Breve Abordagem da Usucapião Especial Urbana Coletiva sob o

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Breve Abordagem da Usucapião Especial Urbana Coletiva sob o enfoque
do Direito Processual Coletivo Brasileiro
Silvia de Abreu Andrade Portilho1
RESUMO: A Usucapião Especial Urbana Coletiva, modo de aquisição do
direito de propriedade previsto no Estatuto da Cidade, constitui, no direito
brasileiro, um importante mecanismo de tutela coletiva a favor da população de
baixa renda. No tema aqui tratado, a usucapião especial urbana coletiva é
analisada do ponto de vista do direito processual coletivo brasileiro, enquanto
espécie de direito individual homogêneo. Este instituto, ao proporcionar a
aquisição do direito de propriedade por grupo de possuidores enquanto
coletividade, enquadra-se perfeitamente na categoria das demandas coletivas,
que se caracterizam como processos de interesse público. Em se tratando de
demanda coletiva, busca-se demonstrar a ampla efetividade do instituto para
proteção do grupo de possuidores, seja pela atuação das associações de
moradores, ou mesmo com a possibilidade de ajuizamento de ação civil
pública, por parte do Ministério Público, para a defesa do direito à moradia
desta coletividade. Fica patente, assim, a relevância desta modalidade de
usucapião, enquanto demanda coletiva e enquanto instrumento de política
pública urbana voltada para a regularização dos inúmeros assentamentos
urbanos informais.
PALAVRAS-CHAVE: propriedade; posse; Usucapião Urbana Coletiva; direitos
coletivos; direitos individuais homogêneos.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por objetivo efetuar uma breve abordagem do
inovador instituto da usucapião especial urbana coletiva, instituída pela Lei n.º
10.257/01, denominada Estatuto da Cidade, e da interpretação de suas normas
no âmbito do direito processual coletivo.
A interpretação das normas do instituto da usucapião especial
urbana coletiva é efetuada à luz dos princípios e diretrizes consagrados na
Constituição da República de 1988, que instituiu, em seu artigo 1º, o Estado
Democrático de Direito.
1
Advogada; Mestra em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); PósGraduada em Direito Público (Newton Paiva) e Direito Processual Civil (UGF); Professora de
Direito Civil, Prática Civil e Hermenêutica Jurídica na Faculdade de Ciências Jurídicas
Professor Alberto Deodato.
2
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tem como
principal ideal a plena efetivação dos direitos humanos fundamentais, uma vez
que a dignidade da pessoa humana, a cidadania e o pluralismo são colocados
como fundamentos deste Estado Democrático de Direito. Nas palavras de
Saulo Versiani Penna:
“Diferentemente de algumas Constituições anteriores, nas quais se
podia perceber a predominância absoluta de uma camada social
superior, a de 1988 foi um trabalho de grupos de interesses bastante
diversificados. O resultado alcançado foi, inevitavelmente, um texto
bem heterogêneo, com partes que conflitam entre si e às vezes até
2
se contradizem.” (p.19-20)
Desta forma, nesse novo paradigma, torna-se fundamental que a
sociedade abandone sua postura, até então passiva, e passe a adotar uma
postura pró-ativa, de luta. Luta pelo acesso à implementação dos direitos
fundamentais instituídos na Constituição da República atual, o que se traduz
em uma efetiva luta pelo exercício e construção da dignidade da pessoa
humana, prevista constitucionalmente.
As mudanças e reformas pretendidas pela Constituição da República
de 1988 podem ser operadas de várias formas, dentre elas com a
implementação de políticas públicas que venham a atender as diretrizes
trazidas pela Constituição, com a participação ativa dos três Poderes –
Executivo, Legislativo e Judiciário, e ainda, com a importante participação dos
cidadãos na construção desta sociedade igualitária e justa, proclamada pelo
Estado Democrático de Direito.
Sem dúvida, o Estatuto da Cidade, lei federal n.º 10.257 publicada
no ano de 2001, com a finalidade de regulamentar os artigos 182 e 183 da
Constituição da República, que tratam da política urbana, se traduz em um
importantíssimo diploma legislativo colocado à disposição dos cidadãos para a
implementação dos direitos fundamentais sociais.
A intenção deste breve artigo, portanto, é focar o instituto da
usucapião especial urbana coletiva, em alguns de seus aspectos processuais
relevantes. Justifica-se esta análise pela imensa importância que assume a
2
PENNA, Saulo Versiani. Controle Processual de Políticas Públicas no Brasil. Orientador: Prof.
Dr. José Marcos Rodrigues Vieira. 2009. 314f. Tese (Doutorado em Direito). Faculdade de
Direito, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Belo Horizonte, p. 19-20.
3
usucapião especial urbana coletiva no presente momento, como instituto
inovador, especialmente em se tratando de processo coletivo. São poucas as
discussões doutrinárias a respeito, sendo também escassa a jurisprudência.
Somam-se a isto as dificuldades já existentes quanto ao estudo do processo
coletivo no direito brasileiro. Ao que parece, o cidadão brasileiro ainda não está
ciente da importância de tal instituto na implementação de direitos
fundamentais atinentes a uma coletividade.
O instituto da usucapião3 é por demais antigo, e seus requisitos
genéricos e específicos são bem conhecidos por parte dos civilistas. A
doutrina, no entanto, ainda se acha por demais presa à figura da usucapião
individual da lei civil, e esta nova modalidade de usucapião coletiva se
desprende desta figura, pois possui nítido alcance social; é processo que visa
ao interesse público, não somente da coletividade em questão, mas da
sociedade como um todo. Trata-se, portanto, de típico processo coletivo, que
visa à implementação de direitos sociais, já que se propõe a solucionar
conflitos relativos à moradia e à utilização racional da propriedade nas áreas
urbanas.
2. AS AÇÕES COLETIVAS NO DIREITO BRASILEIRO
Por se tratar de aquisição do direito de propriedade por parte de um
grupo de possuidores, a usucapião especial urbana coletiva se enquadra, sem
dúvida, na categoria das demandas coletivas, que se caracterizam como
processos de interesse público.
A ação coletiva surge “em razão de uma particular relação entre a
matéria litigiosa e a coletividade que necessita da tutela para solver o litígio”.4
Vale destacar que a proteção aos direitos coletivos5 assegura a um
grupo de pessoas a possibilidade, por meio da ação coletiva, de solucionar
3
A palavra “usucapião” é aqui utilizada no gênero feminino, já que o vigente Código Civil
Brasileiro de 2002, diferentemente do Código Civil anterior, acolheu a expressão “da
usucapião”. Tal opção se deve à origem etimológica da palavra: em latim, “capio”, “capionis” é
palavra do gênero feminino.
4
DIDIER Jr., Fredie; ZANETI Jr., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo.
Salvador: Editora Jus Podivm, 2009, v. IV, p. 33.
4
determinada questão litigiosa de forma a coibir decisões antagônicas e, de
certa forma, anômalas, que sejam referentes à mesma situação jurídica ou
fática.
Neste sentido, Ricardo de Barros Leonel discorre: “a opção da via
coletiva colima o alcance da economia processual e da efetividade do
processo, evitar o conflito lógico de julgados em situações absolutamente
similares e permitir a imprescindível implementação do acesso à justiça.”6
O Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/90, tratou das
ações coletivas, classificando, no parágrafo único de seu artigo 81, as
modalidades de interesses ou direitos que podem ser objetos de tutela coletiva
no direito brasileiro, destacando-se, assim, as categorias dos direitos difusos,
dos direitos coletivos em sentido estrito e dos direitos individuais homogêneos.
Percebe-se que a ação coletiva não exclui a possibilidade de
ingresso em juízo individualmente, já que a legitimidade individual do lesado
não pode ser usurpada. A intenção do legislador ordinário foi a de gerar maior
celeridade processual, protegendo direitos de um grupo ou da coletividade, e
não de retirar do titular do direito ameaçado sua possibilidade de ir
individualmente a juízo, o que neste caso acabaria por ferir seu direito
processual constitucional de acesso à justiça, insculpido no inciso XXXV, do
artigo 5º da Constituição da República de 1988: “a lei não excluirá da
apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.”
