a execução da medida de segurança apartir do modelo

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A EXECUÇÃO DA MEDIDA DE SEGURANÇA A PARTIR DO MODELO
PROPOSTO PELA LEI 10.216/2001: a quebra do mito da periculosidade1
CLAUDIO HENRIQUE LOPES RENDEIRO 2
RESUMO: O presente artigo tem por fim analisar o novo paradigma trazido
pela Lei nº 10.216/01, conhecida como Lei Antimanicomial ou Lei da Reforma
Psiquiátrica na execução das medidas de segurança aos pacientes judiciários,
apontando as dificuldades da efetivação dessa norma ante a existência do
pensamento penal ainda calcado na periculosidade. Traça, a partir de pesquisa
bibliográfica, um panorama histórico com inserções no direito comparado de
como foi construído no campo do Direito Penal e do Direito Penitenciário a
execução da sanção penal na modalidade medida de segurança. Traz à
reflexão o quanto a segregação compromete a dignidade humana daqueles
que se encontram nas “masmorras” chamadas Hospitais de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico.
Palavras-chave: Execução penal. Medida de segurança. Lei nº 10.216/01.
Dignidade humana. Periculosidade.
ABSTRACT: This article aims to analyze the new paradigm brought by Law No.
10.216/01, known as Asylum Law Reform Act psychiatric or implementation of
security measures to patients judicial custody by the state. Discusses the
contradictions with articles of this law not repealed the Criminal Sentencing Act
and "insanity" widespread understanding among judicial, medical, psychosocial
before this chaotic reality and impotence the State guarantee care network that
allows the effectiveness of this new model advocated. Moth, from literature, a
historical overview with insertions in Comparative Law from how it was
constructed in the field of criminal law and penitentiary law enforcement criminal
sanction in the form of safety measure. Brings to the reflection as the inertia of
the state commits human dignity of those who are in the "dungeons" calls
Hospitals forensic psychiatric care.
Keywords: Criminal enforcement. Safety measure. Law No. 10.216/01.
Hospital escrow. Human dignity.
1
Artigo apresentado ao Curso de Especialização em Gestão Penitenciária, realizado em
convênio com a Faculdade do Pará – FAP, para obtenção do titulo de Especialista, sob a
orientação da Profa. Msc Sandra Guimarães.
2 Aluno do Curso de Especialização em Gestão Penitenciária
1. INTRODUÇÃO
A pesquisa se define a mostrar o modo como ocorreu o processo
histórico de vinculação da aplicação da medida de segurança ao considerado
inimputável ou semi-imputável baseada na verificação de presença da
periculosidade com preponderância na escolha da modalidade internação e de
como esse conceito de “homem perigoso” associado ao doente mental
construído na Escola Positiva e sedimentado nas ideias de Philipe Pinel foi
assimilado pelo direito penal e pela psiquiatria que lhe deram legitimidade.
Aborda também o processo histórico cronológico no direito brasileiro
quanto ao tratamento legal àqueles que portavam doenças mentais e que
realizavam fatos considerados delituosos. Faz um panorama desde as
Ordenações Filipinas até a lei de reforma psiquiátrica de 2001, perpassando
pelo Código Criminal de 1830, o Código de 1890 e Código Penal de 1940 com
a reforma que sofreu na parte geral em 1984.
Aponta a luta antimanicomial pelos movimentos sociais na década de
70 e 80 com a eclosão na edição da Lei n° 10.216, de 06 de abril de 2001, que
redimensiona a atenção ao portador de doença mental, nele incluindo o
paciente judiciário, abrindo a porta para práticas mais garantidoras da
dignidade de pessoa humana.
Nesse aspecto, o trabalho reflete as variáveis que geraram o
distanciamento na implantação das políticas públicas quanto ao paciente
judiciário, entendido como o submetido a medida de segurança, que acabou
ficando aquém das garantias advindas com a nova lei em relação ao doente
mental ‘comum’.
