, apud ZILLES, 2007),
evidenciando o grau de abstratização dessa construção.
Sobre o estatuto gramatical de a gente, em consulta a algumas gramáticas do
português, foram encontradas observações que merecem atenção. Na gramática de Cunha e
Cintra (2007, p.296), como fórmulas de representação da primeira pessoa, encontra-se a
seguinte afirmação: “no colóquio normal107, emprega-se a gente por nós e, também, por eu”.
Já em Bechara (2006, p.166), tem-se a nota: “o substantivo gente, precedido do artigo a e em
referência a um grupo de pessoas em que se inclui a que fala, ou a esta sozinha, passa a
pronome e se emprega fora da linguagem cerimoniosa108”. Mesmo na “Gramática de Usos
do Português”, Neves (2000, p. 469) afirma que “na linguagem coloquial109 o sintagma
nominal A GENTE110 é empregado como um pronome pessoal111”.
107
Grifo meu.
Grifo meu.
109
Grifo meu.
110
Grifo do autor.
111
Grifo do autor.
108
174
É unânime, entre as gramáticas acima citadas, que a expressão a gente, com valor de
pronome pessoal de primeira pessoa, é de uso exclusivo da linguagem coloquial. De fato, a
maioria dos usos de a gente com valor pronominal ocorre nessa variedade, com sentido de nós
ou até mesmo de eu. Nesse contexto de uso, a gente indica generalização, como afirma Neves
(2000). Apesar da característica de indeterminação do sujeito, a forma a gente sempre indica
o envolvimento da primeira pessoa no conjunto (cf. NEVES, 2000). Verifica-se que, mesmo
em gêneros de registro mais flexível, como a crônica, o uso de a gente parece co-ocorrer com
o pronome nós. No caso do texto de Lya Luft, tem-se o emprego de a gente, como indicado
em (13), convivendo com o nós, como em (14):
(14) Que não comece entre nós, banindo um livro infantil de Monteiro Lobato, o mais
brasileiro dos nossos escritores: será uma onda do mal, uma nova caça às bruxas, marca
de vergonha para nós.
Certamente, a avaliação valorativa social, que ainda recai sobre a expressão a gente, e
o natural conservadorismo da escrita servem como mecanismos de contenção do emprego
dessa construção na modalidade escrita formal do português do Brasil. No entanto, esse uso
aparece licenciado em gêneros da esfera literária. Sobre isso, vale consultar o trabalho de
Zilles112 (2007).
Em pesquisa a um material didático, foi encontrado apenas um exercício envolvendo o
uso de a gente. Nesse caso, afirma-se, também, que “na variedade padrão da língua, é comum
o emprego da expressão a gente” (CEREJA e MAGALHÃES, 2005, p.91), e pede-se ao aluno
para que substitua esse uso pelo pronome equivalente empregado na variedade padrão formal.
Segue o exercício:
(CEREJA e MAGALHÃES, 2005, p.91)
Voltando à proposta de Souza e Lima (2011), cinco questões por elas elaboradas
merecem atenção, porque conduzem a uma reflexão que pretende aproximar, e não excluir,
duas concepções de língua: uma normativa, da gramática do português padrão, que considera
os usos regulares de uma determinada variante linguística, e outra mais descritiva, que
considera os usos efetivos que os sujeitos fazem no momento da interação verbal, recrutando,
para isso, formas já existentes no sistema para desempenhar outras funções, a fim de atender a
variados propósitos comunicativos. As questões são:
112
Zilles (2007), em “O que a fala e a escrita nos dizem sobre a avaliação social do uso de a gente?”.
175
1. De acordo com a norma culta da língua, o pronome “nós” é utilizado para
marcar a 1ª pessoa do plural. No entanto, existem variantes de uso. Identifique no
1º parágrafo um pronome que foi utilizado para substituir o pronome “nós”.
(Identificar as funções gramaticais em uso)
2. Após identificar o pronome na questão 1, explique qual o provável motivo do
uso desse pronome pela autora. Levante hipóteses sobre isso.
(Identificar os elementos que demonstrem os argumentos defendidos pela autora,
bem como reconhecer as estratégias discursiva)
3. Por que, em outros momentos do texto, a autora utiliza o pronome “nós” ao
invés do pronome “a gente”?
(Observar as possibilidades de uso da língua e a variação de registro a depender
dos interesses comunicativos do autor/narrador/falante/escritor)
4. Sabendo que Lya Luft, além de romancista, é cronista da Revista Veja, meio de
comunicação que possui um elevado número de leitores no Brasil, pressupõe-se
que tenha domínio da norma culta da língua portuguesa. Por que ela utiliza em seu
texto o “a gente”?
(Perceber a adequação linguística de acordo com o contexto)
5. Sabendo que existe a classe gramatical denominada pronome, nos resta saber o
que é e que funções essa classe pode exercer num determinado contexto de
comunicação. Pesquise no livro didático e/ou numa gramática como são
conceituados os pronomes e quais as possibilidades de usos, fazendo relação com
os aspectos já estudados no texto em questão.
(Conhecer e reconhecer a classe gramatical abordada nos seus diversos usos e
como se dá sua categorização nas gramáticas e livros didáticos)
Para efetivar esse estudo que tem como objetivo garantir o uso e o conhecimento das
estruturas gramaticais e lexicais da LP a serviço da interação verbal, as professoras Souza e
Lima (2011) sugerem a seguinte proposta de produção textual:
6. Após ter feito uma leitura do texto de Lya Luft, você também deve ter formado
sua opinião sobre o assunto. Produza um texto, do gênero carta do leitor, para que
seja enviada para o editor da Revista Veja, deixando claro o seu ponto de vista
sobre o assunto em questão.
(Refletir sobre a língua, as idéias e seu espaço de interação, como também,
desenvolver a capacidade de argumentação)
Considerações finais
Para concluir esta exposição, faz-se necessário voltar ao tema central deste estudo, que
teve como pretensão reconhecer a contribuição de um paradigma funcionalista ao ensino de
LP no Brasil e observar em que medida o estudo reflexivo de uma gramática emergente pode
ser ativado nesse contexto.
Reconhece-se que as discussões levantadas conduzem, obrigatoriamente, a uma
reflexão que vai muito além do alcance deste trabalho. Contudo, os casos aqui citados e que
procuraram analisar a língua em contexto efetivo de uso, com ênfase na modalidade escrita e
na variedade padrão, sinalizam a aplicabilidade de pressupostos funcionalistas aos conteúdos
ensinados nas aulas de LP. As atividades metalinguísticas e textuais elaboradas por Souza e
Lima (2011) são exemplos empíricos disso.
176
Maior contribuição, talvez, verifica-se na reflexão que uma visão funcional da língua é
capaz de suscitar quando se coloca em questão a natureza fluida do sistema linguístico, logo,
de sua gramática em contínua emergência, como considera Hopper (1991). Neste estudo,
foram observados três casos: os usos de daí, que pode assumir funções adverbiais e textuais;
de visar, que de verbo pleno parece assumir função auxiliar e sofrer alteração de regência
motivada pelo sentido que assume em certos contextos; e, finalmente, do emprego de a gente
com valor de pronome pessoal. Todos foram analisados com base em textos da modalidade
escrita, produzidos em contextos formais de uso da língua. Portanto, trata-se de um estudo
perfeitamente compatível com a gramática da língua padrão. Isso é uma evidência da
possibilidade de conciliar à prática metalinguística pressupostos teóricos que consideram a
multifuncionalidade das construções que compõem a gramática de uma língua natural.
Não significa, contudo, que a gramaticalização tenha de ser conteúdo ensinado na
escola. Temos clareza de que esse conhecimento não deve ser tema de conteúdo didático,
mas, antes, deve servir como arcabouço teórico ao professor para compreensão de fenômenos
de mudança e variação linguística, a fim de auxiliá-lo nas explicações sobre os usos e as
funções que nós, usuários da LP, fazemos em nossas interações comunicativas, seja na
modalidade oral, seja na escrita.
Além disso, tais resultados das pesquisas em linguística estão se aproximando dos
manuais e livros didáticos de LP, como visto em Cereja e Magalhães (2005) sobre a regência de
visar, ou a respeito do emprego informal de a gente com valor de pronome de primeira pessoa.
Logo, o professor tem de estar preparado para saber como lidar com isso em suas aulas.
Entretanto, nada disso será válido se o professor que está em sala de aula não assumir
de maneira clara a determinação, via documentos legais e pressupostos teóricometodológicos, acerca da real função do ensino de LP no contexto brasileiro. De acordo com
tais determinações, a norma padrão deve ser o foco de estudo - afinal, como garantir o acesso
a ela a quem não a vivencia em outros contextos? -, sem, contudo, desconsiderar um olhar
reflexivo sobre as demais variedades linguísticas. Para tanto, a influências dos usos que
fazemos da língua e a repercussão destes sobre sua organização interna é fator a considerar.
Enfim, não se deve perder de vista que um estudo metalinguístico só tem seu valor teóricoprático quando entendido como complementador do propósito maior do ensino de uma língua:
o desenvolvimento das competências de compreensão, interação e produção, materializadas
nas atividades de leitura, fala, audição e escrita.
THE FLUID NATURE OF THE LANGUAGE AND STUDY OF PORTUGUESE: SIMILARITIES
BETWEEN GRAMMATICALIZATION AND TEACHING
ABSTRACT: The fluid nature of language, marked by the natural variation and change of forms and functions
of linguistic items and their impact on the teaching of Portuguese are the subject of this study. We present
theoretical and didactic proposals that consider the language used in the written form and in markedly formal
contexts. The theory follows the principles of European (HALLIDAY, 1978) and Dutch functionalism (DIK,
1989), as well as works by Brazilian functionalists (Cunha & TAVARES, 2007, NEVES 2001 [1990]). Emphasis
is given to certain phenomena of language variation and change, viewed from the bias of grammaticalization
(HEINE, CLAUDE, HÜNNEMEYER, 1991; LIMA-HERNANDES, 2009), for example, the function assumed by
the textual item daí, the transitive verb variation of visar and the functional expression of pronominal a gente.
This study aims to present didactic sequences dealing with phenomena of variation and change categories, from
the perspective of an emerging grammar. The above mentioned proposals signal the possibility of a pedagogical
treatment of the issues involved the study of grammar of the language in use, without, however, disregard the
descriptions of standard grammar, but expanding them.
KEYWORDS: Functionalism; Grammaticalization; Teaching portuguese.
177
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179
Motivações sociointeracionais de fenômenos linguísticos e ensino de língua
portuguesa: algumas contribuições
Edvaldo Balduino BISPO113
Maria Angélica FURTADO DA CUNHA114
RESUMO: Discutimos, neste trabalho, motivações de natureza sociocomunicativa e cognitiva implicadas na
manifestação de alguns fenômenos linguísticos em diversas situações de uso. Objetivamos elucidar de que modo
a consideração dessas motivações pode contribuir para o ensino de língua portuguesa na educação básica.
Particularmente, focalizamos as estratégias de relativização e a transitividade. Consideramos a abordagem da
gramática tradicional sobre esses fenômenos e mostramos que essa perspectiva não explica satisfatoriamente as
diferentes formas de manifestação das orações relativas ou da transitividade oracional. Diante disso, analisamos
fatores discursivo-pragmáticos envolvidos na codificação morfossintática dos aspectos gramaticais em foco. Para
tanto, tomamos como referência os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e, como aporte teórico, o
funcionalismo da vertente norte-americana, com base, sobretudo, em Givón (1990, 1995, 2001), Hopper e
Traugott (1993, 2003), Furtado da Cunha, Oliveira e Martelotta (2003) e autores como Tomasello (1998, 2003)
and Langacker (1987, 1998). Com isso, pudemos verificar que a consideração de diferentes motivações
sociointeracionais e cognitivas podem contribuir para melhor compreensão e explicação de diversos fenômenos
linguísticos, servindo, assim, de apoio/suporte ao processo de ensino-aprendizagem de língua portuguesa.
PALAVRAS-CHAVE: Estratégias de relativização; Transitividade; Funcionalismo; Ensino de língua portuguesa.