5
Cumpre ressaltar a diferença existente entre as expressões “tutela de direitos coletivos” e
“tutela coletiva de direitos”. A primeira expressão diz respeito à proteção dos direitos
transindividuais, onde se incluem, segundo o Código de Defesa do Consumidor, os direitos
difusos e os direitos coletivos stricto sensu, visto que caracterizados pela transcendência
individual da titularidade e pela indivisibilidade da pretensão de direito material. Já a segunda
expressão diz respeito à proteção de direitos individuais pela via coletiva, ou seja, a proteção
jurisdicional de direitos subjetivos não coletivos por meio de ações coletivas. Nesta última
categoria, encontram-se os direitos individuais homogêneos, cuja titularidade é determinada e
o objeto é de natureza indivisível; entretanto, por opção legislativa, poderão ser processados
coletivamente. (GOZZOLI, Maria Clara; CIANCI, Mirna; CALMON, Petrônio; QUATIERI, Rita
(Coord.). Em defesa de um novo sistema de processos coletivos: estudos em homenagem a
Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 191).
Para Zavascki, direitos coletivos são direitos subjetivamente transindividuais e materialmente
indivisíveis, constituindo denominação genérica para as duas modalidades de direitos
transindividuais: o difuso e o coletivo stricto sensu. Já os direitos individuais homogêneos são,
simplesmente, direitos subjetivos individuais. Assim, quando se fala em “tutela coletiva” de
direitos homogêneos, o que se qualifica como coletivo não é o direito material tutelado, mas
sim o modo de tutelá-lo, o instrumento de sua defesa. (ZAVASCKI, Teori Albino. Processo
Coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2009, p. 33-35).
6
LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do Processo Coletivo. 2 ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011, p. 98.
5
Evidente, desta forma, a importância das ações coletivas no direito
processual constitucional brasileiro, já que se encontram em perfeita
consonância com as diretrizes democráticas traçadas na Constituição da
República de 1988, que proporcionaram, assim, uma verdadeira transformação
no direito processual pátrio, de uma postura individualista para uma postura
“totalizante na percepção e tratamento dos conflitos”7.
É
com
fundamento
nos
valores
consagrados
pelo
Estado
Democrático de Direito, consoante já ressaltado, que o instituto da usucapião
especial urbana coletiva deve ser interpretado, já que a compreensão do
Direito e o estudo das normas jurídicas devem refletir, sempre, a ordem jurídica
vigente e a realidade social e política em que é contextualizada.
Dentre os direitos coletivos “lato sensu”, dispostos no já mencionado
artigo 81, parágrafo único do Código de Defesa do Consumidor, entende-se
que o direito do grupo de possuidores de baixa renda, na usucapião especial
urbana coletiva, melhor se enquadra na categoria dos direitos individuais
homogêneos, pelos motivos expostos a seguir.
Os direitos individuais homogêneos, previstos no inciso III do
parágrafo único do artigo 81 da Lei nº 8.078/90, conhecidos como “class action
for damages” nos Estados Unidos, tratam-se daqueles decorrentes de origem
comum. São direitos individuais, mas com a possibilidade conferida pela lei de
tratamento coletivo, em razão da massificação das relações jurídicas e das
lesões delas decorrentes.
Acerca da distinção entre os direitos coletivos stricto sensu e os
direitos individuais homogêneos, cabe ressaltar:
Com o escopo de distinção entre os coletivos e os individuais
homogêneos, que na prática pode dar margem à confusão de uma
com a outra categoria, pode-se a princípio, imaginar a utilização de
vários critérios: o da expansão dos sujeitos (maior ou menor número
de lesados), o da extensão do objeto (mais ou menos abrangente), e,
8
finalmente, o do pedido formulado na demanda.
Diante disso, percebe-se que um dos critérios de diferenciação entre
os direitos coletivos stricto sensu e os direitos individuais homogêneos reside
7
8
DIDIER JR.; ZANETI JR. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo, p. 31.
LEONEL, op. cit., p. 100.
6
na intensidade. Assim, quando o direito violado se relacionar a número definido
de demandantes, estará evidenciado um direito individual homogêneo; de outro
modo, quando o número de atingidos for maior, apesar de determinável, tal
situação poderá remeter a um direito coletivo stricto sensu.
Evidentemente, tal critério não é único. A principal distinção, aliás,
ocorre quanto à divisibilidade do objeto, no que tange aos direitos individuais
homogêneos. Nesta categoria de direitos, o montante do quinhão ou da
reparação pode ser individualizado e inclusive distinto entre os seus titulares, o
que não ocorre, via de regra, em se tratando de direitos coletivos em sentido
estrito.
É com maestria que Leonel discorre sobre as características dos
direitos individuais homogêneos:
são características destes interesses: serem determinados ou
determináveis os seus titulares; serem essencialmente individuais e
surgirem em virtude de uma origem ou fato comum, ocasionando a
9
lesão a todos os interessados”.
Não há, na doutrina, unanimidade quanto à possibilidade de
enquadrar o direito dos possuidores, na usucapião especial urbana coletiva,
como direito coletivo stricto sensu ou como direito individual homogêneo.
A este respeito, o ilustre Benedito Silvério Ribeiro entende serem
individuais homogêneos os direitos dos possuidores na ação de usucapião
especial urbana coletiva:
A ação de usucapião coletiva exige que os interesses individuais
sejam homogêneos, isto é, que procedam das mesmas
circunstâncias de fato, portanto, que tenham origem comum. Os
interesses devem ser de grupo determinável, e os direitos são
divisíveis, observando-se os quinhões, que podem variar, mas que
encontram um limite (até 250 m2 para cada qual). É possível que
para algum dos ocupantes reste a ação improcedente, vindo a não
satisfazer os requisitos legais (não prova de ocupação por cinco
anos, existência de outro imóvel, oposição ou interrupção da
10
posse).
Por outro lado, Alexandre Freitas Câmara defende se tratar de
hipótese de direito coletivo stricto sensu:
9
LEONEL, op. cit., p. 387.
RIBEIRO. Tratado de Usucapião, v. 2, p. 1043.
10
7
A demanda de usucapião urbano coletivo é, a nosso sentir, uma
verdadeira demanda coletiva, destinada a permitir que se obtenha
tutela jurisdicional para os membros de um grupo, que se apresentam
como titulares de interesse coletivo stricto sensu (já que o interesse
na aquisição da propriedade urbana coletiva é indivisível, sendo
determináveis seus titulares, e ligados entre si por uma relação
jurídica base, que é a própria relação condominial que entre eles se
11
estabelece).
Não obstante o entendimento do ilustre processualista acima
mencionado, adota-se, aqui, o entendimento consagrado por Benedito Silvério
Ribeiro, concluindo-se configurar direito individual homogêneo o direito
postulado pelos possuidores na ação de usucapião especial urbana coletiva,
uma vez que o que vincula os possuidores é a mesma circunstância de fato,
cuja origem é comum e, além disso, todos os possuidores podem ser
identificados singularmente, quanto à titularidade do direito disputado.
Ademais, verifica-se ser divisível o objeto da ação de usucapião
especial urbana coletiva, tendo em vista que o artigo 10 do Estatuto da Cidade,
em seu parágrafo terceiro, admite que, na sentença, o juiz atribua frações
ideais diferentes do terreno aos possuidores, em hipótese de acordo escrito
entre os condôminos.
Ainda neste mesmo entendimento, destaca-se a opinião de Jesualdo
Almeida Júnior:
A conclusão de que o direito à usucapião coletiva é individual
homogêneo infere-se do próprio texto legal. Como visto, os interesses
desta ordem são divisíveis, podendo ser mensurado o quinhão
pertencente a cada titular de antemão. (...) Vê-se, então, que o
quinhão será idêntico para os substituídos, no caso de sentença
judicial onde não houver acordo escrito entre os condôminos
usucapientes. E, ainda, permite-se-lhes, por acordo escrito,
estabelecerem de antemão suas frações ideais. Tais direitos são,
portanto, divisíveis, com base em origem comum e, por
conseqüência, devem ser encarados como direitos individuais
12
homogêneos.
No que tange à origem comum dos direitos individuais homogêneos,
Ricardo de Barros Leonel assim argumenta:
11
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro: Forense,
2009, v. III, p. 385.
12
ALMEIDA JÚNIOR, Jesualdo E. As modificações da usucapião em face do Estatuto da
Cidade. Artigo disponível em <http://www.zanoti-almeida.com.br/>. Acesso em 03 de abr. de
2012.
8
A origem comum, não significa necessariamente uma unidade factual
e temporal, uma única conduta no mesmo momento gerando a lesão
aos interesses, mas sim a mesma fonte e espécie de conduta ou
atividade, ainda que tenha sua ocorrência postergada no tempo em
13
mais de uma ação.
