A EXECUÇÃO DA MEDIDA DE SEGURANÇA A PARTIR DO MODELO PROPOSTO PELA LEI 10.216/2001: a quebra do mito da periculosidade1 CLAUDIO HENRIQUE LOPES RENDEIRO 2 RESUMO: O presente artigo tem por fim analisar o novo paradigma trazido pela Lei nº 10.216/01, conhecida como Lei Antimanicomial ou Lei da Reforma Psiquiátrica na execução das medidas de segurança aos pacientes judiciários, apontando as dificuldades da efetivação dessa norma ante a existência do pensamento penal ainda calcado na periculosidade. Traça, a partir de pesquisa bibliográfica, um panorama histórico com inserções no direito comparado de como foi construído no campo do Direito Penal e do Direito Penitenciário a execução da sanção penal na modalidade medida de segurança. Traz à reflexão o quanto a segregação compromete a dignidade humana daqueles que se encontram nas “masmorras” chamadas Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Palavras-chave: Execução penal. Medida de segurança. Lei nº 10.216/01. Dignidade humana. Periculosidade. ABSTRACT: This article aims to analyze the new paradigm brought by Law No. 10.216/01, known as Asylum Law Reform Act psychiatric or implementation of security measures to patients judicial custody by the state. Discusses the contradictions with articles of this law not repealed the Criminal Sentencing Act and "insanity" widespread understanding among judicial, medical, psychosocial before this chaotic reality and impotence the State guarantee care network that allows the effectiveness of this new model advocated. Moth, from literature, a historical overview with insertions in Comparative Law from how it was constructed in the field of criminal law and penitentiary law enforcement criminal sanction in the form of safety measure. Brings to the reflection as the inertia of the state commits human dignity of those who are in the "dungeons" calls Hospitals forensic psychiatric care. Keywords: Criminal enforcement. Safety measure. Law No. 10.216/01. Hospital escrow. Human dignity. 1 Artigo apresentado ao Curso de Especialização em Gestão Penitenciária, realizado em convênio com a Faculdade do Pará – FAP, para obtenção do titulo de Especialista, sob a orientação da Profa. Msc Sandra Guimarães. 2 Aluno do Curso de Especialização em Gestão Penitenciária 1. INTRODUÇÃO A pesquisa se define a mostrar o modo como ocorreu o processo histórico de vinculação da aplicação da medida de segurança ao considerado inimputável ou semi-imputável baseada na verificação de presença da periculosidade com preponderância na escolha da modalidade internação e de como esse conceito de “homem perigoso” associado ao doente mental construído na Escola Positiva e sedimentado nas ideias de Philipe Pinel foi assimilado pelo direito penal e pela psiquiatria que lhe deram legitimidade. Aborda também o processo histórico cronológico no direito brasileiro quanto ao tratamento legal àqueles que portavam doenças mentais e que realizavam fatos considerados delituosos. Faz um panorama desde as Ordenações Filipinas até a lei de reforma psiquiátrica de 2001, perpassando pelo Código Criminal de 1830, o Código de 1890 e Código Penal de 1940 com a reforma que sofreu na parte geral em 1984. Aponta a luta antimanicomial pelos movimentos sociais na década de 70 e 80 com a eclosão na edição da Lei n° 10.216, de 06 de abril de 2001, que redimensiona a atenção ao portador de doença mental, nele incluindo o paciente judiciário, abrindo a porta para práticas mais garantidoras da dignidade de pessoa humana. Nesse aspecto, o trabalho reflete as variáveis que geraram o distanciamento na implantação das políticas públicas quanto ao paciente judiciário, entendido como o submetido a medida de segurança, que acabou ficando aquém das garantias advindas com a nova lei em relação ao doente mental ‘comum’. Apresenta a miopia na percepção pelo sistema de justiça desse novo paradigma em face do aspecto de sancionatório cunhado na execução das medidas de segurança, hoje ainda firmada na ótica da “periculosidade” e gerando com isso a dificuldade em