Introdução
A investigação de fenômenos linguísticos não é fato novo, como também não
representam novidade os diversos usos que se fazem, na prática comunicativa cotidiana, de
itens e construções gramaticais que fogem aos preceitos dos compêndios gramaticais mais
conservadores. Esses usos emergem, entre outras razões, pela dinamicidade da língua, uma
vez que ela é entendida, conforme postula a Linguística Funcional, como uma estrutura
maleável, adaptada às situações de uso relacionadas às necessidades de expressão de seus
usuários (FURTADO DA CUNHA, 2001).
Devemos considerar também que o emprego de termos, estruturas e construções em
desacordo com o que se admite como padrão, muitas vezes, ocorre com certa regularidade,
representando, assim, motivo de estudo. Nesse sentido, os fatos linguísticos podem ser
explicados em termos das funções a que se prestam na interação comunicativa, daí, pois, a
importância de se adotar uma perspectiva teórica que leve em conta o estudo da língua em
uso.
A Linguística Funcional, em sua vertente norte-americana, defende uma investigação
da língua sob o ponto de vista do contexto linguístico e da situação extralinguística. Assentase na premissa básica de que a língua é usada, sobretudo, para atender a necessidades
comunicativas. Desse modo, a explicação para as estruturas gramaticais deve ser buscada no
uso a que elas servem na interação social. Em outros termos, trabalha-se com a hipótese de
que a forma da língua, de algum modo, reflete a função que desempenha nas interações
sociocomunicativas diárias (FURTADO DA CUNHA; SOUZA, 2007).
Essa maneira de se olhar o fenômeno linguístico muito tem a contribuir para melhor
analisá-lo, apontando caminhos para a compreensão de diversas questões de análise
linguística das quais os estudos gramaticais mais convencionais não têm dado conta ou para
113
114
Universidade Federal de Rio Grande do Norte. Email: [email protected]
Universidade Federal de Rio Grande do Norte. Email: [email protected]
180
as quais não têm dispensado a devida atenção. Nessa linha, destacamos contribuições dos
estudos funcionalistas no campo do ensino de língua portuguesa no sentido de subsidiar
docentes em suas práticas pedagógicas. Esse subsídio pode dar-se tanto por meio do
conhecimento acadêmico produzido pelos trabalhos desenvolvidos em que se pode
fundamentar a atuação docente quanto pelas implicações práticas deles emanadas em termos
de proposições e encaminhamentos para o trabalho em sala de aula propriamente dito.
E é sob essa ótica que discutimos, neste artigo, algumas motivações discursivopragmáticas e cognitivas implicadas na gênese de diversos fenômenos linguísticos, com o
objetivo de apontar contribuições que o exame dessas motivações pode oferecer ao ensino de
língua materna na educação básica. Consideramos orientações dos Parâmetros Curriculares
Nacionais e fundamentamo-nos em pressupostos teórico-metodológicos do funcionalismo
norte-americano, de inspiração em Givón (1990, 1995, 2001), Hopper e Traugott (1993,
2003), Furtado da Cunha, Oliveira e Martelotta (2003). Apresentamos considerações sobre o
tratamento de dois tópicos gramaticais, a saber, as orações relativas e a transitividade, levando
em conta seus contextos reais de uso e uma perspectiva escalar em termos de
categorização/classificação desses elementos.
Aspectos teóricos
Adotamos, neste trabalho, a proposta defendida por autores como Tomasello (1998) e
Langacker (1987, 1998) de conjugação da Linguística Funcional à Linguística Cognitiva,
resultando na abordagem denominada cognitivo-funcional. Essa perspectiva congrega os
pressupostos do funcionalismo norte-americano, bem como os da agenda cognitivista,
baseada em estudos de autores como Langacker (1987, 1991, 1998), Lakoff (1987), Johnson
(1987), Lakoff e Johnson (1980), Talmy (1988), entre outros. Aplicamos, em especial,
algumas das categorias centrais do funcionalismo, a saber, os princípios de marcação,
iconicidade, expressividade, prototipicidade, informatividade e plano discursivo.
Em linhas gerais, o funcionalismo contemporâneo caracteriza-se por conceber a
linguagem como um instrumento de interação social e por seu interesse de investigação
linguística ir além da estrutura gramatical, buscando no contexto discursivo a motivação para
os fatos da língua. Assim, um dos pressupostos básicos do funcionalismo, conforme
defendem os autores referidos, é que o contexto de uso motiva as diferentes construções
sintáticas, ou seja, a estrutura que as formas linguísticas assumem decorre da função
comunicativa que desempenham na interação discursiva. Assim, a estrutura da língua será
mais bem explicada se levarmos em conta a comunicação na situação social (FURTADO DA
CUNHA; SOUZA, 2007). Ancorados na Linguística Cognitiva, consideramos ainda o fato de
que a expressão linguística também está estreitamente relacionada a motivações cognitivas,
no sentido de que é por meio da língua que captamos, categorizamos, estocamos e
transmitimos os dados da experiência humana.
Neste trabalho, utilizamos alguns pressupostos teórico-metodológicos da abordagem
cognitivo-funcional, dentre os quais se destacam: a rejeição à autonomia da sintaxe; a ideia de
que léxico e gramática não são níveis estanques, mas formam um continuum; a concepção de
língua como um complexo mosaico de atividades cognitivas e sociocomunicativas; a visão de
que uma língua consiste de um inventário de símbolos e construções e suas generalizações
categóricas, usados para fins de comunicação; a asserção de que habilidades linguísticas,
inclusive as sintáticas, podem ser explicadas nos mesmos termos que outras habilidades
cognitivas complexas; a ideia de cada entidade linguística poder ser definida com relação à
função a que ela serve nos processos reais de comunicação; a visão de que a semântica e a
pragmática da comunicação são essenciais para se entender como as línguas evoluíram
historicamente para atender a necessidades comunicativas.
181
Assumimos, desse modo, que existe um paralelismo entre a categorização conceptual
e a categorização linguística, ou seja, conhecimento do mundo e conhecimento linguístico não
são separados (TAYLOR, 1998; FURTADO DA CUNHA et al., 2003). De acordo com essa
visão, as línguas são moldadas pela interação complexa de princípios cognitivos e funcionais
que desempenham um papel na mudança linguística, na aquisição e no uso da língua.
É nessa perspectiva que discutimos aqui motivações sociointeracionais e cognitivas
que subjazem aos fenômenos linguísticos, mais particularmente ao emprego de estratégias de
relativização e à transitividade, com a finalidade de demonstrar como essas motivações
podem ser exploradas/utilizadas no ensino de língua portuguesa.
Princípios de iconicidade, marcação e expressividade
Uma das categorias de análise centrais para o funcionalismo é o princípio de
iconicidade, segundo o qual há um isomorfismo entre estruturas morfossintáticas e suas
funções semânticas e/ou pragmáticas correspondentes (GIVÓN, 1990). Ele compreende três
subprincípios, a saber: quantidade de informação (segundo o qual quanto maior a quantidade
de informação, maior a quantidade de forma linguística); proximidade entre os constituintes
(o qual preceitua que os conceitos mais integrados no plano cognitivo se apresentam com
maior grau de ligação morfossintática); e ordenação linear (que estabelece que os
constituintes se ordenam, no tempo e no espaço, conforme pressões cognitivas). Desse modo,
a iconicidade é estimulada por questões de clareza e transparência, de modo a reduzir a
opacidade entre a forma linguística e seu correlato semântico e/ou pragmático.
Em direção oposta à do princípio de iconicidade está a tendência em economizar
esforço. Zipf (1935, p. 29, apud HAIMAN, 1985, p. 167) observa que “alta frequência é a
causa de pequeno tamanho”, e isso equivale a dizer que o que é familiar, nas línguas, recebe
expressão reduzida. Nesse sentido, a dinâmica da gramática de uma língua natural está sujeita
a pressões competidoras, oscilando entre motivações que ora concorrem para maior clareza,
expressividade, ora atendem a necessidades de praticidade e economia.
Já o princípio de marcação diz respeito “à presença vs ausência de uma propriedade
nos membros de um par contrastante de categorias lingüísticas” (FURTADO DA CUNHA,
2001, p. 60). Segundo Givón (1990), existem três critérios principais que podem ser usados
para distinguir uma categoria marcada de uma não marcada, num contraste binário. São eles:
a) Complexidade estrutural: a estrutura marcada tende a ser mais complexa – ou
maior – que a não-marcada correspondente;
b) Distribuição de frequência: a categoria marcada tende a ser menos frequente,
portanto mais saliente cognitivamente, que a não-marcada;
c) Complexidade cognitiva: a estrutura marcada normalmente é mais complexa
cognitivamente (em termos de atenção, esforço mental ou duração de
processamento) que a correspondente não-marcada.
Por fim, também nos valeremos neste trabalho de um princípio proposto por Dubois e
Votre (1994), o da marcação expressiva, cuja atuação serve, entre outras coisas, para
equilibrar o esforço de codificação que provocam certos aspectos de um fenômeno discursivo.
De acordo com os autores, esse princípio é cognitivamente motivado em termos da
expressividade e da eficácia. Desse modo, diferentemente do que acontece com a marcação tal
como é tratada pela tradição linguística, um procedimento discursivo marcado
expressivamente pode: (a) ser menos elaborado e menos longo; (b) ser mais frequente; e (c)
reduzir ou anular o esforço de codificação.
182
Plano discursivo, prototipicidade e informatividade
A noção de plano discursivo refere-se à organização estrutural do texto e compreende
as dimensões de figura e fundo, cuja formulação original se deve à Gestalt115. Essas
dimensões relacionam-se à percepção e à cognição: as entidades que aparecem em primeiro
plano (ou seja, as mais salientes) são percebidas com mais nitidez e facilidade, enquanto as
que se encontram fora de destaque são menos aparentes e perceptíveis. Em termos de
discurso, essa distinção equivale à oposição entre central e periférico.
Na Linguística Funcional, a categoria plano discursivo foi inicialmente aplicada ao
estudo de narrativas. No texto narrativo, constitui figura a porção que contém a comunicação
central e apresenta a sequência temporal de eventos concluídos, pontuais, afirmativos, realis,
sob a responsabilidade de um agente. Já a parte que corresponde à descrição de ações e
eventos simultâneos à cadeia da figura, incluindo a descrição de estados, a localização dos
participantes da narrativa e os comentários avaliativos, representa fundo. Às porções figura e
fundo de um texto associa-se um conjunto de propriedades, traduzidas pelos parâmetros do
complexo de transitividade que apresentaremos na seção seguinte. Dito de outro modo, os
componentes da transitividade desempenham funções discursivas comuns, que são as de
assinalar as partes centrais e periféricas de um dado texto.
Já a prototipicidade tem sua origem na teoria da categorização, associada à psicologia
cognitiva. Ela é, segundo Rosch (1973), possivelmente uma consequência de propriedades
inerentes da percepção humana, como a saliência cognitiva. O representante prototípico de
uma categoria reúne os traços recorrentes de que se compõe essa categoria. Dessa forma, a
classificação dá-se por meio do elemento que exemplifica o protótipo, enquanto os outros
elementos são classificados considerando as características mais próximas e as mais distantes
em relação ao exemplar prototípico. Essa perspectiva não linear/categórica e não discreta
permite o tratamento escalar e contínuo de aspectos gramaticais, como é o caso da
transitividade, que discutimos neste trabalho.
Quanto à informatividade, ela tem a ver com o conhecimento que os interlocutores
compartilham, ou supõem que compartilham, na interação verbal. De modo geral, a aplicação
desse princípio se tem voltado para o exame do status informacional dos referentes nominais,
de sorte que um Sintagma Nominal pode ser classificado como dado, novo, disponível e
inferível.
Um referente será considerado dado, ou velho, se já tiver ocorrido no texto (referente
textualmente dado) ou se estiver disponível na situação de fala (referente situacionalmente
dado), como os próprios participantes do discurso. Quando for introduzido no discurso pela
primeira vez, o referente será considerado novo. Se já estiver na mente do ouvinte por se tratar
de um referente único (num dado contexto), será classificado como disponível, conforme se
dá com “a lua”, “o sol”, “Florianópolis”. Será inferível o referente cuja identificação se der
por um processo de inferência a partir de outras informações dadas, como ocorre com o termo
“motorista” num texto que se refira ou trate de automóveis, por exemplo.