Desta feita, entende-se tratar a ação de usucapião urbana coletiva
de meio processual de proteção a direitos individuais homogêneos, muito
embora não haja pacificidade na doutrina a respeito. O que se torna relevante
neste momento, mais do que identificar o encaixe perfeito à qualidade do
direito tutelado, se coletivo em sentido estrito ou individual homogêneo, é o fato
de ter sido viabilizado mais um instrumento processual no direito brasileiro de
relevância social em favor da coletividade. Reforça tal novidade legal o
estabelecimento e a efetividade do direito processual coletivo no ordenamento
jurídico de forma a ampliar os meios de promoção e manutenção do Estado
Democrático de Direito.
3. LEGITIMAÇÃO PROCESSUAL ATIVA E PASSIVA NA USUCAPIÃO
ESPECIAL URBANA COLETIVA
As condições da ação, nas ações coletivas em geral, mostram-se
idênticas às exigidas nas ações individuais, sendo elas: a possibilidade jurídica
do pedido, a legitimidade ad causam e o interesse processual, nos termos do
artigo 267, VI do Código de Processo Civil em vigor.
Quanto à legitimidade ativa na ação de usucapião especial urbana
coletiva, cabe destacar que a mesma se encontra expressa no artigo 12 do
Estatuto da Cidade, aplicando-se à mesma, especialmente, os incisos II e III do
mencionado artigo 12.
Assim, o legislador ordinário, na tentativa de garantir à população de
baixa renda a aquisição do domínio, discriminou os meios de legitimação ativa
dos possuidores, seja em estado de composse, ou por meio de associação de
moradores, a qual atuará como substituta processual, uma vez que o direito
13
LEONEL. Manual do Processo Coletivo, p. 99.
9
tutelado na ação de usucapião especial urbana coletiva, segundo se sugere,
trata-se de direito individual homogêneo.
Na modalidade de usucapião especial urbana coletiva, quem possui
legitimidade para atuar no polo ativo é o grupo de possuidores de baixa renda,
com o que se exige, obviamente, que se trate de pessoas físicas.
Desta forma, tem-se que os autores da ação de usucapião especial
urbana coletiva serão as pessoas de baixa renda que ocupem áreas urbanas
com mais de 250 m², com a finalidade de morarem sós ou com as suas
famílias. Se casados, os possuidores necessitam da outorga do seu consorte
para a propositura da ação, uma vez que o artigo 10 do Código de Processo
Civil Brasileiro de 1973, em seu caput, preconiza que “o cônjuge somente
necessitará do consentimento do outro para propor ações que versem sobre
direitos reais imobiliários.”
Devem estes possuidores, ainda, serem devidamente identificados,
já que será formado, após a sentença, um condomínio especial indivisível.
Assim entende Cordeiro:
Dessa forma, a identificação de todos os atuais prescribentes é
imprescindível para a formação do condomínio, devendo, pois, todos
assumirem o polo ativo da ação de usucapião, em litisconsórcio que
deve ser necessário, para o preenchimento de todos os espaços da
área ocupada, até porque é autora a coletividade de ocupantes da
14
área usucapienda.
Acerca da legitimidade ativa, o inciso I do artigo 12 da Lei nº
10.257/01 trata, primeiramente, do possuidor, seja isoladamente ou em
litisconsórcio originário ou superveniente. De acordo com tal dispositivo, o
possuidor, em nome próprio, poderia ingressar isoladamente em juízo com sua
pretensão. Cumpre ressaltar, no entanto, que a primeira parte do inciso I do
mencionado artigo não corresponde à modalidade de usucapião especial
urbana coletiva e, sim, tão somente à usucapião especial urbana individual,
uma vez que não é lícito que o possuidor, de forma isolada, reclame o domínio
coletivo da área.
14
CORDEIRO. Usucapião Especial Urbano Coletivo: abordagem sobre o Estatuto da Cidade,
p. 161.
10
Assim, “a legitimação ordinária ativa impõe sempre um litisconsórcio,
necessário ou facultativo, segundo possam ou não possam ser os espaços
ocupados destacados sem desfigurar o todo.”15
Interessante mencionar o posicionamento de Alexandre Freitas
Câmara, que entende ser possível que o possuidor demande sozinho, na
qualidade de substituto processual da coletividade, em conformidade com o
previsto na primeira parte do inciso I do artigo 12 do Estatuto da Cidade:
Quando um (ou alguns) dos possuidores demandar sozinho, o
demandante estará em juízo não só na qualidade de legitimado
ordinário, mas também como legitimado extraordinário, atuando como
substituto processual dos possuidores que não estiverem em juízo (já
que a sentença de procedência, neste caso, reconhecerá não só a
existência do direito do demandante, mas também dos outros
possuidores que não forem partes da demanda). Faz-se mister,
nestes casos, que a petição inicial indique quem são os substituídos
processuais, a fim de que se possa reconhecer o direito de cada um
16
deles a uma certa fração ideal de terreno.
Ainda nesta linha de raciocínio, este mesmo jurista, de forma
inovadora, entende que o Estatuto da Cidade criou nova espécie de “ação
popular”, no caso em que o possuidor atua, sozinho, em nome da coletividade;
e de “ação civil pública”, quando a legitimidade for exercida pela associação de
moradores aos quais representa:
O Estatuto da Cidade confere legitimidade a qualquer dos copossuidores para demandar a declaração da aquisição da
propriedade coletiva pelos membros da comunidade (o que faz com
que se esteja aqui, neste caso, diante de uma nova espécie de “ação
popular”, que pode ser ajuizada por qualquer pessoa natural que se
apresente como possuidora de uma parte da área usucapienda) ou
pela associação de moradores, regularmente constituída (e, neste
caso, ter-se-á uma nova espécie de “ação civil pública”, já que a
associação é a pessoa adequada para buscar, em juízo, proteção
17
para os interesses de seus associados).
O inciso I do artigo 12 do Estatuto da Cidade menciona, ainda, a
legitimidade para agir do possuidor em litisconsórcio, seja originário ou
superveniente. Quanto à natureza do litisconsórcio ativo que se instala,
15
LIMA. Usucapião Coletivo e Desapropriação Judicial: Instrumentos de atuação da função
social da propriedade, p. 57.
16
CÂMARA, Alexandre Freitas. Aspectos Processuais do Usucapião Urbano Coletivo. Revista
da Esmese, Aracaju, n. 02, p. 41-52, 2002. Disponível em http://bdjur.stj.gov.br/xmlui
/handle/2011/22242. Acesso em 06 de abr. de 2012.
17
CÂMARA. Lições de Direito Processual Civil, v. III, p. 384.
11
necessário ressaltar que, se necessário for, a recusa de alguns possuidores na
participação do processo poderia impor obstáculos à concretização do direito
dos demais.
Francisco Loureiro destaca que, caso os ocupantes que se recusam
a litigar ocupem espaços que possam ser destacados sem desfigurar o todo, o
caso será de litisconsórcio facultativo; entretanto, se as posses dos moradores
que se recusam a litigar estiverem localizadas no interior da gleba e não
puderem ser destacadas do todo, o caso será de litisconsórcio necessário.18
A doutrina aponta uma interessante solução jurídica para tal
impasse, possibilitando ao grupo de possuidores ingressar com a ação coletiva
em juízo e proceder com a citação do possuidor omisso para integrar o polo
ativo da lide. Se este se recusar a participar da lide, caberá ao juiz verificar se a
procedência da demanda será oposta às suas conveniências, ou se esta
recusa configura abuso de direito. Caso o juiz entenda ser a recusa justificada,
o processo será julgado extinto e os demais possuidores deverão ingressar
individualmente, se for o caso, com a ação de usucapião especial urbana
individual.19
No inciso II do artigo 12 do Estatuto da Cidade, o legislador brasileiro
concedeu legitimidade ativa aos possuidores em estado de composse. Nesta
possibilidade
de
legitimação,
os
possuidores
ingressam
em
juízo
conjuntamente, por meio de litisconsórcio necessário, que se encontra previsto
no artigo 47 do Código de Processo Civil Brasileiro de 1973.
Para Cordeiro,
Em que pese a possibilidade de composse que justifique a ocorrência
de usucapião urbano simples, visto que, verbi gratia, nada impede
que um casal, vivendo em união estável e tendo preenchido os
requisitos do artigo 9º da Lei nº 10.257/01, ingresse com pedido de
usucapião urbano individual, tem-se que a previsão do inciso II do
20
artigo 12, em sua essência, está voltada para a modalidade coletiva.
18
LOUREIRO, 2004 apud LIMA, Usucapião Coletivo e Desapropriação Judicial: Instrumentos
de atuação da função social da propriedade, p. 55-56.