um fazer que garanta a vontade da lei na recolocação do paciente judiciário num processo de sociabilidade e em ambiente menos invasivo. Por fim procura refletir a postura do Projeto de Lei do novo Código Penal em tramitação no Congresso Nacional que, a par das inúmeras críticas, traz em seu texto quando trata das Medidas de Segurança algumas positivas alterações, tanto terminológicas como de fundo que guardam melhor sintonia com a Lei 10.216/01. A despeito da compreensão da dificuldade de implementação do novo modelo de atenção ao portador de transtorno mental, com ênfase no paciente judiciário, o trabalho aponta uma centelha de luz na constatação de prática positiva de vanguarda nessa postura antimanicomial e na busca das garantias da dignidade humana, como a experiência vivenciada pela Justiça de Minas Gerais através do Programa PAI-PJ, programa de atenção integral aos pacientes judiciários, inserido no âmbito do judiciário mineiro há mais de doze anos. 2. O RESGATE HISTÓRICO DA COMPREENSÃO DO DOENTE MENTAL PELO DIREITO E PELA MEDICINA A história revela desde sempre o tratar da doença mental com diferentes olhares dependendo da civilização e da forma de poder firmado na sociedade. Assim é que temos entre os egípcios, hebreus e gregos a justificação da loucura a planos divinos. A loucura aparece nos cânticos de Homero, porém sem atribuir-se naquele momento nenhuma associação entre loucura e periculosidade. Nas tragédias gregas, o sujeito trágico aparece como responsável por seu ato, mesmo que os resultados de uma situação louca ou furiosa fossem atos atribuídos aos deuses ou aos conflitos do homem. A ideia da loucura como uma doença que altera o funcionamento do próprio organismo do homem veio aparecer no final da Antiguidade Grega. Para Hipócrates, a loucura era uma doença como outra qualquer, esporádica. Adoecia-se e curava-se. Segundo Hipócrates “... cada doença tem sua natureza e sua propriedade em si mesma, e nenhuma é intratável ou incurável.” (HIPÓCRATES, 2005, p. 79). No Direito Romano o cuidado com o louco (furiosus ou demens) cingiase, sobretudo, na esfera civil, já que no campo penal o doente mental não era punido por entendimento de que a doença já era uma punição infligida pelos deuses. Na Idade Média a doença mental foi interpretada dentro do discurso daquele período que se preocupava em resolver o problema do mal, na estrutura da teocracia dominante à época. As ideias de São Tomaz de Aquino de que o meio de combater o mal apoderado nos corpos dos loucos era a eliminação do corpo para com isso salvar a alma, foi a razão usada para justificar o discurso ideológico da Santa Inquisição. “... da ideia de que aqueles que portam o mal, como algo em si, possam ser localizados e reformados decorrem as primeiras tecnologias de identificação do mal – exclusão, tortura e extermínio dos corpos.” (BARROSBRISSET, 2011, p. 43). Nos séculos XV a XVII se destaca um grande aprisionamento de todo tipo de libertinagem e os loucos aí incluídos. Pela primeira vez aparece o termo alienação mental, por Felix Plater, em 1625 que atribui ao insensato um despossuído de razão. A passagem do mal demoníaco da Idade Média para o mal psíquico dessa época evidenciou-se de tão monta que era preciso encontrar um local para o tratamento da loucura. Viam-se (e isto na Europa) estabelecimentos para internação que não são simplesmente destinados a receber os loucos, mas toda uma série de indivíduos bem diferentes uns dos outros, pelo menos segundo nosso critério de percepção: encerravam-se os inválidos pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opiniáticos, os portadores de doenças venéreas, libertinos de todas as espécies, pessoas a quem a família ou o poder real querem evitar um castigo público, pais de família dissipadores, eclesiásticos com infração, em resumo, todos aqueles que em relação a ordem da razão, da moral e da sociedade, dão mostras de alteração. (FOUCAULT, 1975, p. 78). Com Beccaria e sua obra Dos Delitos e das Penas em 1764 a Escola Clássica lança a base de um sistema