200 J Bras Nefrol 2003;25(4):200-8 Insuficiência renal crônica na criança: aspectos clínicos, achados laboratoriais e evolução Chronic renal failure in children: clinical features, laboratory findings and outcome Márcia C Riyuzo, Célia S Macedo, Alessandra E Assao, Sáskia M W Fekete, Amélia A T Trindade e Herculano D Bastos Departamento de PPediatria ediatria da FFaculdade aculdade de Medicina de Botucatu, UNESP aulo, Brasil UNESP.. Botucatu, São PPaulo, Criança. Insuficiência renal crônica. Children. Chronic renal failure. Resumo Objetivo Descrever os aspectos clínicos, laboratoriais e a evolução de crianças com insuficiência renal crônica. Métodos Estudo descritivo de crianças com insuficiência renal crônica no período entre 1972 e 2000. Resultados Foram estudados 45 pacientes, dos quais 58,7% eram do sexo masculino e 53,4% com idade superior a 7 anos. Observamos alteração do peso e estatura em 37,7% e 42,2% dos pacientes, respectivamente. As alterações laboratoriais mais encontradas foram acidose metabólica em 93,8% dos casos, insuficiência renal moderada a grave em 66,6% dos casos e IRC terminal em 28,8% dos casos. As causas principais foram malformação do trato urinário em 48,8% dos casos e glomerulopatias em 40% dos casos. Crianças em tratamento conservador ou dialítico apresentaram crescimento insatisfatório. Óbito ocorreu em 6 crianças (15,4%). Conclusão O estudo constou do predomínio de crianças do sexo masculino, com idade acima de 7 anos, com anormalidades do trato urinário e alta percentagem de insuficiência renal crônica terminal, cujas alterações clínicas e laboratoriais graves podem ter contribuído para peso e estatura baixos. Abstract Objective To describe clinical features, laboratory findings, and outcome of children with chronic renal failure. Insuficiência renal crônica na criança - Riyuzo MC et al J Bras Nefrol 2003;25(4):200-8 201 Methods A descriptive study was carried out among children with chronic renal failure in the period between 1972 and 2000. Results There were studied 45 patients, 58.7% were male and 53.4% were older than 7 years old. It was observed a disturbance in weight and growth in 37.7% and 42.2 % of the cases, respectively. Laboratory disturbances were most often metabolic acidosis (93.8%); moderate to severe chronic renal failure (66.6%); and end-stage renal disease (28.8%). The most common causes of chronic renal failure were urinary tract malformation (48.8%) and glomerulopathies (40%). Children under conservative treatment or dialysis presented unsatisfactory growth. Death occurred in 6 children (15.4%). Conclusion The study revealed a predominance of male children over 7 years old with abnormalities of urinary tract and high percentage of end-stage renal disease whose severe clinical and laboratory abnormalities could have contributed to decreased weight and height. I n t r o d u ç ã o O termo insuficiência renal crônica (IRC) é utilizado para descrever o estágio de disfunção renal, avaliado pela taxa de filtração glomerular, calculada a partir da depuração da creatinina endógena ou clearance de creatinina, que varia de leve (taxa de filtração glomerular em torno de 75 ml/min/1,73 m2 de superfície corporal) a grave (taxa de filtração glomerular igual ou menor de 10ml/min/1,73 m2 de superfície corporal).1 Nos Estados Unidos, a IRC é causa significativa de morbidade e mortalidade em indivíduos adultos; em 1993 a incidência de tratamento para fase terminal de insuficiência renal foi de 210 por milhão de população por ano.2 Na faixa etária pediátrica, a incidência e prevalência da IRC variam de acordo com as características raciais e condições sócio-econômicas dos países, sendo difíceis de serem estabelecidas com rigor, pois são obtidas de informações de centros de diálise e transplante. Na Europa e Estados Unidos, a incidência de