Estratégias de relativização e transitividade: entre a norma e o uso
Nesta seção, apresentamos, de forma sucinta, o que registram compêndios gramaticais
mais conservadores sobre as estratégias de relativização e sobre a transitividade e o que
115
Gestalt ou psicologia da forma: doutrina filosófica de origem alemã que surgiu por volta de 1870. Esta
doutrina traz em si a concepção de que não se pode conhecer o todo através das partes, e sim as partes por meio
do conjunto.
183
discutem os estudos linguísticos mais recentes, sobretudo os de orientação funcionalista, a
respeito desses fenômenos.
Tratamento das estratégias de relativização
Via de regra, as gramáticas tradicionais não discutem os processos de construção da
cláusula relativa. Limitam-se a conceituar/definir as orações relativas e a apresentar sua
classificação prototípica em restritivas e explicativas (ver CUNHA; CINTRA, 1985; ROCHA
LIMA, 1994; BECHARA, 2009, entre outros). Além disso, na definição que apresentam,
esses manuais não utilizam uma abordagem unificada, confundindo, muitas vezes, critérios de
naturezas distintas: ora sintáticos, ora semânticos e/ou pragmáticos, ora os três
simultaneamente, conforme discutido em Bispo (2007).
Em termos estruturais, os exemplares de orações relativas de que se ocupam os
compêndios gramaticais correspondem ao modelo padrão, conforme descrito por Perini
(1998) e caracterizado por apresentar:
a) um pronome relativo;
b) estrutura oracional aparentemente incompleta, logo após o relativo;
c) articulação de um elemento nominal + relativo + estrutura oracional aparentemente
incompleta.
Pode ilustrar essa estrutura a oração destacada em (1), na qual há: i) pronome relativo
(que); ii) estrutura oracional aparentemente incompleta (procurou você), pois falta-lhe o
sujeito (a pessoa); e iii) articulação de um elemento nominal + relativo + estrutura oracional
aparentemente incompleta (A pessoa que procurou você), tudo isso representando o sujeito de
estava nervosa.
(1)
A pessoa que procurou você estava nervosa.
Também serve de ilustração o exemplo (2), em que, além da estrutura supracitada,
ocorre uma preposição antes do relativo (de), exigida pelo verbo (precisar), conforme assinala
a tradição gramatical, caracterizando a relativa padrão preposicionada (RPP, na denominação
de Bispo, 2009).
(2)
O material de que eu preciso não está disponível.
Ocorre, porém, que, ao lado de construções relativas canônicas conforme
exemplificadas em (1) e (2), o Português Brasileiro (PB) também exibe estruturas não-padrão,
como as ilustradas em (1a), (2a) e (2b).
(1a) A pessoa que ela procurou você estava nervosa.
(2a) O material que eu preciso não está disponível.
(2b) O material que eu preciso dele não está disponível.
Em (1a) e (2b), as relativas divergem do padrão porque o antecedente do pronome
relativo é copiado na oração subordinada, por meio dos anafóricos ela e ele, ao passo que, em
(2a), ocorre a supressão (corte) da preposição de, regida pela forma verbal preciso. Essas
relativas são denominadas, na literatura linguística, copiadora e cortadora, respectivamente.
Essas estratégias são tratadas, pela maioria dos manuais de gramática tradicional,
como meros desvios da forma canônica e, por isso, devem ser evitadas. Entretanto, diversos
estudos de orientação sociolinguística, como os de Mollica (1977), Tarallo (1983), Correa
(1998), Pinheiro (1998), Barros (2000), Varejão (2006) e as pesquisas de cunho funcionalista
184
empreendidas por Bispo (2003, 2007 e 2009) atestam que as relativas não-padrão são
largamente empregadas por usuários da língua de diferentes níveis de escolaridade e em
diferentes contextos comunicativos, inclusive alguns que envolvem maior formalidade.
Esses trabalhos apontam a predominância da ocorrência de estratégias de relativização
não-padrão em contextos preposicionados, mais especificamente da relativa cortadora, que
chega a apresentar uma média percentual acima dos 70%. Mesmo entre informantes com
maior grau de escolaridade (pelo menos em alguns corpora analisados), o uso dessa estratégia
superou a recorrência às demais, conforme constatou Bispo (2009) em sua pesquisa de
doutoramento.
Diante dessa realidade, parece-nos clara a importância de se investigarem motivações
para o emprego das estratégias não-padrão de construção relativa, além da necessidade de se
reconsiderar o tratamento dado a essas formas no ambiente escolar, que, via de regra, segue
orientações de tradição normativa, assumindo a cortadora e a copiadora como desvios do
modelo padrão, sendo assim consideradas “erro”.
Transitividade: entre o verbo e a oração
A transitividade é tratada, pela maior parte dos compêndios gramaticais, como uma
propriedade do verbo, e não da oração. São transitivos aqueles verbos cujo processo se
transmite a outros elementos, que lhes completam o sentido. Em contrapartida, nos verbos
intransitivos, “a ação não vai além do verbo” (CUNHA; CINTRA, 1985, p. 132). Em outras
palavras, a classificação de um verbo como transitivo ou intransitivo ancora-se em critérios
sintático-semânticos: presença ou não de um sintagma nominal (SN) objeto (complemento
verbal), exigido pelo significado do verbo.
Embora faça uma distinção formal rígida entre verbos transitivos e intransitivos, a
tradição gramatical reconhece o fato de que essa classificação nem sempre pode ser tão
rigorosa. A esse respeito, Bechara (2009, p. 415) faz notar que “um mesmo verbo pode ser
usado transitiva ou intransitivamente, principalmente quando o processo verbal tem aplicação
muito vaga”, e apresenta os seguintes exemplos:
(3)
(4)
Eles comeram maçãs (transitivo).
Eles não comeram (intransitivo).
Com isso, o autor chega à conclusão de que “a oposição entre transitivo e intransitivo
não é absoluta, e mais pertence ao léxico do que à gramática” (p. 415).
Cunha e Cintra (1985, p. 134) registram a importância do contexto na definição da
transitividade do verbo: “a análise da transitividade verbal é feita de acordo com o texto e não
isoladamente. O mesmo verbo pode estar empregado ora intransitivamente, ora
transitivamente”. Isso mostra, portanto, que a transitividade não é uma propriedade intrínseca
do verbo, mas depende de fatores que extrapolam o âmbito do sintagma verbal (SV).
Num estudo sobre a transitividade e seus contextos de uso, Furtado da Cunha e Souza
(2007) assinalam que a conceituação desse fenômeno, tal como delineado pela gramática
tradicional, apresenta pontos problemáticos. Segundo as autoras, “a transitividade não é uma
propriedade inerente de um dado verbo”, visto que, conforme o contexto de uso, um mesmo
verbo pode oscilar entre uma classificação transitiva ou intransitiva. Além disso, postulam
que “o SN que é sintaticamente analisado como objeto direto pela gramática tradicional nem
sempre funciona semanticamente como paciente da ação verbal, afastando-se do caso
característico, ou prototípico”. Por fim, elas destacam que, para a definição da transitividade,
“interagem elementos tanto de natureza sintática (presença/ausência de SN complemento),
quanto semântica (papel semântico do objeto) e pragmática (uso textual do verbo)” (p. 28).
185
As pesquisadoras observam que para a linguística funcional norte-americana, a
transitividade é “uma propriedade contínua, escalar (ou gradiente), da oração como um todo.
É na oração que se podem observar as relações entre o verbo e seu(s) argumento(s) – a
gramática oração” (p. 29).
Segundo esse modelo teórico, o fenômeno da transitividade envolve um componente
sintático e um componente semântico. Sintaticamente, uma oração transitiva descreve um
evento que potencialmente implica, no mínimo, dois participantes: um agente (responsável
pela ação), codificado como sujeito, e um paciente que é afetado por essa ação, codificado
como objeto direto. Da perspectiva semântica, o evento transitivo prototípico é definido pelas
propriedades do agente, do paciente e do verbo envolvidos na oração que codifica esse
evento, quais sejam: agentividade (ter agente intencional, ativo), afetamento (ter um paciente
concreto, afetado) e perfectividade (envolver um evento concluído, pontual), conforme
destaca Givón (2001). Em princípio, a delimitação das propriedades desses três elementos,
segundo enfatiza mesmo autor, é uma questão de grau.
Outra proposta funcionalista de abordagem da transitividade foi desenvolvida por
Hopper e Thompson (1980), que, estudando a estrutura da narrativa e o modo pelo qual ela se
identifica com determinadas formas gramaticais, formularam a transitividade como uma
noção contínua, escalar, não categórica. Segundo esses autores, para que uma oração seja
transitiva, não é necessária a ocorrência dos três elementos – sujeito, verbo, objeto. Para eles,
a transitividade consiste de um complexo de dez parâmetros sintático-semânticos
independentes, que focalizam diferentes ângulos da transferência da ação em uma porção
distinta da oração.
Esses traços, conquanto sejam independentes, atuam em conjunto e articulados na
língua, o que implica que nenhum deles isoladamente mostra-se suficiente para determinar a
transitividade de uma oração. Os dez parâmetros dizem respeito à quantidade de participantes
(um vs mais de um), à cinese (ação vs não ação), ao aspecto (perfectivo vs não perfectivo) e à
pontualidade do verbo (pontual vs não pontual), à intencionalidade (intencional vs não
intencional) e à agentividade do sujeito (agentivo vs não agentivo), à polaridade (afirmativa
vs negativa) e à modalidade da oração (modo realis vs modo irrealis), ao afetamento (afetado
vs não afetado) e à individuação do objeto (individuado vs não individuado). Quanto mais
positivamente for marcada a oração (considerando-se os pares contrastivos de traços), mais
alta ela se posicionará na escala da transitividade. Para melhor compreensão, apresentamos a
seguir ocorrências extraídas do Corpus Discurso & Gramática – a língua falada e escrita na
cidade do Natal (FURTADO DA CUNHA, 1998):
(5)
(6)
(7)
“aí eu não podia dizer que tinha sido eu que tinha trancado ele... né... que foi que eu
fiz... joguei a chave no lixo... e saí feito uma louca... na escola... procurando o
diretor...” (Corpus D&G Natal, língua falada, p. 51)
“... num era aquele momento de ficar em Porto Alegre... então eu cheguei no
aeroporto... peguei... pela primeira vez eu vi minhas malas...” (Corpus D&G Natal,
língua falada, p. 101)
“... eu tava com muita fome porque eu num tinha comido muito bem no avião... então a
Rodoviária de Porto Alegre tem umas lanchonetes assim super apetitosas... umas
tangerinas... uns... uns bolos super transados...” (Corpus D&G Natal, língua falada, p. 101)
A oração destacada em (5) localiza-se no ponto mais alto da escala de transitividade
(grau 10), pois apresenta todos os traços de alta transitividade, ou seja, é marcada
positivamente quanto aos parâmetros de cinese, perfectividade e pontualidade do verbo,
polaridade e modalidade da oração, agentividade e intencionalidade do sujeito, afetamento e
individuação do objeto, além de conter dois participantes (eu e a chave). Representa, pois,
186
conforme a perspectiva givoniana, um evento transitivo prototípico. Em (6), a oração em
destaque apresenta grau 9 na escala da transitividade, sendo marcada negativamente apenas
para o traço afetamento do objeto. Por fim, a oração destacada em (6) possui grau 3 de
transitividade, pois só apresenta os traços de polaridade afirmativa e modalidade realis da
oração, além de dois participantes (a Rodoviária de Porto Alegre e umas lanchonetes).
Considerando-se a abordagem do fenônemo feita pela gramática tradicional, os verbos
das orações destacadas de (5) a (7) teriam a seguinte classificação: jogar e ter seriam tomados
como transitivos, ao passo que chegar seria classificado como intransitivo.
Como se pode ver, a transitividade é concebida, sob a ótica da linguística funcional
norte-americana, como uma noção gradiente, escalar, diferentemente da visão dicotômica em
que se baseia a gramática tradicional. Admite-se, naquela perspectiva, a existência de uma
oração transitiva prototípica, que reflete o afetamento total do objeto ou a transferência
completa da ação de um participante para outro, e a partir da qual são analisados outros
exemplares de orações com maior ou menor grau de transitividade, conforme se aproximem
ou se distanciem do protótipo.
Assim, a abordagem funcional do fenômeno da transitividade apresenta outra
dimensão para o estudo da oração e pode fornecer contribuições para o ensino de língua
portuguesa no tocante à análise sintática, conforme discutiremos na próxima seção.