que serviu como divisor de águas no Direito Penal com a instituição das penas privativas de liberdade aplicada a proporcionalidade devida e guiando o olhar do direito para uma perspectiva mais humana e racional, se contrapondo ao legado de horror deixado pela Idade Média. Tal obra influenciou o Código Francês de 1795. Ainda ali a loucura não afastava a responsabilidade por crimes graves. Não obstante a isso, a reforma desse código em 1810 traz em sua matriz o pensamento de Philipe Pinel para quem o alienado mental sofreria de um déficit moral intrínseco, trazendo ínsito a crueldade, a maldade e a violência e, portanto não responsáveis por seus atos. Não são delinquentes, são doentes. É o chamado Principio da Porta Giratória – quando o patológico entra em cena a criminalidade, nos termos da lei, deve desaparecer. (FOUCAULT, 2002, p. 39). Ao fechar essa síntese da história de conceituação da loucura, do louco e de seus sintomas chega-se no século XIX. Com práticas como o tratamento moral pineliano, nos casos de monomania homicida que seria a psiquiatria de Esquirol diante de uma constatação de um déficit moral intrínseco que perdura de 1810 a 1835, passando pela proposta de Morel (1857) com a classificação dos degenerados com seus graus de perigos e localiza-los mesmo antes da prática do fato para então segregá-los em nome da defesa social até chegar-se por fim a Homem Delinquente do período lombrosiano (1876 a 1910) com forte determinação de encontrar o criminoso nato, onde já não haveria mais diferença entre demência e delinquência, posto acreditar-se que o delinquente é um doente que exige mais cuidados da medicina que do direito. Narra a psicóloga Fernanda Otoni que a escultura A bailarina, de Edgar Dégas fez parte de recente exposição no Musée D’Orsay em Paris denominada Crime et châtiment. Na obra, o artista aplicou todos os traços do criminoso nato de Cesare Lombroso, e a ação do escultor e pintor foi um protesto às teorias criminológicas de sua época. De Pinel a Lombroso, passaram-se cem anos, e a exceção dos dementes foi se tornando a regra de todos os delinquentes, e o que não mudará nesse discurso, seja nos monomaníacos, seja nos degenerados ou no homem delinquente é a ideia pineliana de um déficit moral intrínseco na loucura, o que faz dos loucos indivíduos perigosos. (BARROS-BRISSET, 2011, p. 46). 3. A MEDIDA DE SEGURANÇA NO DIREITO BRASILEIRO Embora a medida de segurança nos moldes como conhecemos somente tenha sido introduzida no corpo da legislação brasileira com o Código Penal de 1940, desde as Ordenações do Reino, ainda que sem a feição de uma sanção autônoma, era confundida, às vezes, com a própria pena. Sob a égide das Ordenações Filipinas o louco não poderia responder pelo crime porque falta-lhe a capacidade de dolo ou culpa. O Código Criminal do Império de 1830 tornava também os loucos de todos os gêneros irresponsáveis, salvo se tivessem intervalos lúcidos e neles, cometessem crimes. “Os loucos que tiverem cometidos crimes serão recolhidos às casas para eles destinadas ou entregues às suas famílias como ao juiz parecer mais conveniente”. (ORDENAÇÕES FILIPINAS, ARTIGO 12). Durante a Primeira República vigorou o Código Penal da República de 1890 que também afastava a responsabilidade penal do doente dispondo no artigo 27 que “... não são criminosos; (...) § 3º - os que por imbecilidade nativa ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação”. (CÓDIGO PENAL DA REPÚBLICA, 1890,). Frise-se que o Código de 1890 ainda não incorporava o cunho psiquiátrico, já usual na legislação penal européia. Por esforços de alienistas brasileiros que buscavam o reconhecimento científico e político da ciência psiquiátrica, surge o Decreto nº 1.132, de 22 de dezembro de 1903, que dentre outras coisas, implantou uma medida de tratamento consistente no recolhimento de alienados, de portadores de moléstia mental congênita ou adquirida e que estejam comprometendo a ordem pública ou a segurança das pessoas. Note-se que pelo Decreto referido pouco importava a prática de fato