IRC varia entre 4 a 7 por milhão de população infantil com idade inferior a 15 anos. A prevalência de IRC pré-terminal é menos definida, sendo estimada entre 18 a 26 por milhão da população infantil.3,4 Independente da lesão primária, na maioria das formas de IRC, a função renal declina evoluindo para perda total do rim; os néfrons lesados são incapazes de se regenerarem resultando em completa falência renal.5,6 À medida que ocorre a deterioração da função renal, várias anormalidades clínicas e metabólicas começam a aparecer e estas aumentam em gravidade e prevalência com a redução progressiva da função renal.4,7 Pacientes com IRC apresentam manifestações clínicas múltiplas que envolvem vários órgãos e sistemas, como cardiovascular, endocrinológico, hematológico, neurológico, além de distúrbios eletrolíticos e do metabolismo ácido-básico.2,4,7 Na criança, o comprometimento do crescimento constitui-se em fator preocupante, estimulando-se pesquisas quanto à etiologia e ao desenvolvimento de métodos terapêuticos apropriados.8 Considerando-se a IRC uma doença grave, é fundamental o diagnóstico desta patologia nas crianças. Os procedimentos diagnósticos iniciais da doença que determinou a IRC consistem na avaliação detalhada da história clínica, exames urinários e séricos como as dosagens dos níveis de uréia e creatinina sangüíneas, a excreção da proteinúria e a depuração de creatinina em urina de 24 horas.9 Posteriormente, há necessida- 202 J Bras Nefrol 2003;25(4):200-8 de de exames mais precisos para o diagnóstico, como estudos sorológicos, exames por imagem do trato urinário e biópsia renal.7,10 Na IRC, o tratamento de pacientes tem como objetivo corrigir as alterações do equilíbrio ácido básico, eletrolíticas e hematológicas, de forma a proporcionar melhores condições para o crescimento e desenvolvimento até progressão da insuficiência renal ou substituir a função renal naqueles que evoluíram para a doença renal terminal.4 Em crianças que evoluíram para a doença renal terminal, ou seja, com níveis de depuração de creatinina inferiores ou iguais a 10 ml/min/1,73 m2 SC, o tratamento é a diálise ou o transplante renal. As crianças que apresentam valores de depuração de creatinina acima de 15 ml/min/1,73 m2 SC são mantidas em tratamento conservador, com controles adequados de ingestão protéica, calórica, suplementação de vitaminas e controle da pressão arterial.4 Entretanto, os limites dos valores da depuração de creatinina para indicação do tratamento conservador ou diálise não são absolutos, devendo-se considerar o estado nutricional, distúrbios que afetam o crescimento, alterações de distúrbios metabólicos e/ou eletrolíticos e sintomas de uremia.11 Em decorrência dessas observações, torna-se fundamental o diagnóstico dessa patologia, bem como das alterações clínicas e metabólicas, laboratoriais para a conduta terapêutica adequada; afinal, crianças com IRC requerem cuidados especializados para o resto de suas vidas. M é t o d o s Casuística A casuística constou de todos os pacientes com diagnóstico de insuficiência renal crônica atendidos pela Disciplina de Nefrologia Pediátrica do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina de Botucatu (UNESP), durante o período de janeiro de 1972 a dezembro de 2000. Assim, foram estudadas, retrospectivamente, 45 crianças de ambos os sexos, com idades variando entre um mês e 12 anos. Não foi excluída nenhuma criança, apesar de 13 delas não apresentarem a dosagem de bicarbonato sérico. O estudo dos pacientes foi realizado através do preenchimento de protocolo em que constava: 1. Identificação da criança (idade e sexo) Insuficiência renal crônica na criança - Riyuzo MC et al 2. Dados da história clínica (sintomas iniciais) 3. Etiologia da IRC 4. Dados de exame físico na admissão do paciente (peso, estatura,12 pressão arterial ou outra