Apresenta a miopia na percepção pelo sistema de justiça desse novo
paradigma em face do aspecto de sancionatório cunhado na execução das
medidas de segurança, hoje ainda firmada na ótica da
“periculosidade” e
gerando com isso a dificuldade em um fazer que garanta a vontade da lei na
recolocação do paciente judiciário num processo de sociabilidade e em
ambiente menos invasivo.
Por fim procura refletir a postura do Projeto de Lei do novo Código
Penal em tramitação no Congresso Nacional que, a par das inúmeras críticas,
traz em seu texto quando trata das Medidas de Segurança algumas positivas
alterações, tanto terminológicas como de fundo que guardam melhor sintonia
com a Lei 10.216/01.
A despeito da compreensão da dificuldade de implementação do novo
modelo de atenção ao portador de transtorno mental, com ênfase no paciente
judiciário, o trabalho aponta uma centelha de luz na constatação de prática
positiva de vanguarda nessa postura antimanicomial e na busca das garantias
da dignidade humana, como a experiência vivenciada pela Justiça de Minas
Gerais através do Programa PAI-PJ, programa de atenção integral aos
pacientes judiciários, inserido no âmbito do judiciário mineiro há mais de doze
anos.
2. O RESGATE HISTÓRICO DA COMPREENSÃO DO DOENTE MENTAL
PELO DIREITO E PELA MEDICINA
A história revela desde sempre o tratar da doença mental com diferentes
olhares dependendo da civilização e da forma de poder firmado na sociedade.
Assim é que temos entre os egípcios, hebreus e gregos a justificação da
loucura a planos divinos. A loucura aparece nos cânticos de Homero, porém
sem atribuir-se naquele momento nenhuma associação entre loucura e
periculosidade. Nas tragédias gregas, o sujeito trágico aparece como
responsável por seu ato, mesmo que os resultados de uma situação louca ou
furiosa fossem atos atribuídos aos deuses ou aos conflitos do homem.
A ideia da loucura como uma doença que altera o funcionamento do
próprio organismo do homem veio aparecer no final da Antiguidade Grega.
Para Hipócrates, a loucura era uma doença como outra qualquer, esporádica.
Adoecia-se e curava-se. Segundo Hipócrates “... cada doença tem sua
natureza e sua propriedade em si mesma, e nenhuma é intratável ou
incurável.” (HIPÓCRATES, 2005, p. 79).
No Direito Romano o cuidado com o louco (furiosus ou demens) cingiase, sobretudo, na esfera civil, já que no campo penal o doente mental não era
punido por entendimento de que a doença já era uma punição infligida pelos
deuses.
Na Idade Média a doença mental foi interpretada dentro do discurso
daquele período que se preocupava em resolver o problema do mal, na
estrutura da teocracia dominante à época. As ideias de São Tomaz de Aquino
de que o meio de combater o mal apoderado nos corpos dos loucos era a
eliminação do corpo para com isso salvar a alma, foi a razão usada para
justificar o discurso ideológico da Santa Inquisição. “... da ideia de que aqueles
que portam o mal, como algo em si, possam ser localizados e reformados
decorrem as primeiras tecnologias de
identificação do mal – exclusão, tortura e extermínio dos corpos.” (BARROSBRISSET, 2011, p. 43).
Nos séculos XV a XVII se destaca um grande aprisionamento de todo
tipo de libertinagem e os loucos aí incluídos. Pela primeira vez aparece o termo
alienação mental, por Felix Plater, em 1625 que atribui ao insensato um
despossuído de razão. A passagem do mal demoníaco da Idade Média para o
mal psíquico dessa época evidenciou-se de tão monta que era preciso
encontrar um local para o tratamento da loucura.