Aspectos sociocognitivos, relativização, transitividade e ensino
Discutimos, nesta seção, motivações sociointeracionais e cognitivas no uso das
estratégias de relativização não-padrão do PB e na manifestação do fenômeno da
transitividade, além de possíveis implicações para o ensino de língua portuguesa.
Conforme expusemos anteriormente, os trabalhos sobre a variação no uso das
estratégias de relativização no PB revelaram a predominância da ocorrência das relativas nãopadrão em detrimento da estratégia padrão, pelo menos em ambiente preposicionado, nos
quais preponderou o emprego das cortadoras com percentuais acima de 70% (TARALLO,
1983; CORREA, 1998; BARROS, 2000; VAREJÃO, 2006; BISPO, 2007 e 2009).
Em sua pesquisa de doutoramento, Bispo (2009) constatou o uso quase categórico da
cortadora, na modalidade falada: ela representou um percentual médio de 90% para as
relativas em ambiente preposicionado, ao passo que a estratégia padrão teve apenas 6% de
ocorrência. Mesmo na escrita (modalidade que comumente implica maior monitoramento no
uso da língua), os dados mostraram que os percentuais das estratégias não-padrão quase se
igualam aos números da relativa padrão: as primeiras ficaram com 47%, ao passo que esta
última respondeu por 53% dos casos.
Diante dessa realidade, há que se indagar, entre outras coisas, as razões pelas quais um
usuário da língua portuguesa, por exemplo, emprega(ria) (8) ou (9), em vez de (8a) e (9a). Ou
mesmo, em outra situação, o que leva alguém a utilizar (10) em vez de (10a) ou (10b)? Em
outros termos, que fator(es) motiva(m) a recorrência à cortadora ou à copiadora em
detrimento da RPP ou o contrário?
(8)
“não ... da pena de morte não ... só assassino ... assassinato eu sou ... porque isso é um
crime que não ... que eu não me conformo ... sabe?” (Corpus D&G Natal, língua
falada, p. 250)
(8a) ... porque isso é um crime com que não me conformo.
(9) “... então quando o cara chegou simplesmente botou chave em todos os corredores ...
todas as portas ... fechou ... depois das sete e quinze ninguém entrava mais ... só saía de
dez e quinze ... então nós tínhamos um professor que nós não gostávamos dele ... era
187
um professor de mecanografia e ele era louco ... o professor era simplesmente louco ...”
(Corpus D&G Natal, língua falada, p. 51)
(9a) ... então nós tínhamos um professor de quem nós não gostávamos ...
(10) “No chão tem um tapete todo desenhado (estampado) no qual adoro deitar para relaxar
a coluna. Acho que é ‘só’!”(Corpus D&G Rio de Janeiro, língua escrita, informante 5)
(10a) No chão tem um tapete todo desenhado (estampado) o qual adoro deitar para relaxar a
coluna.
(10b) No chão tem um tapete todo desenhado (estampado) o qual adoro deitar nele para
relaxar a coluna.
Em busca de resposta(s) a essas questões, propomos primeiramente observar o
emprego de cada uma das estratégias à luz de alguns princípios funcionalistas para melhor
compreensão da(s) escolha(s) feita(s) pelos usuários da língua.
Do ponto de vista estrutural, a RPP é mais complexa que a cortadora por ser mais
extensa que esta, envolvendo, pelo menos, um elemento fonológico a mais, no caso a
preposição. Comparadas à copiadora, essas estratégias são menos complexas do ponto de
vista da estrutura, em virtude da presença da cópia do referente do relativo.
Cognitivamente, a RPP também é mais complexa que a cortadora, justamente por
envolver a articulação, por parte do falante, e o processamento, por parte do ouvinte, de um
vocábulo a mais. Acrescenta-se a isso o fato de que a presença desse termo a mais demanda
maior esforço por envolver a noção de regência, o que implica trabalho duplo: reconhecer que
o termo regente requer preposição e identificar qual será empregada. A relativa em (8) e sua
versão padrão em (8a) ilustram o que afirmamos.
Como é possível notar, a oração destacada em (8a) demanda maior esforço cognitivo
tanto na produção quanto no processamento em comparação com a relativa presente em (8),
pois, além de envolver a presença de uma sequência fonológica a mais em relação a esta,
implica o conhecimento de que, conforme prevê a norma padrão da língua, o verbo
conformar-se exige a preposição com, que, no contexto, antecederia o nome.
Para o caso da copiadora, conforme registrado por Bispo (2003 e 2007), à maior
extensão na estrutura não corresponde maior grau de complexidade cognitiva. Isso significa
dizer, por exemplo, que a oração destacada em (9), embora mais extensa que sua correlata
padrão presente em (9a) demanda menor esforço cognitivo em seu processamento, sobretudo
porque a presença do elemento correferente do antecedente do relativo (ele) deixa mais
transparente/clara a relação verbo-complemento, não apenas pela maior proximidade entre
eles, como também pela manutenção da linearidade da oração (dado que se conserva a
ordenação SVO), o que não acontece no caso da oração destacada em (9a).
Essa incompatibilidade entre complexidade estrutural e cognitiva pode explicar-se
pelo princípio da expressividade retórica ou da marcação expressiva, proposto por Dubois e
Votre (1994). Dado que esse princípio acarreta um equilíbrio nas tarefas de codificação, no
caso da estratégia copiadora, a repetição do antecedente do relativo facilita o processamento
pelo interlocutor, tanto pela proximidade entre termos da cadeia sintática quanto pela
linearidade da estrutura oracional. Desse modo, a maior complexidade estrutural da oração
seria compensada pela sua maior expressividade.
É preciso reforçar que a mudança na posição de termos da oração relativa também
contribui para a complexidade cognitiva na produção e processamento da RPP em relação à
cortadora. Uma vez que, na ordem direta, a preposição sempre sucede o verbo, sua
anteposição implica um custo cognitivo. Para constatar isso, basta tomar, então, grosso modo,
as etapas para a estrutura padrão: seleção do verbo, identificação da regência, anteposição da
preposição. Para a cortadora, teríamos: seleção do elemento que e seleção do verbo.
188
A questão da regência, na verdade, desempenha papel fundamental nesse contexto.
Uma vez que o falante constrói o enunciado em que será utilizada uma relativa sem saber
possivelmente que verbo empregará (e muito menos sua regência), o uso do que no início da
subordinada assegura o vínculo entre a oração anterior e a relativa, independentemente do
verbo a ser empregado. Assim, o que, a priori, atua como elemento que permite a conexão
entre as orações, fazendo com que a preposição acabe por não ser utilizada. Observemos, para
melhor compreensão, a situação do exemplo (8): ao dizer “é um crime que não ...”, o
informante já estabelece, por meio do uso do pronome relativo, a conexão entre a oração “isso
é um crime” e sua subordinada (no caso, “que eu não me conformo”), sem que seja necessário
saber previamente que verbo será empregado (e, por consequência, se ele requer ou não a
presença de preposição). Garantida a conexão, o informante poderia utilizar qualquer verbo
(aceitar, tolerar, perdoar, acostumar-se, etc.).
Por ser mais complexa estrutural e cognitivamente, a RPP é menos frequente que a
cortadora, conforme atestam os trabalhos sobre as relativas aqui referidos. Assim, na
perspectiva givoniana de marcação, a primeira estratégia é marcada em oposição ao caráter
não-marcado desta última. Do ponto de vista da expressividade, porém, a situação se inverte:
por se tratar de uma estrutura menos longa e, principalmente, por reduzir o esforço de
codificação/decodificação, em nome da eficácia, a cortadora é mais expressiva que a sua
correlata padrão, ou melhor, é marcada expressivamente.
Considerando as três estratégias à luz desses princípios (de marcação e de
expressividade), é possível estabelecer uma gradação entre a estrutura relativa mais marcada e
a não-marcada. Assim, a cortadora e a copiadora ocupariam os extremos de um continuum,
respectivamente, como a estratégia não-marcada e a mais marcada, estando a RPP na posição
intermediária. Em contrapartida, considerando o princípio da expressividade, teríamos a
copiadora como a mais expressiva, a RPP como menos expressiva ou não-marcada
expressivamente, enquanto a cortadora ocuparia a posição intermediária.
Com relação à iconicidade, a expectativa é que ela coincida com o princípio de
marcação, no sentido de que estruturas marcadas sejam mais motivadas iconicamente em
relação às correspondentes não-marcadas. Em se tratando das estratégias de relativização, é
preciso fazer algumas ponderações.
Conforme registramos em sessão anterior, as formas e estruturas da língua resultam de
fatores e pressões diversos, que envolvem, ao mesmo tempo, motivação e arbitrariedade.
Além disso, reiteramos que a dinâmica da gramática de qualquer língua natural subordina-se a
motivações competidoras, ora concorrendo para maior clareza, expressividade, ora atendendo
a necessidades de eficiência e economia.
Desse modo, para o caso da copiadora, assumimos com Bispo (2003), que o aumento
na estrutura da relativa em comparação à forma padrão justifica-se, no plano do discurso,
como uma necessidade expressiva, estando a relação icônica forma/função associada à
facilidade de produção/processamento, conforme discutimos para os casos de (9) e (9a).
Quanto à cortadora, à semelhança do que disse Bispo (2007), a motivação que leva o
usuário da língua a empregar essa estratégia em detrimento da RPP parece ser de natureza
oposta à da iconicidade, no caso o princípio da economia de esforço. Isso se dá pelo fato de
que a cortadora elimina um elemento da cláusula relativa: a preposição.
Assim, do ponto de vista cognitivo, a relativa cortadora implica uma redução de
esforço, tanto na produção (por parte do falante/escritor) quanto no processamento (por parte
do ouvinte/leitor) em comparação com sua correspondente padrão, já que esta envolve não
apenas um elemento linguístico a mais, mas também o conhecimento sobre regência e, em
particular, o regime de cada verbo ou nome utilizado.
Além disso, a distância existente entre o termo regente e o termo regido, na oração
relativa, bem como a alteração da linearidade da oração, de SVO para OSV ou OVS, contribuem
189
para o enfraquecimento da relação icônica, ou melhor, para uma maior opacidade na relação de
regência, o que acaba favorecendo o uso da cortadora ou o emprego de uma preposição diferente
daquela prescrita pela norma padrão, conforme já é possível ver em (11), a seguir.
(11) “A parte da minha casa em que mais gosto é a sala-de-estar, pois é nela que se tem um
cantinho e uma luminária que é ideal para se ler um livro, assistir um filme etc.”
(Corpus D&G Rio de Janeiro, língua escrita, informante 1)
Por outro lado, caso a oração aparecesse na ordem direta, o usuário da língua
provavelmente não teria dificuldade de escolher a preposição a ser empregada, como é
possível constatar em (11a).
(11a) Eu gosto mais da sala-de-estar (parte de minha casa).
Diante disso e voltando às questões postas no início desta seção, parece-nos claro que a
recorrência às relativas não-padrão em detrimento da RPP, em ambiente preposicionado, se
deve a motivações de natureza sociointeracional (tais como necessidade de maior clareza,
expressividade, propósitos pragmáticos, situação comunicativa) e cognitiva (em termos de
redução/economia de esforço e atenção).
A consideração dessas motivações pode ter contribuição significativa para o ensino de
língua portuguesa. Em primeiro lugar, permite ao professor admitir que, paralelamente à
forma padrão de estruturação da oração relativa, existem outros modelos de organização, dos
quais a cortadora e a copiadora são exemplares. Em segundo lugar, proporciona uma
perspectiva diferente acerca das estratégias não-padrão de relativização, considerando-se que
a recorrência a elas não representa mero desvio à norma padrão, mas se deve a fatores
sociocomunicativos e cognitivos conforme já expusemos. Por fim, cria espaço para o trabalho
com a variação linguística, por meio do qual o professor pode associar as ocorrências das
relativas não-padrão e as da RPP às situações reais de uso, vislumbrando sempre a adequação
da forma linguística ao contexto comunicativo em que ela será empregada. Com isso, o
docente pode orientar os alunos a perceber, por exemplo, que, num texto escrito formal, devase dar preferência ao modelo padrão, ao passo que, em situações de informalidade ou até
mesmo na fala formal, o emprego da cortadora e até da copiadora seja comum e perfeitamente
aceitável. Tanto é assim que, mesmo em contextos formais de língua escrita, encontramos a
ocorrência da relativa cortadora, como no exemplo abaixo, extraído da página virtual da
Universidade Federal de Viçosa:
(12) Cursos a distância da UFV: educação de qualidade na hora e no lugar que você
precisa116.