alteração) 5. Avaliação laboratorial através de exames séricos (hematócrito, uréia, creatinina, cálcio, fósforo, fosfatase alcalina, sódio, potássio, pH, bicarbonato) e de urina (depuração de creatinina), realizados pelos métodos rotineiros padronizados do serviço, na admissão do paciente. Para a obtenção da depuração de creatinina, colheu-se amostra de urina de 24 horas, sendo que nas crianças menores essa coleta foi realizada através da manutenção de uma sonda vesical. A IRC foi classificada em terminal, grave, moderada e leve de acordo com os níveis de depuração de creatinina, correspondendo a <10; 10-25; 25-50 e 50-75 ml/min/1,73m2 SC, respectivamente4 6. Aspectos relacionados ao tipo de tratamento realizado e evolução dos pacientes. O tratamento dialítico foi indicado nos pacientes com depuração de creatinina ≤10 ml/min/1,73 m2 SC ou naqueles com distúrbios eletrolíticos ou ácido-básicos ou com uremia, apesar da depuração estar entre 10 e 15 ml/min/1,73 m2 SC. O período de avaliação variou de dois a 132 meses, sendo a média de 15,9 meses (variando de dois a 64 meses) nas crianças em tratamento dialítico e de 42,6 meses (variando de dois a meses a 132 meses) nas do tratamento conservador. Neste período, foram realizadas avaliação clínica do paciente (peso, estatura, pressão arterial ou outra alteração) e avaliação laboratorial de exames séricos (hematócrito, uréia, creatinina, cálcio, fósforo, fosfatase alcalina, sódio, potássio, pH, bicarbonato) e de urina (depuração de creatinina). Nos resultados, foram considerados a última avaliação clínica e os últimos exames laboratoriais. Os resultados foram expressos em porcentagem (%) e foram comparados aos relatos da literatura. O protocolo do trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Humanos da Faculdade de Medicina de Botucatu UNESP. R e s u l t a d o s Os dados clínicos estão expressos na Tabela 1. Observou-se o predomínio de crianças do sexo masculino em 58,7% dos casos; 53,4% apresentaram faixa etária acima de 7 anos, 37,7% com comprometimento Insuficiência renal crônica na criança - Riyuzo MC et al J Bras Nefrol 2003;25(4):200-8 na curva do peso e 42,2% na curva de estatura. A hipertensão arterial, fadiga, infecção urinária, edema e palidez foram os achados clínicos mais freqüentes. As alterações laboratoriais da IRC no início do seguimento do paciente estão descritas na Tabela 2. Os valores da uréia sérica variaram de 40 a 345 mg/dl (média de 134,5 mg/dl e mediana de 104 mg/dl); da creatinina sérica variaram de 1,0 a 14,5 mg/dl (média de 3,27 mg/dl e mediana de 2,87 mg/dl). Observou-se IRC grave e moderada importante em 66,6% dos pacientes, dos quais 28,8% apresentaram insuficiência renal terminal. Os valores baixos de cálcio sérico e hematócrito ≤30%, bem como valores elevados de fósforo sérico e presença de acidose metabólica representaram outras alterações bioquímicas observadas em alta porcentagem dos pacientes. Os diagnósticos etiológicos da IRC estão descritos na Tabela 3. As duas principais causas de IRC foram malformação do trato urinário em 22/45 (48,8%) e doenças glomerulares em 18/45 (40%). Quinze pacientes (68,2%) dos 22 que apresentaram anormalidade do tra- 203 to urinário haviam sido submetidos a procedimentos cirúrgicos antes do acompanhamento da IRC. As causas de IRC terminal nas 13 crianças foram: glomerulonefrite crônica em cinco, refluxo vésico-ureteral em quatro, síndrome hemolítica urêmica em três e rins policísticos em uma. Todas as crianças receberam tratamento dietético e farmacológico para o controle das alterações metabólicas da IRC. O tratamento dietético constituiu-se na prescrição de quantidades adequadas de proteínas, que variaram de acordo com o déficit de função renal; e calorias, sendo no mínimo de 100 cal/Kg/dia. O tratamento farmacológico consistiu na reposição de ferro