Viam-se (e isto na Europa) estabelecimentos para internação que não
são simplesmente destinados a receber os loucos, mas toda uma
série de indivíduos bem diferentes uns dos outros, pelo menos
segundo nosso critério de percepção: encerravam-se os inválidos
pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados
opiniáticos, os portadores de doenças venéreas, libertinos de todas
as espécies, pessoas a quem a família ou o poder real querem evitar
um castigo público, pais de família dissipadores, eclesiásticos com
infração, em resumo, todos aqueles que em relação a ordem da
razão, da moral e da sociedade, dão mostras de alteração.
(FOUCAULT, 1975, p. 78).
Com Beccaria e sua obra Dos Delitos e das Penas em 1764 a Escola
Clássica lança a base de um sistema que serviu como divisor de águas no
Direito Penal com a instituição das penas privativas de liberdade aplicada a
proporcionalidade devida e guiando o olhar do direito para uma perspectiva
mais humana e racional, se contrapondo ao legado de horror deixado pela
Idade Média. Tal obra influenciou o Código Francês de 1795. Ainda ali a
loucura não afastava a responsabilidade por crimes graves. Não obstante a
isso, a reforma desse código em 1810 traz em sua matriz o pensamento de
Philipe Pinel para quem o alienado mental sofreria de um déficit moral
intrínseco, trazendo ínsito a crueldade, a maldade e a violência e, portanto não
responsáveis por seus atos. Não são delinquentes, são doentes. É o chamado
Principio da Porta Giratória – quando o patológico entra em cena a
criminalidade, nos termos da lei, deve desaparecer. (FOUCAULT, 2002, p. 39).
Ao fechar essa síntese da história de conceituação da loucura, do louco
e de seus sintomas chega-se no século XIX. Com práticas como o tratamento
moral pineliano, nos casos de monomania homicida que seria a psiquiatria de
Esquirol diante de uma constatação de um déficit moral intrínseco que perdura
de 1810 a 1835, passando pela proposta de Morel (1857) com a classificação
dos degenerados com seus graus de perigos e localiza-los mesmo antes da
prática do fato para então
segregá-los em nome da defesa social até chegar-se por fim a Homem
Delinquente do período lombrosiano (1876 a 1910) com forte determinação de
encontrar o criminoso nato, onde já não haveria mais diferença entre demência
e delinquência, posto acreditar-se que o delinquente é um doente que exige
mais cuidados da medicina que do direito.
Narra a psicóloga Fernanda Otoni que a escultura A bailarina, de Edgar
Dégas fez parte de recente exposição no Musée D’Orsay em Paris denominada
Crime et châtiment. Na obra, o artista aplicou todos os traços do criminoso nato
de Cesare Lombroso, e a ação do escultor e pintor foi um protesto às teorias
criminológicas de sua época.
De Pinel a Lombroso, passaram-se cem anos, e a exceção dos
dementes foi se tornando a regra de todos os delinquentes, e o que
não mudará nesse discurso, seja nos monomaníacos, seja nos
degenerados ou no homem delinquente é a ideia pineliana de um
déficit moral intrínseco na loucura, o que faz dos loucos indivíduos
perigosos. (BARROS-BRISSET, 2011, p. 46).
3. A MEDIDA DE SEGURANÇA NO DIREITO BRASILEIRO
Embora a medida de segurança nos moldes como conhecemos somente
tenha sido introduzida no corpo da legislação brasileira com o Código Penal de
1940, desde as Ordenações do Reino, ainda que sem a feição de uma sanção
autônoma, era confundida, às vezes, com a própria pena.
Sob a égide das Ordenações Filipinas o louco não poderia responder
pelo crime porque falta-lhe a capacidade de dolo ou culpa. O Código Criminal
do Império de 1830 tornava também os loucos de todos os gêneros
irresponsáveis, salvo se tivessem intervalos lúcidos e neles, cometessem
crimes. “Os loucos que tiverem cometidos crimes serão recolhidos às casas
para eles destinadas ou entregues às suas famílias como ao juiz parecer mais
conveniente”. (ORDENAÇÕES FILIPINAS, ARTIGO 12).