definida como crime para gerar o recolhimento. O projeto de lei de autoria de Alcântara Machado e que resultou no Código Penal de 1940 teve influência direta do Código Suíço de Stoos e do Código Italiano de Arturo Rocco. Admitiu a classificação do criminoso tal qual pregada por Enrico Ferri, da Escola Positiva, onde aparece o criminoso nato, o ocasional, o por tendência, o reincidente e o habitual. Constava no projeto que “o inimputável, embora não culpável deveria ser contido em nome da defesa da sociedade, pois era perigoso, portador de terrível e incurável doença: a periculosidade”. Foi nesse contexto que surgiram as medidas de segurança na legislação brasileira como uma reação jurídica pressupondo um estado perigoso de alguns que deveriam ser contidos em prol da paz social. Também foi nessa época que a psiquiatria se firmava no país, inaugurando o primeiro hospício no Rio de Janeiro em 1941. 4. MEDIDA DE SEGURANÇA NO CÓDIGO PENAL ATUAL Como mencionado, as medidas de seguranças foram introduzidas no ordenamento jurídico penal brasileiro pelo Código Penal de 1940. Sofrendo influencia direta do Código Italiano de Rocco, o Brasil adotou o sistema do duplo binário que consiste na possibilidade da medida de segurança ser aplicada isoladamente ao inimputável e cumulativamente com a pena ao semiimputável e ao imputável tido como perigoso. Tinha também outras modalidades de medida de segurança além da internação e a de sujeição a tratamento ambulatorial. Com a introdução da Lei n° 7.209, de 1984 que alterou toda parte geral do Código Penal, no que tange a medida de segurança, em substituição ao sistema do duplo binário, até então em vigor, adotou o sistema vicariante ou unitário, em que a sanção-pena é infligida ao imputável e ao semi-imputável e a sanção-medida de segurança é aplicada ao inimputável. Pode ocorrer, se o caso recomendar, de o juiz aplicar medida de segurança ao semi-imputável, de forma substitutiva, jamais cumulativa como no sistema anterior. Outra alteração ocorrida com a reforma de 1984 foi a restrição das modalidades de medidas de segurança que passaram a ser tão somente a internação, considerada pela doutrina como medida detentiva posto indicar a internação compulsória em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico e, na falta, estabelecimento compatível e a sujeição a tratamento ambulatorial, entendida pela doutrina como medida restritiva. Pela sistemática do código vigente, se o inimputável cometer um fato punível com reclusão, deve a medida ser obrigatoriamente a internação. Caso o fato realizado indique punição de detenção, pode então o juiz aplicar a medida na modalidade de tratamento ambulatorial. A esse respeito vozes remansosas na doutrina e jurisprudência afirmam não deva o juiz ficar adstrito a essa vinculação, podendo então, verificar no caso concreto qual a medida mais saudável e apropriada levando-se em conta o sujeito. O fundamento da medida de segurança, dentro do direito posto, positivado é a periculosidade, na mesma proporção que ao imputável tem como fundamento da pena a culpabilidade. Quanto a natureza jurídica da medida de segurança, as opiniões dividem-se entre os que entendem tratar-se de natureza penal, posto ser uma espécie do gênero sanção. Há quem argumente ter a medida de segurança uma natureza administrativa, ante seu fundamento terapêutico/curativo. Essas medidas são materialmente administrativas e formalmente penais. Uma das formas mais acabadas de que não pode ser outra a sua natureza é que juridicamente não podem chamar-se “sanções”, ainda que na prática o sistema penal as distorça e a elas atribua eventualmente esta função, realidade que se faz necessário controlar e procurar neutralizar. (ZAFFARONI, PIERANGELI, 2002, p.123). Embora se insista em negar às medidas de segurança o caráter de sanção penal, sob o argumento de que tais medidas apresentam uma função administrativa, de polícia, não pertencendo, pois ao direito penal, mas sim ao administrativo – é assente seu caráter especificamente penal. (PRADO, 