Quanto à transitividade, conforme mostramos em sessão anterior, a classificação
dicotômica dos verbos como transitivos e intransitivos parece não corresponder à (ou não dar
conta da) diversidade de situações de usos dos verbos em variados contextos comunicativos.
Casos há em que o verbo tradicionalmente classificado como transitivo difere
consideravelmente do exemplar prototípico, como acontece em (13).
(13) “... já no último dia ... Eu fiquei sabendo que a gente tava concorrendo com três igrejas
só ... [...] e aí começou a ficar mais animado e tudo porque eu queria esse prêmio de
todo jeito pra ela ... Lá pra igreja ... Né ...” (Corpus D&G Natal, língua falada, p. 178)”
116
Disponível em: www.ufv.br. Acesso em: 23 jun. 2011.
190
O verbo querer, à semelhança dos verbos de cognição e sensação, está
semanticamente mais próximo de um estado do que de uma ação, pois tem sujeito
experiencial e seu objeto (esse prêmio) não representa um paciente afetado, embora seja
codificado como objeto direto prototípico.
De outro modo, o verbo da oração destacada em (14), embora seja tido pela gramática
tradicional como intransitivo, participa da codificação de um evento que está mais próximo
daqueles codificados por uma oração transitiva prototípica: envolve dois participantes, ação,
perfectividade e pontualidade do verbo, agentividade e intencionalidade do sujeito, polaridade
e modo realis da oração, individuação do objeto, situando-se, pois, no grau 9 da escala de
transitividade.
(14) “fui à alfândega... peguei minhas malas e tomei um táxi e fui pra... rodoviária... em
Porto Alegre... no centro de Porto Alegre...” (Corpus D&G Natal, língua falada, p.
101)”
O que justifica, então, diferentes formas de manifestação da transitividade, conforme
exemplificam as amostras (13) e (15)? Ou: o que faz com que verbos semanticamente
distintos tenham a mesma codificação sintática? Ou ainda: por que os argumentos do verbo
podem ou não vir expressos na oração? Que relação se pode estabelecer entre transitividade e
organização textual? Que motivações estão aí implicadas?
(15) “... o pessoal lá da polícia... eles ofereceram um dinheiro né... como uma oferta pra
ajudar lá no... pra ajudar no convento né... e nas obras lá de caridade deles... então o
padre... o padre não... o chefe lá da freira sabe?... que eu esqueci o nome... mas aí ele
falou com ela e disse que tinham que aceitar né...tendo e vista que eles estavam
oferecendo tanto dinheiro pra eles...” (Corpus D&G Natal, língua falada, p.277)
Para cada questão, é preciso considerar diversos fatores envolvidos no fenômeno da
transitividade, bem como é necessário destacar com que acepção ele é aqui entendido.
Primeiramente, reiteramos que, diferentemente dos estudos gramaticais tradicionais,
consideramos a transitividade como uma propriedade da oração, e não do verbo. Além disso,
entendemos que ela consiste em um fenômeno que não pode ser visto como discreto, mas,
sim, como gradiente, escalar e é numa perspectiva gradual que ela pode ser melhor estudada.
Quanto às questões elencadas anteriormente, assumimos com Furtado da Cunha e
Souza (2007), a existência de uma oração transitiva prototípica, aquela que reflete o
afetamento total do objeto ou a transferência completa da ação de um participante para outro,
conforme se dá com a oração destacada em (5). A partir desse protótipo, são analisados outros
exemplares de orações com maior ou menor grau de transitividade, conforme se aproximem
ou se distanciem do modelo.
Nesse sentido, para o caso de (13), embora sujeito, verbo e complemento não
apresentem as características do modelo transitivo (agentividade, ação e afetamento total do
objeto, respectivamente), a oração é codificada do mesmo modo que a transitiva prototípica,
como ilustrado em (5), por meio de um processo de extensão metafórica. Ou seja:
semelhanças com o protótipo, como o envolvimento de um sujeito humano (eu) e de um
objeto inanimado (esse prêmio), licenciam a codificação morfossintática de uma oração com
baixo grau de transitividade. O uso do mesmo padrão sintático para representar cenas
diferentes, mas relacionadas – dadas as propriedades do sujeito (humano) e do objeto
(inanimado) – resulta em economia linguística.
É preciso considerar ainda que a análise da transitividade não se deve concentrar nos
verbos de orações isoladas. Ao contrário, o contexto discursivo-pragmático é essencial
191
quando se avalia a transitividade oracional porque é no funcionamento textual que um verbo
potencialmente classificado como transitivo pode ou não ser usado com complemento,
conforme se dá com o verbo aceitar, presente em (15). Embora seja classificado como
transitivo, o verbo aceitar foi empregado sem o complemento, pois o termo que
desempenharia esse papel constitui informação velha, fornecida no trecho anterior (dinheiro).
Nesse caso, a omissão do objeto direto foi motivada pelo contexto comunicativo/discursivo,
mais particularmente em virtude do status informacional desse argumento.
No que diz respeito à relação entre transitividade e organização textual, consideramos,
com Hopper e Thompson (1980), que o grau de transitividade de uma oração reflete sua
função discursiva característica, de modo que orações com alta transitividade assinalam
porções centrais do texto, correspondentes à figura, enquanto orações com baixa
transitividade marcam as porções periféricas, correspondentes ao fundo. Há, portanto, uma
correlação forte entre a marcação gramatical dos parâmetros da transitividade e a distinção
figura e fundo.
Levando essa questão para a sala de aula, percebemos que a abordagem funcionalista
pode fornecer ao professor elementos que lhe permitem explicar mais satisfatoriamente ou,
pelo menos, de forma mais consistente, os casos de orações classificadas como transitivas em
que os verbos não codificam um evento transitivo prototípico. Isso implica, naturalmente, o
entendimento de que a transitividade, à semelhança de muitos outros fenômenos da língua,
não consiste de uma categoria estanque, mas é melhor estudada/analisada numa perspectiva
gradual, escalar.
Desse modo, o professor pode mostrar aos alunos que a classificação dos verbos deve
ser feita a partir de um item que exemplifica o protótipo, enquanto os outros elementos são
classificados considerando suas características que mais se aproximam ou distanciam em
relação ao exemplar prototípico. Com isso, os alunos podem ser levados a identificar, por
exemplo, a ocorrência de verbos que figuram em orações mais prototipicamente transitivas e
outros presentes em orações menos transitivas.
Além disso, o professor deve mostrar aos alunos o papel do contexto discursivopragmático, ressaltando como ele é fundamental na aferição da transitividade oracional, pois,
embora um verbo possa ser potencialmente classificado como transitivo, é no seu
funcionamento textual que essa potencialidade se concretiza ou não. Segundo afirma Furtado
da Cunha (2010, p. 14):
É a recorrência de uso de um verbo nos contextos cotidianos de interação que fixa
ou regulariza sua estrutura argumental. Logo, o estudo da transitividade deve ser
baseado em textos de gêneros variados, orais e escritos, formais e informais, para
que o aluno possa refletir sobre a utilização de um dado verbo e que contribuições
ele traz para o texto em termos de efeitos semântico-pragmáticos e
morfossintáticos.
É possível, portanto, oferecer aos alunos diferentes possibilidades de manifestação do
fenômeno da transitividade, procurando correlacioná-las aos mais variados propósitos
comunicativos dos usuários da língua. Também é possível ao professor fazer o contraponto
com o que expressam muitos compêndios gramaticais, de modo a proporcionar aos alunos
uma reflexão sobre a língua, percebendo que a combinação de um dado verbo com um ou dois
participantes não se trata de uma propriedade inerente ao léxico, e sim um fato altamente
variável em dados reais de fala e de escrita.
Um trabalho assim conduzido, a nosso ver, pode obter mais êxito quanto à
aprendizagem do conteúdo ministrado, uma vez que permite ao aluno refletir sobre o
funcionamento da língua a partir da investigação de um fenômeno em particular. Também se
192
mostra mais significativo porque toma como objeto de análise dados reais de uso da língua, o
que aproxima o trabalho feito no ambiente escolar da realidade vivida pelo aluno.
Palavras finais
Por entender que a língua, como elemento dinâmico que é, permite ao usuário uma
gama de possibilidades de construções morfossintáticas e que, para melhor compreendê-las, é
preciso observar suas manifestações em situações reais de interação verbal, procuramos, neste
trabalho, fornecer contribuições advindas da investigação das motivações sociointeracionais e
cognitivas de fenômenos linguísticos para o ensino de língua portuguesa na educação básica.
Para tanto, examinamos dois aspectos em particular: as orações relativas e a transitividade.
Conforme aqui expusemos, o tratamento dispensado pelos compêndios gramaticais
mais conservadores a esses dois fenômenos não dá conta das variadas possibilidades de usos
que se fazem das estratégias de relativização ou das diferentes manifestações da transitividade
oracional nas mais diversas situações de comunicação. Isso porque é no uso que se forjam os
distintos arranjos morfossintáticos com vistas a expressar determinados sentidos e a atender a
propósitos comunicativos específicos.
Nesse sentido, discutimos a importância da análise linguística numa perspectiva
funcional como forma de melhor compreender os diversos usos a que servem as estruturas
linguísticas bem como garantir ao usuário (educando) o acesso a uma variedade de recursos
que o sistema linguístico lhe disponibiliza.
Sabemos que a abordagem aqui exposta não esgota a questão das relativas (padrão ou
não-padrão) e da transitividade, tanto do ponto de vista teórico quanto do metodológico. No
entanto, tendo em conta o tratamento desses temas em sala de aula, sugerimos que a língua,
tal como ela é usada por falantes reais, envolvidos em interações comunicativas cotidianas,
seja objeto de reflexão tanto por parte do professor quanto dos alunos. As considerações que
aqui fizemos tiveram o intuito de contribuir para o processo de ensino-aprendizagem da
língua portuguesa.
SOCIAL AND INTERACTIONAL MOTIVATIONS FOR LINGUISTIC PHENOMENA AND
PORTUGUESE LANGUAGE TEACHING: SOME CONTRIBUTIONS
ABSTRACT: This paper addresses some contributions of functional linguistics to Portuguese language teaching
in elementary and high school levels in terms of social and interactional motivations present in language usage.
The analysis is specifically focused on relative clauses strategies and transitivity. We discuss the traditional
grammar point of view on those issues and show that this approach cannot provide a fully satisfactory
explanation for the current usage of relative strategies and transitive clauses process. The theoretical framework
is mainly based on North American functionalism, as stated by Givón (1990, 1995, 2001), Hopper and Traugott
(1993, 2003), Furtado da Cunha, Oliveira and Martelotta (2003) and other authors as Tomasello (1998, 2003) and
Langacker (1987, 1998). We show that social, interactional and cognitive motivations for various linguistic
phenomena may be helpful tools to improve mother language teaching to Brazilian students in those school levels.
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195
Orkut: Linguagem oral em suporte escrito117
Viviane Yamane da CUNHA
118
RESUMO: Este trabalho tem por objetivo maior analisar o sistema de escrita utilizado na internet, mediante
exame de textos retirados de fóruns do orkut. Para isso, o estudo baseou-se na teoria da gramática funcional
(HALLIDAY, 1994; DIK, 1997; GIVON, 1990; explicitados em NEVES, 1997;2000), uma teoria que considera
a variedade das funções linguísticas e seus modos de realização, o que exige um suporte teórico metodológico
que veja a língua como um instrumento de comunicação. Os textos selecionados foram retirados fóruns do orkut
que abordam temas polêmicos. Foram estabelecidos oito critérios para a análise do corpus: alternância de turnos,
entonação, gírias, reparações e correções, mal-entendidos, repetição de palavras, marcadores conversacionais e
emoticons. A análise desses critérios baseou-se em MARCUSCHI (2006, 2001, 1996), PRETI (2006),
HILGERT (2005), URBANO (2003) e BARROS (2006). Com base nesse estudo, a linguagem das comunidades
do orkut foi classificada segundo quatro características: as características específicas do orkut; as características
do orkut que se aproximam muito da linguagem falada; as características da linguagem falada que se aproximam
das do orkut, porém com regras um pouco diferentes; e as características da linguagem falada que foram
adaptadas para o orkut.