Durante a Primeira República vigorou o Código Penal da República de
1890 que também afastava a responsabilidade penal do doente dispondo no
artigo 27 que “... não são criminosos; (...) § 3º - os que por imbecilidade nativa
ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação”.
(CÓDIGO PENAL DA REPÚBLICA, 1890,). Frise-se que o Código de 1890
ainda não incorporava o cunho psiquiátrico, já usual na legislação penal
européia.
Por esforços de alienistas brasileiros que buscavam o reconhecimento
científico e político da ciência psiquiátrica, surge o Decreto nº 1.132, de 22 de
dezembro de 1903, que dentre outras coisas, implantou uma medida de
tratamento consistente no recolhimento de alienados, de portadores de
moléstia mental congênita ou adquirida e que estejam comprometendo a ordem
pública ou a segurança das pessoas. Note-se que pelo Decreto referido pouco
importava a prática de fato definida como crime para gerar o recolhimento.
O projeto de lei de autoria de Alcântara Machado e que resultou no
Código Penal de 1940 teve influência direta do Código Suíço de Stoos e do
Código Italiano de Arturo Rocco. Admitiu a classificação do criminoso tal qual
pregada por Enrico Ferri, da Escola Positiva, onde aparece o criminoso nato, o
ocasional, o por tendência, o reincidente e o habitual. Constava no projeto que
“o inimputável, embora não culpável deveria ser contido em nome da defesa da
sociedade, pois era perigoso, portador de terrível e incurável doença: a
periculosidade”. Foi nesse contexto que surgiram as medidas de segurança na
legislação brasileira como uma reação jurídica pressupondo um estado
perigoso de alguns que deveriam ser contidos em prol da paz social. Também
foi nessa época que a psiquiatria se firmava no país, inaugurando o primeiro
hospício no Rio de Janeiro em 1941.
4. MEDIDA DE SEGURANÇA NO CÓDIGO PENAL ATUAL
Como mencionado, as medidas de seguranças foram introduzidas no
ordenamento jurídico penal brasileiro pelo Código Penal de 1940. Sofrendo
influencia direta do Código Italiano de Rocco, o Brasil adotou o sistema do
duplo binário que consiste na possibilidade da medida de segurança ser
aplicada isoladamente ao inimputável e cumulativamente com a pena ao semiimputável e ao imputável tido como perigoso. Tinha também outras
modalidades de medida de segurança além da internação e a de sujeição a
tratamento ambulatorial.
Com a introdução da Lei n° 7.209, de 1984 que alterou toda parte geral
do Código Penal, no que tange a medida de segurança, em substituição ao
sistema do duplo binário, até então em vigor, adotou o sistema vicariante ou
unitário, em que a sanção-pena é infligida ao imputável e ao semi-imputável e a
sanção-medida de segurança é aplicada ao inimputável. Pode ocorrer, se o
caso recomendar, de o juiz aplicar medida de segurança ao semi-imputável, de
forma substitutiva, jamais cumulativa como no sistema anterior.
Outra alteração ocorrida com a reforma de 1984 foi a restrição das
modalidades de medidas de segurança que passaram a ser tão somente a
internação, considerada pela doutrina como medida detentiva posto indicar a
internação compulsória em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico e, na
falta, estabelecimento compatível e a sujeição a tratamento ambulatorial,
entendida pela doutrina como medida restritiva.
Pela sistemática do código vigente, se o inimputável cometer um fato
punível com reclusão, deve a medida ser obrigatoriamente a internação. Caso
o fato realizado indique punição de detenção, pode então o juiz aplicar a
medida na modalidade de tratamento ambulatorial. A esse respeito vozes
remansosas na doutrina e jurisprudência afirmam não deva o juiz ficar adstrito
a essa vinculação, podendo então, verificar no caso concreto qual a medida
mais saudável e apropriada levando-se em conta o sujeito.