19
SILVA, Julian Gonçalves. As modalidades de usucapião e seus requisitos processuais. Artigo
disponível em <http://www.conteudojuridico.com.br/monografia-tcc-tese,as-modalidades-deusucapiao-e-seus-requisitos-processuais,36053.html>. Acesso em 05 de abr. de 2012.
20
CORDEIRO. Usucapião Especial Urbano Coletivo: abordagem sobre o Estatuto da Cidade,
p. 197.
12
Desta forma,
o
estado
de
“composse” existente
entre
os
possuidores, mencionado pelo artigo 12, II do Estatuto da Cidade, não se
confunde com a composse a que faz menção o artigo 10, parágrafo 2º21 do
Código de Processo Civil de 1973.
Esta última, como se depreende, diz
respeito tão somente à posse comum, exercida sobre o mesmo bem pelos
cônjuges ou casais em união estável.
Não obstante a divergência, compreende-se que a referência ao
estado de “composse” talvez se trate de imprecisão legislativa, devendo-se
entender que o inciso II do artigo 12 do Estatuto da Cidade permite que o
pedido da usucapião especial urbana coletiva seja realizado pelo grupo de
possuidores, ainda que não sejam membros da mesma família, determinando a
cumulação subjetiva no polo ativo da ação.
No inciso III do artigo 12, o Estatuto da Cidade passou a prever,
ainda, como parte legítima, a associação de moradores, desde que
regularmente constituída e autorizada pelos possuidores, a qual atuará, então,
como substituto processual. A lei exige, tão somente, seja a associação de
moradores devidamente revestida de personalidade jurídica. Assim, não tendo
o Estatuto da Cidade apontado nenhum outro requisito, não há que se falar em
prazo mínimo de constituição da referida associação de moradores, para que a
mesma tenha legitimidade para atuar em juízo em nome do grupo de
possuidores.
Nos dizeres de Cordeiro, o referido inciso retrata no direito pátrio a
legitimação processual extraordinária, tendo em vista o disposto no artigo 6º do
Código de Processo Civil Brasileiro de 1973: “ninguém poderá pleitear, em
nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.”22
De outra forma, Fábio Caldas de Araújo comenta que:
Na verdade, o legislador confundiu os conceitos de representação e
substituição processual, deixando claro que a hipótese versada não
será de substituição processual, mas de representação, uma vez que
exige a autorização explícita dos associados. A capacidade de
representação das entidades associativas tem previsão constitucional
21
Menciona este dispositivo do CPC:
“Art. 10. (...)
§2º. Nas ações possessórias, a participação do cônjuge do autor ou do réu somente é
indispensável nos casos de composse ou de ato por ambos praticado.”
22
CORDEIRO. Usucapião Especial Urbano Coletivo: abordagem sobre o Estatuto da Cidade, p.
205.
13
como retrata o art. 5º, XXI da CF/88: as entidades associativas,
quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para
23
representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente.
Deste modo, o disposto no inciso III traz entendimentos divergentes
quanto à natureza do instituto traçado pelo legislador, se se trata de
substituição processual ou de representação; entretanto, há de se ter em
mente que a intenção do legislador foi beneficiar os possuidores carentes, para
que estes tenham sua posse convertida em direito de propriedade. Assim,
entende-se que, em se tratando de proteção a direitos individuais homogêneos,
a legitimação ativa da associação de moradores constitui modalidade de
legitimação extraordinária por meio da substituição processual, já que a
associação substituirá o grupo de possuidores na demanda, pleiteando, em
nome próprio, pretensão alheia.
Nessa esteira, Leonel discorre que: “na tutela dos direitos individuais
homogêneos, o que fica patente é a substituição processual - legitimação
extraordinária - em que os legitimados postulam em juízo interesse alheio,
fazendo-o em nome próprio”24.
De fato, o dispositivo em questão gera controvérsias, devido à sua
imprecisão técnica; entretanto, face à finalidade social da modalidade coletiva
da usucapião especial urbana, deve-se interpretar a hipótese como sendo de
substituição processual. Se a associação de moradores fosse mera
representante, necessitaria, para estar em juízo, da autorização de todos os
possuidores, sendo que a ausência de autorização de apenas um deles
acarretaria a carência de ação, o que não condiz com os objetivos traçados
pelo legislador no Estatuto da Cidade, ao regular a nova modalidade coletiva
de usucapião especial urbana.
Quanto à legitimação passiva na ação de usucapião especial urbana
coletiva, o Estatuto da Cidade silenciou a respeito; entretanto, como regra geral
aplicável às ações de usucapião de terras particulares, o artigo 942 do Código
de Processo Civil de 1973 determina que no polo passivo da lide devem estar o
proprietário do imóvel, constante da Certidão de Registro do bem usucapiendo,
bem como pelos confinantes deste imóvel.
23
ARAÚJO. O Usucapião no âmbito material e processual, p. 263.
LEONEL. Manual do Processo Coletivo, p. 153.
24
14
Desta feita, na ação de usucapião especial urbana coletiva, tanto os
proprietários com seus respectivos cônjuges, se casados forem, bem como os
interessados e os confinantes, deverão ser citados para se defenderem e
tomarem ciência da ação.
Assim sendo, identificando-se os proprietários do bem por meio da
certidão de registro do imóvel, deverão os mesmos constar do polo passivo da
ação, juntamente com seus cônjuges. Estes são os chamados “proprietários
tabulares”25, isto é, os que constam no álbum imobiliário. Em caso de
falecimento do proprietário, os possuidores deverão proceder à citação dos
respectivos herdeiros; não se conhecendo os herdeiros, deverá ser efetuada a
citação destes por edital.
Quanto aos confinantes, cujo dispositivo legal também prevê a
citação, são estes os vizinhos de divisa, também denominados confrontantes.
O fundamento legal para a citação dos confinantes é a interpenetração das
posses, podendo os imóveis lindeiros vir a sofrer prejuízos, seja quanto à
limitação ou à preservação de sua propriedade26. Desta forma, a citação dos
confinantes tem por finalidade a correta delimitação da gleba usucapienda, a
fim de evitar que terrenos adjacentes sejam irregularmente invadidos devido ao
título de domínio a ser conferido ao usucapiente27, o que ensejaria, por parte
dos confinantes, a possibilidade de propositura de ação reivindicatória de
propriedade.
A não observância da correta citação dos legitimados passivos é
causa de extinção do processo por falta de uma das condições da ação, salvo
se entender o magistrado pela intimação dos possuidores para proceder à
emenda à petição inicial, nos termos do artigo 28428 do Código de Processo
Civil brasileiro de 1973.
25
Em latim, tabula significa tábua de escrever.
RIBEIRO. Tratado de Usucapião, v. 2, p. 1327.
27
Neste sentido: TJMG, Apelação Cível nº 1.0105.02.062466-1/001 – Comarca de Governador
Valadares – Apelante: Altura – Aliança Turística Ltda. – Apelado(s): Wildo Franklin de Alencar e
Outro(a)(s) – Relator Des. Irmar Ferreira Campos. Data de Julgamento: 16.08.2007.
28
“Art. 284. Verificando o juiz que a petição inicial não preenche os requisitos exigidos nos arts.
282 e 283, ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de
mérito, determinará que o autor a emende, ou a complete, no prazo de 10 (dez) dias.
Parágrafo único. Se o autor não cumprir a diligência, o juiz indeferirá a petição inicial.”
26
15
4. A LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA TUTELA DOS DIREITOS
INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
Consoante se verifica do caput do artigo 127 da Constituição da
República
de
1988,
o
Ministério
Público
é
instituição
permanente,
comprometida com a defesa da ordem jurídica e do regime democrático. O
compromisso desta instituição essencial ao Estado Democrático de Direito
consiste, especialmente, na proteção dos interesses sociais e individuais
indisponíveis. Vale também mencionar o inciso III do artigo 129 da Constituição
da República de 1988, que prevê, como função institucional do Ministério
Público, a promoção do inquérito civil e da ação civil pública, para a proteção
do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos
e coletivos.
O Ministério Público, em conformidade com suas atribuições
constitucionais, pode assumir, em um processo, a posição de parte, a posição
de substituto processual ou a de fiscal da lei (custos legis), estando esta última
competência expressa no artigo 82 do Código de Processo Civil Brasileiro de
1973.
Nas ações de usucapião, o Ministério Público age como fiscal da lei,
uma vez que o artigo 944 do Código de Processo Civil Brasileiro de 1973
dispõe que “intervirá obrigatoriamente em todos os atos do processo o
Ministério Público.”