e/ou ácido fólico nas crianças com anemia, reposição com bicarbonato de sódio nas crianças com acidose metabólica e reposição de calcitriol nas crianças com depuração de creatinina abaixo de 50 ml/min/ 1,73 m2 SC. Não foi possível a obtenção de dados com relação à necessidade de transfusão de sangue em todos os pacientes com anemia; entretanto, os três pacientes com síndrome hemolítica urêmica necessitaram de Tabela 1 Aspectos clínicos de 45 crianças com insuficiência renal crônica Característica clinica Sexo Idade <2 anos 2-7 anos >7 anos Masculino (%) 26 (58,7) Feminino (%) 19 (41,3) Total (%) 45 (100) 6 8 12 5 2 12 11 (24,4) 10 (22,2) 24 (53,4) 12 13 1 5 14 - 17 (37,7) 27 (60,0) 1 (2,3) 13 13 6 13 19 (42,2) 26 (57,8) 5 8 5 3 3 2 1 8 5 4 4 2 1 - 13 13 9 7 5 (28,8) (28,8) (20,0) (15,5) (11,1) 3 (6,5) 1 (2,2) 9 6 8 8 2 - 10 8 5 2 2 1 19 14 13 10 (42,2) (31,1) (28,8) (22,2) 4 (8,9) 1 (2,2) Percentil de Peso (P) <P5 P5-P95 >P95 Percentil de Estatura (P) <P5 P5-P95 Sintomas/sinais relacionados ao trato urinário Edema Infecção urinária Proteinúria Hematúria Oligúria/anúria Massa abdominal Enurese Sintomas/sinais sistêmicos Hipertensão arterial Fadiga Palidez Vômitos Ganho insuficiente de peso Convulsão 204 Insuficiência renal crônica na criança - Riyuzo MC et al J Bras Nefrol 2003;25(4):200-8 transfusão de concentrado de glóbulos vermelhos. Até o momento da obtenção dos dados, a administração da eritropoetina não consistia em medida rotineira nos pacientes em tratamento conservador. No tratamento da hiperpotassemia foram prescritos restrição exógena de potássio, resina de troca catiônica (SorcalR) em todos os pacientes; solução com glicose e insulina em dois pacientes. Na metade dos casos o tratamento da acidose metabólica contribuiu para a normalização dos níveis séricos de potássio. Das oito crianças com hiperpotassemia, seis apresentavam-se em insuficiência renal terminal e iniciaram o tratamento com diálise peritoneal. A hiperfosfatemia foi tratada com adequação da ingestão protéica de acordo com idade e sexo, carbonato de cálcio em todos os pacientes e hidróxido de alumínio em dois pacientes. O tratamento com diálise peritoneal foi iniciado em 13 crianças (28,8%); a diálise peritoneal ambulatorial contínua (DPAC) foi instalada em nove crianças, enquanto a diálise peritoneal intermitente (DPI) foi prescrita para quatro crianças. Tabela 2 Alterações laboratoriais de 45 crianças com insuficiência renal crônica Exame laboratorial Uréia sérica (mg/dl) 40-70 70-100 >100 Média creatinina sérica (mg/dl) Idade Masculino (n=26) Depuração de creatinina (ml/min/1,73 m2) <10 10-25 25-50 50-75 Hematócrito (%) ≤30 >30 Bicarbonato sérico (mmol/L) n=32 ≤20 >20 Sódio sérico (mEq/L) ≤135 >135 Potássio sérico (mEq/L) ≤5,5 >5,5 Cálcio sérico (mg/dl) ≤9,0 >9,0 Fósforo sérico elevado (mg/dl) ≤2 anos - >6,5 2 a 10 anos - >5,5 >10 anos - >4,5 Fosfatase alcalina sérica (U/L) Elevada Normal 3 10 13 Feminino (n=19) Total (%) 1m-3m 6m-1a 1a-2a 2a-3a 3a-4a 4a-7a >7a 1 7 11 (n0 pacientes) 2,65 (3) (1,70-3,24) 2,44 (1) 2,80 (3) (2,37-3,20) 2,09 (2) (1,00-3,18) 10,30 (1) 2,20 (5) (1,5-3,6) 3,90 (12) (1,28-14,50) 4 (8,9) 17 (37,7) 24 (54,4) (variação) 1,01 (1) 1,02 (1) 1,79 (3) (1,16-2,20) 5 8 12 1 8 9 2 - 13 17 14 1 14 12 12 7 26 (57,8) 19 (42,2) 17 2 13 - 30 (93,8) 2 (5,2) 6 20 5 14 11 (24,4) 34 (75,6) 22 4 15 4 37 (82,2) 8 (17,8) 10 16 8 11 1 7 3 1 2 5 18 (40,0) 27 (60,0) 19/45 (42,2) 2/11 9/22 8/12 8 18 7 12 15 (33,4) 30 (66,6) 3,70 (2) (3,20-4,33) 5,30 (12) (1,80-12,50) (28,8) (37,8) (31,1) (2,3) Insuficiência renal crônica na criança - Riyuzo MC et al 205 J Bras Nefrol 2003;25(4):200-8 As crianças em tratamento conservador foram orientadas a comparecerem às consultas médicas mensais, para avaliação do desenvolvimento pôndero-estatural, da hipertensão arterial e das alterações dos exames laboratoriais; as