2002, p.596). Apercebe-se que, a despeito da finalidade da medida de segurança ser preventiva/curativa, sua natureza, de fato é penal até porque a execução é judicializada na sua essência e prática, tendo um órgão estatal judicial na direção dos rumos do processo. Com isso a medida de segurança vive essa deformação que tanto compromete a finalidade curativa. O discurso é a prevenção e a cura, mas a prática é a punição, sobretudo na modalidade internação. Desse modo o paciente judiciário vive o drama de uma política de segregação, sem direito tanto a responsabilizar-se pelo que fez como ao tratamento adequado. Tendo que suportar esse permanente estado de “periculosidade” latente e eterna, muitas vezes, diante de um Estado, insano com dificuldade em dar efetividade a um modelo já definido há mais de uma década, mas que aos pacientes judiciários queda-se frente à ausência da rede necessária e mais, da falta de compreensão do possível por não trazer para o enfretamento o olhar da intersetorialidade como se verá adiante. 5. O MODELO DE ATENÇÃO AO SUBMETIDO À MEDIDA DE SEGURANÇA TRAÇADO PELA LEI 10.216/2001 O caminho percorrido até a promulgação da Lei n° 10.216/01 teve seu marco por volta dos anos de 1978 quando movimentos sociais começaram a cobrar uma política pública que desse atenção a saúde mental no Brasil com o redirecionamento de modelo de segregação ao modelo de inclusão. No ano de 1989 ocorreu em São Paulo o fechamento de um manicômio e a implantação de um Núcleo de Atenção Psicossocial – NAPS. Nessa época era apresentado no Congresso Nacional o projeto de lei da reforma psiquiátrica e partir daí intensificou-se a chamada luta manicomial, de um lado os adeptos da perspectiva Basagliana com o lema “a liberdade é terapêutica” e em contraponto, os que defendiam a presença da periculosidade e da incapacidade como inerentes a loucura e que, portanto, lutavam pela manutenção do modelo de internação compulsória. Nesse período foi implantado o SUS (Sistema Único de Saúde) e o Brasil foi signatário da Declaração de Caracas na II Conferencia Nacional de Saúde Mental ocorrida em 1990 e, precisamente em 06 de abril de 2001, inspirada nos ideais de Franco Basaglia, que na Itália resultou na Lei n° 180, o Brasil aprova a Lei n° 10.206/01, calcada nas garantias de direitos inerentes ao portador de transtorno mental e que de fato serve de marco divisor na atenção à saúde mental no país, com um modelo que foca ao doente mental a proteção integral. Percebe-se, no entanto que embora os pacientes judiciários estejam acobertados pela referida norma, a mudança do modelo de hospital de custódia para os meios menos invasivos não ocorreu no mesmo nível, ora porque estão internados compulsoriamente, ora porque a necessidade do laudo de cessação de periculosidade acaba retroalimentando o sistema fazendo com que o judiciário, na maioria das vezes, opte por manter a internação diante de uma indicação psiquiátrica nesse sentido. Com isso criou-se uma desigualdade entre os iguais na medida em que o paciente não judiciário que por vezes tem o mesmo transtorno mental tenha uma atenção diferenciada, mesmo com a abrangência da lei que alcança também os chamados pacientes judiciários. Entretanto, tanto o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitencia (CNPCP) como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), estão mobilizando o judiciário e outros órgãos a que se garanta os direitos dos portadores de transtornos mentais previstos na lei. Diz o artigo 2º da Resolução 04, de 2010 do CNPCP: ...devem ser observados na execução da medida de segurança os princípios estabelecidos pela Lei 10.216/2001, que dispõe sobre a proteção dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial de tratamento e cuidado em saúde mental que deve acontecer de modo antimanicomial, em serviços substitutivos de meio aberto A mesma Resolução recomenda que haja parceria entre Poder Executivo e Poder Judiciário no sentido da implantação no prazo de dez anos de ações que efetivem os preceitos da lei antimanicomial. Pela