O fundamento da medida de segurança, dentro do direito posto,
positivado é a periculosidade, na mesma proporção que ao imputável tem
como fundamento da pena a culpabilidade.
Quanto a natureza jurídica da medida de segurança, as opiniões
dividem-se entre os que entendem tratar-se de natureza penal, posto ser uma
espécie do gênero sanção. Há quem argumente ter a medida de segurança
uma natureza administrativa, ante seu fundamento terapêutico/curativo.
Essas medidas são materialmente administrativas e formalmente
penais. Uma das formas mais acabadas de que não pode ser outra a
sua natureza é que juridicamente não podem chamar-se “sanções”,
ainda que na prática o sistema penal as distorça e a elas atribua
eventualmente esta função, realidade que se faz necessário controlar
e procurar neutralizar. (ZAFFARONI, PIERANGELI, 2002, p.123).
Embora se insista em negar às medidas de segurança o caráter de
sanção penal, sob o argumento de que tais medidas apresentam uma
função administrativa, de polícia, não pertencendo, pois ao direito
penal, mas sim ao administrativo – é assente seu caráter
especificamente penal. (PRADO, 2002, p.596).
Apercebe-se que, a despeito da finalidade da medida de segurança ser
preventiva/curativa, sua natureza, de fato é penal até porque a execução é
judicializada na sua essência e prática, tendo um órgão estatal judicial na
direção dos rumos do processo. Com isso a medida de segurança vive essa
deformação que tanto compromete a finalidade curativa. O discurso é a
prevenção e a cura, mas a prática é a punição, sobretudo na modalidade
internação.
Desse modo o paciente judiciário vive o drama de uma política de
segregação, sem direito tanto a responsabilizar-se pelo que fez como ao
tratamento adequado. Tendo que suportar esse permanente estado de
“periculosidade” latente e eterna, muitas vezes, diante de um Estado, insano
com dificuldade em dar efetividade a um modelo já definido há mais de uma
década, mas que aos pacientes judiciários queda-se frente à ausência da rede
necessária e mais, da falta de compreensão do possível por não trazer para o
enfretamento o olhar da intersetorialidade como se verá adiante.
5. O MODELO DE ATENÇÃO AO SUBMETIDO À MEDIDA DE SEGURANÇA
TRAÇADO PELA LEI 10.216/2001
O caminho percorrido até a promulgação da Lei n° 10.216/01 teve seu
marco por volta dos anos de 1978 quando movimentos sociais começaram a
cobrar uma política pública que desse atenção a saúde mental no Brasil com o
redirecionamento de modelo de segregação ao modelo de inclusão. No ano de
1989 ocorreu em São Paulo o fechamento de um manicômio e a implantação
de um Núcleo de Atenção Psicossocial – NAPS. Nessa época era apresentado
no Congresso Nacional o projeto de lei da reforma psiquiátrica e partir daí
intensificou-se a chamada luta manicomial, de um lado os adeptos da
perspectiva Basagliana com o lema “a liberdade é terapêutica” e em
contraponto, os que defendiam a presença da periculosidade e da
incapacidade como inerentes a loucura e que, portanto, lutavam pela
manutenção do modelo de internação compulsória.
Nesse período foi implantado o SUS (Sistema Único de Saúde) e o
Brasil foi signatário da Declaração de Caracas na II Conferencia Nacional de
Saúde Mental ocorrida em 1990 e, precisamente em 06 de abril de 2001,
inspirada nos ideais de Franco Basaglia, que na Itália resultou na Lei n° 180, o
Brasil aprova a Lei n° 10.206/01, calcada nas garantias de direitos inerentes
ao portador de transtorno mental e que de fato serve de marco divisor na
atenção à saúde mental no país, com um modelo que foca ao doente mental a
proteção integral.