PALAVRAS-CHAVE: Linguagem da internet; linguagem falada; linguagem escrita; orkut.
Introdução
Ao estudar uma língua, deve-se levar em consideração a variedade das funções
lingüísticas e seus modos de realização, o que exige um suporte teórico-metodológico que
veja a língua como um instrumento de comunicação, assentando que ela não pode ser
considerada um objeto autônomo. Essa é a noção de linguagem da Gramática Funcional, que
analisa a estrutura gramatical com base na situação comunicativa inteira: a finalidade do ato
da fala, o receptor, o interlocutor e o contexto.
Trata-se de uma teoria que tem como objetivo verificar a obtenção da comunicação
por meio da língua, com centro na competência comunicativa de seus usuários.
Como diz Neves (1997), para que tal análise seja realizada devidamente, é necessário
deixar de lado certas garantias de rigor (teorias sintáticas), uma vez que o foco é a língua em
uso, com as determinações pragmáticas que a põem em função e com as interpretações
semânticas a que chegam os enunciados.
O trabalho baseia-se em usos. No estabelecimento do corpus de análise, procurarou-se
estabelecer um critério padrão (ou aquilo que seria padrão), pela média de usos. Busca-se
alguma regularidade, levando-se em conta que o usuário da língua é ativo, ou seja, que suas
produções de linguagem estão ligadas a um gênero específico de produção linguística e de
situação de interação.
Dentro desse enfoque teórico, o estudo aqui apresentado tem como objetivo uma
análise da linguagem do orkut, mediante análise de corpus. Para a análise, os textos foram
delimitados àqueles que possuem uma elaboração mais complexa e que têm uma certa
extensão, dispensando-se os que se fazem com apenas com algumas palavras, como ocorre em
certas ocasiões nesse meio. Os textos foram retirados dos fóruns de comunidade do orkut,
pois nele a escrita se encontra muito próxima da fala, podendo evidenciar como a língua
portuguesa está sendo usada no Brasil e justificando a visão funcionalista. O trabalho se
117
Este trabalho foi realizado com apoio do Fundo Mackenzie de Pesquisa - MACKPESQUISA
UPM – Universidade Presbietriana Mackenzie. Programa de Pós-Graduação em Letras. São Paulo – SP –
Brasil. 01302-907 – [email protected]
118
196
enquadra, pois, na visão da Gramática de usos do português, de base funcionalista, na qual a
autora (Neves, 2000, p. 13) afirma que a obra
parte dos próprios itens lexicais e gramaticais da língua e, explicando o seu uso em
textos reais, vai compondo a ‘gramática’ desses itens, isto é, vai mostrando as
regras que regem o seu funcionamento em todos os níveis, desde o sintagma até o
texto.
A autora busca, em seu exame de usos,
buscar os resultados de sentido, partindo do princípio de que é no uso que os
diferentes itens assumem seu significado e definem sua função, e de que as
entidades da língua têm de ser avaliadas em conformidade com o nível em que
ocorrem, definindo-se, afinal, na sua relação com o texto.
Como diz Neves (1997, p. 3), citando Gebruers (1987), a concepção funcionalista da
linguagem “é funcional porque não separa o sistema linguístico e suas peças das funções que
têm de preencher, e é dinâmica porque reconhece, na instabilidade da relação entre estrutura e
função, a força dinâmica que está por detrás do constante desenvolvimento da linguagem”.
O objetivo é responder esta pergunta: O orkut tende para a linguagem oral ou para a
linguagem escrita?
Metodologia
Foram selecionados textos contidos nos fóruns dessa rede social. Esses fóruns
representam debates pelos usuários do programa e são encontrados nas Comunidades. Os
textos selecionados foram escritos tanto por homens quanto por mulheres, de diferentes idades
e regiões, e foram retirados de fóruns com temas propícios a discussões, como aborto,
problemas com água, homossexualismo, criminalidade, etc.
Existem outros temas mais banais, como: preferências (eu gosto de chocolate);
características físicas (eu tenho olhos azuis); características que determinam como a pessoa é
psicologicamente ou o que faz (eu estudo administração). Esses temas não propiciam
comentários mais elaborados, entretanto os tipos de comentários feitos nessas comunidades
não podem ser descartados para uma pesquisa futura.
Para concretizar a análise, primeiramente se buscaram os textos na internet (fóruns do
orkut), os quais foram selecionados de acordo com o tema. Foram estabelecidos oito critérios
para análise: alternância de turnos, entonação, gírias, reparações e correções, mal-entendidos,
repetição de palavras, marcadores conversacionais e emoticons. Com isso feito, os textos
selecionados foram comparados com a conversação face a face. O resultado esperado é que o
orkut esteja muito próximo da linguagem oral, apesar de ele ser realizado em suporte escrito.
O orkut
O orkut foi criado em 24 de janeiro de 2004 pelo engenheiro da Google, Orkut
Buyukkokten, e está disponível em mais de quarenta idiomas. O público alvo inicial eram os
EUA, porém a maioria dos usuários atualmente é brasileira (mais de 50%, em maio de 2011,
segundo dados demográficos do orkut119). O programa foi inspirado na teoria dos seis graus
de separação. Tal teoria afirma que, no mundo, são necessários no máximo seis laços de
119
Disponível em http://www.orkut.com.br/Main#MembersAll. Acesso em 09 mai. 2011.
197
amizade para que duas pessoas quaisquer estejam ligadas, ou seja, uma pessoa pode estar
conectada a outra por uma rede de no máximo
máximo cinco amigos intermediários.
Fluxograma de uma rede social
Observem-se
se as relações em destaque: para o individuo “E” estar ligado ao indivíduo
“L”, são necessários três laços de amizade;
amizade; para o indivíduo “L” estar ligado
li
ao indivíduo
“G”, são necessários
ssários também três laços de amizade. No início, o orkut disponibilizava esses
cinco amigos intermediários quando um usuário (E) visitava a página pessoal de outro (G),
isto é, uma trilha era exibida para ele por meio de links, como exemplifica o fluxograma:
fluxogram
E>F>C>L>D>H>G, indicando o caminho a ser percorrido para o encontro entre os usuário E
e G. Entretanto o orkut não disponibiliza mais essa trilha.
O orkut é uma rede social com a finalidade de criar novas amizades e manter
relacionamentos (antigos e novos).
novos). No início era necessário receber um convite para participar
dessa rede, e, uma vez ingressado, o indivíduo podia enviar convites também. A partir de
outubro de 2006, não era mais necessário ter um convite para participar. O cadastro poderia
ser feito pelo e-mail
mail pessoal.
Dentre os recursos utilizados no orkut destacam-se
se as “comunidades”. Comunidades
são fóruns que foram estruturalmente modificados
modificados com a finalidade de facilitar o uso. Nas
comunidades são oferecidos três recursos: o fórum, no qual se encontra
encontra a maior parte do
conteúdo e é possível discutir e propor novos assuntos; a enquete, que colhe opiniões dos
usuários; e a parte de eventos, na qual são divulgados encontros fora da rede. Em toda
comunidade há um dono, e ele pode escolher até dez mediadores
mediadores para auxiliá-lo
auxiliá
na
administração. As comunidades mais comuns são sobre celebridades, as quais envolvem
discussões, notícias, etc referentes ao tema da comunidade. Outro tipo de comunidade é de
pessoas agrupadas segundo características que têm em comum,
comum, como “meus olhos são azuis”
ou “Somos de libra”. Por fim, há comunidades de pessoas que se definem em relação a
pessoas anônimas, como por exemplo “eu conheço beltrano” ou “eu amo fulano”.
Marcuschi (2004, p. 21) define comunidade virtual como uma forma
form de interação
rápida e eficaz, “uma espécie de agregado
agregado social que emerge da rede internetiana
i
para fins
específicos. Seriam pessoas com interesses comuns ou que agem com interesses comuns num
dado momento, formando uma rede de relações virtuais”. O autor afirma que essas novas
tecnologias não são antissociais, uma vez que se criam redes de interesses.
198
Análise da linguagem do orkut
I. Características que refletem a linguagem geral
a) Alternância de turnos
A conversação, prática social do dia a dia, realiza-se por meio de perguntas e
respostas, ou de asserções e réplicas. Cada uma dessas ações é chamada de turno, e os turnos
se organizam pela regra básica “fala um de cada vez”, que é válida para a maioria das línguas,
culturas e situações. (MARCUSCHI, 2001)
Marcuschi (2001, p. 89) define turno como uma
produção de um falante enquanto ele está com a palavra, incluindo a possibilidade
do silêncio, que é significativo e notado. A expressão ter o turno equivaleria então
a estar na vez, ter a palavra e estar de fato usando-a. Daí não se considerar como
um turno a produção do ouvinte durante a fala de alguém, embora isso tenha
repercussão sobre o que fala.
De acordo com Sacks, Schegloff e Jefferson (1974, apud MARCUSCHI, 2001, p. 20)
há duas técnicas para esse mecanismo: a primeira é quando o “falante corrente escolhe o
próximo falante, e este toma a palavra iniciando o próximo turno"; e a segunda é quando o
“falante corrente para e o próximo falante obtém o turno pela autoescolha”.
E são duas as regras que fazem com que essas técnicas funcionem. A primeira é divida
em três partes, que são:
a) o falante corrente escolhe o próximo falante, pela técnica I;
b) o falante corrente não usa a técnica I de escolher o próximo, então qualquer
participante da conversação pode autoescolher-se como próximo pela técnica II;
c) caso o falante corrente não escolha o próximo a falar, e nenhum outro se manifeste
pela autoescolha, aquele pode prosseguir falando.
A segunda regra trata do caso (c), em que o falante prossegue falando, e as sub-regras
(a), (b) e (c) “reaplicam-se no próximo primeiro lugar relevante para a transição, e, se esta não
ocorrer, assim se procederá, recursivamente, até que se opere a transição” (MARCUSCHI,
2001, p. 21).
No caso em que o número de participantes de uma conversação ultrapassar de três,
poderá ocorrer o que Sacks, Schegloff e Jefferson (1974, MARCUSCHI, 2001, p. 22)
chamam de cisma, que gera conversas paralelas.
Quando o falante deve iniciar o seu turno? Quais são os sinais que o falante corrente
expressa para dizer que o seu turno acabou? Segundo Marcuschi (2001, p. 22), isso se realiza
na “conclusão de um enunciado, a entonação baixa, o olhar fixo por alguns instantes, a pausa,
uma hesitação”, porém, em alguns momentos, isso não é suficiente, pois pode ocorrer
sobreposição de vozes.
Pode-se observar nos exemplos abaixo extraídos de fóruns do orkut como ocorre a
troca de turnos entre os usuários:
199
Exemplo 1
Nesse caso, o tópico do fórum são cotas em universidades. A conversação se passa
primeiramente entre Nívea Rock e Cotista, depois há a interferência de estel Shikorita, e apenas
Nívea Rock interage com ela. Nota-se que Nívea Rock mantém o turno por mais tempo que os
outros interlocutores, como ocorre em uma conversação face a face. Nívea Rock se manifesta
mais entendida sobre o assunto discutido, impondo, assim, certa autoridade sobre os demais.
Exemplo 2
200
No segundo exemplo, o tópico é o caso Isabela Nardoni, e a conversação se
desenvolve entre duas pessoas, Ana e Psiquê. Suas mensagens são direcionadas, pois no início
de cada mensagem há o nome da pessoa para quem a mensagem se destina.
No orkut verifica-se que existem turnos, porém, nele, as regras, apenas parcialmente as
regras da conversação face a face. As mensagens podem ser direcionadas, como ocorre no
exemplo 2 mas, não necessariamente será a pessoa selecionada que fará o comentário
seguinte.
Em uma conversação face a face há a possibilidade de silêncio e o problema de
sobreposição de vozes. No orkut isso não existe, pois os membros da comunidade podem não
responder mais simplesmente por ter abandonado o fórum. Também não há a possibilidade de
falarem dois ao mesmo tempo, uma vez que os textos são mostrados em sequência de
chegada.
Com base no estudo realizado, observou-se que há intervalos de tempo entre os textos.