Na ação de usucapião especial urbana, tanto individual quanto
coletiva, é sabido que o legislador ordinário, no Estatuto da Cidade, determinou
expressamente a obrigatoriedade da intervenção do Ministério Público.29 Assim
sendo, determinou a legislação em questão a atuação do Ministério Público na
condição de custos legis, ou seja, fiscal da lei. A intervenção do Ministério
Público na ação de usucapião especial urbana coletiva é, portanto, obrigatória,
uma vez que a lide envolve interesse público evidenciado por sua natureza,
bem como envolve interesse social que também está afeto à sua atuação.
29
Tal disposição consta no parágrafo 1º do artigo 12 do Estatuto da Cidade: “na ação de
usucapião especial urbana é obrigatória a intervenção do Ministério Público.”
16
Sendo certa a obrigatoriedade da intervenção do Ministério Público
nas ações de usucapião especial urbana coletiva, no que tange à fiscalização
da regularidade processual bem como da satisfação dos requisitos necessários
para a criação de título hábil ao registro imobiliário em nome dos possuidores,
resta questionar se a sua atuação deve permanecer restrita a esta análise.
De fato, o papel do Parquet, nas ações de usucapião especial
urbana coletiva, não deve ficar adstrito à fiscalização da regularidade
processual. Isto porque a sua participação se faz necessária no processo de
implementação das políticas de desenvolvimento urbano; ademais, faz-se
imprescindível mencionar que a defesa da ordem urbanística, direito difuso,
integra expressamente o rol da ação civil pública, conforme mencionado no
artigo 1º, VI da Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública).
Assim, a ordem urbanística passa a compor a proteção dos
interesses difusos e coletivos a serem objetos de defesa por intermédio da
ação civil pública, de modo a resguardar o interesse social.
A defesa da ordem urbanística, por sua vez, pode beneficiar
interesses difusos, coletivos ou mesmo individuais homogêneos, onde se
enquadram, nesta última categoria, os direitos dos possuidores de baixa renda
à aquisição do direito de propriedade por meio da ação de usucapião especial
urbana coletiva. Não há como negar, portanto, que o Estatuto da Cidade se
integra ao sistema de proteção aos interesses transindividuais e individuais
homogêneos.
Neste raciocínio, defende-se a efetiva possibilidade de atuação do
Ministério Público, não somente na qualidade de fiscal da lei, mas também
como autor, por substituição processual, na defesa dos interesses individuais
homogêneos, entre os quais o direito dos possuidores de baixa renda à
aquisição do domínio pela via da usucapião especial urbana coletiva. Tal
conclusão se prende a dois fundamentos, quais sejam: a relevância social da
matéria e a indisponibilidade do direito tutelado.
Visando a enfrentar os problemas decorrentes do limite entre o que
justifica ou não a atuação do Ministério Público em defesa de interesses
transindividuais divisíveis, o Conselho Superior do Ministério Público de São
Paulo editou a Súmula nº 7, que dispõe:
17
O Ministério Público está legitimado à defesa de interesses
individuais homogêneos que tenham expressão para a coletividade,
como: a) os que digam respeito à saúde ou à segurança das
pessoas, ou ao acesso das crianças e adolescentes à educação; b)
aqueles em que haja extraordinária dispersão dos lesados; c) quando
convenha à coletividade o zelo pelo funcionamento de um sistema
30
econômico, social ou jurídico.
Em essência, a Súmula em questão, não obstante não contenha
valor normativo, serve de orientação aos membros do Parquet, entendendo-se
que o Ministério Público está legitimado à defesa dos interesses individuais
homogêneos, desde que tenham expressão para a coletividade.
Arruda Alvim destaca que os interesses individuais homogêneos
também passaram a ser objeto de proteção por meio da ação civil pública:
Deve-se ter presente que os novos bens, referidos originários e
principalmente pela Lei da Ação Civil Pública, já nasceram sob o
signo da indisponibilidade, se em si mesmos considerados. Essa
indisponibilidade, decorrente do regramento que a esses foi atribuído,
revela a importância que a eles tributou o legislador. E,
paralelamente, conferiu legitimidade a organismos sociais
interessados e ao Ministério Público, aptos à proteção desses bens.
O instrumental de direito processual posto à disposição desses
legitimados é profundamente diferente daquele do processo
31
tradicional.
A nova espécie de direito coletivo, incluída no rol da lei nº 7.347/85 –
Lei de Ação Civil Pública – denominada ordem urbanística, trata-se de conceito
jurídico amplo, que abrange o planejamento, a política do solo, a urbanização,
a ordenação das edificações, a correta distribuição da concentração
demográfica, dentre outras, tudo com a finalidade de organizar os espaços
habitáveis e proporcionar melhores condições de vida ao homem.
A
ação
civil
pública,
portanto,
teve
seu
objeto
ampliado,
possibilitando-se, inclusive, a exigência judicial da implementação gradual das
obrigações sociais do Estado.
Desta forma, considerando-se como direito coletivo lato sensu o
direito dos possuidores de baixa renda à aquisição do domínio, pela via judicial
30
Súmula do CSMP-SP aprovada em 1994, citada por Hugo Nigro Mazzilli, na obra “Em defesa
de um novo sistema de Processos Coletivos: estudos em homenagem a Ada Pellegrini
Grinover”, p. 264.
31
ALVIM, ARRUDA. Ação Civil Pública – sua evolução normativa significou crescimento em prol
da proteção às situações coletivas. In: MILARÉ, Édis (Coord.). A Ação Civil Pública após 20
anos: efetividade e desafios. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 83.
18
da usucapião especial urbana coletiva, defende-se, aqui, a possibilidade de
efetiva atuação, como parte, do Ministério Público e demais entes legitimados32
por meio da ação civil pública, na defesa dos direitos deste grupo de
possuidores e em consequente proteção à ordem urbanística, já que, em
consonância com os fundamentos aqui apresentados, tal atuação encontra-se
respaldada no exercício de seu múnus constitucional e legal.
A este respeito, cita-se interessante trecho de sentença proferida,
em primeira instância, pelo juiz da 3ª Vara Cível da Comarca de Ariquemes, do
Estado de Rondônia, em ação civil pública proposta pelo Ministério Público, em
face de Madeireira Rio Formoso Indústria Comércio Importação e Exportação
Ltda., CERON e outros, cujo objeto é a declaração de usucapião especial
urbana coletiva em favor dos cidadãos substituídos:
(...) Apesar de não ter sido instado a manifestar sobre a legitimidade
ativa, tendo em vista o art. 12 do Estatuto da Cidade, onde se prevê a
legitimidade de quem pode propor a demanda em questão, não
incluindo o órgão ministerial, uma pequena abordagem é pertinente.
Uma interpretação apressada poderia excluir o Ministério Público do
rol de pessoas ou entidades com autorização para propor a demanda.
No entanto, deve-se atentar que a lei não o excluiu. Na verdade,
entendo que o legislador deu autorização excepcional àquelas
pessoas relacionadas nos incisos do art. 12, sem interferir em outras
que possuam autorização por conta de diplomas legais diversos. Em
relação ao Ministério Público, outra interpretação não seria possível,
pois sua legitimação é autorizada pela Constituição Federal, quando
o art. 129, inciso III, prevê, como função institucional, a propositura de
ação civil pública para proteção de interesse coletivo, como é o caso
da Usucapião Coletiva. De qualquer forma, a legitimidade ativa está
33
bem configurada.
32
Em consonância com o disposto no artigo 5º da Lei 7.347/85 (lei de ação civil pública):
“Art. 5º. Tem legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:
I – o Ministério Público;
II – a Defensoria Pública;
III – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;
V – a associação que, concomitantemente:
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à
ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e
paisagístico.”
33
Sentença proferida na data de 17.03.08, pelo juiz da 3ª Vara Cível da Comarca de
Ariquemes/RO, nos autos do Processo nº 002.2006.007558-7 – Ação Civil Pública. Disponível
na
íntegra
em
<http://www.conjur.com.br/2008-jun20/familias_usucapiao_coletivo_area_invadida>. Acesso em 12 de Out. de 2012.
19
Evidentemente, a questão é controversa, e tal possibilidade só
poderia ser reconhecida levando-se em consideração a efetiva conveniência
da atuação do Ministério Público em defesa destes interesses individuais
homogêneos.
