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Resenha
Título: Rio de Janeiro: histórias de vida e de morte
Autor: Luiz Eduardo Soares
Editora: Companhia das Letras, São Paulo
Ano: 2015
192
UNIVERSIDADE E SOCIEDADE #59
Rio de Janeiro:
sobre flashs da barbárie
David Moreno Montenegro
Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE)
E-mail: [email protected]
Histórias que reviram sentimentos, abalam cer-
Soares impressiona na articulação de diversas esfe-
tezas e revelam nossa vulnerabilidade diante da vio-
ras da realidade brasileira expostas em suas fraturas
lência que penetra nos poros e se espraia por toda a
historicamente constituídas. É através de micro-his-
sociedade brasileira. Nada mais revelador de nossa
tórias que, conduzidos pelo autor, adentramos aos
aporia civilizacional, das contradições irremediáveis
subterrâneos do Brasil contemporâneo, acordos po-
que parecem padecer nossa brasilidade do que a ci-
líticos espúrios que submetem sonhos e esperanças a
dade maravilhosa ser o palco sobre o qual se desnu-
disputas de posições de poder, articulações perversas
dam personagens reais no livro Rio de Janeiro: histó-
entre o crime organizado e forças políticas, o fascí-
rias de vida e de morte, do antropólogo Luiz Eduardo
nio narcísico que o mercado internacional de drogas
Soares, obra editada pela Companhia das Letras em
pode exercer sobre indivíduos bem posicionados na
2015. É no transcorrer das tramas e tragédias dema-
estrutura social, corrupção endêmica que corrói nos-
siadamente humanas que as camadas de significa-
sas instituições de segurança pública, os porões da
do vão se tornando mais fluidas e novas sínteses se
ditadura e suas práticas de tortura que legaram aos
mostram possíveis, dada a complexidade das vidas e
nossos tempos ações ainda muito denunciadas que
trajetórias narradas. Nada parece ser como se mostra
tomam como alvo principal nossas polícias. Ao nar-
à primeira vista, seja a figura de um poderoso chefe
rar acontecimentos próximos, o autor não deixa de
do tráfico, de um playboy hedonista, atentados ma-
apontar rastros que podem ser seguidos no sentido
fiosos (milicianos em terras tupiniquins) ou mesmo
de ampliar o espectro de visão e análise sobre as ce-
político de envergadura nacional, vez que as fragili-
nas que se tecem numa espécie de thriller frenético
dades humanas, muitas vezes de dimensões éticas,
de um filme de suspense que angustia, ainda mais,
são trazidas à tona para revelar gestos, performances
pela sensação de que a qualquer momento virá o gol-
e movimentos que, de outro modo, permaneceriam
pe derradeiro; porém este não vem, mergulhando-
nas coxias do teatro do poder no Brasil, recalcados
-nos numa espécie de purgatório dantesco...
por uma espécie de violência sistêmica que impõe o
Assim, a partir do temor do chefe do tráfico do
silêncio a tudo que apresenta poder latente de pro-
complexo da Maré que vive instantes de forte apre-
mover irrupções sociais em nossa história.
ensão, que antecedem a iminente ação policial que
Partindo de narrativas ora em primeira pessoa,
instalará mais uma Unidade de Polícia Pacificadora
ora em terceira, variação que não interfere na força
- UPP, da guerra fratricida entre facções rivais que
e profundidade dos relatos e análises, Luiz Eduardo
assolam a comunidade local e dificuldades enfrentaANDES-SN
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janeiro de 2017
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Resenha
das por essas mesmas organizações criminosas em
atravessar o fantasma da ditadura, reconhecer nossos
consolidar seu domínio territorial mediante o uso
erros históricos, reinventarmos nossas instituições,
indiscriminado da violência, é possível unir pontas
de criar novas formas de exercício da autoridade
que revelam dilemas profundos enfrentados pelas
institucional do Estado. O resultado tem sido a per-
metrópoles brasileiras. As mudanças no capitalismo
manência do estado de exceção, cujas “práticas cruéis
contemporâneo, mais financeirizado, marcado pelo
voltaram a apontar seu crivo seletivo para pobres e
rentismo predominante, fluido e flexível, que não re-
negros, moradores de favelas e periferias” (SOARES,
quer a fixação de seus capitais em territórios, exigin-
2015, p. 165), afinal, “os benefícios do estado demo-
do, portanto, maior mobilidade pelo espaço urbano,
crático de direito ainda não chegaram à base da pirâ-
parecem compor o pano de fundo da crise do tráfico
mide social” (idem). Neste ponto, acrescentaria que,
como é operado nos morros cariocas. Seria essa uma
a depender dos [des]caminhos de nossa história re-
das razões do declínio do tráfico baseado no empre-
cente percorridos pelo autor, não há indícios de que
go de tropas armadas e treinadas que intencionam a
estejamos próximos de ampliar os espaços de inclu-
dominação e o estabelecimento de territórios defini-
são cidadã para além de alguns (mesmo que impor-
dos de atuação criminosa? A sensação é de estarmos
tantes) avanços conquistados nos últimos anos.
testemunhando a incapacidade de nossas instituições
São nove histórias narradas pelo antropólogo,
formuladoras de políticas públicas em dar conta da
muitas em tom confessional, que revelam as insegu-
dinâmica das novas complexidades que envolvem a
ranças, medos e incertezas de um homem que se de-
tragédia do tráfico, bem como da derrocada de nosso
frontou com o desafio de tentar fazer reais os sonhos
antiquado ordenamento jurídico que se aferra numa
de uma geração. Para aqueles que identificarem, não
lógica punitiva e encarceradora, impossibilitado de
sem certa razão, um pessimismo renitente nas letras
contornar os vieses, restos e sobras do fazer humano
de Soares, advirto: as histórias aqui encenadas não
em terras periféricas. Esses elementos, por sua vez,
nos levam ao calabouço eterno, mas, ao contrário,
parecem não ser absorvidos por uma legislação ca-
apontam para o que pode ser considerado o primei-
rente de imaginação e força criativa e que seja capaz
ro passo de nossa redenção – o reconhecimento de
de se reinventar permanentemente.
nossa miséria.
Do mesmo modo, ao revelar encontros e festas
privadas, muitas movidas por inconfessáveis motivos, envolvendo empresários, políticos, autoridades
públicas de variados níveis e instâncias de poder,
destacando seus acordos e negociatas com intuito
de manutenção de velhas estruturas de dominação,
mostra-se de forma contundente a reprodução de arcaísmos que há muito penetraram nas composições
modernizantes no Brasil, processo que parece não
se desenvolver de outro modo que não abraçado às
forças do atraso, ainda marcado pelo clientelismo e
patrimonialismo à brasileira. As dores sentidas nas
carnes, o pavor e horrores psicológicos a que foram
submetidos os perseguidos políticos em nosso país,
vítimas dos tenebrosos anos de chumbo do golpe
empresarial, civil e militar (1964-1985), projetaram
em nossa sociedade contemporânea suas estruturas
perversas. O tempo não foi suficiente para curar as
chagas abertas pela repressão, não fomos capazes de
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