crianças em diálise foram acompanhadas na Unidade de Diálise e Hemodiálise do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Botucatu UNESP. Quinze e dezoito crianças do tratamento conservador ou do dialítico que apresentavam peso ou estatura abaixo do percentil 5, respectivamente, mantiveram o mesmo percentil. Dentre 27 crianças com curvas de peso e estatura adequadas para idade, quatro (14,8%) apresentaram perda de peso e alteração para o percentil menor. Com relação à estatura, sete (26,9%) não cresceram e apresentaram alteração para o percentil menor. As alterações de peso e estatura estiveram presentes, mais freqüentemente, nas crianças com idades inferiores a quatro anos. No período avaliado, dos 32 pacientes que estavam em tratamento conservador, 13 mantiveram esta modalidade de tratamento neste serviço; cinco necessitaram de transferência para outro serviço para realização de diálise ou transplante renal nas décadas de 70 e início de 80. Após período médio de 47,7 meses em tratamento conservador, sete foram transferidos para o tratamento dialítico, sendo um em hemodiálise e seis em DPAC. Quatro realizaram transplante renal (período médio de 71 meses em tratamento conservador) e três foram a óbito, sendo dois portadores de tubulopatia com seguimento de 18 e 77 meses, respectivamente, e um com doença cística renal com 63 meses de seguimento e portador de fibrose hepática congênita com complicações hemodinâmicas. Dos pacientes que iniciaram o tratamento dialítico, cinco mantiveram esta modalidade de tratamento neste serviço (período médio de 23,4 meses); um foi transferido para outro serviço em decorrência da proximidade da residência; dois necessitaram de transferência para hemodiálise devido à perda da efetividade do peritônio, em decorrência de episódios de peritonite; cinco realizaram transplante renal (período médio de 15,2 meses em tratamento dialítico) e três foram a óbito, sendo que dois apresentavam glomerulopatia e um doença cística renal aos quatro, oito e dez meses de seguimento. Assim, dos 45 pacientes, seis (13,3%) foram transferidos para outro serviço e entre os 39 que mantiveram o tratamento neste serviço, observou-se óbito em seis (15,4%). Não foi possível a obtenção de maiores Tabela 3 Insuficiência renal crônica – etiologia nas diversas idades Doença de Base <2 anos 2 a 7 anos M/F M/F Mal formação do trato urinário - n=22 (48,8%) Válvula uretra posterior + RVU 4/2/Estenose da junção uretero-piélica RVU primário 1/Agenesia renal unilateral + RVU contralateral -/1 Rins policísticos 1/1 Megauretra Bexiga septada + RVU Rim em ferradura + Heminefrectomia Anomalia ano-retal + fístula urinária Doenças glomerulares - n=18 (40,0%) Síndrome Hemolítico - urêmica 1/2 2/1 Glomerulonefrite crônica 2/Glomerulonefrite familiar (Alport) Glomeruloesclerose segmentar e focal Glomerulonefrite membrano proliferativa Doenças tubulares - n=4 (8,9%) Acidose tubular renal primária Nefronoftise Síndrome de Fanconi -/1 1/Pielonefrite crônica RVU = refluxo vésico ureteral; M = masculino; F = Feminino. >7 anos M/F 2/1/1/1 1/1 1/1/-/1 1/-/1 -/1 1/2 2/1 -/2 -/1 -/1 1/-/1 206 Insuficiência renal crônica na criança - Riyuzo MC et al J Bras Nefrol 2003;25(4):200-8 dados dos pacientes em diálise; como a freqüência de peritonites. A Tabela 4 apresenta o resumo dos dados do presente estudo, comparados aos da literatura. D i s c u s s ã o A IRC incide em maior freqüência em meninos;7 entretanto, estudos com crianças chilenas e brasileiras descrevem freqüência maior em meninas.10,13 No presente estudo, houve discreto predomínio de IRC no sexo masculino. A faixa etária na qual essa doença incide é variável e difere nos diferentes centros; entretanto, nos diversos estudos, há o predomínio de crianças na faixa etária escolar ou adolescente,7,10,13 dados semelhantes aos obtidos em