Ressalta-se, deste modo, a necessidade de um maior debate
doutrinário sobre a questão, uma vez que não se pode afirmar que o Ministério
Público não possa defender interesses individuais homogêneos. Se a defesa
de tais interesses envolver acentuado interesse social, deverá, sim, ser
efetuada por esta instituição. Afinal, a defesa da função social da propriedade
em prol da coletividade carente também permeia a seara de atuação do
Parquet.
5. DO RITO SUMÁRIO NA AÇÃO DE USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA
COLETIVA
Como se verifica do artigo 14 do Estatuto da Cidade, o rito a ser
observado na ação de usucapião especial urbana coletiva é o sumário.
A intenção do legislador, ao estabelecer textualmente a adoção do
rito sumário, foi trazer celeridade na tramitação desta modalidade de
usucapião. Cabe, entretanto, tecer algumas considerações críticas à adoção do
rito sumário em ação de usucapião, consoante ressaltado pela doutrina:
O procedimento sumário é inapropriado para causas como as
referentes à usucapião de imóvel, dada uma série de providências
que devem ser levadas em conta.
Não se trata de chamar à lide a parte passiva tão somente, sendo
necessária a citação daquele cujo nome esteja registrado o imóvel,
dos confrontantes e dos réus em lugar incerto e dos eventuais
34
interessados.
A adoção do rito sumário foi também estabelecida para a ação de
usucapião especial urbana individual, com inspiração na disposição já contida
na Lei nº 6.969/81, relativa à usucapião especial de imóvel rural.
Destarte, verificam-se, no rito sumário, algumas limitações no que
tange à produção de provas, como ocorre a exemplo da prova pericial, tantas
34
RIBEIRO. Tratado de Usucapião, p. 1045.
20
vezes indispensável na ação de usucapião especial urbana coletiva. A prova
pericial poderia ser dificultada em caso de citação dos réus por edital, o que
poderia gerar adiamentos das audiências, com novas designações de datas e
intimações.
Assim sendo, diante das dificuldades que poderão surgir para a
adaptação do feito ao rito sumário, poderão os juízes aplicar o disposto no § 5º
do artigo 277 do Código de Processo Civil Brasileiro de 1973, que assegura a
conversão do rito sumário em ordinário.35
Cumpre ao magistrado no caso particular, portanto, analisar se a
adoção do rito sumário, em lugar de imprimir maior celeridade na tramitação do
feito, irá acarretar prejuízos ao grupo de possuidores quanto ao alcance do
provimento jurisdicional, o que efetivamente não condiz com a finalidade social
do instituto.
6. SOBRESTAMENTO DE AÇÕES
O artigo 11 da Lei nº 10.257/01 - Estatuto da Cidade - dispôs
expressamente sobre o sobrestamento de quaisquer espécies de ações
propostas posteriormente ao ajuizamento da ação de usucapião urbana
coletiva, no seguinte sentido: “Na pendência da ação de usucapião especial
urbana,
ficarão
sobrestadas
quaisquer
outras
ações,
petitórias
ou
possessórias, que venham a ser propostas relativamente ao imóvel
usucapiendo”.
Conforme preceitua Benedito Silvério Ribeiro, a norma em questão,
trazida pelo Estatuto da Cidade,
Trata-se de nova hipótese de suspensão do processo que perdurará
até o trânsito em julgado do processo de usucapião. Descoberto que
seja o processo petitório ou possessório, mas em grau de recurso,
36
deverá ser anulada a sentença.
35
SALLES. Usucapião de Bens Imóveis e Móveis, p. 323-324.
RIBEIRO. Tratado de Usucapião, v. 2, p. 1025.
36
21
José Carlos de Moraes Salles, ao comentar o dispositivo em
questão, aponta a existência de certo antagonismo existente entre o artigo 923
do Código de Processo Civil Brasileiro de 1973, que dispõe que “na pendência
do processo possessório é defeso, assim ao autor como ao réu, intentar a ação
de reconhecimento do domínio”, e o citado artigo 11 do Estatuto da Cidade:
Poder-se-á, entretanto, argumentar que, no art. 923 do CPC o
ajuizamento do processo possessório é anterior ao da ação de
usucapião, ao passo que, no caso do art. 11 do Estatuto, a ação de
usucapião especial urbana é que é anterior às petitórias ou
possessórias “que venham a ser propostas relativamente ao imóvel
usucapiendo”. Assim as situações não seriam exatamente iguais!
Todavia, do ponto de vista prático, não vemos grande diferença entre
uma e outra situação. Ambas as normas visam impedir a
concomitância da ação de usucapião e das petitórias ou das
possessórias. O objetivo evidente é o de evitar decisões
contraditórias, que poderiam
decorrer do processamento
37
concomitante ou simultâneo de ambas as ações.
Interessante ressaltar que a norma contida no Estatuto da Cidade,
no que se refere ao sobrestamento das ações, dispõe em sentido contrário à
norma expressa no artigo 1.210, § 2º do Código Civil Brasileiro de 2002 que
determina que “não obsta a manutenção ou reintegração na posse a alegação
de propriedade, ou de outro direito sobre a coisa”.
Na verdade, o privilégio concedido ao possuidor pelo Estatuto da
Cidade, no que diz respeito ao sobrestamento das ações, acabou por prestigiar
a propositura anterior da ação de usucapião especial urbana em prol da função
social da posse, o que, evidentemente, pode vir a ensejar conflitos entre
possuidores e proprietários.
O tema mostra-se conturbado na doutrina, pois posicionamentos
divergentes quanto à real intenção do legislador e o que a referida norma pode
gerar no Judiciário brasileiro, acabam por criar brechas a interesses
antagônicos.
Favorável ao dispositivo, Caramuru Afonso Francisco aduz seja
obrigatória a averbação da ação de usucapião na matrícula do imóvel
usucapiendo, o que deverá ser determinado de ofício pelo juiz na decisão
37
SALLES. Usucapião de Bens Imóveis e Móveis, p. 314.
22
liminar, para permitir que se torne efetiva a disposição legal a efeito do
sobrestamento.38
Analisando-se a questão à luz do disposto nos artigos 103 e 105 do
Código de Processo Civil Brasileiro de 1973, cabível seria, a princípio, a
conexão entre a ação de usucapião especial urbana e a ação reivindicatória,
em lugar do sobrestamento das ações petitórias e possessórias.39
Demonstradas as divergências doutrinárias a respeito, fato é que o
sobrestamento alcança apenas as ações propostas após a propositura da ação
de usucapião especial urbana. Desta forma, verificada a situação que a lei
prevê como apta à paralisação, ao juiz caberá tão somente proferir despacho
visando a sobrestar a ação possessória ou petitória em questão.
7. A USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA COLETIVA COMO MATÉRIA DE
DEFESA
A Lei nº 10.257/01, em seu artigo 13, prevê expressamente a
possibilidade de invocar a usucapião especial de imóvel urbano como matéria
de defesa. Tal possibilidade não se trata de novidade trazida pelo legislador,
posto que a Lei nº 6.969 de 1981, que trata da usucapião especial de imóveis
rurais, já continha disposição a respeito40.
Uma vez alegada a usucapião em defesa, o réu terá que produzir
provas para a demonstração de seu direito à aquisição do domínio, seja
testemunhal, pericial ou documental. Via de regra, a sentença que reconhece a
exceção de propriedade fulcrada em usucapião rechaça o direito do
proprietário.
Para Ribeiro, tendo em vista a possibilidade de aquisição do domínio
por meio da usucapião especial urbana alegada em defesa,
38
FRANCISCO, 2001 apud RIBEIRO. Tratado de Usucapião, v. 2, p. 1025.
NEGRÃO, Theotônio. Código de Processo Civil e Legislação Processual em vigor. 35 Ed.
São Paulo: Saraiva, 2003, p. 207.
40
Lei nº 6.969/81:
“Art. 7º. A usucapião especial poderá ser invocada como matéria de defesa, valendo a
sentença que a reconhecer como título para transcrição no Registro de Imóveis.”
39
23
Não se deve desobrigar aquele que alega usucapião em defesa de
juntar planta do imóvel e de nominar os confrontantes e a pessoa que
consta no registro imobiliário. Deve o contestante pedir a cientificação
dos representantes das Fazendas Públicas, bem como as citações
dos réus em lugar incerto e eventuais interessados, por edital, além
dos réus certos. Ademais, convém que requeira a participação do
41
Ministério Público.