No exemplo 1, o diálogo tem início no dia 29 de março, e a manifestação seguinte se faz no
dia 3 de abril. Esse intervalo de tempo é comum entre diálogos que se passam em fóruns, pois
o autor não é informado quando há um comentário novo, para isso, ele tem que visitar a
página novamente.
Há casos em que o período de tempo é mais curto. A diferença pode ser de cinco, dez,
trinta minutos, por exemplo. Apesar de, nesses casos, o tempo de resposta ser menor,
considerando uma conversação face a face, o período é muito longo.
b) Entonação
A entonação pode ser registrada de várias maneiras, como:
Exemplo 3
Aqui, nota-se o alongamento da palavra “absurdo”. O alongamento ocorre na letra “o”.
Há também letras maiúsculas, como em MORREM POR NÃO QUERER COMER!. A usuária
Bruna expõe sua inconformidade perante a fome no mundo por intermédio desses recursos.
Exemplo 4
Nesse exemplo há sinais de pontuação em grande quantidade, acompanhados de letras
maiúsculas: VAI PORQUE QUER!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!. O usuário Marcos Shinoda
demonstra sua indignação e não aceita justificativas perante um erro que a sociedade condena,
a criminalidade.
201
As entonações não são feitas apenas no sentido negativo (criminalidade, fome,
homicídios, etc.). Esse recurso é usado também para demonstrar animação, agitação, enfim,
dar mais vivacidade ao comentário, e pode ser encontrado em comunidades que tratem de
assuntos mais triviais como mangás120, ou algum seriado de televisão etc.
c) Gírias
A gíria, que é tipicamente oral, é uma linguagem especial usada por certos grupos
sociais. Esses grupos criam um código que permite a seus membros comunicarem-se entre si.
Falantes que não pertencem a tal grupo não compreendem a comunicação por completo. Em
alguns casos, esse vocabulário pode ser conhecido por pessoas fora do grupo, tornando-se,
assim, gíria comum, e perdendo seu caráter de signo de um grupo específico. (PRETI, 2006b)
Quando surge na escrita, a gíria reflete um recurso linguístico, ou seja, serve para dar
maior realidade ao texto. Há a ocorrência em textos jornalísticos, porém os termos são
transcritos entre aspas. A ausência de gírias em textos escritos reforçou a idéia de baixo
prestígio social de quem faz uso delas (PRETI, 2006a).
A seguir encontram-se alguns exemplos retidos do orkut:
Exemplo 5
Exemplo 6
Exemplo 7
Nesses exemplos encontram-se as gírias: tá louco (exemplo 5); fala sério (exemplo 6);
homo, bichinha (exemplo 7). Além desses foram encontrados no corpus Afe ou aff, armar o
barraco, patricinha, dar nomes aos bois, nossa (interjeição), cara (vocativo), sacou? (no
sentido de entendeu), ixi (interjeição de espanto), mão de vaca, mixaria, jogar na cara, rachar
(dividir despesa), fazer arte (fazer algo que não se deve), na real, Zé povinho, etc.
Foram ressaltadas aqui gírias comuns, ou seja, aquelas que não pertencem a um grupo
específico de pessoas. Há comunidades no orkut que têm membros desses grupos sociais,
como “No fundo eu sou gay” e “Servidores Linux121”, porém estes não fazem parte do corpus
analisado.
120
121
Histórias em quadrinhos feitas em estilo japonês
Sistema operacional de computador
202
d) Reparações e correções
Os recursos de correções são bastante usados nas conversações, pois estas são
planejadas em tempo real, e tudo o que se realiza é em definitivo. Na escrita há correções,
também, todavia nessa modalidade dispõe-se de mais tempo para a elaboração, podendo-se
assim rever e corrigir os equívocos. (MARCUSCHI, 2001)
Em Sacks, Schegloff e Jefferson (1997, apud MARCUSCHI, 2001, p. 29), foi
estabelecida a seguinte tipologia geral para o mecanismo de correção:
i. “autocorreção autoiniciada: é a correção feita pelo próprio falante após a falha”. Esse
tipo de correção pode aparecer no primeiro turno, no final deste ou logo quando surge
a falha; pode aparecer também no terceiro turno;
ii. “autocorreção iniciada pelo outro: é a correção feita pelo falante, mas estimulada
pelo seu parceiro ou por outro”. A correção ocorre geralmente no terceiro turno;
iii. “correção pelo outro e autoiniciada: o falante inicia a correção, mas quem faz é o
parceiro”. A correção é feita no turno seguinte ao turno que ocorreu a falha;
iv. “correção pelo outro e iniciada pelo outro: o falante comete a falha e que corrige é o
parceiro”.
Além desses tipos de correção, há aquelas que são feitas sem o estímulo do parceiro,
como ocorre nos exemplos abaixo:
Exemplo 8
O usuário Henry fez uma autocorreção. A falha foi um erro de ortografia. Em seu
primeiro comentário ele escreveu impecilhos, e depois, fez outro comentário apenas para
corrigir seu erro, e escreveu empecilhos. Entre os comentários de Henry há um comentário de
outra pessoa, que não diz nada a respeito do erro ortográfico cometido.
203
Exemplo 9
Nesse exemplo, há outro caso de autocorreção. A usuária Luiza cometeu um erro de
digitação. Ao querer escrever que ela é contra as cotas, acabou digitando Eu sou cotas. Em
um comentário posterior ela faz a correção. Entre o comentário do erro cometido pela usuária
e a sua correção, existem três outros comentários de outros membros e um da própria Luiza.
Pelo fato de essas correções não terem sido espontâneas (por haver outros comentários
entre o erro e a correção), pode-se concluir que os membros releram seus textos depois de
algum tempo e verificaram suas falhas.
Exemplo 10
Nesse exemplo há uma situação diferente das anteriores. O usuário Rafael cometeu
dois erros, um relativo à quantidade de água gasta e outro referente ao tempo. O usuário
Mapkoc questiona os dados fornecidos por Rafael e faz uma sugestão para o erro. Ao visitar o
fórum novamente, Rafael se depara com seu erro apontado por outro usuário e faz as devidas
correções. Esse é um caso de autocorreção iniciada pelo outro.
No orkut, a correção pode ser feita apenas após o autor postar seu comentário, não há a
possibilidade de ele se autocorrigir no primeiro parágrafo. Nesse caso, há a tendência para a
escrita, quando ele revê o seu texto, faz as devidas correções e o edita antes de enviá-lo.
Apesar disso, existem as correções, e elas podem ser como em (b) e (d), ou seja, a correção
nunca é realizada no mesmo “turno”.
e) Mal-entendidos
Mal-entendidos ocorrem por questões de compreensão, eles se manifestam na
verbalização do texto, e tal problema não acontece devido à significação das palavras, mas
sim devido ao sentido que elas assumem no enunciado (BAZZELA e DAMIANO, 1999, apud
204
HILGERT, 2005). Tanto o falante quanto o ouvinte são responsáveis pela compreensão. O
falante tem a função de produzir o enunciado, construir sentidos, e o ouvinte, de interpretálos.
Os problemas de compreensão surgem num mesmo contexto cultural, por motivos
variados, que são, segundo Hilgert (2005):
as interações entre usuários de variedades de uma mesma língua; os papéis sociais
distintos, cultural e historicamente determinados, de homens e mulheres numa dada
sociedade; as práticas sociais específicas de especialistas e leigos as quais, em boa
parte, determinam suas rotinas discursivas; os valores socioculturais emergentes
desses papéis e dessas práticas, os quais dão identidade aos sujeitos e configuram
sua visão de mundo; o grau de conhecimento diverso que os interlocutores têm um
do outro e do tema que abordam; o enfoque particular dado ao tema em pauta na
interação. (p. 127-128)
Para ocorrer um mal-entendido, a compreensão (total ou parcial) tem que ser desviante
em relação à expectativa do outro. Isso pode ser esquematizado da seguinte maneira: o falante
tem o seu turno, o ouvinte responde, e o falante considera sua resposta um mal-entendido, por
isso reformula a sua fala, dando-lhe um enfoque mais preciso. O ouvinte não tem consciência
de seu mal-entendido. Esse caso é denominado como “caso standard” por Weigand (1996,
apud HILGERT, 2005)
No exame feito neste estudo, foram observados alguns casos de mal-entendidos:
Exemplo 11
O usuário Reynaldo Sombra faz um comentário sobre um post de Anônimo, que deu
seu ponto de vista (o qual não está explícito no exemplo em questão) sobre o filme Donnie
Darko. Em seu comentário, Reynaldo Sombra assume não ter lido o que Anônimo escreveu
por completo, pelo motivo de que ele já conhece a teoria apresentada (informação declarada
apenas no seu segundo comentário). Além disso, Reynaldo Sombra faz uma crítica à teoria de
Anônimo. Esse, por sua vez, questiona a atitude de Reynaldo Sombra não ter lido a teoria toda
e mesmo assim fazer críticas. O usuário Reynaldo Sombra esclarece que já tem conhecimento
da teoria, que ao começar a ler já sabia do que se tratava, e que por isso não leu até o final.
205
No exemplo 12 a seguir, Luiza interpretou o que Ana Laura disse – pelo menos eu sou eu
desocupado mas adimito, vocês inventam motivos bonitos para ficar de bobeira por aí - como se
pertencer à comunidade de que ambas fazem parte fosse uma perda de tempo. Ana Laura, em seu
outro comentário, desfez esse mal-entendido, de uma maneira mais agressiva, ao escrever: Se eu
não me engano eu não disse que a comunidade era uma perda de tempo, e sim que vocês estão
perdendo seu tempo aqui. Ela também apresenta hipóteses para ter ocorrido o mal-entendido,
quando escreve que digitou errado, ou houve erro de interpretação por parte da leitora.
Exemplo 12
Exemplo 13
206
Nesse exemplo, Diego expõe a sua opinião sobre um assunto polêmico, a pena de
morte. A enquete do fórum era o favorecimento ou não desse tipo de punição, e Diego
argumenta a favor, com uma visão radical. O usuário Marcos Shinoda, ao ler o comentário de
Diego, questiona o motivo de tanto radicalismo, escrevendo: Isso tudo que você disse... Foi
por puro ódio, revolta... ou apenas para intimidar os bandidos, fazer com que eles pensem
bem antes de matar alguém?
Uma das características dos fóruns do orkut é que nem sempre os membros que
participam da comunidade voltam ao fórum, ou seja, em algumas ocasiões o usuário deixa o
seu ponto de vista sobre o tema e não retorna mais para fazer mais comentários ou responder
perguntas (direcionadas a ele ou não). O usuário Marcos Shinoda, ao questionar o motivo de
sua revolta, tenta desfazer um problema de compreensão. Entretanto, ele tem consciência
dessa característica do orkut, por isso segue adiante concluindo (antes mesmo de Diego
responder) que é por ódio e revolta – Eu tenho impressão que você disse isso apenas com
sentimento de vingança. Em seu segundo comentário, Diego explica que sua opinião não é
formada pelo sentimento de vingança, mas, sim, que ele acredita que intimidar os bandidos,
impor-lhes o medo é um meio de diminuir a criminalidade.
Quando Marcos Shinoda faz a sua conclusão, ele tem chances de estar certo ou errado.
Por ele fazer uma conclusão errônea, há uma situação de mal-entendido, que apenas é
consolidada quando Diego escreve Vingança não exatamente (...) E sim ta mais pro lado de
intimidação.
Se essa situação ocorresse em uma interação face a face, ou até mesmo por recursos de
mensagens instantâneas, como o MSN, Marcos Shinoda faria a pergunta, Diego responderia e
o primeiro daria continuidade à sua opinião, não havendo problemas de mal-entendido.
f) Repetições de palavras
Encontram-se também no orkut casos de repetição de palavras. A definição dada por
Marcuschi (1996, p. 97) é a seguinte: “repetição é a produção de segmentos discursivos
idênticos ou semelhantes duas ou mais vezes no âmbito de um mesmo evento comunicativo”
Essa característica da língua falada é uma das estratégias de formulação textual que
assume um conjunto variado de funções: “contribui para a organização discursiva e a
monitoração da coerência textual; favorece a coesão e a geração de sequências mais
compreensíveis; dá continuidade à organização tópica e auxilia nas atividades interativas”
(IMARCUSCHI, 1996, p. 95).