Percebe-se, no entanto que embora os pacientes judiciários estejam
acobertados pela referida norma, a mudança do modelo de hospital de custódia
para
os meios menos invasivos não ocorreu no mesmo nível, ora porque estão
internados compulsoriamente, ora porque a necessidade do laudo de cessação
de periculosidade acaba retroalimentando o sistema fazendo com que o
judiciário, na maioria das vezes, opte por manter a internação diante de uma
indicação psiquiátrica nesse sentido.
Com isso criou-se uma desigualdade entre os iguais na medida em que
o paciente não judiciário que por vezes tem o mesmo transtorno mental tenha
uma atenção diferenciada, mesmo com a abrangência da lei que alcança
também os chamados pacientes judiciários.
Entretanto, tanto o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitencia
(CNPCP) como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), estão mobilizando o
judiciário e outros órgãos a que se garanta os direitos dos portadores de
transtornos mentais previstos na lei. Diz o artigo 2º da Resolução 04, de 2010
do CNPCP:
...devem ser observados na execução da medida de segurança os
princípios estabelecidos pela Lei 10.216/2001, que dispõe sobre a
proteção dos direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais
e redireciona o modelo assistencial de tratamento e cuidado em
saúde mental que deve acontecer de modo antimanicomial, em
serviços substitutivos de meio aberto
A mesma Resolução recomenda que haja parceria entre Poder
Executivo e Poder Judiciário no sentido da implantação no prazo de dez anos
de ações que efetivem os preceitos da lei antimanicomial.
Pela Recomendação de nº 35, o CNJ apresenta e recomenda as
diretrizes de adequações da execução da medida de segurança aos modelos
de atenção previstos na Lei n° 10.216/2001, a partir de proposições aprovadas
na III Conferência de Saúde Mental e no Seminário para Reorientação dos
Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, inclusive recomendando que
os Hospitais de Custódia fossem integrados ao SUS.
6. O PROJETO DO NOVO CÓDIGO PENAL ANTE A LEI DA REFORMA
PSIQUIÁTRICA
O projeto do novo Código Penal que tramita no Congresso Nacional,
embora mereça críticas em alguns aspectos, no que concerne ao título que
trata das medidas de segurança, guarda sintonia com a lei antimanicomial.
Ao
utilizar
no
texto
que
a
internação
compulsória
será
em
estabelecimento adequado deixa claro ao legislador que não quer a
perpetração dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico.
Outra novidade positiva do projeto foi de não fazer vinculação da
internação com a pena de reclusão. A redação do artigo 96 do projeto apenas
determina que “se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação
compulsória
ou
tratamento
ambulatorial”
(SENADO
FEDERAL,
2011)
possibilitando ao inimputável a colocação desde logo em meio aberto, o que
não ocorre com o código atual, embora a jurisprudência tenha se mostrada
complacente.
No entanto continua colocando a verificação da cessação da
periculosidade como condição para avaliação de desinternação: “cumprido o
prazo mínimo, a medida de segurança perdurará enquanto não for averiguada,
mediante perícia médica, a cessação da periculosidade, desde que não
ultrapasse o limite máximo” (PROJETO DO CÓDIGO PENAL, art. 96, § 2º).
Outra inovação salutar do projeto é a definição de que caso a pena
correspondente ao imputável seja completada resta também cessada a medida
de segurança, agora, independente de laudo verificatório de periculosidade.
Pelo sistema atual não há tal possibilidade legal e o assunto resolvia-se pela
jurisprudência.
7. POR UMA PRÁTICA GARANTIDORA DA DIGNIDADE HUMANA
A sociedade em que vivemos passa por grandes transformações, uma
sociedade líquida, no dizer de Bauman e, portanto que se movimenta na busca
de uma convivência mais justa. Paulo Freire, com sua práxis nos mostra que o
processo de educação se dá dentro de uma realidade transformadora. Para
Paulo Freire:
“a verdadeira reflexão crítica origina-se e dialetiza-se na interioridade
da ‘práxis’ constitutiva do mundo humano (...) mas ninguém se
conscientiza separadamente dos demais. A consciência se constitui
como consciência do mundo”. (FREIRE, 1970, p.15)
A experiência de Minas Gerais na busca de uma dignidade real aos
portadores de transtornos mentais, quer pacientes judiciários, quer da rede
comum de atenção nasceu das agruras vivenciadas pelo manicômio da cidade
de Barbacena. Ainda no ano de 1995, com a aprovação de Lei Estadual
conhecida como Lei Carlão, migraram do modelo manicomial de exclusão para
o modelo inclusivo com a colocação dos doentes mentais em espaço aberto.