Já Carvalho Filho, em sentido contrário, entende que não se aplica a
esta modalidade de usucapião urbanística o litisconsórcio necessário expresso
no artigo 942 do Código de Processo Civil Brasileiro:
Por outro lado, não se aplicará ao usucapião urbanístico o
litisconsórcio necessário a que alude o art. 942 do Cód. Proc. Civil,
decorrente da citação dos confinantes, dos réus que estejam em
lugar incerto e dos eventuais interessados. Tal exigência
procedimental sobre o litisconsórcio ocorre ‘ex vi legis’ no processo
normal de usucapião, mas não se estende ao usucapião urbanístico
42
pelo fato de ser este previsto em lei especial.
Vale ressaltar que, nas demais modalidades de usucapião, não
obstante a aplicabilidade da Súmula 237 do Supremo Tribunal Federal, que
dispõe que “o usucapião pode ser arguido em defesa”, não pairam dúvidas de
que “a supressão do domínio exige cognição exauriente e obediência ao
procedimento específico”43. Sendo assim, faz-se necessária propositura de
ação própria de usucapião de imóvel particular, para que o possuidor possa
fazer jus à aquisição do domínio. Diferentemente, na ação de usucapião
especial de imóvel rural (Lei nº 6.969/81), bem como nas ações de usucapião
especial de imóveis urbanos, consoante prevê o Estatuto da Cidade, a
usucapião alegada em defesa possui o condão de, além de possibilitar a
improcedência da ação proposta pelo autor, declarar a aquisição do direito de
propriedade do possuidor (ou possuidores) que reunir os requisitos previstos
em lei.
Assim, caso os possuidores, como réus, aleguem em defesa a
usucapião especial urbana coletiva, e desde que reunidos os requisitos para
sua concessão, esta sentença judicial poderá ser utilizada para o registro no
cartório de imóveis. É este o entendimento de Carvalho Filho:
41
RIBEIRO. Tratado de Usucapião, v. 2, p. 1027.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentários ao Estatuto da Cidade. 3. ed. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 147.
43
ARAÚJO. O Usucapião no âmbito material e processual, p. 327.
42
24
Como se pode observar, o possuidor de imóvel urbano que pretenda
o reconhecimento do usucapião especial tem situação de vantagem
em relação ao possuidor no usucapião comum. Este, para ter o título,
deve ser o autor da ação, ao passo que aquele tanto pode ser autor
44
como réu, que a sentença lhe servirá como título.
O legislador brasileiro, como se verifica, adotou medida que propicia
economia processual, atendendo à natureza social do instituto e à sua
peculiaridade como instrumento de tutela urbanística. Deste modo, ocorrerá
uma verdadeira ampliação do próprio conteúdo da sentença, que decidirá tanto
sobre o pedido reivindicatório do autor, como também sobre a declaração de
propriedade pretendida pelo grupo de possuidores. Exatamente pelas
peculiaridades acima analisadas, é que se pode afirmar o caráter especial de
tal procedimento.
8. A SENTENÇA E A COISA JULGADA NA USUCAPIÃO ESPECIAL
URBANA COLETIVA
A Lei nº 10.257/01 dispõe, em seu artigo 10, parágrafo 2º, que “a
usucapião especial coletiva de imóvel urbano será declarada pelo juiz,
mediante sentença, a qual servirá de título para registro no cartório de registro
de imóveis”
Diante
de
tal
dispositivo
legal,
faz-se
necessário
perquirir,
primeiramente, acerca da natureza jurídica da sentença na ação de usucapião.
A este respeito, Fábio Caldas de Araújo assegura que: “comumente se afirma
que a ação de usucapião é declaratória porque a sentença nada cria, apenas
aponta que em certo momento, alguém adquiriu o domínio pela posse
prolongada.”45
A posição aqui defendida, em consonância com a doutrina
majoritária, é de que a natureza jurídica da sentença de usucapião, incluindo a
sentença proferida na ação de usucapião especial urbana coletiva, é
44
45
CARVALHO FILHO, op. cit., p. 146.
ARAÚJO. O Usucapião no âmbito material e processual, p. 274.
25
meramente declaratória, já que a sentença não constitui o direito do grupo de
possuidores à aquisição do domínio; ao contrário, sendo a usucapião modo de
aquisição originária do direito de propriedade, considera-se adquirido o
domínio, por parte destes possuidores, com a simples reunião dos requisitos
expressos em lei para o seu reconhecimento. A sentença, desta forma, não
atribui e sim reconhece o domínio, e servirá como título para registro no
competente Cartório, dando publicidade à aquisição da titularidade deste
domínio por parte dos possuidores.
A sentença de procedência do pedido na ação de usucapião
especial urbana coletiva, sendo meramente declaratória, tem eficácia
retroativa, ex tunc. Desta forma, entende a doutrina que a sentença retroage à
data em que se completou o tempo para aquisição do domínio (ou outro direito
real) por meio da usucapião46. Também neste sentido é o entendimento do
Superior Tribunal de Justiça, ao declarar que, face aos efeitos retroativos da
sentença proferida nas ações de usucapião, eventuais ônus reais pendentes
sobre o bem imóvel usucapido não prevalecem47.
Importante ressaltar que o Estatuto da Cidade, em seu artigo 13,
trouxe a possibilidade de alegação da usucapião especial urbana coletiva em
defesa; neste caso, segundo o dispositivo legal, a sentença que a reconhecer
valerá como título para registro no Cartório de Registro de Imóveis. Assim, a
sentença de improcedência do pedido do autor, em caso de reconhecimento da
usucapião especial urbana coletiva alegada em defesa, terá o condão de
formar coisa julgada formal e material, declarando a aquisição do direito de
propriedade ao grupo de possuidores, o que impede que o anterior proprietário
venha a discutir o domínio do bem imóvel usucapido em ação posterior.
Quanto à sentença de improcedência proferida na ação de
usucapião especial urbana coletiva, necessário se faz tecer algumas
considerações. Sendo o pedido julgado improcedente devido à ausência do
46
Neste sentido, Alexandre Freitas Câmara, na já citada obra Lições de Direito Processual
Civil, v. III, p. 436.
47
“USUCAPIÃO. PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. A questão posta no REsp consiste em definir se
a prescrição aquisitiva (usucapião) está sujeita a eventuais limitações relacionadas com a
anterior constituição de ônus real sobre o bem usucapido. A Turma entendeu que, consumada
a prescrição aquisitiva, a titularidade do imóvel é concedida ao possuidor desde o início de sua
posse, presentes os efeitos ex tunc da sentença declaratória, não havendo de prevalecer
contra ele eventuais ônus constituídos, a partir de então, pelo anterior proprietário.” STJ, REsp
716.753-RS, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 15 de dez. de 2009.
26
direito do grupo de possuidores, ocorrerá certamente, no âmbito coletivo, coisa
julgada formal e material. Entretanto, entende a doutrina que, sendo julgado
improcedente o pedido devido à ausência do lapso temporal suficiente à
aquisição do domínio, nova ação de usucapião poderá ser proposta referente
ao mesmo bem. Alexandre Freitas Câmara faz importante observação, acerca
da possibilidade de propositura de nova demanda em caso de improcedência
na ação de usucapião:
Em primeiro lugar, é de se afirmar que a sentença de improcedência
do pedido alcança a autoridade de coisa julgada. É certo que o
mesmo autor poderá, posteriormente, ajuizar novamente ‘ação de
usucapião’ referente ao mesmo imóvel. Haverá, porém, modificação
da causa de pedir, já que nesta nova demanda o autor terá de alegar
suporte fático ao menos parcialmente diverso do apresentado na
primeira demanda (basta ver que o termo final do prazo de usucapião
na segunda demanda será, necessariamente, diferente do apontado
na primeira). Sendo diversa a demanda, não há qualquer
impedimento ao desenvolvimento normal do segundo processo, já
que a coisa julgada substancial impede, tão somente, a repetição da
48
mesma demanda, anteriormente julgada.
Além disso, em caso de improcedência da sentença na ação de
usucapião especial urbana coletiva, não há impedimento para que os
possuidores venham a pleitear a aquisição do domínio a título individual, desde
que reunidos os requisitos necessários para tal modalidade de usucapião.
Demonstrada a natureza jurídica e as peculiaridades atinentes à
sentença na ação de usucapião especial urbana coletiva, cumpre analisar os
seus efeitos processuais para fins do entendimento quanto ao alcance da coisa
julgada advinda deste procedimento.
Os efeitos da sentença irão determinar a natureza da coisa julgada,
que dela irá emergir. Em se tratando de sentença de mérito ou definitiva, na
qual toda a matéria será objeto de análise e decisão, produzirá efeito formal e
material, formando-se a coisa julgada material. Ao contrário, em se tratando de
sentença terminativa, ou seja, que põe fim ao processo sem resolução do
mérito, a coisa julgada será apenas formal, deixando em aberto a análise da
matéria controvertida.