Recomendação de nº 35, o CNJ apresenta e recomenda as diretrizes de adequações da execução da medida de segurança aos modelos de atenção previstos na Lei n° 10.216/2001, a partir de proposições aprovadas na III Conferência de Saúde Mental e no Seminário para Reorientação dos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, inclusive recomendando que os Hospitais de Custódia fossem integrados ao SUS. 6. O PROJETO DO NOVO CÓDIGO PENAL ANTE A LEI DA REFORMA PSIQUIÁTRICA O projeto do novo Código Penal que tramita no Congresso Nacional, embora mereça críticas em alguns aspectos, no que concerne ao título que trata das medidas de segurança, guarda sintonia com a lei antimanicomial. Ao utilizar no texto que a internação compulsória será em estabelecimento adequado deixa claro ao legislador que não quer a perpetração dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico. Outra novidade positiva do projeto foi de não fazer vinculação da internação com a pena de reclusão. A redação do artigo 96 do projeto apenas determina que “se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação compulsória ou tratamento ambulatorial” (SENADO FEDERAL, 2011) possibilitando ao inimputável a colocação desde logo em meio aberto, o que não ocorre com o código atual, embora a jurisprudência tenha se mostrada complacente. No entanto continua colocando a verificação da cessação da periculosidade como condição para avaliação de desinternação: “cumprido o prazo mínimo, a medida de segurança perdurará enquanto não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação da periculosidade, desde que não ultrapasse o limite máximo” (PROJETO DO CÓDIGO PENAL, art. 96, § 2º). Outra inovação salutar do projeto é a definição de que caso a pena correspondente ao imputável seja completada resta também cessada a medida de segurança, agora, independente de laudo verificatório de periculosidade. Pelo sistema atual não há tal possibilidade legal e o assunto resolvia-se pela jurisprudência. 7. POR UMA PRÁTICA GARANTIDORA DA DIGNIDADE HUMANA A sociedade em que vivemos passa por grandes transformações, uma sociedade líquida, no dizer de Bauman e, portanto que se movimenta na busca de uma convivência mais justa. Paulo Freire, com sua práxis nos mostra que o processo de educação se dá dentro de uma realidade transformadora. Para Paulo Freire: “a verdadeira reflexão crítica origina-se e dialetiza-se na interioridade da ‘práxis’ constitutiva do mundo humano (...) mas ninguém se conscientiza separadamente dos demais. A consciência se constitui como consciência do mundo”. (FREIRE, 1970, p.15) A experiência de Minas Gerais na busca de uma dignidade real aos portadores de transtornos mentais, quer pacientes judiciários, quer da rede comum de atenção nasceu das agruras vivenciadas pelo manicômio da cidade de Barbacena. Ainda no ano de 1995, com a aprovação de Lei Estadual conhecida como Lei Carlão, migraram do modelo manicomial de exclusão para o modelo inclusivo com a colocação dos doentes mentais em espaço aberto. Durante a implementação da política da lei estadual, em processo de desinternação dos segregados, houve a contradição de receber os pacientes submetidos à medida de segurança que chegavam aos montes com ordem judicial de internação. O programa serve como fio condutor entre a política de saúde mental do Executivo e a política da justiça penal do Judiciário e faz há mais de doze anos a intercessão desses atores na busca do melhor tratamento contínuo e individualizado ao louco infrator para usar a nomenclatura do programa. É esse o caminho que a experiência do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) nos lega. Que o utópico é possível quando se permite dialogar com instituições que se apresentam opostas num dado momento, mas que se perceberam e aglutinaram os saberes e os fazeres na práxis de que nos fala Freire. Nas palavras de Fernanda Otoni de Barros-Brisset. Nossa inspiração se funda na experiência do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário - o PAI-PJ do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Os dez anos de convívio e acompanhamento de pessoas que cometeram crimes, em situação de intenso embaraço, sofrimento e desarranjo para com o tecido social. O convívio quotidiano com essas pessoas permitiu-nos localizar a causa de levou ao ato, sua natureza, que é a mesma, cuja presença palpita em cada um de nós. Essa vontade de poder diagnosticar, presumir a periculosidade, prever o futuro, dentre tantas outras intenções de realizar um controle absoluto tornou louco o próprio saber constituído para justificar as práticas de segregação que grassam neste terreno onde as teses criminológicas se aplicam. (OTONI, 2011, p. 11). Interessante perceber que a experiência vivenciada pelo programa tem três linhas de ação intercaladas, quais sejam, a intersetorialidade, o acompanhamento individual contínuo e a individualização da medida com respeito às singularidades. Queda-se, portanto o mito da periculosidade assimilado há mais de duzentos pelo direto penal e pela psiquiatria. “Um juízo íntimo e incerto sobre condutas de impossível determinação probabilística, aplicada a pessoa rotulada como perigosa com base em uma questionável avaliação sobre suas condições morais e vida pregressa”. (RAUTER, 1999) 8. CONCLUSÃO O novo paradigma trazido pela norma posta na Lei 10.216, de 2001, busca redefinir e expurgar a cultura da clausura construída a partir do pensamento equivocado de que a doença mental forçosamente teria uma associação intrínseca com a periculosidade. Esse pensamento encontrou no direito sua legitimação e daí, o sujeito a que se impõe internação jaz no isolamento direito a voz e a margem de um cuidado compatível à sua condição de demência, em decorrência de um sistema contraditório em si mesmo, que justifica na segregação a defesa social e o tratamento “curativo” sem enxergar o sujeito e suas reais e individuais necessidades. Apesar disso vislumbra-se de outro modo que é possível, dentro de uma concepção interdisciplinar e intersetorial e dialogal entre o sistema de saúde mental e o sistema de justiça penal trazer a execução da medida de segurança aos princípios norteadores da dignidade da pessoa humana. E por que não, acreditar no lema do Programa de Atenção Integral ao louco infrator e ultrapassar o comodismo da presunção da periculosidade rumo a presunção da sociabilidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BASAGLIA, Franco. A psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática. São Paulo: Brasil Debates, 1979; BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 6ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2000; BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: SENADO FEDERAL, 1998; BRASIL. Ministério da Justiça. Revista do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Brasília, DF: 2009/2010; BRASIL. Ministério da Justiça. Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Resoluções do Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciárias. . Resolução nº 04/2010. Brasília, DF, 2010; BRASIL. Senado Federal. Projeto de lei do código penal, Brasília, DF, 2011; BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Responsabilidades. Revista Interdisciplinar do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário do TJMG, v.1, n.1, 2011; BRASIL. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Responsabilidades. Revista Interdisciplinar do Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário do TJMG, v.1, n.2, 2011; FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975; FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra S/A, 1987; MARCÃO, R. F. Curso de Execução Penal. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011; MIRABETE, J. F. Execução Penal. 11ª ed. São Paulo: Atlas, 2004; PIAZETTA, Naele Ochoa. O principio da igualdade no direito penal brasileiro: uma abordagem de gênero. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001; RAUTER, Cristina. Manicômios, prisões, reformas e neo liberalismo. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro, 1997;