O relevo do HIV no contexto dos crimes sexuais Ana Rita Alfaiate; Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; [email protected] 1. Enquadramento da problemática Em Portugal, as penas aplicáveis aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual que assentem num contacto íntimo entre o agente e a vítima são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, no caso de o agente ser portador de doença sexualmente transmissível, como é o caso do HIV (art. 177.º/3 CP). Se houver efectiva transmissão do agente patogénico, então, a agravação das penas é de metade, nos seus limites mínimo e máximo (art. 177.º/4 CP). Embora a doutrina maioritária1 defenda que a lei deve ser lida no sentido de exigir, para a verificação do tipo agravado, o conhecimento da doença, pelo agente, a letra do artigo 177.º do Código Penal prevê aquelas agravações independentemente daquele conhecimento no momento da actividade sexual. Na redacção de 1982 do Código Penal, a previsão desta circunstância agravante clarificava a necessidade do conhecimento da doença por parte do agente no momento do crime (art. 208.º/2). Mas a revisão de 1995 deixou cair como elemento necessário da agravação esse conhecimento. Por isso, não é estranho que, numa primeira análise do artigo, se conclua pela possibilidade de agravação independentemente dele. No entanto, a ideia de uma agravação desprendida de qualquer juízo de culpa do agente não parece justificada, desde logo atendendo às características das circunstâncias agravantes e à sua razão de ser. Apesar disso, em várias oportunidades que teve já para encerrar o conflito, esclarecendo-o, o legislador não mais repôs, na letra do artigo, o conhecimento do agente como um elemento necessário. 1 Entre outros, ANTUNES, Maria João, «Artigo 177.º — Agravação», in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 587 (citado: «177.º») e GONÇALVES, Maia, Código Penal Português Anotado e Comentado, Legislação Complementar, 18.ª edição, Almedina, Setembro de 2007, pp. 657 e 658 (citado: código). Em sentido contrário, LOPES, José Mouraz, Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual no Código Penal, 4.ª ed. (Revista e modificada de acordo com a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro), Coimbra Editora, Fevereiro de 2008, p. 164. 1 2. O n.º 4 do art. 177.º do Código Penal De facto, quanto à qualificação decorrente do contágio não temos dúvida que estamos perante um crime com uma agravação de resultado. Por isso, quanto a este particular, não sobejam óbices a que, em consonância com o artigo 18.º do Código Penal, o agente tenha de conhecer ou, pelo menos, desconhecer com culpa, ser portador do vírus. A agravação da pena será, nestes casos, de metade, nos seus limites mínimo e máximo. É o resultado, ainda que produzido com negligência do agente, que justifica a agravação, sendo possível imputar esse resultado desvalioso à conduta do agente, emergindo um nexo causal entre eles2. Assim, só em sede de determinação da pena concreta os termos do conhecimento ou desconhecimento do agente podem pesar, ditando uma culpa maior ou menor3. Distintamente devem ser tratados os casos em que, além do resultado desvalioso que é o contágio da doença, o agente provoca um outro, de ofensa à integridade física grave ou de morte da vítima. Nestes casos, provando-se que o agente agiu com dolo na produção do resultado ofensa à integridade física grave ou morte da vítima, não é razoável que o mesmo seja punido, tão-só, pelo crime sexual agravado por um resultado. Em tais hipóteses, mais que uma qualificação do crime sexual pela verificação de um resultado desvalioso, estaremos perante um concurso de crimes. E o agente deve ser punido pelo crime sexual e pelo crime de ofensas à integridade física grave ou de homicídio (conforme o caso)4. 3. O n.º 3 do art. 177.º do Código Penal Ao explicitar a agravação do n.º 4 para os casos de efectivo contágio, o legislador deixa que neste n.º 3 a agravação resulte do facto de o agente ser portador de doença sexualmente transmissível, prescindindo da verificação de qualquer resultado e conduzindo-nos a uma qualificação de perigo. Dizer isto acarreta a necessidade fundamental de saber em que termos podemos falar naquela agravação, e porquê nesses e apenas nesses. Ou seja, decidir se aquela agravação opera apenas nos casos em que o agente tem conhecimento que é portador da 2 ANTUNES, Maria João, «177.º», [n. 1], p. 589. Neste sentido, Ac. STJ, de 11 de Novembro de 2004 (Proc. 04P3259, Relator Simas Santos), disponível em www.dgsi.pt (consultado pela última vez em 21 de Setembro de 2008). 4 ANTUNES, Maria João, «177.º», [n. 1], p. 590. 