nossa casuística. Alteração do desenvolvimento pôndero-estatural foi freqüente neste estudo; este achado provavelmente está associado à elevada porcentagem de crianças com comprometimento moderado a grave da função renal, ou seja, diagnóstico tardio da IRC, bem como das alterações metabólicas e hormonais da IRC. No presente estudo, alteração do crescimento foi maior em crianças menores de quatro anos. O risco da insuficiência de crescimento é maior em pacientes que desenvolvem IRC ao nascimento ou na infância precoce e nas com filtração glomerular abaixo de 40 ml/ min/1,73 m2 SC.4,14 Concomitante aos valores baixos da depuração de creatinina, outros fatores, tais como desnutrição energética, toxinas urêmicas e resistência ao hormônio do crescimento, osteodistrofia renal, acidose metabólica, perda de cloreto de sódio, terapia com corticosteróide (nos portadores de glomerulopatias), disfunção psicossocial, hipertensão arterial e anemia, além dos distúrbios metabólicos, como hipocalcemia, hiperfosfatemia e elevação dos níveis sangüíneos da fosfatase alcalina e do hormônio da paratireóide, podem interferir no crescimento.4,8 Observamos crescimento insuficiente nas crianças em tratamento conservador ou em diálise. Há relatos do retardo de crescimento em crianças e adolescentes com IRC, nos períodos pré e pós-dialítico.15 Provavelmente, fatores que dificultam a aquisição adequada de alimento, alto custo do tratamento medicamentoso e falta de uma política social de apoio ao doente renal Tabela 4 Insuficiência renal crônica – dados da literatura Dados N0 Centros N0 Pacientes Sexo Feminino Masculino Idade Causas Alteração urológica RVU primário Glomerulopatias Tratamento Conservador Hemodiálise Diálise Peritoneal Transplante Mortalidade Habib et al, 1973 1 Hospital Necker Paris-França 270 Diniz et al, 1993 1 UFMG Belo Horizonte Brasil 172 132 (48,9%) 138 (51,1%) <5 anos 147 (54%) 57 (21%) Estudos Valenzuella et al, 1996 13 Chile Fivush et al, 1998 130 Estados Unidos Canadá 194 Warady et al, 1997 123 Estados Unidos Canadá, México, Costa Rica 6505 1725 Este estudo 2001 1 UNESP Botucatu Brasil 45 94 (54,6%) 78 (45,5%) 7-15 anos 88 (51,2%) 57 (33,1%) 103 (53,0%) 91 (47,0%) ≥10 anos 123 (63,4%) 66 (34,1%) 2921 (44,9%) 3584 (55,1%) 6-12 anos 1977 (30,4%) 4321 (66,5%) 569 (33,0%) 1156 (67,0%) 6-12 anos 600 (35,0%) 793 (45,9%) 19(41,3%) 26(58,7%) >7 anos 24(53,4%) 19(42,2%) 71 (26%) 76 (43,6%) 12 (6,2%) 35 (18,0%) 272 (6,3%) 1031 (23,8%) 155 (8,9%) 103 (5,9%) 3 (6,7%) 18 (40%) 68 (25,2%) 46 (17,0%) 24 (13,9%) 40 (23,2%) 26 (15,1%) 18 (10,5%) 50/172 (29,1%) 111 (57,2%) 25 (12,9%) 7 (3,6%) 51 (26,3%) sem referência 649 (9,9%) 801 (12,3%) 1383 (21,3%) 3673 (56,7%) 214/3673 (5,8%) Transplante 1725 (100%) sem referência 32(71,2%) 13(28,8%) 6/39 (15,4%) 136/270 (50,4%) UFMG = Universidade Federal de Minas Gerais; UNESP = Universidade Estadual Paulista; RVU = Refluxo vésico ureteral. Insuficiência renal crônica na criança - Riyuzo MC et al crônico pediátrico devam estar influenciando a evolução dos pacientes.10 Na avaliação do crescimento e ganho de peso, têmse abordado o inquérito alimentar diário da criança, curvas de crescimento e desenvolvimento ponderal e exames laboratoriais, dentre eles a dosagem de albumina sérica.8,16 Em pacientes em diálise, a dosagem de albumina sérica constitui-se num dos fatores de morbidade.11 Recentemente, aspectos importantes com relação à nutrição16 e administração do hormônio de crescimento17 têm sido descritos no cuidado de crianças com IRC. Essas informações podem contribuir para melhorar a assistência à criança portadora desta doença renal. Em nosso serviço, estamos avaliando a introdução do hormônio de crescimento em pacientes com IRC em tratamento conservador. Nesta casuística, o achado laboratorial marcante foi a presença de crianças em IRC grave ou terminal