O artigo 467 do Código de Processo Civil Brasileiro de 1973, em
conceito falho e por demais criticado pela doutrina, traz a definição de coisa
48
CÂMARA. Lições de Direito Processual Civil, v. III, p. 381.
27
julgada material: “denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna
imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou
extraordinário.”
O legislador brasileiro, ao estabelecer tal definição, incorreu em
graves imprecisões, levando-se em conta tão somente a imutabilidade e
indiscutibilidade da sentença, o que também pode ser observado no caso da
coisa julgada formal, e não a imutabilidade e indiscutibilidade das relações
jurídicas, o que seria fundamental para a configuração do instituto.
Para o reconhecimento da coisa julgada material, a mais adequada
teoria a ser adotada é a da identidade da relação jurídica, uma vez que a
coisa julgada material impede toda e qualquer posterior discussão acerca do
direito material objeto da decisão definitiva, ainda que, em nova demanda, o
pedido seja diferente49.
Nos processos individuais, quanto à extensão, a regra é a de que a
coisa julgada irradia seus efeitos apenas entre as partes do processo, o que
ocorre independentemente do resultado da demanda, se procedente ou
improcedente (coisa julgada pro et contra). Nas ações coletivas, onde se
enquadra a ação de usucapião especial urbana coletiva, os efeitos da sentença
irão variar, seja de acordo com a natureza do direito discutido, com o resultado
da lide, ou com a suficiência ou não da prova produzida (coisa julgada
secundum eventum litis vel probationis e in utilibus).
As regras aplicáveis à coisa julgada nas ações coletivas estão
dispostas, basicamente, no artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor
(Lei nº 8.078/90). Tal dispositivo leva em consideração a natureza do direito
discutido no litígio coletivo - se difuso, coletivo em sentido estrito ou individual
homogêneo.
Em se tratando de direitos individuais homogêneos, como se
acredita ser o caso do direito dos possuidores na ação de usucapião especial
urbana coletiva, a sentença fará coisa julgada erga omnes, apenas na hipótese
de procedência do pedido, para beneficiar todos os possuidores e seus
sucessores (coisa julgada secundum eventum litis). Sendo considerado
improcedente o pedido, o parágrafo terceiro do mesmo artigo 103 do Código de
49
Entendimento defendido pelos autores Elpídio Donizetti e Marcelo Malheiros Cerqueira, na
obra Curso de Processo Coletivo, São Paulo, Editora Atlas, 2010, nas páginas 352-353.
28
Defesa do Consumidor dispõe que os interessados que não tiverem intervindo
no processo como litisconsortes poderão propor ação a título individual.
Fredie Didier Jr. e Hermes Zaneti Jr. afirmam que não deve ser
efetuada uma interpretação literal do dispositivo do artigo 103, III do Código de
Defesa do Consumidor, uma vez que a ação envolvendo direitos individuais
homogêneos deve ser tratada como autêntica ação coletiva, pois tais
interesses pertencem, por ficção, a um grupo de indivíduos. Neste sentido:
Assim, parece que, aplicando o princípio hermenêutico de que a
solução das lacunas deve ser buscada no microssistema coletivo,
pode-se concluir que se a ação coletiva for julgada procedente ou
improcedente por ausência de direito, haverá coisa julgada no âmbito
coletivo; se julgada improcedente por falta de provas, não haverá
coisa julgada no âmbito coletivo, seguindo o modelo já examinado
50
para os direitos difusos e coletivos em sentido estrito.
Desta forma, no que se refere aos direitos do grupo de possuidores
na ação de usucapião especial urbana coletiva, pode-se afirmar que, uma vez
julgada improcedente a demanda por falta de provas, não ocorrerá a coisa
julgada material, podendo a associação ou os possuidores ajuizar nova
demanda coletiva, desde que fundada em nova prova.
Outra peculiaridade dos efeitos da coisa julgada em relação aos
interesses individuais homogêneos é a de que os eventuais autores de
demandas individuais em curso, que tenham o mesmo objeto da demanda
coletiva proposta pela associação, não serão beneficiados pela decisão
coletiva, se não for requerida a suspensão das respectivas demandas
individuais, no prazo de trinta dias a contar da ciência, no feito, do ajuizamento
da ação coletiva, previsão esta disposta no artigo 104 do Código de Defesa do
Consumidor.
Conclui-se assim que, caso os autores tenham ajuizado
demandas individuais e não tenham pleiteado sua suspensão ao tomar
conhecimento da ação coletiva com o mesmo objeto, estes não serão atingidos
pela sentença coletiva de procedência, assim como não poderão se valer desta
se não tiverem êxito nas ações individuais que se mantiveram em andamento
concomitante à ação coletiva. Destarte, verifica-se que não se pode falar em
litispendência entre ações individuais e ação coletiva, ainda que sob o mesmo
objeto.
50
DIDIER JR.; ZANETI JR. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo, p. 369.
29
Acerca do prazo legal de trinta dias previsto para a suspensão da
ação individual, entende-se que não cabe interpretação literal do mencionado
dispositivo legal. Há que se lembrar que a usucapião especial urbana coletiva é
instrumento de política urbana, regulamentada no Estatuto da Cidade, que visa
a beneficiar a população carente; portanto, a finalidade política e social do
instituto em questão deve ser levada em conta, bem como a necessária
flexibilização da interpretação das normas de direito processual que lhe serão
aplicadas.
CONCLUSÕES
É sabido que a evolução do conceito do direito de propriedade no
ordenamento jurídico brasileiro demonstra, claramente, a mudança de seu foco
de proteção, que tem como centro a pessoa humana em seu contexto social.
Como consequência deste novo enfoque do direito de propriedade, evidenciase a maior proteção ao fenômeno social da posse e ao direito constitucional à
moradia, aliados à proteção dos interesses sociais da coletividade.
Neste contexto, a usucapião especial urbana coletiva, estabelecida
no Estatuto da Cidade, torna-se mais um instrumento, à disposição dos
cidadãos, de fundamental importância para a viabilização dos ideais de justiça
social, já que constitui mecanismo de aquisição da propriedade voltado
especificamente à proteção da coletividade de baixa renda.
Como meio de tutela processual coletiva, a usucapião especial
urbana coletiva objetiva o mais amplo acesso da coletividade à justiça.
Defende-se, dentre os direitos coletivos lato sensu, que o direito do grupo de
possuidores na ação de usucapião especial urbana coletiva é direito individual
homogêneo, devendo ser aplicados, a este instituto, as normas do direito
processual coletivo brasileiro, previstas no Microssistema de Processos
Coletivos.
Defende-se, ainda, que a interpretação das normas atinentes ao
instituto, previstas no Estatuto da Cidade, deve ser efetuada de forma larga e
flexível, sempre em conformidade com sua finalidade social e em conformidade
30
com a Constituição da República vigente, por meio dos métodos de
interpretação teleológico e sistemático, pois, caso contrário, as imprecisões
técnicas existentes na lei constituirão óbice ao exercício deste direito conferido
à coletividade de baixa renda.
O cidadão, e também o Poder Judiciário, devem assumir
participação ativa na implementação deste direito conferido pelo Estatuto da
Cidade, e por isso são necessários maiores estudos sobre este tema, para que
este instrumento passe a ser mais conhecido por parte dos cidadãos, e
consequentemente efetivado, cumprindo, assim, seu alcance social.
Como meio de tutela coletiva, o Ministério Público possui ampla
legitimidade para a defesa dos direitos do grupo de possuidores, inclusive para
a propositura da ação de usucapião especial urbana coletiva, na qualidade de
substituto processual. Trata-se, no caso, de proteção a interesses de
relevância social. E mais, a defesa da ordem urbanística é um dos objetos de
proteção da Lei de Ação Civil Pública (Lei n.º 7.347/85), o que legitima o
Ministério Público a ajuizar ação civil pública para a defesa dos interesses
individuais homogêneos da coletividade de baixa renda, no que tange à
aquisição do domínio.
Faz-se necessário, deste modo, (re)interpretar as disposições
atinentes ao instituto da usucapião individual, tradicionalmente de direito
privado, pois com a modificação na estrutura do direito de propriedade, este
somente pode ser protegido na medida em que cumpre seu papel socializante;
assim, a
propriedade não mais pode ser tratada apenas sob a ótica
individualista do tradicional direito civil,
e sim como um instrumento de
efetivação do direito fundamental à moradia, em consonância com os ideais de
justiça social e proteção à dignidade da pessoa humana.
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