3 2 doença ou desconhece este facto com culpa, ou em todos aqueles em que o agente é portador da doença, independentemente de o saber ou não. Quando a lei qualifica o crime pela simples circunstância em que se encontra o agente, independentemente de qualquer resultado, parece-nos difícil aceitar que não seja sequer necessário que este conheça o seu estado de saúde, o que o colocaria numa posição de domínio sobre a vítima e operaria um desvalor da sua conduta, detentor que estava da informação que, para além de estar a violar a liberdade sexual daquela, estava a pôr em perigo a sua integridade física e, em última análise, a sua vida. Por isso, alguns autores defendem que se exija, para o preenchimento da circunstância agravante, o conhecimento, ou pelo menos o desconhecimento com culpa, por parte do agente, do seu estado de saúde5. Como já vimos, a agravação da pena, nestes casos, não opera em virtude de qualquer resultado, porque o contágio é causa de agravação do n.º 4 e não deste n.º 3 do artigo 177.º do Código Penal. Apesar disso, a vítima fica exposta a um perigo demasiado grave para que o legislador possa ignorá-lo. Razão pela qual agrava a pena do agente. Assim sendo, a agravação da pena traduz-se num juízo de censurabilidade acrescida da conduta do agente e repercute-se numa exigência de prevenção mais lata. Logo, não nos parece razoável que o agente possa ser punido com uma pena superior se não se provar, pelo menos, o seu desconhecimento com culpa relativamente ao estado de saúde em que se encontra. O interesse da vítima que se protege com esta agravação exige correlatividade na acção do agente. E não, simplesmente, nas suas características ou estado de saúde. A agravação não é uma outra pena, mas desvinculá-la da conduta do agente desprende-a da culpa que tem ainda de estender-se como seu pressuposto e limite. Não há pena sem culpa. E não deverá haver mais pena sem que exista mais culpa. Assim, acompanhamos os autores6 que afirmam que o legislador não explicita a necessidade do conhecimento do agente, neste n.º 3 do artigo 177.º do Código Penal, por essa ser uma explicitação desnecessária à luz da doutrina geral das incriminações. 4. Actos sexuais consentidos Tudo quanto a que já se aludiu diz respeito a uma problemática absolutamente distinta da que emergirá de uma situação de acto sexual válida e eficazmente 5 6 Idem, p. 587 e GONÇALVES, Maia, código, [n. 1], pp. 657 e 658. Cf. nota 1. 3 consentido. Nesses casos, não estaremos perante qualquer crime sexual. Ainda assim, a conduta do portador do vírus, agente, pode não estar isenta de responsabilidade penal. Ponto assente, porém, para esta discussão, é o necessário conhecimento do agente do facto de ser portador da doença. Se o agente desconhece, sem culpa, o seu estado de saúde, o contágio não poderá ser punido. Conhecendo o agente a doença, ou desconhecendo-a com culpa, então, poderá haver responsabilidade penal. Se o portador do vírus não transmite este facto ao parceiro, não o coloca no domínio de todas as consequências implicadas no contacto sexual, privando-o da possibilidade de se determinar a não correr os riscos inerentes àquele contacto. E em situações tais, concretizando-se o contágio, bem se compreende que o agente possa ser punido por ofensa ao bem jurídico integridade física ou, em última análise, vida. Mesmo que não subsistam razões para uma condenação por qualquer crime sexual. Esta solução não impede que se pondere punir o agente também por propagação de doença contagiosa, nos termos do artigo 283.º/1,a do Código Penal, a título doloso ou negligente7, mas isso apenas quando o contágio se subsuma numa relação ocasional de um agente com múltiplos parceiros. Finalmente, há ainda a possibilidade de o agente esclarecer o seu parceiro sexual quanto ao risco de contágio e de este, mesmo assim, acordar na relação. Nestes casos, e embora reconheçamos a indisponibilidade do bem jurídico vida, que é, em última análise, o bem jurídico posto em crise pela conduta do agente, somos da opinião que o acordo do outro, traduzido num dever de cuidado partilhado, funciona como uma autocolocação em perigo ou uma heterocolocação em perigo consentida, que deverá excluir a responsabilidade do agente8. 7 A propósito das dificuldades que podem surgir em incriminações por factos desta natureza, por todos CUNHA, J. M. Damião da, «Artigo 283.º — Propagação de doença, alteração de análise ou de receituário», in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 101. 8 No mesmo sentido, DIAS, Jorge de Figueiredo, Textos de direito penal. Doutrina geral do crime, (polic.), Coimbra, 2001, p. 268 e VAZQUEZ ACUÑA, Martin, «La transmission dolosa o culposa del virus HIV y el consentimiento de la víctima.», Revista de la Facultad de derecho y ciencias sociales Universidad Nacional de Córdoba, n.º 1, Vol. 2, Año 1993, Nuena série, pp. 645-651. Para maiores desenvolvimentos quanto a este assunto, ANDRADE, Manuel da Costa, «Artigo 149.º — Consentimento», in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pp. 276 e ss e ANDRADE, Manuel da Costa, Consentimento e acordo em direito penal, reimpressão, Coimbra Editora, 2004, pp. 271 e ss. 4