diagnosticada na primeira consulta, o que pode refletir a dificuldade de diagnóstico desta patologia. As duas causas principais de IRC em crianças são as anormalidades urológicas congênitas em 13,7% a 46% dos casos e as glomerulonefrites crônicas em 3,9% a 46%.7,10,13,18,19 Os dados do presente estudo são semelhantes aos de Fivush,7 Diniz13 e Habib.19 Tendo em vista a alta freqüência de anormalidade do trato urinário como causa de IRC, com necessidade de procedimento cirúrgico em cerca de metade dos casos,7 deve-se enfatizar a necessidade do seguimento precoce das crianças com essas anormalidades, uma vez que a IRC terminal pode desenvolver-se até elas alcançarem oito a 12 anos de idade.4 Podemos considerar que os nossos pacientes tiveram o diagnóstico tardio de IRC. Crianças com IRC são submetidas ao tratamento conservador e dialítico até a realização do transplante renal. O tratamento inicia-se precocemente no curso da disfunção renal e geralmente aumenta em intensidade em paralelo com a progressão da doença renal.4,8,16,20-23 J Bras Nefrol 2003;25(4):200-8 207 A maior porcentagem de crianças com IRC é tratada com diálise peritoneal, uma vez que ela é tecnicamente mais fácil de se realizar, pode ser utilizada para pacientes pequenos, evita alterações súbitas de fluido e eletrólitos, pode ser realizada em casa e minimiza as restrições dietéticas.23 Outros serviços têm realizado preferencialmente a hemodiálise.10,13 Vários fatores estão relacionados na escolha do método dialítico, dentre eles, o nível educacional, sócio-econômico e a política de saúde.22 Em nosso serviço, é preferencialmente realizada a DPAC. O transplante renal é considerado o melhor tratamento para IRC.1 Cerca de 25% de crianças que receberam transplante renal não realizaram diálise.1 Em crianças, o transplante com doador vivo relacionado é realizado em 46,8%23 dos pacientes. Neste aspecto, é importante o diagnóstico precoce da IRC, orientações adequadas e seguimento regular do paciente para a preparação para o transplante renal, sem necessidade da diálise. Em nosso estudo, não avaliamos os resultados das crianças transplantadas que são seguidas pela unidade de transplante renal deste serviço. Os dados referentes à mortalidade abrangem pacientes em tratamento dialítico ou submetidos ao transplante renal. Considerando-se todas as modalidades de tratamento, há relato de óbito em 30% dos pacientes.13 Nas crianças em diálise peritoneal, a mortalidade é maior em menores de um ano,23 dados semelhantes aos obtidos em nossa casuística. A IRC é uma condição potencialmente fatal que não se cura; o objetivo a longo prazo dos cuidados de crianças com IRC é prover espaço de vida o mais longo possível com morbidade mínima e a oportunidade para o desenvolvimento e crescimento próximos ao desejado. São poucas as informações relacionadas às crianças brasileiras com insuficiência renal crônica, devendo-se considerar, futuramente, a possibilidade da realização de estudo multicêntrico nacional para conhecermos verdadeiramente a situação de nossos pacientes. R e f e r ê n c i a s 1. Harmon WE. Chronic renal failure- Overview of Chronic renal failure. In: Barrat TM, Avner ED, Harmon WE, editors. Pediatric nephrology. 4th ed. Baltimore: Lippincott Williams & Wilkins; 1999. p. 1151-4. 2. Rahman M, Smith MC. Chronic renal insufficiency. Arch Intern Med 1998;158:1743-52. 3. Deleau J, Andre JL, Briancon S, Musse JP. Chronic renal failure in children an epidemiological survey in Lorraine (France) 1975-1990. Pediatr Nephrol1994;8:472-6. 208 J Bras Nefrol 2003;25(4):200-8 4. Wassner SJ, Baum M. Chronic renal failure. Physiology and management. In: Barrat TM, Avner ED, Harmon WE, editors. Pediatric nephrology. 4th ed. Baltimore: Lippincott Williams & Wilkins; 1999. p. 1155-82. 5. 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