Durante a implementação da política da lei estadual, em processo de
desinternação dos segregados, houve a contradição de receber os pacientes
submetidos à medida de segurança que chegavam aos montes com ordem
judicial de internação.
O programa serve como fio condutor entre a política de saúde mental do
Executivo e a política da justiça penal do Judiciário e faz há mais de doze anos
a intercessão desses atores na busca do melhor tratamento contínuo e
individualizado ao louco infrator para usar a nomenclatura do programa.
É esse o caminho que a experiência do Programa de Atenção Integral
ao Paciente Judiciário (PAI-PJ) nos lega. Que o utópico é possível quando se
permite dialogar com instituições que se apresentam opostas num dado
momento, mas que se perceberam e aglutinaram os saberes e os fazeres na
práxis de que nos fala Freire.
Nas palavras de Fernanda Otoni de Barros-Brisset.
Nossa inspiração se funda na experiência do Programa de
Atenção Integral ao Paciente Judiciário - o PAI-PJ do Tribunal de
Justiça de Minas Gerais. Os dez anos de convívio e
acompanhamento de pessoas que cometeram crimes, em situação
de intenso embaraço, sofrimento e desarranjo para com o tecido
social. O convívio quotidiano com essas pessoas permitiu-nos
localizar a causa de levou ao ato, sua natureza, que é a mesma, cuja
presença palpita em cada um de nós. Essa
vontade
de
poder
diagnosticar, presumir a periculosidade, prever o futuro, dentre tantas
outras intenções de realizar um controle absoluto tornou louco o
próprio saber constituído para justificar as práticas de segregação
que grassam neste terreno onde as teses criminológicas se aplicam.
(OTONI, 2011, p. 11).
Interessante perceber que a experiência vivenciada pelo programa tem
três linhas de ação intercaladas, quais sejam, a intersetorialidade, o
acompanhamento individual contínuo e a individualização da medida com
respeito às singularidades.
Queda-se, portanto o mito da periculosidade assimilado há mais de
duzentos pelo direto penal e pela psiquiatria. “Um juízo íntimo e incerto sobre
condutas de impossível determinação probabilística, aplicada a pessoa
rotulada como perigosa com base em uma questionável avaliação sobre suas
condições morais e vida pregressa”. (RAUTER, 1999)
8. CONCLUSÃO
O novo paradigma trazido pela norma posta na Lei 10.216, de 2001,
busca redefinir e expurgar a cultura da clausura construída a partir do
pensamento equivocado de que a doença mental forçosamente teria uma
associação intrínseca com a periculosidade.
Esse pensamento encontrou no direito sua legitimação e daí, o sujeito
a que se impõe internação jaz no isolamento direito a voz e a margem de um
cuidado compatível à sua condição de demência, em
decorrência de um
sistema contraditório em si mesmo, que justifica na segregação a defesa social
e o tratamento “curativo” sem enxergar o sujeito e suas reais e individuais
necessidades.
Apesar disso vislumbra-se de outro modo que é possível, dentro de
uma concepção interdisciplinar e intersetorial e dialogal entre o sistema de
saúde mental e o sistema de justiça penal trazer a execução da medida de
segurança aos princípios norteadores da dignidade da pessoa humana.
E por que não, acreditar no lema do Programa de Atenção Integral ao
louco infrator e ultrapassar o comodismo da presunção da periculosidade rumo
a presunção da sociabilidade.
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