A diferença das repetições na fala e na escrita, segundo Marcuschi (2001), é que na
escrita há a possibilidade de revisão e editoração, diminuindo as repetições. Na fala, nada se
apaga e a repetição faz parte do processo de edição. O índice de repetição em um texto falado
é alto, verifica-se, que a cada cinco palavras, uma é repetida.
As repetições podem ser categorizadas como fonológicas, de morfemas, de itens
lexicais, de construções suboracionais e de orações. Elas podem ser próximas umas das outras
ou estar distantes (após vários tópicos), e, em sua maioria, ocorrem em verbos e nomes, sendo
raros os casos com adjetivos e advérbios. (MARCUSCHI, 2001)
Em textos do orkut, a frequência de repetições não é alta como na fala (de cinco
palavras, uma é repetida), porém notou-se que existe essa característica.
No exemplo que segue verifica-se a repetição da oração não me incomodo que me
chamem de.
Exemplo 14
207
Esse tipo de recurso é utilizado para promover o envolvimento e para contraargumentar (MARCUSCHI, 2001). O usuário Ricardo respondeu a seguinte pergunta
proposta no fórum: Você se incomoda ser chamado de GAY por quem??, e ele argumenta que
não se incomoda de ser chamado de gay, pois é uma característica dele, que equivale a ser
chamado de carioca, estudante etc.
Exemplo 15
Nesse caso, verifica-se a repetição da palavra ela, que se refere a água. A função
básica desse recurso é de argumentatividade, reafirmação de que a água, de fato, não irá
acabar. A maioria das orações elaboradas com a palavra ela conseguem ter a mesma força da
oração elaborada com a palavra água: a água não (vai) acabar = vai sempre manter-se no
planeta = não tem pra onde ir = não some.
Exemplo 16
Nesse caso, há repetições de dois termos: estudos e experiência, e na maioria dos
casos eles aparecem a cada cinco palavras. O usuário Rafael argumentou com a palavra estudos
para mostrar o contraste entre os estudos dos quais a Shayene fala, porém sem demonstrar nada;
depois contrasta os estudos que ele não mencionou, pois deu preferência para mencionar
experiências; por fim, contrasta os estudos “furados”, com os estudos sobre Citotec.
A repetição da palavra experiência tem a função de facilitar a compreensão. O usuário
Rafael intensifica o uso desse termo para se fazer claro sobre o assunto, ou seja, ele esclarece
que os dados apresentados foram obtidos pela experiência pessoal de conhecidos.
g) Marcadores conversacionais
Os marcadores conversacionais expressam alinhamento entre os interlocutores em um
discurso. Apesar de sua aparência supérflua, são de indiscutível significado e importância,
pois são eles que ajudam na coerência e coesão do texto (URBANO, 2003).
Esse tipo de recurso, segundo Marcuschi (2001), pode ser dividido em três
modalidades: o primeiro são os recursos verbais, que são representados pelas classes de
palavras ou expressões estereotipadas; o segundo são os recursos não verbais, que são
representados pelo olhar, pelos risos, pela gesticulação etc.; por fim, os recursos
suprassegmentais, que são representados pelas pausas, pelo tom de voz, pela entonação, pela
cadência, pela velocidade etc.
208
Observem-se alguns exemplos de marcadores conversacionais retirados do orkut:
Exemplo 17
Exemplo 18
Nesses exemplos, observam-se os termos Eu também acho e eu acho,
respectivamente nos exemplos 17 e 18. Eles são marcadores de modalização e fazem parte
dos recursos verbais.
Exemplo 19
Exemplo 20
Nesses casos, observam-se marcadores conversacionais que expressam entendimento:
né? (exemplo 19), concorda? e certo? (exemplo 20). Numa conversação face a face, eles
servem para sintonizar os falantes, se eles estão envolvidos na conversa (RODRIGUES,
2003). Urbano (2003, p. 110) define esses marcadores como de teste/busca, que servem “de
apoio para a progressão conversacional ou ‘busca de aprovação discursiva’”.
Os marcadores do exemplo 20 podem construir também sinais de saída ou entrega de
turno (Marcuschi, 2001). Nota-se que esses termos aparecem por último em cada comentário,
reforçando essa ideia.
Apesar de os recursos de marcadores conversacionais mais utilizados no orkut serem
os verbais, há recursos não verbais também (risos), como se verifica nos exemplos 21 e 22:
Exemplo 21
209
Exemplo 22
Os risos aqui são demonstrados de duas formas. A primeira é o registro gráfico de uma
série de letras k,, que são postas em sequência. A segunda é o registro gráfico do conjunto
co
de
letras h, u e a,, em duas ordens diferentes (hua
(
e hau),
), repetidamente. Os outros recursos não
verbais, como gesticulação e olhares, não podem ser expressos pelo orkut, assim como os
recursos suprassegmentais. Tal impossibilidade deve-se
deve
ao fato dee o orkut não reproduzir
vozes, apenas texto escrito, e esses recursos serem peculiares da fala.
II - Características especificas do orkut: os emoticons
Emoticon é uma palavra derivada dos termos ingleses emotion e icon (emoção e
ícone). Esse recurso se realiza por uma sequência de caracteres como: :) (sorriso) e :(
(tristeza). Outra maneira é a utilização de ícones ilustrativos como:
(sorriso) e
(tristeza).
Esse recurso é utilizado para aproximar a escrita do orkut à fala. Essa forma de
comunicação demonstra sentimentos que não podem ser expressos em palavras, e muitas
vezes nem ficam subentendidos no texto.
Em uma conversação face a face, há a presença de sujeitos envolvidos, podendo-se
podendo
utilizar outros recursos para a expressão, como gestos e expressões
expressões faciais centrados no
mesmo espaço e situação. Em um texto escrito não há essa centralização de espaço e situação,
o que faz que o autor utilize outros recursos no lugar da linguagem não verbal, ou seja, que
ele a represente de forma transcrita: “risos”,
“ris
“voz alegre”, etc. Barros (2006,
(2006 p. 65) conclui
que “nesses casos da internet,
internet, há uma presença relativa ou parcial dos interlocutores pela
imagem das ‘caretas’.”
Há duas maneiras de criar os emoticons:
Exemplo 23
O recurso utilizado para criar um emoticon no exemplo 23 são os caracteres do teclado
que formam “=D”, o que significa um sorriso grande.
Exemplo 24
210
No exemplo 24, a usuária utilizou um recurso fornecido pelo orkut: um comando é
digitado e, quando se envia a mensagem, aparece a imagem, que no caso é um emoticon com
a língua de fora, demonstrando sua conformidade com um fato não desejado, o de não se
casar.
Considerações finais
Observou-se que algumas características do orkut se aproximam muito da linguagem
oral, como por exemplo o uso de gírias e de uma linguagem mais coloquial, o uso de
marcadores conversacionais, as repetições de palavras com o objetivo de envolvimento,
reafirmação, argumentação, etc.
Existem características do orkut semelhantes às da linguagem com regras um pouco
diferentes. Isso acontece devido às limitações de meio eletrônico. É o que ocorre nas
alternâncias de turnos. No orkut existem os turnos, mas eles não se realizam da mesma
maneira que em uma conversação face a face. O mesmo ocorre com os mal-entendidos.
Verificou-se que pode haver mal-entendidos devidos às limitações do orkut, pois, pelo fato de
não se saber se certos membros voltam ao fórum para dar continuidade à discussão, pode-se
fazer conclusões errôneas sobre o que fora dito.
Por outro lado, há características da linguagem oral que foram adaptadas pelo orkut. É
o que se observa no caso da entonação. Em uma conversação face a face isso é realizado pela
voz, mas, na adaptação ao orkut, são usados recursos como caixa alta, alongamento de letras
e uso de sinais de pontuação em grande quantidade.
As reparações e correções também são típicas da linguagem oral e são adaptadas para
esse meio eletrônico. Como se trata de textos escritos, que podem ser elaborados com maior
precisão, além de também serem editados antes do envio, esse recurso ocorre com menos
frequência no orkut.
Encontraram-se reparações e correções em relação a erros de ortografia, erros de
digitação etc., correções que, obviamente, foram feitas em turnos posteriores aos dos erros
cometidos. Além disso, notou-se que as correções realizadas no orkut não são imediatas, e se
feitas pelo próprio autor (autocorreção), vêm em um comentário, nunca no mesmo (pelo fato
de ele poder rever o texto antes de enviá-lo).
Notou-se também que, quando o erro é de digitação ou ortografia, a correção não é
iniciada pelo leitor, mas sim pelo autor. Isso ocorre, talvez, por esse erro ser uma
característica de textos digitais, portanto considerado pouco relevante, e também por ele não
atrapalhar na compreensão do comentário. No caso do exemplo 10, houve o problema de
compreensão, e, por isso, outro membro interveio e questionou os dados fornecidos. Nesse
caso trata-se de uma correção iniciada pelo outro.
Por fim, há a característica específica do orkut, os emoticons. Sua função é colocar
sentimentos naquilo que foi dito, que podem ser sentimentos de alegria, tristeza, raiva etc.
Vale lembrar a indicação de Chafe (1982, apud BARROS, 2006) de que a fala é
fragmentada, pois é delimitada por pausas e se realiza por jatos de ideias, e de que na escrita
há unidades mais longas, há tempo para formulação e o texto pode ser relido pelo leitor. Em
suma, o que ele diz é que “o tempo da escrita é contínuo, aspectualizado pela duração, e o da
fala, descontínuo, determinado pela pontualidade” (BARROS, 2006, p. 60). De acordo com
essa indicação fica evidenciado que o orkut tem características que tendem para a escrita,
embora não se possa ignorar as outras características como repetições, gírias, de que já se
tratou.
Pelo fato de o orkut ter características que tendem para a linguagem escrita e
características que tendem para a linguagem oral, nesse tipo de texto se encontram, como
define Marcuschi (2004, p. 18), “falas por escrito”. Essas características não são importações
211
de propriedades da fala, pois, segundo ele, “as novas tecnologias não mudam os objetos, mas
as nossas relações com eles”. Crystal (2001, apud MARCUSCHI, 2004, p. 19) completa que a
linguagem da internet consiste em uma pontuação minimalista, uma ortografia bizarra, uso
exagerado de siglas, abreviaturas incomuns, e uma escrita semialfabética. Termina afirmando
que “a internet transmuta de maneira complexa gêneros existentes, desenvolve alguns novos e
mescla vários outros”.
Por fim, Barros (2006) conclui sua pesquisa afirmando que:
Os diferentes fatores apontados na caracterização da fala e da escrita mostram a
existência, na realidade, de um bom número de posições intermediárias. Assim, as
modalidades de língua aproximam-se ora da fala ora da escrita, conforme o critério
considerado (p. 76).
De acordo com a autora, portanto, o orkut é um exemplo de texto em posição
intermediária. De fato, a conclusão dessa pesquisa é que dependendo do critério adotado, o
orkut ora tendendo para a escrita (troca de turnos, reparações e correções, etc.) ora tendendo
para a linguagem oral (gírias, marcadores conversacionais, etc.).
ORKUT: ORAL LANGUAGEM IN WRITTEN SUPPORT
ABSTRACT: The aim of this essay is to analyze the written system used on the internet, by examination of texts
from orkut forums. For this, the study was based on the theory of functional grammar (HALLIDAY, 1994; DIK,
1997, GIVON, 1990; explained in NEVES, 1997, 2000) a theory that considers the variety of language functions
and their modes of realization, that requires a methodological theoretical support which studies the language as
a communication tool. The selected texts were removed from orkut forums that discuss controversial issues. We
established eight criteria for the analysis of the corpus: turn-taking, intonation, slang, repairs and corrections,
misunderstandings, repetition of words, conversational markers and emoticons. The analysis of these criteria
was based on MARCUSCHI (2006, 2001, 1996), PRETI (2006) and HILGERT (2005), URBANO (2003) and
BARROS (2006). Based on this study, the language of the orkut was classified according to four characteristics:
the specific characteristics of orkut, orkut characteristics that are very close to spoken language, the
characteristics of spoken language that are close to orkut, but with rules a little different, and the characteristics
of spoken language that have been adapted to orkut.
KEYWORDS: Internet language; spoken language; written language; orkut.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Intermediárias. In: PRETI, Dino (Org.). Fala e Escrita em Questão. São Paulo: Humanitas,
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213
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